AS ORIGENS DA BASE CITOLÓGICA DA HEREDITARIEDADE

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Segunda aula (T2) Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool . v. 26: p. 583-747, 1986. A DESCOBERTA DA CÉLULA O nascimento da Citologia pode ser fixado com considerável precisão. No dia 15 de abril de 1663, Robert Hooke (1635-1703) colocou um pedaço de cortiça sob seu microscópio e mostrou sua es- trutura a seus colegas da Royal Society de Londres. A Royal Society havia sido fundada no ano anterior com o intuito de melhorar o conheci- mento sobre a natureza. Ela reunia uns poucos homens cultos de Londres que se encontravam regularmente, em geral semanalmente, para discutir assuntos científicos e como o conheci- mento poderia ser usado para melhorar as atividades práticas. A inspiração para a formação da Royal Society veio de uma sugestão anterior de Francis Bacon. Hooke, um matemático de excepcional habili- dade, era um membro muito ativo da Royal So- ciety. Era costume entre os membros não apenas discutir mas também realizar experimentos e fazer demonstrações. Havia um grande interesse no novo microscópio que Hooke havia construído e ele deixou que os membros da sociedade olhas- sem partes de um musgo em seu microscópio no dia 8 de abril de 1663. No dia 15 daquele mês o Sr. Hooke apresentou dois esquemas microscópicos, uma representação dos poros da cortiça, cortados transversal e perpendicular- mente ... ”. Esse era o começo de dois séculos de observações e experimentações que estabeleceram a Teoria Celular. As várias observações de Hooke foram reunidas e publicadas em 1665 com o título de Micrographia , sob os auspícios da Royal Society. Essa foi a pri- meira visão geral de uma parte da natureza até então desconhecida. Hooke descreveu e ilustrou muitos objetos em sua publicação: a cabeça de um alfinete, muitos insetos pequenos e suas partes, penas, “enguias” [nematódeos] do vinagre, partes de muitas plantas, cabelo, bolores, papel, madeira petrificada, escamas de peixe, seda, areia, flocos de neve, urina, e, é claro, aquele pedaço de cortiça. (Fig. 1) Hooke imaginou que a cortiça consistia de inú- meros tubos paralelos com divisões transversais: Estes poros, ou células, não eram muito fundos, mas consistiam de um grande número de peque- nas caixas, separadas ao longo do comprimento 14 A S ORIGENS DA BASE C ITOLÓGICA DA H EREDITARIEDADE Objetivos 1. Descrever como e quando foi descoberta a célula. 2. Explicar a idéia central e a importância da teoria celular. 3. Discutir as dificuldades para se identificar os gametas como células. 4. Descrever os passos que levaram à compreensão da im- portância do núcleo celular. 5. Identificar as dificuldades para a compreensão do proces- so de divisão celular. 6. Descrever o raciocínio dedutivo que levou à conclusão de que a mitose não seria o único tipo de divisão celular. 7. Descrever as meioses masculina e feminina em Ascaris . 8. Explicar o papel da meiose e da fertilização no ciclo de vida dos organismos. 9. Listar os principais argumentos que levaram alguns cito- logistas no final do século XIX a defender a idéia que os cromossomos seriam a base física da heran ça.

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Segunda aula (T2)

Texto adaptado de:MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing -Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986.

A DESCOBERTA DA CÉLULA

O nascimento da Citologia pode ser fixado comconsiderável precisão. No dia 15 de abril de 1663,Robert Hooke (1635-1703) colocou um pedaçode cortiça sob seu microscópio e mostrou sua es-trutura a seus colegas da Royal Society de Londres.

A Royal Society havia sido fundada no anoanterior com o intuito de melhorar o conheci-mento sobre a natureza. Ela reunia uns poucoshomens cultos de Londres que se encontravamregularmente, em geral semanalmente, paradiscutir assuntos científicos e como o conheci-mento poderia ser usado para melhorar asatividades práticas. A inspiração para a formaçãoda Royal Society veio de uma sugestão anteriorde Francis Bacon.

Hooke, um matemático de excepcional habili-dade, era um membro muito ativo da Royal So-ciety. Era costume entre os membros não apenasdiscutir mas também realizar experimentos e fazerdemonstrações. Havia um grande interesse nonovo microscópio que Hooke havia construído eele deixou que os membros da sociedade olhas-

sem partes de um musgo em seu microscópio nodia 8 de abril de 1663. No dia 15 daquele mês o“ Sr. Hooke apresentou dois esquemasmicroscópicos, uma representação dos poros dacortiça, cortados transversal e perpendicular-mente ...”. Esse era o começo de dois séculos deobservações e experimentações que estabelecerama Teoria Celular.

As várias observações de Hooke foram reunidase publicadas em 1665 com o título de Micrographia,sob os auspícios da Royal Society. Essa foi a pri-meira visão geral de uma parte da natureza até entãodesconhecida. Hooke descreveu e ilustrou muitosobjetos em sua publicação: a cabeça de um alfinete,muitos insetos pequenos e suas partes, penas,“enguias” [nematódeos] do vinagre, partes de muitasplantas, cabelo, bolores, papel, madeira petrificada,escamas de peixe, seda, areia, flocos de neve, urina,e, é claro, aquele pedaço de cortiça. (Fig. 1)

Hooke imaginou que a cortiça consistia de inú-meros tubos paralelos com divisões transversais:“Estes poros, ou células, não eram muito fundos,mas consistiam de um grande número de peque-nas caixas, separadas ao longo do comprimento

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AS ORIGENS DA BASE CITOLÓGICADA HEREDITARIEDADE

Objetivos 1. Descrever como e quando foi descoberta a célula. 2. Explicar a idéia central e a importância da teoria celular. 3. Discutir as dificuldades para se identificar os gametas

como células. 4. Descrever os passos que levaram à compreensão da im-

portância do núcleo celular. 5. Identificar as dificuldades para a compreensão do proces-

so de divisão celular. 6. Descrever o raciocínio dedutivo que levou à conclusão de

que a mitose não seria o único tipo de divisão celular. 7. Descrever as meioses masculina e feminina em Ascaris. 8. Explicar o papel da meiose e da fertilização no ciclo de

vida dos organismos. 9. Listar os principais argumentos que levaram alguns cito-

logistas no final do século XIX a defender a idéia que oscromossomos seriam a base física da herança.

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dos tubos por uma tipo de diafragma.” Ele obser-vou estruturas semelhantes em muitos outrostipos de plantas. Muitos pensam que Hooke des-creveu aquelas caixas como vazias e parou poraí. Isso não é verdade, ele observou cortes deplantas vivas e verificou que as caixas microscó-picas eram preenchidas por um suco.

A presença de células na cortiça e em outrasplantas poderia ser uma característica geral oupoderia ser restrita a uns poucos tipos de organis-mo. A continuação das pesquisas iria mostrar queas plantas consistiam inteiramente ou quase intei-ramente de estruturas parecidas, semelhantes acaixas. Um outro membro da Royal Society,Nehemiah Grew (1641 - 1712), publicou umamonografia em 1682 que contém muitas pranchasbelíssimas mostrando a estrutura microscópicadas plantas. Com o tempo, a idéia de que os seresvivos são formados por células foi estendida paraos animais. Hooke havia feito uma observaçãointeressante que não foi importante na sua época– ela se tornou uma descoberta importante muitomais tarde, em função de pesquisas posteriores.

Mais de dois séculos foram necessários parase chegar à conclusão que o conhecimento dascélulas era essencial para a compreensão da here-ditariedade. Podemos ter certeza que, quandoRobert Hooke sentou-se à frente de seu micros-cópio, ele não estava interessado em descobriros mistérios da herança. Não havia maior razãopara acreditar que as células tivessem algo a vercom a hereditariedade do que, por exemplo, ascerdas que ele descreveu em detalhe sobre ocorpo de uma pulga.

O ESTABELECIMENTO DA TEORIA CELULAR

As células se tornaram verdadeiramente impor-tantes somente quando foi proposta a hipótese deque os corpos de todos os organismos eram consti-tuídos apenas de células ou de produtos de células.Essa hipótese foi formulada e testada no começodo século XIX e está associada principalmente atrês cientistas: R. J. H. Dutrochet, Matthias JacobSchleiden e Theodor Schwann.

Mas como alguém poderia provar que “oscorpos de todos os organismos são constituídosapenas de células ou de produtos de células?”

Ao tentar responder essa questão pode-seaprender algo muito importante sobre ciência. Aresposta é, obviamente, que não há nenhuma pos-sibilidade dessa afirmação ser comprovada. Comoalguém poderia estudar todos os organismos? Amaioria já se extinguiu há muito tempo e não serianem mesmo possível estudar um indivíduo decada uma das espécies viventes. Qual seria suaresposta se alguém lhe perguntasse se os corposdos dinossauros eram constituídos de células?Mas lembre-se, tudo o que se pode desejar emciência é que uma afirmação seja “verdadeiraacima de qualquer suspeita.”

Após as observações iniciais de Hooke, foiverificado que as células eram uma caracte-rística comum das plantas. Mais e mais plantasde uma quantidade crescente de espécies fo-ram estudadas e todas apresentavam estruturassemelhantes a células. Foi observado que essasestruturas microscópicas não tinham todas aforma de caixa como as células da cortiça.Descobriu-se que as células podiam ter diversasformas e tamanhos. Não podemos esquecer queesses microscopistas pioneiros não estavamobservando células como as entendemos hoje,eles observavam paredes celulares.

Schwann e as células nos animais

Com poucas exceções, o corpo dos animaisnão continha estrutura alguma que se parecessecom “células”, isto é, com as paredes celularesdas plantas. Assim, foi necessário muito trabalhoe imaginação arrojada até tornar óbvio que o con-ceito de célula podia ser aplicado com sucessoaos animais. Isso foi conseguido principalmentepor Theodor Schwann (1810-1882) em suamonografia de 1839, publicada quando ele tinha29 anos de idade. Algumas de suas ilustraçõesestão reproduzidas na figura 2.

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Figura 1. Desenhos de cortes de cortiça ao micros-cópio publicados por Hooke em 1665.

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Figura 2. Algumas das ilustrações apresentadas por Schwann em sua mono-grafia de 1839: A.) células de cebola; B.) de notocorda de um peixe; C.)de cartilagem de rã; D.) de cartilagem de girino; E.) de músculo de feto deporco; F.) de embrião de porco; G.) de gânglio de rã; H.) de um vasocapilar da cauda de girino; I.) de embrião de porco. Note que o núcleo e osnucléolos estão mostrados em quase todas as células.

Schwann enfatizou a gran-de diferença entre as célulasdas plantas e o que ele acredi-tava serem as células dosanimais, mas sugeriu que elasrepresentavam fundamental-mente a mesma coisa.

Por que chamar todas essasestruturas tão diversas decélulas?

Procure examinar fotomi-crografias de diversos tipos decélulas de plantas e especial-mente de animais, ou melhor,caso tenha oportunidade, ob-serve preparações citológicasdesses tipos no microscópio.Como é possível dizer quecérebro, músculos, rins, pul-mões, sangue, cartilagens,ossos, parede intestinal etc.são feitos de um mesmo tipode elemento? Já que essasestruturas são obviamente tãodiferentes, por que afirmarque elas são constituídas pelosmesmos tipos de elementos?Qual seria a vantagem em se afirmar que as“células” animais correspondiam àquelasestruturas com aspecto tão diferente presentesnas plantas?

Schwann nos fornece a resposta, “Se, noentanto, analisarmos o desenvolvimento dessestecidos, então parece que todas essas diversasformas de tecidos são constituídas apenas porcélulas e são análogas às células das plantas ...O objetivo do presente tratado é provar essa idéiapor meio da observação.”

Isto é, apesar da grande diversidade, todas asestruturas que Schwann propunha chamar decélulas tinham em comum a característica de sedesenvolverem a partir de estruturas muito maissimples que podiam ser melhor comparadas comas células das plantas. Mas, como se poderiadefinir “célula”?

Se um neurônio e um leucócito são células, elesdevem ter algo em comum para serem reunidosem uma mesma categoria. Schwann encontrouum critério: a presença de núcleo, que ele achava

mais importante do que a origem de células alta-mente diferenciadas a partir de células simples.

Apenas seis anos antes, em 1833, Robert Brown(1773 - 1858), o mesmo que descreveu o poste-riormente denominado “movimento Browniano”,havia descrito a presença de uma auréola circular,ou núcleo, em células de orquídeas e de muitosoutros tipos de plantas. Antes dele, outros observa-dores já haviam visto e desenhado essas estruturasem suas publicações, mas não atribuíram nenhumaimportância a elas. Brown verificou que muitos tiposde célula continham núcleo mas não especulou sobreseu significado.

Schwann então mudou as regras para definircélula. Ao invés de se basear na forma, que nasplantas correspondia à estrutura da parede, eleescolheu como base para a definição, a presençade um núcleo.

Embora Schwann fosse um observador cuida-doso, sua principal contribuição não foi o queele viu mas como ele interpretou as observações.Seus antecessores haviam enfatizado as “caixas”;

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A B C

D

H

EF

I

G

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Schwann deu ênfase ao que estava dentro das“caixas”. Para ele a célula animal era uma porçãode matéria viva envolta por uma membrana econtendo um núcleo, enquanto que as célulasvegetais eram ainda envoltas por uma parede.

O que essa nova visão de célula tem a ver comhereditariedade? Muito pouco, tem que se admitir.Seriam necessárias outras duas informações antesque as células pudessem ser consideradas impor-tantes para a hereditariedade: a descoberta de queos gametas são células e o reconhecimento de quecélulas só se originam de células pré-existentes.

O reconhecimento dos gametas como células

Schwann reconheceu os óvulos como células,uma vez que eles apresentavam a estrutura reque-rida por sua definição de célula – o núcleo. Anatureza do espermatozóide era menos clara. Seunome, que significa “animais do esperma”, indica-va essa incerteza. Em 1667, Antonie van Leeu-wenhoek havia descoberto e comunicado à RoyalSociety de Londres que o fluido seminal continhacriaturas microscópicas que ele imaginou queentrassem no óvulo causando sua fertilização.Essa hipótese foi muito contestada e alguns cien-tistas imaginaram que os espermatozóides fossemparasitas. Na décima segunda edição do livroSystema Naturae (1766 - 1768), Linnaeus tentouclassificar os “animais” encontrados no espermapor Leeuwenhoek, mas concluiu que a determi-nação de seu lugar correto no sistema de clas-sificação deveria ser deixado para quando elestivessem sido mais pesquisados.

Cerca de um século mais tarde, em 1784, Spal-lanzani realizou importantes experimentos com oobjetivo de determinar a função do sêmen nareprodução de rãs. Durante o acasalamento, osmachos abraçam as fêmeas e, como sabemos atual-mente, depositam esperma sobre os óvulos à medidaque estes saem pela abertura cloacal. De início,Spallanzani não sabia disso, foi ele quem descobriu.Um outro pesquisador com quem ele se corres-pondia havia tentado, sem muito sucesso, descobriro papel das rãs machos vestindo-as com calças. Spal-lanzani repetiu esse experimento e verificou que,quando o sêmen ficava retido nas calças, os ovosnão se desenvolviam. No entanto, se os ovos fossemcolocados em contato com o sêmen retirado dascalças, em um processo de fecundação artificial, elespassavam a se desenvolver. Em um outro experi-

mento, Spallanzani filtrou o sêmen e verificou que,com isso, ele perdia seu poder fecundante. Ele obser-vou o que hoje chamamos de espermatozóides, masnão os considerou essenciais para a reprodução.

Foi somente em 1854 que George Newport,usando rãs, forneceu boas evidências de que osespermatozóides entram no óvulo durante a fecun-dação (Nesse caso, como em muitos outros, é difícildar crédito ao cientista que descobriu um importantefenômeno biológico. Afinal, o descobridor do esper-matozóide, Leeuwenhoek, havia pensado que oespermatozóide era o agente da fertilização. Outrosantecessores de Newport eram da mesma opinião,mas foi Newport quem fez as primeiras observaçõesconvincentes. Em 1841, Kölliker estudou ahistologia dos testículos verificando que algumasdas células testiculares eram convertidas em esper-matozóides. Os espermatozóides tinham umaaparência tão estranha que não eram consideradoscélulas. No entanto, quando se pôde demonstrarque eles se originavam de células típicas, suaverdadeira natureza tornou-se evidente. Os esper-matozóides passaram então a ser considerados comocélulas altamente modificadas.

Vejamos o que se pode concluir dessa análise:1. Os gametas são a única ligação física entre as

gerações, pelo menos em muitos organismose possivelmente em todos.

2. Portanto, os gametas devem conter toda ainformação hereditária.

3. Uma vez que óvulos e espermatozóides sãocélulas, toda informação hereditária precisaestar contida nestas células sexuais. Portanto,a base física da herança são as células sexuais.

Isto não permite concluir que todas as célulascontenham informação hereditária. Poderíamosainda pensar que os gametas são célulasespecializadas onde os fatores responsáveis pelaherança, talvez as gêmulas, entram. Nós aindanecessitamos de uma segunda informação: “Qualé a origem das células?”

Omnis cellula e cellula

A divisão celular foi observada em 1835, mas,nessa época, não se concluiu que fosse um fenômenogeral. Schwann, por exemplo, acreditava que ascélulas podiam surgir espontaneamente por agluti-nação de substâncias amorfas. Essa hipótese assumiaque a origem das células é um evento episódico no

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ciclo de vida dos organismos. Se isso fosse verdade,a unidade da hereditariedade seria o organismo todoe não a célula.

A hipótese de Schwann sobre a origem dascélulas foi logo rejeitada, uma vez que a divisãocelular estava sendo observada com freqüênciaem uma variedade de organismos e em diferentesépocas do desenvolvimento. Mais e mais investi-gadores começavam a suspeitar que a divisãocelular era o único mecanismo para a produçãode novas células.

Essa foi uma hipótese muitíssimo difícil de seprovar acima de qualquer suspeita. Os micros-cópios e as técnicas para se estudar as células, nocomeço do século XIX, eram muito inadequadose foi preciso muita observação em diferentes tiposde organismos e de tecidos antes que RudolphVirchow pudesse, em 1855, cunhar sua famosafrase omnis cellula e cellula (“toda célula vemde célula”) e que ela fosse amplamente aceita.Em uma conferência proferida em 1858 ele apre-sentou a idéia de que uma célula só surge de outracélula pré-existente.

É claro que nem todos concordaram com aidéia de Virchow de que todas as células e todosos organismos originavam-se de células e de orga-nismos pré-existentes. Muitos pesquisadorescontinuavam a acreditar que células podiam seoriginar de novo e apresentavam o que pareciamser observações acuradas para provar isso. Algunsacreditavam até mesmo que organismos comple-tos podiam se originar de novo. Pasteur e a acei-tação geral de que geração espontânea não podeocorrer ainda estavam no futuro. Mesmo assim,as duas hipóteses apoiadas por Virchow foramtestadas em um número crescente de pesquisase, gradualmente, elas se estabeleceram como umaverdade acima de qualquer suspeita.

Não restando, portanto, dúvida alguma de quea hereditariedade está baseada na continuidadecelular, podemos trabalhar agora com a hipótesede que toda informação hereditária está contidanão apenas nas células germinativas mas também,muito provavelmente, nas células a partir dasquais elas se formam – e em todas elas até ozigoto. Igualmente possível é a hipótese de quetodas as células contenham a informação heredi-tária necessária para o desenvolvimento do indiví-duo e à sua transmissão, via células sexuais, paraa geração seguinte.

O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

E A CITOLOGIA

Durante a maior parte da história da humani-dade as pessoas se basearam quase que inteira-mente em seus órgãos dos sentidos para obterinformações sobre o ambiente. Cada um de nossosórgãos sensoriais detecta apenas uma pequenaporção da ampla gama de estímulos possíveis.Nossos olhos, por exemplo, só conseguem res-ponder à porção do espectro eletromagnéticoentre o violeta e o vermelho de modo que sóconseguimos ver os comprimentos de onda en-tre essas duas cores. Para detectar comprimentosde onda menores, como luz ultra-violeta, raios-X e raios cósmicos, ou comprimentos de ondamaiores, como luz infra-vermelha e ondas derádio, precisamos utilizar instrumentos especiais.

A olho nu não conseguimos visualizar emdetalhe nem mesmo objetos em movimentaçãorápida. As lâminas de um ventilador em movi-mento rápido são vistas como um círculo contínuoe uma bala que sai de um rifle é totalmente invisí-vel para nós. Também não conseguimos verobjetos muito pequenos. A aparente uniformi-dade de uma ilustração com meios-tons resultado fato de os pontos individuais estarem tão jun-tos que o olho humano não consegue distingui-los. Os faróis de um automóvel aparecem comoum único ponto de luz até uma certa distância; àmedida que o automóvel se aproxima, somoscapazes de resolver o ponto único de luz em dois.

O poder de resolução do olho humano, ou seja,sua capacidade de distinguir dois pontos muitopróximos, é da ordem de 100 micrômetros a umadistância normal de leitura; a maioria das pessoascom visão normal distingue dois objetosseparados por um espaço de um milímetro a umadistância de 10 metros. Uma afirmação mais geralé que o olho humano pode distinguir dois objetosseparados por um arco de 1 minuto. Esse valorfoi determinado por Robert Hooke que estavapreocupado em saber qual seria a menor distânciaentre duas estrelas para que elas fossem vistascomo dois objetos separados. Quando elasestavam a uma distância menor do que um arcode 1 minuto, a maioria das pessoas as via comoum único ponto de luz. Algumas pessoas podemver melhor do que isso, mas o poder máximo deresolução de nosso olho é de 26 segundos de arco.

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Quase todas as células são muito pequenaspara serem vistas a olho nu, de modo que a Cito-logia não foi possível, nem mesmo teoricamente,antes da invenção do microscópio – o que ocorreuprovavelmente na última década do século XVI.Um tempo relativamente longo se passou entreessa invenção e 1663, quando Hooke fez ademonstração daqueles pedaços de cortiça paraos membros da Royal Society. Na verdade, fo-ram poucos os trabalhos sérios e contínuos commicroscópios antes do século XIX. Durante amaior parte de sua história, os microscópios nãopassaram de brinquedos de adultos.

O pequeno tamanho das células não é o únicoproblema que dificulta seu estudo. A maioria dosanimais e de seus tecidos é opaca e, uma vez quea observação através do microscópio compostoé mais efetiva quando os objetos são iluminadoscom luz transmitida, o objeto a ser estudadoprecisa ser muito fino ou cortado em fatias bemfinas de modo que a luz possa atravessá-lo. Ima-gine tentar cortar fígado, por exemplo, em fatiascom cerca de 10 micrômetros de espessura, paraque fosse possível estudá-lo no microscópio.Além da quase impossibilidade de se fazer isso,as células hepáticas, constituídas principalmentede água, iriam secar rapidamente, tornando-seuma massa enrugada. Esse é um problema espe-cial com as células animais que não possuem umaparede de suporte como as células das plantas.

Métodos muito especiais tiveram que serdesenvolvidos pelos microscopistas do início doséculo XIX quando eles quiseram aprender sobrea natureza celular dos organismos e, mais tarde,sobre a estrutura interna das próprias células.Tornou-se uma prática comum tentar preservaros tecidos de tal maneira que a estrutura de suascélulas permanecesse intacta e que eles pudessemser cortados em fatias finíssimas.

O primeiro passo foi a fixação. Ela consistiaem tratar o material com álcool, com formaldeído,ou com soluções de ácido pícrico, de bicromatode potássio, de cloreto de mercúrio ou de tetró-xido de ósmio. Essas substâncias matam eendurecem as células, em geral, por coagular suasproteínas. Esperava-se, é claro, que isso aconte-cesse de tal forma que as partes das células conti-nuassem a guardar uma certa semelhança com asda célula viva.

O tecido fixado podia então ser embebido emparafina para ganhar sustentação e ser fatiado com

lâminas cortantes ou em um instrumentoconstruído para essa finalidade – o micrótomo.Mesmo essas fatias finíssimas podiam revelarmuito pouco; as células e seus conteúdos internoseram indistinguíveis. Mas aqueles microscopistasinventivos tentavam de tudo e logo descobriramque alguns corantes tingiam certas partes dascélulas mas não outras.

Em 1858, Gerlach descobriu que uma soluçãodiluída de carmim corava mais intensamente onúcleo do que o citoplasma das células. Essasubstância era obtida dos corpos secos da fêmeade um inseto (Coccus cacti), conhecido popular-mente como cochonilha-do-carmim, que vive emcactos na América Central e sudoeste dos EstadosUnidos. Em 1865, Böhmer descobriu que ahematoxilina, extraída do tronco de uma árvore(Haematoxylon campechianum) da América Cen-tral, também tinha maior afinidade pelo núcleodo que pelo citoplasma.

Mais tarde foi sintetizada uma grandevariedade de anilinas para a indústria téxtil e, entre1875 e 1880, muitas delas mostraram-se úteispara corar células. Uma dessas anilinas era aeosina, que mostrou ter uma grande afinidade porproteínas citoplasmáticas. Um procedimento decoloração citológica corriqueiro até hoje usahematoxilina e eosina (HE) e cora o núcleo emazul e o citoplasma em laranja.

Da mesma forma, houve melhoria dos micros-cópios disponíveis para pesquisas citológicas, princi-palmente no final do século XIX. Muitas delas fo-ram introduzidas por Ernst Abbe (1840-1905) e pelaindústria óptica Zeiss em Jena, na Alemanha. Abbefoi, durante a maior parte de sua vida, professor deFísica na Universidade em Jena e o principalprojetista de lentes da companhia Zeiss, da qual setornou dono. Em 1878, ele desenvolveu a objetivade imersão em óleo e, em 1886, a objetiva apocro-mática. Essas melhorias nas mãos de um microsco-pista habilidoso tornava possível a obtenção deampliações de até 2500 vezes. O microscópiofotônico estava chegando ao limite de seu poder deresolução teórico. Esse limite é imposto pela próprianatureza da luz; isto é, dois objetos só podem serresolvidos se a distância entre eles for, pelo menos,igual à metade do comprimento da onda utilizado.

Oportunidades adicionais para se estudar aestrutura fina das células estavam ainda para vircom a invenção do microscópio de contraste-de-fase e do microscópio eletrônico, no século XX.

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Veremos a seguir como os microscopistas do últimoterço do século XIX foram capazes de usar atecnologia disponível na época e estabelecer, comouma hipótese altamente provável, que a base físicada hereditariedade está no núcleo da célula, ou maisespecificamente nos cromossomos.

Não devemos ficar imaginando que essesinvestigadores não faziam outra coisa senãoexaminar células vivas e fixadas com o melhorequipamento óptico disponível, descrevendo domodo mais preciso o que viam. Um problemaconstante era se uma dada estrutura observadaem uma preparação citológica refletia ou não algopresente na célula viva, ou se era um simples arte-fato resultante do drástico tratamento a que ascélulas eram submetidas para poderem serobservadas no microscópio.

Uma preparação citológica realmente refletea estrutura de uma célula viva? A resposta é “Nãomuito”; mas se o tratamento produz sempre omesmo resultado é possível imaginar como eramas preparações quando vivas. Apesar disso,nenhuma descoberta importante em Citologia noséculo XIX foi aceita de imediato. As observaçõeseram repetidas e as conclusões originais confir-madas por uns e contestadas com veemência poroutros. Uma interpretação errada podia fazer comque muitos citologistas perdessem meses natentativa de repetir as observações. Aconteciamdebates intermináveis sobre a estrutura fina doprotoplasma uma vez que, como era admitido,estava-se olhando para a base fundamental davida. Muitos citologistas acreditavam que oprotoplasma fosse granular, ou um retículofibroso, ou alveolar (composto de gotas) oualguma combinação disso.

A Citologia como um caminho para o conheci-mento, especialmente no século XIX, nos mostraque a ciência não progride de maneira ordenadamas por meio de testes e retestes constantes dasobservações, dos experimentos e das hipóteses.Longe de ser uma linha direta em direção àverdade, esse caminho assemelha-se mais àqueleretículo que alguns viam como a estrutura básicado protoplasma. (Devemos ressaltar que o termoprotoplasma é raramente utilizado nos dias dehoje. Uma vez que ele significa nada mais do que“substância viva”, Hardin [1956] sugeriu quepoderíamos passar sem ele.)

O QUE EXISTE NAS CÉLULAS?

Durante a última metade do século XIX, ahipótese de que os animais e plantas sãocompostos somente de células e produtoscelulares estava estabelecida como uma verdadeacima de qualquer suspeita nas mentes damaioria dos microscopistas competentes. Nóspodemos falar, então, da teoria celular, usando otermo “teoria” como um corpo completo dedados, hipóteses e conceitos relativos a um impor-tante fenômeno natural. Até hoje a teoria celularé o mais importante conceito relacionado com aestrutura de animais e plantas e no século XX elefoi sendo gradualmente aceito também como omais importante conceito relativo ao funciona-mento dos organismos.

Essa enorme importância da teoria celulardecorre do fato de ela estabelecer que as célulassão as unidades básicas de estrutura e função,que elas são as menores unidades capazes de tervida independente, isto é, são capazes de usarsubstâncias obtidas do meio para manter eproduzir o estado vivo. A célula é o denominadorcomum da vida.

Existia uma outra razão importante para seestudar as células: a análise dos níveis mais sim-ples de organização contribuem para o enten-dimento dos níveis mais complexos. As interaçõesdas substâncias químicas são melhor entendidasquando se conhece sua estrutura molecular. Osmovimentos do corpo humano podem serestudados em muitos níveis. Pode-se observar edescrever os complexos movimentos de umbailarino ou de um arremessador de beisebol. Acompreensão aumenta quando se obtéminformações sobre os diversos músculos e seuslocais de ligação, que tornam os movimentospossíveis. Outros tipos de entendimento surgemquando se estuda os músculos no nível molecu-lar. E, finalmente, mais informações ainda sãoobtidas quando se aprende sobre a atividade damiosina, da actina e de outras moléculas que parti-cipam da movimentação dos músculos.

O conhecimento obtido em cada nível deorganização contribui para um entendimento dofenômeno como um todo, enquanto cada nívelmantém seu próprio valor. Entender a arte de umbailarino ou de um esportista meramente com o

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conhecimento sobre actina e miosina seria tãoimpossível quanto predizer as propriedades da águaa partir do conhecimento sobre os elementoshidrogênio e oxigênio. No entanto, pode-se conhecermelhor os níveis mais complexos se conhecermosos mais simples. Assim, os biólogos do século XXjá pensavam que poderiam saber mais sobre a vidase conhecessem melhor as células.

Quando examinavam as células, aqueles citolo-gistas pioneiros encontravam todo tipo de esferas,de grânulos e de fibras. Como seria possíveldeterminar qual dessas estruturas teria um papelna hereditariedade? Ou melhor, como seriapossível determinar a função de qualquer estru-tura presente nas células?

Essa é uma questão difícil e os citologistasdaquela época não conseguiam respondê-la. Elesnão podiam fazer outra coisa senão investigar ascélulas de modo aleatório. Este foi um estágionecessário no desenvolvimento da Citologia – aidentificação de estruturas nas células e, quandopossível, descobrir alguma coisa sobre seucomportamento. Aparentemente se pesquisavamcélulas de todo animal e planta disponível àprocura de exemplos de estruturas celulares e,um a um, todos os reagentes disponíveis nasestantes dos químicos foram colocados sobre ascélulas e suas conseqüências observadas – emgeral matavam as células. Esse período da Cito-logia foi de “procura e destruição.”

O núcleo efêmero

Como mencionado anteriormente, as dificul-dades em se analisar células vivas fizeram daspreparações fixadas e coradas o material ideal deestudo. Nesse tipo de preparação, a estrutura maisproeminente é o núcleo descrito por Brown.Muitos corantes, especialmente os corantesbásicos como o carmim e a hematoxilina, coravamo núcleo profundamente; isto, juntamente com aaparente presença universal do núcleo, sugeriaque ele tivesse um papel importante.

Mas qual seria a origem do núcleo da célula?Levou mais de meio século de observações eexperimentações por parte de numerosos pesqui-sadores para que essa questão fosse respondida.Em 1835, Valentin sugeriu que o núcleo seriaformado pela precipitação de substâncias no in-terior da célula. Três anos mais tarde, Schleidene, em seguida, Schwann também sugeriram queo núcleo podia se originar de novo. Até por volta

de 1870, alguns pesquisadores famosos acre-ditavam que pelo menos alguns núcleos podiamter uma origem não-nuclear.

Nessa mesma época, outros pesquisadoresigualmente competentes estavam clamando quetodos os núcleos surgiam de núcleos pré-existentes. Diversos processos foram sugeridos– em geral alguma forma de partição em dois oufragmentação, um mecanismo que mais tarde foidenominado amitose.

Não havia nenhuma razão, é claro, porque osnúcleos teriam de surgir por apenas um tipo demecanismo. Considerando a enorme variedade defenômenos naturais, não seria surpresa sehouvesse diversas maneiras de surgimento denúcleos. No entanto, os cientistas procuram regu-laridades na natureza e seria mais satisfatóriointelectualmente se houvesse um mecanismoconstante para a origem do núcleo.

A DESCOBERTA DA DIVISÃO CELULAR

Em 1873, A. Schneider publicou o que agorapode ser tomado como a primeira descriçãorazoável das complexas alterações nucleares, hojechamadas de mitose, que ocorrem durante adivisão da célula. Neste ano, Otto Bütschi e Her-mann Fol fizeram descrições semelhantes.

A descrição de Schneider foi a mais completa;seu objetivo era descrever a morfologia deMesostoma sp., um platelminto. Quase todo seutrabalho é dedicado à estrutura desse verme mas,sendo um observador cuidadoso, ele descreveutudo o que viu. A fertilização em Mesostoma sp.é interna e o início do desenvolvimento ocorreem um útero. As ilustrações do que ele viu estãomostradas na figura 3.

Os primeiros desenhos mostram o ovorodeado por células foliculares. Na região bemcentral está o pequeno núcleo com seu pequenonucléolo. As estruturas espirais são espermato-zóides. O ovo é a área clara central da ilustraçãoe os glóbulos menores ao seu redor são as célulasfoliculares, que não foram representadas nosdesenhos seguintes. Pouco antes da célula se divi-dir o limite do núcleo se torna indistinto. Schnei-der, no entanto, verificou que com a adição deum pouco de ácido acético ele se tornava visível,apesar de dobrado e enrugado. Mais tarde onucléolo desaparecia e tudo o que restava do nú-cleo era uma área clara na região central da célula.

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No entanto, o tratamento com ácido acético mos-trava uma massa de filamentos delicados e curvos.O segundo desenho mostra esses filamentos, oscromossomos (um termo que só seria propostoem 1888, por Waldeyer) alinhados em uma placaequatorial. A quantidade de filamentos parecia

aumentar e quando a célula se dividia eles iampara as células-filhas.

O que alguém faria com essas observações?A resposta está longe de ser clara. Se não erapossível ver os filamentos nas células vivas e, seeles apareciam repentinamente quando as células

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Figura 3. Ilustrações de Schneider (1873) das alterações nucleares durante a clivagem do ovode Mesostoma. À esquerda, desenho de um ovo (zona clara central, onde se vê o núcleo comum nucléolo) rodeado por células foliculares. As outras figuras mostram os filamentos, hojechamados de cromossomos, e seus movimentos durante a divisão da célula.

Figura 4. Ilustrações deFlemming de mitoses emcélulas fixadas e coradas deembrião de salamandra. A.)Duas células em intérfase:não existem cromossomosvisíveis. B.) Célula em pró-fase: os nucléolos já desapa-receram, mas a membrananuclear continua intacta; ocitoplasma não está mostra-do. C.) Célula em início demetáfase: a membrana nu-clear desapareceu e os cen-trossomos se separaram. D.)Uma preparação deexcelente qualidade, onde sevê os cromossomos meta-fásicos duplos, isto é, com-postos por duas cromátides.E.) As cromátides se sepa-ram e se movem para ospólos do fuso. F.) Célula emfinal de divisão com oscromossomos dos núcleos-filhos sendo envolvidos pelamembrana nuclear. (Flem-ming, 1882)

A B

C D

E F

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eram tratadas com ácido acético, não seriarazoável pensar que eles fossem um artefato? Noentanto, o fato de os filamentos serem obser-vados repetidamente, e de eles parecerem sofrerestranhos movimentos, sugeria que já estivessempresentes na célula viva, numa forma invisível.Flemming teve sucesso em determinar que oseventos nucleares observados na célula em divisãoem materiais fixados e corados tinham suacontrapartida na célula viva. Apesar de não terdescoberto a mitose, devemos a ele mais do quea qualquer outro o conceito de mitose que temoshoje; apenas detalhes do processo foram adicio-nados à sua descrição. (Fig. 4 e 5)

O sucesso de Flemming foi conseguido graçasa alguns fatores: material que ele selecionou paraseu estudo; ter sido cuidadoso em procurar nascélulas vivas as estruturas observadas nas célulasfixadas e coradas; ter à sua disposição microscó-

pios muito melhores do que os existentes ante-riormente. O uso de células vivas, além de dar aconfiança de que o observado era real e nãoartefato, permitiu também determinar a seqüênciados eventos.

As fases da mitose

Costuma-se dizer que um núcleo que não estásofrendo divisão encontra-se em repouso. Esseé um termo infeliz pois sugere inatividade e hojenós sabemos que a maior atividade fisiológica donúcleo acontece durante esse período. Flemmingnão viu cromossomos nos núcleos em “repouso”de células vivas. Esses núcleos pareciam não ternenhuma estrutura interna. Quando essas célulaseram fixadas e coradas via-se que seus núcleoscontinham uma rede densa com grande afinidadepor certos corantes, além de um ou dois grânulosesféricos, os nucléolos.

Figura 5. Ilustrações de Flemming de mitose em células vivas de larva de salamandra. Os desenhos estãoorganizados em seqüência, começando com a prófase, no canto superior à esquerda, e terminando com duascélulas, na fileira inferior. Os dois últimos desenhos mostram os cromossomos vistos do pólo da célula e umatelófase em vista lateral, respectivamente. O desenho mais à direita na segunda fileira mostra que oscromossomos estão duplos. (Flemming, 1882)

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Mudanças no núcleo são as primeiras evidên-cias que a mitose está a caminho. No núcleo vivo,aparentemente desprovido de estruturas, apare-cem longos e delicados fios. Quando eles podemser vistos, é o começo da prófase. (A mitose éum processo contínuo; ela é dividida em fasespelos citologistas apenas com o intuito de facilitarsua descrição.) Esses fios se condensam emcromossomos que se posicionam no meio dacélula na metáfase, época em que a membrananuclear já desapareceu. Em células coradas pode-se ver que os cromossomos estão presos a umelaborada estrutura fibrosa – o fuso. Célulascoradas podem mostrar também a presença deminúsculos grânulos nas extremidades do fuso –os centríolos. Elas podem mostrar também umoutro conjunto de fibras, os raios astrais, queirradiam dos centríolos. Durante a anáfase dascélulas vivas, os cromossomos se separam emdois grupos que se movem através do fuso parapólos opostos da célula. Quando os cromossomosatingem as extremidades do fuso, é a telófase.Os cromossomos nas células vivas se tornam cadavez menos distintos e a membrana nuclear serefaz. O núcleo está de novo em “repouso”. Oque se pode concluir desse processo?

É óbvio que todas as estruturas celularesprecisam ser reproduzidas para que as células-filhas sejam idênticas à célula-mãe. Flemming foicapaz de explicar como isso acontece para oscromossomos. Se os cromossomos de uma célulavão ser divididos igualmente entre as células-filhas, eles precisam dobrar em número em algumestágio do ciclo celular. Flemming observou que,quando os cromossomos aparecem pela primeiravez no início da prófase eles já estão duplos;assim, em algum momento entre seu desapareci-mento na telófase e seu reaparecimento na pró-fase, cada cromossomo deve ter se duplicado.

Hoje, é claro, nós consideramos os cromos-somos como estruturas permanentes nas célulasmesmo sendo eles visíveis apenas na mitose. Nóstambém reconhecemos a individualidade doscromossomos, isto é, que eles existem em geralem pares homólogos, cada par contendo umconjunto específico de genes. Essas conclusõespoderiam ter sido tiradas a partir das observaçõesde Flemming? Na verdade não. E as hipóteses aseguir, poderiam ser refutadas?

Você poderia argumentar o seguinte: como oprocesso mitótico assegura que cada célula-filha

receba seu lote de cromossomos isto deve indicar,sem muita dúvida, que um mecanismo tão elabo-rado e preciso para duplicação e distribuição éde importância fundamental. E o que pode sermais importante do que assegurar que os ele-mentos controladores da hereditariedade e da vidade cada célula cheguem até elas?

Mas alguém pode responder que, sendo ascélulas-filhas idênticas à célula-mãe, todos osprodutos celulares são reproduzidos. Pode-seargumentar que é mero acidente que o processode reprodução e distribuição seja mais facilmenteobservado nos cromossomos. Não existe razão,portanto, para não assumirmos que cromosso-mos, membranas celulares e todos aquelesgrânulos e glóbulos observados no citoplasmapossam ter igual chance de estarem envolvidosna hereditariedade.

A DESCOBERTA DA MEIOSE

Flemming e muitos outros citologistas seuscontemporâneos estavam considerando que asdivisões mitóticas do núcleo aconteciam em todadivisão celular. A reunião de inúmeras obser-vações em células de um grande número deespécies de plantas e animais permitia que sefizesse esta afirmação geral. Note que isso é umbom exemplo de indução.

Nós podemos agora usar essa afirmaçãogeral como uma hipótese a ser testada. Isto é,nós podemos partir para um raciocínio dedu-tivo. Por exemplo: se a hipótese de que onúcleo sempre divide por mitose for verdadeira,então o número de cromossomos deve dobrara cada geração. Isso seria inevitável. Como osnúcleos do óvulo e do espermatozóide se unemna fertilização, caso eles se formassem pormitose, o zigoto deveria ter duas vezes onúmero de cromossomos de seus genitores.

Mas isso não acontece: Flemming e outroscitologistas estavam cientes de que o número decromossomos parecia ser o mesmo em todos osindivíduos e em todas as gerações de uma espécie.

Obviamente existe um problema com essahipótese. Deveria haver algum mecanismo quereduziria o número de cromossomos antes oudurante a fertilização. Seria possível supor que,quando os núcleos do óvulo e do espermatozóidese fundiam na fertilização, os cromossomos tam-bém se fundiriam uns com os outros, sendo quemetade de cada um deles seria destruída. Uma

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hipótese alternativa é que ocorresse redução donúmero de cromossomos durante a formação dosóvulos e dos espermatozóides nas gônadas.

O significado dos corpúsculos polares.

Vários pesquisadores tinham descrito, emdiversas espécies animais, a eliminação de minús-culas esferas na região do pólo animal do óvulo,por ocasião da fertilização. Essas esferas logodesapareciam e, como pareciam não ter funçãoalguma, foram denominadas corpúsculos polares.Observou-se também que na partenogênese for-mava-se um único corpúsculo polar, mas que nosóvulos fertilizados eles sempre pareciam ser dois.Em algumas espécies, um corpúsculo era formadoantes da fertilização e um segundo, depois daentrada do espermatozóide. Em outras espécies,os dois corpúsculos polares eram formados apósa fertilização. (Fig. 6)

Em 1887, August Weismann propôs umahipótese para explicar a constância da quanti-dade de material hereditário de uma geraçãopara outra. Com base na observação de muitoscitologistas, ele diz: “pelo menos um certoresultado sugere que exista uma substânciahereditária, um material portador detendências hereditárias, e que esta substância

está contida no núcleo das células germinativas,no filamento enovelado no interior do núcleo[alguns citologistas pensavam que oscromossomos formavam um fio contínuo ouespirema durante a interfase], que em certosperíodos aparece na forma de alças ou barras[estes eram os cromossomos nos estágiosmitóticos]. Nós podemos, além disso, considerarque a fertilização consiste no fato de um númeroigual de alças [cromossomos] de cada genitorser colocado lado a lado, e que o núcleo do zigotoé composto desta maneira. No que diz respeito aesta questão, não tem importância se as alças[cromossomos] dos dois pais se misturam maiscedo ou mais tarde ou se permanecem separadas.A única conclusão essencial necessária à nossahipótese é que a quantidade de substânciahereditária fornecida por cada um dos genitoresseja igual ou aproximadamente igual entre si.Se for assim, as células germinativas dosdescendentes conterão os germoplasmas de am-bos os pais unidos, isso implica que tais célulassó podem conter metade do germoplasmapaterno, como estava contido nas células ger-minativas do pai, e metade do germoplasmamaterno, como estava contido nas célulasgerminativas da mãe.”

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Figura 6. Ilustrações da meiose em fêmea de Ascaris. Anteriormente às etapas mostradas nos desenhos, oscromossomos haviam se duplicado e se emparelhado, formando duas tétrades. Estas se separaram na primeira divisãomeiótica e duas díades foram para o primeiro corpúsculo polar, enquanto que as outras duas permaneceram nosóvulos. Isto é mostrado no desenho 33 de Boveri. No desenho 36, as díades estão em rotação antes da sua separaçãona segunda divisão meiótica. O segundo corpúsculo polar pode ser visto na posição correspondente à das duas horas.Os desenhos 42 e 43 mostram as díades se separando. No desenho 45, a segunda divisão já terminou e o segundocorpúsculo polar com seus dois cromossomos aparece na superfície do óvulo; o primeiro corpúsculo polar está acimadele. Os dois cromossomos no óvulo estão para formar o pró-núcleo feminino. O desenho 46 mostra o primeirocorpúsculo polar na posição correspondente à das 3 horas, o segundo corpúsculo polar na superfície do óvulo, naposição correspondente à das 12 horas, o pró- núcleo.

Fig. 33 Fig. 36 Fig. 42

Fig. 43 Fig. 45 Fig. 46

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Weismann acreditava que a redução à metadedo material hereditário da mãe, necessária à suahipótese, ocorria quando o segundo corpúsculopolar era formado. Diz ele: “Minha opinião sobreo significado do segundo corpúsculo polar é, empoucas palavras, esta: a redução do germo-plasma acontece na sua formação, uma reduçãonão só em quantidade, mas sobretudo na comple-xidade de sua constituição. Por meio da segundadivisão nuclear, evita-se o acúmulo de diferentestipos de tendências hereditárias ou germoplas-mas que, sem isso, seria necessariamente produ-zido em excesso pela fertilização. Com o núcleodo segundo corpúsculo polar são removidos doóvulo tantos tipos diferentes de idioplasmas [umtermo usado na época para designar o materialhereditário] quantos serão posteriormenteintroduzidos pelo núcleo do espermatozóide;assim, a segunda divisão do núcleo do óvuloserve para manter constante o número dediferentes tipos de idioplasmas, que compõem ogermoplasma durante o curso das gerações.”

E, se a constância é mantida de geração ageração, Weismann supõe que um processo simi-lar precisaria ocorrer no macho. Ele diz: “Se onúmero de germoplasmas ancestrais contido nonúcleo do óvulo destinado para a fertilizaçãodeve ser reduzido à metade, não pode haverdúvida que uma redução semelhante tambémdeve ocorrer, em alguma época e de algumamaneira, nos germoplasmas das células germi-nativas do macho.”

Na época em que essas surpreendentespredições foram feitas (surpreendentes porque semostraram essencialmente corretas) os citolo-gistas estavam encontrando evidências que asapoiavam. A observação mais importante estavasendo feita no verme nematóide Ascaris, que tema grande vantagem de possuir poucos cromos-somos e de grande tamanho, o que os torna fáceisde serem estudados.

Meiose na fêmea de Ascaris

Na penúltima década do século XIX, foramfeitas importantes contribuições para o entendi-mento da formação dos gametas e da fertilização.Três citologistas merecem referência especial:Edouard van Beneden (1846-1912), TheodorBoveri (1862-1915) e Oskar Hertwig (1849-1922). Eles descobriram que ocorrem duas

divisões celulares diferentes durante a formaçãodos gametas, as quais resultam na redução donúmero de cromossomos à metade – como Weis-mann previu que deveria acontecer. Estas duasdivisões são divisões mitóticas modificadas e fo-ram denominadas divisões meióticas – os nomessão tão parecidos que continuam a causarproblema para os estudantes até hoje. Nadescrição que se segue, utilizaremos aterminologia moderna.

O ovário de Ascaris começa a se formar noinício do desenvolvimento e o extraordinárioaumento no número de suas células é conseqüên-cia de divisões mitóticas. Cada núcleo tem quatrocromossomos, o número diplóide, e pode-se notarque cada cromossomo aparece duplo já no inícioda prófase. Nessa fase, eles estão formados porduas cromátides, indicando que eles se duplicaramantes do início da divisão. Na mitose, as oitocromátides são divididas entre as duas células-filhas, o que resulta em quatro cromossomos emcada uma delas.

À medida que a fêmea de Ascaris amadurece,seu ovário passa a conter células aumentadas, asovogônias, ainda com o número diplóide decromossomos. A célula reprodutiva femininapermanece diplóide até ser libertada do ovário epenetrada pelo espermatozóide. É somente entãoque a meiose começa e os corpúsculos polaressão formados. A figura 6 (de Boveri, 1887)mostra o que acontece.

No começo da meiose, cada um dos quatrolongos cromossomos da ovogônia encurta e tomao aspecto de uma pequena esfera. Estes quatrocromossomos então se juntam em pares, umprocesso conhecido como sinapse. Quando issoocorre, cada um dos cromossomos já está dupli-cado, pois a duplicação ocorreu na intérfaseprecedente. Assim, a célula em início de meioseterá dois grupos com quatro cromátides cada.Cada um desses grupos é denominado tétrade.As tétrades se separam em uma divisão celularaltamente desigual que resulta em um pequenocorpúsculo polar e uma célula grande, o futuroóvulo. Cada uma dessas duas células contém doiscromossomos duplicados. Portanto, cada tétradefoi dividida em duas díades.

Na segunda divisão meiótica, observa-se umacaracterística essencial da meiose: os cromos-somos não são duplicados. Então, cada díade seliga ao fuso e, na anáfase, suas duas cromátides

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vão para pólos opostos. A célula se divide nova-mente de modo desigual. O resultado é umminúsculo corpúsculo polar com dois cromossomose um grande óvulo também com dois cromossomos.

Assim, no decorrer das duas divisões quecompõem a meiose, o número diplóide de quatrocromossomos da célula feminina foi reduzido aonúmero monoplóide de dois cromossomos. Ahipótese de Weismann provou ser verdadeira, pelomenos para as fêmeas de Ascaris.

Meiose no macho de Ascaris

A previsão de Weismann para os machos tambémmostrou-se correta. Quando os testículos foramestudados, verificou-se que, durante o início do

desenvolvimento, as células aumentam em númeropor divisões mitóticas, isto é, as células que seoriginam desse processo tem o número diplóide dequatro cromossomos (Bauer, 1893).

No entanto, no testículo maduro, as duasúltimas divisões antes de as células se diferen-ciarem em espermatozóides são diferentes. Équando ocorrem as divisões meióticas no macho.No que se refere aos cromossomos, os eventossão os mesmos que os da fêmea, mas quando seconsidera a célula como um todo, existemdiferenças entre as divisões meióticas de machoe de fêmea. (Fig. 7)

Durante a meiose do macho, os quatrocromossomos já duplicados se juntam dois a dois,formando dois pares, ou duas tétrades. Na

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Células que irão formarespermatozóides possuem 4cromossomos, o númerodiplóide.

No início da meiose oscromossomos homólogosse emparelham.

Os cromossomosemparelhados formamtétrades, cada uma com 4cromátides.

Os cromossomoshomólogos se separamna primeira divisão dameiose.

Cada célula-filha daprimeira divisãocontém duas díades.

Não há duplicaçãocromossômica antes dasegunda divisão da meiosee as duas cromátides decada díade se separam.

Cada uma das células originadas na meiosediferencia-se em um espermatozóide.

Em Ascaris, a fecundaçãoé que desencadeia ameiose feminina.

No início da meiose, ocorre oemparelhamento dos

cromossomos homólogos.

Os cromossomos emparelhadosformam tétrades, cada uma com 4cromátides.

Os cromossomos homólogos separam-se na primeira divisão da meiose.

O primeiro glóbulo polar e o futuroóvulo contêm duas díades cada.

A formação do segundo glóbulo polardeixa o óvulo com um número

haplóide de cromossomos.

Os núcleos de origempaterna e materna seaproximam um do outro.

Cada pró-núcleo contribui comdois cromossomos para o

zigoto, restabelecendo o númerodiplóide da espécie.

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Figura 7. Representação esquemática da meiose masculina, à esquerda, e da meiose feminina, à direita emascaris de cavalos.

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primeira divisão meiótica os cromossomos decada par se separam, indo uma díade (cromos-somo duplicado) para cada pólo. No entanto, aocontrário da primeira divisão meiótica da fêmea,no macho são produzidas duas células de igualtamanho. Na segunda divisão meiótica não háreplicação cromossômica, as díades se dividem ecada célula-filha termina com dois cromossomos.

Assim, a partir de cada célula diplóide origi-nal, com quatro cromossomos, formam-se quatrocélulas, cada uma com dois cromossomos, onúmero háplóide. Não há outras divisões dessascélulas e cada uma se diferencia em umespermatozóide.

Uma diferença fundamental entre a mitose e ameiose é que na mitose há uma duplicação decada cromossomo para cada divisão celular; nameiose há somente uma duplicação de cadacromossomo para duas divisões sucessivas.Então, a mitose é um mecanismo que mantéma constância do número cromossômico nasdivisões celulares enquanto a meiose reduz essenúmero à metade.

Fertilização e restabelecimento do númerodiplóide de cromossomos

O fato básico da fertilização, de que é o esper-matozóide e não o líquido seminal o desenca-

deador do desenvolvimento do ovo, foi desco-berto por J. L. Prévost e J. B. Dumas em 1824.No entanto, o real papel do espermatozóide nãofoi estabelecido nesse trabalho. Como relatadoanteriormente, foi George Newport (1854) quemdemonstrou que o espermatozóide penetra noóvulo das rãs. Mas o que acontece então?

Ascaris mostrou-se um material muito bompara o estudo dos detalhes da fertilização, nova-mente devido ao fato de possuir poucos e grandescromossomos. Van Beneden e Boveri descre-veram o processo em detalhe. (Fig.8)

A figura 8 mostra desenhos de Boveri, publi-cados em 1888. A primeira ilustração (A) é deum corte de um ovo logo após a entrada do esper-matozóide. O pró-núcleo paterno aparece noquadrante inferior direito. As duas massasirregulares fortemente coradas são os doiscromossomos – dois é o número haplóide. Aestrutura formando uma cápsula dobradaimediatamente acima do pró-núcleo paterno é oacrossomo, que é a parte da cabeça do esperma-tozóide composta por material do aparelho deGolgi. A massa granular escura no centro doóvulo é o centrossomo, que também se originado espermatozóide. Existem quatro corposescuros, aproximadamente na posição correspon-dente à das 12 horas; os dois superiores são oscromossomos do segundo corpúsculo polar. Os

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AB C

D E F

Figura 8. Ilustrações de Boveri da fertilização em Ascaris Veja explicação no texto. (Boveri, 1888)

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dois de baixo são os cromossomos, em númerohaplóide, do pró-núcleo materno. O segundocorpúsculo polar aparece nos cortes de embriõesmostrados em (C) e (E).

Em (B), os pró-núcleos materno e paterno jáse aproximaram um do outro e seus cromossomostornaram-se indistintos. Em (C) os cromossomosalongaram-se bastante e, embora agora saibamosque existem apenas dois cromossomos em cadapró-nucleo, isto não pode ser visto na ilustração(este é um exemplo claro da grande dificuldadeenfrentada pelos citologistas para chegarem àconclusão de que o número de cromossomos dequalquer espécie é constante e que os cromos-somos são individualmente únicos – na maioriadas vezes eles pareciam tão emaranhados comoum prato de espaguete). Pode-se distinguir doisgrânulos escuros no centrossomo: os centríolos.

Em (D), os cromossomos tornaram-se distin-tos uma vez mais [de (B) a (C) eles estavam emum estágio modificado de “repouso”] e vê-se doisem cada pró-núcleo. O centrossomo dividiu-seem dois, cada um deles com um centríolo nocentro. Este processo continua através de (E).Em (F), os quatro cromossomos, dois de cada pró-núcleo, estão alinhados no fuso e, logo depois disso,pode-se ver que cada um está duplicado, isto é, com-posto por duas cromátides. As cromátides irão seseparar para formar cromossomos independentesque vão para pólos opostos da célula.

A forma do aparelho mitótico está bemmostrada em (F). Em cada extremidade do fusoencontra-se um minúsculo centríolo, cercado poruma área granular escura – o centrossomo. Emmaterial bem preservado, pode-se observar fibrasirradiando de cada centrossomo, formando umáster. Outras fibras se estendem de um centros-somo ao outro, formando o fuso. Em (F), célulaem metáfase da primeira divisão embrionária comos cromossomos alinhados na placa equatorial.

Significado da formação dos gametas e dafertilização

Tudo estava acontecendo como previsto porWeismann. As células que iriam, muitas geraçõesmais tarde, formar os gametas, tanto no ovário comono testículo de Ascaris, começavam com quatrocromossomos, o número diplóide. E, estas célulasse dividiam repetidamente, sempre por mitose.

Nos machos, as duas últimas divisões das célulasformadoras de espermatozóides no testículo eram,

no entanto, meióticas e não mitóticas. Durante estasduas divisões, as células se dividiam duas vezes masos cromossomos se replicavam somente uma vez.Essas divisões celulares eram iguais, isto é,produziam, cada uma delas, duas células de mesmotamanho. Isso resultava em quatro células de igualtamanho, cada uma com dois cromossomos, onúmero haplóide. As quatro células, então, sediferenciavam nos espermatozóides.

Depois de muitos ciclos celulares de divisõesmitóticas, algumas das células ovarianas aumen-tavam bastante em tamanho, formando osovócitos. Como no caso dos machos, ocorriamduas divisões meióticas do material nuclear comsomente uma única replicação dos cromossomos.A primeira divisão da célula era tão desigual quea maior parte do material permanecia na célulaque iria originar o óvulo e só uma ínfimaquantidade era incluída no primeiro corpúsculopolar. Isto se repetia na segunda divisão,produzindo um minúsculo segundo corpúsculopolar e um grande óvulo. Todavia, os núcleos dosegundo corpúsculo polar e do óvulo eramidênticos – cada um continha um número haplóidede dois cromossomos.

A meiose em Ascaris produzia, portanto, oespermatozóide monoplóide e o óvulomonoplóide. A união deles originava o zigotodiplóide – o início de um novo verme nematóide.Os processos estão sumarizados na figura 7.

Estava claro pelo trabalho de van Beneden,Boveri e outros que cada genitor transmite o mesmonúmero de cromossomos ao zigoto. Além disso, oscromossomos no núcleo materno e paterno pare-ciam ser idênticos. Estas duas observações podiamajudar a explicar o que já se acreditava há algumtempo: que a contribuição hereditária de cada geni-tor é aproximadamente a mesma.

Este era um campo de pesquisa excitante eimportante e logo muitos pesquisadores estavamestudando uma grande variedade de plantas eanimais. Com poucas exceções, o que seencontrou em Ascaris mostrou-se verdadeiro paratodos os outros organismos. Certamente existiampequenas variações, mas um estudo intenso serviusomente para aumentar a profundidade do nossoentendimento do processo global. Um conceitode aplicação universal havia sido descoberto.

As extraordinárias observações sobre ocomportamento dos cromossomos na mitose,meiose e fertilização, feitas entre 1870 e 1890,

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PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS

Preencha os espaços em branco nas frases de1 a 6 usando o termo abaixo mais apropriado.

(a) anáfase (c) metáfase (e) prófase(b) meiose (d) mitose (f) telófase

EXERCÍCIOS

principalmente na Alemanha, forneceram umquadro geral para a transmissão de geração ageração das estruturas fundamentais responsáveispela herança.

Pode-se argumentar, com razão, que essesestudos não forneceram qualquer evidência cru-cial de que os cromossomos seriam, de fato, abase física da hereditariedade. Eles apenas suge-riam que os cromossomos poderiam desempenhartal papel. Nem mesmo durante as últimas duasdécadas do século XIX se chegou próximo àdescoberta de como seria possível estabelecer opapel de uma estrutura celular na herança. Tantoa Citologia como o que atualmente chamamosde Genética estavam no estágio de ciência nor-mal Kuhniana, esperando pela chegada de umnovo paradigma. Isso iria ocorrer, de uma formadramática, no ano de 1900.

Mas antes de entrarmos no século XX,podemos concluir com este sumário de E. B.Wilson sobre o que havia sido estabelecido du-rante o florescimento da Citologia no últimoquarto do século XIX.

“ O trabalho da Citologia neste período deestabelecimento de seus fundamentos construiu umabase ampla e substancial para as nossas concep-ções mais gerais de hereditariedade e seu substratofísico. Foi demonstrado que a base da heredita-riedade é uma conseqüência da continuidadegenética das células pela divisão e que as célulasgerminativas são o veículo da transmissão de umageração para outra. Acumularam-se fortes evidên-cias de que o núcleo da célula desempenha umpapel importante na herança.

Descobriu-se o significativo fato de que emtodas as formas ordinárias de divisão celular onúcleo não divide “em massa” mas que primeiroele se transforma em um número definido decromossomos; estes corpos, originalmente forma-dos por longos fios, dividem-se longitudinalmentepara efetuar uma divisão merismática da subs-tância nuclear inteira.

Provou-se que toda fertilização do óvulo,envolve a união ou estreita associação de doisnúcleos, um de origem materna e o outro deorigem paterna. Está estabelecido o fato, algumasvezes chamado de “lei de van Beneden” em home-nagem ao seu descobridor, que estes núcleosgerminativos primários dão origem a grupossemelhantes de cromossomos, cada um contendometade do número encontrado nas células docorpo. Demonstrou-se que quando novas célulasgerminativas são formadas cada uma volta areceber apenas metade do número característicode cromossomos das células do corpo.

Acumularam-se evidências, especialmentepelos estudos admiráveis de Boveri, que oscromossomos de sucessivas gerações decélulas, que normalmente não são vistos nosnúcleos em repouso, na realidade, não perdemsua individualidade, ou que de uma maneiramenos óbvia eles se adaptam ao princípio dacontinuidade genética. Desses fatos, tirou-seuma conclusão de que os núcleos das célulasdo corpo são diplóides ou estruturas duplas,descendentes igualitários dos grupos decromossomos de origem materna e paterna doovo fertilizado. Esses resultados, continua-mente confirmados pelos trabalhos dos últimosanos [isto é, ciência normal], gradualmentetomaram um lugar central na Citologia; [...]Uma nova era de descobertas agora se abre[um novo paradigma]. Assim que o fenômenomendeliano tornou-se conhecido ficouevidente que em linhas gerais, ele forma umcomplemento para aqueles fenômenos que aCitologia já tinha tornado conhecido arespeito dos cromossomos.”

Esta citação é parte da famosa Croonian Lec-ture to the Royal Society of London proferida porWilson em 1914. Nessa época as relações entrecromossomos e herança já haviam sido testadase se mostrado verdadeiras acima de qualquersuspeita..

1. ( ) é um tipo de divisão nuclear em que osnúcleos-filhos conservam o mesmo número decromossomos do núcleo original.

2. A migração dos cromossomos para os pólosocorre na ( ).

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3. ( ) é um tipo de divisão nuclear que reduz àmetade o número de cromossomos nosnúcleos-filhos.

4. Cromossomos arranjados na região equa-torial da célula caracteriza a fase da divisãochamada ( ).

5. ( ) é a primeira fase da divisão celular, naqual os cromossomos se tornam evidentes.

6. ( ) é a fase final da divisão celular, em queos núcleos se reorganizam.

Preencha os espaços em branco nas frases de7 a 11 usando o termo abaixo mais apropriado.

(a) corpúsculo polar (c) haplóide (e) ovogônia(b) diplóide (d) ovócito

7. ( ) é uma célula que está sofrendo meiose edará origem a um gameta feminino.

8. Uma célula animal feminina que irá sofrermeiose é chamada ( ).

9. ( ) é o termo usado para designar uma célulaque possui dois conjuntos de cromossomos.

10. ( ) é o nome das minúsculas células que seformam no decorrer da meiose feminina.

11. ( ) é o termo que designa uma célula quepossui apenas um conjunto de cromossomos.

Preencha os espaços em branco nas frases de12 a 17 usando o termo abaixo mais apropriado.

(a) cromátide (d) pró-núcleo(b) díade (e) sinapse(c) fertilização (f) tétrade

12. Dois cromossomos emparelhados no inícioda meiose formam um(a) ( ).

13. O emparelhamento de cromossomos nameiose é chamado ( ).

14. ( ) é o nome do núcleo do espermatozóideou do óvulo imediatamente antes de eles sefundirem para formar o núcleo do zigoto.

15. Um cromossomo duplicado, formadoportanto por dois filamentos idênticos, échamado ( ).

16. ( ) é nome que se dá a cada um dos doisfilamentos que formam um cromossomoduplicado.

17. A fusão de dois gametas com formação deum zigoto é chamada ( ).

PARTE B: L IGANDO CONCEITOS E FATOS

Utilize as alternativas abaixo para completar asfrases de 18 a 21.

a. fertilização b. meiose c. mitose

18. Na ( ) ocorre uma replicação cromossômicapara duas divisões celulares.

19. Na ( ) ocorre uma replicação cromossômicapara uma divisão do citoplasma.

20. Apenas células diplóides se dividem por ( ).

21. Células diplóides e haplóides se dividempor ( ).

Utilize as alternativas abaixo para completar asfrases de 22 a 25.

a. células diplóidesb. células haplóides

22. Ovogônias são sempre ( ).

23. Gametas são sempre ( ).

24. Zigotos são sempre ( ).

25. Meiose produz sempre ( ).

26. Dos cinco eventos listados a seguir,quatro ocorrem tanto na mitose quanto nameiose. Indique qual deles acontece es-sencialmente na meiose?a. Condensação dos cromossomos.b. Formação do fuso.c. Emparelhamento dos cromossomos.d. Migração dos cromossomos.e. Descondensação dos cromossomos.

Utilize as alternativas abaixo para completar asfrase de 27 e 28.

a. Antonie van Leeuwenhoekb. Nehemiah Grewc. Robert Brownd. Robert Hooke

27. ( ) é considerado o descobridor da célula.

28. ( ) foi o descobridor do núcleo celular.

Utilize as alternativas abaixo para completar asfrases de 29 a 33.

a. August Weismann c. Theodor Schwannb. Rudolph Virchow d. Walther Flemming

29. A idéia de que a formação do corpúsculo polaré uma estratégia para a redução do materialhereditário do óvulo foi lançada em 1887 por ( ).

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30. Um dos formuladores da teoria celular foi ( ).

31. A célebre frase “omnis cellula e cellula”,indicando que toda célula provém da divisãode outra célula, foi cunhada em 1855 por ( ).

32. ( ) é considerado o descobridor da mitosepelo fato de ter demonstrado que os eventoscromossômicos observados em células fixadase coradas ocorriam nas células vivas.

33. A teoria celular mostrou que, apesar dasdiferenças visíveis a olho nu, todos os seresvivos são iguais em sua constituição básica, poisa. são capazes de se reproduzirsexuadamente.b. são formados por células.c. contêm moléculas.d. se originam de gametas.

34. Os vírus não são exceções à teoriacelular poisa. são formados por células.b. formam gametas.c. são organismos vivos.d. só conseguem se reproduzir no interior deuma célula viva.

PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR

O número diplóide de cromossomos da espéciehumana é 46. Essa informação deve ser usadapara responder as questões 35 e 36.

35. Determine o número de filamentoscromossômicos (cromátides) presentes em umnúcleo celular humana em

a. prófase mitótica. d. telófase mitótica.b. prófase I da meiose. e. telófase I da meiose.c. prófase II da meiose. f. telófase II da meiose.

Obs. No caso das telófases, considere apenasum dos núcleos em formação.

36. Determine o número de filamentoscromossômicos (cromátides) presente em cadaum dos tipos celulares relacionados a seguir.

a. Espermatozóide.b. Óvulo.c . Primeiro corpúsculo polar.d. Segundo corpúsculo polar.e. Ovócito primário.f . Ovócito secundário.

37. Qual é a hipótese central da teoria celular?

38. Por que foi difícil estender o conceito decélula para os animais?

39. Que critério Schwann utilizou paraestabelecer relações de semelhança entre asunidades microscópicas que compõem o corpodos animais e das plantas?

40. Que tipo de observação permitiu concluirque espermatozóides eram células?

41. Por que não se deve chamar o núcleointerfásico de núcleo em repouso, como faziamos antigos citologistas? Por que era usadoaquele nome?

42. O que Weismann imaginou ser necessáriopara manter a constância do número decromossomos através das gerações?

43. Identifique as principais diferenças entremitose e meiose.

44. Analise os tipos de argumento usados parajustificar a idéia de que a informação hereditáriaestaria contida nos gametas.

45. Que tipo de raciocínio dedutivo levou osantigos citologistas a concluir que a mitose nãopoderia ser o único tipo de divisão celular?

46. Qual é o significado da meiose e dafertilização no ciclo de vida dos organismos?

47. Que importantes paradigmas direcionaramas pesquisas citológicas nos primeiros doisterços e no último terço do século XIX,respectivamente?