As Prostitutas e o Sistema Único de Saúde

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O texto discute a questão dos direitos humanos, em especial no campo da saúde e prostituição no Brasil

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As Prostitutas e o Sistema Único de Saúde

Há mais de uma década o Brasil vem sendo assolado por sucessivas ondas de eufemismos

utilizados para identificar velhos comportamentos, práticas ou segmentos sociais, especialmente

aqueles que supostamente causam certo mal estar no seio da sociedade, como é o caso de práticas

sexuais consideradas periféricas ou cidadãos que a elas se dedicam. À título de exemplo temos

prostitutas que passaram a se conhecidas como profissionais do sexo ou homossexuais como

homens que fazem sexo com outros homens (HSH).

Sob o manto de um suposto respeito e esforço para inclusão de segmentos sociais

marginalizados, a partir da linguagem “politicamente correta” colocou-se em marcha um lento e

perigoso processo de destituição identitária que paulatinamente torna os traços caracterizadores

de categoria inteiras de pessoas invisíveis ou esvaziados de sentido. Ainda que de forma inocente

ou isenta de intencionalidade previamente arquitetada toma-se a espécie pelo o gênero

mascarando as diferenças, tornando-as mais palatáveis ou menos agressivas ao conjunto da

sociedade.

Se refletirmos acerca da expressão profissionais do sexo somos obrigamos a reconhecer

bem mais do que uma categoria de homens e mulheres que se dedicam ao sexo comercial, em seu

sentido estrito, como forma de se auferir renda. São passíveis de inclusão nessa “nova” categoria

social desde os agenciadores do sexo comercial, como cafetinas, gerentes de boates e hotéis de

prostituição até sexólogos e psicólogos ou psicanalistas que têm no sexo matéria prima para a

interpretação e elaboração psíquica, ferramenta essencial para o processo psicoterapêutico.

Todavia, não foi isso o ocorrido nesse processo de higienização lingüística pela qual fomos, aos

poucos, aderindo.

Via de regra, mesmo que reconheçamos médicos, enfermeiros e psicólogos como

profissionais da área da saúde, por exemplo, dificilmente extraímos suas identidades

diferenciadoras quando nos referimos às suas práticas profissionais. Em outros termos, médicos

permanecem sendo médicos, ainda que sejam tidos também como profissionais da área da saúde.

Percebe-se, então, indícios de outros propósitos motivam a opção pela utilização de uma

linguagem “politicamente correta” em substituição a termos secularmente conhecidos, porém

nem sempre é possível apontar motivos técnicos capazes de nos convencer acerca da sustentação

racional de tal operação.

Não obstante a ampla aceitação que a utilização do termo profissional do sexo apresenta

entre as prostitutas é inegável o seu efeito de freio às conquistas políticas que a organização desta

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categoria profissional vem empreendendo, na medida em que reforça, sobretudo, a tendência de

invisibilidade historicamente verificada nos segmentos sociais considerados transgressores da

moral vigente.

É curioso, e ao mesmo tempo emblemático, a rapidez com que este eufemismo transmuta-

se, condensando-se, passando a ser conhecido, especialmente entre técnicos e gestores de

programas de saúde como “PS”, processo que faz desaparecer o sujeito de direito que o

titularizaria, redefinindo-o como uma mera categoria de população “mais vulnerável”, apta a

receber um tratamento padronizado de acordo com o que supostamente se atribui como demanda

típica deste segmento.

O que pode sugerir, a princípio, uma crítica não passa de uma constatação, já que não é,

exatamente, a denominação de um segmento social que define, por si só, a forma pela qual os

seus membros irão ser atendidos nos serviços públicos. Todavia o recorte que se faz da realidade

e as representações sociais adjacentes a ela, se não define, ao menos, potencializa e, muitas das

vezes, se presta como instrumento de legitimação, para o tratamento dispensado ao cidadão

identificado como portador de signos que o localizam na sociedade.

O que significa, afinal, “PS”? Na perspectiva técnica dos serviços de saúde pode-se dizer

que se trata de mulheres (e, eventualmente, homens) que mantém práticas de sexo comercial, mas

que não possuem ou não podem ostentar identidade correspondente, especialmente, no momento

da elaboração ou implementação de projetos de prevenção direcionados à esta população. Em

função do viés pragmático das ações empreendidas no campo da prevenção pode-se argumentar

que na ponderação entre o alcance dessas ações e o potencial político de seus efeitos opta-se pelo

primeiro, especialmente quando executadas por entidades que não possuem compromisso

orgânico com a identidade profissional dessas mulheres. Todavia, na perspectiva política ou

ideológica, esta nova nomenclatura implica na destituição do sujeito de traços identitários

fundamentais para o êxito do projeto de organização deste segmento social, alienando-o de si

mesmo.

A problematização desta questão pode parecer, de início, um mero debate semântico

restrito à esfera política travado entre grupos de interesses distintos. Entretanto conseguimos

verificar com clareza os seus efeitos no cotidiano dessas mulheres, em especial no campo da

saúde, ferindo gravemente os princípios da universalidade, integralidade e equidade que

sustentam o Sistema Único de Saúde no país.

O desaparecimento do sujeito, dando ensejo o surgimento de uma categoria

homogeneizada, faz com que sejam elaborados protocolos de atendimento que privilegiam ou

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estimulam demandas que nem sempre se coadunam com as necessidades apresentadas pelo

indivíduo presente nos serviços.

Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Brasília (UNB) e publicada em 2003

pelo PN-DST e AIDS1 corroborou fenômenos já identificados pela Rede Brasileira de Prostitutas

e organizações não governamentais que militam a favor dos direitos das mulheres prostitutas.

Se aparentemente pôde ser saudado como um resultado relevante na seara da epidemia do

HIV e AIDS os dados que apontam para a alta incidência de testagem sorológica anti-HIV revela

bem mais do que simplesmente atenção dessas mulheres com a epidemia. Ao ser contrastado com

os dados relativos aos cuidados da saúde integral da mulher, percebe-se que temos mais testes

anti-HIV realizados do que exames rotineiros de prevenção de câncer do colo do útero. O curioso

é que esses últimos sempre se encontram disponíveis em toda a rede de assistência básica do

Brasil enquanto aqueles outros apenas recentemente passaram pelo processo de descentralização,

pois até então estavam, via de regra, concentrados em serviços especializados como CTA e SAE.

Sem nos determos em análises mais profundas estes dados nos dão importantes pistas

acerca do lugar ocupado pelas prostitutas nos serviços de saúde, seja no tocante à prevenção ou

assistência. Vê-se uma grande dificuldade na percepção desta profissional como mulher que

carece de atenção integral, pois a sua ocupação laboral indica para uma parcela considerável dos

profissionais da área da saúde que a atenção a lhe ser dedicada concentra-se em sua genitália,

como se este sujeito não portasse outras demandas de saúde que não aquelas relativas ao risco

para infecção de doenças sexualmente transmissíveis.

É interessante notar o fato de que mesmo a atenção à saúde se concentrando

prioritariamente nos órgãos genitais das prostitutas, o recorte realizado para os atendimentos

tende a ser guiados pela lógica do risco e não da saúde integral como preconiza o Sistema Único

de Saúde. Temos, mais uma vez a evidência de que a noção de grupo de risco, embora superada

teoricamente, mantém-se de forma vigorosa quando se trata do atendimento daqueles sujeitos

hodiernamente considerados “de risco acrescido para o HIV”.

Um outro achado da pesquisa desenvolvida pela UNB diz respeito à baixa percepção de

atitudes de preconceito vivenciadas por prostitutas nos serviços de saúde, sendo que a dificuldade

de acesso a esses serviços figura como o maior problema identificado por elas.

Este resultado requer algumas considerações e análises, uma vez que a simples e rápida

leitura desses dados pode produzir sentidos distintos do que a realidade sugere.

1 Pittaluga, Liliana e Serafim, Denise (orgs). Avaliação da efetividade das ações de prevenção dirigidas às profissionais do sexo, em três regiões brasileiras. Ministério da Saúde, PN-DST e AIDS – Série Pesquisa e Avaliação nº 7, Brasília: MS, 2003.

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Faz-se necessário ressaltar que uma parcela importante das prostitutas ao procurarem as

unidades de saúde o faz sem se apresentarem como tais, já que são mulheres que demandam

cuidados como todas as demais cidadãs brasileiras. Talvez essa omissão acerca de sua ocupação

profissional consiga, de certa forma, explicar baixa freqüência de preconceito vivido nos casos

em que as consultas são efetivamente agendadas, já que não são identificadas, a priori, como

prostitutas. Todavia não chega ser irrelevante o questionamento sobre as razões que motivam tal

omissão, ainda que saibamos, de antemão, que tal informação encontra-se circunscrita ao campo

da privacidade e intimidade desta mulher, não constituindo, portanto, um segredo que deva ser

preservado, mas um dado sobre sua vida privada cujo respeito ao resguardo deve ser garantido.

Devido ao estigma e às experiências de discriminação e preconceito constantemente

relatadas pelas prostitutas podemos construir a hipótese de que a omissão sobre sua profissão

ancore-se no temor da revelação de uma prática social desqualificada, ainda que secularmente

tolerada, tornando-a alvo de ações discriminatórias nos serviços de saúde. Partindo desta

pressuposição tangenciamos outra hipótese que nos informa sobre a ampla aceitação da

terminologia “profissional do sexo” por uma parcela considerável de prostitutas, exatamente pelo

fato deste eufemismo esvaziar de sentido pejorativo uma profissão marcada pela estigmatização.

Em outras palavras, em um mundo preconceituoso antes ser invisível, ou quase isso, do que ser

alvo preferencial de violências, ainda que simbólicas.

Todavia, mesmo escudadas por diversos e novos significantes, as prostitutas permanecem

alvejadas por ações violentas, ainda que sob o manto das boas intenções, sejam essas endereçadas

às mulheres, sejam em razão da saúde pública.

Não são raros os relatos de experiências de testagem compulsória envolvendo mulheres

prostitutas em seus locais de trabalho sendo apresentado como argumento principal o diagnóstico

precoce e suas incontestes vantagens. Se por um lado podemos reconhecer todos os benefícios do

teste anti-HIV para toda e qualquer pessoa com vida sexual ativa, não devemos esquecer que

acima de tudo o exame é um direito do cidadão decorrendo daí o direito de ser bem informado e

esclarecido sobre as repercussões desse diagnóstico em sua vida de modo a poder tomar, de

forma voluntária e consciente, a decisão de se submeter a ele, ou não.

Parte-se do pressuposto de que o saber sobre a saúde da população, sobretudo no que

tange segmentos populacionais marginalizados, constitui um patrimônio do Poder Público, frente

ao qual não cabe contestação. Tal posição aliena o cidadão de seu lugar de sujeito, autônomo e

responsável pela sua vida e revela, sobremaneira, a nossa incapacidade de trabalharmos

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tecnicamente em consonância com projetos de emancipação social, livre dos grilhões do

autoritarismo que marca a nossa história enquanto nação desde tempos imemoriais.

Ainda nesse lastro podemos adivinhar as razões pelas quais a dificuldade de acesso aos

serviços públicos de saúde é alçada ao primeiro lugar de queixas, superando os eventuais riscos

de discriminação e preconceito durante os atendimentos nas UBS.

A organização dos serviços de saúde obedece a lógica de atendimento direcionado ao que

se convencionou denominar de população geral que, ao fim e ao cabo, reflete um padrão de

normalidade que nos informa o que deve ser, por exemplo, uma família na sociedade brasileira. A

título de ilustração podemos citar o agendamento para as consultas ofertadas pelos serviços que,

não raramente, é realizado uma única vez ao dia, geralmente, no período da manhã.

Como é sabido, no caso de mulheres prostitutas e das travestis, muitas vezes o trabalho se

estende por toda a madrugada, tornando inacessível a marcação de consultas durante a parte do

dia destinado ao seu repouso e descanso. A conseqüência desse fato, como não poderia deixar de

ser, é a exclusão de uma parcela da população da prestação de serviços essenciais, como é o caso

da saúde, pois uma vez os horários sendo incompatíveis ao funcionamento das UBS não há

possibilidade de atendimento a tais usuários.

Ainda na seara do acesso temos a questão da regionalização dos serviços de saúde em

grande parte do território brasileiro. Mesmo reconhecendo ser esta uma estratégia de organização

tendo em vista otimização do atendimento ao cidadão, a sua radicalização provoca distorções

também capazes de excluir usuários dos serviços.

Como paradigma desta questão podemos citar o esquema de vacinação contra Hepatite B,

para o qual a regionalização constitui um importante empecilho ao acesso ao insumo. De modo a

receber as três doses da vacina preconizadas as mulheres precisam se identificar como prostitutas

nos postos de saúde mais próximos de suas residências, exigência que faz com que muitas delas

optem por não serem imunizadas, pois a possibilidade de terem a sua identidade revelada no seio

de sua comunidade de origem representa um grave risco para suas relações sociais cotidianas.

Nota-se, portanto, a necessidade premente de se repensar a forma pela qual populações

consideradas mais vulneráveis são descritas, representadas e acolhidas pelo Sistema Único de

Saúde, tendo em vista a preservação dos princípios basilares que o sustentam, quais sejam,

universalidade, integralidade e equidade, sob pena se termos implantado um modelo de

assistência exemplar e ideal, mas que a sua operacionalização requer a exclusão de cidadãos e

cidadãs, tornados invisíveis e, como tais, incapazes de gerar demandas, mola mestra das

transformações no campo da políticas públicas de saúde.