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AS RELAÇÕES SER SOCIAL E NATUREZA NA ORDEM DO CAPITAL

Rafaela Silveira de Aguiar

Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social

Universidade Estadual do Ceará

GT 9: Ecologia e Marxismo

RESUMO: A ontologia do ser social é capaz de oferecer elementos de análise para

compreender as relações entre sociedade e natureza. Desse modo, o presente ensaio se utiliza

desta fonte analítica para subsidiar a leitura dos processos inerentes ao capitalismo

contemporâneo que determinam a forma destrutiva e irracional de interação entre sociedade e

natureza.

Palavras-chave: ser social; trabalho; natureza; sistema capitalista.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo parte da ontologia histórico-materialista para compreender os processos

inerentes às relações sociedade e natureza, cuja base marxista nos fornece arcabouço teórico,

político e metodológico capaz de elucidar o movimento da produção e reprodução das

relações sociais no marco do capital.

No processo histórico da espécie humana, não há precedentes que desassociem a

interdependência do ser social com relação ao complexo orgânico e inorgânico. Portanto, há

uma necessidade natural e histórica de manter condições para sustentar e expandir as

possibilidades das forças produtivas para o cultivo da vida humana. Tal constatação na ordem

do capital é secundarizada e até suplantada pelas contradições geradas na apropriação

autodestrutiva da força de trabalho e da natureza exterior.

A exacerbação da alienação do homem/mulher e da natureza evidenciou na

contemporaneidade novas expressões da questão social, dentre elas a disputa do espaço

urbano, no qual o discurso ambiental de sustentabilidade surge como uma arma capaz de

acirrar conflitos entre classes e impor o interesse do segmento dominante.

Para alcançar o entendimento de tais aspectos, optou-se por partir da categoria

trabalho.

2. PELO TRABALHO PARA COMPREENDER QUE “O HOMEM VIVE DA

NATUREZA”1

A compreensão do ser social deve partir do fato de que existem pressupostos

elementares para a sua constituição e manutenção. Nesse sentido, Lukács (1978) nos aponta

que os complexos inorgânico e orgânico representam as bases de surgimento e

desenvolvimento do ser social, por isso o título de dependência que tais pressupostos ensejam

na existência humana.

1 Fragmento extraído da obra: MARX, K. Manuscrito Econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

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Logo, podemos perceber que há uma articulação entre as três esferas destacadas:

inorgânica, orgânica e social; dada pela processualidade evolutiva, mantendo-se, porém a

diferenciação entre elas, como nos apresenta Lessa (1996, p. 16 e 17):

A inorgânica, cuja essência é o incessante tornar-se outro mineral; a esfera biológica, cuja essência é o repor o mesmo da reprodução da vida; e o ser social, que

se particulariza pela incessante produção do novo, através da transformação do

mundo que o cerca de maneira conscientemente orientada, teleologicamente posta.

[...] do inorgânico surgiu a vida e, desta, o ser social. Essa processualidade evolutiva

é responsável pelos traços de continuidade que articulam as três esferas entre si.

Nesta perspectiva, a teoria social de Marx tem uma base ontológica, com a qual o ser

social é compreendido em sua totalidade e complexidade. A natureza, nessa linha, é tomada

como a base material e espiritual com a qual o ser social interage para sua sobrevivência.

A natureza é o corpo inorgânico do homem, (...) que o homem vive da natureza quer

dizer que a natureza é seu corpo, com o qual deve manter-se num processo

constante, para não morrer. A afirmação de que a vida física e espiritual do homem

se acha integrada com a natureza não tem outro sentido que o de que a natureza se

acha integrada consigo mesma e que o homem é parte da natureza. (Marx, 1984,

p.155).

Reconhece-se que a natureza é o pressuposto básico que condiciona a dimensão

histórica do ser social aberta pelo processo de trabalho, da qual também incide nas

possibilidades de práxis social humana.

Assim, a interação e transformação da natureza pelo homem/mulher proporcionou a

gênese do elemento de especificidade que direcionou o salto ontológico da esfera biológica

para a do ser social, e, que, portanto, constituiu o ser social: o trabalho.

[...] o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o

homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a

natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural.

(MARX, 1983, p.149).

Nessa interação, o homem transforma a si mesmo, objetivando relações sociais cada

vez mais complexas na sociedade, tornando-se, além de um ser humano/vivo, um ser social.

Em síntese, citando Lessa (1996, p. 63): “É a capacidade essencial de, pelo

trabalho, os homens construírem um ambiente e uma história cada vez mais determinada

pelos atos humanos e cada vez menos determinadas pelas leis naturais”.

O trabalho é o motor impulsionador do desenvolvimento das forças produtivas,

através do qual o ser social consegue se afastar progressivamente das barreiras naturais, e,

assim, buscar satisfazer suas necessidades, encontrando a liberdade, enquanto produto da

atividade humana.

Tal atividade de transformação da natureza que constitui o trabalho é determinada pelo

tipo de organização econômica da sociedade. O modo de produção material e de reprodução

das relações sociais é o elemento determinante sobre a forma como se dão as relações

sociedade e natureza. No contexto do capital e no seu sistema metabólico social mais

desenvolvido, o capitalismo, encontra-se uma sociabilidade permeada por contradições.

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Tal linha argumentativa está assentada no pensamento social de Karl Marx, cujo

arcabouço intelectual evidencia a sensibilidade com relação ao vínculo estreito entre o ser

social e a natureza, sendo esta a base sobre a qual o homem/mulher se constitui e se

desenvolve.

Foster (2011) tece da literatura de Marx uma teia analítica para se fundamentar na

perspectiva de que este autor, enquanto um dos maiores materialista do século XIX, além de

ter adentrado no universo da natureza para compreender a ontologia do ser social, ainda foi

capaz de inaugurar uma visão ecológica revolucionária, na qual a transformação social deve

ter um movimento simultâneo com a transformação da relação humana junto à natureza.

A defesa de Foster (2011) faz reconhecer na obra marxiana a existência da

preocupação ecológica, divergindo das visões da Teoria Verde contemporânea, na qual a

ciência e materialismo são postos como inimigos de concepções harmoniosas acerca da

natureza.

Em Karl Marx podemos encontrar uma análise crítica do movimento de transformação

da relação sociedade e natureza que se inaugura no contexto do sistema capitalista, cujo

percurso analítico consegue identificar nesta interação uma falha metabólica, da qual a

degradação ambiental deslancha.

Marx empregou o conceito de “falha” na relação metabólica entre os seres humanos

e a terra para captar a alienação material dos seres humanos dentro da sociedade

capitalista das condições naturais que formaram a base de sua existência – o que ele

chamou “a[s] perpétua[s] condição[ões] da existência humana imposta[s] pela

natureza‟” (FOSTER, 2011, p. 229).

A falha metabólica reconhecida na relação entre os seres humanos e a terra destacada

na citação acima faz parte do contexto socio-histórico, no qual Karl Marx esteve inserido, na

chamada segunda revolução agrícola (1830-1880) marcada pela expansão de indústrias de

fertilizantes e pelo desenvolvimento de substâncias químicas para solos. Cenário em que a

preocupação com o enfraquecimento do solo faz parte da agenda da sociedade capitalista.

Utilizando-se de pesquisas de físicos, químicos e agricultores, Marx identifica ainda

como expressão da falha metabólica a divisão territorial que foi funcional para a expansão do

capital, na qual o campo não interage racionalmente com a cidade, e vice-versa. O conteúdo

extraído dos bens naturais e os dejetos produzidos não compunham um ciclo metabólico

completo, no qual os ecossistemas pudessem absorvê-los, que o desperdício fosse mínimo ou

mesmo inexistente, originando insustentabilidade ambiental e sanitária nos espaços.

A falha metabólica é uma expressão do processo alienante em que o trabalho está

inserido na ordem do capital. Marx (1989) consegue identificar quatros momentos da

alienação do trabalho dialeticamente relacionados. Um deles está na objetivação2 do produto

do trabalho (objeto), que passa a ser submetido a sujeição e apropriação de outro, formando-

se a exteriorização.

O processo de produção também faz manifestar à alienação inerente a sociabilidade do

capital, pois no trabalho o homem/mulher passa a se perder enquanto ser social. Tal fenômeno

evidencia a fuga do trabalho ontológico, enquanto uma alavanca acionada pelo sujeito para

possibilitar o fazer livre e voluntário, orientado para responder necessidades identificadas.

2 Processo em que o objeto se materializa através do trabalho e possui identidade própria.

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Nas palavras do pensador alemão, pode-se perceber o alcance extremo de uma relação

invertida de sentido.

Chega-se ao resultado de que o homem (trabalhador) se sente livremente ativo só

ainda em suas funções animais, comer, beber e procriar, no máximo ainda moradia,

ornamentos, etc., e em suas funções humanas só se sente ainda como animal. O que

é animal se torna humano e o que é humano se torna animal. (MARX, 1989, p. 154).

Deste modo, contraditoriamente às condições objetivas angariadas no processo

histórico por meio do trabalho e o avanço das forças produtivas, tem-se um retrocesso

material e espiritual em relação a condição do sujeito trabalhador, cujo ato laborativo não

consegue posicioná-lo no campo humanizador e emancipador, logo no lugar que mais poderia

se afastar dos limites oriundos da natureza. Assim, o processo de trabalho é um segundo

momento da alienação identificado por Marx.

No movimento de compreensão exposto, no qual o objeto e o processo para a sua

produção mostram-se como níveis do trabalho alienado, reconhece-se ainda a alienação com

relação ao gênero-humano, uma vez que a natureza é alienada do homem, o que atinge de

forma decisiva duas dimensões elementares que a natureza exerce na composição do ser

social: compromete o meio de vida imediato e a base da atividade vital. Um movimento único

que incide duplamente na materialidade do processo de trabalho e na universalidade humana.

Não é a unidade da humanidade viva e ativa com as condições naturais, inorgânica,

da sua troca metabólica com a natureza, e daí a sua apropriação da natureza, que requer explicação, ou é o resultado de um processo histórico, mas a separação entre

estas condições inorgânicas da existência humana e esta existência ativa, uma

separação que é integralmente postulada apenas na relação do trabalho assalariado

com o capital. (MARX, 2011, p.489)

A propriedade privada advém do caráter alienante da sociedade burguesa, do qual

também conduz o rompimento social entre o vínculo natural e histórico da sociedade com os

pressupostos da natureza, portanto, a alienação da natureza; mesma base de alienação do

trabalho.

Marx identifica finalmente que todos estes momentos da alienação só podem levar a

alienação do homem/mulher consigo mesmo, assim efetivamente o trabalho não intervém

apenas no processo restrito da produção e na relação com o objeto elaborado, mas também

nas relações entre os sujeitos, dimensão estruturadora da sociabilidade.

Em síntese, pôde-se entender que as relações sociedade e natureza devem ser

compreendidas a partir do trabalho, sem, contudo, deixar de abranger o modo de produção no

qual a atividade vital do ser social se engendra. Nesse sentido, o tópico seguinte aprofundará

as contradições inerentes a sociabilidade capitalista no que se refere ao seu comportamento

autodestrutivo e incontrolável, o qual fundamenta o acirramento da pobreza, depredação

ambiental e forja luta de classes.

3. A DISPUTA PELO ESPAÇO: EXACERBAÇÃO DA LUTA DE CLASSES

No contexto do capital, inaugura-se um sistema produtivo que desnuda o trabalho de

sua objetivação maior, que é a satisfação das necessidades básicas da humanidade através da

produção de valores de uso, sendo sua produção subordinada à expansão das taxas de

acumulação de capital.

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As possibilidades postas pelas forças produtivas alcançadas no contexto do sistema de

metabolismo social do capital foram capazes de afastar importantes barreiras naturais e

transformá-las em seu benefício (LESSA, 2007), no entanto, justamente pela essência

mercadológica, exploradora e acumulativa de riquezas do sistema capitalista, torna-se

impossível superar problemáticas das mais simples e fundamentais, por exemplo, a fome, no

que se refere a sua distribuição de alimentos.

Nesta estrutura, a divisão dos valores de uso e de troca, e mais, a subordinação do

segundo sobre o primeiro pelo capital traz implicações extremas que se revelam nas relações

de produção e consumo na contemporaneidade. Mészáros (1989) identifica que a definição de

utilidade do todo produzido não se dá pela sua demanda para satisfazer necessidades, mas sim

pela sua vendabilidade.

No capitalismo avançado, Mészáros (2002) verifica que o capital necessita se

expandir, posto que houve uma redução das possibilidades históricas já exploradas, como a

expansão territorial. Para tanto, uma das estratégias fortemente implementadas, trata-se da

taxa de uso decrescente, a qual é capaz de proporcionar maior agilidade na circulação e,

portanto, efetivação da mercadoria. Nas palavras do pensador húngaro

[...] se baixarmos o valor de uso de uma mercadoria ou criarmos condições para que

ela só possa ser consumida „parcialmente e com menos proveito‟, esta prática, não

importa quão censurável seja de outro ponto de vista, não afetará igualmente seu

valor-de-troca. Uma vez que a transação comercial tenha ocorrido, auto-

evidenciando a „utilidade‟ da mercadoria em questão através do ato de venda, nada

mais há com que se preocupar do ponto de vista do capital. De fato, quanto menos

uma dada mercadoria é realmente usada e re-usada (ao invés de rapidamente

consumida, o que é perfeitamente aceitável para o sistema), enquanto a demanda

efetiva do mesmo tipo de utilização é reproduzida com sucesso, melhor é do ponto de vista do capital: com isso tal sub-utilização produz a vendabilidade de outra peça

de mercadoria. (MÉSZÁROS, 1989, p. 23 e 24).

Deste modo, o capital providencia a produção de supérfluos, a fim de realizar mais

rapidamente a substituição de mercadorias, e, assim, potencializar mais uma forma de conter e

superar a crise decorrente do declínio da acumulação de capital. Porém, no momento em que

o capital encontra esta saída ultrapassar as dificuldades, simultaneamente puxa o gatilho para

se autodestruir.

Sob as condições de crise estrutural do capital, seus constituintes destrutivos

avançam com força extrema, ativando o espectro da incontrolabilidade total numa

forma que faz prever a autodestruição, tanto para este sistema reprodutivo social

excepcional, em si, como para a humanidade em geral. (MÉSZÁROS, 2002, p. 100).

O aumento da demanda por mercadorias ocasionado pela taxa de uso decrescente vem

causando desequilíbrios ambientais sem precedentes na história, expondo à depredação a base

material vital para a sobrevivência da sociedade.

O que se revela é que o capital toma a natureza também como mercadoria, e dela

explora, num processo posto por Grossi (2009) como uma espécie de dupla exploração

direcionada a determinados sujeitos, os trabalhadores, bem como a natureza.

Revela-se ainda a existência de uma iniquidade na apropriação dos recursos e da

energia retirados da natureza. Silva (2010) explica tal afirmação apresentando uma pesquisa

que aponta que cerca de 20% da humanidade consome, polue e degrada cerca de 80% dos

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bens. Os EUA, que representa 5% da população mundial, lidera esse o consumo, apropriando-

se de quase 1/3 das riquezas produzidas. No cenário nacional também se verifica a

apropriação desigual da riqueza, os 10% mais ricos se apropriam aproximadamente da metade

da renda nacional.

Compreende-se, assim, que tanto a apropriação da natureza, quanto a distribuição da

sua depredação estão subordinados a estrutura de classes sociais. Portanto as manifestações da

questão ambiental devem ser atreladas a contradição capital x trabalho. Busca-se enfatizar tal

perspectiva situada no campo da teoria social crítica, haja vista que historicamente os

intelectuais marxistas deixaram ocultar esta discussão, como afirmam Chesnais e Serfati

(2003, p. 6;8)

Mas a subida do pensamento ecologista e das formações políticas que dele se

reclamam não teria sido possível sem o terrível vácuo teórico e político que se

formou do lado dos marxistas e que durou ao menos até o início dos anos noventa.

[...] A responsabilidade dessas carências e desses atrasos incumbe aos marxistas

tanto e, no que nos concerne, mais do que aos ecologistas.

Mészáros (2011, p. 51;52) defende que o “problema da ecologia” é real, porém se

mostra velado dos seus verdadeiros determinantes, através de um discurso do “interesse

ecológico” posto na contemporaneidade, de modo tal que a população como um todo é

responsabilizada em combater os desequilíbrios decorrentes.

Agora, ela [ecologia] é obrigada a ser grotescamente desfigurada e exagerada de forma unilateral para que as pessoas – impressionadas o bastante com o tom

cataclísmico dos sermões ecológicos – possam ver, com sucesso, desviadas dos

cadentes problemas sociais e políticos. Africanos, asiáticos e latino-americanos

(sobretudo estes últimos) não devem se multiplicar como lhe aprouver [...] dado que

o desequilíbrio demográfico poderia resultar em “tensões ecológicas intoleráveis”.

Em termos claros, poderia até pôr em perigo a relação social de forças

predominante. Da mesma forma, as pessoas deveriam esquecer tudo sobre as cifras

astronômicas despendidas em armamentos e aceitar cortes consideráveis em seu

padrão de vida, de modo a viabilizar os custos da recuperação do meio ambiente:

isto é, em palavras simples, os custos necessários à manutenção do atual sistema de

expansão da produção de supérfluos.

Constata-se a preocupação do pensador húngaro em explicitar os discursos imputados

como universais, neutros e supraclassistas; os quais fazem o indivíduo responsabilizar-se

pelas condições atuais do ambiente. Assim, o capital manobra os prejuízos da produção

destrutiva para a sociedade civil, conseguindo ainda reafirmar as benesses da propriedade

privada.

A anarquia do modo de produção capitalista não se manifesta somente nas crises,

que são os momentos de paroxismo desse processo. Ela se manifesta

permanentemente no desperdício das forças produtivas, das quais o capital tenta

descarregar a responsabilidade e o custo sobre a sociedade. A exploração do homem

e da natureza até o esgotamento não reflete uma contradição do capitalismo, mas o

antagonismo profundo entre esse e as necessidades da humanidade. A "crise

ecológica" é a manifestação da destruição das forças produtivas, entre as quais os

recursos naturais, para as necessidades da acumulação e num contexto hoje agravado

pela dominação do capital financeiro. Chesnais e Serfati (2003, p. 33)

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Neste jogo de culpabilização pelo destrutividade ambiental, o discurso da desordem

urbana é potencializado como causador dos maiores problemas do capitalismo

contemporâneo, a implosão das cidades. Tal argumentação atribui às famílias pobres a

produção dos referidos espaços de desordem urbana.

Silva (2010) problematizando acerca do processo da administração da questão

ambiental verifica que há uma recorrência a um discurso de sustentabilidade que evidencia os

limites com que o capital passa a ter que enfrentar, assim como

A pobreza é concebida quer como causalidade, quer como agravante às já degradadas

“condições ambientais”, tidas estas como exterioridade, como sinônimo do ambiente físico em si mesmo, embora este tenha sofrido os efeitos da ação humana. Perde-se, assim, o sentido de totalidade da “questão ambiental” – como dimensão natural e sócio-histórica – posto que esta sequer poderia ser a aventada sem a estreita imbricação com conjunto das relações sociais que lhe deram origem. (SILVA, 2010, p. 145)

Corroborando com a autora, evidencia-se uma centralidade à dimensão ecológica da

questão ambiental, ou seja, a defesa da natureza aparece apartada do enfrentamento da

questão social ou hierarquicamente superior a esta. Assim, pode-se defender que o discurso

ambiental por sustentabilidade hegemônico vem acirrando a insustentabilidade social.

Tal impasse pode ser visualizado no contexto urbano com as chamadas

institucionalmente de “áreas de risco”, que, neste trabalho, corresponderá à ocupação de

risco3. Caracterizada no tecido territorial como espaço ambientalmente vulnerável utilizado,

principalmente, para fins de moradia. Dentre as contradições pertencentes à cidade, sob a

dinâmica contraditória concentradora do capital, a ocupação de assentamentos precários

torna-se uma alternativa de manutenção e de sobrevivência da população pobre nas cidades.

À delimitação administrativa das unidades de conservação ambiental soma-se a

difusão da percepção – legitimada pelo discurso técnico-científico – de que a favela

constitui um risco para a coletividade, seja pela possibilidade de ocorrência de

desastres naturais, seja pelas características próprias da ocupação – como a falta de

saneamento e a elevada densidade populacional –, enquanto fatores de degradação

do meio ambiente urbano. (COMPANS, 2007, p.84)

Apesar de tal fenômeno se associar à carência de moradia popular, da qual se

manifesta também na negação do direito à cidade, a favelização é tomada como a síntese da

desordem urbana, descontextualizando a totalidade da cidade, na qual produz e reproduz

estruturas de desigualdade e segregação socioespacial.

Deve-se reconhecer ainda que o discurso de desordem urbana foi construído

socialmente, e carrega uma marca classista na sua constituição e tem o Estado como

instrumentalizador de interesses hegemônicos, conforme analisa Polli (2008).

As disputas por apropriação do território envolvem sujeitos sociais que reclamam

seu direito a moradia, instituições estatais que propugnam sua importância por

3 No confronto com a concepção institucional acerca de “área de risco”, Rodrigues (1998) compreende a questão

do “risco” para além da dimensão ambiental que lhe é posta, utilizando para tanto a ideia de ocupações de risco.

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atributos “ambientais” e grupos de interesse com estratégias negociais que defendem

seu uso em nome do “desenvolvimento” ou do direito à propriedade. Cabe lembrar

que os grupos de interesse atuam em diversas escalas e diversos modos, podendo

trabalhar em redes e ligados ao grande capital financeirizado.

O processo de valorização do espaço urbano se faz não pelo valor inerente a terra

urbana, mas quando esta se agrega ao trabalho materializado no espaço, ou seja, como a terra

urbana não é uma mercadoria produzida, o valor a ela atribuído consiste no trabalho nela

realizado.

O espaço se constitui ao passo em que as relações sociais se processam. Esta

constituição se manifesta como um refazer constante, já que o processo histórico produz as

transformações no espaço. Conforme Carlos (2001), o espaço, portanto, se manifesta

enquanto condição, meio e produto da reprodução da sociedade caucionada pelas disputas no

contexto da luta de classes.

No contexto urbano, conforme aponta Fernandes (2005), os territórios são palcos das

contradições inerentes ao sistema capitalista, dos quais também se expressam a desigualdade

no que se refere ao acesso e usufruto do espaço urbano, o que gera disputas na sua ocupação e

uso.

Diante das disputas e correlações de forças, Compans (2007) identifica que a

estratégia de remoção de ocupações irregulares reaparece como política pública justificada

agora pelo conflito moradia e meio ambiente. Ressalta a autora que no período de

redemocratização do Brasil a política de remoções foi fortemente combatida pelo movimento

de reforma urbana, respaldada pelo direito à cidade, conquistou-se políticas de regularização e

urbanização de favelas. Atualmente, verifica-se a retomada de práticas de remoção embasada

agora pela política ambiental.

A chamada “reestruturação ecourbana” por Acselrad (1999) aplica um novo parâmetro

para a gestão e controle urbano, embasado pela ecologia científica, a qual institui uma

perspectiva de neutralidade na técnica de modo tal que a legislação seja aplicada

universalmente. No entanto, assim como o estatuto do direito, a aplicabilidade de tais

normativos legais estão submetidos às disputas socioespaciais e aos interesses hegemônicos.

Conforme acrescenta Compans (2007, p.88)

A representação de uma “natureza natural”, pura, diferentemente de determinada outra, ordinária ou modificada pela ação do homem, ao mesmo tempo em que

permite a delimitação administrativa de parcelas do território consideradas como de

relevante interesse ambiental, define as demais que serão, por sua irrelevância,

deixadas ao sabor do mercado. Nesta nova ordem urbana regida pelo ecologismo, a

avaliação dos riscos decorrentes de usos inadequados que possam comprometer o

equilíbrio dos ecossistemas ou alterar características físicas torna-se elemento

preponderante nas disputas sócio-espaciais.

Os conflitos decorrentes do pressuposto da preservação ambiental, tomando por base o

“mito da natureza intocada” no contexto de ocupações de risco, revelam-se como um embate

entre os direitos sociais e os difusos, no qual, “subjacente a esta representação social da favela

como elemento de degradação ambiental, está o pressuposto classista de que pobre desmata e

rico preserva” (COMPANS, 2007, p. 98).

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Diante do exposto, deve-se compreender que tal expressão da questão social se revela

como uma das formas contemporâneas de luta de classes, que, portanto, exige

reconhecimento e organização popular pelos movimentos sociais e segmentos classistas, a fim

de imprimir uma pauta coletiva emancipatória na luta revolucionária socialista.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio buscou reafirmar a vigência da teoria social crítica para analisar as

expressões contemporâneas da questão social, considerando que o complexo intelectual que

parte do movimento do real e da iminência dos processos para compreender o fazer histórico

do ser social não pode ser avaliada como estagnada ou cristalizada. As mudanças no que se

referem aos estágios de desenvolvimento capitalista são capazes de produzir novas e mais

complexas manifestações da questão social.

Iamamoto (2011, p.164) endossa este viés apontando ainda que está em curso uma

renovação da “velha questão social”, “sob outras roupagens e novas condições sócio-

históricas na sociedade contemporânea, aprofundando suas contradições e assumindo novas

expressões na atualidade”, em contraposição direta à ideia de “nova questão social”. Percebe-

se, portanto, que a gênese e (re)produção da questão social são fenômenos medularmente

intrínsecos ao modo de produção capitalista e a contradição capital x trabalho.

Deste modo, o resgate da ontologia do ser social e dos fundamentos do trabalho

possibilitou o entendimento acerca da vinculação vital entre o ser humano e a natureza para o

desenvolvimento das relações sociais. Providenciou ainda reconhecer as transformações que

perpassam a sociedade, as quais instauraram o sistema de capital, que conforme Mézsáros

(2011) possui um estatuto incontrolável (não é racionalmente controlável), destrutivo,

totalizante e sem limites para sua expansão, capaz de formar relações cada vez mais alienadas.

Com base em tais constatações, a perspectiva transformadora da realidade encontrada

em Marx posiciona o homem/mulher como sujeito: condição essencial contra o fetichismo

seriam relações transparentes dos homens entre si e entre a natureza, constituição de

homens/mulheres livremente socializados, sob controle planejado. Os produtores associados

regem racionalmente seu intercâmbio com a natureza e a submetem a seu controle social. A

propriedade privada da força de trabalho e da natureza numa formação social superior se

apresentará como absurda. Emerge, assim, uma práxis ecológica revolucionária.

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