As Origens Da Ordem Política Fukuyama 2012 Rocco

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FRANCIS FUKUYAMA AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA Dos Tempos Pré-Históricos à Revolução Francesa Tradução RICARDO NORONHA

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C A P Í T U L O S 5

F R A N C I S F U K U Y A M A

A S O R I G E N S D A O R D E M P O L Í T I C A

D o s Te m p o s P r é - H i s t ó r i c o s à R e v o l u ç ã o F r a n c e s a

Tr a d u ç ã oR I C A R D O N O R O N H A

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Prefácio

Parte I: Antes do Estado1. A necessidade da política2. O estado de natureza3. A tirania dos primos4. As sociedades tribais: propriedade, justiça e guerra5. A chegada do Leviatã

Parte II: A construção do Estado6. O tribalismo chinês7. A guerra e a ascensão do Estado chinês8. O grande sistema Han9. O declínio político e o regresso do governo patrimonial10. O desvio indiano11. Varnas e jatis12. Fraquezas das estruturas políticas indianas13. A escravatura e a saída dos muçulmanos do tribalismo14. Os mamelucos salvam o islão15. O funcionamento e o declínio do Estado otomano16. O cristianismo enfraquece a família

Í N D I C E

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Parte III: O primado do Direito17. As origens do primado do Direito18. A Igreja torna-se um Estado19. O Estado torna-se uma Igreja20. O despotismo oriental21. Bandidos estacionários

Parte IV: A responsabilização governamental22. A emergência da responsabilização política23. Comportamentos rentistas24. O patrimonialismo do outro lado do Atlântico25. A leste do Elba26. Rumo a um absolutismo mais perfeito27. Taxação e representação28. Porquê a responsabilização? Porquê o absolutismo?

Parte V: Rumo a uma teoria do desenvolvimento político29. Desenvolvimento político e declínio político30. Desenvolvimento político, então e agora

Agradecimentos

Índice Remissivo

369394415436455

479499525551569590620

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P a r t e I

A N T E S D O E S T A D O

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C a p í t u l o

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A terceira vaga de democratização e as ansiedades contemporâneas relativas ao futuro das democracias liberais contemporâneas; como tanto a esquerda quanto

a direita se entretêm fantasiando sobre a abolição da ideia de governo; como na contemporaneidade os países em desenvolvimento representam a concretização dessas fantasias; como tomamos essas instituições como garantidas, não tendo,

no entretanto, noção das suas origens

Durante o período de 40 anos desde 1970 a 2010, houve um

Em 1973, apenas 45 dos 151 países existentes no mundo eram con-siderados «livres» pela Freedom House, uma organização não-go-vernamental que estabelece parâmetros quantitativos das liberdades civis e políticas em países do mundo inteiro1. Nesse ano, Espanha, Portugal e a Grécia eram ditaduras; a União Soviética e os seus sa-télites da Europa de Leste pareciam sociedades fortes e coesas; a China tinha sido tomada pela Revolução Cultural de Mao Zedong;

-tes vitalícios» corruptos; e a maior parte da América Latina havia caído sob o jugo de ditaduras militares. A geração seguinte assistiu a transformações políticas de grande fôlego, com democracias e economias de mercado a surgirem praticamente em todo o mundo,

cerca de 120 países em todo o mundo – mais de 60% dos Estados

1 Ver o «Country Status and Ratings Overviews» na secção «Freedom in the World» do sítio da Freedom House na internet (freedomhouse.org). Larry Diamond calcula o número em cerca de 40, que aumentou depois para 117 quando a terceira vaga atingiu o seu auge. Ver The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free Societies Throughout the World (Nova Iorque: Times Books, 2008), pp. 41, 50.

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eletivas2. Esta transformação foi a terceira vaga de democratização de Samuel Huntington; a democracia liberal enquanto forma esta-belecida de governo tornou-se uma parte da paisagem política no início do século XXI3.

Estas mudanças dos sistemas políticos foram acompanhadas por uma gigantesca transformação social. A transição para a de-mocracia resultou do facto de milhões de indivíduos anteriormen-te passivos se terem organizado e começado a participar na vida política das suas sociedades. Esta mobilização social foi motiva-

educação, que tornou as pessoas mais conscientes de si próprias

facilitaram a rápida expansão de ideias e conhecimento; viagens e comunicações mais baratas, que permitiram que as pessoas votas-sem com os pés no caso de não gostarem do seu governo; e mais prosperidade, que induziu as pessoas a exigir uma maior prote-ção dos seus direitos.

1990 e uma «recessão democrática» emergiu na primeira década do século XXI. Aproximadamente um em cada cinco países que ha-via integrado a terceira vaga reverteu para o autoritarismo ou so-

4. A Freedom House assinalou o facto de 2009 ter sido o quarto ano

aconteceu pela primeira vez desde que foram estabelecidos os seus parâmetros de liberdade em 19735.

2 Larry Diamond, «The Democratic Recession: Before and After the Financial Crisis», em Nancy Birdsall e Francis Fukuyama, eds., New Ideias in Development After the Financial Crisis (Baltimore: John Hopkins University Press, 2011).

3 Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (Oklahoma City: University of Oklahoma Press, 1991).

4 Diamond, «The Democratic Recession», pp. 240-59.5 Freedom House, (Washington,

D.C.: Freedom House, 2010).

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Ansiedades políticas

No início da segunda década do século XXI, o mal-estar no mun-do democrático assumiu diversas formas. A primeira foi o evidente retrocesso das conquistas democráticas ocorrido em países como a Rússia, a Venezuela e o Irão, onde líderes eleitos se empenharam em desmantelar instituições democráticas através da manipulação eleitoral, do fecho ou compra de estações de televisão independen-tes e órgãos de imprensa ou da repressão das atividades da opo-

maiorias através de eleições; trata-se de uma complexa combinação de instituições que limitam e regularizam o exercício do poder atra-vés do Direito e de um sistema de pesos e contrapesos. Em muitos

--

cutivo e pela erosão do primado do Direito. Noutros casos, países que pareciam estar a fazer a transição a partir

de governos autoritários permaneceram encalhados no que o analista Thomas Carother denominou «zonas cinzentas», nas quais não eram

-cos6

Cazaquistão e o Uzbequistão, na Ásia Central, encontraram-se nesta

tinha havido a assunção generalizada de que praticamente todos os países estavam a efetuar transições para a democracia e que as falhas na prática democrática seriam ultrapassadas com o passar do tempo. Carothers assinalou que o «paradigma transicional» foi uma assun-

em implementar instituições democráticas que diluiriam o seu poder.Uma terceira categoria de preocupações está relacionada, não com

o falhanço dos sistemas políticos em tornarem-se ou permanecerem

6 Thomas Carothers, «The end of the Transition Paradigm», Journal of Democracy 13, n.º 1 (2002): 5-21.

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democráticos, mas antes na sua incapacidade de proporcionar os ser-viços básicos que as pessoas exigem aos seus governos. O mero facto de um país possuir instituições democráticas diz-nos muito pouco acerca da sua boa ou má governação. Esta incapacidade de concre-

-dade destes sistemas políticos.

Um exemplo disso foi a Ucrânia. A Ucrânia surpreendeu o mun-do em 2004 quando dezenas de milhares de pessoas convergiram na praça principal de Kiev para protestar contra a manipulação das

-cidos como a Revolução Laranja, motivaram a realização de novas

Uma vez no poder, contudo, a Coligação Laranja demonstrou-se extremamente débil, e o próprio Yushchenko desapontou as espe-ranças dos que o haviam eleito. O governo foi atravessado por dis-putas internas, revelou-se incapaz de lidar com os sérios problemas de corrupção do país e provocou o colapso da economia duran-

de Viktor Yanukovitch no início de 2010, precisamente o homem acusado de viciar as eleições de 2004 que haviam desencadeado a Revolução Laranja.

Muitos outros tipos de fracassos governativos assolam os paí-ses democráticos. É um facto bem conhecido que a América Latina possui um nível de desigualdade económica superior ao de qualquer outra região no mundo, no qual as hierarquias de classe correspon-dem frequentemente a diferenças étnicas e raciais. A emergência de líderes populistas como Hugo Chávez na Venezuela e Evo Mora-les na Bolívia é menos uma causa da instabilidade do que um sin-toma de desigualdade e do sentimento de exclusão social vivido por muitos dos que são nominalmente cidadãos. A pobreza persis-tente gera frequentemente outro tipo de disfunções sociais, como os gangsparte das pessoas comuns. Na Colômbia, no México e em El Sal-vador, onde a criminalidade organizada ameaça o próprio Estado

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e as suas instituições básicas, a legitimidade da democracia foi se-

com estes problemas.A Índia, para pegar noutro exemplo, tem sido uma democra-

cia assinalavelmente bem-sucedida desde a sua independência, em 1947 – um feito notável quando se tem em conta a sua pobreza, diversidades étnica e religiosa, bem como a sua enorme dimen-são. (A razão pela qual uma perspetiva histórica mais longa do desenvolvimento político indiano deveria diminuir a nossa sur-presa será o tema dos Capítulos 10 a 12). Contudo, a democracia indiana, um pouco como o fabrico de enchidos, parece menos

Quase um terço dos legisladores indianos, por exemplo, enfrenta uma forma ou outra de acusação criminal, alguns dos quais por crimes sérios, como assassinato ou violação. Os políticos india-nos praticam abertamente uma forma de clientelismo político na qual se trocam votos por favores políticos. O fracionamento da democracia indiana torna muito difícil ao governo tomar decisões relativas a assuntos como o investimento em grandes projetos de infraestruturas. E muitas cidades indianas, onde brilham centros de alta tecnologia de excelência, estão situadas perto de focos de pobreza de estilo africano.

O aparente caos e a corrupção da política democrática na Índia têm sido frequentemente comparados com a tomada de decisões

-gidos nem pelo primado do Direito nem pela prestação de contas democrática; se pretendem construir uma enorme barragem, demo-lir centenas de bairros para construir autoestradas ou aeroportos, elaborar um pacote urgente de apoios económicos, podem fazê-lo muito mais depressa do que a Índia democrática.

O capitalismo global moderno demonstrou ser produtivo e capaz de criar riqueza para lá dos sonhos de qualquer indivíduo que tenha

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anos 1970, a dimensão da economia mundial praticamente quadru-plicou7, e a Ásia, com base na sua abertura ao comércio e ao in-vestimento, viu grande parte da sua população juntar-se ao mundo desenvolvido. Mas o capitalismo global não conseguiu encontrar uma forma de evitar altos níveis de volatilidade, particularmente

-

início da década de 1990, a Ásia em 1997-1998, a Rússia e o Bra-sil em 1998-1999 e a Argentina em 2001. Esta instabilidade culmi-nou, porventura com alguma justiça poética, na grande crise que atingiu os Estados Unidos da América, a casa do capitalismo glo-bal, em 2008-2009. Os mercados liberalizados são necessários para promover crescimento a longo prazo, mas não são autorregulados, nomeadamente no que diz respeito aos bancos e a outras institui-

tanto nacional como internacional8.O efeito cumulativo desta crise económica não foi necessaria-

-balização, enquanto motores do crescimento económico. A China, a Índia, o Brasil e muitos dos outros países designados mercados emergentes continuam a ter bons comportamentos económicos baseados na sua participação no capitalismo global. Mas é claro que o trabalho político de encontrar os mecanismos de regulação corretos para conter a volatilidade do capitalismo está ainda por concretizar.

7 Tomando como referência o valor do dólar em 2008, a economia mundial passou de 15,93 biliões de dólares americanos para 61,1 biliões de dólares americanos entre 1970 e 2008. Fontes: Indicadores de Desenvolvimento e de Desenvolvimento Financeiro Glo-bal do Banco Mundial; Bureau of Labor Statistics dos EUA.

8 Francis Fukuyama e Seth Colby, «What Were They Thinking? The Role of Econo-mists in the Financial Debacle», American Interests 5, n.º 1 (2009): 18-25.

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Declínio político

O último ponto sugere uma área de preocupação com o futuro da democracia que é tão urgente como habitualmente desprezada. As instituições políticas desenvolvem-se ao longo do tempo, geral-

-manas procuram organizar-se de maneira a dominarem o seu meio ambiente. Mas o declínio político ocorre quando os sistemas políti-

Existe qualquer coisa como uma lei da conservação das instituições. Os seres humanos são por natureza animais que obedecem a regras;

volta e investem-nas frequentemente de um sentido e valor trans-cendental. Quando o seu meio ambiente se altera e surgem novos

-ções existentes e as necessidades presentes. Essas instituições são suportadas por legiões de interesses entrincheirados que se opõem a qualquer mudança fundamental.

As instituições políticas norte-americanas poderão estar a enca-

adaptação. O sistema norte-americano foi construído com base na -

tava um perigo iminente para as vidas e liberdades dos cidadãos. Por esta razão, a Constituição dos Estados Unidos foi concebida com um vasto conjunto de pesos e contrapesos através dos quais as di-ferentes partes do governo podiam impedir outras partes de exer-cer um poder tirânico. Este sistema serviu bem o país, mas apenas porque em certos momentos críticos da história, quando se tornou necessário um governo forte, foi possível construir um consenso para lhe dar forma através do exercício da liderança política.

Não existe infelizmente qualquer garantia institucional de que o sistema, tal como foi concebido, conseguirá limitar sempre o poder tirânico permitindo, simultaneamente, o exercício da autoridade do Estado quando a necessidade surgir. Isso depende em primeiro lugar

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da existência de um consenso social sobre os objetivos políticos, algo que tem faltado na vida política norte-americana nos anos recentes.

parte dos quais relacionados com a correção a longo prazo da sua

gastaram dinheiro consigo próprios sem o pagar através da cobrança

ao crédito e de gastos excessivos a nível particular e governamental.

que outros países, como a China, ganham dimensão relativa9.

através de uma ação demorada, ainda que dolorosa. Mas o sistema político norte-americano, que deveria facilitar a formação de consen-sos, está pelo contrário a contribuir para o problema. O Congresso

-

por uma margem de 10%, ou menos, isto é, que podem ser ganhos por qualquer um dos partidos, caiu continuamente de quase 200 no

XIX para apenas pouco mais de 50 no início do sécu-lo XXI. Ambos os partidos políticos se tornaram mais homogéneos do ponto de vista ideológico, tendo-se deteriorado o debate delibe-rativo entre eles10. Este tipo de divisões tem antecedentes históricos, mas estes foram superados no passado através de uma forte lideran-

O futuro da política norte-americana reside, não só na política,

9 Fareed Zakaria, The Post-American World (Nova Iorque: Norton, 2008); para uma crí-tica, ver Aaron L. Friedberg, «Same Old Songs: What the Declinists (and Triumphalists) Miss», American Interests 5, n.º 2 (2009).

10 William A. Galston, Can a Polarized American Party System Be «Healthy?» (Washington, D.C.: Brookings Institution Issues in Governance Studies n.º 34, abril de 2010).

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uma tendência mais ampla para a crescente homogeneização dos

ideologicamente pelos lugares que escolhem para viver11. A tendên-cia para a associação exclusiva a pessoas que pensam de maneira

-ção social, nos quais a proliferação de canais acaba por enfraquecer a experiência partilhada da cidadania12.

A capacidade do sistema político norte-americano em lidar com

e direita no Congresso, mas também pelo crescimento e poder de grupos de interesses instalados. Sindicatos, agronegócios, compa-nhias farmacêuticas, bancos e um vasto conjunto de outros lobbies

que pode ferir os seus livros de contabilidade. É perfeitamente le-gítimo e na verdade expectável que os cidadãos defendam os seus interesses numa democracia. Mas, a um certo ponto, essa defesa dá o salto para a exigência de privilégios, ou uma situação de impasse

-

em confronto com os próprios princípios de legitimação do país.A queixa dos norte-americanos de que os Estados Unidos são

cada vez mais dominados pelas elites e por poderosos grupos de in-

de riqueza e rendimentos no período situado entre a década de 1970

11 Ver os capítulos escritos por Thomas E. Mann e Gary Jacobson em Pietro S. Ni-vola e David W. Brady, eds., Red and Blue Nation?, Vol. 1 (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2006); ver também James A. Thomson, A House divided: Polarization and Its Effect on RAND (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2010). Existe algum debate sobre o grau de polarização do público norte-americano; relativamente a várias questões culturais, como o aborto e as armas, existe um vasto grupo centrista sem convicções fortes, com minorias muito mais comprometidas em ambos os extremos. Ver Morris P. Fiorina et al., eds., Culture War? The Myth of a Polarized America, 3.ª ed. (Boston, Longman, 2010).

12 -são da comunicação por banda larga foi previsto há uns anos por Ithiel de Sola Pool, Te-chnologies of Freedom (Cambridge, MA: Belknap Press, 1983).

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e os primeiros anos do século XXI13. A desigualdade, por si própria, nunca foi um grande problema na cultura política norte-america-na, que enfatiza sobretudo a igualdade de oportunidades em vez da igualdade de rendimentos. Mas o sistema permanece legítimo apenas enquanto as pessoas acreditarem que, trabalhando no duro e dando

de evoluir e que os ricos chegaram lá jogando conforme as regras. O facto é, porém, que as taxas de mobilidade social intergeracio-

nal nos Estados Unidos são muito mais baixas do que a maioria dos

-dos14. Com o passar do tempo, as elites revelam-se capazes de de-fender a sua posição jogando com o sistema político, transferindo o seu dinheiro para offshores -

-do a instituições de elite. Muitas desses factos tornaram-se óbvios

percebeu que existia uma relação muito pequena entre o sistema de -

ção real para a economia. O setor havia utilizado a sua considerável

as décadas anteriores, continuando a evitar a regulação na sequên-cia da crise. O economista Simon Johnson sugeriu que o poder da

do que existe em países emergentes como a Rússia ou a Indonésia15.Não existe qualquer mecanismo automático através do qual os

sistemas políticos se adaptem a circunstâncias em transformação.

13 Ver, por exemplo, Isabel V. Sawhill e Ron Haskins, Getting Ahead or Loosing Ground: Economic Mobility in America (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2008).

14 Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento, «A Family Af-fair: Intergenerational Social Mobility across OECD Countries» in Going for Growth (Paris: OCDE, 2010); Emily Beller e Michel Hout, «Intergeneration Social Mobility: The United States in Comparative Perspective», Future of Children 16, n.º 2 (2006): 19-36; Chul-In Lee e Gary Solon, «Trends in Intergenerational Income Mobility», Review of Economics and Sta-tistics 91, n.º 4 (2009): 766-72.

15 Simon Johnson, «The Quiet Coup», Atlantic, maio de 2009.

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A história das incapacidades de adaptação, e portanto o fenómeno do declínio político, é contada nas últimas páginas deste volume. Não houve nenhuma razão incontornável para que o sultanato ma-meluco do Egito não tivesse adotado armas de fogo mais cedo, de

-ram os otomanos que acabaram por derrotá-los; tal como não era inevitável que os últimos imperadores da dinastia Ming, na China, se revelassem incapazes de taxar adequadamente os seus cidadãos de maneira a suportar um exército capaz de defender o país dos manchus. Em ambos os casos, o problema residiu na enorme inér-cia institucional existente por trás do statu quo.

A partir do momento em que uma sociedade se revela incapaz

reforma institucional séria, como foi o caso da monarquia france-sa após o fracasso do Grand Parti -correr a um conjunto de arranjos de curto prazo que acabam por

arranjos incluíram a cedência a vários setores privilegiados e grupos de interesses que representavam invariavelmente as pessoas com riqueza e dinheiro na sociedade francesa. A incapacidade de equili-

-

na Revolução Francesa.Os Estados Unidos não se encontram sequer remotamente mer-

-tigo Regime. O perigo, contudo, é que a situação continue a piorar ao longo do tempo, na ausência de alguma força poderosa capaz de tirar o sistema do seu atual equilíbrio institucional disfuncional.

Fantasias de um mundo sem Estado

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corrupção na Índia, aos Estados fracassados no mundo em de-senvolvimento, aos grupos de interesse entrincheirados na política norte-americana contemporânea. Diz fundamentalmente respeito

-vernos que sejam simultaneamente poderosos, respeitem as regras e prestem contas. Este pode parecer um argumento óbvio, com o qual qualquer aluno da quarta classe concordaria, e, contudo, olhando bem, trata-se de uma verdade que muitas pessoas inteli-gentes não conseguem entender.

Comecemos pela questão do recuo da terceira vaga e da re-cessão democrática que teve lugar em todo o mundo no início do século XXI. A razão para o nosso desapontamento com a inca-pacidade da democracia em espalhar-se não está atualmente, na minha opinião, ao nível das ideias. As ideias são extremamente importantes para a ordem política; é a perceção da legitimidade do governo que mantém as populações unidas e as leva a aceitar a sua autoridade. A queda do Muro de Berlim assinalou o colapso de um dos grandes rivais da democracia, o comunismo, e o rápi-do alastramento da democracia liberal como a forma de governo mais amplamente aceite.

Isto permanece verdade no presente, no qual a democracia, nas palavras de Amartya Sem, continua a ser a condição política «por defeito»: «Embora a democracia não seja universalmente pratica-da, nem universalmente aceite, no clima geral da opinião pública mundial a governação democrática conseguiu o estatuto de ser ge-ralmente considerada a melhor16.» Muito poucas pessoas no mun-do admitem abertamente admirar o petronacionalismo de Vladimir Putin ou o «socialismo para o século XXI» de Hugo Chávez, ou a República Islâmica de Mahmoud Ahmadinejad. Nenhuma institui-ção internacional importante aceita outra coisa que não a democra-cia como a base de uma governação justa. O rápido crescimento da China levanta algum interesse e inveja, mas o seu modelo exato

16 Amartya K. Sen, «Democracy as a Universal Value», Journal of Democracy 10 (1999): 3-17.

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de capitalismo autoritário não é facilmente seguido, muito menos emulado, por outros países em desenvolvimento. Tal é o prestígio das democracias liberais modernas, que os atuais aspirantes a auto-ritários se veem forçados a encenar eleições e a manipular os meios de comunicação social nos bastidores para se legitimarem. Não só o totalitarismo desapareceu praticamente do mundo, como os au-

são democratas. O fracasso da democracia está, por isso, menos no conceito do

que na sua execução: a maioria das pessoas pelo mundo fora prefe-riria fortemente viver numa sociedade na qual o governo prestasse contas e pelos cidadãos de uma forma célere e económica. Mas poucos go-vernos são efetivamente capazes de fazer as duas coisas, porque as instituições são fracas, corruptas, incapazes ou, nalguns casos, com-pletamente ausentes. O entusiasmo dos contestatários e defensores

regime» do autoritarismo para um governo democrático, mas este não obterá sucesso sem um longo, custoso, laborioso e difícil pro-cesso de construção de instituições.

das instituições políticas que tem afetado muitas pessoas ao longo dos anos, pessoas que sonham com um mundo no qual iremos de alguma forma transcender a política. Esta fantasia em particular

a sua versão. O pai do comunismo, Karl Marx, elaborou a famo-sa previsão da «extinção do Estado» após a tomada do poder pela revolução proletária e da abolição da propriedade privada. Revolu-cionários de esquerda desde os anarquistas do século XIX em diante

continua até ao presente, com a sugestão feita por autores antiglo-balização como Michael Hardt e Antonio Negri, de que a injustiça

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económica poderia ser abolida enfraquecendo a soberania dos Es-tados e substituindo-a por uma «multitude» em rede17.

-mente o contrário do que Marx previu, construindo estruturas de Estado enormes e tirânicas, para obrigar as pessoas a agir coletiva-mente quando elas não o faziam espontaneamente. Isto levou, por sua vez, toda uma geração de ativistas democráticos na Europa de Leste a perspetivar a sua própria forma de ausência de Estado, na qual uma sociedade civil mobilizada ocuparia o lugar dos partidos políticos tradicionais e dos governos centralizados18. Estes ativistas

sociedades não podiam ser governadas sem instituições e quando

-ropa de Leste tornou-se democrática, mas não está necessariamente feliz com as suas políticas ou com os seus políticos19.

de que a economia de mercado conseguirá de alguma forma tornar o governo desnecessário e irrelevante. Durante o boom das empresas dot-com nos anos 1990, vários entusiastas sustentaram, na linha do antigo administrador executivo do CityBank, Walter Wriston, que o mundo estava a experimentar um «crepúsculo da soberania»20, no qual os poderes políticos tradicionalmente exercidos pelos Estados estavam a ser questionados por novas tecnologias de informação, que tornavam impossível policiar as fronteiras e difícil aplicar as

17 Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude, War and Democracy in the Age of Empire (Nova Iorque: Penguin, 2004). Uma parte do amadurecimento ocorrido entre uma im-

observação do marxista italiano António Gramsci de que a concretização de um progra-ma progressista exigia uma «longa marcha pelas instituições», um slogan adotado pelos Verdes alemães quando pretenderam participar no processo político democrático alemão.

18 Ver Bronislaw Geremek, «Civil Societt, Then and Now» in Larry Diamond e Marc F. Plattner, eds., The Global Resurgence of Democracy, 2.ª Edição (Baltimore: John Hopkins University Press, 1996).

19 Ver Charles Gati, «Faded Romance», American Interest 4, n.º 2 (2008): 35-43.20 Walter B. Wriston, The Twilight of Sovereignty (Nova Iorque: Scribner, 1992).

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regras. A ascensão da internet levou ativistas como John Perry Bar-low, da Eletronic Frontier Foundation, a proclamar uma «Declaração da Independência do Ciberespaço», na qual era dito aos governos dos países industrializados: «Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não têm qualquer soberania onde nós nos juntamos21.» Uma economia capitalista global substituiria a soberania dos governos democráticos pela soberania do mercado: se um legislador votasse favoravelmente uma regulação excessiva ou limitasse o comércio, seria punido pelos mercados bolsistas e forçado a adotar políticas consideradas racionais pelo mercado de capitais global22. As fantasias relativas a um mundo sem Estado sempre encontraram audiências favoráveis nos Estados Unidos, pois a hostilidade ao Estado é um dos pilares fundamentais da cultura política norte-americana. Liber-tários de várias tendências têm sugerido, não só o recuo de um Esta-do-providência que cresceu demasiado, como também a abolição de instituições mais básicas como a Reserva Federal (FED) e a Agên-cia de Proteção do Consumidor (Food and Drug Administration)23.

É perfeitamente legítimo argumentar que os governos moder-nos cresceram excessivamente e que limitam por isso o crescimento económico e a liberdade individual. As pessoas têm razão quando se queixam da burocracia incompetente, dos políticos corruptos e de uma política desprovida de princípios. Mas no mundo desen-volvido tendemos a considerar a existência do governo como algo tão garantido, que por vezes nos esquecemos de quão importante ele é, de quão difícil foi criá-lo e do que seria o mundo sem certas instituições políticas básicas.

Não se trata apenas de considerarmos que a democracia está ga-rantida; também tomamos como garantido o facto de termos um

21 Este texto pode ser lido, entre outros sítios, em http://w2.eff.org/Censorship/Internet_censorship_bills/barlow_0296.declaration

22 Ver o capítulo «The Golden Sraitjacket» em Thomas L. Friedman, The Lexus and the Olive Tree (Nova Iorque: Farrar, Straus e Giroux, 1999), pp. 99-108.

23 Ver, por exemplo, Ron Paul, End the Fed (Nova Iorque: Grand Central Publishing, 2009); Charles Murray, What it Means to Be a Libertarian: A Personal Interpretation (Nova Iorque: Broadway Books, 1997).

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Estado capaz de desempenhar certas funções básicas. O Condado de Fairfax, na Virgínia, um subúrbio de Washington, D.C., onde vivi durante muitos anos, é um dos mais ricos dos Estados Unidos. Todos os invernos surgem buracos nas estradas do condado, devi-

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aqueles buracos são magicamente cobertos de maneira a que nin-guém tenha de se preocupar com a possibilidade de partir o eixo do carro num deles. Se não forem tapados, os residentes do Condado

-no local; ninguém (a não ser alguns especialistas em administração pública) para um momento para pensar no sistema social comple-xo e invisível que o torna possível ou porque é que se demora mais tempo a tapar os buracos do Distrito de Columbia, logo ao lado, ou porque é que os buracos nunca são tapados em vários países em desenvolvimento.

De facto, as sociedades sem governo, ou com governos míni-mos, perspetivadas pelos sonhadores da esquerda e da direita não são fantasias; elas existem efetivamente nos países em desenvolvi-mento do mundo atual. Muitas partes da África Subsariana são um paraíso para os libertários. A região no seu conjunto é uma utopia de impostos baixos, com governos frequentemente incapazes de cobrar mais do que cerca de 10% do PIB em impostos, compara-dos com a percentagem superior a 30% nos Estados Unidos e a 50% em certas partes da Europa. Em vez de incentivar o empreen-

públicos básicos, como a saúde, a educação e a cobertura de bura-

em que assenta a economia moderna, como as estradas, os sistemas judiciais ou a polícia, estão ausentes. Na Somália, que não tem um

comuns podem possuir não apenas armas de assalto como também lança-granadas, mísseis antiaéreos e tanques. As pessoas são livres de proteger as suas famílias e, de facto, veem-se forçadas a fazê-lo.

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o seu retorno rapidamente, porque o governo é incapaz de garantir os direitos de propriedade intelectual e evitar que os produtos se-jam copiados ilegalmente.

Tornou-se bastante evidente até que ponto as pessoas consi-deram as instituições políticas como algo de garantido, nos países desenvolvidos, quando os Estados Unidos planearam, ou foram

2003. O governo dos Estados Unidos pareceu acreditar que a de-mocracia e a economia de mercado eram as condições naturais a que o país regressaria, automaticamente, a partir do momento em que a ditadura de Saddam Hussein fosse derrubada, e aparentemen-

entrou em colapso numa orgia de pilhagem e guerra civil. Os ob-jetivos dos Estados Unidos foram igualmente travados no Afega-nistão, onde dez anos de esforço e o investimento de centenas de milhões de dólares se revelaram incapazes de construir um Estado afegão legítimo e estável24.

As instituições políticas são necessárias e não devem ser tidas como garantidas. Uma economia de mercado e altos níveis de ri-queza não aparecem magicamente quando se «tira o governo do caminho», antes assentam numa fundação institucional oculta de direitos de propriedade, primado do Direito e ordem política bási-ca. Um mercado livre, uma sociedade civil vigorosa, a espontânea «sabedoria das multidões», tudo isso são componentes importan-tes de uma democracia que funciona, mas nenhuma delas pode, em última instância, substituir as funções de um governo forte e hie-rarquizado. Tem havido um amplo reconhecimento entre econo-mistas, nos anos recentes, de que «as instituições são importantes»: os países pobres são pobres, não porque lhes falte recursos, mas

24 Ver Francis Fukuyama, ed., State-Building: Governance and World Order in the 21st Cen-tury (Ithaca: Cornell University Press, 2004).

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isso de compreender de onde vieram essas instituições.

Alcançar a Dinamarca

O problema da criação de instituições políticas modernas tem sido descrito como o problema de «alcançar a Dinamarca», segundo o título de um ensaio escrito por dois cientistas sociais do Banco Mundial, Lant Pritchett e Michael Woolcock25. Para as pessoas nos países desenvolvidos, a «Dinamarca» é um lugar mítico conhecido por ter boas instituições políticas e económicas: é estável, demo-

-lítica extremamente baixos. Qualquer um gostaria de compreender como se pode transformar a Somália, o Haiti, a Nigéria, o Iraque ou o Afeganistão na «Dinamarca» e a comunidade internacional de ajuda ao desenvolvimento tem uma longa lista do que se presume

conseguir com o seu auxílio. Este objetivo tem vários tipos de problemas. Não parece muito

plausível que países extremamente pobres e caóticos possam esperar materializar instituições complexas num prazo curto, tendo em conta o tempo que essas instituições demoraram a evoluir. Para além disso,

são estabelecidas, não sendo claro que a ordem política democráti-ca dinamarquesa possa criar raízes em contextos culturais muito di-ferentes. A maioria das pessoas que vivem em países desenvolvidos ricos e estáveis não faz ideia de como é que a própria Dinamarca se tornou a Dinamarca – o que também é verdade no que diz respeito a muitos dinamarqueses. A luta para criar instituições políticas

25 «Getting to Denmark» foi na verdade o título original do trabalho de Lant Pritchet e Michael Woolcock «Solutions When the Solution Is the Problem: Arraying the Dissar-ray in Development» (Washington, D.C.: Center for Global Development Working Pa-per 10, 2002).