As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA
ANA LUCIA SANTOS COELHO
As metamorfoses de Nero
Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo
Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC)
Mariana
2021
ANA LUCIA SANTOS COELHO
As Metamorfoses de Nero
Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo
Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC)
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Histoacuteria do Instituto de
Ciecircncias Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP) como requisito parcial agrave
obtenccedilatildeo do grau de Doutora em
Histoacuteria
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Poder e
Linguagens
Linha de Pesquisa Ideias Linguagens e
Historiografia
Orientador Prof Dr Faacutebio Faversani
Mariana
Instituto de Ciecircncias Humanas e Sociais ndash UFOP
2021
Coelho Ana Lucia SantosCoeAs Metamorfoses de Nero [manuscrito] um estudo da construccedilatildeo datradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC) Ana Lucia Santos Coelho - 2021Coe403 f
CoeOrientador Prof Dr Faacutebio FAVERSANICoeTese (Doutorado) Universidade Federal de Ouro Preto Departamentode Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em HistoacuteriaCoeAacuterea de Concentraccedilatildeo Histoacuteria
Coe1 Imperadores - Roma 2 Nero Imperador de Roma 37- 68 3Tradiccedilatildeo Literaacuteria I FAVERSANI Faacutebio II Universidade Federal de OuroPreto III Tiacutetulo
Bibliotecaacuterio(a) Responsaacutevel Luciana De Oliveira - SIAPE 1937800
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMACcedilAtildeO
C672a
CDU 9394
MINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITORIA INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTORIA
FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
Ana Luacutecia Santos Coelho
As metamorfoses de Nero Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacutelmo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-IIIdC)
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federalde Ouro Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tulo de Doutor
Aprovada em 28 de maio de 2021
Membros da banca
Prof Dr Faacutebio Faversani - Orientador (Universidade Federal de Ouro Preto)Profa Dra Semiacuteramis Corsi Silva - (Universidade Federal de Santa Maria)
Profa Dra Sarah Fernandes Lino de Azevedo - (Universidade de Satildeo Paulo)Profa Dra Helena Amalia Papa - (Universidade Estadual de Montes Claros)
Prof Dr Fabio Duarte Joly - (Universidade Federal de Ouro Preto)
Faacutebio Faversani orientador do trabalho aprovou a versatildeo final e autorizou seu depoacutesito no Repositoacuterio Instucional da UFOP em 12072021
Documento assinado eletronicamente por Fabio Faversani PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR em 10072021 agraves1913 conforme horaacuterio oficial de Brasiacutelia com fundamento no art 6ordm sect 1ordm do Decreto nordm 8539 de 8 de outubro de 2015
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Referecircncia Caso responda este documento indicar expressamente o Processo nordm 231090053372021-33 SEI nordm 0177106
R Diogo de Vasconcelos 122 - Bairro Pilar Ouro PretoMG CEP 35400-000 Telefone 3135579406 - wwwufopbr
A meus pais Alberto e Lucia
Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia
A todas as Anas (boas e ruins) surgidas ao longo desta tese
A Nero
AGRADECIMENTOS
Ao teacutermino de um trabalho acadecircmico eacute impossiacutevel natildeo agradecer agravequeles
que de alguma forma estiveram presentes durante o processo de escrita Entatildeo
vamos laacute
Agradeccedilo primeiramente a mim mesma pela perseveranccedila e resiliecircncia
ao longo destes cincos anos principalmente neste uacuteltimo ano pandecircmico
Ao Professor Dr Faacutebio Faversani por me acolher como orientanda na
UFOP desde 2016 guiando meus passos e dedicando-me atenccedilatildeo e paciecircncia
Aos Professores Doutores Faacutebio Duarte Joly e Artur Costrino pelas
sugestotildees recomendadas durante o Exame de Qualificaccedilatildeo as quais foram
fundamentais para o acerto dos rumos da minha pesquisa Agrave Universidade Federal
de Ouro Preto e ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria por possibilitarem a
execuccedilatildeo deste trabalho Ao Giovani Duarte pela revisatildeo atenta deste texto que
certamente conferiu melhorias a ele
Aos meus pais Lucia e Alberto que tanto renunciaram aos seus sonhos
para que eu pudesse realizar os meus Esta conquista natildeo eacute minha eacute nossa
Ao meu irmatildeo Rafael pela amizade pelo carinho e por estar sempre
torcendo pelas minhas conquistas
A meus colegas do LEIR-UFOP Caroline Morato Stephanie Caroline
Coelho Joatildeo Victor e Mamede pelas ideias e dicas
Aos meus colegas de profissatildeo e de vida Norma Cloacutevis Elenise Barata
Nei Faniacute Amali Marcos Ludmila e Andrey pela forccedila nestes tempos sombrios
A todos os meus queridos alunos por me confirmarem a cada dia o quatildeo
maravilhoso eacute ser professora
Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia por todo amor que
vocecircs trazem ao meu mundo
ldquoE o injusto hoje eacute justo amanhatilde
para a cidaderdquo1
1 καὶ πόλις ἄλλως ἄλλοτ᾿ ἐπαινεῖ τὰ δίκαια (Aes Sept 1070-1071) Traduccedilatildeo de Vieira (2018 p
105)
RESUMO
Esta tese eacute um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre Nero e seu
Principado (I-III dC) Analisamos como a imagem desse soberano foi se
modificando ao longo dos seacuteculos ateacute se consolidar negativamente com as obras
de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Com o passar do tempo os traccedilos positivos de
tal imperador foram sendo apagados esquecidos eou alterados por diversos
autores antigos Acreditamos que isso ocorreu porque os julgamentos sobre ele e
seu governo foram feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios especiacuteficos que por
mudarem no decorrer dos anos geraram um processo de reelaboraccedilatildeo da
memoacuteria Ou seja cada autor dentro da sua proacutepria temporalidade produziu um
Nero condizente com seus valores e dilemas o qual por sua vez transformou os
Neros anteriores e reforccedilou mais e mais os aspectos negativos Empreendemos
essa investigaccedilatildeo por meio da anaacutelise de fontes textuais variadas situadas entre os
seacuteculos I e III selecionando as referecircncias sobre o imperador contidas aiacute e
inserindo-as em um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias
Portanto mostramos como as criacuteticas a Nero retiraram suas caracteriacutesticas
individuais transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua
realidade histoacuterica para tornaacute-lo um modelo atemporal de mau governante
Palavras-chave Impeacuterio Romano Principado de Nero Tradiccedilatildeo Literaacuteria
Allelopoiesis
ABSTRACT
This thesis investigates the formation of the literary tradition concerning Nero and
his Principate (I-III AD) We analyze the ways this sovereignrsquos image changed
across the centuries until its consolidation in the negative sense through the works
of Tacitus Suetonius and Cassius Dio With the passage of time positive
attributes of this emperor were gradually eliminated forgotten andor altered by
several authors We claim this happened because judgments that befell him and
his government were made in specific historical and literary contexts and these
judgments spawned a process of memory rewriting In other words each author
within hisher own temporality depicted a version of Nero consistent with hisher
values and dilemmas which in turn transformed the preceding portrayals of Nero
and helped reinforce more and more of his negative traits We develop our study
by examining various textual sources situated between the first and third
centuries AD selecting references therein that allude to the emperor and placing
them in a multiple categorical complex guided by 13 categories Therefore we
show how the criticisms towards Nero removed from him his individual
characteristics converted him into a figure ever more disconnected from his
historical reality and wound up turning him into an atemporal model of bad ruler
Keywords Roman Empire Neronian Principate Literary Tradition
Allelopoiesis
ABREVIATURAS DE OBRAS ANTIGAS
Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em
latim ou em grego
Tiacutetulo da obra em
portuguecircs
Aes Sept Eacutesquilo Septem contra Thebas
Ἑπτὰ ἐπὶ Θήβας Sete Contra Tebas
Arist Poet Aristoacuteteles De Poetica Περὶ
ποιητικῆς Peri poietikecircs Poeacutetica
Aug RG Augusto Res Gestae A Vida e os Feitos do
Divino Augusto
Calp Ecl Calpuacuternio
Siacuteculo Eclogae Bucoacutelicas
Cic de Orat
Cic Rhet
Her
Ciacutecero
De oratore
Rhetorica ad
Herennium
Do Orador
Retoacuterica a Herecircnio
Dio Diatildeo Caacutessio Historia Romana
Ῥωμαϊκὴ Ἱστορία Histoacuteria Romana
Hor Ars P Horaacutecio Ars Poetica Arte Poeacutetica
Jos AJ
Jos BJ
Jos Vit
Flaacutevio
Josefo
Antiquitates Judaicae
Bellum Judaicum
Vitae
Antiguidades Judaicas
Guerras Judaicas
Vida
Gel Aulo Geacutelio Noctes Atticae Noites Aacuteticas
Pers Peacutersio Saturae Saacutetiras
Luc Lucano Pharsalia Farsaacutelia
Mart Ep
Mart Marcial
Epigrammata
Liber Spectaculorum
Epigramas
Livro dos Espetaacuteculos
Plin Ep Pliacutenio o
Jovem Epistulae Cartas
Plin Nat Pliacutenio o
Velho Naturalis Historiae Histoacuteria Natural
Plut Alex Plutarco Vitae Parallelae
Βίοι Παράλληλοι Vidas Paralelas
Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em
latim ou em grego
Tiacutetulo da obra em
portuguecircs
Quint Inst Quintiliano Institutio Oratoria Instituiccedilatildeo Oratoacuteria
Sen Apoc
Sen Cl Secircneca
Apocolocyntosis divi
Claudii
De Clementia
Apocolocintose
Sobre a Clemecircncia
[Sen] Oct Pseudo-
Secircneca Octauia Otaacutevia
Sid Ep Sidocircnio
Apolinaacuterio Epistulae Cartas
Stat Silv Estaacutecio Silvae Silvas
Suet Aug
Suet Cl
Suet Gal
Suet Nero
Suet Otho
Suet Vesp
Suet Vit
Suetocircnio
(De Vita Caesarum)
Divus Augustus
Divus Claudius
Galba
Nero
Otho
Divus Vespasianus
Vitellius
(Vida dos Doze
Ceacutesares)
Divino Augusto
Divino Claacuteudio
Galba
Nero
Otatildeo
Divino Vespasiano
Viteacutelio
Tac Agric
Tac Ann
Tac Dial
Tac Hist
Taacutecito
Agricola
Annales
Dialogus de Oratoribus
Historiae
Agriacutecola
Anais
Diaacutelogo dos Oradores
Histoacuterias
Thuc Tuciacutedides Historiae
Ἱστορίαι
Histoacuteria da guerra do
Peloponeso
Vac Vaca Vita Marco Annaei
Lucani
Vida de Marco Aneu
Lucano
Verg A Viacutergilio Aeneid Eneida
VH _
(Scriptores Historiae
Augustae)
Vita Hadriani
(Histoacuteria Augusta)
Vida de Adriano
OBRAS DE REFEREcircNCIA
ILS ndash Inscriptiones Latinae Selectae
OCD ndash Oxford Classical Dictionary
OCGD - Oxford Classical Greek Dictionary
OLD ndash Oxford Latin Dictionary
RIC ndash The Roman Imperial Coinage
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 16
Capiacutetulo 1 Neros recentes 34
Nero um mau imperador 37
Nero um bom imperador 43
Nero o imperador fantoche 49
Os verdadeiros Neros 57
Os muacuteltiplos Neros 81
Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69) 87
Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia 90
Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae 110
Lucano Pharsalia 125
Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96) 137
Pseudo-Secircneca Octauia 140
Pliacutenio o Velho Naturalis Historia 160
Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae 173
Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae 186
Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235) 208
Taacutecito Annales 211
Suetocircnio De Vita Caesarum 264
Diatildeo Caacutessio Historia Romana 308
Consideraccedilotildees Finais 348
Referecircncias 358
Apecircndice 398
Apecircndice A Cronologia da vida de Nero 399
Anexos 400
Anexo A Aacutervore genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia 401
Anexo B Mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 402
Anexo C Mapa da Roma neroniana 403
PROacuteLOGO
Reconstituiccedilatildeo hiper-realista de Nero2
Fonte httpscesaresderomacomPROYECTO
2 A reconstituiccedilatildeo foi produzida pelo escultor espanhol Salva Ruano em 2019 Ela adveio de um
projeto intitulado Ceacutesares de Roma desenvolvido com o intuito divulgar a histoacuteria romana
claacutessica a partir de uma percepccedilatildeo mais humana real e moderna Informaccedilotildees disponiacuteveis em
httpscesaresderomacomPROYECTO Acesso em 12 mar 2021
16
Introduccedilatildeo
A pesquisa apresentada nesta tese teve iniacutecio em 2016 com o ingresso da
discente no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP) O projeto desenvolvido teve como objeto de estudo a
tradiccedilatildeo literaacuteria negativa que se consolidou acerca do imperador Nero e do seu
Principado a qual o transformou no decorrer dos seacuteculos em exemplo notaacutevel de
monstruosidade e tirania
A ideia para a pesquisa adveio da observaccedilatildeo dos usos midiaacuteticos
negativos da figura do soberano que eacute constantemente evocado no cinema no
teatro na muacutesica na oacutepera na pintura e na literatura No cinema por exemplo
Nero foi rememorado no famoso filme Quo vadis lanccedilado em 19511 cujo
roteiro baseou-se no livro de Henryk Sienkiewicz de 1895-1896 e ambas as
produccedilotildees trazem uma leitura francamente desfavoraacutevel do princeps2 No teatro
foi relembrado na burlesca peccedila Time of Nero and Seneca from Soviet escrita em
1984 pelo russo Radzinsky que discute a relaccedilatildeo conturbada de Nero e Secircneca3
Por sua vez na muacutesica foi desenhado em 1946 como uma ldquomulher histeacutericardquo na
composiccedilatildeo de Louis Jordan intitulada Ainrsquot that just like a woman e tambeacutem
como um soberano louco e festeiro em 1997 na muacutesica Danccedila da Manivela da
banda Asa de Aacuteguia Na oacutepera foi reavivado em 1643 na encenaccedilatildeo
Lrsquoincoronazione di Poppea de autoria do maestro Claacuteudio Monteverdi bem
como na produccedilatildeo Neacuteron apresentada em 1879 pelo pianista Anton Rubistein
Ao seu turno na pintura e na literatura fez-se presente na prestigiada tela The
remorse of Nero after the murder of his mother criada por John Waterhouse em
1878 e no recente livro Maman je veux pas ecirctre empereur elaborado por
1 Para uma lista de filmes sobre Nero cf PUCCI 2011 p 62-75
2 ldquo[] O tiacutetulo de princeps (o mais eminente cidadatildeo do Estado) era dado a um cidadatildeo que
ocupasse uma posiccedilatildeo de lideranccedila e destaque na cidade obtida pela consagraccedilatildeo de sua
popularidade dignitas e auctoritas Haacute muita diferenccedila entre a posiccedilatildeo dos priacutencipes republicanos
e a posiccedilatildeo de Otaacutevio como priacutencipe do Senado Durante a Repuacuteblica a preeminecircncia do priacutencipe
natildeo era permanente sendo revestida de noccedilotildees de paridade e equidade [] lsquoprimeiro entre os
iguaisrsquordquo (MENDES 2006 p 26) 3 A peccedila foi adaptada para a televisatildeo no mesmo ano apresentando o encontro do imperador mais
sanguinaacuterio de Roma com Secircneca em uma arena romana Uma longa conversa entre os dois
termina na exibiccedilatildeo do relacionamento do princeps com Deus e com o poder Informaccedilatildeo
disponiacutevel em httpswwwnytimescom19840914moviestheater-time-of-nero-and-seneca-
from-soviethtml Acesso em 02 set 2019
17
Franccediloise Xenakis em 2001 Esta uacuteltima produccedilatildeo em particular concede ao
soberano a imagem de um menino sensiacutevel e incompreendido que embarcou
contra a sua vontade ldquono mundo conturbado da poliacuteticardquo4
A figura do princeps tambeacutem eacute muito recorrente no debate poliacutetico atual
A emergecircncia contemporacircnea de governos conservadores com perfil autoritaacuterio
tem sido associada agrave tirania neroniana trazendo aos holofotes o retrato negativo
imperial Como ilustraccedilatildeo vimos em 2018 a associaccedilatildeo do soberano ao entatildeo
presidente dos Estados Unidos Donald Trump tido como o ldquonovo Nerordquo em
consequecircncia dos incecircndios florestais na Califoacuternia As devastaccedilotildees foram
divulgadas pelos jornais norte-americanos com os seguintes tiacutetulos ldquoNero toca
lira enquanto Trump ateia fogordquo5 ldquoTocando lira enquanto a Ameacuterica queima
Trump eacute o atual imperador Nerordquo6 Um ano depois em 2019 foi a vez de
assistirmos agrave comparaccedilatildeo do princeps com o presidente da Repuacuteblica no Brasil
Jair Bolsonaro considerado o ldquoincendiaacuterio modernordquo devido aos desmatamentos
e agraves queimadas na floresta Amazocircnica A esse respeito os jornais logo criaram as
suas manchetes ldquoNero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar
incecircndiosrdquo7 ldquoBolsonaro imita Nerordquo
8 e ldquoBolsonaro queima o Brasil para o
mundordquo9 Tais notiacutecias nos fizeram entender que os defeitos ou os crimes
imperiais satildeo relembrados para condenar estadistas que tiveram atitudes
4 LEFEBVRE 2017 p 13 Em 2013 foi veiculado um livreto de Monteiro Lobato denominado
No Tempo de Nero Na aventura os personagens do Siacutetio do Pica-Pau Amarelo conhecem a Roma
neroniana Ao chegarem agrave capital do Impeacuterio satildeo presos por terem ldquocara de cristatildeosrdquo e
condenados pelo pior crime da eacutepoca Enquanto o grupo eacute obrigado a enfrentar um rinoceronte em
pleno Coliseu Emiacutelia inventa um plano para tirar todo mundo daquela encrenca e retornar ao Siacutetio
Cf LOBATO 2013 5 HURT C Nero fiddles while Trump burns The Washington Times Nova Iorque 18 set 2018
Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwwashingtontimescomnews2018nov18nero-
fiddles-while-trump-burns Acesso em 02 set 2019 6 ADDIS F Fiddling while America burns Trump is todayrsquos emperor Nero CITYAM London
17 set 2018 Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwcityamcomfiddling-while-america-burns-trump-todays-emperor-nero Acesso em 02 set 2019 Em abril de 2018 o
classicista Freudenburg publicou um artigo intitulado Donald Trump and Romersquos Mad Emperors
no jornal online Common Dreams em que discute essa associaccedilatildeo entre Donald Trump e Nero Cf
httpswwwcommondreamsorgviews20180429donald-trump-and-romes-mad-emperors 7 PRATES J P Nero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar incecircndios Carta
Capital Satildeo Paulo 29 de ago 2019 Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em
httpswwwcartacapitalcombropiniaonero-brasileiro-bolsonaro-joga-gasolina-em-vez-de-
apagar-incendios Acesso em 30 ago 2019 8 SILVA B da Bolsonaro imita Nero Miacutedia Ninja Satildeo Paulo 30 ago 2019 Poliacutetica
Reportagem disponiacutevel em httpsmidianinjaorgbeneditadasilvabolsonaro-imita-nero Acesso
em 01 set 2019 9 STRECKER M Bolsonaro queima o Brasil para o mundo Istoeacute Satildeo Paulo 30 ago 2019
Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em httpsistoecombrbolsonaro-queima-o-brasil-para-o-
mundo Acesso em 01 set 2019
18
semelhantes agraves atribuiacutedas ao soberano ndash ou seja os meios de comunicaccedilatildeo
associam Nero a poliacuteticos na tentativa de desqualificar estes uacuteltimos10
Essa desqualificaccedilatildeo pode ocorrer segundo Faversani de trecircs formas A
primeira ndash e a mais empregada ndash eacute a acusaccedilatildeo de os governantes serem vaidosos
em excesso e cegos perante a falta de talentos que os aduladores lhes atribuem
fato que produz um estadista com o ego demasiadamente inflado A segunda eacute o
ataque a condutas do proacuteprio governante sobretudo agravequelas de destruiccedilatildeo material
ou abstrata de patrimocircnios ou valores A terceira eacute a menccedilatildeo agrave tirania ou uma
combinaccedilatildeo desta com alguns dos crimes imperiais11
Independentemente da
desqualificaccedilatildeo escolhida uma questatildeo eacute recorrente os usos de Nero possibilitam
uma nova interpretaccedilatildeo do passado e uma anaacutelise ineacutedita do presente O problema
historiograacutefico eacute que esses usos retiram o princeps do seu contexto original e
colocam-no em um cenaacuterio permeado por esquemas preexistentes e selecionados
para criar a imagem de um soberano cruel Em outras palavras sua imagem eacute
sempre relembrada de maneira que as menccedilotildees positivas a ele satildeo esquecidas e as
negativas satildeo mantidas agravadas eou acrescidas de elementos novos
A constante retomada de Nero ao longo de seacuteculos gera um efeito
interessante de se observar o de sua familiarizaccedilatildeo entre os indiviacuteduos mesmo
entre a ampla parcela da populaccedilatildeo que nunca recebeu uma educaccedilatildeo erudita com
grande contato com a literatura claacutessica Nero eacute simultaneamente o imperador
romano distante no tempo e um personagem atemporal de caraacuteter traacutegico capaz
de accedilotildees monstruosas As retomadas agrave sua imagem tendem a mesclar o
personagem histoacuterico com outros personagens que agiram como se fossem Nero ndash
os novos Neros ndash ou com o Nero heroacutei traacutegico atemporal que se combina com
aquele histoacuterico de forma indissociaacutevel Assim Nero estaacute no passado mas natildeo
estaacute aprisionado nele podendo reaparecer a qualquer momento e encarnar o anti-
heroacutei em alguma de nossas muitas trageacutedias contemporacircneas
Essas apropriaccedilotildees contemporacircneas do imperador ndash pouco rigorosas do
ponto de vista historiograacutefico mas usuais e compreendidas pelo grande puacuteblico ndash
fomentaram a nossa curiosidade em verificar como as fontes literaacuterias da
10
Em 2020 Faversani publicou um artigo na revista Histoacuteria da Historiografia intitulado Tirano
Louco e Incendiaacuterio BolsoNero Anaacutelise da Constituiccedilatildeo da Assimilaccedilatildeo entre o Presidente da
Repuacuteblica do Brasil e o Imperador Romano como ldquoAllelopoiesisrdquo no qual discute perspicazmente
essa relaccedilatildeo midiaacutetica entre Jair Bolsonaro e Nero 11
FAVERSANI 2020 p 377
19
Antiguidade o representavam Apoacutes algumas leituras notamos que a loacutegica se
repete os relatos criacuteticos se sobrepotildeem aos elogiosos com a maior parte das
narrativas descrevendo-o como um monstro Em certos momentos os autores
claacutessicos fornecem informaccedilotildees falsas para apoiar essa imagem dele e omitem
dados que possam contradizecirc-la em outros apresentam as accedilotildees do soberano fora
de contexto a fim de que seu significado original seja obscurecido ou entendido
apenas com dificuldade Portanto percebemos que na documentaccedilatildeo antiga em
termos da memoacuteria do imperador o ldquomaurdquo perpetuamente domina
Depois de refletirmos sobre os usos midiaacuteticos do princeps e lermos o
corpus textual do passado entendemos que a imagem do Nero incendiaacuterio e
assassino comeccedilou a ser criada na Antiguidade sendo retomada por geraccedilotildees
futuras a partir de debates poliacuteticos eou de representaccedilotildees artiacutesticas12
Essas
reaproximaccedilotildees transformaram o soberano em um personagem tiracircnico sem
paralelos contribuindo para o desenvolvimento e a durabilidade de uma tradiccedilatildeo
negativa que acabou apagando ndash quase completamente ndash qualquer traccedilo positivo
desse imperador ou do seu governo
Eacute a construccedilatildeo de tal tradiccedilatildeo na Antiguidade que investigaremos nesta
tese ndash ou se usarmos a expressatildeo do nosso tiacutetulo as Metamorfoses de Nero A
palavra metamorfose remete agrave obra homocircnima do poeta Oviacutedio escrita no iniacutecio
do seacuteculo I que traz descriccedilotildees de mutaccedilotildees incomuns como as de homens em
plantas animais rios pedras e em outros elementos Essas mutaccedilotildees satildeo relatadas
por Oviacutedio de uma forma que muito nos interessa aqui atraveacutes de uma narrativa
pautada na oposiccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e permanecircncia isto eacute de uma histoacuteria
que traz os traccedilos dos indiviacuteduos existentes antes das transformaccedilotildees e que depois
de modificados permaneceram na nova forma13
Tal procedimento nos ajuda a
compreender como as representaccedilotildees literaacuterias de Nero se consolidaram
negativamente tivemos diversas histoacuterias sobre ele que foram contadas (e
modificadas) ao longo do tempo mas que sempre mantiveram certa imagem
negativa contiacutenua
No nosso caso em especiacutefico trabalharemos com a tradiccedilatildeo literaacuteria
Decidimos lidar apenas com ela porque de todas as tradiccedilotildees existentes como a
monetaacuteria a iconograacutefica ou a epigraacutefica ela a nosso ver eacute a mais longa
12
Cf REA TOMEI 2011 13
CARVALHO 2010 p 19
20
contiacutenua e dominante influenciando na posteridade de forma mais determinante
do que as culturas material ou epigraacutefica na edificaccedilatildeo de outras tradiccedilotildees
Ademais acreditamos que as diferentes linguagens se comunicam de alguma
maneira mas tambeacutem guardam certa autonomia Por exemplo as imagens
literaacuterias e monetaacuterias de Nero natildeo podem ser entendidas como desconectadas
pois dialogam mas o fazem por uma miriacuteade de canais que natildeo permitem uma
comparaccedilatildeo direta e simples Logo sem negar que haja pontos de contato cada
forma de representaccedilatildeo cria uma tradiccedilatildeo proacutepria que precisa ser compreendida
em suas particularidades inclusive no que tange agrave cronologia
Dito isso eacute importante esclarecer o que concebemos como tradiccedilatildeo A
palavra tradiccedilatildeo adveacutem do vocaacutebulo latino traditio o qual de acordo com o
Oxford Latin Dictionary (OLD) possui dois significados i) a) ato de entregar a
entrega de bens posses etc b) a renuacutencia de pessoas territoacuterios etc ii) a) a
transmissatildeo de conhecimento ensino etc b) a entrega do conhecimento um item
de conhecimento tradicional crenccedila etc14
A segunda definiccedilatildeo eacute a que mais se
aproxima daquilo que pensamos por tradiccedilatildeo ou seja a passagem de um saber
para um indiviacuteduo ou grupo em tempos presentes ou futuros Nesse acircmbito
concordamos com Lerer quando afirma que a palavra traz consigo um sentido de
poder e controle uma espeacutecie de personificaccedilatildeo da autoridade Para o autor a
obra literaacuteria necessita ser lida como agente de poder como objeto que pode
legitimar ou deslegitimar governos e governantes15
Eacute dentro dessa perspectiva
que compreenderemos a prevalecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero
Nesse aspecto examinaremos a forma pela qual os escritores claacutessicos
controlaram a imagem do princeps persuadindo os leitores futuros a aceitarem a
figura de um monstro16
Ao fazecirc-lo focaremos na anaacutelise dos modelos
empregados por eles para comporem seus retratos do soberano Esses retratos
obviamente natildeo nasceram como criaccedilatildeo puramente ficcional dos autores eles
vieram de eventos testemunhados pelos proacuteprios autores ou por pessoas com as
quais eles conviveram aleacutem de narrativas tambeacutem Estas uacuteltimas se inseriam em
14
OLD 1968 p 1956 15
LERER 2016 p 2 16
Nesta tese empregaremos o conceito de imagem utilizado por Pesavento (2004 p 85-87) em
seu livro Histoacuteria amp Histoacuteria Cultural ldquorepresentaccedilotildees do mundo para serem vistasrdquo que possuem
uma ldquo[] funccedilatildeo epistecircmica de dar a conhecer algo uma funccedilatildeo simboacutelica de dar acesso a um
significado e uma esteacutetica de produzir sensaccedilotildees e emoccedilotildees no espectadorrdquo
21
diversas tradiccedilotildees jaacute constituiacutedas fixando uma grade hegemocircnica de leitura e
escrita que por sua vez era mobilizada para a inserccedilatildeo de novos ldquoretratosrdquo17
Estabelecidos esses pressupostos comeccedilamos a desenvolver nossa
pesquisa E natildeo havia ponto de partida melhor do que a busca pelo nascimento
dessa grade hegemocircnica de interpretaccedilatildeo sobre o imperador Eacute consenso entre os
pesquisadores contemporacircneos que a origem proveacutem dos trabalhos de trecircs autores
Taacutecito (AnnalesAnais livros 13-16) Suetocircnio (De Vita CaesarumVida dos Doze
Ceacutesares) e Diatildeo Caacutessio (Ῥωμαϊκὴ ἹστορίαHistoria Romana livros 61-63) cujas
obras foram compostas entre a primeira metade do seacuteculo II e a primeira metade
do seacuteculo III18
A leitura delas nos permite identificar criacuteticas acerca do princeps
ldquo[] Nero estendeu seu reinado e crimes por muitos anos []rdquo19
ldquoprostituiu seu
proacuteprio corpo a tal ponto que quando praticamente todas as partes [] estavam
maculadas ele concebeu uma praacutetica nova e sem precedentes []rdquo20
e ldquoele se
entregou a muitas accedilotildees licenciosas tanto em casa quanto pela cidade de noite e
de dia []rdquo21
As trecircs obras satildeo as grandes fontes responsaacuteveis pela cristalizaccedilatildeo da
figura do Nero tirano no imaginaacuterio ocidental por meio da repeticcedilatildeo de elementos
nelas presentes associados aos novos contextos a que se dirigiam22
Tal ponto eacute
fundamental para nosso estudo as acusaccedilotildees contra o soberano natildeo satildeo simples
repeticcedilotildees feitas ao longo do tempo e sim elaboraccedilotildees apresentadas com base em
elementos comuns formulados de um modo novo Contudo essas trecircs fontes ndash e
as que derivam delas ndash natildeo satildeo as uacutenicas a tratarem do princeps Existem outros
textos tatildeo importantes quanto esses e muito mais proacuteximos temporalmente do
objeto que analisam mas que natildeo satildeo tatildeo considerados pelos claacutessicos Exemplos
17
Aqui eacute fundamental especificarmos o que entendemos como retrato conceito definido por Azevedo (2012 p 25) a palavra deriva do vocaacutebulo latino retraho cujo significado eacute ldquoretirarrdquo
pois os autores antigos sobretudo Taacutecito ldquoretiravamrdquo argumentos de pessoas ou de
acontecimentos que lhe eram uacuteteis para construir a representaccedilatildeo de personagens ou de situaccedilotildees 18
A menos que se indique o contraacuterio todas as datas desta tese satildeo referentes a depois do
nascimento de Cristo (dC) 19
[] ut multos post[ea] annos Nero imperium et scelera continuaverit (Tac Ann 1412) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e
Yardley (2008 p 310) 20
suam quidem pudicitiam usque adeo prostituit ut contaminatis paene omnibus membris []
(Suet Nero 29) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs
de Edwards (2000 p 210) 21
καὶ πολλὰ μὲν οἴκοι πολλὰ δὲ καὶ ἐν τῇ πόλει [] (Dio 6181) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 53) 22
JOLY 2005 p 112
22
satildeo o De Clementia (Sobre a Clemecircncia) escrito por Secircneca e as Eclogae
(Bucoacutelicas) redigidas por Calpuacuternio Siacuteculo ambos compostos na segunda metade
do seacuteculo I por contemporacircneos ao governo de Nero Nesses documentos
observamos um quadro bem diferente temos elogios agrave bondade imperial ldquoisto
teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti [Nero] mas encenada de
vez em quandordquo23
aleacutem de enaltecimentos agrave era de paz instaurada no Impeacuterio
ldquo[] aquele que o nosso mundo governa com a sua divindade propiacutecia e a paz
perpeacutetua manteacutemrdquo24
Vale adicionar que as fontes contemporacircneas positivas com
relaccedilatildeo ao soberano e ao seu Principado tornaram-se depois pouco confiaacuteveis
vistas como marcadas pela adulaccedilatildeo e pelo temor ao tirano Esse tipo de leitura
aliaacutes eacute construiacutedo desde a Antiguidade como mostra Taacutecito nos Annales
As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram
distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando eles morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes25
Ao redigirem suas obras os autores retomavam elementos de fontes
anteriores recombinando-os Os aspectos positivos perdiam espaccedilo nas narrativas
e os negativos tornavam-se cada vez mais destacados Nesse processo Taacutecito
Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ocupam um lugar importante para a produccedilatildeo de uma
visatildeo negativa do princeps ainda que preservem elementos positivos Ora o
Taacutecito que fala que Nero cometeu ldquocrimes por muitos anosrdquo eacute o mesmo que diz
que ele vinha
[] seguindo demandas persistentes do povo que vinha acusando os publicanos de excessos Nero considerou se deveria ordenar a suspensatildeo de todos os impostos indiretos e fazer disso o seu melhor presente para a raccedila humana26
23
difficile hoc fuisset si non naturalis tibi ista bonitas esset [] (Sen Cl 116) Traduccedilatildeo de
Braren (2013 p 39) 24
[] qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore pacem laetus et
augusto felix arrideat ore (Calp Ecl 484-86) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 25
Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae postquam
occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 11) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa
com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 4) 26
eodem anno crebris populi flagitationibus immodestiam publicanorum arguentis dubitavit Nero
an cuncta vectigalia omitti iuberet idque pulcherrimum donum generi mortalium daret sed
impetum eius multum prius laudata magnitudine animi [] (Tac Ann 1350) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p
298)
23
O Suetocircnio que denuncia a ldquoprostituiccedilatildeordquo eacute o mesmo que afirma Nero
ldquo[] declarou que governaria de acordo com os princiacutepios de Augusto e natildeo
perdeu nenhuma oportunidade de demonstrar sua generosidade clemecircncia ou
afabilidaderdquo27
E o Diatildeo Caacutessio das ldquoaccedilotildees licenciosasrdquo eacute aquele que diz ldquo[] na
verdade ele agora se conduzia com mais prudecircncia do que nuncardquo28
A percepccedilatildeo dessas aparentes incoerecircncias nas fontes nos colocou
simultaneamente diante de uma afirmaccedilatildeo ndash jaacute realizada ndash e de um problema de
pesquisa Repetiremos a afirmaccedilatildeo a tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e sobre seu
Principado consolidou-se na Antiguidade com os escritos de Taacutecito Suetocircnio e
Diatildeo Caacutessio29
O problema mas o que de fato ocasionou essa consolidaccedilatildeo
Nossa hipoacutetese eacute a de que a tradiccedilatildeo negativa se consolidou a partir de
julgamentos sobre Nero e seu governo feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios
especiacuteficos que por mudarem ao longo do tempo geraram um processo de
reelaboraccedilatildeo da memoacuteria o qual se compotildee a partir da mescla das seleccedilotildees feitas
nesses diversos contextos combinando fontes produzidas em diferentes
temporalidades e contextos30
Tal processo gerou o apagamento dos traccedilos
positivos ndash inseridos no iniacutecio dessa tradiccedilatildeo e mantidos ainda que com peso
menor em periacuteodos posteriores ndash e a manutenccedilatildeo dos negativos Assim cada
eacutepoca produziu um novo soberano condizente com seus proacuteprios valores e
dilemas sem que ele fosse inteiramente novo pois dialogava com essa cada vez
mais longa tradiccedilatildeo ndash um novo Nero que ao mesmo tempo transforma os Neros
anteriores reforccedilando mais e mais os aspectos negativos Buscaremos mostrar
tambeacutem que as representaccedilotildees de Nero natildeo satildeo livres manipulaccedilotildees a cargo de
cada novo autor porque i) dependem da criaccedilatildeo de um regime de
verossimilhanccedila e ii) remetem a uma tradiccedilatildeo anterior (toacutepicas gerais e
especiacuteficas estabelecidas sobre o princeps) que restringe tudo aquilo que se possa
27
[] ex Augusti praescripto imperaturum se professus neque liberalitatis neque clementiae ne
comitatis quidem exhibendae ullam occasionem omisit (Suet Nero 10) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 199) 28
οὔτε ἐνεωτέρισέ τι οὔτε ᾐτιάθη (Dio 62236) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 128) 29
ldquoCerca de vinte e cinco autores antigos natildeo cristatildeos tem algo de valor a dizer sobre Nero mas
o grosso da imagem que temos vem de apenas trecircs deles os historiadores Taacutecito e Diatildeo Caacutessio e o
bioacutegrafo Suetocircniordquo (CHAMPLIN 2005 p 37) 30
Adotaremos o conceito de memoacuteria formulado por Le Goff (2003 p 471) ldquoa memoacuteria na qual
cresce a Histoacuteria que por sua vez a alimenta procura salvar o passado para servir ao presente e ao
futurordquo
24
afirmar de novo31
Verificaremos ainda como essa tradiccedilatildeo modificada ao longo
de seacuteculos produziraacute um Nero que em certa medida jaacute natildeo pertence mais a
nenhuma dessas temporalidades mas as perpassa compondo um modelo
atemporal de mau governante32
Para o exame da hipoacutetese perseguiremos cinco objetivos especiacuteficos os
quais natildeo devem ser tomados como estanques e sim como articulados ganhando
maior ou menor pesos na anaacutelise segundo os elementos oferecidos pelas fontes e
pelos diferentes contextos estudados Assim pretenderemos i) identificar
representaccedilotildees sobre Nero nos textos produzidos tanto na contemporaneidade
quanto na posteridade de seu governo ii) reconhecer os contextos e os modelos
empregados pelos autores antigos para moldarem suas representaccedilotildees do
princeps iii) identificar similitudes e diferenccedilas mudanccedilas e permanecircncias entre
essas mesmas representaccedilotildees iv) compreender a relaccedilatildeo entre por um lado os
interesses e os valores daqueles que produziram as fontes sobre o soberano e
sobre o seu governo e por outro os interesses e os valores daqueles que as
julgaram e finalmente v) identificar como ao longo do tempo as criacuteticas natildeo
apenas se sucederam mas retiraram as caracteriacutesticas individuais de Nero
transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua realidade
histoacuterica e consequentemente um modelo atemporal de mau governante
Tanto a hipoacutetese quanto os objetivos seratildeo enquadrados na baliza
cronoloacutegica fixada entre os seacuteculos I e III que nos parece suficiente para perceber
a dinacircmica que operou a construccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo Bem sabemos como jaacute foi
destacado que essa tradiccedilatildeo natildeo se cristaliza e nem se manteacutem inalterada do
seacuteculo III em diante A proposta de situar o recorte aiacute adveio da constataccedilatildeo de
que parte relevante da tradiccedilatildeo literaacuteria surgiu e se consolidou nesse intervalo de
tempo comeccedilando ndash entre as obras que chegaram ateacute noacutes ndash com a publicaccedilatildeo da
Apocolocyntosis em 54 e terminando com a Historia Romana de Diatildeo Caacutessio
31
Utilizaremos o conceito de representaccedilatildeo postulado por Chartier (2002 p 165) ldquorepresentar eacute
pois fazer conhecer as coisas lsquopela pintura de um objetorsquo lsquopelas palavras e gestosrsquo lsquopor algumas
figuras por marcasrsquo ndash como os enigmas os emblemas as faacutebulas as alegorias Representar no
sentido juriacutedico e poliacutetico eacute tambeacutem lsquomanter o lugar de algueacutem ter em matildeos sua autoridadersquordquo
Esse uacuteltimo sentido eacute o que mais se aproxima da nossa tese pois concebemos as representaccedilotildees
em conexatildeo direta com poliacutetica e poder como produtoras e produto de praacuteticas culturais de
ordenaccedilotildees simboacutelicas que permitem apropriaccedilotildees e significaccedilotildees sobre a realidade Em suma
entendemo-las como construccedilotildees sociais da realidade em que os sujeitos fundamentam suas visotildees
de mundo a partir dos seus interesses e do seu grupo (CHARTIER 1990 p 17) 32
Cabe frisar que natildeo estaacute no escopo desta tese alcanccedilar a contemporaneidade por significar a
criacutetica de material muito extenso
25
por volta de 230 Eacute dentro dessa cronologia que investigaremos as nossas fontes
cuja divisatildeo dar-se-aacute em trecircs blocos fontes contemporacircneas a Nero (54-69)
fontes da dinastia Flaviana (69-96) fontes da dinastia Antonina e dos Severos
(97-235) O foco nesses trecircs pontos de observaccedilatildeo eacute como qualquer outro
arbitraacuterio pois como jaacute indicamos essa tradiccedilatildeo se constroacutei com base em
continuidades e rupturas sendo qualquer fronteira riacutegida e clara impossiacutevel de ser
percebida Contudo isso natildeo significa que os blocos se constituiacuteram sem criteacuterios
Esperamos demonstrar que eles constituem trecircs momentos distinguiacuteveis e
relevantes para a comparaccedilatildeo e percepccedilatildeo da dinacircmica que eacute objeto desse estudo
Em relaccedilatildeo ao primeiro bloco vale destacar que a sua dataccedilatildeo se encerraraacute
em 69 e natildeo em 68 (ano do suiciacutedio de Nero) porque os imperadores Oto e
Viteacutelio ainda tentaram reabilitar positivamente a imagem do princeps Todavia
depois de 69 com a derrota dos exeacutercitos de Viteacutelio pelos de Vespasiano e a
consolidaccedilatildeo desse imperador no poder a possibilidade de uma reabilitaccedilatildeo plena
da memoacuteria de Nero foi claramente perdida Vespasiano revogou a liberdade
concedida agrave Greacutecia por Nero abriu a Domus Aurea ao puacuteblico e dedicou o
Colosso de Nero ao Sol aleacutem de construir o Anfiteatro Flaacutevio como uma clara
marca de contestaccedilatildeo ao modelo urbano de Nero33
Enfim com a chegada da nova
dinastia Flaviana e a ascensatildeo de uma moralidade mais rigorosa e austera
juntamente agrave publicaccedilatildeo de obras como a trageacutedia Octauia (Otaacutevia) de Pseudo-
Secircneca a reputaccedilatildeo monstruosa do soberano foi se tornando dominante34
Desse
modo nosso primeiro bloco elencaraacute as seguintes fontes Apocolocyntosis
(Apocolocintose) e De Clementia escritas por Secircneca Eclogae redigidas por
Calpuacuternio Siacuteculo e Pharsalia (Farsaacutelia) por Lucano
Ao seu turno o segundo bloco o das fontes da dinastia Flaviana marcado
como vimos por um momento de negaccedilatildeo de uma visatildeo positiva de Nero
abrangeraacute a Octauia a Naturalis Historia (Histoacuteria Natural) de Pliacutenio o Velho
o Bellum Judaicum (Guerras Judaicas) e as Antiquitates Judaicae (Antiguidades
Judaicas) de Flaacutevio Josefo o Liber Spectaculorum (Livro dos Espetaacuteculos) e os
Epigrammata (Epigramas) de Marcial e as Siluae (Silvas) de Estaacutecio
33
ROSSO 2008 p 43-78 34
CHAMPLIN 2005 p 9
26
O terceiro bloco o dos Antoninos e dos Severos pode ser bem
representado pela maacutexima de Taacutecito sine ira et studio35 ndash seria assim um
periacuteodo em que os autores jaacute estariam livres de oacutedios recentes (ira) e igualmente
do impulso da adulaccedilatildeo (studio) Cabe destacar que o findar do governo flaviano
levou agrave ascensatildeo de principes que se representavam como diferentes de
Domiciano figurado nos textos da eacutepoca como o tirano acabado36
Nesse
instante Nero natildeo foi mais o tirano fundamental a ser repudiado ndash como foi sob
os Flaacutevios ndash mas integrou um repertoacuterio a ser lido sob um novo olhar No entanto
percebe-se nesse terceiro momento a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa
representada nos Annales escritos por Taacutecito no De Vita Caesarum composto
por Suetocircnio e na Historia Romana elaborada por Diatildeo Caacutessio Sabemos que
nesse periacuteodo houve a produccedilatildeo de outras obras que talvez ajudariam a ampliar o
estudo da tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e seu Principado a exemplo das Epistulae
(Cartas) de Pliacutenio o Jovem das Saturae (Saacutetiras) de Juvenal e das Vitae
Parallelae (Vidas Paralelas) de Plutarco Poreacutem como o nosso interesse eacute
investigar a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo manteremos o foco apenas nos trecircs autores
jaacute mencionados
O corpus textual escolhido engloba obras de gecircneros literaacuterios distintos
como o satiacuterico o biograacutefico o eacutepico o traacutegico e o histoacuterico Isso nos permite
conhecer diversos registros sobre o soberano e sobre seu governo37
No entanto eacute
importante enfatizar que natildeo nos aprofundaremos na avaliaccedilatildeo dos gecircneros e nos
problemas de constituiccedilatildeo de cada elemento da tradiccedilatildeo textual Decerto sabemos
que uma histoacuteria deva ser lida de forma diferente de uma biografia e em vista
disso faremos um apontamento das principais caracteriacutesticas dos gecircneros quando
seus aspectos forem relevantes para nossa anaacutelise Entretanto o aprofundamento
no gecircnero de cada fonte exigiria a criaccedilatildeo de uma nova pesquisa com uma
organizaccedilatildeo distinta da documentaccedilatildeo o que mudaria o foco da tese
A catalogaccedilatildeo das referecircncias a Nero nas fontes seraacute realizada a partir de
um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias 1) Nero infausto 2)
35
ldquoSem ira e nem afeiccedilatildeordquo (Tac Ann 113) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 36
GALIMBERTI 2016 p 92-108 37
Concordamos com Doody (2010 p 6) ldquogecircnero eacute uma matriz poderosa para a compreensatildeo de
textos ateacute porque configura meios alternativos de relacionar um texto a outro diferentes daquele
baseado exclusivamente na contingecircncia histoacuterica O gecircnero eacute importante porque fornece aos
leitores um meio de relacionar um texto a outro atraveacutes do tempo e do espaccedilo []rdquo
27
Nero prodigioso 3) Nero fratricida 4) Nero matricida 5) Nero uxoricida 6)
Nero artista 7) Nero vaidoso 8) Nero cruel 9) Nero incendiaacuterio 10) Nero
antiprinceps 11) Nero construtor e por uacuteltimo 12) Nero anticristo Todas elas
seratildeo examinadas dentro dos 26 episoacutedios da vida do soberano recorrentemente
citados nas fontes isto eacute daqueles que a nosso ver mais influenciaram na
construccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa a saber o nascimento de Nero a adoccedilatildeo dele por
Claacuteudio o seu casamento com Otaacutevia a sua ascensatildeo o conflito entre ele e os
partas o assassinato de Britacircnico a realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro erguido por
Nero o assassinato de Agripina a promoccedilatildeo dos jogos Juvenalia a promoccedilatildeo da
primeira ediccedilatildeo dos Neronia a rebeliatildeo de Boudica na Britacircnia o casamento de
Nero com Popeia Sabina o divoacutercio o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia a
apresentaccedilatildeo artiacutestica puacuteblica de Nero em Naacutepoles o incecircndio de Roma o iniacutecio
da construccedilatildeo da Domus Aurea a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos a Conspiraccedilatildeo de
Pisatildeo a promoccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo dos Neronia o assassinato de Popeia o
casamento de Nero com Estatiacutelia Messalina a visita de Tiridates a Roma a turnecirc
artiacutestica de Nero pela Greacutecia a revolta de Vindex e por fim o suiciacutedio de Nero
A anaacutelise dos episoacutedios ocorreraacute em conjunto com a sistematizaccedilatildeo do
complexo categorial de modo que buscaremos alocar os primeiros no segundo
Por exemplo Secircneca no De Clementia relata o episoacutedio da ascensatildeo do princeps
como algo positivo o que nos permitiraacute alocaacute-lo na categoria Nero prodigioso
Em contrapartida Pliacutenio o Velho em sua Naturalis Historia descreve o mesmo
evento como algo negativo o que nos permitiraacute inseri-lo na categoria Nero
infausto Eacute certo que os dois textos pertencem a temporalidades distintas sendo
um contemporacircneo ao soberano e outro posterior Entretanto como
investigaremos a tradiccedilatildeo literaacuteria seraacute imprescindiacutevel a comparaccedilatildeo entre obras
contextualmente diferentes pois eacute exatamente isso que possibilitaraacute a verificaccedilatildeo
da mudanccedila nos julgamentos sobre Nero
Delineada a metodologia de trabalho falta apontarmos as nossas opccedilotildees
teoacutericas Utilizaremos trecircs conceitos o de forma (focircrma) o de allelopoiesis e o de
inuentio (invenccedilatildeo) O primeiro nos auxiliaraacute na organizaccedilatildeo da tese
fundamentando a divisatildeo dos capiacutetulos e os outros seratildeo empregados na leitura
do corpus textual
28
Eacute no artigo Uma Morfologia da Histoacuteria As Formas da Histoacuteria Antiga
publicado em 2003 que Guarinello explica o conceito de forma (focircrma) Nesse
trabalho o autor esclarece que os historiadores constroem formas para pensarem o
passado conferirem-lhe sentido e o divulgarem aos seus leitores As formas
seriam generalizaccedilotildees artificiais criadas para atribuir significado ao passado
instituindo uma sensaccedilatildeo de realidade e de completude Em outras palavras as
formas seriam as maneiras por meio das quais os historiadores tornam o passado
inteligiacutevel no presente Sua fixaccedilatildeo surge a partir do instante em que os
pesquisadores organizam as informaccedilotildees encontradas na documentaccedilatildeo e impotildeem
contextos para lhes darem loacutegica38
Como sabemos as fontes satildeo um fundamento primaacuterio para o exame do
passado o alicerce com o qual se pode confirmar ou negar uma hipoacutetese E os
historiadores estatildeo sempre atribuindo uma ordem a elas unindo-as ou separando-
as segundo as teorias defendidas por eles Essas teorias estatildeo ligadas ao modo
como cada estudioso escreve a Histoacuteria seleciona os fatos pertinentes e os coloca
em associaccedilatildeo Mesmo quando impliacutecitas satildeo modos de transformar as evidecircncias
em interpretaccedilotildees do passado e de propor reconstruccedilotildees especiacuteficas da Histoacuteria
Por exemplo se um historiador julga os episoacutedios econocircmicos decisivos ele
escolheraacute dados com esses vieses e os ordenaraacute de um jeito que decirc ldquoformardquo agrave sua
anaacutelise39
Portanto a Histoacuteria eacute um jogo interpretativo entre teorias e fontes feito
de generalizaccedilotildees ndash as formas ndash que satildeo aceitas como vaacutelidas pelos escritores e
seus leitores E tais formas satildeo necessaacuterias porque as fontes ldquo[] satildeo sempre
singulares e do ponto de vista de um historiador natildeo tecircm sentido em si
mesmasrdquo40
Podemos dizer entatildeo que as formas a par dos meacutetodos e das teorias
integram qualquer reconstruccedilatildeo histoacuterica sendo impossiacutevel para um historiador
entender o passado sem usaacute-las Complementamos esse raciociacutenio com uma
valorosa afirmaccedilatildeo de Marc Bloch
38
GUARINELLO 2003 p 42 39
GUARINELLO 2003 p 44 40
GUARINELLO 2003 p 45
29
A realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de
linhas de forccedila todas convergindo para o mesmo fenocircmeno A escolha que fazemos entre elas pode muito bem se fundar em caracteriacutesticas [] bastante dignas de atenccedilatildeo mas natildeo deixa de se tratar sempre de uma escolha41
No nosso caso escolhemos quatro formas para orientar os capiacutetulos da
tese Neros recentes Nero originaacuterio (54-69) Nero transformado (69-96) e Nero
consolidado (97-235) A primeira forma seraacute constituiacuteda pelos debates
historiograacuteficos contemporacircneos a respeito do imperador e as demais seratildeo
formadas pelas fontes histoacutericas produzidas em tempos e lugares diferentes por
agentes sociais distintos e com propoacutesitos variados mas que colocadas em
conjunto criaratildeo uma mesma unidade de sentido
O segundo conceito adotado seraacute o de allelopoiesis A consolidaccedilatildeo da
tradiccedilatildeo literaacuteria negativa neroniana pode ser bem capturada por esse termo
derivado do grego allelon (ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriarrdquo) No artigo Imperial
Interpretations The Imperium Romanum as Category of Political Reflection
Hausteiner Huhnholz e Walter afirmam que o conceito traz uma relaccedilatildeo de
reciprocidade isto eacute implica que a constituiccedilatildeo de um domiacutenio de recepccedilatildeo
ocorre em relaccedilatildeo a um domiacutenio de referecircncia sendo este uacuteltimo moldado e
construiacutedo atraveacutes do primeiro e vice-versa42
Tal definiccedilatildeo eacute esclarecida por Faversani no artigo Entre a Repuacuteblica e o
Impeacuterio Multiplicidade de Fronteiras Aiacute o autor explica que a cada instante em
que produzimos uma nova interpretaccedilatildeo sobre algo esse algo deixa de ser o que
era pois estabelecemos uma nova maneira de ver que modifica o fenocircmeno e ao
mesmo tempo cria novas modulaccedilotildees para os diversos modos de vecirc-lo logo cada
vez que tratamos desse algo o modificamos E modificamos natildeo soacute o modo como
o entendemos mas tambeacutem como achamos que os outros deveriam tecirc-lo visto e
assim modificamos o que ele eacute para noacutes (desejando que isso mude o que ele eacute
41
BLOCH 2002 p 156 42
HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 11-16 O artigo dos trecircs autores eacute fruto do
Projeto A11 do Centro de Pesquisa Colaborativa 644 conhecido pelo nome Transformaccedilotildees da
Antiguidade O projeto vigorou entre 2005 a 2016 e foi sediado na Universidade de Humboldt O
foco das pesquisas repousava no papel constitutivo da Antiguidade no desenvolvimento do sistema
cientiacutefico e na autoconstruccedilatildeo cultural das sociedades europeias modernas Um dos seus resultados
mais positivos foi a formulaccedilatildeo do conceito de allelopoiesis o qual ainda hoje infelizmente eacute
pouco utilizado pela comunidade acadecircmica brasileira Informaccedilotildees disponiacuteveis em
httpswwwgeschichtehu-berlindeenforschung-und-projekte-en-
oldfoundmeddokumenteforschung-und-projektesfb-644 Acesso em 03 set 2019
30
para os outros ou que pelo menos modifique a forma como as pessoas se
propotildeem a vecirc-lo)43
Entatildeo ndash trazendo esse aspecto para a nossa tese ndash cada novo
entendimento produzido sobre Nero natildeo altera soacute o passado como tambeacutem a
proacutepria eacutepoca que o interpreta e a tradiccedilatildeo em questatildeo O passado natildeo determina o
presente nem o presente constroacutei o passado ambos satildeo produzidos de forma
simultacircnea e mediados por uma tradiccedilatildeo viva e dinacircmica aberta a novas
interpretaccedilotildees tanto quanto o passado e o presente que satildeo arbitrariamente
conectados por essas tradiccedilotildees e natildeo de forma direta Essa tradiccedilatildeo produz Neros
natildeo pertencentes apenas ao passado ou ao presente mas sim mesclados em
temporalidades e siacutenteses distintas as quais de um lado comunicam-se atraveacutes de
um repertoacuterio a ser reapropriado e reinterpretado de acordo com o surgimento de
novos eventos e quadros de interesse que possam mobilizar novas leituras quer
seja do passado quer seja do presente e de outro satildeo fundadas em uma criacutetica da
tradiccedilatildeo Portanto nossa tese natildeo examina de modo estanque o Nero do seu
proacuteprio tempo e sim pensa os diferentes Neros como uma tradiccedilatildeo que se
constitui reciprocamente em temporalidades diversas ou seja allelopoiesis44
O uacuteltimo conceito o de inuentio vincular-se-aacute aos elementos retoacutericos
empregados na caracterizaccedilatildeo de Nero e do seu Principado Em seu tratado
Rhetorica ad Herennium Ciacutecero explica que a inuentio era a primeira das cinco
partes componentes de um discurso retoacuterico inuentio (invenccedilatildeo) dispositio
(arranjo) elocutio (elocuccedilatildeo) memoria e actio (accedilatildeo)
Invenccedilatildeo eacute a concepccedilatildeo da mateacuteria verdadeira ou plausiacutevel que tornaria o caso convincente Arranjo eacute a ordem e distribuiccedilatildeo do
assunto deixando claro o lugar para o qual cada coisa deve ser atribuiacuteda Estilo eacute a adaptaccedilatildeo de palavras e frases adequadas ao assunto planejado A memoacuteria eacute a retenccedilatildeo firme na mente do assunto das palavras e do arranjo A entrega eacute a regulaccedilatildeo elegante da voz do semblante e do gesto45
43
FAVERSANI 2013 p 149 44
FAVERSANI 2013 p 146-152 45
Oportet igitur esse in oratore inventionem dispositionem elocutionem memoriam
pronuntiationem Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium quae causam
probabilem reddant Dispositio est ordo et distributio rerum quae demonstrat quid quibus locis sit
conlocandum Elocutio est idoneorum verborum et sententiarum ad inventionem adcommodatio
Memoria est firma animi rerum et verborum et dispositionis perceptio Pronuntiatio est vocis
vultus gestus moderatio cum Venustate (Cic Rhet Her 123) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Caplan (1954 p 7)
31
Ou seja cabia ao orador reunir os argumentos que sustentavam seu caso
colocaacute-los na ordem mais eficaz encontrar as palavras certas para expressaacute-los
memorizar o discurso elaborar os gestos e o tom de voz que apoiariam a
comunicaccedilatildeo dos argumentos e proferir o discurso46
Em especiacutefico o objetivo da
invenccedilatildeo era a descoberta por parte do orador das ideias verdadeiras ou
verossiacutemeis que tornassem comprovaacutevel seu argumento e convencessem seus
ouvintes Reboul esclarece que se tratava de uma noccedilatildeo com duplo sentido de um
lado era o ldquoinventaacuteriordquo a detecccedilatildeo pelo orador de todos os argumentos ou
procedimentos retoacutericos disponiacuteveis para a construccedilatildeo do seu discurso e de
outro era a ldquoinvenccedilatildeordquo no sentido moderno a criaccedilatildeo de argumentos e de
instrumentos de prova a partir da articulaccedilatildeo daqueles elementos que compunham
um repertoacuterio de conhecimento geral Resumindo a invenccedilatildeo era o processo
minucioso de classificaccedilatildeo das maneiras pelas quais uma situaccedilatildeo poderia ser
analisada a fim de se identificarem todas as possiacuteveis linhas de argumento Em
funccedilatildeo dessa dupla articulaccedilatildeo Reboul afirma que o orador necessitava i)
dominar o tema do seu discurso por meio da leitura de tudo o que jaacute havia sido
escrito sobre ele ii) saber o gecircnero e as regras de composiccedilatildeo do seu discurso e
iii) conhecer a audiecircncia para a qual proferiria o seu discurso no intuito de
conseguir deleitaacute-la e convencecirc-la47
Estamos falando entatildeo de um conceito que
envolvia a construccedilatildeo de linhas de argumentaccedilatildeo e a busca de provas para a
construccedilatildeo de tais linhas ndash um conceito que envolvia segundo Ciacutecero ldquopersuadir
os ouvintes do curso desejadordquo48
Na praacutetica isso significa que cada autor antigo
ao desenvolver a inuentio representou o seu Nero a partir de uma ordenaccedilatildeo
proacutepria produzindo novos Neros (a partir dos Neros do passado) e encontrando
argumentos para apoiar julgamentos eou transmiti-los ao presente
A organizaccedilatildeo do texto da tese se distribui em quatro capiacutetulos aleacutem desta
introduccedilatildeo Os capiacutetulos de dois a quatro estaratildeo dispostos em diacronia e
sincronia O eixo diacrocircnico lidaraacute com as fontes e com os episoacutedios
cronologicamente posicionando-os em relaccedilatildeo aos eventos sociais poliacuteticos
econocircmicos e culturais de cada eacutepoca Ao seu turno o sincrocircnico investigaraacute a
46
STEEL 2009 p 79 47
REBOUL 2004 p 43-44 48
Cic Rhet Her 334
32
documentaccedilatildeo e os episoacutedios situando-os em relaccedilatildeo a eventos ocorridos em
temporalidades distintas
No primeiro capiacutetulo intitulado Neros recentes apresentaremos o debate
historiograacutefico moderno acerca dos retratos do princeps Ou seja examinaremos o
modo como os autores a noacutes contemporacircneos leram os relatos das fontes literaacuterias
problematizaram-nos ndash explicitamente ou natildeo ndash e elaboraram os seus proacuteprios
Neros Eacute importante notar que mesmo com a variedade de textos antigos
disponiacuteveis para o estudo de Nero hoje os escritores sempre recorrem de maneira
central a Taacutecito a Suetocircnio e a Diatildeo Caacutessio No segundo denominado Nero
originaacuterio (54-69) analisaremos o corpus textual produzido durante o governo do
soberano na tentativa de observarmos como ele foi representado em vida No
terceiro Nero transformado (69-96) investigaremos as fontes elaboradas no
contexto imediato agrave sua morte a fim de verificarmos de que maneira a ascensatildeo
de uma nova dinastia a Flaviana influenciaraacute nas suas representaccedilotildees No quarto
Nero consolidado (97-235) avaliaremos as narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo
Caacutessio buscando entender como eles se apropriaram dos retratos dos Neros do
passado e reelaboraram sua memoacuteria apagando seus traccedilos positivos e mantendo
eou cristalizando os negativos Por fim nas Consideraccedilotildees finais sintetizaremos
os argumentos discutidos no trabalho agrave luz das fontes examinadas
Com o desenvolvimento desta pesquisa almejamos oferecer contribuiccedilotildees
cientiacuteficas e sociais relevantes A priori ambicionamos cooperar cumulativamente
com a comunidade claacutessica de duas formas executando um exame cronoloacutegico
das fontes bem distinto dos jaacute realizados e propondo uma nova opccedilatildeo
metodoloacutegica para o estudo do Principado neroniano a partir de uma abordagem
sincrocircnica e tambeacutem de outra diacrocircnica o que talvez lance um novo olhar sobre
um tema muito debatido A posteriori pretendemos colaborar com a sociedade
brasileira e com os debates poliacuteticos que a compotildeem por meio da reflexatildeo
universal e transgeracional do que caracteriza um governante louco e tiracircnico Tal
debate infelizmente faz-se muito atual
Por fim gostariacuteamos de expor quatro questotildees teacutecnicas i) as autorias das
traduccedilotildees latinas e gregas dos textos antigos seratildeo sempre destacadas nas notas de
rodapeacute ii) as traduccedilotildees do inglecircs para o portuguecircs satildeo de nossa autoria tendo por
referecircncia as traduccedilotildees dos textos antigos latinos e gregos iii) as traduccedilotildees do
33
inglecircs para o portuguecircs das obras modernas tambeacutem satildeo de nossa autoria iv) esta
tese possui um apecircndice a saber uma cronologia com os episoacutedios mais
relevantes relacionados agrave vida de Nero e trecircs anexos a exemplo da aacutervore
genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia do mapa do Impeacuterio Romano durante o
governo de Nero e do mapa da Roma neroniana
34
Capiacutetulo 1 Neros recentes
Se existe um tema que parece ter sido amplamente explorado pelas fontes
da Antiguidade eacute o que se refere ao Principado de Nero Ceacutesar Augusto cuja
duraccedilatildeo compreendeu os anos de 54 a 68 Satildeo muito conhecidas as narrativas do
mundo greco-romano que consideraram esse periacuteodo como a encarnaccedilatildeo do
exagero da devassidatildeo e da crueldade Ceacutelebres satildeo as passagens que nos
informam como o soberano assassinou sua matildee Agripina envenenou o seu meio-
irmatildeo Britacircnico chutou sua esposa na eacutepoca graacutevida ateacute a morte e mandou
queimar a cidade de Roma49
Parece natildeo se ignorar mais nada acerca do princeps e de seu governo os
quais satildeo representados sob o signo da tirania Aliaacutes as narrativas da crueldade de
Nero romperam as fronteiras da Antiguidade podendo ser lidas na literatura
moderna foi esse imperador que serviu de inspiraccedilatildeo para a escrita do matriciacutedio
presente na famosa obra Hamlet de William Shakespeare50
A historiografia contemporacircnea tambeacutem acompanhou esse processo Ao
verificaacute-la observamos que amiuacutede o soberano eacute apresentado como um mau
imperador Por exemplo Mommsen em seu livro A History of Rome under the
Emperors alega que Nero era ldquoalheio aos assuntos de Estadordquo51
Rostovtzeff em
Histoacuteria de Roma afirma que o Principado de Nero assim como o de Caliacutegula
foi cruel e terriacutevel52
e Warmington em Nero Reality and Legend enfatiza a
incompetecircncia militar imperial53
Mas nem soacute de retratos negativos vive a pesquisa atual Diversas tentativas
de reabilitar a imagem de Nero total ou parcialmente jaacute foram feitas Uma das
mais radicais eacute a de Cardano que em sua autobiografia elaborada em 1642
49
Cf no Apecircndice A a cronologia da vida de Nero e no Anexo A a aacutervore genealoacutegica da
dinastia Juacutelio-Claacuteudia 50
Hamlet evoca a histoacuteria de Nero quando este pensa em matar sua matildee ldquoNero era um homem
grande de corpo Com um grande esqueleto E sua matildee era pequena Ele se perguntava desde
sempre Onde nela se encontrava tanto lugar Em um espaccedilo tatildeo limitado Em que ela tenha
podido o colocar no mundo Sem querer renunciar a seu projeto E tendo assim imaginado a
coisa seguinte Ele daacute a ordem que a abram em duas Ele assim teve que sofrer isso Por causa de
suas maacutes inclinaccedilotildees Ele olha sob o peito E descendo ao longo de todo o corpo Ele contempla
maravilhas sem nuacutemerordquo (SHAKESPEARE 2003 p 181) 51
MOMMSEN 2005 p 148 52
ROSTOVTZEFF 1983 p 198 53
WARMINGTON 1969 p 71-72
35
intitulada The Book of my Like argumenta que os termos usados pelos autores das
fontes para se referirem a Nero satildeo ldquorobustos rudes e irritantesrdquo54
Outra tentativa
conhecida eacute a obra The Life and Principate of the Emperor Nero composta por
Henderson em 1903 na qual o professor afirma que Nero natildeo confrontou o
Senado e nem rompeu com os costumes antigos55
Mais um estudo renomado eacute o
artigo Faut-il reacutehabiliter Lrsquoempereur Neacuteron redigido por Wankenne em 1981
em que o pesquisador sem desculpar o priacutencipe em todos os aspectos insiste nas
medidas louvaacuteveis tomadas por ele56
Tais esforccedilos reabilitativos foram muito importantes porque aleacutem de
recuperarem positivamente a figura de Nero revelaram as dificuldades existentes
em sua anaacutelise Os obstaacuteculos em geral estatildeo vinculados agrave deformaccedilatildeo dos fatos
e aos elementos fictiacutecios inseridos nas narrativas pelos escritores claacutessicos os
quais apagaram ou alteraram os motivos do princeps impossibilitando a
construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo mais positiva
Mesmo assim o exame da lenda negativa natildeo parou de despertar interesse
nos historiadores Nos uacuteltimos anos autores como Picard Griffin Champlin
Elsner Masters e Woodman prosseguiram com as investigaccedilotildees buscando definir
quem era o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano e o que foi feito dele Seus trabalhos
demonstraram as diferenccedilas entre os elementos retoacutericos empregados na
caracterizaccedilatildeo do imperador e a ldquoverdaderdquo histoacuterica separando ndash ou pelo menos
tentando separar ndash a ficccedilatildeo da realidade57
As produccedilotildees dessa natureza tornaram-se mais comuns e profiacutecuas a partir
de 1994 com a promoccedilatildeo do V Coloacutequio da Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes
Neacuteroniennes (SIEN) intitulado Neacuteron Histoire et Leacutegende O evento contou com
a participaccedilatildeo de pesquisadores renomados a saber Perrin Cizek Croisille
Martin e Chevallier que enfatizaram a necessidade de se considerarem os
modelos literaacuterios existentes por detraacutes das representaccedilotildees do princeps As
diversas comunicaccedilotildees proferidas na oportunidade conectaram-se a um fio
54
CARDANO 2002 p 270 55
HENDERSON 1903 p 93 56
WANKENNE 1981 p 135-152 57
Como exemplo temos a coletacircnea de artigos disposta no livro Reflections of Nero Culture
History amp Representation (1994) editado por Elsner e Masters a qual apresenta uma anaacutelise de
Nero que vai desde a sua representaccedilatildeo na histoacuteria e na literatura de sua eacutepoca ateacute a posterioridade
e os diversos artigos presentes no Companion to the Neronian Age (2013) e no The Cambridge
Companion to the Age of Nero (2017) que oferecem uma visatildeo abrangente dos processos e
interesses culturais existentes por traacutes da construccedilatildeo do ldquomonstro Nerordquo
36
condutor que visava a confirmar o caraacuteter complexo e multidisciplinar de Nero e
do seu governo Tais comunicaccedilotildees foram divididas em trecircs seccedilotildees cada qual
com uma temaacutetica especiacutefica A primeira intitulada LrsquoHistoire (A Histoacuteria)
englobou os trabalhos que discutiram a figura de Nero em Taacutecito e nos
historiadores tardios Nero em seu tempo e Nero sob os sucessores flavianos A
segunda denominada La Litteacuterature et la Leacutegende (A Literatura e a Lenda)
envolveu as contribuiccedilotildees que abordaram a imagem do princeps na tradiccedilatildeo
antiga as visotildees literaacuterias a seu respeito nos seacuteculos XVII e XVIII e o seu retrato
na literatura no cinema e nos manuais didaacuteticos A terceira Plastique Peinture
Musique (Escultura Pintura Muacutesica) abarcou os artigos que trataram das
representaccedilotildees do soberano nas artes modernas58
Ao final do Coloacutequio Perrin
proferiu uma palestra de encerramento na qual celebrou esse novo olhar das
pesquisas acadecircmicas sobre Nero ressaltando a importacircncia do estudo das figuras
histoacutericas e das suas mitologias atraveacutes dos tempos59
A nosso ver o evento da
SIEN foi de suma importacircncia para os debates da Antiguidade porque trouxe
reflexotildees ineacuteditas acerca de um imperador que ateacute entatildeo parecia fadado agrave
polarizaccedilatildeo mau versus bom ndash isto eacute ele revelou que existem muacuteltiplos acircngulos
de investigaccedilatildeo e que cada um deles pode produzir um Nero diferente novo
Eacute exatamente nesses acircngulos que nos deteremos a partir de agora
apresentando o debate historiograacutefico que traz os diversos retratos do princeps e
do seu governo Em outros termos analisaremos o modo como os estudiosos
contemporacircneos mais reconhecidos leram as fontes antigas e elaboraram os seus
proacuteprios Neros Organizamos a anaacutelise em cinco grupos com a finalidade de
melhor estruturar a apresentaccedilatildeo 1) Nero um mau imperador 2) Nero um bom
imperador 3) Nero o imperador fantoche 4) Os verdadeiros Neros e 5) Os
muacuteltiplos Neros Os dois primeiros grupos trataratildeo basicamente da personalidade
do soberano os trecircs restantes de elementos variados a exemplo das influecircncias
sofridas por ele e dos impasses poliacuteticos do Principado Eacute essencial salientar que
esse arranjo pode se mostrar incoerente em alguns momentos pois certos autores
suportariam a disposiccedilatildeo em mais de um grupo Mas nossas escolhas foram
58
As informaccedilotildees sobre o V Coloacutequio da SIEN estatildeo disponiacuteveis em httpwwwsien-
neronfrcolloques-et-actesactes-de-neronia-v-1994 Acesso em 20 fev 2020 59
CROISILLE MARTIN PERRIN 1999 p 5 BENOIST 2001 p 472-475
37
pensadas almejando uma exposiccedilatildeo consistente das concepccedilotildees historiograacuteficas
as quais nos ajudaratildeo adiante na apreciaccedilatildeo das fontes
Nero um mau imperador
Iniciaremos a discussatildeo comentando sobre quatro autores cujas pesquisas
interpretam Nero como um dos piores soberanos de todos os tempos o modelo
negativo de governante Entre eles Mommsen (1817-1903) eacute o mais antigo
considerado o maior historiador claacutessico do seacuteculo XIX De sua biografia
sabemos que cursou Estudos Claacutessicos e Direito em Kiel na Pruacutessia entre os anos
de 1838 e 1843 e tambeacutem que tentou uma curta carreira no Jornalismo Em 1854
assumiu a cadeira de Histoacuteria Antiga na Universidade de Breslau onde comeccedilou a
redigir o famoso compecircndio A History of Rome under the Emperors produccedilatildeo
poliacutetica que reflete a sua participaccedilatildeo na fundaccedilatildeo do Deutsche Fortschrittspartei
(Partido Progressista Alematildeo)60
Esse envolvimento influenciou na sua
representaccedilatildeo da queda da Repuacuteblica Romana a qual eacute colorida por uma profunda
desilusatildeo com a poliacutetica liberal nacionalista alematilde61
Foi exatamente tal vivecircncia que permeou a sua visatildeo do Principado
romano Para Mommsen esse regime deveria se assemelhar ao Parlamentarismo
amparando-se no equiliacutebrio de poderes em que o imperador seria uma espeacutecie de
ldquochancelerrdquo e o Senado o ldquoparlamentordquo concepccedilatildeo refletida nas paacuteginas do seu
compecircndio em que analisa todos os governos Juacutelio-Claudianos Flavianos
Antoninos Severos Constantinos e Teodoacutesios A ideia geral da obra eacute a de que o
Principado romano foi uma espeacutecie de monarquia constitucional uma Repuacuteblica
com um monarca em sua cabeccedila na qual o Senado jamais esteve em peacute de
igualdade com o imperador62
O poder deste uacuteltimo equivalia a uma autocracia e
era potencialmente ilimitado e proveniente das estruturas magistraacuteticas
60
Segundo Epstein (2018) a obra natildeo finalizada eacute dominada por preocupaccedilotildees poliacuteticas e
filosoacuteficas Mommsen estava entre aquele seleto grupo de ldquohistoriadores filosoacuteficosrdquo que incluiacutea
Hume Gibbon e Macaulay ldquolsquoHistoriadores filosoacuteficosrsquo satildeo aqueles interessados na natureza
humana conforme ela se desenvolve nos amplos campos dos assuntos poliacuteticos e militares da
cultura e da economia para eles a histoacuteria estaacute centrada tanto no caraacuteter quanto no acontecimento
Devido a esse interesse pela natureza humana e pelo caraacuteter dos grandes homens (sobretudo) e
mulheres eles proacuteprios encontraram um lugar de destaque e merecido natildeo apenas na
historiografia mas na literaturardquo 61
LENDERING 2020 62
MOMMSEN 2005 p 309
38
republicanas como o imperium proconsulare63 e a tribunicia potestas64
O
postulado existente por traacutes do Principado consistia no governo pessoal em que o
soberano era um funcionaacuterio administrativo com o monopoacutelio do poder65
Em funccedilatildeo disso a eacutepoca imperial representou para o autor uma falecircncia
poliacutetica militar econocircmica e moral da Repuacuteblica Falecircncia porque os imperadores
nunca conseguiram equilibrar a balanccedila do poder e criar uma coexistecircncia de
responsabilidades entre si mesmos e o Senado Ao acumularem magistraturas e
engrandecerem a sua auctoritas66
tornaram irreal qualquer ideia de domiacutenio
senatorial E sem a cooperaccedilatildeo do Senado natildeo poderia haver um Principado
eficiente e seguro um governo com a aparecircncia republicana que ocultasse a
imagem usurpadora do princeps Segundo Mommsen Augusto foi o uacutenico que se
preocupou em manter a fachada republicana Nero em contraste foi um dos que
mais se afastou desconsiderando tudo o que natildeo estivesse voltado ao seu
diletantismo artiacutestico67
[] O negoacutecio do governo era repugnante para ele Ele natildeo apreciava esforccedilos em larga escala sobretudo de tipo militar Ele foi o primeiro imperador que natildeo sentiu necessidade de estar agrave frente de suas tropas [] Ele detestava completamente a aristocracia romana procurando erradicar o Senado e dominar
apenas com homens livres e equestres68 Era uma natureza covarde e natildeo militar69
63
O termo imperium proconsulare designava um feixe de poderes com os quais eram investidos os
magistrados superiores que acumulavam responsabilidades civis ndash como a administraccedilatildeo puacuteblica e
fiscal a seguranccedila interna e o poder judicial ndash e responsabilidades militares como o comando dos
exeacutercitos em campanha (GRIMAL 2008 p 51) 64
A tribunicia potestas conferia ao imperador os poderes de um tribuno ou seja o de convocar o
Senado de vetar suas decisotildees e de apresentar projetos de lei Esse poder podia ser concedido de
modo vitaliacutecio e tornava o possuidor imune agrave interferecircncia das outras magistraturas (LE GLAY
2009 p 217) 65
MOMMSEN 2005 p 22 66
ldquoA auctoritas do priacutencipe era sustentada pelas mesmas noccedilotildees que regulavam as relaccedilotildees entre
patrono e cliente De iniacutecio era entendida como um processo ou seja o desempenho de uma perpeacutetua lideranccedila militar uma accedilatildeo contiacutenua como o maior benfeitor da Res publica natildeo somente
pela demonstraccedilatildeo das suas virtudes (prudecircncia justiccedila sabedoria clemecircncia pietas gravitas)
pelas suas accedilotildees e realizaccedilotildees (meritis) como tambeacutem por ser o mais rico O benefiacutecio gerado pelo
imperador criava um deacutebito (officium) o qual deveria ser reparado pela gratidatildeo (gratia) A
relaccedilatildeo de troca entre o imperador e seus suacuteditos poderia dificilmente ser em termos iguais em
decorrecircncia da disparidade de recursos e poderesrdquo (MENDES 2006 p 40) 67
MOMMSEN 2005 p 153 68
ldquoO ordo equester era composto de cidadatildeos romanos de nascimento livre cujos pais e avoacutes
tambeacutem fossem ingenui Por seu estatuto distinguiam-se pelo uso de um anel de ouro na matildeo
esquerda e pela tuacutenica angusticlauia uma tuacutenica marcada por uma faixa puacuterpura estreita no seu
cumprimento Aleacutem disso detinham o tiacutetulo de eques romanus e tinham o direito de se sentarem
nas fileiras logo apoacutes os senadores no teatro [] A dignidade equestre sob o Alto Impeacuterio natildeo era
hereditaacuteria pois a entrada na ordem equestre era uma decisatildeo que competia ao princeps que por
meio da adlectio uma das prerrogativas do censor nomeava um cidadatildeo para a ordem
39
A apatia era tanta que o autor menciona o fato de o princeps nunca ter
escrito os seus discursos era Secircneca quem os compunha para ele Todos os outros
soberanos sem exceccedilatildeo redigiram os seus Nero gostava mesmo era de se
apresentar no palco como ator e cantor e mesmo nisso mostrou-se totalmente
inepto Tamanha indiferenccedila poliacutetica levou Mommsen a declarar
Ele foi indiscutivelmente o imperador mais despreziacutevel que jaacute
sentou no trono de Roma e isso realmente diz alguma coisa Ele era um adolescente covarde que estava consciente do seu poder Na sua mentalidade fantasmal ele procurou a destruiccedilatildeo de todo o globo70
Prosseguindo Rostovtzeff (1870-1952) eacute outro estudioso bastante
reconhecido considerado um dos maiores historiadores do seacuteculo XX Com
formaccedilatildeo em Filologia Claacutessica realizou nas aacutereas de Histoacuteria Grega e Histoacuteria
Romana Antigas pesquisas centradas nos aspectos econocircmicos e sociais Entre os
anos de 1898 e 1918 atuou como professor de Latim na Universidade de Satildeo
Petersburgo cargo que precisou abandonar devido ao iniacutecio da Revoluccedilatildeo Russa
Rostovtzeff abominava as pretensotildees radicais do Partido Bolchevique cujas ideias
pautavam-se no fim da Monarquia Czarista a partir de uma revoluccedilatildeo popular
armada que resultaria na implantaccedilatildeo imediata e radical do socialismo Ele em
contrapartida defendia uma transiccedilatildeo mais branda e democraacutetica estabelecida
pelo fortalecimento inicial da burguesia ndash e do Capitalismo ndash que seria seguido
pela implantaccedilatildeo posterior do Socialismo Com a vitoacuteria bolchevique todos
aqueles contraacuterios ao Partido foram perseguidos o que fez Rostovtzeff buscar
exiacutelio nos Estados Unidos71
Laacute foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade
de Wisconsin entre 1920 e 1925 e professor de Histoacuteria Antiga e Arqueologia na
Universidade de Yale de 1925 em diante72
Em 1928 publicou o seu livro
Histoacuteria de Roma em que aborda desde as correntes de imigraccedilatildeo para a Itaacutelia no
inscrevendo-o numa lista oficial Apesar disso salvo se tivesse comportamento indigno ou se a
famiacutelia se empobrecesse o filho de um eques romanus tinha a expectativa de integrar esta ordemrdquo
(ESTEVES 2010 p 38-39) 69
MOMMSEN 2005 p 153 70
MOMMSEN 2005 p 152 71
WES 1990 p 5-53 72
Informaccedilatildeo disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyMikhail-Ivanovich-
Rostovtzeff Acesso em 20 fev 2020
40
seacuteculo VIII aC ateacute as causas do decliacutenio da civilizaccedilatildeo antiga no seacuteculo IV73
Essa obra eacute uma siacutentese do seu monumental The Social and Economic History of
the Roman Empire composto em 192674
Eacute no capiacutetulo 16 intitulado A Dinastia Juacutelio-Claacuteudia que Rostovtzeff
discute o Principado neroniano Ao abordaacute-lo o autor fundamenta-se na sua
experiecircncia autoritaacuteria da Revoluccedilatildeo Russa considerando-o um periacuteodo de accedilotildees
sanguinaacuterias a exemplo dos assassinatos de Britacircnico e Agripina A seu ver
Nero mesmo influenciado por Secircneca e Burro natildeo soube lidar com a oposiccedilatildeo da
aristocracia romana instituindo um ldquoreinado de terror [] com o massacre de
todos os suspeitos de natildeo simpatizarem com ele ou com seus meacutetodos de
governordquo75
Essa conduta hostil somada ao desinteresse do princeps pela
atividade militar agrave sua paixatildeo pelo teatro e agrave preferecircncia em prol dos gregos
provocou um crescente desagrado nos senadores e na Guarda Pretoriana76
cuja
reaccedilatildeo concretizou-se no preparo de um ldquogolperdquo eles jaacute natildeo suportavam o tirano
o ldquosenhor e deusrdquo e queriam restaurar a liberdade que ele tinha suprimido
obrigando-o a se suicidar em junho de 6877
Eacute sob esse mesmo vieacutes tiracircnico que Abbott (1803-1879) redigiu a sua obra
History of Nero em 1853 Com formaccedilatildeo a niacutevel superior em Teologia na Andover
Newton Theological School situada em Massachusetts fundou a Igreja Eliot
Congregational em 1834 e tornou-se pastor dela fato que o impulsionou a
escrever pequenos livros de contos infantis moralistas Os volumes compostos
traziam histoacuterias sobre um personagem chamado Rollo que viajava pelo mundo
se aventurando A proposta de Abbott era fazer o leitor acompanhar as andanccedilas
73
CALDER 1928 p 174-175 74
Concordamos com Reinhold (1946 p 362-363) quando ele afirma que a biografia de
Rostovtzeff influenciou no modo como ele escreveu essa obra O autor russo entendia que o
Mundo Antigo experimentou em menor escala o mesmo processo de desenvolvimento que o mundo estava experimentando nas deacutecadas de 40-50 O desenvolvimento moderno difere do antigo
apenas em quantidade e natildeo em qualidade ldquoEste axioma baacutesico da ausecircncia das diferenccedilas
qualitativas entre a estrutura da Civilizaccedilatildeo Antiga e a da sociedade capitalista moderna permite
uma transposiccedilatildeo para a Antiguidade do padratildeo e das categorias do modo de produccedilatildeo e troca
capitalista sua estrutura de classes configuraccedilotildees ideoloacutegicas e terminologias especiais Todos os
maiores esforccedilos de Rostovtzeff no campo da Histoacuteria Social e Econocircmica satildeo lsquomodernizadosrsquo
com conceitos como lsquocapitalistasrsquo lsquoburguesiarsquo lsquoproletariadorsquo lsquofaacutebricasrsquo e lsquoproduccedilatildeo em massarsquordquo 75
ROSTOVTZEFF 1983 p 198 76
A Guarda Pretoriana (cohors praetoria) ldquo[] era uma pequena escolta que acompanhava um
comandante do Exeacutercito na Repuacuteblica [] Durante as guerras civis as dinastias militares
mantiveram guarda-costas pessoais e em 27 aC Augusto estabeleceu uma forccedila permanente
consistindo de nove coortes cada uma contendo 500 (ou possivelmente 1000) homens recrutados
principalmente da Itaacutelia e das proviacutencias romanizadasrdquo (OCD 2012 p 1204) 77
ROSTOVTZEFF 1983 p 195-198
41
de Rollo e ao mesmo tempo aperfeiccediloar o conhecimento sobre Histoacuteria
Geografia Ciecircncia e sobretudo Eacutetica cristatilde78
Esses pequenos contos o
inspiraram tambeacutem a produzir histoacuterias biograacuteficas como as de Aniacutebal Juacutelio
Ceacutesar Cleoacutepatra e Nero79
Decerto sua biografia de Nero eacute atravessada por sua orientaccedilatildeo cristatilde e
moralista No iniacutecio do livro explana sobre os homiciacutedios de Britacircnico Otaacutevia
Agripina e Popeia crimes antinaturais que revelaram a posiccedilatildeo do princeps agrave
frente de tudo o que a depravaccedilatildeo humana jaacute havia presenciado80
No caso
especiacutefico do matriciacutedio Abbott menciona que natildeo constituiu um ato de
autodefesa pois Agripina natildeo pretendia causar danos ao seu filho Tambeacutem natildeo
foi um feito de necessidade poliacutetica como um meio para obter um desejo puacuteblico
Na verdade foi um crime legal e deliberado efetuado com o objetivo de eliminar
um obstaacuteculo agrave perpetraccedilatildeo de outro delito ldquoNero assassinou a sua matildee a sangue
frio apenas porque ela estava no caminho de seus planos para se divorciar da sua
esposa inocente [Otaacutevia] e se casar adulteramente com outra mulher aduacuteltera
[Popeia]rdquo81
Tal atrocidade natildeo causou remorsos no imperador afirma Abbott Ao
contraacuterio ele investiu em vaacuterias espeacutecies de excesso e desordem negligenciando
[] os negoacutecios puacuteblicos do Impeacuterio82 ndash aparentemente considerando o vasto poder e os imensos recursos que estavam
sob seu comando como os uacutenicos meios para a gratificaccedilatildeo completa de suas [] paixotildees pessoais A ambiccedilatildeo que realmente o motivou foi o desejo de alcanccedilar fama como cantor e ator no palco83
Para tanto dispendeu somas de dinheiro incalculaacuteveis realizando
confiscos e exaccedilotildees despoacuteticas de muacuteltiplos tipos e ausentando-se dos assuntos de
poliacutetica externa Isso tudo o tornou orgulhoso vaidoso voluntarioso cruel e
acostumado a ceder sem restriccedilatildeo a todas aquelas tendecircncias imorais que sempre
78
TIKKANEN 2012 79
Essas histoacuterias biograacuteficas pertencem a uma seacuterie de narrativas denominada Makers of History
Com a seacuterie Abbott pretendia fornecer aos leitores um relato preciso e fiel das vidas e accedilotildees dos
personagens mais famosos da Histoacuteria O grande problema eacute que seus relatos confiam em demasia
nas fontes histoacutericas No caso de Nero por exemplo ele acredita piamente nos discursos negativos
de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e natildeo os critica 80
ABBOTT 1958 p 213 81
ABBOTT 1958 p 208 82
Cf Anexo B com o mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 83
ABBOTT 1958 p 215
42
ganham domiacutenio sobre a alma humana84
Natildeo demorou muito entatildeo para que a
sua extravagacircncia e profusatildeo despertassem nas altas categorias sociais a vontade
de destruiacute-lo e substituiacute-lo por Galba um comandante ndash no entendimento da elite
ndash distinto honrado e respeitoso perante as tradiccedilotildees e instituiccedilotildees romanas85
De igual modo Warmington (1924-2013) elucida a excentricidade do
princeps Esse autor comeccedilou os estudos em Claacutessicos e Histoacuteria na Peterhouse
College na Universidade de Cambridge agraves veacutesperas da Segunda Guerra Mundial
Mas infelizmente precisou interrompecirc-los devido agrave convocaccedilatildeo para servir
como oficial do Corpo de Inteligecircncia do Exeacutercito Britacircnico Juntamente a outros
estudantes de Claacutessicos foi enviado para a Austraacutelia com a finalidade de decifrar
transmissotildees de raacutedio japonesas Findada a guerra retornou a Cambridge e obteve
o grau de honras em Claacutessicos e Histoacuteria ganhando o Precircmio Thirlwall86 Depois
assumiu a posiccedilatildeo de Lecturer em Histoacuteria Antiga na Universidade de Bristol
onde publicou obras significativas como A History of the Roman World from AD
138 to 337 e Nero Reality and Legend87
Esse uacuteltimo impresso em 1969 eacute marcado por sua participaccedilatildeo na guerra
uma vez que Warmington destaca dentre vaacuterios aspectos possiacuteveis a fraca
atuaccedilatildeo militar de Nero e sua precaacuteria administraccedilatildeo provincial No livro afirma
que Nero ldquo[] nunca visitou os seus soldados [em campo] e natildeo demonstrava
interesse por elesrdquo88
Os seus encargos se limitavam agrave escolha de governadores
para as proviacutencias em que existiam forccedilas beacutelicas e agrave aprovaccedilatildeo de medidas para
apoiaacute-los caso ocorressem problemas Elucida tambeacutem que a administraccedilatildeo
provincial ficou esquecida havendo uma diminuiccedilatildeo na concessatildeo da cidadania
romana e na fundaccedilatildeo de colocircnias fora da Itaacutelia89
O autor comenta ainda sobre as
84
ABBOTT 1958 p 115-121 85
ABBOTT 1958 p 121 86
O Precircmio Thirlwall foi criado em 1884 pela Universidade de Cambridge em homenagem ao
Bispo Connop Thirlwall Era concedido apenas em anos iacutempares para a melhor e mais original
pesquisa sobre Histoacuteria eou Literatura Britacircnica O vencedor recebia uma medalha e uma quantia
em dinheiro para custear as despesas da sua pesquisa (CAMBRIDGE 2008 p 716-857) 87
Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBrian-H-Warmington Acesso em 20
fev 2020 No livro sobre Nero Warmington (1969 p 3) afirma que ldquo[] eacute impossiacutevel
desacreditar em sua totalidade a imagem hostil do soberano na tradiccedilatildeo histoacuterica []rdquo Ainda
assim ele se propotildee a enfrentar o desafio escolhendo a interpretaccedilatildeo tradicional das fontes que
temos sobre o princeps Ou seja ele utiliza majoritariamente Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio
embora tambeacutem use Secircneca em alguns momentos 88
WARMINGTON 1969 p 71 89
WARMINGTON 1969 p 71-72
43
dificuldades financeiras que o soberano impingiu ao Impeacuterio e as suas ambiccedilotildees
autocraacuteticas90
Acerca das primeiras conta-nos que
as reservas de ouro do Tesouro foram rapidamente reduzidas por aumentos repentinos nas despesas [] As uacutenicas alternativas quando se necessitava de mais dinheiro era o aumento da tributaccedilatildeo ou a apreensatildeo da propriedade dos ricos Nero eacute um dos vaacuterios imperadores que foram acusados de condenar homens agrave morte [] para conquistar sua riqueza91
Quanto agraves ambiccedilotildees Nero anuncia um movimento na mesma direccedilatildeo de
Caliacutegula ou seja um impulso de embasar o governo em um poder pessoal com
sanccedilatildeo religiosa Como prova Warmington alega que de 65 em diante esse
primeiro autorizou a produccedilatildeo de moedas em cobre retratando a si mesmo com a
chamada coroa irradiada destinada apenas a imperadores deificados Outra prova
eacute a estaacutetua colossal de si proacuteprio feita pelo artista grego Zenodoro e inserida no
vestiacutebulo da Domus Aurea a qual ldquo[] apoacutes a sua morte precisou de pouca
alteraccedilatildeo para ser transformada em uma imagem do deus-Solrdquo92
Como buscamos deixar claro a partir dos exemplos selecionados a
apreciaccedilatildeo negativa comum desses autores natildeo significa a utilizaccedilatildeo dos mesmos
aspectos para a construccedilatildeo do juiacutezo de cada um Os elementos mobilizados e a
combinaccedilatildeo deles tiveram muita relaccedilatildeo com as experiecircncias pessoais dos autores
e com os contextos particulares em que viveram A nosso ver isso eacute vaacutelido no
geral mas eacute muito mais evidente neste bloco do que em qualquer um dos
seguintes Por isso jaacute deixamos esse ponto demarcado aqui
Nero um bom imperador
Em contrapartida agraves concepccedilotildees negativas temos os trecircs autores dispostos
no segundo grupo Aqui se situam os estudos que veem Nero como um
governante incompreendido pela Histoacuteria e que tentam construir um retrato
positivo representando-o como um princeps desenvolvedor de bons projetos
90
WARMINGTON 1969 p 69 91
WARMINGTON 1969 p 69 92
WARMINGTON 1969 p 121
44
O primeiro autor eacute Henderson (1871-1929) diplomado em Estudos
Claacutessicos no Lincoln College na Universidade de Oxford Durante sua carreira
foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade de Londres e na Universidade de
Cambridge Seus interesses acadecircmicos sempre estiveram direcionados a
temaacuteticas militares compondo livros acerca da histoacuteria das campanhas romanas
fossem as guerras dos romanos contra os povos estrangeiros fossem as guerras
civis Suas obras mais conhecidas satildeo The life and Principate of the Emperor
Nero escrita no ano de 1903 e Civil War and Rebellion in the Roman Empire
AD 69-70 Companion to the lsquoHistoriesrsquo of Tacitus lanccedilado em 190893
Eacute alicerccedilado no vieacutes militarista que Henderson construiu o seu Nero Seu
trabalho sobre o princeps eacute meticuloso e preciso trazendo os principais episoacutedios
da sua vida94
Ele elogia o soberano e cria justificativas para minimizar suas
atrocidades declarando jaacute nas primeiras paacuteginas
Concedemos ao grande imperador toda a nossa admiraccedilatildeo justa
e [] talvez devamos confessar que a nossa visatildeo de historiador sobre Nero pode ser tatildeo inadequada quanto o gosto jornaliacutestico de todas as eras95
Essa admiraccedilatildeo eacute dada por certas qualidades que o autor atribui a Nero
um governante habilidoso e genial cuja administraccedilatildeo teria feito honra ao
veterano mais bem-sucedido Um princeps que escutava de bom grado o conselho
dos seus tutores Secircneca e Burro e que tinha ideias proacuteprias Um soberano que
realizou um governo com coragem e sucesso apesar da preferecircncia artiacutestica em
detrimento dos assuntos de Estado96
Em suma um homem que
93
Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBernard-W-Henderson Acesso em 22
fev 2020 94
O livro de Henderson eacute praticamente uma justificaccedilatildeo Ele comenta repetidamente sobre os
primeiros anos do governo de Nero suas promessas justas ao Senado a sagacidade da sua
administraccedilatildeo provincial entre outros episoacutedios As fontes histoacutericas satildeo tratadas sobretudo do
ponto de vista moral e poliacutetico (RICHARDS 1904 p 57-61) O autor utiliza Taacutecito Suetocircnio e
Diatildeo Caacutessio mas tambeacutem se pauta em outros relatos a exemplo dos de Marcial e Pliacutenio o Velho 95
HENDERSON 1903 p 15 96
HENDERSON 1903 p 76-126
45
[] por treze anos cumpriu um bom serviccedilo ao Estado serviccedilo
esse que natildeo pode ser enterrado sob uma massa esmagadora de iniquidades Os primeiros anos do seu governo foram anos de justiccedila e misericoacuterdia e de uma poliacutetica cuidadosa [] Dentro das fronteiras nenhuma guerra perturbou a paz ateacute o ano de sua morte []97
Fini (1943- ) compartilha da visatildeo elogiosa de Henderson Sem instruccedilatildeo
na aacuterea de Estudos Claacutessicos atua como ensaiacutesta ativista e jornalista em
conhecidos veiacuteculos da imprensa italiana a saber no jornal LrsquoIndipendente e no Il
Fatto Quotidiano Em suas publicaccedilotildees posiciona-se criticamente em relaccedilatildeo a
determinadas ideologias do mundo moderno a exemplo do liberalismo do
marxismo do industrialismo e da democracia representativa98
Acredita que a
contemporaneidade internalizou os piores aspectos do Iluminismo como o
universalismo e o crescimento econocircmico rejeitando a liberdade de expressatildeo e a
democracia direta alcanccedilaacuteveis em aacutereas bastante limitadas Por conta dessas
opiniotildees Fini tem sido acusado por intelectuais italianos de se aproximar da
extrema direita e de simpatizar com o fascismo Trata-se de acusaccedilotildees que a
nosso ver natildeo satildeo desprovidas de embasamento Em alguns artigos do seu blog
pessoal ele afirma que o combate ao fascismo natildeo deveria existir em uma
verdadeira democracia porque isso constituiria uma atitude antidemocraacutetica Em
outros elogia Mussolini como um grande estadista responsaacutevel por desenvolver
projetos urbanos e artiacutesticos monumentais Defende ainda que foi com o Duce
que a Itaacutelia presenciou as uacuteltimas poliacuteticas direcionadas agraves camadas populares
bem como viveu o seu resquiacutecio de sentimento patrioacutetico99
Tal visatildeo de Mussolini fundamenta toda a sua interpretaccedilatildeo do Principado
neroniano exposta no livro Nero ndash O Imperador Maldito Dois Mil Anos de
Mentiras impresso em 1993100
Para o autor Nero foi uma espeacutecie de Duce
97
HENDERSON 1903 p 421-422 98
FINI 2020 99
FINI 2020 100
Ao longo de todo o livro Fini tenta com um senso objetivo revelar quem ldquorealmente foirdquo Nero
e dissipar a sombra que haacute milhares de anos obscurece a sua imagem Para tanto realiza trecircs
operaccedilotildees em primeiro lugar insere Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio no periacuteodo histoacuterico em que
escreveram tentando identificar suas ideologias e verificando as contradiccedilotildees internas em suas
obras em segundo analisa as moedas os achados arqueoloacutegicos as epiacutegrafes as inscriccedilotildees os
papiros e as circulares que irradiavam do centro do Impeacuterio em direccedilatildeo agrave periferia em terceiro
lugar verifica os resultados concretos que o imperador obteve deixando suas inclinaccedilotildees sexuais
de lado (FINI 1993 p 14)
46
melhorado visto que natildeo possuiacutea caracteriacutesticas ditatoriais e racistas O princeps
foi um grande estadista um visionaacuterio o artiacutefice de uma revoluccedilatildeo cultural e um
homem agrave frente de seu tempo Ele sempre recorreu a uma poliacutetica econocircmica em
prol dos menos ricos era muito cauteloso com o dinheiro do eraacuterio nunca pensou
em instituir uma monarquia teocraacutetica encorajou a mentalidade pacifista sempre
caminhava em direccedilatildeo de medidas amenas natildeo era sanguinaacuterio e odiava a guerra
a violecircncia e as execuccedilotildees capitais suportava com paciecircncia os impropeacuterios das
pessoas era tolerante no acircmbito religioso e jamais perdeu o senso dos seus
deveres a despeito do amor pelos espetaacuteculos101
Esse amor segundo Fini natildeo surgiu ao acaso mas foi fruto dos desgostos
poliacuteticos sofridos no iniacutecio do governo A recusa do Senado em aceitar a proposta
da Reforma Fiscal em 58102
e o incidente de Pedacircnio Segundo em 61103
levaram
Nero a se distanciar das atividades administrativas e a procurar introduzir
elementos da menos grosseira e mais civilizada cultura helenista104
Ambos os
eventos ajudaram-no a compreender que qualquer poliacutetica social como chamamos
hoje era impossiacutevel com uma elite que natildeo tolerava nenhum arranhatildeo nos
proacuteprios privileacutegios e nas suas imensas riquezas Foi por isso que ele se
direcionou a plebe ela o entendia o amava e o respeitava Natildeo agrave toa que
durante os quatorze anos do seu reinado o Impeacuterio experimentou um periacuteodo de paz prosperidade e dinamismo econocircmico e cultural que jamais teve ou teria no futuro [] Este imperador muacutesico cantor poeta ator escritor auriga interessado na ciecircncia e na teacutecnica promotor das mais ousadas
exploraccedilotildees autor e admirador de projetos grandiosos foi um unicum e natildeo soacute na histoacuteria do Impeacuterio Romano105
Ainda no caminho laudativo incluiacutemos outro jornalista Holland (1960- )
De origem inglesa e sem formaccedilatildeo historiograacutefica trabalhou por 25 anos no jornal
London Times publicando novelas com temas e personagens variados fantasmas
monstros fadas bruxaria lugares assombrados animais fantaacutesticos e o
Principado de Nero Ademais atuou como editor da Paranormal Magazine e
participou de programas de Raacutedio na BBC que debatiam o mundo sobrenatural
101
FINI 1993 p 52-178 102
Sobre a Reforma Fiscal cf LEVI 1949a p 270-272 103
Acerca do incidente de Pedacircnio Segundo cf BRADLEY 1994 p 108-114 104
FINI 1993 p 91 105
FINI 1993 p 14-15
47
Hoje trabalha como editor independente de um site dedicado a fantasmas
folcloacutericos britacircnicos e eacute coautor de um aplicativo localizador de assombraccedilotildees
Portanto tem uma carreira alicerccedilada em discussotildees controversas e na produccedilatildeo e
venda de best-sellers ndash a tatildeo conhecida literatura de massa106
O Nero concebido por Holland no livro Nero The Man Behind the Myth
lanccedilado em 2000 eacute uma figura editorial criada com o intuito de despertar o maior
interesse possiacutevel nos leitores107
O autor faz questatildeo de ser bem polecircmico em sua
escrita afirmando que o mundo deveria pedir desculpas ao princeps108
pois ele
foi ldquo[] mais libertaacuterio do que opressor [] a sua poliacutetica consistia em lsquofazer
amor e natildeo guerrarsquo e [] ele se tornou [] o primeiro grande pop star da
Histoacuteriardquo109
Ele prossegue com as afirmaccedilotildees impactantes assegurando que Nero
era um homem e natildeo um monstro que era um grande populista que natildeo tinha
gosto pela crueldade que desprezava as categorias sociais na escolha dos amigos
e que queria tornar o mundo um lugar mais bonito110
Sua administraccedilatildeo consistia
[] em manter a paz e a harmonia dentro das fronteiras restringindo a atividade militar a um miacutenimo necessaacuterio preferindo a diplomacia agrave guerra Sua poliacutetica domeacutestica [] baseava-se em evitar o assassinato de qualquer forma mantendo as pessoas felizes e tentando elevar suas visotildees para o
que ele considerava serem as melhores coisas da vida ndash muacutesica poesia artes visuais e delitos eroacuteticos111
Nero entatildeo eacute visto erroneamente como o maior vilatildeo da histoacuteria sustenta
Holland Conquanto fosse excessivo em tudo o que fizesse nunca torturou
ningueacutem e soacute cometeu assassinatos quando se sentiu ameaccedilado Na verdade ele
era bem mais moderado do que as fontes antigas demonstram
106
HOLLAND 2002 107
No livro o autor defende que Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ao escreverem sobre Nero natildeo
contaram necessariamente mentiras diretas mas ficaram felizes em tratar boatos como fatos ou em
inventar palavras para colocar na boca das pessoas Esse meacutetodo foi reconhecido no Mundo
Antigo como sendo natural agrave arte da retoacuterica cujo propoacutesito natildeo eacute simplesmente informar mas
persuadir (HOLLAND 2000 p vi) 108
Em entrevista ao jornal Independent antes do lanccedilamento do seu livro Holland afirmou ldquo[]
Natildeo estou tentando calar Nero Soacute quero esclarecer as coisasrdquo (MENDICK THOMPSON 2000) 109
HOLLAND 2000 p vii 110
HOLLAND 2000 p xii 5 77 214 111
HOLLAND 2000 p 10
48
Nos primeiros oito anos do seu reinado o nuacutemero total de
homiciacutedios foi quatro duas mulheres e dois homens sua matildee sua esposa seu cunhado e um primo Em cada caso ele tentou outras soluccedilotildees ao inveacutes do assassinato durante [] anos [] [] Este registro de quatro assassinatos confirmados em oito anos todos confinados ao mesmo grupo familiar natildeo eacute a marca de um homicida monstruoso [] mas a reaccedilatildeo demorada de um
governante cauteloso que sabe que se ele for esfaqueado nas costas seraacute por um dos seus parentes ou amigos []112
Em siacutentese os dois grupos expostos ateacute agora explicitaram uma polaridade
de percepccedilotildees sobre Nero ora o imperador eacute cruel e sanguinaacuterio ora eacute beneacutevolo e
exemplar Os autores em geral parecem estar mais preocupados em compor uma
reconstruccedilatildeo imaginaacuteria e apaixonada do passado do que em tentar apreendecirc-lo
sob uma perspectiva de fato histoacuterica Aiacute reside um problema de anaacutelise das
fontes Sob nossa perspectiva os escritores fazem um exame superficial e
limitado delas ndash sobretudo de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ndash tendendo a seguir
os seus planos narrativos e a ignorar os contextos e os interesses existentes por
detraacutes de cada uma Juntamente a isso desenvolvem uma interpretaccedilatildeo a partir de
concepccedilotildees pessoais e modernas gerando anacronismos prejudiciais agraves suas
obras logo oferecem uma reavaliaccedilatildeo da vida e da personalidade de Nero no
lugar de um estudo focado no periacuteodo histoacuterico que condicionou as evidecircncias
literaacuterias e o soberano
Ademais as obras examinadas obviamente estatildeo vinculadas agrave forma
polecircmica jaacute consolidada na literatura especializada de avaliar muito
negativamente o governo neroniano Poreacutem percebemos entre elas uma visatildeo
comum de indignaccedilatildeo com a aristocracia romana que criticava o soberano mas
que natildeo era em nada melhor do que ele De forma difusa os autores mostram uma
desconfianccedila em relaccedilatildeo ao que parecia ser uma opiniatildeo geral fruto de distorccedilatildeo e
de interesses inconfessaacuteveis
Por fim eacute necessaacuterio destacar que as produccedilotildees analisadas nos dois grupos
iniciais foram redigidas ou por historiadores mais antigos ou por jornalistas Os
escritores da primeira categoria ignoram a noccedilatildeo de Histoacuteria como uma
construccedilatildeo relativamente arbitraacuteria e os da segunda usam a noccedilatildeo da Histoacuteria
como fonte de uma verdade ignorada pelo senso comum Essa uacuteltima concepccedilatildeo
112
HOLLAND 2000 p 142
49
ainda eacute bastante popular entre os natildeo especialistas e desperta grande curiosidade
na imprensa especialmente hoje em tempos de grande impulso de todas as
formas de negacionismo Doravante falaremos dos grupos mais heterogecircneos dos
que priorizam abordagens temaacuteticas ou aspectos especiacuteficos das fontes literaacuterias
Vejamos portanto o terceiro grupo nomeado Nero o imperador fantoche
Nero o imperador fantoche
Os nove autores alocados nesse grupo natildeo estatildeo interessados em verificar
se Nero era bom ou mau mas sim em analisaacute-lo como um princeps manipulaacutevel
O argumento central eacute o de que a administraccedilatildeo do soberano foi positiva ou
negativa consoante as influecircncias recebidas Isso significa que Nero fez um bom
governo enquanto esteve sob a influecircncia de bons conselheiros a exemplo de
Secircneca e Burro e fez um mau governo enquanto esteve sob a influecircncia de maus
conselheiros ndash no caso Agripina Tigelino e Popeia Essa eacute a visatildeo mais comum
nos estudos sobre Nero ainda que natildeo seja a mais popular entre o puacuteblico
Inseridos nessa perspectiva temos a obra Vida e Eacutepoca de Nero elaborada
em 1956 pelo jornalista italiano Franzero113
o manual Historia de Roma escrito
no ano 1989 pelos espanhoacuteis Roldaacuten Blaacutezquez e del Castillo professores da
Universidade Complutense de Madrid e da Universidade de Alicante114
e o livro
Histoacuteria de Roma composto em 2003 por Grimal ex-catedraacutetico da
Universidade de Sorbonne115
Existem tambeacutem outras produccedilotildees mais
reconhecidas no meio acadecircmico cuja abordagem concede maior atenccedilatildeo agraves
fontes literaacuterias e aos demais tipos de evidecircncias histoacutericas Eacute delas que
trataremos agora
A obra de Weigall (1880-1934) eacute a primeira da lista Esse autor apesar de
natildeo possuir instruccedilatildeo a niacutevel superior foi um grande apaixonado pelo Mundo
Claacutessico exercendo a funccedilatildeo de pesquisador de antiguidades egiacutepcias no iniacutecio do
113
Franzero (1958 p 104) afirma que durante a supervisatildeo de Secircneca e Burro a administraccedilatildeo
imperial foi muito satisfatoacuteria ldquoOito anos de paz haviam permitido ao Impeacuterio desenvolver ao
maacuteximo os seus recursos Secircneca e Burro guiavam com matildeo leve o governo imperial Roma
dominava o mundo sem oprimi-lordquo 114
Para os professores foi somente com a influecircncia de Secircneca e Burro que Nero conseguiu gerir
o Impeacuterio de modo beneacutefico assegurando agrave aristocracia senatorial o respeito ao seu status
econocircmico e social (BLAacuteZQUEZ DEL CASTILLO ROLDAacuteN 1989 p 151) 115
Grimal (2008 p 97) diz que sob a influecircncia de Secircneca e de Burro Nero cumpriu as
promessas que tinham sido feitas em seu nome respeitando os privileacutegios senatoriais
50
seacuteculo XX bem como de cenoacutegrafo jornalista e escritor de guias de viagens
roteiros cinematograacuteficos romances e biografias histoacutericas Dentre suas vinte e
quatro publicaccedilotildees destacamos o roteiro do filme Burning Sands lanccedilado em
1922 e o livro Nero Emperor of Rome redigido em 1930116
Ao lermos esse
uacuteltimo verificamos que Weigall muitas vezes ignora a cronologia das fontes
histoacutericas quando ela serve ao seu propoacutesito e tambeacutem considera o discurso
taciteano como verdade absoluta117
Isso fica evidente na apresentaccedilatildeo dos
personagens que dominaram Nero pois o seu Secircneca o seu Burro a sua Agripina
o seu Tigelino e a sua Popeia satildeo sujeitos bons e maus segundo os relatos do
historiador antigo
O autor acredita que as interferecircncias ruins na vida de Nero comeccedilaram
desde antes do seu nascimento com a instaacutevel e licenciosa famiacutelia dos
Aenobarbi118 O pai do imperador Cneu Aenobarbo e sua matildee Agripina foram
tatildeo corruptos e imorais que nunca deram bons exemplos ao filho Para piorar
Nero viveu a sua infacircncia sob o governo do seu tio Caliacutegula um ambiente vicioso
que moldou de maneira danosa os primeiros traccedilos da sua personalidade119
O
grande problema poreacutem foi Agripina afirma Weigall Sedenta pela manutenccedilatildeo
do filho no poder ela edificou um projeto de princeps divergente daquilo que
Nero pensava para si Ela queria fazer dele um ldquohipoacutecrita convencionalrdquo pelo
ldquobem de Romardquo e pela ldquogloacuteria da casa imperialrdquo Ela era incapaz de compreender
o temperamento do soberano exercendo um domiacutenio tatildeo amplo sobre ele que fez
despertar nele coisas ruins Assim as saiacutedas noturnas de Nero e seu gosto pela
muacutesica tatildeo criticados foram na praacutetica respostas agraves vontades austeras da matildee120
Em contraste Secircneca e Burro sempre aguccedilaram o melhor visto que eram
uma ldquoboa combinaccedilatildeordquo121
De um lado estava
116
HANKEY 2001 p 5-53 No livro Weigall utiliza uma gama de fontes antigas bastante
variada dando-nos uma visatildeo bem completa de Nero Por exemplo ele usa os relatos contidos na
Octauia no Bellum Judaicum nas Antiquitates Judaicae nas Siluae na Naturalis Historia no De
Vita Caesarum na Historia Romana e principalmente nos Annales 117
GEER 1931 p 51 118
Os Aenobarbi eram assim chamados por causa de suas barbas ruivas (Suet Nero 1) 119
WEIGALL 1930 p 25-36 120
WEIGALL 1930 p 81-115 121
WEIGALL 1930 p 99
51
[] o cortecircs Secircneca com sua habilidade diplomaacutetica de lidar
com as pessoas sua consideraccedilatildeo filosoacutefica e ponderada por todos os direitos dos homens e sua adesatildeo natildeo muito riacutegida aos princiacutepios estoacuteicos [de outro estava] o honesto Burro com sua lealdade contundente sua disciplina militar e sua habilidade de comandar a devoccedilatildeo do exeacutercito122
Enquanto esteve sob a autoridade deles o princeps diminuiu os impostos
evitou o desperdiacutecio de vidas manteve uma relaccedilatildeo cordial com o Senado e
aprovou leis para retirar os indiviacuteduos da opressatildeo123
Os trecircs proacuteximos autores Scullard (1903-1983) Grant (1954-2004) e
Bishop (1959-1981) seratildeo debatidos em conjunto porquanto fazem a mesma
abordagem das fontes O primeiro deles foi um historiador britacircnico formado em
Estudos Claacutessicos pelo St Johnrsquos College na Universidade de Cambridge Foi
tambeacutem professor de Histoacuteria Antiga no Kingrsquos College na Universidade de
Londres onde editou o renomado Oxford Classical Dictionary De todas as suas
produccedilotildees a mais conhecida eacute From the Gracchi to Nero A History of Rome from
133 BC to AD 68 divulgada em 1959124
O segundo fez formaccedilatildeo em Estudos
Claacutessicos no Trinity College na Universidade de Cambridge Especializou-se em
Numismaacutetica Antiga desenvolvendo pesquisas inovadoras acerca das moedas
romanas as quais ele argumentava serem um registro social viacutevido do Impeacuterio
Ocupou a cadeira de Ciecircncias Humanas em Cambridge entre os anos de 1948 a
1959 compondo cerca de 70 obras que abrangem desde a traduccedilatildeo dos Annales
ateacute biografias de Juacutelio Ceacutesar e de Nero125
Por seu turno o terceiro foi professor
de Estudos Claacutessicos e Histoacuteria Antiga na Universidade de New England de 1959
a 1981 Foi graccedilas a seus esforccedilos que a aacuterea de Claacutessicos consolidou-se na
Austraacutelia visto que ele ajudou a fortalecer um campo pouco investigado no paiacutes
lanccedilando dois livros Nero The Man and the Legend em 1969 e The Cost of
Power Studies in the lsquoAeneidrsquo of Virgil em 1988126
Os trecircs autores em nosso
entendimento usam as obras de Taacutecito Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio para
produzirem suas proacuteprias narrativas ao mesmo tempo em que tentam cada um a
seu modo comprovar a veracidade dos relatos antigos
122
WEIGALL 1930 p 99 123
WEIGALL 1930 p 82-116 124
WALBANK 1984 p 189-191 125
MARTIN 2004 126
JORDAN 2004 p 101
52
Por exemplo Scullard127
e Grant128
sustentam a ideia de que as tutorias de
Secircneca e Burro trouxeram um momento de bem-estar social para o Impeacuterio O
primeiro autor destaca a otimizaccedilatildeo da administraccedilatildeo financeira e do
fornecimento de gratildeos para Roma129
O segundo salienta as melhorias na gestatildeo
do tesouro e na ordem puacuteblica com ldquo[] provisotildees contra falsificaccedilotildees e
instruccedilotildees de que os governadores de proviacutencias e seus oficiais natildeo deveriam dar
espetaacuteculos gladitoriais ou de bestas selvagens []rdquo130
Ambos defendem tambeacutem
ndash semelhantemente a Weigall ndash a nocividade de Agripina para Nero
argumentando que sua presenccedila dominadora o impedia de dirigir natildeo soacute o Impeacuterio
como a proacutepria vida Ele odiava a influecircncia que a sua matildee tinha sobre ele e
estava ansioso para emancipar-se de sua ascendecircncia psicoloacutegica O matriciacutedio
entatildeo eacute apontado pelos autores como algo compreensiacutevel e justificaacutevel131
Bishop tambeacutem defende a noccedilatildeo da maacute influecircncia de Agripina132
Ele
atribui a culpa das accedilotildees ruins do soberano agrave matildee cuja ganacircncia insaciaacutevel
dominava a mente e o Principado do filho Nero ldquo[] se tornou o peatildeo de uma
matildee ambiciosa []rdquo e permaneceu como o foco de uma das mulheres mais
controladoras da histoacuteria133
Na avidez de tornaacute-lo princeps ela suprimiu vaacuterios
potenciais rivais mandando assassinar Juacutenio Silano tataraneto de Augusto
Narciso o fiel liberto de Claacuteudio e o proacuteprio imperador Claacuteudio envenenado por
cogumelos134
Essa matanccedila toda de acordo com o autor ocorreu quando Nero
127
Concordamos com Rathbone (2010 p xxvi) quando ele alega que ldquoa visatildeo geral de Scullard
sobre a Histoacuteria Romana estaacute fundamentada no Liberalismo do iniacutecio do seacuteculo XXrdquo Um
Liberalismo que aceita a conquista em nome da paz e da prosperidade e defende a condenaccedilatildeo do
controle estadista em prol da liberdade individual Nesse sentido Scullard critica as accedilotildees do
Senado durante a Repuacuteblica argumentando que o Conselho era extremamente burocraacutetico e natildeo
representativo da vontade do povo taxando em demasia as proviacutencias e a plebe ndash uma maacute
administraccedilatildeo que soacute foi retificada com a chegada do Impeacuterio a partir das boas decisotildees de
Augusto Tibeacuterio Claacuteudio e dos conselheiros de Nero Secircneca e Burro que promoveram o bem-
estar das proviacutencias Eacute importante frisar que essa visatildeo de Scullard sobre o Principado de Nero eacute pautada natildeo soacute no uso dos trecircs autores mais recorrentes mas tambeacutem no da numismaacutetica 128
Para construir sua representaccedilatildeo de Nero Grant vai aleacutem das narrativas de Taacutecito Suetocircnio e
Diatildeo Caacutessio recorrendo agraves inscriccedilotildees epigraacuteficas e agraves moedas O resultado eacute um livro lindamente
montado com vaacuterias moedas estaacutetuas bustos e pinturas 129
SCULLARD 2010 p 258 130
GRANT 1970 p 59 131
SCULLARD 2010 p 259 GRANT 1970 p 74 132
Adotamos a visatildeo de Crook (1965 p 364-365) a respeito do livro de Bishop sua histoacuteria eacute a de
Nero e natildeo a do Impeacuterio Seu livro eacute essencialmente uma reescrita das fontes antigas com uma
linguagem menos polida O uso de Taacutecito em especiacutefico eacute exacerbado e pouco criacutetico Ademais a
obra estaacute cheia de clichecircs todas as mulheres parecem ser bastante ldquoespirituosasrdquo exceto Otaacutevia
que ldquovivia nas sombrasrdquo 133
BISHOP 1964 p 192-193 134
BISHOP 1964 p 11-33
53
era bem jovem situaccedilatildeo que o fez enxergar o homiciacutedio como algo comum Para
ele o assassinato
[] era uma arma com a qual ele jaacute estava acostumado desde a infacircncia se natildeo por experiecircncia pessoal por meio do testemunho vicaacuterio de muita coisa que se passava ao seu redor [] O assassinato era um meacutetodo conveniente de remover os seus inimigos [] Ele viu seu proacuteprio padrasto eliminado por
sua matildee para abrir caminho para ele Seu proacuteprio uso dessa arma fatalmente faacutecil deve ter parecido natural quando a ocasiatildeo exigiu isso135
Enfim as atitudes sanguinaacuterias de Nero satildeo resultantes da cobiccedila de
Agripina por poder Isso faz com que a sua peacutessima reputaccedilatildeo mereccedila ser
reconsiderada pela Histoacuteria afinal ele se tornou o peatildeo de uma matildee ambiciosa
que o fez imperador
A partir desse momento ele vivia como ela queria Sua vida pessoal estava arruinada mas grande parte do seu povo o considerava um governante consciencioso para seus interesses e
muitos lamentaram sua morte precoce Nenhuma outra explicaccedilatildeo pode ser verdade pois seu retorno foi esperado com alegria136
Tempos depois Griffin (1935-2018) uma das principais estudiosas sobre
Nero entrou nesse debate Com uma trajetoacuteria educacional admiraacutevel conquistou
o bacharelado em Filosofia Claacutessica na Universidade Columbia em 1956 No
mesmo ano ingressou no mestrado na Universidade de Harvard e ao terminaacute-lo
cursou o doutorado com bolsa Fulbright na Universidade de Oxford sob
orientaccedilatildeo de Syme Finalizada a formaccedilatildeo assumiu em 1967 a cadeira de
Histoacuteria Antiga no Sommerville College na Universidade de Oxford posiccedilatildeo que
exerceu com excelecircncia ateacute 2002137
No decorrer da sua carreira Griffin desempenhou um papel crucial na
apreciaccedilatildeo da escrita filosoacutefica dos antigos romanos em particular a de Secircneca
redigindo livros relevantes como Seneca a Philosopher in Politics no ano de
1967 Aleacutem da temaacutetica filosoacutefica pesquisou a dinastia imperial Juacutelio-Claudiana
135
BISHOP 1964 p 185-186 136
BISHOP 1964 p 192-193 137
EDWARDS 2018
54
com ecircnfase no imperador Nero Em sua biografia Nero The End of a Dynasty
divulgada em 1984 propotildee-se a investigar duas questotildees i) o caraacuteter do soberano
e o modo como ele foi afetado por circunstacircncias particulares e pelo conselho de
outros e ii) as pressotildees intriacutensecas ao Principado as quais condicionavam a
conduta de qualquer governante Essas questotildees fizeram-na classificar o seu livro
como hiacutebrido pois eacute tanto biograacutefico na medida em que se concentra na
personalidade do imperador quanto histoacuterico dado que analisa a sua queda em
termos da sua interaccedilatildeo com o sistema poliacutetico Logo a parte I da sua obra
denominada Nerorsquos Principate destina-se agrave pesquisa biograacutefica e a parte II
intitulada Post-Mortem on the Fall of Nero ao exame histoacuterico138
Tal diferenccedila
de foco ocasionou a disposiccedilatildeo das suas ideias em locais distintos do nosso texto
sendo a parte I discutida aqui no terceiro grupo e a parte II no quinto
Diferente de Weigall de Scullard de Grant e de Bishop Griffin natildeo toma
os relatos das fontes histoacutericas como imediatamente vaacutelidos e nem tenta justificaacute-
los seu objetivo eacute averiguar a documentaccedilatildeo questionando as narrativas e
contextualizando-as dentro do sistema poliacutetico Por exemplo a primeira duacutevida do
seu texto na parte I repousa na independecircncia e no interesse do soberano pela
tarefa imperial ldquodevemos acreditar em Diatildeo Caacutessio que Nero deixou as decisotildees
para os outros ou em Suetocircnio que ele estava no controle total ou em Taacutecito de
que ele era ativo sob orientaccedilatildeordquo139
Como resposta alega ser perverso assumir a
passividade poliacutetica do imperador nas boas iniciativas Sua determinaccedilatildeo e seu
compromisso com a promoccedilatildeo das artes sugerem que ele ldquo[] natildeo poderia ter sido
totalmente dominado por seus conselheiros []rdquo e que teria sido capaz de tomar
um interesse ativo em outros aspectos mais convencionais do governo140
A segunda duacutevida do seu livro recai sobre o domiacutenio de Secircneca e Burro
ldquoqual teria sido a natureza e a duraccedilatildeo da influecircncia dos conselheirosrdquo A
resposta se vincula ao assassinato de Agripina Para Griffin tanto Secircneca quanto
Burro deviam suas posiccedilotildees a ela porquanto Secircneca tornou-se conselheiro do
138
Tendo em vista que para Griffin (2001 p 16-17) ldquoo evento mais importante do reinado de
Nero foi seu colapsordquo a ecircnfase do seu livro estaacute necessariamente no sistema e no envolvimento do
governante nele e natildeo no proacuteprio indiviacuteduo e seu meacutetodo eacute temaacutetico em vez de estritamente
analiacutetico O resultado eacute uma anaacutelise minuciosa e persuasiva um trabalho soacutebrio atencioso e
confiaacutevel A autora problematiza bastante as fontes antigas dando atenccedilatildeo especial agraves narrativas
de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e em algumas ocasiotildees agraves de Secircneca Ela tambeacutem investiga
documentaccedilatildeo epigraacutefica e numismaacutetica 139
GRIFFIN 2001 p 40 140
GRIFFIN 2001 p 43
55
jovem princeps em 49 e Burro virou o uacutenico Prefeito da Guarda Pretoriana de
Roma em 51 Por isso nunca foram a favor de mataacute-la a despeito da sua peacutessima
interferecircncia Essa oposiccedilatildeo provocou uma quebra de confianccedila na relaccedilatildeo com o
princeps a qual jamais foi restaurada Quando Nero percebeu que havia efetivado
o matriciacutedio sem a ajuda dos dois viu que natildeo precisava mais deles o que
enfraqueceu o controle positivo dos tutores141
A partir daiacute a autora discorre sobre o Turning Point (Ponto da Virada)
momento em que a influecircncia de Secircneca e de Burro de fato desapareceu e
surgiram parceiros ruins Nessa loacutegica apresenta a terceira pergunta da sua obra
ldquoquando ocorreu a descida de Nero agrave tiraniardquo Ela demonstra que Suetocircnio natildeo eacute
muito uacutetil em dar uma data Taacutecito opta pelo falecimento de Burro e a ascensatildeo de
Tigelino em 62 e Diatildeo Caacutessio seleciona os homiciacutedios de Britacircnico em 55 e o de
Agripina em 59 Com base nesses dados formula sua proacutepria soluccedilatildeo a descida agrave
tirania se inicia em 62 com o divoacutercio e o assassinato de Otaacutevia Os dois eventos
causaram o rompimento da ligaccedilatildeo de Nero com Claacuteudio e com a dinastia Juacutelio-
Claacuteudia a qual legitimava a sua posse do trono Trata-se de um rompimento
seguido pelo controle de Tigelino e Popeia que passaram a encorajar o
exibicionismo como um meio para a popularidade e a repressatildeo como um antiacutedoto
para o medo142
O uacuteltimo autor do grupo Shotter (1939- ) ratifica o posicionamento de
Griffin acerca da interferecircncia nociva de Tigelino Professor emeacuterito de Histoacuteria
do Impeacuterio Romano na Universidade de Lancaster ele eacute um pesquisador
especialista nas dinastias Juacutelio-Claudiana e Flaviana com publicaccedilotildees bastante
famosas e comercializadas a exemplo dos livros Nero (1997) Augustus Caesar
(2004) e The Fall of the Roman Republic (2005)143
Em relaccedilatildeo agrave obra Nero Shotter escreveu uma biografia com a intenccedilatildeo de
atingir um puacuteblico leigo dado que faz uma anaacutelise restrita e pouco criacutetica das
fontes Nesse sentido referencia em poucos momentos a trageacutedia Octauia e as
narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio os mais recorrentes nos estudos do
Principado neroniano144
Aliaacutes o seu uso de tais escritores eacute seletivo porque
141
GRIFFIN 2001 p 67-82 142
GRIFFIN 2001 p 83-118 143
SHOTTER 2002 144
O livro de Shotter pertence a uma seacuterie intitulada Lancaster Pamphlets cujo objetivo eacute oferecer
relatos concisos e atualizados dos principais toacutepicos histoacutericos a fim de ajudar alunos que fazem
56
privilegia os relatos taciteanos a fim de demonstrar que Nero foi um bom
governante enquanto permitiu-se deixar-se guiar e assistir por homens de
consideraacutevel capacidade145
O autor alega que durante o controle de Secircneca e de Burro o Principado
seguiu um vieacutes moderado paciacutefico e conciliatoacuterio A seguranccedila e a prosperidade
progrediram na maior parte do Impeacuterio graccedilas agraves influecircncias dos tutores na
escolha de bons comandantes militares e governadores de proviacutencias os quais
despendiam forccedilas e os proacuteprios recursos para solucionar os problemas No
entanto a morte de Burro e o afastamento de Secircneca trouxeram agrave cena ldquo[] o
perverso Ofocircnio Tigelino que encarou como sua funccedilatildeo aquiescer aos mais
rasteiros instintos de Nerordquo146
Ele incentivou a concretizaccedilatildeo de vaacuterias
atrocidades como as mortes de Rubeacutelio Plauto e de Fausto Sula levando o
princeps a acreditar que esses homens ndash e muitos outros ndash configuravam uma
potencial rivalidade em virtude das ligaccedilotildees que tinham com a casa imperial147
A ascensatildeo de Tigelino entatildeo causou o decliacutenio do bom governo Mas
natildeo apenas isso as mortes de Agripina de Otaacutevia de Secircneca e de Burro
possibilitaram o desenvolvimento de projetos que estavam abandonados148
Segundo Shotter essas perdas significavam um caminho livre de obstaacuteculos o
qual se afastava das linhas tradicionais delineadas por Augusto149
Era o caminho
dos prazeres culturais e sociais do soberano artista e do monarca heleniacutestico
opccedilotildees que despertaram insatisfaccedilotildees na ordem senatorial e nas tropas150
Em resumo acreditamos que os autores desse bloco ainda que de modo
parcial redigiram suas obras a partir da discussatildeo da tradiccedilatildeo mais comum acerca
do Principado neroniano Eles buscaram estabelecer uma interlocuccedilatildeo entre por
um lado as fontes antigas ndash em especial os Annales de Taacutecito ndash e por outro as
suas apresentaccedilotildees do governo do princeps as quais dividem esse periacuteodo em um
cursos introdutoacuterios nas universidades Para tanto disponibiliza notas e referecircncias adequadas
bem como extensa bibliografia ferramentas essenciais agrave compreensatildeo do Principado neroniano O
grande problema e nesse ponto concordamos com Barrett (2009 p 813) e Ehrhardt (1997 p 5) eacute
que Shotter faz uma discussatildeo rasa de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio natildeo nos dando uma imagem
clara da poliacutetica romana do sistema imperial ou da proacutepria vida e eacutepoca de Nero 145
SHOTTER 2008 p 46-48 146
SHOTTER 2008 p 53 147
SHOTTER 2008 p 54 148
SHOTTER 2008 p 54 149
SHOTTER 2008 p 54 150
SHOTTER 2008 p 142
57
momento inicial de esplendor e um momento final de tirania No final das
contas Nero natildeo era bom ou mau mas o resultado das influecircncias que sofreu
Os verdadeiros Neros
Em contraste com as ideias dos trecircs grupos expostos o quarto grupo busca
a essencialidade do soberano Os verdadeiros Neros satildeo representados por aqueles
que tentam encontrar o real caraacuteter do princeps e os seus autecircnticos propoacutesitos
governamentais e de vida Ateacute o momento lidamos com as abordagens
metodoloacutegicas inseridas em Nero um mau imperador e em Nero um bom
imperador que fizeram uma reconstruccedilatildeo fantasiosa do passado por meio da
leitura em geral literal de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Ocupamo-nos tambeacutem
dos procedimentos historiograacuteficos dos autores dispostos em Nero um imperador
fantoche os quais embora tenham feito um exame mais criacutetico da documentaccedilatildeo
adotam a versatildeo usual acerca do Principado neroniano De ora em diante
trataremos das interpretaccedilotildees que questionam as fontes e procuram suas
inverdades e contradiccedilotildees visando a construir um retrato mais real Iremos
apresentaacute-las em trecircs sub-blocos o primeiro abordaraacute as caracteriacutesticas
psicoloacutegicas do imperador o segundo versaraacute sobre seu lado artiacutestico e o terceiro
investigaraacute sua relaccedilatildeo com alguns aspectos do Principado Dito isso vamos ao
primeiro sub-bloco composto por trecircs autores
Iniciaremos com Vandenberg (1941- ) um proliacutefico escritor europeu de
livros histoacutericos e biograacuteficos para o grande puacuteblico Formado em Histoacuteria da
Arte e Histoacuteria Germacircnica na Universidade de Munique trabalhou por diversos
anos como jornalista nas revistas Quick e Playboy Em 1975 iniciou a redaccedilatildeo da
sua imensa seacuterie de livros publicando Ramseacutes II (1977) Nero (1981) Os
Conspiradores de Pedro (2006) entre outros Suas obras jaacute alcanccedilaram um total
de 25 milhotildees de coacutepias divulgadas em 34 idiomas e satildeo classificadas pelas
grandes livrarias mundiais como parapsicoloacutegicas ou seja satildeo parte da literatura
que expressa o subconsciente os transtornos e a histeria dos personagens O seu
58
Nero eacute entatildeo uma reflexatildeo sobre o estado mental do soberano e sobre o modo
como suas patologias se manifestavam151
Ao se basear especialmente nos relatos morais de Suetocircnio Vandenberg
argumenta que as atitudes do princeps precisam ser lidas a partir do exame dos
ancestrais da domus152 Juacutelio-Claacuteudia ldquohaveria nessas duas antiquiacutessimas famiacutelias
casos de anomalia mentalrdquo153
Ele responde apresentando pesquisas
desenvolvidas por historiadores da Medicina cujos resultados indicam as
tendecircncias bissexuais e a epilepsia de Ceacutesar os complexos fiacutesicos de Augusto a
esquizofrenia de Tibeacuterio a loucura de Caliacutegula e a debilidade mental de Claacuteudio
Era dessa ldquoseara de doidosrdquo que descendia Nero ldquoSeus antepassados pelo lado
paterno os Enobarbos [] eram indiviacuteduos instaacuteveis e desregradosrdquo154
Tal ancestralidade na visatildeo do autor justificaria os comportamentos
exibidos pelo imperador e as situaccedilotildees que lhes deram origem Por exemplo o
medo de novas oposiccedilotildees apoacutes a descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo em 65
levou-o a reforccedilar a guarda e a exterminar quaisquer possiacuteveis rivais155
Essa
atitude ndash e diversas outras ndash deve ser lida como uma consequecircncia da opressatildeo
sentida por um jovem inseguro sentado no trono
Todos esses comportamentos satildeo humanos e podem ser explicados [] Por isso natildeo se pode definir Nero como um
deacutebil mental ou um esquizofrecircnico Do ponto de vista psicopatoloacutegico os historiadores da medicina colocam Nero quando muito na categoria dos maniacuteacos A mania provoca uma necessidade de atividades em excesso fortalece os instintos suscita a fuga das ideias e a supervalorizaccedilatildeo do ego Nero nunca foi louco Mas entatildeo o que foi ele Um joguete da Histoacuteria156
151
VANDENBERG 1987 p 303 O livro de Vandenberg eacute um romance histoacuterico O autor usa os
textos de Taacutecito de Diatildeo Caacutessio e sobretudo de Suetocircnio para narrar com detalhes minuciosos
os episoacutedios da vida de Nero Em alguns momentos inclusive ele apresenta informaccedilotildees sobre o
princeps que natildeo estatildeo disponiacuteveis nas fontes O curioso eacute que apesar disso Vandenberg possui a
criticidade de entender que o cunho negativo da imagem de Nero deve-se ao modo como as fontes
foram transmitidas e ao contexto no qual estava inserido cada autor que as escreveu 152
De acordo com Saraiva (2006 p 393) o vocaacutebulo domus tinha diversos significados mas os
que se aplicam aqui satildeo ldquocasardquo ldquomoradardquo e ldquofamiacuteliardquo 153
VANDENBERG 1987 p 270 154
VANDENBERG 1987 p 270-273 155
VANDENBERG 1987 p 278 156
VANDENBERG 1987 p 278
59
Tempos depois Auguet (1935-1994) e Cazenave (1942-2018) aprofundam
o raciociacutenio psicoloacutegico O primeiro foi um jornalista especializado em Ciecircncias
Sociais e produtor na Radio-France com forte interesse na aacuterea de Histoacuteria
Antiga Entre os anos de 1974 e 1984 compocircs os ensaios Os Jogos Romanos e
Caliacutegula157
O segundo foi filoacutesofo radialista escritor e um apaixonado pela
psicanaacutelise especialista na obra de Carl Jung De 1984 a 2005 presidiu o Grupo
de Estudo Carl Jung de Paris e o Ciacuterculo Francoacutefono de Reflexatildeo e Informaccedilatildeo
sobre o trabalho do mesmo Seu fasciacutenio por Jung eacute refletido em muitas de suas
produccedilotildees como no Pequeno Dicionaacuterio do Amor Louco (2005) e Jung e os
Religiosos (2012)158
Esse mesmo fasciacutenio adentra tambeacutem a obra Os Imperadores Loucos
Ensaio de Mito-anaacutelise Histoacuterica elaborada em 1981 Nela Cazenave em
parceria com Auguet propotildee uma nova forma de fazer Histoacuteria a Histoacuteria
Etioloacutegica construiacuteda sobre alicerces independentes e em constante interaccedilatildeo Os
alicerces satildeo o poliacutetico o econocircmico o morfoloacutegico e o arquetipoloacutegico cuja
existecircncia se associa agrave psicanaacutelise de Jung Eacute no uacuteltimo que eles insistem a fim de
introduzirem na disciplina histoacuterica a dupla hipoacutetese de ldquoarqueacutetipos da
sociabilidaderdquo e de manifestaccedilotildees de uma ldquorealidade psiacutequica objetivardquo159
A
investigaccedilatildeo arquetipoloacutegica ldquo[] exige que o observador se situe no acircmago da
dinacircmica do arqueacutetipo estudado tornando-se deste modo como o fiacutesico quacircntico
ou o analista junguiano um participante na realidade que persegue []rdquo160
Eacute a partir desse ponto de vista que avaliam Nero perseguindo sobretudo
a narrativa suetoniana sobre o que eacute dito acerca dele161
Para os autores se
quisermos entender o imperador precisamos captar como ele pensava o seu
mundo e um dos principais elementos para tanto reside na religiatildeo visto que ele
tentou se fazer reconhecer como um deus162
157
Disponiacutevel em httpswwwidreffr026696401 Acesso em 24 fev 2020 158
CAZENAVE 2019 159
AUGUET CAZENAVE 1995 p 14-15 160
AUGUET CAZENAVE 1995 p 17 161
Aceitamos a visatildeo de Oliveira (1996 p 368) sobre o trabalho de Auguet e Cazenave ldquo[] aqui
estaacute um livro escrito com inteligecircncia e arguacutecia diria ateacute com alguma paixatildeo com paacuteginas
interessantes para serem lidas por quem se interessa por coisas romanas dispotildee de algum juiacutezo
criacutetico e gosta de controveacutersia Uma tentativa de reabilitaccedilatildeo pela mito-anaacutelise das figuras dos
imperadores loucos []rdquo com o propoacutesito de mostrar que eles natildeo eram tatildeo loucos assim
Todavia acreditamos que os autores empregam os relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio da
maneira que convecircm agrave sua anaacutelise criticando-os ou natildeo apenas quando julgam necessaacuterio 162
AUGUET CAZENAVE 1995 p 150-151
60
De acordo com Auguet e Cazenave a divindade de Nero afirma-se desde a
sua origem em Acircncio no ano 37 quando foi tocado pelos raios do sol ao
nascer163
Para os antigos egiacutepcios nascer ao romper do sol era equivaler
simbolicamente ao deus-sol Raacute e ser o seu representante o ldquoungido do Senhorrdquo
A ressonacircncia egiacutepcia e o fundamento solar divino se fortalecem no momento em
que Nero se torna imperador e adere aos misteacuterios do Masdeiacutesmo graccedilas agrave
influecircncia de Tiridates164
Entre as divindades cultuadas nessa religiatildeo estava
Anahita deusa do amor e da fertilidade a qual era adorada por Nero e foi
associada em Roma agrave deusa Cibele165
Nessa via de interpretaccedilatildeo falar da adoraccedilatildeo a Cibele eacute exatamente o que
permite dar sentido agraves atitudes do soberano Consideremos um episoacutedio que os
autores retiram de Suetocircnio o casamento com o liberto Esporo em 66 O
imperador exigiu a castraccedilatildeo do liberto vestiu-o de mulher mandou-o vir com o
seu dote e o seu veacuteu alaranjado num cortejo e o tomou como sua esposa Tal cena
embora grotesca era a mesma de um dos rituais a Cibele166
Auguet e Cazenave
explicam que uma parte do ritual consistia na castraccedilatildeo de jovens que apoacutes se
mutilarem com facas jogavam as partes iacutentimas ensanguentadas sobre a estaacutetua
da deusa passando depois a se vestirem com roupas femininas e a cultivarem
cabelos longos O enlace com Esporo portanto foi uma tentativa neroniana de se
aproximar da deusa Cibele o que suplantava uma simples atitude violenta
afirmam os autores167
A verdade eacute que se o princeps fosse lido de modo
adequado deixaria de ser um monstro ridiacuteculo e odioso Ele foi louco idiota e
canalha mas pode ter sido tambeacutem qualquer coisa de extremamente
extraordinaacuterio Os estudiosos precisam ir aleacutem dos testemunhos das fontes que
ignoram os motivos religiosos em prol da oposiccedilatildeo poliacutetica Essa eacute uma
interpretaccedilatildeo pobre que negligencia o contexto real das disputas pelo poder e
163
AUGUET CAZENAVE 1995 p 151 164
AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Fundada na antiga Peacutersia pelo profeta Zoroastro o
Masdeiacutesmo tambeacutem chamado de Zoroastrismo era uma religiatildeo dualista que ensinava o eterno
combate entre as potecircncias sobrenaturais do bem e do mal O culto girava em torno das forccedilas e
deuses da aacutegua e do fogo (BOYCE 2001 p 3-12) 165
AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Sobre o culto a Cibele cf SILVA 2021 p 1-22 166
AUGUET CAZENAVE 1995 p 155 167
AUGUET CAZENAVE 1995 p 156
61
reteacutem apenas alguns siacutembolos de alcance praacutetico da Histoacuteria romana sem
verdadeiro e obscuro conteuacutedo psiacutequico168
O debate psicoloacutegico finaliza aqui com Beato (1935- ) docente de Latim
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Licenciado em Filologia
Claacutessica Mestre e Doutor em Literatura Latina pela mesma instituiccedilatildeo eacute autor de
artigos sobre criacutetica literaacuteria divulgados em revistas especializadas Eacute compositor
tambeacutem de uma biografia chamada Nero (2000) de uma traduccedilatildeo das Bucoacutelicas
(2006) de Calpuacuternio Siacuteculo e outra das Confissotildees (2008) de Agostinho169
Ao biografar Nero Beato recorre aos textos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo
Caacutessio cujas narrativas fundamentam suas afirmaccedilotildees e conferem credibilidade
ao seu trabalho170
Recorre ainda agrave Psicologia se natildeo apta de redimir Nero dos
muitos crimes que praticou ao menos capaz de integraacute-lo no contexto em que
foram cometidos e assim atenuar a sua responsabilidade Em poucas paacuteginas
delineia o caraacuteter do mais jovem imperador de Roma mostrando-o como um
indiviacuteduo dominado por quatro caracteriacutesticas instabilidade medo duplicidade e
megalomania171
A primeira herdada da famiacutelia materna manifesta-se ao longo
de todo o seu governo
Nas circunstacircncias banais do dia-a-dia bem como nos momentos decisivos da sua governaccedilatildeo ela estaacute sempre em
evidecircncia O contraste que assinala o iniacutecio do seu Principado ndash em que revela um notaacutevel domiacutenio emocional ndash e o fim do mesmo ndash em que demonstra uma total falta de controle ndash prova agrave sociedade o que se acaba de dizer172
A segunda caracteriacutestica adveacutem da infacircncia de Nero devido agrave presenccedila
intimidante de Agripina que o forccedilava a assumir atitudes contraacuterias agrave sua forma
de estar no mundo O soberano infelizmente ldquo[] natildeo foi capaz de vencer o
medo que antes da morte nasceu de si proacuteprio Por isso se lhe rendeu recorrendo
168
AUGUET CAZENAVE 1995 p 209 169
BEATO 2000a p 3 170
O trabalho de Beato estaacute inserido na coleccedilatildeo Vultos da Antiguidade que traz livros curtos
superficiais e com narrativas proacuteximas a um romance dando a conhecer as figuras mais famosas
da Antiguidade Ao escrever sobre Nero o autor analisa as narrativas das trecircs fontes antigas agrave luz
de duas perguntas ldquoi) teratildeo os trecircs bioacutegrafos de Nero recorrido agraves mesmas fontes por certo
restritas para a elaboraccedilatildeo das suas obras e ii) essas fontes seriam as uacutenicasrdquo Eacute com base nelas
que Beato tenta encontrar novos dados sobre o princeps que lhe permitam reformular a opiniatildeo do
leitor sobre Nero (BEATO 2000b p 9) 171
BEATO 2000b p 14 172
BEATO 2000b p 14
62
ao suiciacutediordquo173
A terceira a duplicidade eacute definida por Beato como a marca
central da personalidade imperial Nero foi capaz ao mesmo tempo de usar da
maior liberalidade como da maior avareza Eacute por essa razatildeo que ora ele
proporcionava jogos ao povo e distribuiacutea trigo aos pretorianos ora roubava os bens
das pessoas na escuridatildeo da noite e servia-se do incecircndio de Roma para se
aproveitar da falta de dinheiro mandando fundir as estaacutetuas dos deuses174
A
quarta e uacuteltima caracteriacutestica eacute o aspecto pelo qual o princeps guiava as suas accedilotildees
e pelo qual eacute mais criticado Para Beato
as exibiccedilotildees histriocircnicas a que se presta os esforccedilos que empreende para rebatizar determinadas cidades do Oriente a tentativa que faz para substituir o nome do mecircs de abril pelo de Nero [] satildeo disso um claro testemunho Natildeo menos significativos do que estes fatos satildeo o construir da Domus
Aurea o pescar com redes de ouro e nunca viajar ldquocom menos de mil viaturasrdquo []175
Em resumo dentro do vieacutes psicoloacutegico Nero eacute lido como um homem
cheio de defeitos e dotado de um pesado fardo geneacutetico Desde o seu nascimento
eacute envolvido numa teia de influecircncias imorais e negativas que moldam a sua iacutendole
do pior modo possiacutevel No fim eacute como se todos os defeitos dos Juacutelio-Claudianos
tivessem sido transmitidos a ele e justificassem o seu modo de agir e de pensar A
nosso ver tais abordagens satildeo importantes e merecem ser destacadas ndash ainda que
por boas razotildees sejam pouco aceitas ndash pois elas evidenciam uma faceta essencial
da tradiccedilatildeo da construccedilatildeo dos Neros sua loucura Os autores ao comporem seus
livros em uma eacutepoca em que a medicalizaccedilatildeo da sauacutede mental jaacute havia se
consolidado atribuiacuteram novos sentidos agraves informaccedilotildees das fontes produzindo
interpretaccedilotildees impensaacuteveis para os antigos sobretudo se considerarmos a
historicidade da loucura
A seguir trataremos das obras que datildeo mais ecircnfase aos desejos artiacutesticos
de Nero Elas o representam mais como um artista do que como um imperador
colocando-o no papel de fundador de uma nova ordem mundial quase miacutetica de
revoluccedilotildees esteacuteticas Sob tal oacutetica estatildeo dispostas muacuteltiplas produccedilotildees como o
artigo Nero the Artist Criminal redigido em 1966 por Frazer Jr ex-professor da
173
BEATO 2000b p 14 174
BEATO 2000b p 15 175
BEATO 2000b p 15
63
Universidade de Tulane176
o livro Nero escrito em 1999 por Malitz docente da
Universidade Catoacutelica de Eichstaumltt-Ingolstadt177
a obra Nero Monstro
Sanguinaacuterio ou Imperador Visionaacuterio concebida em 2010 pelo historiador
Schmidt178
e por uacuteltimo o artigo The Performing Prince composto no ano de
2013 por Fantham professora emeacuterita da Universidade de Princeton179
Entre
todos os trabalhos jaacute publicados optamos novamente por dissecar os quatro mais
referenciados nos debates sobre Nero o artista
Nesse cenaacuterio as ideias de Charles-Picard (1913-1998) satildeo um excelente
ponto de partida Filho de um importante helenista desde jovem envolveu-se com
a Antiguidade acompanhando o pai em exploraccedilotildees arqueoloacutegicas por Roma e
Cartago Esse envolvimento despertou a sua vontade de seguir uma carreira na
aacuterea levando-o a se graduar em Histoacuteria em 1938 e a se doutorar em Letras em
1954 ambas as formaccedilotildees feitas na Universidade de Paris-Sorbonne Foi laacute que
atuou como Professor de Histoacuteria e membro do Comitecirc Francecircs de Trabalhos
Histoacutericos e Cientiacuteficos na seccedilatildeo de Arqueologia e Arte Sua educaccedilatildeo e carreira
profissional refletem-se no teor de suas produccedilotildees entre as quais se destacam
LrsquoArt Romain (1962) Architecture Universelle Le Monde Romain (1965) e
Empire Romain (1980)180
A temaacutetica artiacutestica norteia todo o seu livro Auguste et Neacuteron Le Secret de
LrsquoEmpire lanccedilado em 1962 Nele o autor analisa os eventos dos Principados
augustano e neroniano agrave luz da Arqueologia no intuito de construir uma
interpretaccedilatildeo histoacuterica dos monumentos No governo de Nero em especiacutefico
utiliza tambeacutem os relatos de Taacutecito de Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio181
O princeps eacute
176
ldquoNossa anaacutelise do personagem de Nero confirma a imagem que temos de um artista-arsonista e
nos faz questionar se algum dos outros crimes de que eacute acusado mostra o toque do artistardquo
(FRAZER JR 1966 p 18) 177
Malitz (2005 p 40-79) afirma que os interesses artiacutesticos de Nero tomaram muito do seu
tempo e que seu verdadeiro entusiasmo recaiacutea sobre performances artiacutesticas 178
Schmidt (2011 p 9) questiona se apesar dos fracassos Nero natildeo compreendeu muito melhor o
seu tempo do que se tinha pensado tentando reformaacute-lo artisticamente 179
Nesse artigo Fantham (2013 p 17-28) descreve o tipo de atividade esportiva ou artiacutestica que
as monarquias constitucionais modernas consideram aceitaacutevel em um priacutencipe e as compara com
as atividades exercidas pelos priacutencipes Juacutelio-Claudianos Feito isso ela analisa a evoluccedilatildeo artiacutestica
de Nero indo desde a sua apresentaccedilatildeo privada com a lira ateacute as suas performances puacuteblicas 180
DANESI FRANCcedilOIS 2015 181
No livro Charles-Picard (1962 p 5) se propotildee a responder a trecircs perguntas ldquo1) o que eacute um
imperador 2) por que e quando nasceu essa dignidade 3) como isso se difere da realeza e da
ditadurardquo Para responder a elas investiga os governos de Augusto e de Nero na tentativa de
determinar o que significava para cada um tornar-se imperador e o efeito que sua reaccedilatildeo teve no
desenvolvimento do Principado Em especial no estudo de Nero procura demonstrar que se ele
64
exibido por Charles-Picard como um monarca que se considerava um artista
negligenciando os deveres poliacuteticos e tentando substituir o Impeacuterio da forccedila pelo
reinado da esteacutetica ndash um poeta apaixonado pela beleza que nutria um sentimento
de revolta contra a ordem estabelecida enquanto sonhava com um mundo natildeo
mais comandado pelas regras morais tradicionais Na concepccedilatildeo do autor o
soberano trocou o racionalismo por uma esteacutetica fundada na paixatildeo convocando a
magia dos sonhos o misteacuterio e o extraordinaacuterio Ou seja Nero implantou uma
revoluccedilatildeo esteacutetica ele ldquo[] se comprometeu a perturbar o mundo pelo qual era
responsaacutevel [] a fim de tornaacute-lo mais bonito do seu ponto de vistardquo182
Para
cumprir tal objetivo criou um ciacuterculo literaacuterio a Aula Neronis no qual era
naturalmente o liacuteder Esse ciacuterculo afirma Charles-Picard reunia-se no palaacutecio
imperial e tinha como membros os artistas e pessoas de bom gosto da eacutepoca
Consistia em uma espeacutecie de partido cuja atividade ao inveacutes de ser poliacutetica ou
militar era de ordem esteacutetica Os principais meios de accedilatildeo se pautavam em festas
as quais serviam a trecircs propoacutesitos unir o grupo provocar a admiraccedilatildeo do puacuteblico
por sua suntuosidade e desafiar a moralidade contraacuteria ao novo ideal183
Ademais Nero promoveu alguns eventos culturais em Roma a exemplo
dos Juvenalia no ano 59 e dos Neronia em 60 e 65 O primeiro contou com
diversos tipos de performances teatrais gregas e romanas184
Agrave ocasiatildeo o
soberano encorajou o envolvimento de senadores e equestres e fez sua primeira
apariccedilatildeo no palco afinando sua lira e testando sua voz185
O segundo foi um
festival quinquenal aos moldes gregos que teve a apresentaccedilatildeo de indiviacuteduos da
aristocracia em concursos de poesia de muacutesica de atletismo e de corridas de
bigas Segundo o autor os jogos demonstraram a vontade neroniana de criar uma
nova ordem reeducar a populaccedilatildeo e alegrar o seu mundo186
As competiccedilotildees no
estilo helecircnico indicaram o seu desejo de trazer para Roma eventos civilizados
menos sangrentos e que englobassem todos os habitantes abolindo as distinccedilotildees
entre as categorias sociais
negligenciou os deveres poliacuteticos que lhe incumbiram foi porque compreendeu perfeitamente o
seu papel artiacutestico (TOWNEND 1967 p 249) 182
CHARLES-PICARD 1962 p 199 183
CHARLES-PICARD 1962 p 199-222 184
Os Juvenalia foram celebrados para comemorar a primeira barba feita de Nero (Suet Nero 12) 185
CHARLES-PICARD 1962 p 217 186
CHARLES-PICARD 1962 p 219-220
65
O grande problema foi que Nero ao perseguir o seu sonho perdeu a razatildeo
alega Charles-Picard Sua ousadia o fez esquecer o limite do possiacutevel e do
impossiacutevel do real e do imaginaacuterio Isso poreacutem natildeo diminui o fato de ele ter
projetado uma realidade governada por padrotildees esteacuteticos
Nero natildeo eacute o precursor de uma sociedade possiacutevel nascido cedo demais Ele eacute o campeatildeo de uma utopia e o mais surpreendente em sua aventura eacute que essa utopia poderia ter seduzido uma fraccedilatildeo consideraacutevel da humanidade187
Anos mais tarde Cizek (1932-2008) divulgou a sua opiniatildeo acerca desse
debate Trata-se de um estudioso romeno com dois doutorados um em Filologia
na Universidade de Bucareste e outro em Letras na Universidade de Lyon Entre
1985 e 1993 foi professor de Literatura Latina na Universidade de Bucareste e na
Universidade de Lyon onde se aposentou Em geral seus interesses acadecircmicos
concerniam ao estudo das mentalidades poliacuteticas e coletivas bem como da
Axiologia teoria sobre as regras e os preceitos morais reguladores do
comportamento humano Dentro dessa perspectiva redigiu em 1982 o livro
Neacuteron e em 2005 o artigo Lrsquoexpeacuterience Neacuteronienne Reacuteforme ou Reacutevolution188
Eacute embasado na Axiologia que Cizek escreveu o seu Neacuteron no qual relecirc
toda a documentaccedilatildeo disponiacutevel sobre o princeps e a apresenta de forma
inovadora tentando natildeo julgar o soberano mas compreendecirc-lo189
Nesse sentido
admite que Nero foi um sujeito devotado a implantar uma reforma axioloacutegica na
sociedade romana ndash reforma porque ele natildeo empreendeu uma ruptura total de
padrotildees culturais mas preferiu transformaccedilotildees progressivas e graduais
187
CHARLES-PICARD 1962 p 269 188
Disponiacutevel em httpswwwlesbelleslettrescomlivreeugen-cizek Acesso em 24 fev 2020 189
Concordamos com Dubuisson (1987 p 241-242) quando afirma que se os historiadores da
contemporaneidade tecircm uma imagem de Nero diferente daquela do estereoacutetipo contido nas fontes
histoacutericas eacute graccedilas em parte ao trabalho de Cizek o qual trouxe uma percepccedilatildeo clara das
correntes ideoloacutegicas do primeiro seacuteculo dando novo sentido aos atos e aos comportamentos do
princeps Ao inveacutes de julgar o soberano Cizek procura entender a loacutegica do seu pensamento
tarefa que realiza segundo Dubuisson por meio da reflexatildeo de trecircs questotildees i) com que propoacutesito
Nero confrontou o Senado ii) com que intenccedilatildeo se exibia no palco e iii) por que apesar da forte
oposiccedilatildeo senatorial ele fez uma grande viagem agrave Greacutecia que parece ter contribuiacutedo para sua
queda A resposta eacute construiacuteda a partir do uso de toda documentaccedilatildeo disponiacutevel ndash literaacuteria e natildeo
literaacuteria ndash de onde Cizek extrai tudo libertando-se da dependecircncia estreita de Taacutecito Suetocircnio e
Diatildeo Caacutessio Por exemplo ele explora a numismaacutetica e os tratados De Clementia e De Vita Beata
escritos por Secircneca Acima de tudo o autor enxerga no Principado de Nero um momento
particularmente importante no confronto tatildeo caracteriacutestico do primeiro seacuteculo entre o Oriente
helenizado e o Ocidente romanizado
66
desafiando realidades existentes ou anteriores para reivindicar outras Dito de
outro modo reformou o sistema de valores fazendo a sociedade aceitar preceitos
morais muito distintos daqueles que ela conhecia ateacute entatildeo190
Sem duacutevida a reforma das mentalidades foi orientada [] para
uma reorientaccedilatildeo dos valores o que preferimos chamar de reforma axioloacutegica Estas satildeo as palavras que achamos mais apropriadas Em nossa opiniatildeo esta eacute a substacircncia do projeto de Nero para mudar a vida de seus suacuteditos [] Eacute certo que essa mudanccedila gradual implicou outras reformas de longo alcance como as reformas da moral educaccedilatildeo cultura e estruturas poliacuteticas Entatildeo Nero estava considerando todas elas na
esperanccedila de alcanccedilar uma vida inimitaacutevel e incriacutevel que era importante para ele191
Na praacutetica ele desejava libertar os romanos dos tabus de seus ancestrais
modificando o modo como ajuizavam o mundo Consciente de que o coacutedigo
sociocultural da antiga Roma republicana era obsoleto comprometeu-se a
reordenar a velha virtus revisando a gravitas (seriedade) a pudicitia (castidade)
a pietas (piedade) entre outros princiacutepios ndash reconsiderados em consonacircncia com a
vocaccedilatildeo artiacutestica do imperador o absolutismo teocraacutetico baseado no Helenismo e
a expansatildeo das fronteiras do Impeacuterio192
Agrave revisatildeo dos valores seguiu-se a disseminaccedilatildeo de dois novos agocircn e
luxus Cizek esclarece que o primeiro advindo do grego significa ldquocompeticcedilatildeordquo
ou ldquolocalidade para jogos para concorrentes e para espectadoresrdquo Eacute portanto um
preceito vinculado ao feito esportivo o que revela a intenccedilatildeo imperial de seguir o
caminho artiacutestico com vistas agrave satisfaccedilatildeo pessoal O segundo termo procedente do
latim tem sentido de ldquoauspiciosordquo ldquoexcessordquo e ldquolibertinagemrdquo ou seja tudo o
que permite diversatildeo sem impedimentos Ao passo que o agocircn relacionava-se ao
componente heleniacutestico da reforma o luxus conotava a parte italiana referindo-se
ao prazer livre tatildeo amado por Nero Esses dois novos valores apesar de
importantes para o imperador natildeo o fizeram aniquilar os antigos ideais romanos
os quais foram inseridos como secundaacuterios na reforma axioloacutegica a fim de
reduzir oposiccedilotildees193
Essa inserccedilatildeo foi acompanhada ainda de medidas voltadas
ao sucesso total do projeto a saber a inauguraccedilatildeo de jogos e de espetaacuteculos os
190
CIZEK 1982b p 21 191
CIZEK 1982a p 108 192
CIZEK 1982b p 408-409 193
CIZEK 1982b p 161-165
67
Juvenalia e os Neronia a criaccedilatildeo de escolas imperiais onde se podia adquirir
treinamento artiacutestico a formaccedilatildeo dos Augustiani194 jovens propagandistas da
nova educaccedilatildeo e o assassinato de Agripina que se opunha ao projeto195
Natildeo demorou entatildeo para a plebe da Vrbs196 e uma parcela da elite
aderirem agrave reforma Alguns senadores e equestres poreacutem fingiram concordar
com o projeto no intuito de mais tarde oporem-se a ele ostensivamente Cizek
pondera a dificuldade de certos membros do Senado em lidar com uma axiologia
centrada no agocircn e na luxus e que transformava uma dolce vita em um plano de
governo Isso revela que o fato de Nero ter tentado reformar ndash e natildeo revolucionar
ndash o coacutedigo sociocultural natildeo tornou o seu negoacutecio mais faacutecil Verdade seja dita
suas ideias natildeo foram um capricho impensado porque o novo projeto de axiologia
surgiu num momento em que era necessaacuteria a renovaccedilatildeo da mentalidade197
Em oposiccedilatildeo a Cizek temos Champlin (1948- ) Natural de Nova Iorque
cresceu e fez quase toda a sua formaccedilatildeo na cidade de Toronto no Canadaacute onde
conquistou os diplomas de bacharel em Histoacuteria e mestre em Estudos Claacutessicos
Seguiu depois para a Universidade de Oxford finalizando o doutorado em
Estudos Claacutessicos Atualmente ensina no Departamento de Humanidades da
Cotsen na Universidade de Princeton pesquisando a histoacuteria social e cultural da
Repuacuteblica romana tardia e do iniacutecio do Impeacuterio No decorrer dos seus 40 anos
como docente escreveu cerca de 40 artigos e lecionou cursos com temaacuteticas
variadas tornando-se uma das figuras mais influentes no campo dos Estudos
Claacutessicos Todas as suas obras trazem rigor filoloacutegico e uso criativo dos textos
literaacuterios como documentos histoacutericos aleacutem de mesclarem elementos juriacutedicos
topograacuteficos folcloacutericos e mitoloacutegicos Citamos aqui as mais prestigiadas The
Augustan Empire 43 BC-AD 69 (1996) The Cambridge Ancient History ndash
Volume X (1996) e Nero (2005)198
O ponto central dessa uacuteltima obra eacute a autoconceitualizaccedilatildeo de Nero em
termos das Mitologias Grega e Romana Champlin sugere que o soberano era um
mestre manipulador de mitos para fins poliacuteticos usando figuras mitoloacutegicas para
194
ldquo[] Equestres [] que faziam soar o dia e a noite com aplausos e elogios agrave beleza e a voz
divinas de Nero []rdquo (CHAMPLIN 2005 p 60) 195
CIZEK 1982a p 113 196
Cidade ou circuito da cidade (SARAIVA 2006 p 1244) 197
CIZEK 1982a p 115 198
CHAMPLIN 2020
68
criar uma potente imagem imperial Argumenta que os excessos teatrais do
princeps que chocaram e fascinaram os contemporacircneos devem ser tratados
como performances evocadoras do mundo da mitologia ao inveacutes de serem apenas
o produto dos preconceitos das fontes199
O autor explica que o elemento mitoloacutegico sempre esteve presente no
cotidiano romano Na Arte na Literatura nas casas particulares nas pinturas nas
esculturas e nos grafites era comum encontrar vocabulaacuterios lendaacuterios que
forneciam coacutedigos decifraacuteveis por todos A popularidade das lendas facilitava a
associaccedilatildeo dos governantes a deuses e a heroacuteis pois eles sabiam que os cidadatildeos
captariam suas mensagens Alexandre Pompeu e Marco Antocircnio por exemplo
vincularam-se agraves faccedilanhas de Dioniacutesio e de Heacutercules transformando os pedigrees
heroicos em armas para a legitimaccedilatildeo do poder Nero por sua vez associou-se agrave
figura de Orestes encenando seus feitos no palco200
Para Champlin entatildeo havia uma racionalidade por traacutes das atitudes do
soberano a qual natildeo foi captada e transmitida pela nossa tradiccedilatildeo literaacuteria hostil
Eacute possiacutevel encontrar para a maioria dos seus atos mesmo os mais excecircntricos
uma finalidade que natildeo possui relaccedilatildeo com os motivos que lhe foram atribuiacutedos
Por mais monstruoso que seu comportamento parecesse havia um objetivo para
tanto Ele a todo o tempo calculava os efeitos das suas atitudes em uma
audiecircncia201
Inclusive suas performances teatrais eram planejadas com o fito de
atingirem certos propoacutesitos O proacuteprio assassinato de Agripina foi encenado em
consonacircncia com o mito de Orestes uma relaccedilatildeo cautelosamente pensada202
O autor comenta que o matriciacutedio foi o ato definidor do Principado de
Nero libertando-o da pessoa que o mantinha longe dos palcos Natildeo eacute agrave toa que
apoacutes o homiciacutedio o imperador comeccedilou a se apresentar sendo Orestes um dos
199 CHAMPLIN 2005 p 236-237 Segundo Roche (2006 p 1-4) os dois pressupostos fundamentais que regem o estudo de Champlin satildeo a racionalidade das accedilotildees do imperador e a
ressonacircncia dessas mesmas accedilotildees nas atitudes sociais da eacutepoca Ele representa Nero como um
brilhante inteacuterprete e explorador de exempla mitoloacutegicos um princeps cujas inversotildees das normas
sociais e das estruturas de poder estavam inseridas em um programa abrangente de imagens
puacuteblicas que buscavam constantemente confirmar e estender a conexatildeo entre o imperador e o seu
puacuteblico Sua construccedilatildeo da representaccedilatildeo neroniana vai aleacutem da simples leitura de Taacutecito
Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio pautando-se tambeacutem em fontes materiais e em outras fontes literaacuterias
como a Apocolocyntosis a Octauia os Epigrammata e a Naturalis Historia 200
CHAMPLIN 2005 p 93-94 201
CHAMPLIN 2005 p 237 202
CHAMPLIN 2005 p 99-103
69
seus papeacuteis favoritos203
ndash favoritismo que na opiniatildeo de Champlin relacionava-se
ao fato de Orestes ser um matricida justificado Ele matara a matildee natildeo soacute porque
seu pai e Apolo exigiram vinganccedila mas porque Clitemnestra roubara sua heranccedila
e o povo de Micenas estava sofrendo sob a tirania de uma mulher204
Essa era a essecircncia da campanha poacutestuma contra Agripina sobretudo quando relatada na carta de Secircneca ao Senado que ela havia ido aleacutem de seu papel feminino para almejar o poder supremo minando lealdades e ateacute planejando matar seu filho como Clitemnestra teria ameaccedilado a crianccedila Orestes a
preservaccedilatildeo de Nero [] estava intimamente ligada agrave preservaccedilatildeo do Impeacuterio [] 205
No fim foi Nero ndash e natildeo seus inimigos ndash que escolheu mitificar a morte da
sua matildee Ao dramatizar Orestes no palco ele usava uma maacutescara com suas
proacuteprias feiccedilotildees almejando conceder credibilidade aos seus tormentos
existenciais e publicizar a sua culpa206
Aliaacutes o autor alega que o ecircxito na
demarcaccedilatildeo da culpa foi tatildeo grande que os antigos criacuteticos reagiram
demonstrando que ele natildeo era comparaacutevel a Orestes e sim pior
Filoacutestrato em sua Vida de Apolocircnio de Tiana observou que o
pai de Orestes havia sido assassinado por sua matildee mas que Nero devia sua adoccedilatildeo e o Impeacuterio a sua matildee Filoacutestrato o velho assinalou que enquanto Orestes vingava seu pai Nero natildeo tinha tal desculpa207
Em conclusatildeo Champlin atesta que se escrutinarmos a imagem de Nero
veremos que ele queria tornar-se o heroacutei de sua histoacuteria ansiando a imortalidade e
203
CHAMPLIN 2005 p 96-97 A histoacuteria de Orestes eacute a seguinte Agamenon rei de Micenas
tinha sido comandante-chefe do exeacutercito grego em Troia Ao retornar para casa depois da guerra
ele foi morto em sua banheira por sua esposa Clitemnestra e pelo amante dela Egisto Filho de
Clitemnestra e de Agamenon Orestes ao saber do crime fugiu de Micenas em direccedilatildeo agrave Foacutecida
pois suspeitava que Egisto tambeacutem pudesse mataacute-lo Ao se tornar adulto Orestes perguntou ao
oraacuteculo de Apolo em Delfos se deveria vingar seu pai Apolo respondeu que sim Disfarccedilado
Orestes foi ateacute Micenas e assassinou Egisto e Clitemnestra Reconhecendo seu filho Clitemnestra
apelou para seus sentimentos filiais desnudando o seio que o nutrira mas ele a derrubou
(GRIMAL 2005 p 338-340) 204
CHAMPLIN 2005 p 97 205
CHAMPLIN 2005 p 98 206
CHAMPLIN 2005 p 98 207
CHAMPLIN 2005 p 100
70
a fama ldquoEle era um artista que confiava em suas habilidades e visatildeo [] um
esteta comprometido com a vida como se ela fosse uma obra de arterdquo208
O encerramento da discussatildeo cultural dar-se-aacute com a exposiccedilatildeo do
pensamento de Edwards (1963- ) professora de Claacutessicos e Histoacuteria Antiga da
Birkbeck College na Universidade de Londres Com bacharelado e doutorado em
Estudos Claacutessicos pela Universidade de Cambridge apresenta atualmente a seacuterie
da BBC Mothers Murderers and Mistresses Empresses of Ancient Rome bem
como contribuiu para o programa de raacutedio In our Time da mesma emissora
debatendo sobre Cleoacutepatra e sobre a Eneida entre outros temas Suas pesquisas
centram-se na histoacuteria cultural do Mundo Antigo sobretudo na Roma do iniacutecio do
Principado com foco nas maneiras pelas quais os valores culturais e os aspectos
da identidade pessoal e social operavam atraveacutes da linguagem e eram
influenciados por ela Nessa linha teoacuterica lanccedilou os livros The Politics of
Immorality in Ancient Rome em 1993 Writing Rome Textual Approaches to the
City em 1996 e Death in Ancient Rome em 2007209
Entre os seus renomados textos haacute um capiacutetulo abrangendo o Principado
neroniano intitulado Beware of Imitations Theatre and the Subversion of
Imperial Identity (1994) cujo propoacutesito eacute debater as imagens artiacutesticas hostis de
Nero criadas por Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio O artigo traz a ideia jaacute bem
comentada da preocupaccedilatildeo do soberano em ser mais artista do que governante210
Trata-se de uma preocupaccedilatildeo que no entender da autora fecirc-lo transcender as
regras ordenadoras da sociedade romana recusando as virtudes imperiais no caso
dignitas (dignidade) e fides (fidelidade) e se apossando da teatralidade como
estrateacutegia de legitimaccedilatildeo do poder211
Ao fazer isso Nero virou a ordem social de
cabeccedila para baixo pois essas virtudes deveriam ser exibidas pelos governantes em
maior grau do que o apresentado pelos demais romanos Quando se tornou ator
assumiu um papel que parecia tatildeo distante quanto possiacutevel daquele de imperador
208
CHAMPLIN 2005 p 236 209
EDWARDS 2018 210
O capiacutetulo da autora estaacute contido no livro Reflections of Nero Culture History amp
Representation (1994) editado por Elsner e Masters o qual objetiva reexaminar as representaccedilotildees
de Nero nas fontes histoacutericas e questionar os fundamentos do mito neroniano Em seu texto
Edwards argumenta que o princeps esteve implicado em sua proacutepria representaccedilatildeo sendo pelo
menos em parte responsaacutevel por promover a imagem que sobreviveu apoacutes sua morte Ela defende
tambeacutem que o interesse de Nero pelo palco foi problemaacutetico para os membros da elite romana
ajudando na sua queda (ELSNER MASTERS 1994 p 6) 211
EDWARDS 1994 p 90-91
71
O homem que deveria ter sido o mais nobre de todos os
romanos alinhou-se com o mais ignoacutebil [] As virtudes romanas foram abandonadas O imperador imperator deveria ser o siacutembolo da coragem militar mas Nero era o inverso de um soldado bem-sucedido212
Nas matildeos de um ator-princeps portanto os valores foram distorcidos As
vitoacuterias militares que costumeiramente geravam a saudaccedilatildeo do soberano como
imperator transformaram-se em usos de soldados como audiecircncia para
performances teatrais Edwards inclusive menciona o fato de Nero ter decidido
natildeo conversar com suas tropas a fim de preservar sua voz para concursos de canto
A distorccedilatildeo continua quando o princeps ao retornar da sua turnecirc artiacutestica pela
Greacutecia executou um insulto agrave tradiccedilatildeo militar213
Na ocasiatildeo ele comemorou suas
vitoacuterias nos jogos helecircnicos como se fossem um triunfo honraria reservada aos
generais de grande sucesso Vestindo um robe decorado com estrelas douradas
ele montou na carruagem que Augusto usara em seu proacuteprio triunfo Em sua
cabeccedila Nero natildeo usava os louros triunfantes de um general mas a coroa oliva
oliacutempica e ele natildeo foi ao templo de Jupiter Optimus Maximus214
mas ao de
Apolo deus das artes215
O problema argumenta a autora foi que o princeps ao
fazer isso perdeu a distinccedilatildeo entre ilusatildeo e verdade Na tentativa de modificar as
virtudes que regiam a sociedade ele levou o teatro muito a seacuterio e se perdeu As
aparecircncias do palco tornaram confusas as relaccedilotildees entre signo e significado natildeo
havendo mais contraste entre o teatro e a vida real216
Tendo sido apontados os principais autores que investigam o Nero artista
duas questotildees merecem a nossa atenccedilatildeo Em primeiro lugar vimos que a visatildeo
negativa sobre a dedicaccedilatildeo imperial ao mundo cultural eacute bastante forte Por mais
que alguns estudiosos tenham interpretado o princeps como um homem agrave frente
de seu tempo propositor de reformas e revoluccedilotildees eles natildeo conseguiram escapar
dos relatos hostis das fontes e dos criacuteticos que natildeo aceitavam que um imperador
pudesse ser tambeacutem um ator ndash hostilidade intrincada na percepccedilatildeo de que um
212
EDWARDS 1994 p 87-91 213
EDWARDS 1994 p 90 214
O templo de Jupiter Optimus Maximus localizava-se no pico do monte Capitolino e era um dos
mais importantes da cidade de Roma Dentre as cerimocircnias ocorridas laacute destacavam-se a leitura de
auspiacutecios por magistrados que iniciariam campanhas militares e a oferta de sacrifiacutecios por generais
vitoriosos na conclusatildeo da procissatildeo triunfal (COARELLI 2007 p 32) 215
EDWARDS 1994 p 90 216
EDWARDS 1994 p 93
72
soberano com legiotildees sob o seu comando jamais poderia abandonar as atividades
puacuteblicas para competir como um artista A indulgecircncia amadora em uma arte ou
esporte ateacute seria perdoaacutevel mas a dedicaccedilatildeo obsessiva natildeo era Em segundo
notamos que alguns pesquisadores frisam a seriedade artiacutestica de Nero Defendem
que apesar da criacutetica e dos limites morais de sua eacutepoca ele levou a arte bem a
seacuterio criando jogos competiccedilotildees e novos valores para o seu mundo Sendo assim
o seu Principado deve ser lido se natildeo como uma espeacutecie de triunfo da arte sobre a
poliacutetica como uma tentativa de diminuir a fronteira entre os dois
Cremos ainda que se enganam aqueles que pensam que tais trabalhos estatildeo
ligados a uma emergecircncia casual e passageira da chamada Histoacuteria Cultural Esse
aspecto mais interno ao ambiente acadecircmico certamente tem seu peso Poreacutem
essas leituras que valorizam o papel da cultura e da arte dentro de um projeto
poliacutetico tecircm a ver para o bem e para o mal com a utilizaccedilatildeo efetiva da alianccedila
cultura-poder Os regimes autoritaacuterios que emergiram no seacuteculo XX ndash e no XXI ndash
claramente se embasaram nessa alianccedila a exemplo dos vaacuterios grupos nazifascistas
espalhados pelo mundo afora e que ainda hoje infelizmente satildeo bastante
atuantes Diversas perspectivas de revoluccedilatildeo ou reforma da sociedade sobretudo
aquelas de inspiraccedilatildeo Gramsciana tambeacutem apontaram nesse sentido Portanto a
atuaccedilatildeo de Nero como artista a qual em geral ligava-se mais agrave sua loucura
ganhou outra perspectiva o uso da arte como base para a afirmaccedilatildeo de um projeto
poliacutetico Isso nos leva a duas reflexotildees fundamentais i) o Principado de Nero
antecipa a ideia de que nenhum projeto poliacutetico pode se afirmar e conquistar as
massas sem possuir um projeto artiacutestico esteacutetico ii) a arte ao perder sua
autonomia frente ao Estado ou frente a um governante tiracircnico perde a razatildeo da
sua existecircncia passando a servir apenas aos desmandos do poder agraves vaidades e agrave
egolatria Sem duacutevida essa associaccedilatildeo Neroarte foi se alterando ao longo do
tempo e gerando muacuteltiplas leituras tanto do passado quanto do presente Trata-se
de um aspecto bastante atual e em aberto na constituiccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa Por
isso julgamo-lo essencial na composiccedilatildeo do repertoacuterio dos retratos neronianos
merecendo ser bem analisado pelos estudiosos do tema
Resta agora abordarmos o uacuteltimo sub-bloco desse grupo o dos autores que
examinam a relaccedilatildeo entre o soberano e o Principado Tal relaccedilatildeo se resume em
dois aspectos as dificuldades imperiais em lidar com os problemas inerentes do
73
Principado e os desentendimentos ocorridos entre Nero o Senado o exeacutercito e a
Guarda Pretoriana O primeiro tange agraves complicaccedilotildees sucessoacuterias do Principado
ao controle monetaacuterio e agraves expectativas militares geradas pelo sistema O segundo
ndash e o mais aprofundado nas obras ndash se refere ao fato de Nero natildeo ter escondido
sua posiccedilatildeo excepcional sob uma fachada republicana mas tecirc-la exercido de
forma manifesta Logo os autores daqui natildeo estatildeo interessados em avaliar os
traccedilos da personalidade do princeps e sim a maneira como ele conduziu o seu
governo Nesse acircmbito trataremos das produccedilotildees de Levi (1949) Griffin (2001)
Belchior (2016) e Osgood (2017) pois satildeo as que julgamos mais influentes
Comecemos por Levi (1902-1998) Historiador italiano e arqueoacutelogo
lecionou Histoacuteria Romana e Histoacuteria Grega na Universidade de Milatildeo entre os
anos de 1968 e 1977 Ao longo da sua carreira dedicou-se ao estudo das
antiguidades puacuteblicas e privadas gregas e romanas da histoacuteria social heleniacutestica e
de temas claacutessicos da Historiografia e da Cultura Poliacutetica grega Todavia a maior
parte da sua produccedilatildeo concernia agrave histoacuteria romana com atenccedilatildeo aos processos de
crise e de transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees217
Por exemplo no livro Augusto e il suo
Tempo caracterizou o contexto social da accedilatildeo poliacutetica de Otaviano e seu papel
como governante Em Nerone e i suoi Tempi revisitou os relatos de Taacutecito
Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio colocando o governo de Nero no quadro geral do tempo e
pintando um afresco da vida social da eacutepoca218
O foco no vieacutes institucional levou o autor a defender que o verdadeiro
motivo da queda de Nero foi uma discussatildeo com o Senado ocorrida entre 56 e 58
cujo foco foi o indeferimento da Reforma Fiscal Durante o seu terceiro
consulado Nero moveu no Senado uma moccedilatildeo de extinccedilatildeo dos impostos
indiretos visando a diminuir o custo de vida e a aumentar a capacidade de
consumo dos estratos sociais mais baixos219
Poreacutem o Senado natildeo se dispocircs a
217
MUSTI 1993 218
Nesse livro Levi natildeo se mostra iludido com o caraacuteter de Nero mas apenas busca oferecer uma
explicaccedilatildeo do porquecirc de os eventos do seu governo terem seguido o curso que seguiram
Resumidamente sua visatildeo eacute a de que a ascensatildeo do princeps coincidiu com o cliacutemax de uma luta
cultural entre influecircncias heleniacutesticas versus tradiccedilotildees romanas genuiacutenas a qual ocorria desde os
dias da Repuacuteblica tardia e durante os governos de Caliacutegula e Claacuteudio parecia estar se movendo de
forma constante em favor dos elementos orientais Tal visatildeo eacute erigida a partir de uma leitura atenta
das fontes antigas na qual ele insiste nas discrepacircncias bastante marcantes entre Taacutecito Suetocircnio e
Diatildeo Caacutessio (SALMON 1952 p 55-56) 219 ldquoO consulado era a magistratura maior sempre exercida por duas pessoas Detinham os
cocircnsules o poder executivo quer no plano poliacutetico (convocavam e presidiam ao Senado e aos
comiacutecios e zelavam pelo cumprimento das decisotildees aiacute tomadas) quer no plano militar promoviam
74
aprovar o plano pois boa parte dos seus membros seria prejudicada de modo
financeiro Por conseguinte o princeps natildeo podia desconsiderar o veredicto do
Senado em um assunto que era tradicionalmente da responsabilidade deste pois
caso o fizesse alteraria o equiliacutebrio da esfera poliacutetica A inexistecircncia do aval para
Levi foi a pior coisa que aconteceu porque o soberano se sentiu incapacitado de
beneficiar os grupos que mais o apoiavam Tal situaccedilatildeo provocou uma ruptura nas
relaccedilotildees com a Cuacuteria e colocou Nero em um caminho perigoso220
Como consequecircncia o plano passou a ser o de implantar uma nova poliacutetica
cultural de valorizaccedilatildeo dos costumes gregos Do ponto de vista artiacutestico houve o
enaltecimento da muacutesica do atletismo e do teatro aos moldes heleniacutesticos E do
ponto de vista do culto imperial houve a tendecircncia agrave adoraccedilatildeo e agrave divinizaccedilatildeo do
imperador Segundo o autor a poliacutetica promovida por Nero difundiu a ideia de
que a civilizaccedilatildeo grega tinha um valor superior ao da romana de modo que a
uacuteltima precisava imitar a primeira221
Natildeo tardou para que a divulgaccedilatildeo dos ideais
helecircnicos acompanhasse uma resistecircncia estoica cujas concepccedilotildees morais
compunham o caraacuteter eacutetico da vida romana A criacutetica dos estoicos era bastante
importante ldquo[] natildeo pelo nuacutemero mas pela qualidade intelectual social e poliacutetica
daqueles que a exerciam e tambeacutem porque suas criacuteticas correspondiam a ideias
enraizadas [] de respeito ao mos maiorum []rdquo222
Os adversaacuterios acusavam
Nero de diminuir a dignidade proacutepria e a do povo da Vrbs incentivando haacutebitos
ofensivos agraves tradiccedilotildees republicanas Esse ressentimento logo proporcionou os
meios para a criaccedilatildeo de um movimento de revolta eclodido na conspiraccedilatildeo
pisoniana de 65 a grande responsaacutevel pelo suiciacutedio do soberano e pelo fim da
linhagem Juacutelio-Claacuteudia223
Levi tambeacutem menciona outros determinantes na queda de Nero A priori
defende que o princeps natildeo obteve vitoacuterias militares dignas dos padrotildees romanos
o recrutamento de soldados e exerciam o comando geral dos exeacutercitos sendo da sua
responsabilidade as nomeaccedilotildees dos oficiais Ser cocircnsul constituiacutea [] a maior ambiccedilatildeo de um
senador [] porque era a magistratura que lhe proporcionava depois o exerciacutecio das mais altas
funccedilotildees administrativas e poliacuteticasrdquo (DENCARNACcedilAtildeO 2007 p 101) 220
LEVI 1949b p 168-161 221
LEVI 1949b p 173 222
LEVI 1949b p 177 A expressatildeo mos maiorum significa ldquocostume dos antepassadosrdquo Ela eacute a
combinaccedilatildeo do vocaacutebulo mos (ldquocostumesrdquo ldquocomportamentosrdquo) com o vocaacutebulo maiores
(ldquoantepassadosrdquo ldquovelhosrdquo) na sua forma genitiva maiorum (SARAIVA 2006 p 754 705) 223
LEVI 1949b p 143
75
e nem foi capaz de conquistar novas terras e rotas comerciais224
A posteriori
anuncia que o reavivamento dos processos de lesa-majestade em 62 acrescido
dos confiscos de bens e dos imensos gastos na reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o
incecircndio aumentaram as inimizades e evidenciaram a ganacircncia imperial225
Tudo
isso se juntou ao conflito com o Senado e fez com que Nero revelasse as
deficiecircncias do seu caraacuteter e a sua dificuldade em acatar os tracircmites do
Principado abrindo caminho para uma crise de legitimidade226
Foi embasada em argumentos similares que Griffin criou o seu Nero Na
segunda parte da sua obra denominada Post-mortem on the Fall of Nero a autora
examina a queda imperial que eacute apresentada como a incapacidade do soberano
em lidar com as pressotildees do Principado227
Para o desenvolvimento do estudo
Griffin remete o leitor ao iniacutecio do seu livro quando argumentou que os crimes de
Nero natildeo foram a causa da sua derrubada O evento mais importante do seu
reinado foi o seu colapso causado pelos obstaacuteculos do sistema que o jovem
vaidoso tentou contornar mas natildeo conseguiu228
A sua queda foi determinada pelo
sistema erguido por Augusto ou seja teve mais a ver com a inadequaccedilatildeo do
aparelho imperial do que com os defeitos do caraacuteter de Nero229
De modo geral a complicaccedilatildeo foi sucessoacuteria Como o Principado natildeo era
identificado abertamente como uma monarquia natildeo poderia haver
reconhecimento do princiacutepio hereditaacuterio e nem leis para regulaacute-lo Em teoria a
escolha de um sucessor cabia ao Senado uma vez que ele era o responsaacutevel por
conferir a um homem as magistraturas tradicionais transformando-o em princeps
Na praacutetica contudo nenhum soberano respeitava isso porquanto entendia que a
uacutenica maneira de assegurar poderes agrave sua famiacutelia quando morresse era
designando o seu proacuteprio herdeiro230
Assim o imperador tendia a ignorar o
Senado fazendo a sua indicaccedilatildeo e contando com o apoio da Guarda Pretoriana
para a legitimaccedilatildeo da sua escolha ndash ou comprando-o Logo a sucessatildeo
desregulada se tornou um foco natural para a intriga Como natildeo havia criteacuterios
palpaacuteveis de elegibilidade os descendentes de famiacutelias nobres que tinham
224
LEVI 1949b p 211 225
LEVI 1949b p 213 226
LEVI 1949b p 231 227
ldquoPara simplificar um pouco Nero natildeo era o homem para o trabalhordquo (SEAGER 1986 p 99) 228
GRIFFIN 2001 p 8 229
GRIFFIN 2001 p 17 230
GRIFFIN 2001 p 191
76
nascimento e status dos Julii e dos Claudii nutriam ambiccedilotildees ao trono Daiacute
adveio um nuacutemero grande de rivais e de herdeiros que o princeps precisou
expurgar em prol de sua seguranccedila como Rubeacutelio Plauto e Juacutenio Silano231
O sistema encorajou temores aos quais Nero estaria propenso
em qualquer caso Todavia sua obsessatildeo com os cometas que supunha pressagiar uma troca de governante e sua tendecircncia geral agrave paranoia compartilhada com sua matildee tornam-se mais inteligiacuteveis quando se percebe que ele enfrentou um problema maior do que todos os seus antecessores Ele ainda estava cercado de descendentes de famiacutelias republicanas tatildeo antigas e ilustres como os Juacutelio-Claudianos e o nuacutemero de homens que
poderiam reivindicar descendecircncia de imperadores do passado aumentava naturalmente agrave medida que a dinastia continuava232
Quando Nero morreu a dinastia Juacutelio-Claudiana tinha quase 100 anos
Seria necessaacuteria outra longa dinastia para elevar o nuacutemero de inimigos ao niacutevel
que alcanccedilara o da famiacutelia de Augusto Essa situaccedilatildeo segundo Griffin natildeo
justifica a crueldade do princeps no entanto tornam compreensiacuteveis as decisotildees
que afetaram a estabilidade da sua posiccedilatildeo233
Aleacutem do transtorno sucessoacuterio Griffin comenta sobre mais trecircs questotildees
causadoras do decliacutenio do soberano A primeira foi de ordem financeira pois as
necessidades de Nero em satisfazer as suas expectativas e as do seu puacuteblico
fizeram com que ele sobrecarregasse o eraacuterio234
A segunda foi de ordem
filelecircnica visto que a atenccedilatildeo concedida pelo princeps aos valores gregos agrave
muacutesica e ao atletismo gerou insatisfaccedilotildees aristocraacuteticas235
Por fim a terceira foi
de ordem militar dado que Nero ao contraacuterio de Ceacutesar Augusto e Tibeacuterio natildeo
obteve vitoacuterias extraordinaacuterias ndash e as poucas que obteve foram graccedilas ao trabalho
de comandantes e natildeo ao seu proacuteprio A gloacuteria militar que ele precisava ter foi
substituiacuteda por precircmios artiacutesticos236
Em suma Griffin alega que
231
GRIFFIN 2001 p 194-195 232
GRIFFIN 2001 p 196 233
GRIFFIN 2001 p 17 234
GRIFFIN 2001 p 197-207 235
GRIFFIN 2001 p 208-220 236
GRIFFIN 2001 p 221-234
77
Nero nunca alcanccedilou uma imagem satisfatoacuteria e consistente
como princeps No final ele sabia que seu fracasso nesse papel havia sido completo A confianccedila que ansiava tinha chegado a ele apenas como artista dos insultos que apareceram nos eacuteditos de Vindex ele contestou somente as criacuteticas agrave sua lira237
Se formos mais longe nesse debate veremos que as dificuldades do
Principado se manifestam de modo central no raciociacutenio de Belchior (1987- )
Bacharel e doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo trabalha
atualmente como professor no Departamento de Histoacuteria da Universidade
Estadual de Minas Gerais campus Campanha (UEMG) Suas aacutereas de
especializaccedilatildeo satildeo Repuacuteblica e Principado Romano e Historiografia Romana
Elaborou muitas produccedilotildees relevantes como o livro Nero bom ou mau
imperador Retoacuterica Poliacutetica e Sociedade em Taacutecito (54 a 69 dC) em 2016 e o
artigo BNCC e a Histoacuteria Antiga Uma possiacutevel compreensatildeo do presente pelo
passado e do passado pelo presente em 2017
Em especiacutefico no livro sobre Nero fruto de uma dissertaccedilatildeo de mestrado
o autor analisa os Annales de Taacutecito e defende que para o historiador antigo o
jogo poliacutetico do Principado dependia de muitas outras coisas que natildeo
necessariamente das atitudes imperiais Segundo Belchior Taacutecito entendia o
Principado como um sistema de governo onde todas as posiccedilotildees hieraacuterquicas eram
alcanccedilaacuteveis sobretudo pelos membros do Senado romano Em vista disso cabia
ao soberano equilibrar a balanccedila entre a sua autonomia e a sua sujeiccedilatildeo agraves leis e as
normas da respublica a fim de permitir o funcionamento da sociedade em acordo
com suas leis Ou seja o princeps deveria articular a sua atuaccedilatildeo em conjunto
com a do Senado Caso a balanccedila pesasse para o seu lado os senadores poderiam
contestar publicamente a sua lideranccedila238
Dessa maneira Belchior compreende
que os conflitos ocorridos durante o Principado de Nero os quais resultaram na
sua queda podem ser explicados a partir da complexidade das relaccedilotildees poliacuteticas
inerentes ao sistema inaugurado por Augusto o que vai aleacutem das simples criacuteticas
agraves condutas individuais de Nero
Finalizaremos esse sub-bloco com Osgood (1973- ) Bacharel e doutor em
Estudos Claacutessicos pela Universidade de Yale trabalha atualmente como professor
237
GRIFFIN 2001 p 234 238
BELCHIOR 2016 p 159-160
78
no Departamento de Claacutessicos na Universidade de Georgetown em Washington
Suas aacutereas de especializaccedilatildeo satildeo Histoacuteria Romana e Literatura Latina com ecircnfase
na queda da Repuacuteblica nas biografias imperiais e em saacutetira antiga Redigiu muitas
obras famosas incluindo o livro Claudius Caesar Image and Power in the Early
Roman Empire (2010) o capiacutetulo Nero and the Senate (2017) e o livro How To
Be a Bad Emperor An Ancient Guide to Truly Terrible Leaders (2020)239
No capiacutetulo sobre Nero o autor defende a partir das narrativas de Taacutecito e
de Diatildeo Caacutessio que o Senado natildeo foi o responsaacutevel pelo decliacutenio do princeps
ponderando a importacircncia poliacutetica de tal conselho240
Em momentos criacuteticos como a morte de um herdeiro
favorecido ou a supressatildeo de uma conspiraccedilatildeo o Senado poderia ajudar a reunir apoio por traacutes do imperador Aleacutem disso os imperadores confiavam nos senadores para fazerem o trabalho real de governar Os senadores comandavam os exeacutercitos [] dirigiam a maior parte das proviacutencias do Impeacuterio ocupavam importantes funccedilotildees administrativas na proacutepria cidade de Roma e aconselhavam os imperadores sobre a poliacutetica no conselho semioficial241
Para Osgood os poderes senatoriais mantiveram-se reais durante todo o
Principado embora limitados Como exemplo relembra a busca constante de
Nero pelos conselhos dos magistrados destacando o discurso de 54 no qual este
afirmou que restauraria a dignidade da instituiccedilatildeo tatildeo perseguida por Claacuteudio
Rememora tambeacutem os bons anos de cooperaccedilatildeo entre os dois antes de o princeps
comeccedilar a se sentir ameaccedilado por certos membros Segundo o autor a relaccedilatildeo
entre eles comeccedilou a deteriorar no final do governo dando lugar a um clima de
suspeita e rivalidade242
239
OSGOOD 2019 240
O capiacutetulo do autor estaacute contido no The Cambridge Companion to the Age of Nero (2017)
editado por Bartsch Freudenburg e Littlewood o qual pretende analisar os debates histoacutericos que
a eacutepoca de Nero estimulou e as maneiras como ele foi recebido e interpretado na Era Cristatilde do
primeiro seacuteculo e aleacutem Em seu texto Osgood examina Taacutecito e Diatildeo Caacutessio a partir das suas
proacuteprias perspectivas isto eacute a de historiadores senatoriais que foram viacutetimas sofredoras da era
neroniana Ademais investiga o que significava ser um senador sob Nero em um periacuteodo no qual
os poderes do Senado haviam se tornado secundaacuterios e circunscritos e ainda eram em alguns
aspectos muito reais (BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p 5) 241
OSGOOD 2017 p 34 242
OSGOOD 2017 p 39-41
79
Apoacutes as corridas de bigas de Nero na Juvenalia e no Neronia de
60 da chocante estreia do imperador como citaredo em Naacutepoles em 64 e do grande incecircndio que destruiu parte de Roma alguns senadores talvez se perguntassem literalmente o que restaria da cidade deles243
Com medo da resposta que obteriam organizaram em conjunto com
alguns equestres e oficiais da Guarda Pretoriana a primeira conspiraccedilatildeo contra
Nero O plano era assassinaacute-lo no Circus Maximus no decorrer do festival de
Ceres e substituiacute-lo por Calpuacuternio Pisatildeo um aristocrata que atraiacutea entusiasmo por
sua superioridade moral O movimento rapidamente alcanccedilou os ouvidos do
soberano o qual aproveitou para matar rivais e oferecer recompensas aos que
mostraram lealdade Na situaccedilatildeo ldquo[] o Senado investiu em accedilotildees de graccedilas e
celebraccedilotildees [] [pois] Nero tinha voltado ao padratildeo de governo Claudianordquo244
Apoacutes isso a convivecircncia entre os dois manteve-se paciacutefica por um breve
intervalo A interrupccedilatildeo veio em 67 com a turnecirc artiacutestica do princeps pela Greacutecia
cuja realizaccedilatildeo diminuiu o seu prestiacutegio perante os senadores e soldados Osgood
explica que enquanto o imperador estava na Greacutecia o senador Juacutelio Vindex
iniciou uma rebeliatildeo na Gaacutelia em marccedilo de 68 Ele emitiu eacuteditos insultando o
soberano e escreveu para governadores de proviacutencia como Galba incentivando a
associaccedilatildeo na revolta Quando essas notiacutecias chegaram a Nero ele decidiu ficar
por mais oito dias em Naacutepoles desfrutando das competiccedilotildees atleacuteticas ao inveacutes de
retornar a Roma Ao voltar natildeo procurou o Senado para falar da rebeliatildeo
preferindo passar o dia ldquo[] exibindo alguns instrumentos de aacutegua de um tipo
novo []rdquo245
Somente no instante em que os avisos sobre a adesatildeo de Galba
chegaram eacute que o princeps decidiu agir designando o comandante Virgiacutenio Rufo
e suas legiotildees da Germacircnia para lutarem contra o oponente Mas Nero se limitou agrave
designaccedilatildeo pois em nenhum instante reuniu-se com o Senado ou foi ao campo de
batalha conversar com as tropas Ademais atrasou o pagamento dos soldados
devido ao deacuteficit financeiro decorrente das extravagacircncias na Greacutecia Esses
eventos levaram os homens da Guarda Pretoriana a retirarem o seu apoio a Nero e
243
OSGOOD 2017 p 42 244
OSGOOD 2017 p 43 245
OSGOOD 2017 p 45
80
o depositarem em Galba Portanto o autor acredita que os militares foram os
responsaacuteveis pela derrubada do princeps e natildeo o Senado246
A queda de Nero serve como um bom estudo de caso sobre onde estava o poder no Impeacuterio Romano Juntos um comandante do exeacutercito e suas tropas poderiam representar uma seacuteria ameaccedila ao soberano Em Roma tambeacutem eram os soldados que importavam [] bem como os funcionaacuterios domeacutesticos do
imperador O Senado natildeo estava orientando eventos mesmo se os comandantes apelassem agrave sua autoridade [] Muitos senadores inundados de dinheiro e [] vaidosos estavam felizes o suficiente com jantares perucas e roupas []247
Em conclusatildeo os textos expostos nesse sub-bloco demonstram que as
complexidades do Principado serviram como criteacuterios de julgamento para o
governo neroniano ndash julgamento construiacutedo a partir dos relatos das fontes hostis
escritas por membros ressentidos da ordem senatorial ou equestre que natildeo
estavam interessados em avaliar as fraquezas do sistema ou o desempenho de
Nero em termos institucionais As visotildees construiacutedas sobre o princeps
privilegiaram apenas a sua postura monaacuterquica sem levar em conta o proacuteprio jogo
poliacutetico que dependia de muitas outras coisas que natildeo necessariamente o caraacuteter
imperial Essas leituras satildeo em boa medida o produto de experiecircncias modernas
que natildeo se limitam mas que podem ser exemplificadas pelo espectro que vai
desde Hitler ateacute o recentiacutessimo Trump Esses governantes monstruosos
dificilmente seriam compreendidos apenas por seus defeitos individuais A
emergecircncia e a afirmaccedilatildeo dessas figuras tecircm estreita relaccedilatildeo tanto com os
sistemas democraacuteticos modernos quanto com os viacutecios as omissotildees e as
imperfeiccedilotildees das elites que lhes deram sustentaccedilatildeo por um periacuteodo bem mais
longo do que seria razoaacutevel No final das contas tal abordagem traz para o
repertoacuterio das representaccedilotildees de Nero essa ldquopaisagemrdquo que ao mesmo tempo
produz os retratos neronianos e gera sua condenaccedilatildeo quando o seu projeto de
poder fracassa Assim os ldquoNerosrdquo entram no repertoacuterio mais do que como
indiviacuteduos eles satildeo o fracasso e a vergonha de uma geraccedilatildeo
246
OSGOOD 2017 p 46 247
OSGOOD 2017 p 46
81
Os muacuteltiplos Neros
Expostos os quatro grupos prosseguiremos a jornada em direccedilatildeo ao fim do
debate com o quinto e uacuteltimo conjunto de autores Esta seccedilatildeo concerne agravequeles
que conjecturam a existecircncia natildeo de um uacutenico Nero mas de diversos conforme a
mudanccedila dos contextos Citaremos duas autoras Ketterij (1986- ) e Lefebvre
(1981- ) historiadoras com formaccedilatildeo em instituiccedilotildees europeias A primeira
graduou-se em Histoacuteria na Universidade de Leiden na Holanda e atualmente
leciona para alunos do Ensino Meacutedio na escola Nehalennia Kruisweg Em 2009
defendeu a dissertaccedilatildeo de mestrado em Histoacuteria Antiga na Universidade de
Leiden intitulada The Development of the Image of Nero as Murderer Arsonist
and Persecutor of Christians passando em seguida ao doutorado com uma
pesquisa sobre a formaccedilatildeo de cidades no iniacutecio do periacuteodo moderno248
A segunda
graduou-se em Letras Claacutessicas fez mestrado em Ciecircncias da Antiguidade e
doutorado em Liacutengua e Literatura Antigas na Universidade de Lille na Franccedila
Hoje trabalha como docente no Departamento de Letras Claacutessicas dessa mesma
instituiccedilatildeo realizando estudos sobre mitos literaacuterios e Nero materializados no
artigo De la Mythologie agrave Lrsquohistoire de Lrsquohistoire aux Mythes De Quelques
Incestes Ceacutelegravebres publicado em 2013 e no livro Le Mythe Neacuteron La Fabrique
drsquoun Monstre dans la Litteacuterature Antique (Ier-Ve s) lanccedilado em 2017
249
Ambas as autoras se dedicam agrave avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa
sobre Nero verificando o impacto dos relatos hostis na formaccedilatildeo da imagem do
soberano Ketterij observa a mudanccedila no retrato imperial da eacutepoca claacutessica ateacute a
contemporaneidade250
Partindo da Antiguidade analisa os testemunhos de Taacutecito
248
KETTERIJ 2020 249
LEFEBVRE 2020 250
Em seu trabalho Ketterij (2009 p 3-9) estuda trecircs aspectos da imagem de Nero no intuito de
compreender como seu retrato foi se tornando cada vez mais negativo O primeiro aspecto
avaliado eacute Nero como assassino de seus parentes investigado nas fontes a partir das seguintes
perguntas 1) quais assassinatos satildeo mencionados e vistos como histoacutericos nas fontes 2) esses
assassinatos satildeo motivados Quais satildeo as motivaccedilotildees mencionadas O segundo e o terceiro
aspectos observados satildeo Nero como incendiaacuterio e Nero como perseguidor de cristatildeos procurados
na documentaccedilatildeo por meio de quatro questionamentos 1) Nero eacute visto como um incendiaacuterio 2)
quais motivos satildeo mencionados 3) existe alguma relaccedilatildeo entre o incecircndio de Roma e a
perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 4) e haacute algo dito sobre por que os cristatildeos foram perseguidos Aleacutem
disso Ketterij tambeacutem busca entender a imagem de Nero na contemporaneidade Para tanto aplica
um questionaacuterio em 100 pessoas cristatildes e natildeo cristatildes a fim de descobrir o que pensavam sobre
Nero O resultado eacute surpreendente existem dois locais em que o nome de Nero eacute frequentemente
82
Suetocircnio Diatildeo Caacutessio Eutroacutepio Oroacutesio Sulpiacutecio Severo Aureacutelio Victor
Euseacutebio de Cesareia entre outros concluindo que a maioria dos escritores do
Mundo Antigo era negativa sobre Nero pois suas representaccedilotildees vinculavam-se a
interesses aristocraacuteticos251
Na Idade Meacutedia aponta a intervenccedilatildeo do catolicismo
na representaccedilatildeo de Nero visto por Tertuliano como modelo de depravaccedilatildeo moral
e crueldade252
No Renascimento demonstra que o reavivamento da cultura
claacutessica acrescido agrave redescoberta do texto taciteano criou um Nero tirano Nos
seacuteculos XIX XX e XXI exibe uma mudanccedila de paradigma na reputaccedilatildeo negativa
de Nero devido agrave difusatildeo de trabalhos histoacutericos e biograacuteficos que questionam a
culpabilidade do imperador no incecircndio de Roma e nas mortes de Britacircnico
Agripina e Popeia253
Tal mudanccedila de acordo com a autora manteve a
predominacircncia da imagem hostil visto que a influecircncia cristatilde na longa duraccedilatildeo
incutiu na cultura popular o retrato do Nero Anticristo254
Lefebvre ao seu turno pretende examinar a construccedilatildeo e a evoluccedilatildeo da
figura do monstro Nero somente na Antiguidade Ao fazecirc-lo discute um corpus
textual extenso cuja abrangecircncia comeccedila na morte do soberano e termina nos
escritos de Agostinho o uacuteltimo representante da cultura claacutessica255
A pertinecircncia
do seu livro reside na forma como examina as fontes porquanto se concentra nos
modelos usados pelos antigos para comporem seus retratos de Nero
Por um lado suas visotildees dos fatos satildeo impostas pela perspectiva do seu ambiente geralmente a da ordem senatorial
da qual eles participavam Por outro o treinamento retoacuterico que eles receberam influencia nos lugares da memoacuteria e na representaccedilatildeo dos fatos256
mencionado a Igreja e a Escola Cerca de um quarto dos cristatildeos aprendeu algo sobre Nero na
Igreja ou na Escola Dominical 251
KETTERIJ 2009 p 42-47 252
KETTERIJ 2009 p 35-37 253 KETTERIJ 2009 p 25-34 254
KETTERIJ 2009 p 47 255
No livro a autora investiga a criaccedilatildeo da lenda do monstro Nero Para tanto dedica-se a um
longo exame das fontes latinas e gregas apresentadas de maneira temaacutetica Todos os crimes que
tais fontes imputaram a Nero (crueldade vida voluptuosa amor agraves artes matriciacutedio incecircndio em
Roma entre outros) criaram em torno dele um mito padronizado que os uacuteltimos abreviadores
resumiram Nero eacute o imperador citaredo e matricida Eacute essa imagem que Lefebvre discute nos dois
capiacutetulos centrais do seu estudo intitulados Neacuteronologie Structurale Durante a discussatildeo analisa
a imagem consolidada de Nero como a antiacutetese do priacutencipe do chefe de Estado romano o
soberano ausente da cena poliacutetica estrangeira aleacutem de tambeacutem discutir a imagem do Nero-tirano
que mata as elites por vinganccedila pessoal e natildeo por necessidade poliacutetica 256
LEFEBVRE 2017 p 15
83
A averiguaccedilatildeo dos modelos leva a autora a entender que Taacutecito Suetocircnio
Diatildeo Caacutessio Flaacutevio Josefo Estaacutecio Marcial e muitos outros lidaram com os fatos
segundo as necessidades da sua causa Por exemplo os escritores do ciacuterculo
senatorial frustrados com a perda dos seus privileacutegios delinearam um pessimus
princeps os escritores de liacutengua grega devido ao amor do soberano pela cultura
heleniacutestica focaram na imagem do citaredo e os cristatildeos por causa da
perseguiccedilatildeo privilegiaram o tema da crueldade Contudo um topos norteia todos
os modelos o caraacuteter tiracircnico de Nero257
Lefebvre afirma que os relatos claacutessicos
foram ajustados para comporem um retrato em que a tirania era bem perceptiacutevel
Eles de certa forma estabeleceram diretrizes destinadas a demonstrar a
adequaccedilatildeo de Nero a um tirano e monstro Isso significa que os antigos apagaram
ou alteraram os pretextos que justificariam as atitudes imperiais Como ilustraccedilatildeo
as medidas tomadas pelo soberano apoacutes o incecircndio de Roma em vez de serem
lidas positivamente tornaram-se marcas de ganacircncia258
Ao concluir a autora atesta que os escritores antigos transmitiram por
meio de Nero seus proacuteprios medos seus ressentimentos e suas desilusotildees
colocando-o assim no comando de suas preocupaccedilotildees contemporacircneas Em suma
a figura de Nero
[] evoluiu segundo dois princiacutepios agrave primeira vista contraditoacuterios mutaccedilatildeo e permanecircncia [] A homogeneizaccedilatildeo da figura de Nero e sua reduccedilatildeo em torno de certos toacutepicos foram acompanhadas por um fenocircmeno de esquematizaccedilatildeo
progressiva e de obliteraccedilatildeo dos detalhes [] que imperceptivelmente transformou Nero em um tipo atemporal e a-histoacuterico desconectado da sua realidade primitiva Isto ocorre porque Nero foi percebido menos como um indiviacuteduo especiacutefico e mais como uma encarnaccedilatildeo impessoal de tirania259
Entre as duas pesquisadoras Lefebvre eacute a que mais se aproxima da nossa
proposta De igual modo a ela investigaremos a evoluccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria
negativa acerca do princeps no periacuteodo da Antiguidade utilizando fontes textuais
variadas Nossos trabalhos todavia distanciam-se em trecircs aspectos o temporal o
metodoloacutegico e o teoacuterico No primeiro porque ela natildeo considera a documentaccedilatildeo
contemporacircnea ao imperador e avanccedila para aleacutem do seacuteculo III no segundo
257
LEFEBVRE 2017 p 268-270 258
LEFEBVRE 2017 p 269 259
LEFEBVRE 2017 p 268
84
porque ela investiga os episoacutedios do Principado neroniano apenas de forma
temaacutetica examinando o mesmo evento em fontes de temporalidades distintas e
no terceiro porque ela natildeo utiliza os mesmos conceitos que noacutes a exemplo do de
allelopoiesis inuentio retrato e forma Ainda assim trata-se de um estudo
notaacutevel por sua completude por sua bibliografia e pelo panorama disponibilizado
da ldquofaacutebrica do monstrordquo auxiliando-nos na compreensatildeo dos mecanismos
criadores da lenda negativa de Nero
Estando delineadas todas as cinco visotildees do debate algumas conclusotildees se
impotildeem Em primeiro lugar a figura de Nero mesmo com o passar dos anos
continuou instigante e atual estimulando jornalistas historiadores e literatos a
redigirem obras que o representaram sob distintos vieses Em segundo por mais
que os trabalhos tenham abordado o princeps de modos diferentes a tradiccedilatildeo
literaacuteria negativa sempre esteve presente o que fortalece a perpetuaccedilatildeo do terriacutevel
retrato neroniano Em terceiro vimos que o desenho de tal retrato foi embasado
principalmente nas narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Por mais que
alguns autores tenham utilizado fontes arqueoloacutegicas ou outros documentos
literaacuterios os relatos dos trecircs nunca foram abandonados em sua centralidade fato
que tambeacutem justifica o teacutermino do nosso recorte temporal no seacuteculo III Em
quarto lugar a lenda negativa passou a ser ndash e tem sido cada vez mais ndash
reanalisada por determinados estudiosos interessados em repensar as tradiccedilotildees do
passado Como prova apontamos os nuacutemeros dos nossos grupos tivemos dez
autores que condenaram o soberano (os dispostos nos grupos Nero um mau
imperador e Nero o imperador fantoche) contra os quinze que problematizaram
as atitudes atribuiacutedas a ele (os fixados em Nero um bom imperador Os muacuteltiplos
Neros e Os verdadeiros Neros) Isso revela que os pesquisadores tecircm considerado
com maior precisatildeo as controveacutersias existentes nas fontes hostis ao princeps
atentando-se para os julgamentos dos claacutessicos e para as correntes ideoloacutegicas de
oposiccedilatildeo Talvez essa virada tenha sido ocasionada pelo V Coloacutequio da SIEN
como vimos na introduccedilatildeo do capiacutetulo Ou talvez tenha sido causada pelo
interesse dos historiadores nas uacuteltimas deacutecadas em natildeo trabalhar com a ideia de
que haacute um veacuteu que cobre a realidade do governo de Nero ou a de que as fontes
podem revelar uma verdade uacutenica e clara sobre esse imperador seja ela favoraacutevel
85
seja desfavoraacutevel O essencial eacute que cada vez mais as difamaccedilotildees propagadas
contra o soberano tecircm sido objetos de questionamentos
Todavia essa nova forma de examinar a imagem de um imperador natildeo se
restringe soacute a Nero Por exemplo as avaliaccedilotildees recentes sobre Caliacutegula e
Domiciano tecircm questionado a escrita da Histoacuteria pautada em julgamentos morais
realizada dentro da perspectiva da magistra vitae Os historiadores tecircm produzido
obras que inserem a histoacuteria de cada soberano em seu contexto especiacutefico bem
como analisam as teacutecnicas retoacutericas contidas nas fontes Como exemplos temos
os livros Caligula a Biography composto por Winterling em 2003 e
Deconstructing Imperial Representation Tacitus Cassius Dio and Suetonius on
Nero and Domitian lanccedilado por Schulz em 2019
Outra nova forma deriva da criacutetica agraves democracias modernas as quais tecircm
apontado para os problemas dos sistemas de representaccedilatildeo A falta de qualidade
de determinados governantes eleitos colocou em duacutevida a proacutepria validade do
sistema democraacutetico levando a uma mudanccedila na visatildeo do passado Assim os
pesquisadores uniram a criacutetica ao governante agrave criacutetica ao sistema de governo
tentando entender a seguinte questatildeo satildeo maus sistemas de governo que
produzem maus governantes ou satildeo maus governantes que deturpam bons
sistemas de governo Esse questionamento fez tanto sucesso que em 2020
Painter ndash ex-advogado do Conselho de Eacutetica da Casa Branca ndash e Golenbock ndash
formado pela NYU Law School ndash lanccedilaram o livro American Nero The History of
the Destruction of the Rule of Law and Why Trump is the Worst Offender
De qualquer forma natildeo se trata aqui de trazer agrave tona as mudanccedilas
contemporacircneas nas avaliaccedilotildees sobre o soberano mas sim de compreender as
mudanccedilas nas fontes textuais da Antiguidade situadas na baliza dos seacuteculos I ao
III No capiacutetulo seguinte iniciaremos tal processo a partir da anaacutelise das fontes
coevas ao Principado neroniano a fim de verificarmos como os autores antigos
fizeram-no ndash ou natildeo ndash herdeiro de tudo aquilo que consideravam negativo
Agrave guisa de conclusatildeo deixamos claro que nosso propoacutesito natildeo eacute
desvendar o que as fontes dizem sobre Nero (embora isso seja relevante) e nem
mesmo verificar dentro do que eacute dito aquilo que se aproxima ou natildeo da verdade
Objetivamos menos ainda avaliar o ldquolegadordquo do princeps o que ele teria a nos
ensinar hoje ndash se foi um bom ou um mau modelo de governante ndash e a loacutegica da
86
sua recepccedilatildeo no tempo presente ou em algum momento da modernidade Nosso
ponto de investigaccedilatildeo estaacute mais proacuteximo deste uacuteltimo bloco Logo recusamos a
busca pelo verdadeiro Nero no passado ou por quem eacute Nero para noacutes
Pretendemos estudar de que maneira o retrato do soberano se construiu e foi
sendo composto ao longo dos seacuteculos I a III tendo como foco a composiccedilatildeo desse
retrato e os seus mecanismos sem nos preocuparmos em categorizar um deles
como mais verossiacutemil eou mais uacutetil e tambeacutem sem focar na descriccedilatildeo das
mudanccedilas que se podem perceber nos vaacuterios Neros Queremos analisar os
mecanismos que geraram essas mudanccedilas e na medida do possiacutevel as bases
histoacutericas que os moveram a par do papel especiacutefico da criaccedilatildeo retoacuterica realizada
por cada um dos autores pesquisados Trata-se como se vecirc de uma tarefa
complexa a qual restaraacute sempre parcial e incompleta dado o infinito nuacutemero de
variaacuteveis a se observar Nossa contribuiccedilatildeo a esse debate em pleno curso tanto na
Historiografia quanto na arena puacuteblica seraacute apresentada nos proacuteximos trecircs
capiacutetulos cujos limites e criteacuterios de organizaccedilatildeo jaacute foram divulgados na
introduccedilatildeo Vamos a eles
87
Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69)
Comeccedilaremos agora a investigaccedilatildeo da forma Nero originaacuterio cuja
abrangecircncia envolveraacute os anos de 54 a 69 Tal forma examinaraacute o iniacutecio do
processo de construccedilatildeo da imagem do princeps ou seja o modo como os
escritores da sua eacutepoca o representaram e a seu governo
A preponderacircncia dos textos hostis de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio nos
estudos sobre o soberano fez com que as fontes contemporacircneas ao seu Principado
fossem esquecidas eou ignoradas Essa escolha aleacutem de fortalecer
exageradamente um momento da tradiccedilatildeo negativa desconsidera atitudes
positivas tomadas pelo princeps em vida as quais estatildeo contidas em diversas
narrativas hodiernas a ele A riqueza e a diversidade dessas narrativas satildeo
atestadas por Sullivan que defende o Principado de Nero depois do de
Augusto260
foi um periacuteodo de enorme riqueza cultural Isso porque o soberano
nutria um grande entusiasmo pela literatura pela muacutesica pelas performances
teatrais e pelas declamaccedilotildees poeacuteticas as quais foram estimuladas para muito aleacutem
do utilitarismo poliacutetico Nero promoveu um ldquorenascimento literaacuteriordquo durante o seu
governo uma espeacutecie de ldquoenergia culturalrdquo inovadora que trouxe o ressurgimento
da Idade de Ouro261
O creacutedito por esse renascimento deve ser concedido ao proacuteprio Nero
afirma Sullivan262
Sua enorme devoccedilatildeo pelas artes personificada na expressatildeo
qualis artifex pereo263 ndash criada para representar suas uacuteltimas palavras e
transmitida por Suetocircnio deacutecadas depois ndash concretizou-se na criaccedilatildeo dos
Juvenalia e dos dois Neronias bem como na formaccedilatildeo de um ciacuterculo literaacuterio que
era parte central da Aula Neronis264
Esse grupo era composto por pessoas com
aptidatildeo para as letras cujas habilidades ainda natildeo tinham atraiacutedo atenccedilatildeo
260
Os leitores de literatura latina antiga estatildeo acostumados a conceberem soacute o Principado de
Augusto (3127 aC-14) como um periacuteodo de esplendor poeacutetico A razatildeo deve-se agrave tendecircncia dos
pesquisadores claacutessicos de considerarem Virgiacutelio Horaacutecio Oviacutedio Tibulo e Propeacutercio os maiores
exemplos de excelecircncia e maturidade literaacuterias Tais autores vivenciaram os benefiacutecios da
estabilidade poliacutetica e militar advindos com o fim das guerras civis apoacutes a batalha de Aacutecio
produzindo obras que engendraram a chamada Idade de Ouro (CITRONI 2009 p 8) 261
SULLIVAN 1968 p 454 262
SULLIVAN 1985 p 23 263
ldquoQue grande artista perece comigordquo (Suet Nero 49) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa
com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 224) 264
SULLIVAN 1985 p 28
88
puacuteblica265
Entre os membros havia importantes indiviacuteduos da poliacutetica e da
literatura romanas a saber Calpuacuternio Pisatildeo um respeitado senador Cluacutevio Rufo
um historiador consular os futuros imperadores Nerva Viteacutelio e Tito e os
conhecidos autores Petrocircnio e Lucano aleacutem de Secircneca A produccedilatildeo aiacute era
proliacutefica e recompensada por privileacutegios poliacuteticos a exemplo da concessatildeo de
magistraturas e riquezas
Esse grupo estimulou no princeps o desejo de promover escritores
contemporacircneos gerando uma longa lista de talentos Secircneca o gecircnio versaacutetil das
composiccedilotildees Calpuacuternio Siacuteculo o bucoacutelico perfeccionista Lucano o prodiacutegio da
eacutepica Columella o intelectual agrocircnomo Petrocircnio e Peacutersio os notaacuteveis satiristas
Pliacutenio o Velho o ceacutelebre naturalista Luciacutelio e Nicarco os criacuteticos epigramatistas
gregos Aneu Cornuto e Musocircnio Rufo os distintos filoacutesofos estoicos entre
outros autores266
Segundo Faversani Joly e Winterling essa preferecircncia de Nero
pelo campo artiacutestico longe de ser uma mera excentricidade mostra-nos sua forma
de se inserir no ambiente de competiccedilatildeo intra-aristocraacutetica romano e tambeacutem sua
concepccedilatildeo de Principado No seu governo a referecircncia agrave res publica deixa de ser
a base para a posiccedilatildeo imperial A hierarquia poliacutetica tradicional em que a honra
social resultava de cargos poliacuteticos eacute anulada e substituiacuteda por uma alternativa
um tipo de meritocracia passa a ser a base da classificaccedilatildeo social Natildeo honores de
cargos puacuteblicos mas a participaccedilatildeo em ciacuterculos literaacuterios e em competiccedilotildees surge
como a base da gloacuteria imperial267
Essa concepccedilatildeo fez Nero estimular fortemente a elaboraccedilatildeo de obras
literaacuterias Foi desse estiacutemulo que sucederam a Apocolocyntosis e o De Clementia
redigidos por Secircneca as Eclogae por Calpuacuternio Siacuteculo e a Pharsalia por
Lucano Advieram ainda as Saturae (Saacutetiras) de Peacutersio o Laus Pisonis (Elogio a
Pisatildeo) de Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo o De Re Rustica (Da Agricultura) de
Columela e outras composiccedilotildees de Secircneca Trata-se de publicaccedilotildees que embora
tenham o seu proacuteprio valor literaacuterio natildeo seratildeo avaliadas neste capiacutetulo e
explicaremos o porquecirc Por outro lado outras obras como o Satyricon
(Satiacutericon) de Petrocircnio e as Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais) de Secircneca
265
Tac Ann 1416 266
GRIFFIN 2001 p 146-155 267
FAVERSANI JOLY 2020 p 91-92 WINTERLING 2012 p 17
89
entre outras foram escritas no principado de Nero mas com seus autores muito
provavelmente jaacute afastados de sua Aula
No caso de Peacutersio natildeo abordaremos suas Saturae por entendermos em
consonacircncia com Sullivan e Witke que as informaccedilotildees contidas ali natildeo se
dirigem de fato ao imperador268
A obra natildeo cita nomes como objetos de
condenaccedilatildeo e o uacutenico verso das Saturae em que Peacutersio talvez ataque o soberano
ndash Auriculas asini Mida rex habet269 ndash natildeo eacute necessariamente verdadeiro Sullivan
esclarece ldquo[] acredita-se hoje em dia que natildeo haacute um ataque especiacutefico a Nero
na primeira saacutetira de Peacutersio []rdquo pois a difamaccedilatildeo puacuteblica no Principado estava
ligada ao crime de maiestas270 e isso representaria um risco agrave vida do poeta
271 A
afirmaccedilatildeo do autor eacute complementada por Kenney no artigo The First Satire of
Juvenal ldquoHoraacutecio Peacutersio e Juvenal [] natildeo atacam e natildeo poderiam ter atacado
pessoas vivas sem sofrerem as consequecircnciasrdquo272
No tocante a Petrocircnio natildeo investigaremos o Satyricon porque o escritor
aleacutem de natildeo referenciar o princeps supostamente faz apenas algumas alusotildees
contundentes a ele a partir do personagem Trimalquiatildeo Tais alusotildees na visatildeo de
Crum e Highet natildeo satildeo categoacutericas Esse uacuteltimo autor aliaacutes afirma ldquo[] foi
proposto que o que Petrocircnio escreveu em suas uacuteltimas horas e enviou a Nero foi o
Satyricon e que Trimalchiatildeo eacute Nero Isso eacute tatildeo ridiacuteculo que nem precisa de
refutaccedilatildeo []rdquo273
No que tange a Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo e seu Laus Pisonis
compartilhamos do argumento de Champlin ldquoa evidecircncia histoacuterica para os anos
neronianos pode ser resumida de modo breve natildeo existe nenhuma O imperador eacute
pouco mencionado e natildeo haacute alusatildeo a qualquer fato histoacuterico reconheciacutevel []rdquo
Em outras palavras o autor defende que natildeo existe certeza entre os estudiosos se
o Laus Pisonis foi composto durante o governo de Nero bem como natildeo haacute certeza
268
SULLIVAN 1978 p 159-170 WITKE 1984 p 802-812 269
ldquoO Rei Midas tem orelhas de burrordquo (Pers 1121) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com
base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Ramsay (1918 p 329) 270
Expressatildeo ldquo[] usada como uma abreviatura para o crime maiestas minuta populi Romani lsquoa
diminuiccedilatildeo da majestade do povo romanorsquo Esta acusaccedilatildeo foi introduzida pela primeira vez por L
Apuleio Saturnino com a lex Appuleia (provavelmente em 103 aC)rdquo Com o tempo a acusaccedilatildeo
passou tambeacutem a englobar qualquer forma de traiccedilatildeo revolta ou falha no serviccedilo puacuteblico (OCD
2012 p 888) Para detalhes cf CHILTON 1955 p 73-81 271
SULLIVAN 1978 p 159 272
KENNEY 1962 p 38 273
HIGHET 1941 p 188 CRUM 1952 p 161-168
90
se o homem identificado como Calpuacuternio Pisatildeo no texto seja o responsaacutevel pela
Conspiraccedilatildeo de 65274
Tudo isso a nosso ver torna o uso da obra problemaacutetico
Quanto a Columella acreditamos que o seu De Re Rustica apesar de ter
sido redigido no governo de Nero traz em seu conteuacutedo soacute informaccedilotildees
agriacutecolas abordando desde tipos de trabalhos campestres ateacute a fabricaccedilatildeo de
conservas Contudo Joly sustenta que a obra incorpora debates poliacuteticos mais
amplos versando acerca da autoridade e do modo imperial de se postar diante da
aristocracia275
Mas tais debates natildeo se encaixam em nossas categorias de anaacutelise
Por fim em relaccedilatildeo a Secircneca natildeo examinaremos seus demais trabalhos
porque os dois citados anteriormente satildeo os uacutenicos em que o filoacutesofo menciona
Nero pelo nome Em todos os outros o soberano natildeo aparece ou quando o faz
surge de modo alusivo situaccedilatildeo que pode gerar leituras controversas e duvidosas
dos episoacutedios276
Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia
Comecemos entatildeo por Luacutecio Aneu Secircneca Ele nasceu por volta de 4
aC na colocircnia romana de Coacuterdoba na Beacutetica a mais rica e paciacutefica das
proviacutencias espanholas277
Sua famiacutelia era equestre e tinha origem italiana uma vez
que o sobrenome Aneu proclamava uma ancestralidade uacuteltima do nordeste da
Itaacutelia278
Secircneca era fruto do casamento de Secircneca o Velho com Heacutelvia ocorrido
por volta de 8 aC que resultou no nascimento de trecircs filhos Aneu Novato o
primogecircnito o nosso autor e Marco Aneu Mela pai do poeta Lucano Na
infacircncia em torno do ano 5 mudou-se para Roma e iniciou os estudos orientados
pelo retoacuterico e filoacutesofo Papiacuterio Fabiano o estoico Aacutetalo o ciacutenico Demeacutetrio e o
neopitagoacuterico Soacutecion Mais tarde em 25 empreendeu por questotildees de sauacutede
uma viagem ao Egito cujo prefeito era o marido da sua tia materna279
Tempos
274
CHAMPLIN 1989 p 102 275
JOLY 2003 p 281-299 276
DOODY 2013 p 296 HINE 2006 p 63 277
O nosso propoacutesito natildeo eacute fazer um estudo biograacutefico de Secircneca mas apenas fornecer alguns
dados que facilitem a anaacutelise das fontes Isso se aplicaraacute tambeacutem aos outros autores estudados
nesta tese A respeito da vida de Secircneca cf GRIFFIN 1992 p 29-174 VEYNE 2003 p 1-157 278
GRIFFIN 1992 p 31 279
Star (2012 p 167) esclarece que Secircneca sofria de constantes problemas respiratoacuterios
91
depois regressou a Roma e iniciou o cursus honorum280
exercendo a Questura
entre 31 e 37 e o Tribunato da Plebe entre 38 e 39281
A essa altura seu talento
oratoacuterio deve ter se tornado conhecido pois despertou ciuacutemes em Caliacutegula que
quase o sentenciou agrave morte Mesmo com o reveacutes seu talento continuou atraindo
atenccedilatildeo ateacute 41 quando foi condenado ao exiacutelio na ilha da Coacutersega por Claacuteudio
sob acusaccedilatildeo de adulteacuterio com Juacutelia Livila sobrinha de Claacuteudio e irmatilde de
Caliacutegula Secircneca permaneceu desterrado ateacute 49 quando Agripina garantiu o seu
perdatildeo e o seu retorno transformando-o em tutor do seu filho Nero282
Foi no papel de tutor atuando lado a lado com Burro prefeito da Guarda
Pretoriana que ele presenciou a ascensatildeo de Nero ao trono em 54 tornando-se
seu conselheiro pessoal e poliacutetico Assim ldquoSecircneca que correu o risco de ser
morto por um Ceacutesar e foi exilado por outro passava agora a ser uma das pessoas
mais proacuteximas do imperador []rdquo283
Contudo a morte de Burro em 62 fez a sua
influecircncia como conselheiro diminuir causando sua retirada gradual da vida
puacuteblica Infeliz e suspeito aos olhos de Nero e do novo prefeito da Guarda
Pretoriana Tigelino foi implicado na Conspiraccedilatildeo Pisoniana ocorrida em abril de
65 e alcanccedilado pela repressatildeo que se seguiu Informado de que seria condenado
cometeu suiciacutedio no mesmo ano284
No decorrer da sua vida Secircneca percorreu um enorme espaccedilo geograacutefico
conhecendo as partes ocidental e oriental do Impeacuterio Romano Na trajetoacuteria viu
muitas coisas e comentou sobre vaacuterias delas em suas obras escrevendo acerca de
tudo o que um erudito da sua eacutepoca costumava escrever filosofia mitologia
poliacutetica moral pobreza vida morte e fenocircmenos naturais Entre as obras que
280
Constitui a carreira ou a ordem senatorial ldquoNormalmente por volta dos 18 ou 20 anos de idade
um senador comeccedilava uma carreira como vigintiviri Seguia depois geralmente para uma proviacutencia
na qualidade de tribunus legionis Aos 25 anos tornava-se formalmente membro do Senado na
qualidade de quaestor Depois tornava-se tribunus plebis ou aedilis e com 30 anos atingia o cargo de praetor (os limites etaacuterios muitas vezes quebrados por privileacutegios pessoais eram na praacutetica
limites miacutenimos) Com a categoria de pretor podia exercer alguns cargos da competecircncia do
Senado principalmente o de prococircnsul de uma proviacutencia senatorial mas muitos outros cargos tais
como o de comandante da legiatildeo (legatus legionis) e de governador de uma proviacutencia imperial
(legatus Augusti pro praetore) sem guarniccedilatildeo da legiatildeo ou soacute com uma legiatildeo estavam ao serviccedilo
do imperador e eram por este diretamente concedidos Aos 40 ou mais geralmente aos 43 anos de
idade o senador podia tornar-se cocircnsul havendo vaacuterios todos os anosrdquo (ALFOumlLDY 1989 p 136) 281
Os questores eram os representantes financeiros do governo de Roma responsaacuteveis pela
arrecadaccedilatildeo de impostos e pela administraccedilatildeo do tesouro puacuteblico Por sua vez o Tribunato da
Plebe era a magistratura que atuava juntamente ao Senado em defesa dos direitos e dos interesses
da plebe (ABBOTT 1901 p 44-72) 282
VEYNE 2003 p 9 HABINEK 2014 p 9 283
FAVERSANI 2012 p 15 284
GRIFFIN 1992 p 369
92
sobreviveram dessa diversa produccedilatildeo as de caraacuteter filosoacutefico satildeo as de maior
nuacutemero285
Algumas inclusive foram reunidas no coacutedice ambrosiano intitulado
Dialogi (Diaacutelogos) Temos aiacute tratados breves que abordam questotildees eacuteticas e
psicoloacutegicas cujas publicaccedilotildees variam entre os anos 37 e 62 De Prouidentia
(Tratado sobre a Providecircncia Divina) De Constantia Sapientis (Tratado sobre a
Constacircncia do Saacutebio) De Ira (Tratado sobre a Ira) Ad Marciam de Consolatione
(Consolaccedilatildeo a Maacutercia) De Vita Beata (Tratado sobre a Felicidade) De Otio
(Tratado sobre o Oacutecio) De Tranquillitate Animi (Tratado sobre a Tranquilidade
da Alma) De Brevitate Vitae (Tratado sobre a Brevidade da Vida) Ad Polybium
de Consolatione (Consolaccedilatildeo a Poliacutebio) e Ad Helviam de Consolatione
(Consolaccedilatildeo a Heacutelvia)286
Os demais trabalhos filosoacuteficos transmitidos a noacutes de modo independente
satildeo os sete livros do De Beneficiis (Tratado sobre os Benefiacutecios) redigidos entre
50 e 60 o De Clementia elaborado na passagem dos anos 55 e 56 e os vinte
livros das Ad Lucilium Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais a Luciacutelio) compostos
em 62 Aleacutem disso dispomos de trabalhos cientiacuteficos como os sete livros das
Naturales Quaestiones escritos em 62 de nove Trageacutedias com dataccedilatildeo incerta
(Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra Oedipus Agamemnon
Thyestes e Hercules Oetaeus) de uma saacutetira menipeia intitulada Apocolocyntosis
divulgada em 54 e de textos atribuiacutedos a Secircneca como a trageacutedia Octauia
produzida entre 68 e 70 e uma seacuterie de Epigramas287
Tendo em vista todas essas obras Whitton defende que a mais
extravagante desconcertante e cocircmica eacute a Apocolocyntosis288
As razotildees para
tanto satildeo duas i) ela combina rigor filoloacutegico com um toque de liberaccedilatildeo saturnal
e ii) ela eacute um panfleto poliacutetico da nova era neroniana difamando o governo
285
Secircneca identificava-se como estoico e seguia uma tradiccedilatildeo de inovaccedilatildeo filosoacutefica estoica
exemplificada mais claramente por Paneacutecio e Possidocircnio que introduziram alguns exemplos
platocircnicos e aristoteacutelicos enquanto adaptavam o estoicismo agraves circunstacircncias romanas Secircneca
estava preocupado acima de tudo em aplicar princiacutepios eacuteticos estoicos agrave sua vida e agrave vida dos
outros Os toacutepicos principais discutidos por ele eram como reconciliar a adversidade com a
providecircncia como libertar-se das paixotildees (sobretudo a raiva e a tristeza) como enfrentar a morte
como desvincular-se do envolvimento poliacutetico como praticar a pobreza e como beneficiar os
outros (HINE 2010 p xv) 286
BRAUND 2015 p 15-28 287
MARSHALL 2014 p 33-44 288
WHITTON 2013 p 151
93
claudiano em prol do novo Principado289
Sobre a primeira razatildeo Roncali explica
que ela adveacutem do fato de o texto provavelmente ter sido escrito e lido durante as
Saturnaacutelias290
momento em que a ordem social era invertida e o ldquoimperador
tornava-se um palhaccedilo e o palhaccedilo um imperadorrdquo O trabalho eacute uma paroacutedia da
deificaccedilatildeo de um rei dos tolos ou de um tolo rei redigido no espiacuterito
carnavalesco291
Quanto agrave segunda razatildeo Marchetti declara O fato eacute que a
qualidade burlesca embora constitua um dos prazeres da leitura empresta armas
efetivas ao empreendimento da propaganda poliacutetica292
A Apocolocyntosis foi composta logo depois do falecimento de Claacuteudio
ocorrido em 54 A inspiraccedilatildeo derivou do ressentimento de Secircneca em relaccedilatildeo ao
soberano que lhe submeteu ao exiacutelio bem como do desprezo que ele nutria pela
atuaccedilatildeo imperial de Claacuteudio considerado incapaz e abobalhado Ela retrata
portanto a coacutelera do filoacutesofo defronte agraves atrocidades que o princeps cometera
contra ele e contra o ideal de governo romano Eacute o resultado do silecircncio e da fuacuteria
duas forccedilas terriacuteveis que a moldam atravessam-na datildeo-lhe aquele caraacuteter peculiar
que a torna uma obra-prima293
Ao escrevecirc-la Secircneca objetivava ridicularizar a
deificaccedilatildeo de Claacuteudio pois para ele o soberano natildeo merecia nenhuma apoteose
mas sim ser mandado ao inferno294
O texto pertence agrave saacutetira menipeia assim denominado devido agrave Menipo de
Gaacutedara escritor da escola ciacutenica do seacuteculo III aC Infelizmente natildeo haacute como
conhecermos ou caracterizarmos melhor esse tipo de gecircnero295
Satildeo poucos os
textos que sobreviveram desse registro Apesar disso temos acesso a algumas
especificidades graccedilas a uma pesquisa desenvolvida por Bakhtin em seu livro
Problemas da Poeacutetica de Dostoievski no qual elenca 14 aspectos dos quais
289
A presenccedila de uma dimensatildeo poliacutetica na Apocolocyntosis eacute aceita pela maioria dos estudiosos Eden (1984 p 1-23) em sua traduccedilatildeo do texto senequiano discute amplamente tal dimensatildeo 290
Festas em honra ao deus Saturno que aconteciam em dezembro (GRIMAL 2005 p 414) Tais
festas satildeo referidas por Secircneca duas vezes quando Claacuteudio eacute eleito Saturnalicius princeps durante
a assembleia dos deuses e quando apoacutes o falecimento do imperador os iurisconsulti consolam o
choro dos advogados dizendo Dicebam uobis non semper Saturnalia erunt ndash Eu vos falava natildeo
haveraacute sempre as Saturnais (Sen Apoc 82 122) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 31-41) 291
RONCALI 2014 p 678 292
MARCHETTI 1989 p 339 293
GRAMMATICO 1999 p 109 294
ALMEIDA 2014 p 70 O ritual da apoteose grosso modo consistia em transformar o
imperador em uma divindade Resumidamente o ritual pode ser descrito como tendo trecircs fases i)
uma lamentaccedilatildeo puacuteblica realizada no Foacuterum ii) uma procissatildeo dali ateacute o campo de Marte e iii) a
cremaccedilatildeo realizada neste uacuteltimo local (HARTOG 2014 p 177-178) 295
Sobre o que eacute uma saacutetira menipeiana cf RELIHAN 1984 p 226-229
94
destacamos seis Eles fazem referecircncia agrave presenccedila nesse tipo de saacutetira em
questatildeo i) de efeito cocircmico ii) de construccedilotildees de planos (por exemplo ceacuteu e
inferno) iii) de heroacuteis deuses e figuras lendaacuterias e mitoloacutegicas iv) de violaccedilatildeo
das normas v) de enfoques na atualidade e vi) de excepcional liberdade de
invenccedilatildeo do enredo sem nenhuma exigecircncia de verossimilhanccedila Bakhtin enxerga
a saacutetira menipeia como a personificaccedilatildeo literaacuteria de uma visatildeo carnavalesca da
vida uma percepccedilatildeo da sociedade e do mundo construiacuteda a partir de opiniotildees
desafiadoras das coisas296
Estamos lidando entatildeo com um espeacutecime singular da literatura latina
antiga um trabalho de irreverecircncia luacutedica que fabrica a desintegraccedilatildeo de um tema
No caso o tema eacute a apoteose de Claacuteudio e sua desintegraccedilatildeo jaacute inicia no tiacutetulo da
obra uma vez que a palavra grega ἀποκολοκύντωσις (Apocolocyntosis)297
significa ldquoaboborizaccedilatildeordquo ou ldquotransformaccedilatildeo em aboacuteborardquo Silva explica que o
radical apo- presente em apoteose juntou-se agrave palavra latina colocynthis cujo
significado eacute ldquoerva cabaccedilardquo (ldquoaboacuteborardquo) da famiacutelia das cucurbitaacuteceas
Considerando-se que no texto natildeo haacute uma cena em que Claacuteudio sofra uma
verdadeira metamorfose em aboacutebora devemos considerar a mutaccedilatildeo somente no
sentido figurado pois a palavra aboacutebora jaacute era usada entre os romanos para
indicar pessoas tolas298
Constituiacuteda por 15 paraacutegrafos a obra conteacutem um enredo bem simples a
trajetoacuteria percorrida pela alma de Claacuteudio apoacutes a morte em quatro localidades na
Terra no ceacuteu a caminho do inferno e no inferno A trama desenrola-se da
seguinte maneira Claacuteudio estaacute falecendo e Mercuacuterio pede a uma das Parcas que
acelere sua partida O princeps segue para o ceacuteu e eacute anunciado a Juacutepiter que envia
Heacutercules para interrogaacute-lo Um tipo de debate senatorial na Cuacuteria celeste eacute
entatildeo realizado para determinar se o imperador deveria receber o status divino
No meio do debate Juacutepiter e Augusto discursam sendo o uacuteltimo contraacuterio agrave
proposta Em seguida Mercuacuterio acompanha o rejeitado Claacuteudio ateacute o inferno
observando no caminho o seu alegre funeral Ao chegarem ao inferno as viacutetimas
indignadas de Claacuteudio o perseguem perante o tribunal de Eacuteaco e acusam-no de
296
BAKHTIN 1981 p 113-118 297
Diatildeo Caacutessio e apenas ele testemunha que Secircneca escreveu a Apocolocyntosis e que essa
composiccedilatildeo ganhou o tiacutetulo de ἀποκολοκύντωσις (Dio 60353) 298
SILVA 2008 p 16
95
assassinato Ele eacute condenado a jogar dados com uma caixa de dados furada por
toda a eternidade Mas Caliacutegula aparece e o reivindica como seu escravo299
A narrativa encerra-se nesse ponto com a reduccedilatildeo de Claacuteudio a escravo
destinado a jogar um jogo de dados sem fim Depois natildeo temos mais informaccedilotildees
acerca do falecido A falta de notiacutecias poreacutem natildeo muda o fato de que no decorrer
da obra Secircneca aponta os diversos niacuteveis da indignidade do soberano o modo
como ele ldquo[] emporcalhou todas as coisasrdquo300
ndash maledicecircncias reveladoras da
sua real intenccedilatildeo destruir a reputaccedilatildeo de Claacuteudio como princeps mostrando o
quatildeo despreziacutevel ele fora Tal ideia integra uma tendecircncia da literatura do
primeiro seacuteculo de difamar um governante morto para exaltar um vivo301
Assim
Claacuteudio eacute feito um monstro com um Principado abominaacutevel em contrapartida a
Nero que promete uma eacutepoca de ouro idiacutelica A importacircncia da Apocolocyntosis
para a nossa tese reside aiacute na construccedilatildeo de expectativas positivas sobre o
Principado neroniano Secircneca produziu a saacutetira a fim de exaltar o governo
vindouro argumentando que o novo princeps traria um periacuteodo de gloacuterias para
Roma Trata-se nesse sentido de uma obra poliacutetica que nos ajuda a compreender
um episoacutedio a ascensatildeo do Nero prodigioso
Como jaacute dissemos no ano 54 a sociedade romana presenciou o
falecimento de Claacuteudio e a consequente substituiccedilatildeo do trono O stylus de Secircneca
logo comeccedilou a trabalhar anunciando a chegada do novo imperador ldquoDesejo
transmitir agrave histoacuteria aquilo acontecido no ceacuteu no terceiro dia antes dos idos de
outubro em um ano-novo no iniacutecio de um seacuteculo muito felizrdquo302
No anuacutencio a
expressatildeo initio saeculi felicissimi eacute propositalmente usada pelo filoacutesofo para
enfatizar as expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo Principado haja vista que a
morte claudiana deixou para traacutes um periacuteodo de tirania o qual foi aliaacutes muito
criticado no decorrer da obra sendo frisadas a saeuitia (ferocidade) e a crudelitas
(crueldade) do soberano303
Todas essas criacuteticas satildeo feitas por Secircneca no intuito de
celebrar o fim do desgoverno e o surgimento das esperanccedilas Como observam
Faversani e Mancini em contraste com Claacuteudio que deixava o poder Secircneca
299
SULLIVAN 1985 p 49 300
[] omnia certe concacauit (Sen Apoc 43) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 24) 301
WHITTON 2013 p 152 302
quid actum sit in caelo ante diem III idus Octobris anno nouo initio saeculi felicissimi uolo
memoriae tradere (Sen Apoc 11) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 16) 303
Sen Apoc 122 115 104 62 47 13
96
apresenta uma imagem auspiciosa de Nero demonstrando que se dissipavam as
trevas e que a partir do iniacutecio do seu Principado comeccedilava a era das luzes304
Apoacutes o anuacutencio da chegada do novo princeps a narrativa prossegue com a
agonia poacutes-morte de Claacuteudio isto eacute com a tentativa de sua anima (alma) de
abandonar o corpo O filoacutesofo relata que essa jaacute exalava um cheiro ruim natildeo
conseguindo encontrar a saiacuteda Mercuacuterio305
entatildeo aparece e solicita a Cloto uma
das trecircs Parcas306
a liberaccedilatildeo da alma argumentando que o falecido jaacute havia
vivido por 64 anos e que por isso seria mais saacutebio entregaacute-lo agrave morte
consentindo que o ldquomelhorrdquo reinasse no ldquopalaacutecio desocupadordquo307
Vejam que no
argumento mercuriano haacute uma alusatildeo ao fato de Nero ser um soberano melhor do
que Claacuteudio mesmo sem ainda ter governado Acreditamos que Secircneca implanta
tal ideia por um motivo diminuir as contestaccedilotildees durante a ascensatildeo de Nero Por
ser membro da elite o filoacutesofo sabia das criacuteticas poliacuteticas feitas ao Principado
claudiano da sua tendecircncia agrave centralizaccedilatildeo e agrave autocracia E por ser tutor de
Nero sabia da necessidade de posicionar o seu aluno ndash e se posicionar ndash
publicamente favoraacutevel agraves criacuteticas Assim ao sugerir que ldquoo melhor reine no
palaacutecio desocupadordquo ele queria definir a posiccedilatildeo do novo governo conferindo um
plano poliacutetico prodigioso agrave sociedade e ao jovem Nero Nesse aspecto
concordamos com Braren quando afirma que a pretensatildeo de Secircneca natildeo poderia
ser diferente afinal ele estava muito proacuteximo do poder tanto como preceptor de
Nero quanto como aristocrata O filoacutesofo provavelmente detinha informaccedilotildees
que muitos outros natildeo detinham e as usou a favor do novo governo308
Avanccedilando Cloto ouve o apelo de Mercuacuterio e corta o fio da vida de
Claacuteudio309
Em seguida Laacutequesis outra Parca passa a tecer o fio aacuteureo de Nero
304
FAVERSANI MANCINI 2010 p 31-32 305
Mercuacuterio eacute o deus romano protetor dos comerciantes e dos viajantes (GRIMAL 2005 p 306-
307) Como a alma de Claacuteudio ldquoviajariardquo da terra para o ceacuteu eacute ele que aparece para auxiliaacute-lo 306
As Parcas satildeo as deusas do destino Em nuacutemero de trecircs Aacutetropo Cloto e Laacutequesis satildeo
representadas como fiandeiras medindo a bel-prazer a vida das pessoas (GRIMAL 2005 p 355) 307
Sen Apoc 32 Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 20) 308
BRAREN 19941995 p 168-169 309
Sen Apoc 33
97
[] Cingindo e enfeitando os cabelos com o poeacutetico louro
coroando a cabeleira e a face toma de uma niacutevea latilde os puros fios para serem temperados por matildeo feliz os quais conduzidos adquirem cor nova As irmatildes admiram sua latilde fiada muda-se a latilde comum em precioso metal do fio formoso seacuteculos de ouro aproximam-se E natildeo haacute limite para elas que conduzem as favoraacuteveis latildes E alegram-se em encher as matildeos com a latilde doces que satildeo esses deveres310
Notemos que todo o excerto eacute constituiacutedo por expressotildees positivas ldquoniacutevea
latilderdquo ldquopuros fiosrdquo ldquocor novardquo ldquolatilde afiadardquo ldquoprecioso metalrdquo ldquofio formosordquo
ldquofavoraacuteveis latildesrdquo e ldquoseacuteculos de ourordquo Sobre esses uacuteltimos Silva explica que os
romanos confiavam no ritmo regular do universo e na sua virtude regeneradora
esperando que um periacuteodo de horrores fosse substituiacutedo por outro aacuteureo311
Nessa
loacutegica ndash como jaacute dissemos ndash a morte de Claacuteudio representa o fim de uma eacutepoca
de atrocidades ao passo que o Principado de Nero representa um tempo de
tranquilidade e de paz Encontramos a mesma ideia no canto sexto da Eneida de
Virgiacutelio no qual o poeta cita a Idade de Ouro trazida por Augusto
Eis eis o prometido Augusto Ceacutesar
Diva estirpe varatildeo que ao Laacutecio antigo Haacute de os Satuacuternios seacuteculos dourados Restituir e sobre os Garamantes E Indos seu mando propagar dos signos Clima aleacutem situado aleacutem das todas
Do ano e do Sol por onde aos ombros vira O celiacutefero Atlante o eixo ardente
De estrelas tauxiado312
Diante disso julgamos que Secircneca utilizou a referecircncia virgiliana no
intuito de associar a loacutegica da Idade de Ouro augustana ao governo de Nero pois
Augusto foi considerado um modelo de imperador o representante do ideal
romano o fiador da paz da estabilidade da seguranccedila e da ordem313
Claramente
310
at Lachesis redimita comas ornata capillos Pieria crinem lauro frontemque coronans
Candida de niueo subtemina uellere sumit Felici moderanda manu quae ducta colorem
Assumpsere nouum Mirantur pensa sorores Mutatur uilis pretioso lana metallo Aurea formoso
descendunt saecula filo Nec modus est illis felicia uellera ducunt Et gaudent implere manus sunt
dulcia pensa (Sen Apoc 41) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 21) 311
SILVA 2008 p 73 312
Augustus Caesar divi genus aurea condet saecula qui rursus Latio regnata per arva
Saturno quondam super et Garamantas et Indos proferet imperium iacet extra sidera tellus
extra anni solisque vias ubi caelifer Atlas axem umero torquet stellis ardentibus aptum (Verg A
6 792-797) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 254) 313
MENDES 2006 p 40
98
temos aiacute uma ldquopoliacutetica a favor de Nerordquo na qual o filoacutesofo alude ao bom governo
augustano para insinuar que o jovem soberano seria um novo Augusto314
A narrativa progride com a inserccedilatildeo do deus Apolo no texto Ele adentra
para pedir a Laacutequesis que teccedila o fio de Nero agrave sua semelhanccedila
ldquoNatildeo lanccedilais nada oacute Parcas diz Febo [Apolo] que ele dos mortais exceda o tempo de vida a mim semelhante em rosto e em beleza nem em canto nem em voz inferior Aos desventurados felizes seacuteculos ofereceraacute e romperaacute o silecircncio das leis Como Luacutecifer dissipando os astros que fogem [] o
Sol radiante contempla a terra e lanccedila do nascente seus primeiros raios Tal Ceacutesar estaacute presente agora Roma olharaacute tal Nero Brilha com liacutempida honra seu resplandecente rosto e com o cabelo solto sua bela nucardquo Essas coisas disse Apolo315
No Mundo Antigo Apolo era representado como a divindade do sol da
beleza da muacutesica da justiccedila e da liberdade316
Sua entrada na obra constitui uma
estrateacutegia senequiana para comprovar que Nero detinha trecircs atributos
imprescindiacuteveis a um bom princeps beleza talento oratoacuterio e integridade Os dois
primeiros satildeo observaacuteveis na fala de Apolo quando ele diz que Nero era
semelhante a ele em rosto e em beleza possuindo um ldquoresplandecente rostordquo uma
ldquobela nucardquo e natildeo era ldquonem em canto nem em voz inferiorrdquo Ao seu turno a
integridade eacute verificada nas expressotildees ldquoromperaacute o silecircncio das leisrdquo e ldquobrilha
com liacutempida honrardquo as quais sugerem a edificaccedilatildeo por Nero de um Principado
de respeito agraves leis
A opccedilatildeo do filoacutesofo por Apolo tambeacutem marca a ligaccedilatildeo existente entre a
divindade e Augusto Em seu governo esse imperador empregou fortes
referecircncias apoliacutenicas lanccedilando-se como um salvador e protegido do deus sem
precedentes na histoacuteria romana A imagem divina era usada no acircmbito poliacutetico
como siacutembolo de disciplina moralidade e purificaccedilatildeo e no acircmbito cultural como
314
ALMEIDA 2014 p 301 315
ldquoNe demite Parcae Phoebus ait uincat mortalis tempora uitae Ille mihi similis uultu
similisque decore Nec cantu nec uoce minor Felicia lassis Saecula praestabit legumque silentia
rumpet Qualis discutiens fugientia Lucifer astra Aut qualis surgit redeuntibus Hesperus astris
Qualis cum primum tenebris Aurora solutis Induxit rubicunda diem Sol aspicit orbem Lucidus et
primos a carcere concitat axes Talis Caesar adest talem iam Roma Neronem Aspiciet Flagrat
nitidus fulgore remisso Vultus et adfuso ceruix formosa capillordquo Haec Apollo (Sen Apoc 41-2)
Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 22-23) 316
GRIMAL 2005 p 32-34
99
siacutembolo de paz e estiacutemulo agraves artes317
Agrave semelhanccedila de Augusto Nero vinculou o
seu governo agrave proteccedilatildeo de Apolo Eacute bem verdade que o seu viacutenculo era mais
direcionado ao campo artiacutestico mas isso natildeo muda o fato de que os dois principes
se associaram a Apolo na intenccedilatildeo de legitimarem os seus Principados Inclusive
como bem destaca Silva Nero acreditava muito nessa associaccedilatildeo com Apolo e era
saudado por seus bajuladores como sendo o proacuteprio deus Ademais ele se
aproveitou como era praxe desde Juacutelio Ceacutesar dessa associaccedilatildeo dos romanos com
os deuses para se autorrepresentar como a personificaccedilatildeo da justiccedila e da
liberdade318
Assim a escolha de Secircneca pela divindade demonstra claramente o
seu intuito de marcar a vinda de uma nova eacutepoca para o povo romano319
Cabe destacar ainda que os elogios feitos a Nero ao longo da
Apocolocyntosis satildeo sempre dispostos em contrapartida aos defeitos fiacutesicos de
Claacuteudio320
Por exemplo o filoacutesofo menciona o seu comportamento social
indigno o seu jeito coxo de caminhar e a sua peacutessima voz321
Em especial a
menccedilatildeo aos distuacuterbios na fala traz uma criacutetica seacuteria por parte de Secircneca Os
autores Osgood Braund e James afirmam que os aristocratas romanos
valorizavam muito a habilidade de discursar em puacuteblico sendo a voz de um
homem a grande reveladora do seu caraacuteter 322
Logo a dificuldade do falecido em
se expressar aponta uma grave falha poliacutetica de Claacuteudio sua inaptidatildeo para
governar Como ele sofria de um problema de fala ele fornecia ldquo[] o primeiro
exemplo de uma eloquentia indigna de um princepsrdquo323
Se ele natildeo conseguia
controlar o funcionamento baacutesico do seu corpo natildeo conseguiria controlar o
funcionamento do Estado Eacute assim que Secircneca frisa a imperfeiccedilatildeo de Claacuteudio
aproveitando para simultaneamente frisar a perfeiccedilatildeo de Nero324
Nas palavras de
Braund e James o filoacutesofo constroacutei uma relaccedilatildeo significativa entre a aparecircncia do
governante e o caraacuteter de seu regime O mau e fraco Claacuteudio com seu regime mau
317
ZANKER 1988 p 167-238 318
Cabe mencionar que Nero mandou cunhar diversas moedas em que a identidade com Apolo e
outros deuses era bastante niacutetida Cf RIC 178 319
SILVA 2008 p 74 320
Levick (1990 p 14-15) faz uma boa apresentaccedilatildeo das enfermidades fiacutesicas de Claacuteudio 321
Sen Apoc 43 52-3 322
OSGOOD 2007 p 341-345 BRAUND JAMES 1998 p 294 323
OSGOOD 2007 p 342 324
BRAUND JAMES 1998 p 307-308
100
e fraco foi substituiacutedo pelo bom e forte Nero que presidiraacute uma eacutepoca de ouro O
corpo vil de Claacuteudio eacute sucedido pelo corpo belo de Nero325
Retomando a narrativa Laacutequesis ouve as palavras de Apolo e finaliza o
tear do fio de Nero ldquo[] com a matildeo cheia fez Nero e com muitos anos o
brindardquo326
A essa altura cessam no texto as menccedilotildees ao novo princeps e
prosseguem os relatos sobre os destinos da alma claudiana
Em siacutentese entendemos que a Apocolocyntosis espelhou um momento
singular da vida romana cheio de ansiedades e de incertezas A distinta saacutetira
com suas situaccedilotildees extremas e elementos provocativos gerou o riso e a reflexatildeo
acerca do futuro proacuteximo Ela serviu a um fim poliacutetico Secircneca entreteve divertiu
e instruiu a elite romana Claacuteudio foi ejetado do mecanismo de legitimaccedilatildeo
imperial Nero por outro lado foi divinamente estabelecido como soberano
necessaacuterio Adotando o raciociacutenio de Freudenburg o filoacutesofo se apoderou
sabiamente da ocasiatildeo da troca de imperadores inundada por hipocrisias
obrigatoacuterias ndash no caso as formalidades exageradas da apoteose ndash para representar
um velho pouco carismaacutetico e desajeito sendo substituiacutedo por um jovem Apolo
Secircneca reivindicou esse instante como a oportunidade ideal para a implantaccedilatildeo de
um novo tipo de discurso o tipo decididamente antigo republicano de respeito agraves
leis A Apocolocyntosis ldquo[] permite que aqueles que riem juntamente com ela
pensem que desta vez as coisas seratildeo diferentes []rdquo e que a liberdade
republicana estaraacute de volta ao menu327
A obra nos leva ao coraccedilatildeo da ascensatildeo
neroniana criando espaccedilo para um destino grandioso para o Nero prodigioso
Complementarmente eacute imprescindiacutevel ainda demarcar duas questotildees i) a
escolha criativa do filoacutesofo pelo gecircnero menipeacuteico e ii) o uso da inuentio com
excepcional liberdade Secircneca poderia ter optado por qualquer gecircnero literaacuterio
para atacar Claacuteudio e elogiar Nero mas preferiu selecionar aquele que lhe
permitiu utilizar figuras mitoloacutegicas e deuses a exemplo de Mercuacuterio e Apolo e
produzir ao mesmo tempo um riso vituperioso e uma sacralidade prodigiosa
Tambeacutem empregou a inuentio na criaccedilatildeo de situaccedilotildees extraordinaacuterias que
provocaram e brincaram com a verdade328
ndash ou seja contou uma histoacuteria que natildeo
325
BRAUND JAMES 1998 p 295 326
at Lachesis quae et ipsa homini formosissimo faueret fecit illud plena manu et Neroni multos
annos de suo donat (Sen Apoc 42) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 23) 327
FREUDENBURG 2015 p 104-105 328
SILVA 2008 p 12
101
necessariamente era veriacutedica mas que possuiacutea uma ligaccedilatildeo com os eventos do
momento Como citamos anteriormente a invenccedilatildeo na saacutetira menipeia consistia
na libertaccedilatildeo das limitaccedilotildees histoacutericas das exigecircncias da verossimilhanccedila Nesse
sentido a narrativa construiacuteda pautava-se em geral na atualidade sociopoliacutetica329
Isso significa que Secircneca edificou um discurso sobre o ldquoburburinhordquo do momento
ironizando a maacute governaccedilatildeo de um passado recente e saudando a esperanccedila da
nova era de felicidade do presente e do futuro330
O proacuteximo trabalho a ser analisado o De Clementia complementaraacute a
anaacutelise do episoacutedio da ascensatildeo de Nero que novamente seraacute disposto na
categoria Nero prodigioso Ao passo que a Apocolocyntosis possui um tom
satiacuterico ridicularizando a deificaccedilatildeo de Claacuteudio o De Clementia possui um tom
elevado construindo um programa de governo Como veremos nessa obra o
filoacutesofo organizou sua argumentaccedilatildeo a fim de convencer a sua audiecircncia acerca da
melhor forma de conduzir o Principado E eacute aiacute que entrou a inuentio Nero eacute o
soberano que trouxe verossimilhanccedila ao modelo de Estado senequiano Em outras
palavras o melhor Principado soacute existiria se houvesse um Nero em seu comando
De acordo com Schofield o De clementia eacute a performance literaacuteria mais
deslumbrante de Secircneca ldquoum trabalho altamente originalrdquo331
A obra constitui um
manual de conselhos para o jovem imperador tal como o filoacutesofo desejava que ele
fosse nos seus primeiros anos de governo Eacute um texto no qual Secircneca recomenda
a Nero um modelo de Principado centrado predominantemente na virtude da
clemecircncia elemento-chave para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio entre o princeps e os
seus suacuteditos A clemecircncia ldquo[] fazia parte da publicidade do novo regime []rdquo
era a ideologia-base que ajudaria a sociedade a esquecer dos erros do passado e a
focar nos acertos do presente332
A obra data do iniacutecio do governo de Nero entre o final do ano 55 e o
iniacutecio do ano 56 apoacutes o assassinato de Britacircnico333
O texto eacute inspirado na
tradiccedilatildeo dos specula principum (espelhos de priacutencipes) cujo nascimento remonta
329
BAKHTIN 1981 p 114 330
FERREIRA 2008 p 186 331
SCHOFIELD 2015 p 68 332
GRIFFIN 1992 p 135 333
Essa data eacute aceita pela maioria dos estudiosos como por exemplo Braund (2009 p 16)
Todavia alguns pesquisadores delimitam-na antes do assassinato de Britacircnico a exemplo de
Giancotti (1954 p 329-344)
102
agraves monarquias heleniacutesticas do seacuteculo IV aC334
Empenhados em justificar o poder
poliacutetico dos monarcas os filoacutesofos gregos elaboraram manuais de gestatildeo do
Estado no intuito de direcionarem as virtudes do bom soberano em prol da
cidade ldquo[] Os espelhos de priacutencipe tinham como fim mostrar ao governante por
meio dos mais diversos exemplos como a sua accedilatildeo poderia vir em benefiacutecio
daqueles cuja vontade lhe pertenciardquo335
Em relaccedilatildeo agrave estrutura Malaspina informa que o De Clementia eacute um
tratado inacabado provavelmente destinado a compreender trecircs livros dos quais
temos apenas o primeiro e o iniacutecio do segundo totalizando vinte e seis
capiacutetulos336
No primeiro livro Secircneca explica a importacircncia e os benefiacutecios
particulares da clementia para os governantes a qual caracterizaria o priacutencipe
virtuoso ndash que eacute distinguido do tirano ndash como um liacuteder racional quase divino E
no segundo preocupa-se em definir clementia e diferenciaacute-la das noccedilotildees de
piedade e misericoacuterdia337
Mas afinal qual eacute o sentido da palavra clementia para o filoacutesofo No
decorrer do tratado satildeo apresentadas quatro definiccedilotildees i) ldquoa clemecircncia eacute a
temperanccedila de espiacuterito de quem tem o poder de castigar ou ainda a brandura de
um superior perante um inferior ao estabelecer a penalidaderdquo338
ii) ldquo[] eacute a
inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo339
iii) ldquo[] a
clemecircncia eacute a moderaccedilatildeo que retira alguma coisa de uma puniccedilatildeo merecida e
devidardquo340
iv) ldquo[] eacute a clemecircncia que faz desviar a puniccedilatildeo pouco antes da
execuccedilatildeo que poderia ter sido estabelecida por merecimentordquo341
Portanto a
clemecircncia seria uma espeacutecie de justiccedila exercida por uma instacircncia superior de
caraacuteter humanitaacuterio Ao apresentaacute-la desse modo Secircneca natildeo soacute traduziu o
conteuacutedo ideoloacutegico que almejava introduzir no Impeacuterio como tambeacutem
334
Para detalhes sobre o gecircnero dos espelhos de priacutencipes cf GOODENOUGH 1928 335
VIZENTIM 2005 p 92 336
MALASPINA 2014 p 175-176 337
Sen Cl 131 338
Clementia est temperantia animi in potestate ulciscendi vel lenitas superioris adversus
inferiorem in constituendis poenis (Sen Cl 231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 339
[] itaque dici potest et inclinatio animi ad lenitatem in poena exigenda (Sen Cl 231)
Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 340
Illa finitio contradictiones inveniet quamvis maxime ad verum accedat si dixerimus
clementiam esse moderationem aliquid ex merita ac debita poena remittentem [] (Sen Cl 232)
Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 341
[] Atqui hoc omnes intellegunt clementiam esse quae se flectit citra id quod merito constitui
posset (Sen Cl 232) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43)
103
demonstrou sua preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo filosoacutefico-moral de Nero ndash e
tambeacutem a vontade de colocar em praacutetica toda uma teoria de governo baseada nos
mais altos padrotildees morais342
Tal preocupaccedilatildeo fica evidente jaacute no proecircmio da obra A primeira frase do
tratado chama a atenccedilatildeo do leitor para as expectativas do filoacutesofo
Dispus-me a escrever a respeito da clemecircncia oacute Nero Ceacutesar
para que eu de certa forma desempenhasse a funccedilatildeo de espelho e te mostrasse a tua pessoa como a que haacute de vir para a maior de todas as satisfaccedilotildees343
Secircneca utiliza o espelho para mostrar a Nero sua verdadeira natureza Mas
natildeo apenas isso o espelho eacute empregado perspicazmente para revelar natildeo soacute o
reflexo do que jaacute existia como tambeacutem do que poderia existir344
Nas palavras de
Schofield ele eacute usado para dar-lhe prazer o prazer de inspecionar e examinar sua
proacutepria boa consciecircncia ndash antes de desviar o olhar e contemplar o destino que teria
a ldquoenorme massardquo (multitudo) da populaccedilatildeo A imagem de si mesmo que Nero
veria quando se olhasse no espelho de Secircneca estaria portanto envolvida em um
autoexame Em suma o que estaacute sendo dito eacute que Nero deveria fazer da clemecircncia
sua primeira e mais elevada prioridade345
E por que tanta preocupaccedilatildeo com a clementia De acordo com Griffin a
razatildeo deve ser procurada em Roma mais precisamente naquela contemporacircnea ao
filoacutesofo346
A clementia passou a ser usada como um conceito de virtude do
homem poliacutetico a partir de 49 aC Segundo Rocha Pereira ela adquiriu uma aura
extraordinaacuteria no tempo das guerras civis ficando particularmente ligada agrave figura
de Ceacutesar a quem o Senado honrou com um templo dedicado a clementia
Caesaris onde a personificaccedilatildeo da clemecircncia aparecia de matildeos dadas com o
general347
O orador Ciacutecero entatildeo ao perceber a relevacircncia da noccedilatildeo helecircnica de
clemecircncia para a posiccedilatildeo do governante inseriu-a nos seus Discursos como
qualidade de um excelente estadista Depois disso os imperadores seguintes se
342
BRAREN 2013 p 20 CORASSIN 1999 p 279 343
scribere de clementia Nero Caesar institui ut quodam modo speculi vice fungerer et te tibi
ostenderem perventurum ad voluptatem maximam omnium (Sen Cl Pr 11) Traduccedilatildeo de Braren
(2013 p 37) 344
OLIVEIRA 2000 p 111-112 345
SCHOFIELD 2015 p 69 BRYAN 2013 p 144 346
GRIFFIN 1992 p 149-150 347
ROCHA PEREIRA 1984 p 358
104
apossaram da ideia Augusto adicionou a clementia no seu Res Gestae Tibeacuterio
inscreveu clementia e moderatio em moedas confeccionadas sob o seu Principado
Caliacutegula foi elogiado como clemente pelo Senado e Claacuteudio em seu discurso
inicial prometeu ao Senado que governaria sob o veacuteu da clemecircncia348
Assim
as razotildees de Secircneca para enfatizar a clementia na ascensatildeo de Nero [] satildeo oacutebvias se a clementia era reconhecida como uma das qualidades mais desejaacuteveis em um princeps era a que mais precisava ser destacada em Nero natildeo apenas por causa da sua hereditariedade mas por causa da crueldade do seu antecessor [Claacuteudio]349
Os abusos de Claacuteudio tatildeo repudiados na Apocolocyntosis haviam sido
deixados para traacutes O filoacutesofo queria destacar a tranquilidade com a qual o povo
romano poderia viver haja vista que os tempos de horror tinham acabado Nero
seria o governante virtuoso que inauguraria uma nova era Ele restauraria a fama
da dinastia Juacutelio-Claacuteudia fundada por Ceacutesar e Augusto e interrompida por
Claacuteudio Lido dessa maneira o De Clementia transforma-se em uma espeacutecie de
manifesto otimista do novo Impeacuterio iluminado350
Eacute com essa esperanccedila que Secircneca ainda no proecircmio da obra elogia a
benignidade de Nero insinuando que agora os romanos estavam em seguranccedila
Ceacutesar podes anunciar galhardamente que todas as coisas que vieram confiadas a tua guarda e tutela satildeo consideradas seguras que por teu intermeacutedio nada de mau se prepara contra o Estado [] Isto teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti mas encenada de vez em quando351
Tamanha seguranccedila adviria tambeacutem da inocecircncia do soberano
348
GRIFFIN 2001 p 149 349
GRIFFIN 1992 p 150 350
Na Apocolocyntosis Secircneca afirma que Claacuteudio mandou executar 35 senadores e 221 equestres
(Sen Apoc 141) BRAUND 2009 p 63 351
potes hoc Caesar audacter praedicare omnia quae in fidem tutelamque tuam venerunt tuta
haberi nihil per te neque vi neque clam adimi rei publicae [] Difficile hoc fuisset si non
naturalis tibi ista bonitas esset sed ad tempus sumpta (Sen Cl Pr 115-6) Traduccedilatildeo de Braren
(2013 p 38-39)
105
Cobiccedilaste uma distinccedilatildeo bastante rara e que ateacute agora natildeo se
concedeu a priacutencipe nenhum a inocecircncia Esta singular bondade natildeo pocircs a perder tua obra [] Adquiriste este reconhecimento nunca um homem foi tatildeo caro a outro homem quanto tu eacutes ao povo romano []352
Para sublinhar ainda mais o bom caraacuteter de Nero Secircneca relata um
episoacutedio em que o princeps se entristeceu ao assinar a execuccedilatildeo de dois ladrotildees
No momento em que ia condenar dois ladrotildees Burro o teu prefeito [] exigia de ti que escrevesses os nomes dos condenados e por que motivos querias a condenaccedilatildeo Ele insistia para que finalmente fizesses aquilo que era sempre postergado Quando ele constrangido apresentara o documento
e o entregava a ti tambeacutem constrangido exclamaste ldquogostaria de natildeo saber escreverrdquo Que pronunciamento digno Que pudessem ouvi-lo todos os povos que habitam o Impeacuterio Romano [] Que pronunciamento digno da inocecircncia universal do gecircnero humano []353
Na acepccedilatildeo do filoacutesofo uma vez que a natureza do imperador era boa a
realizaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial seria plena E enquanto a administraccedilatildeo
fosse plena a satisfaccedilatildeo dos cidadatildeos tambeacutem seria Nesse sentido Secircneca
reconhece que no Principado de Nero existia
[] uma seguranccedila profunda contiacutenua um direito colocado
acima de toda injusticcedila [] uma forma de Estado que se mostra aos nossos olhos como muito satisfatoacuteria Estado ao qual nada falta para a liberdade absoluta []354
352
Rarissimam laudem et nulli adhuc principum concessam concupisti innocentiam Non perdit
operam nec bonitas ista tua singularis ingratos aut malignos aestimatores nancta est Refertur tibi gratia nemo unus homo uni homini tam carus umquam fuit quam tu populo Romano magnum
longumque eius bonum (Sen Cl Pr 115) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 38-39) 353
Animadversurus in latrones duos Burrus praefectus tuus vir egregius et tibi principi natus
exigebat a te scriberes in quos et ex qua causa animadverti velles hoc saepe dilatum ut
aliquando fieret instabat Invitus invito cum chartam protulisset traderetque exclamasti ldquoVellem
litteras nesciremrdquo O dignam vocem quam audirent omnes gentes quae Romanum imperium
incolunt quaeque iuxta iacent dubiae libertatis quaeque se contra viribus aut animis attollunt O
vocem in contionem omnium mortalium mittendam in cuius verba principes regesque iurarent O
vocem publica generis humani innocentia dignam [] (Sen Cl 211-3) Traduccedilatildeo de Braren
(2013 p 41) 354
Multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta
adfluens ius supra omnem iniuriam positum obversatur oculis laetissima forma rei publicae cui
ad summam libertatem nihil deest nisi pereundi licentia (Sen Cl Pr 118) Traduccedilatildeo de Braren
(2013 p 39)
106
Todas as qualidades do princeps fizeram com que o seu governo fosse
considerado superior ao do grande Augusto e ao de Tibeacuterio
Ningueacutem fala mais do divino Augusto nem dos primeiros tempos de Tibeacuterio Ceacutesar nem querendo imitar um modelo procura outro aleacutem do teu avalia-se o teu Principado por esta prova355
A mansidatildeo de Nero difundiu-se por todo o vasto territoacuterio do Impeacuterio
levando-o a uma eacutepoca de grandiosidade ldquo[] brotam a partir desta soacutelida
substacircncia e em seu devido tempo [as coisas fingidas] desenvolvem-se em algo
maior e melhorrdquo356
Movendo-se do proecircmio para o primeiro e o segundo livros do tratado
Secircneca abandona o discurso filosoacutefico-moral para iniciar o discurso praacutetico-
poliacutetico Vizentim explica que eacute aiacute onde ele se baseia na tradiccedilatildeo dos espelhos de
priacutencipe para desenvolver a teoria por traacutes da sua obra qual seja converter o
despotismo em monarquia tornando o absolutismo poliacutetico aceitaacutevel desde que a
moralidade e a poliacutetica se unam e que o rei virtuoso possa ser um modelo para
seus governados357
Tal ideia conforme a autora ligava-se agraves circunstacircncias
histoacutericas nas quais o De Clementia foi composto Sob o Impeacuterio o regime
adotado jaacute natildeo era mais tatildeo combatido e tudo dependia de um uacutenico homem O
foco era a figura do indiviacuteduo do priacutencipe era o seu poder que estava em jogo
que seria contestado O soberano deveria se configurar como o elemento de
ordenaccedilatildeo puacuteblica de forma a natildeo permitir a desagregaccedilatildeo das forccedilas do Impeacuterio
Secircneca entatildeo percebeu que a monarquia necessitava de novas razotildees para se
manter358
Foi por isso que defendeu a clemecircncia o modelo ideal de soberania soacute
existiria se fosse pautado nos auspiacutecios da clementia Esta orientaria a vida do
princeps disciplinando seus caprichos e garantindo a ele um bom desempenho A
Repuacuteblica seria personificada pelo imperador com a clemecircncia transformando-o
no ldquomaiorrdquo por proporcionar um componente humaniacutestico Ela ajudaria Nero a
355
[] nemo iam divum Augustum nec Ti Caesaris prima tempora loquitur nec quod te imitari
velit exemplar extra te quaerit principatus tuus ad gustum exigitur (Sen Cl Pr 116) Traduccedilatildeo
de Braren (2013 p 39) 356
[] Ex solido enascuntur tempore ipso in maius meliusque procedunt (Sen Cl Pr 116)
Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39) 357
VIZENTIM 2005 p 97 358
OMENA 2002 p 89
107
manter seu poder coeso e duradouro pois o coibiria de praticar abusos juriacutedicos
conservaria a felicidade dos cidadatildeos e manteria a seguranccedila359
O que se apreende enfim eacute que a clemecircncia seria o elemento de liberdade
sob o exerciacutecio do poder absoluto do princeps Em um regime de caraacuteter absoluto
sem qualquer controle externo ela seria a uacutenica restriccedilatildeo sobre o imperador
aquilo que o impediria de governar tiranicamente360
Como afirma o proacuteprio
filoacutesofo o poder natildeo precisa ser nocivo se estiver constituiacutedo sob a lei da
natureza361
De sua praacutetica adviriam a paz e o cumprimento das leis Soberano e
suacuteditos coexistiriam em harmonia e os interesses de ambos seriam preservados e
respeitados Soacute assim Nero ganharia o consentimento e a devoccedilatildeo dos cidadatildeos
peccedilas-chave para a estabilidade do Estado362
Todo esse debate acerca da teoria senequiana foi desenvolvido com um
objetivo mostrar as consequecircncias da desconsideraccedilatildeo da clemecircncia pelos
soberanos No segundo livro do De Clementia Secircneca denuncia as condutas
autoritaacuterias dos priacutencipes salientando os momentos em que suas vontades
ameaccedilaram a liberdade dos cidadatildeos Nessa perspectiva contrapotildee o imperador
clemente agrave figura do tirano culpado por exorbitar o absolutismo e a
arbitrariedade Ele critica a dissipaccedilatildeo praticada pelos tiranos em contraste com a
liberalidade autocontrolada do soberano justo e clemente363
Como ilustraccedilatildeo
aponta as falhas de Augusto e Claacuteudio durante os seus Principados enfatizando
suas atitudes crueacuteis Tal discussatildeo eacute bastante relevante para a nossa tese haja vista
que o filoacutesofo aponta essas falhas a fim de argumentar que Nero jamais as
cometeria pois era virtuosamente superior aos dois
Em relaccedilatildeo a Augusto Secircneca comenta que ele soacute aderiu agrave clemecircncia
quando jaacute havia se tornado velho e experiente364
Antes disso foi um princeps de
ldquocabeccedila quenterdquo conduzindo Roma de modo atroz e sanguinaacuterio Nero por outro
359
VIZENTIM 2005 p 96-97 360
Secircneca deixa claro que a clemecircncia natildeo deveria ser usada a qualquer custo mas com razatildeo e
discernimento O mote era a medida ldquodevemos manter um padratildeo mas como todo comedimento eacute
difiacutecil tudo o que for aleacutem da equidade deveraacute pender para o lado mais humanitaacuteriordquo modum
tenere debemus sed quia difficile est temperamentum quidquid aequo plus futurum est in partem
humaniorem praeponderet (Sen Cl Pr 22) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 40) 361
Sen Cl 3171 362
GONCcedilALVES 1999 p 68 363
CORASSIN 1999 p 281 364
Rudich (1997 p 63) acrescenta que a adesatildeo de Augusto agrave clemecircncia natildeo foi um movimento
espontacircneo do coraccedilatildeo mas o resultado de um frio caacutelculo poliacutetico
108
lado trazia a clemecircncia a bondade e a mansidatildeo consigo desde jovem natildeo
derramando uma uacutenica gota de sangue civil Vejamos
[] Na juventude [Augusto] inflamou-se e a coacutelera arruinou-o fez muitas coisas agraves quais voltava os olhos constrangido Ningueacutem ousaraacute comparar a tua mansidatildeo agrave do divino Augusto mesmo se fossem levados agrave disputa os teus anos juvenis e a velhice dele mais do que madura [] A verdadeira clemecircncia
Ceacutesar eacute esta que tu desempenhas e que natildeo tendo arrependimento de seviacutecias praticadas comeccedila sem qualquer maacutecula sem nunca ter derramado sangue civil [] Preservaste Ceacutesar a naccedilatildeo sem sangue e o fato que tanto glorificou teu grande espiacuterito eacute que natildeo derramaste nenhuma gota de sangue humano em todo o mundo []365
Griffin argumenta que Secircneca realccedila a conversatildeo tardia de Augusto agrave
clemecircncia para tornar a clementia juvenil de Nero notaacutevel366
O seu propoacutesito era
aumentar a credibilidade de Nero indicando a sua superioridade em relaccedilatildeo ao
seu ancestral Natildeo podemos nos esquecer de que na Apocolocyntosis o filoacutesofo
apresentou Augusto como um governante ideal e o associou a Nero defendendo
que o Principado neroniano seria tatildeo bom quanto o augustano367
Agora poreacutem
Secircneca proclama que Nero seria melhor do que Augusto e natildeo mais igual Para
Croisille e Ehrhardt Augusto deveria ser imitado mas sobretudo ultrapassado368
O governo de Nero por se aproximar do de Augusto no tempo suplantaria
[] o modelo estabelecido por esse uacuteltimo de modo a ser
tomado a partir de entatildeo como o paradigma por excelecircncia a ser seguido pelas geraccedilotildees futuras [] Augusto nesse sentido deixa de ser um ideal para se tornar apenas uma referecircncia sobre quem Nero tem uma superioridade moral []369
No que se refere a Claacuteudio o filoacutesofo manteacutem o mesmo discurso da
Apocolocyntosis a saber o de que ele era um monstro com um Principado
365
[] in adulescentia caluit arsit ira multa fecit ad quae invitus oculos retorquebat Comparare
nemo mansuetudini tuae audebit divum Augustum etiam si in certamen iuvenilium annorum
deduxerit senectutem plus quam maturam [] [] Haec est Caesar clementia vera quam tu
praestas quae non saevitiae paenitentia coepit nullam habere maculam numquam civilem
sanguinem fudisse [] Praestitisti Caesar civitatem incruentam et hoc quod magno animo
gloriatus es nullam te toto orbe stillam cruoris humani misisse eo maius est mirabiliusque quod
nulli umquam citius gladius commissus est (Sen Cl 1111-3) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 59) 366
GRIFFIN 1992 p 411 367
Sen Apoc 41-2 368
CROISILLE 1994 p 58 EHRHARDT 2001 p 134 369
VIZENTIM 2005 p 182
109
abominaacutevel370
No De Clementia a sua crueldade novamente eacute rememorada
com ecircnfase na natureza autocraacutetica e ilegal do seu governo Secircneca explana as
repetidas puniccedilotildees de parriciacutedios autorizadas por Claacuteudio as quais serviram para
transformar as condenaccedilotildees em espetaacuteculos ao inveacutes de ajudarem na correccedilatildeo dos
criminosos ldquoteu pai durante cinco anos mandou costurar dentro de sacos muito
mais condenados do que ouvimos mencionar em todos os seacuteculosrdquo371
O retrato
claudiano eacute divulgado como exemplum de despotismo vinculado sobretudo agrave
falta de preocupaccedilatildeo com o exerciacutecio da justiccedila Ele representa o desgoverno
siacutembolo de oacutedio e rebeliatildeo enquanto Nero simboliza o governo de um homem
racional e clemente Para Roller o contraste com Claacuteudio eacute feito tambeacutem como
alternativa para Nero escolher por si mesmo um caminho diferente ldquoNa verdade
o De Clementia pode ser considerado como um esforccedilo urgente para estabelecer
um modelo para o jovem imperador que o levaraacute a agir de maneira vantajosa para
os aristocratas []rdquo para que eles natildeo sofram mais humilhaccedilotildees e injuacuterias como
as que ocorreram no reinado anterior372
Como argumentam Bryan e Bueno o
foco na clementia de Nero uma virtude essencialmente ligada agrave praacutetica juriacutedica
serve para enfatizar sua diferenccedila em relaccedilatildeo a Claacuteudio para afastar a imagem do
novo imperador de seu antecessor conhecido por suas ilegalidades373
Cabe salientar que as criacuteticas a Claacuteudio foram o meio utilizado por Secircneca
para lembrar os seus leitores dos tempos sombrios enfrentados por Roma Afinal
ele mesmo tinha sofrido com os desmandos imperiais Mas com Nero Roma
poderia sentir-se protegida pois detinha um princeps manso de coraccedilatildeo E isso
para o filoacutesofo jaacute se refletia pela cidade ldquo[] hoje a todos os teus cidadatildeos
obriga-se a confessar que satildeo felizes e que jaacute nada mais se pode acrescentar agraves
suas venturas exceto que sejam permanentesrdquo374
A magnificecircncia do novo
soberano natildeo podia mais ser ocultada ldquo[] a ti natildeo eacute dado esconder-te mais do
370
Sen Apoc 122 115 104 62 47 13 371
pater tuus plures intra quinquennium culleo insuit quam omnibus saeculis insutos accepimus
(Sen Cl 1231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 72) 372
ROLLER 2001 p 247 373
BRYAN 2013 p 144 BUENO 2016 p 125 374
[] multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta
(Sen Cl Pr 17) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39)
110
que ao sol Existe muita luz agrave tua volta para ela convergem os olhos de todos e se
julgas poder mostrar-te elevas-terdquo375
Enfim o De Clementia foi elaborado por Secircneca para integrar o momento
da ascensatildeo de Nero fornecendo a ideologia do novo Principado Em periacuteodos de
trocas de imperadores era de se esperar que a elite romana ficasse ansiosa com as
direccedilotildees do proacuteximo governo E Secircneca soube aproveitar muito bem esse instante
para assegurar a todos que o novo princeps possuiacutea as virtudes necessaacuterias para
construir um excelente Principado E ainda que ele natildeo as tivesse o filoacutesofo
estava mostrando o caminho a seguir um modelo ideal de soberania baseado nos
auspiacutecios da moderaccedilatildeo Esta orientaria sua proacutepria vida disciplinaria seus
caprichos e ambiccedilotildees pessoais visando a uma finalidade uacutenica proporcionar um
bom desempenho como chefe do imperium cumprindo nestas condiccedilotildees suas
funccedilotildees como um homem sapiente e como tutor rei publicae Restava soacute um
princeps virtuoso com poderes extraordinaacuterios para ordenar os indiviacuteduos
dispostos agrave desordem376
Este era Nero Em breve ele revelaria a sua alma
clemente atraveacutes de boas accedilotildees mostrando-se como o Nero prodigioso e todos
poderiam saudar sua ascensatildeo ldquo[] como o iniacutecio de um novo seacuteculo de uma
idade de ouro de caraacuteter quase miacutesticordquo377
Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae
Discutida a ascensatildeo do soberano nas duas obras senequianas
abordaremos a partir deste ponto a presenccedila dela nas Eclogae de Calpuacuternio
Siacuteculo Tal poeta eacute pouquiacutessimo estudado na atualidade sendo negligenciado por
completo ou quando notado descartado com desprezo378
Na concepccedilatildeo de
Martin um fator significativo contribui para isso a comparaccedilatildeo da sua obra com
aquelas de mesmo nome dos seus dois ilustres predecessores Teoacutecrito e Virgiacutelio
O autor alega que o texto de Calpuacuternio natildeo possui a profundidade dos seus
precursores o que natildeo quer dizer que seu trabalho natildeo tenha meacuterito algum Ao
375
[] tibi non magis quam soli latere contingit Multa circa te lux est omnium in istam conversi
oculi sunt prodire te putas Oriris (Sen Cl 184) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 54) 376
FAVERSANI 2012 p 141 377
GUARINELLO 1996 p 58 378
FEAR 1994 p 269
111
contraacuterio sua poesia eacute encantadora e tecnicamente habilidosa379
ndash aspecto que
aliaacutes foi confirmado por vaacuterios outros classicistas a partir da segunda metade do
seacuteculo XX gerando um aumento do interesse cientiacutefico pelo poeta380
As novas investigaccedilotildees tiveram que lidar com a nebulosidade em torno da
biografia de Calpuacuternio Sua vida ainda hoje eacute pouco conhecida pelos modernos e
poder-se-ia dizer incompreendida381
Tudo o que sabemos sobre ele adveacutem das
descriccedilotildees e alusotildees presentes em seus proacuteprios versos382
Determinados trechos
por exemplo permitem-nos afirmar que ele era um homem humilde e de escassos
recursos e que nutria um enorme desejo de singrar na vida383
Outros possibilitam-
nos propor a localizaccedilatildeo da sua cidade natal no sul da Itaacutelia mais especificamente
na Siciacutelia384
o que explicaria o cognomen Siacuteculo385
A essa proposiccedilatildeo somam-se
vaacuterias menccedilotildees a plantas e a animais da regiatildeo mediterracircnica como faia platanus
orientalis e hystrix Talvez entatildeo Amat teria razatildeo ao estabelecer que a melhor
hipoacutetese parece ser a mais simples aquela que faz de Calpuacuternio Siacuteculo um
siciliano por origem386
As Eclogae estatildeo inseridas no gecircnero bucoacutelico estilo que encontrou
poucos representantes no seu longo caminhar sendo produzido pelo grego
Teoacutecrito no seacuteculo III aC e depois adotado pelos latinos Virgiacutelio Calpuacuternio e
Nemesiano nos seacuteculos I e III387
Segundo Santos a poesia bucoacutelica possui como
pano de fundo o cenaacuterio campestre ruacutestico com um protagonista que pastoreia
cabras eou ovelhas Esse pastor eacute um indiviacuteduo que vive uma vida modesta e
tranquila em meio agrave natureza fora das agitaccedilotildees citadinas Eacute um homem que
busca a paz em seu existir e que aparece vestido singelamente e acompanhado dos
seus cajados e dos catildees enquanto se ocupa de cantigas sobre amores sonhos e
tristezas Calpuacuternio em especiacutefico eacute um apaixonado pelas belezas naturais e
379
MARTIN 1996 p 17 380
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo tivemos trecircs novas traduccedilotildees criacuteticas das Eclogae feitas por Verdiegravere
(1954) Korzeniewski (1971) e Amat (1991) bem como pesquisas sobre sua tradiccedilatildeo manuscrita
suas caracteriacutesticas literaacuterias e sua relaccedilatildeo com a ideologia imperial 381
Para detalhes biograacuteficos do poeta cf BEATO 1995 p 617-627 382
AMAT 1991 p vii 383
Calp Ecl 193-95 384
Calpuacuternio na Ecloga 1 refere-se agrave planta fagus aquas (ldquopinhalrdquo) (Calp Ecl 19) Segundo
Beato (1996 p 16) essa planta a faia apesar de se encontrar cultivada de forma geral nas
montanhas da Europa era muito mais faacutecil de ser encontrada na Siciacutelia 385
Era costume dos autores de eacutepocas remotas adotar como sobrenome o nome de sua paacutetria
(REBELLO 2004 p 75) 386
AMAT 1991 p x 387
Para detalhes a respeito do gecircnero bucoacutelico cf ALPERS 19721973 p 352-371
112
pelos prazeres campestres apresentando-nos uma imagem idealizada mas natildeo
irreal da vida rural em uma linguagem plena de vivacidade realismo e humor388
Esse sentimentalismo eacute exibido nas Eclogae em sete livros os quais
abordam temaacuteticas variadas 1) poliacutetica 2) idealismo pastoril 3) idealismo
pastoril poder da canccedilatildeo 4) poliacutetica 5) realidade ruacutestica 6) realidade ruacutestica
poder da canccedilatildeo e 7) poliacutetica Os princiacutepios da organizaccedilatildeo da obra satildeo bem
claros nas Eclogae 1 4 e 7 o poeta preocupa-se com a esfera poliacutetica ao passo
que nas Eclogae 2 3 5 e 6 atenta-se para questotildees ruacutesticas usuais O primeiro
grupo de poesias eacute o uacutenico em que Calpuacuternio cita acontecimentos ensejam
especulaccedilotildees acerca do seu tempo histoacuterico qual seja o Principado neroniano389
Grande parte dos pesquisadores aceita essa dataccedilatildeo devido agraves referecircncias do poeta
a um princeps jovem belo patrocinador de jogos esplecircndidos e sucessor de um
governante tiracircnico390
Keene inclusive declara que as evidecircncias a favor da
eacutepoca neroniana satildeo esmagadoras e que o ldquo[] reinado de nenhum outro
imperador apresenta tantas coincidecircnciasrdquo391
Assim tambeacutem consideraremos
essa demarcaccedilatildeo como a mais provaacutevel utilizando-nos dos versos calpurnianos
para examinarmos dois episoacutedios da vida de Nero a sua ascensatildeo e a realizaccedilatildeo
de jogos em um anfiteatro O primeiro seraacute lido sob a oacutetica da categoria Nero
prodigioso e o segundo sob a da Nero construtor O episoacutedio da ascensatildeo
aparece basicamente nas Eclogae 1 e 4 o dos jogos na 7
A primeira bucoacutelica inicia-se com os pastores Coacuteridon e seu irmatildeo Oacuternito
protegendo-se do calor veranil no interior de um bosque agrave sombra de uma aacutervore
faia Enquanto desfrutam do momento refrescante veem um poema gravado na
casca da faia o qual verificam ter sido escrito pelo deus Fauno392
Coacuteridon entatildeo
sugere a Oacuternito que leia o poema divino em voz alta
388
SANTOS 2003 p 8-39 389
BEATO 1996 p 51 DAVIS 1987 p 32 TOWNEND 1980 p 166-174 390
Existem poucos pesquisadores que fogem de tal delimitaccedilatildeo como Champlin (1978 p 95) que
defende que as Eclogae podem ser alinhadas com os reinados de Heliogaacutebalo e Severo Alexandre 391
KEENE 1885 p 377 392
Fauno foi ldquo[] um antiquiacutessimo deus de Roma cujo culto estava localizado no Palatino ou nas
suas imediaccedilotildees Pelo nome aparece como um deus benfazejo lsquofavoraacutevelrsquo (qui fauet) protetor
em particular dos rebanhos e dos pastores []rdquo (GRIMAL 2005 p 166)
113
[Oacuternito] ldquoEu Fauno [] que protejo os bosques e
as montanhas anuncio aos povos o futuro apraz-me gravar nesta aacutervore sagrada estes felizes versos reveladores dos destinos Alegrai-vos principalmente voacutes oacute habitantes dos bosques alegrai-vos voacutes oacute povos da Itaacutelia Embora todo o rebanho vagueie sem preocupaccedilatildeo de guarda e o pastor natildeo queira fechar os estaacutebulos agrave
noite com o cancelo de freixo nem assim o ladratildeo faraacute assaltos aos redis ou soltos os cabrestos roubaraacute os animais de carga Assegurada a paz renasce a Idade de Ouro e uma vez eliminada a torpeza e a sordidez a beneacutefica Teacutemis regressa enfim agrave terrardquo393
A passagem possui uma linguagem profeacutetica anunciadora do renascimento
da Idade de Ouro Para Beato e Momigliano Calpuacuternio estaacute se referindo aiacute aos
tempos advindos com a nova sucessatildeo da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Os autores
sustentam que o poeta provavelmente escreveu esses versos nos primeiros meses
do novo Principado a fim de divulgar uma visatildeo auspiciosa do soberano O seu
intento era propagar os sinais de um presente proacutespero surgido haacute pouco no
horizonte e regido por um jovem deus Nero seria aquele que instauraria uma
eacutepoca nova em Roma restaurando a paz e implementando uma seguranccedila
generalizada394
Tal seguranccedila inclusive eacute marcada por Calpuacuternio logo nas
primeiras linhas onde o Fauno cita os benefiacutecios que seratildeo obtidos pelos coloni
com o governo vindouro os ladrotildees natildeo faratildeo mais assaltos aos redis e nem
roubaratildeo os animais de carga
Sobre essa passagem eacute possiacutevel ainda extrairmos conotaccedilotildees mais
profundas A menccedilatildeo ao retorno da Idade Aacuteurea retoma versos da Eneida nos
quais Virgiacutelio louva os seacuteculos dourados (aurea saecula) trazidos por Augusto395
Como jaacute dissemos Augusto foi apreciado como o grande pacificador do Impeacuterio
responsaacutevel por retirar Roma das turbulentas guerras civis e restituir o mos
maiorum aos moldes tradicionais Ao realizar a intertextualidade com a eacutepica
Calpuacuternio constroacutei um discurso laudatoacuterio identificando Nero positivamente com
393
[Ornytus] ldquoqui iuga qui siluas tueor satus aethere Faunus haec populis uentura cano iuuat
arbore sacra laeta patefactis incidere carmina fatis uos o praecipue nemorum gaudete coloni
uos populi gaudete mei licet omne uagetur securo custode pecus nocturnaque pastor claudere
fraxinea nolit praesepia crate non tamen insidias praedator ouilibus ullas afferet aut laxis
abiget iumenta capistris aurea secura cum pace renascitur aetas et redit ad terras tandem
squalore situque alma Themis posito iuuenemque beata sequunturrdquo (Calp Ecl 133-44)
Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 394
BEATO 1996 p 21 MOMIGLIANO 1944 p 97 395
Verg A 6 792-797
114
Augusto Nero eacute o novo Augusto aquele que recuperaria os ecos de um passado
feliz controlando os conflitos civis e fixando a paz396
Isso fica mais evidente se
atentarmos para o retorno da ldquobeneacutefica Teacutemisrdquo presente no excerto Na mitologia
antiga Teacutemis era considerada a divindade da justiccedila da lei e da ordem capaz de
equilibrar o mundo entre as leis universais e as paixotildees humanas397
A alusatildeo a
ela entatildeo indica o regresso de um periacuteodo de justiccedila em Roma personificado na
figura do jovem princeps A administraccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica equilibrada e
harmocircnica que predominou nos anos augustanos ndash e que foi negligenciada por
Claacuteudio ndash estava de volta Com a deusa o poeta expressa as suas esperanccedilas as
de que a ldquomiseacuteriardquo e o ldquodesmazelordquo mantivessem-se distantes Nesse ponto
concordamos com Dominik Garthwaite e Roche ela eacute uma escolha apropriada
para o contexto pois combina poderes divinos com a autoridade legal incorporada
pelo jovem priacutencipe398
Eacute necessaacuterio destacar que o elemento literaacuterio da eacutepoca aacuteurea permite-nos
aproximar as Eclogae da Apocolocyntosis Nas duas obras o elemento se destaca
na primeira temos um Fauno anunciando o advento da Idade de Ouro e na
segunda vemos a Parca Laacutequesis tecendo o fio de ouro da vida de Nero Mayer
afirma que existe uma grande possibilidade de Calpuacuternio ter se inspirado na saacutetira
senequiana para a composiccedilatildeo do seu trabalho Isso porque no princiacutepio do
governo de Nero houve um renascimento do gecircnero bucoacutelico sendo Calpuacuternio
um dos representantes do movimento O poeta entatildeo embarcou no elogio contido
na saacutetira de Secircneca para construir o seu proacuteprio fato que revela um sentimento
comum entre ambos expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo governo399
Em suma o marco nestes versos iniciais da primeira Ecloga eacute o retorno
da paz e da justiccedila augustanas ao Principado de Nero ideia consolidada por
Calpuacuternio no prosseguir da profecia fauniana
396
MENDES 2006 p 40 DAVIS 1987 p 41 POSTGATE 1902 p 40 397
GRIMAL 2005 p 435-436 398
DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 313 399
MAYER 2006 p 454
115
[Oacuternito] ldquoEnquanto um deus em pessoa governar
os povos a iacutempia Belona poraacute as matildeos vencidas atraacutes das costas e despojada de armas lanccedilaraacute mordeduras loucas contra as suas proacuteprias entranhas e travaraacute contra si as guerras civis que recentemente difundiu em todo o orbe Roma jaacute natildeo choraraacute desastres [] nem cativa celebraraacute quaisquer triunfos Todas as
guerras seratildeo encerradas no caacutercere Tartaacutereo [] A paz apresentar-se-aacute esplendorosa []rdquo400
O fim do derramamento de sangue eacute representado pela referecircncia agrave deusa
da guerra Belona401
a qual eacute pintada de modo impotente despojada de suas armas
e com as matildeos amarradas nas costas Sem poder pois o jovem deus a dominou
ela natildeo consegue instigar uma guerra civil e passa a se autodestruir cravando
dentadas em suas entranhas Outra vez o poeta pega emprestado versos da
Eneida porquanto Belona surge no escudo de Eneias para retratar a vitoacuteria de
Augusto na batalha de Aacutecio402
No meio ecircneas armadas e Aacutecias guerras Todo a ferver Leucate em marte instruto Com o ouro viras fulgurar as ondas
Caacute nrsquoalta popa Augusto arrasta aos preacutelios Senado e povo os deuses e os penates De ambas as fontes ledo exala flamas Na cabeccedila a luzir a estrela paacutetria [] Com triacuteplice triunfo entrado em Roma De Itaacutelia aos deuses cumpre os votos Ceacutesar [] Festa aplauso alegria as ruas soam []403
A alegria sentida pelo povo das Vrbes apoacutes a derrota de Marco Antocircnio e
Cleoacutepatra em Aacutecio eacute associada por Calpuacuternio agrave felicidade sentida pelo populus
400
[Ornytus] ldquodum populos deus ipse reget dabit impia uictas post tergum Bellona manus
spoliataque telis in sua uesanos torquebit uiscera morsus et modo quae toto ciuilia distulit orbe secum bella geret nullos iam Roma Philippos deflebit nullos ducet captiua triumphos
omnia Tartareo subigentur carcere bella immergentque caput tenebris lucemque timebunt
candida pax aderit []rdquo (Calp Ecl 146-55) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 401
Deusa romana da guerra Eacute por vezes considerada a esposa de Marte Assemelha-se muito agrave
representaccedilatildeo tradicional das Fuacuterias (GRIMAL 2005 p 60) 402
A batalha de Aacutecio ocorreu no ano 31 aC e foi uma disputa entre Marco Antocircnio e Augusto na
qual este uacuteltimo lutou contra a ameaccedila de orientalizaccedilatildeo de Roma por esse primeiro e Cleoacutepatra
(MENDES 2006 p 26) 403
in medio classis aeratas Actia bella cernere erat totumque instructo Marte videres fervere
Leucaten auroque effulgere fluctus hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus
populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flammas [] at
Caesar triplici invectus Romana triumphos moenia dis Italis votum immortale sacrabat
maxima ter centum totam delubra per urbem laetitia ludisque viae plausuque fremebant []
(Verg A 8 675-680 714-717) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 339-340)
116
romanus com o regresso da Era de Ouro no Principado neroniano Livre de
confrontos Roma jaacute natildeo choraria e todos os seus inimigos seriam abandonados
na escuridatildeo do caacutercere Tartaacutereo404
abrindo espaccedilo para o reinado da candida pax
ndash uma paz que como Wiseman sugeriu traria o contraste entre o passado paciacutefico
claudiano aparente e o presente paciacutefico neroniano real A paz brilhante
disponiacutevel agora seria real e natildeo apenas uma maacutescara como era com Claacuteudio405
Em vista disso o Fauno profetiza a restauraccedilatildeo das relaccedilotildees paciacuteficas entre
o Senado e o imperador predizendo um periacuteodo de respeito aos direitos
constitucionais e agrave autoridade dos cocircnsules
[Oacuternito] ldquo[] Seraacute plena a tranquilidade que
desconhecedora do desembainhar da espada traraacute ao Laacutecio [] um segundo reinado de Numa o primeiro que aos exeacutercitos exultantes com as carnificinas e ainda inflamados com as guerras de Rocircmulo ensinou o esforccedilo da paz e ordenou que caladas as armas as trombetas soassem no meio das cerimocircnias religiosas e natildeo no meio das batalhas O cocircnsul jaacute natildeo deixaraacute de comprar a aparecircncia de uma honra fictiacutecia nem reduzido ao silecircncio
receberaacute fasces sem poder ou um tribunal ilusoacuterio mas restauradas as leis vigoraraacute plenamente o direito e um deus melhor [] eliminaraacute a eacutepoca de opressatildeordquo406
O Principado de Nero eacute contraposto ao anterior Calpuacuternio assinala a
substituiccedilatildeo dos assassinatos dos senadores por uma plena quietude Vale recordar
que a gestatildeo claudiana irracional jaacute havia sido criticada por Secircneca na
Apocolocyntosis e no De Clementia o que reflete novamente a concepccedilatildeo
positiva dos autores acerca do novo soberano ele viera para redimir o passado
infeliz407
Eacute essencial destacar tambeacutem que tal vinda no excerto eacute vinculada ao
retorno do reino de Numa Pompiacutelio e agrave morte do reino de Rocircmulo Mas por que
Numa e Rocircmulo De acordo com o Oxford Classical Dictionary (OCD) Numa
404
Regiatildeo mais profunda do mundo situada sob os proacuteprios infernos Na mitologia romana eacute o
local onde as diferentes geraccedilotildees divinas abandonavam os seus inimigos para serem castigados
(GRIMAL 2005 p 429-430) 405
WISEMAN 1982 p 58-59 406
[Ornytus] ldquoplena quies aderit quae stricti nescia ferri altera Saturni referet Latialia regna
altera regna Numae qui primus ouantia caede agmina Romuleis et adhuc ardentia castris
pacis opus docuit iussitque silentibus armis inter sacra tubas non inter bella sonare iam nec
adumbrati faciem mercatus honoris nec uacuos tacitus fasces et inane tribunal accipiet consul
sed legibus omne reductis ius aderit moremque fori uultumque priorem reddet et afflictum
melior deus auferet aeuumrdquo (Calp Ecl 163-74) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 62) 407
DAVIS 1987 p 41-42
117
foi o segundo dos sete reis que governaram Roma antes da fundaccedilatildeo da
Repuacuteblica Ele reinou de 715 a 673 aC sendo considerado um governante
paciacutefico creditado pelo estabelecimento do direito da lei e dos bons costumes
bem como pela criaccedilatildeo de alguns fundamentos religiosos a exemplo dos cultos de
Marte e Juacutepiter Numa era visto como a contraparte paciacutefica de Rocircmulo o seu
antecessor e lendaacuterio fundador de Roma que era tido como siacutembolo de conflito
civil devido ao assassinato do seu irmatildeo Remo A menccedilatildeo aos dois feita por
Calpuacuternio portanto carrega uma mensagem bem significativa Nero eacute o novo
Numa Pompiacutelio o anti-Rocircmulo o deus melhor que garantiria a observacircncia da
justiccedila afastando a Era decadente Sob o seu comando os cocircnsules natildeo teriam
mais falsas honras e a antiga tradiccedilatildeo republicana seria retomada408
Apoacutes abundantes manifestaccedilotildees de esperanccedilas Oacuternito finaliza a leitura da
profecia do Fauno gravada na casca da faia e convida o seu irmatildeo Coacuteridon a
cantaacute-la ao som da flauta a fim de que ela alcanccedilasse os ouvidos neronianos
Temos assim o encerramento da primeira Eacutecloga calpurniana e a sua imediata
sucessatildeo no acircmbito poliacutetico pela quarta Eacutecloga classificada como a poesia
central da obra409
Nela os irmatildeos Coacuteridon e Amintas compotildeem diversas canccedilotildees
com a flauta para Melibeu patrono de Coacuteridon no intuito de convencecirc-lo a incluir
este uacuteltimo nos ciacuterculos literaacuterios imperiais Dentro das canccedilotildees destacamos
quatro trechos nos quais Calpuacuternio mais uma vez alude ao episoacutedio da ascensatildeo
do princeps No primeiro Coacuteridon louva a Idade de Ouro renovada manifestando
a alegria da nova era em relaccedilatildeo ao passado sombrio ldquoadmito que disse isso oacute
Melibeu [] Agora os tempos jaacute satildeo outros e o deus natildeo eacute o mesmo A esperanccedila
jaacute nos sorri mais []rdquo410
No segundo os irmatildeos exaltam a juventude de Nero e
comparam a sua eloquecircncia com a de Apolo
[Coacuteridon] ldquoMas a mim que me sorria alegre e feliz com o seu augusto rosto aquele que o nosso mundo governa com sua
divindade propiacutecia e a paz perpeacutetua manteacutem com vigor juvenilrdquo
408
OCD 2012 p 1181 LEACH 1973 p 62 409
KARAKASIS 2016 p 48 410
[Corydon] ldquohaec ego confiteor dixi Meliboee sed olim non eadem nobis sunt tempora non
deus dem spes magis arridet []rdquo (Calp Ecl 429-31) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 79)
118
[Amintas] ldquoTambeacutem para mim acompanhado do eloquente Apolo Ceacutesar volva o seu olhar []rdquo411
A menccedilatildeo a Apolo parece ser uma toacutepica comum entre os autores
contemporacircneos a Nero Na Apocolocyntosis Secircneca jaacute havia evocado a figura do
deus para enaltecer a beleza o talento oratoacuterio e a integridade do imperador bem
como para frisar a conexatildeo entre o soberano Augusto e Apolo Ele o evoca no
intuito de legitimar e elevar o Principado vindouro Aqui Calpuacuternio estaacute
interessado no mesmo ponto ao colocar ldquoCeacutesar acompanhado do eloquente
Apolordquo ele projeta a benccedilatildeo divina para o novo governo posicionando Nero sob
o patronato apoliacutenico Em resumo temos novamente a sugestatildeo do renascimento
de uma Idade de Ouro (aurea aetas) paciacutefica e a indicaccedilatildeo de Apolo como
patrono do jovem imperador412
Mas natildeo apenas isso o fato de o princeps estar ao
lado de Apolo demonstra que o poeta o enxergava como um liacuteder divino em
disfarce humano Eacute o que ele demonstra nos versos posteriores
[Coacuteridon] ldquoTu igualmente oacute Ceacutesar quer sejas o proacuteprio Juacutepiter413 revestido de outra aparecircncia quer sejas qualquer outro deus ocultado sob uma imagem falsa e mortal (pois eacutes de fato um deus) governa peccedilo-te governa eternamente este mundo estes povosrdquo414
Ao ser associado a Juacutepiter divindade responsaacutevel por presidir os ceacuteus
Nero eacute colocado natildeo soacute em uma posiccedilatildeo divina como tambeacutem em um lugar de
comandante pastoral Ou seja sob a sua administraccedilatildeo o mundo pastoril viveria
fecundo Ao ouvir o seu nome a terra inerte se aqueceria e produziria flores as
aacutervores renasceriam e a seara abundante cresceria Os pastores jaacute natildeo receariam
mais trabalhar pois o jovem divino havia lhes propiciado terra farta segura e
411
[Corydon] ldquoat mihi qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore
pacem laetus et augusto felix arrideat orerdquo [Amyntas] ldquoMe quoque facundo comitatus
Apolline Caesar respiciat []rdquo (Calp Ecl 484-88) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 412
CHAMPLIN 2003 p 280 KARAKASIS 2016 p 251 413
ldquoJuacutepiter eacute o deus romano assimilado a Zeus Eacute por excelecircncia o grande deus do panteatildeo
romano Surge como a divindade do ceacuteu da luz divina das condiccedilotildees climateacutericas e tambeacutem do
raio e do trovatildeo []rdquo (GRIMAL 2005 p 261-262) 414
[Corydon] ldquotu quoque mutata seu Iuppiter ipse figura Caesar ades seu quis superum sub
imagine falsa mortalique lates (es enim deus) hunc precor orbem hos precor aeternus
populos regerdquo (Calp Ecl 4142-144) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 83)
119
paciacutefica415
Com medo de perder esses benefiacutecios o poeta pede aos deuses que
deixem Nero viver perpetuamente
[Amintas] ldquoPeccedilo-vos oacute deuses que a este jovem por voacutes enviado do ceacuteu (disso estou certo) o faccedilais regressar apoacutes uma longa vida ou antes que o liberteis da sua condiccedilatildeo humana e lhe concedais um fio celeste de um metal impereciacutevel que ele seja um deus e natildeo queira trocar o seu palaacutecio pelo ceacuteurdquo416
Apoacutes o pedido Coacuteridon e Amintas concluem as canccedilotildees Ao ouvi-las
Melibeu elogia a qualidade delas mostrando-se surpreso com a capacidade dos
dois pastores de escreverem versos tatildeo doces Coacuteridon agradece o elogio e roga a
Melibeu novamente que leve as canccedilotildees ao sagrado palaacutecio no Palatino417
Ateacute
aqui foi possiacutevel notar que Calpuacuternio eacute um poeta atento e sensiacutevel agrave realidade
sociopoliacutetica do seu tempo histoacuterico Contemporacircneo de uma nova era ele faz
questatildeo de expressar ora de maneira clara e incisiva ora de forma impliacutecita sua
felicidade com a ascensatildeo do princeps
A proacutexima Eacutecloga a ser examinada a seacutetima tornaraacute ainda mais niacutetida
essa empolgaccedilatildeo do poeta e representaraacute Coacuteridon deixando o mundo pastoril para
visitar Roma no desejo de conhecer o princeps pessoalmente Ao chegar agrave capital
do Impeacuterio esse primeiro logo se dirige ao anfiteatro ndash erguido por Nero ndash para
assistir a espetaacuteculos418
Ao entrar no edifiacutecio fica perplexo com sua imensidatildeo e
o descreve nas seguintes palavras
415
Calp Ecl 4108-116 4117-130 416
[Amyntas] ldquoa di precor hunc iuuenem quem uos (neque fallor) ab ipso aethere misistis post
longa reducite uitae tempora uel potius mortale resoluite pensum et date perpetuo caelestia fila
metallo sit deus et nolit pensare palatia caelordquo (Calp Ecl 4137-142) Traduccedilatildeo de Beato (1996
p 83) 417
Calp Ecl 4157-160 418
Cf Anexo C com o mapa da Roma neroniana
120
[Coacuteridon] ldquoVi elevar-se no ceacuteu um anfiteatro formado por um
entranccedilado de vigas quase dominando a rocha Tarpeia Depois de percorrer as enormes bancadas e as rampas de acesso [] cheguei ao local onde [] o povoleacuteu de roupa escura e coccedilada contemplava o espetaacuteculo [] [] Ali o centro da curva arena forma uma planiacutecie deixando no meio um espaccedilo delimitado por dois muros semicirculares Como hei-de contar-te agora
aquilo que eu proacuteprio a custo tive dificuldade em examinar nos seus pormenores a tal ponto me entusiasmou o esplendor circundante Estava eu de peacute imoacutevel e boquiaberto admirando toda esta maravilha no seu conjunto [] quando um velho que por acaso estava agrave minha esquerda disse lsquoPor que estaacutes tatildeo admirado oacute campocircnio ao contemplares toda esta magnificecircncia tu que ignoras o ouro e apenas conheces casas
humildes choccedilas e cabanas solitaacuteriasrsquo Cintilam agrave porfia os parapeitos revestidos de pedras preciosas e os poacuterticos cobertos de ouro No ponto onde o limite da arena proporciona o espetaacuteculo junto ao muro de maacutermore corre uma fieira de fustes ligados uns aos outros de esplecircndido marfim [] Entretecidas de fios de ouro brilham tambeacutem umas redes pendentes sobre a arena de dentes inteiros de elefantes []rdquo419
Taacutecito e Suetocircnio indicam que tal anfiteatro foi erigido no Campo de
Marte em 57 estendendo-se do Capitoacutelio onde ficava o cume Tarpeio ateacute o rio
Tibre420
Pela descriccedilatildeo de Coacuteridon verificamos o luxo e a grandeza da
construccedilatildeo traves entrelaccediladas que se dobravam entre montes sem fim parapeitos
revestidos de pedras preciosas um poacutertico recoberto de ouro muros marmoacutereos
com vigas de marfim e redes de ouro pendentes sobre o edifiacutecio Natildeo foi agrave toa
entatildeo que o campesino ficou ldquoboquiabertordquo com o que os seus olhos
testemunharam acostumado a viver proacuteximo agrave natureza de modo simples e
ruacutestico Coacuteridon natildeo conseguia assimilar a riqueza do monumento citadino
Juntamente ao vislumbre arquitetocircnico ele tambeacutem exibiu admiraccedilatildeo pelos
419
[Corydon] ldquouidimus in caelum trabibus spectacula tecircxtis surgere Tarpeium prope
despectantia culmen emensique gradus et cliuos lene iacentes uenimus ad sedes [] Qualiter
haec patulum concedit uallis in orbem et sinuata latus resupinis undique siluis inter continuos
curuatur concaua montes sic ibi planitiem curuae sinus ambit harenae et geminis medium se
molibus alligat ouum quid tibi nunc referam quae uix suffecimus ipsi per partes spectare suas
sic undique fulgor percussit Stabam defixus et ore patenti cunctaque mirabar necdum bona
singula noram [] Balteus en gemmis en illita porticus auro certatim radiant nec non ubi
finis harenae proxima marmoreo praebet spectacula muro sternitur adiunctis ebur admirabile
truncis et coit in rotulum tereti qui lubricus axe impositos subita uertigine falleret uacutengues
excuteretque feras Auro quoque torta refulgente retia quae totis in harenam dentibus exstant
dentibus aequatis []rdquo (Cal Ecl 723-56) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 99-100) 420
Tac Ann 13311 Suet Nero 121
121
animais selvagens que adentraram a arena421
lebres brancas javalis de chifres
alces raros touros422
bezerros do mar423
ursos424
e cavalos do rio425
Fear comenta que as construccedilotildees luxuosas eram uma caracteriacutestica tiacutepica
da Roma imperial sobretudo do periacuteodo neroniano O autor relata que algumas
inscriccedilotildees evergeacuteticas citadas por Suetocircnio e Marcial revelam a enorme quantia de
dinheiro gasta pelos principes em jogos e adornos para os edifiacutecios Decerto os
soberanos deviam julgar importante investir na esteacutetica dos preacutedios para
demonstrarem poder e conquistarem apoio puacuteblico Em especiacutefico as obras e os
jogos patrocinados por Nero eram muito populares a ponto da sua fama tornar-se
a do ldquomaior showman de todos os temposrdquo426
Calpuacuternio foi um dos que
vivenciaram essa fama A descriccedilatildeo detalhada que faz do anfiteatro a qual ocupa
57 versos em um poema de 84 reflete a seriedade com que Nero lidava com o
entretenimento bem como retrata os investimentos despendidos por ele na
execuccedilatildeo dos espetaacuteculos Nesse sentido entendemos que a seacutetima Eacutecloga eacute um
instrumento de divulgaccedilatildeo da accedilatildeo imperial como algo beneacutefico porque pinta um
liacuteder comprometido com a inovaccedilatildeo cultural e com um Principado materializador
da Era de Ouro427
Em concordacircncia com Dominik Garthwaite e Roche
concluiacutemos que a descriccedilatildeo minuciosa dos esplendores arquitetocircnicos e culturais
de Roma sob o patrociacutenio do novo Ceacutesar caracteriza positivamente o princeps428
421
Calp Ecl 759-68 422
Possiacutevel referecircncia a bisontes europeus (BEATO 1996 p 137) 423
Menccedilatildeo provaacutevel a focas (Plin Nat 8110) 424
Segundo Jennison (1922 p 73) trata-se de ursos brancos ou polares 425
Hipopoacutetamo (BEATO 1996 p 137) 426
FEAR 1994 p 272-273 427
Na contramatildeo dessa visatildeo Leach (1973 p 84-87) argumenta que a seacutetima Eacutecloga traz uma
criacutetica impliacutecita a Nero Para a autora a surpresa de Coacuteridon com o anfiteatro carrega a
insatisfaccedilatildeo do poeta com a tentativa imperial de controlar a natureza Ao vasculhar o mundo em
busca de maravilhas o princeps criou um novo cosmos dentro da estrutura do edifiacutecio Sua accedilatildeo foi uma amostra ldquo[] exagerada do poder do homem de dominar a natureza e domesticar o
selvagem []rdquo No lugar de um paraiacuteso Nero acabou criando uma perversatildeo da natureza um
universo de artifiacutecios que excluiu a flora e a fauna italianas Logo soacute restava a Coacuteridon ficar
ldquoboquiabertordquo pois discordava dessa nova disposiccedilatildeo do mundo Leach portanto lecirc a seacutetima
Eacutecloga natildeo como um louvor e sim como uma crocircnica de decepccedilatildeo No entanto eacute fundamental
frisar que a proacutepria autora alega a fragilidade da sua leitura o poema natildeo conteacutem nenhuma palavra
de repugnacircncia e nem versos diretamente ofensivos a Nero Ao contraacuterio tudo eacute disfarccedilado por
elogios O imperador caso se preocupasse em ler esse poema poderia muito bem se prender agrave
aparente lisonja impenetraacutevel agraves implicaccedilotildees irocircnicas ldquoO significado mais sombrio eacute reservado
aos leitores capazes de compartilhar a insatisfaccedilatildeo do poeta e ainda [ansiar] pela integridade do
ideal pastoral romanordquo Diante dessa afirmaccedilatildeo natildeo consideraremos a hipoacutetese de Leach na
anaacutelise das Eclogae pois acreditamos que Calpuacuternio longe de reprovar o esplendor do anfiteatro
utilizou-o como siacutembolo da prosperidade trazida pelo governo de Nero 428
DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 312
122
Prossigamos para o final das aventuras de Coacuteridon em Roma o momento
em que ele vecirc o imperador na arena
[Coacuteridon] ldquoOh Oxalaacute eu natildeo tivesse ido com roupa de campocircnio Teria contemplado mais de perto as minhas divindades Mas a minha roupa escura e coccedilada e a minha fiacutebula de fecho arqueado impediram-me de estar mais proacuteximo De qualquer modo consegui observaacute-lo em pessoa mesmo
longe e se a vista me natildeo enganou estou em crer que num soacute rosto se associam as feiccedilotildees de Marte429 e de Apolordquo430
Eacute bastante niacutetida aiacute a postura humilde de Coacuteridon ao se referir a Nero
mostrando tristeza por natildeo ter conseguido se aproximar deste uacuteltimo O
campesino que uma vez sonhara em ver de perto o imperador teve que se
contentar com o vislumbre de uma figura distante ndash distacircncia poreacutem que natildeo o
impediu de observar a beleza do princeps comparada agraves feiccedilotildees de Apolo e de
Marte A assimilaccedilatildeo a Apolo como vimos natildeo eacute nova dado o entusiasmo de
Nero pelas artes no entanto a associaccedilatildeo a Marte deus da guerra eacute nova Haacute uma
alusatildeo aqui segundo Fear e Verdiegravere agraves honras recebidas por Nero apoacutes a retirada
dos partos da Armecircnia em 55 Nessa ocasiatildeo o Senado emitiu votos de suacuteplicas
ao princeps concedeu-lhe o manto triunfal ofereceu-lhe ovaccedilotildees puacuteblicas e
mandou erigir uma estaacutetua sua no templo de Marte Vltor431
Vale destacar que os
dois deuses eram apreciados por Augusto com especial atenccedilatildeo A escolha das
divindades por Calpuacuternio entatildeo natildeo apenas sublinha as virtudes pessoais de
Nero como tambeacutem conecta o jovem governante ao melhor dos imperadores A
opccedilatildeo por Marte na visatildeo de Verdiegravere provavelmente agradou muito a Nero
tanto por causa do papel tutelar do deus quanto pela forccedila militar que evocava foi
uma escolha feliz432
Em siacutentese a leitura das Eclogae mostra que Calpuacuternio Siacuteculo apesar de
ser um poeta bucoacutelico era muito interessado nos aspectos poliacuteticos dos seus dias
429
Marte era o deus romano da guerra Era tambeacutem o guardiatildeo da agricultura e o deus da
juventude haja vista que a guerra constituiacutea uma atividade destinada aos jovens (GRIMAL 2005
p 291-292) 430
[Corydon] ldquoo utinam nobis non rustica uestis inesset uidissem propius mea numina sed mihi
sordes pullaque paupertas et adunco fibula morsu obfuerunt utcumque tamen conspeximus
ipsum longius ac nisi me uisus decepit in uno et Martis uultus et Apollinis esse putauirdquo (Cal
Ecl 779-85) Traduccedilatildeo de Braren (1996 p 101) 431
Para mais informaccedilotildees acerca do templo de Marte Vltor cf COARELLI 2007 p 111-113 432
FEAR 1994 p 276 VERDIEgraveRE 1992 p 37-38
123
escrevendo sobre eles em trecircs dos seus sete poemas433
Tais composiccedilotildees
anunciaram atraveacutes do miacutetico Fauno a chegada da nova Idade de Ouro ao
Impeacuterio acompanhada por paz justiccedila e ordem Divulgaram tambeacutem que um deus
melior regeria o populus romanus em consonacircncia com os tempos do rei Numa
Pompiacutelio e do princeps Augusto E noticiaram ainda que o luxo e a prosperidade
seriam as marcas principais da nova era as quais aumentariam o esplendor
arquitetocircnico e cultural da capital Os versos do poeta desse modo concebem a
ascensatildeo de Nero como um momento altamente promissor refletindo os
acontecimentos do passado enquanto sonham com o futuro Em outras palavras
as Eclogae comeccedilam e terminam propagando os benefiacutecios da nova lideranccedila
poliacutetica a chegada do Nero prodigioso e do Nero construtor Os elogios satildeo
irrestritos e copiosos o panegiacuterico eacute expliacutecito o laus Neronis eacute sincero
A anaacutelise das Eclogae revela ademais o modo imitativo como Calpuacuternio
Siacuteculo utilizou a dimensatildeo retoacuterica da inuentio para compor sua estruturaccedilatildeo
discursiva Conforme mencionamos as fontes analisadas nesta tese pertencem ao
gecircnero epidiacutetico no qual o orador usa o passado para refletir sobre o presente
Rezende e Sullivan explicam que para desenvolver esse processo o orador exalta
e intensifica valores culturais a fim de por exemplo preservar a estabilidade
poliacutetica Tal preservaccedilatildeo estava nos tempos antigos vinculada tambeacutem agrave forma
como o orador representava determinado indiviacuteduo (no caso o imperador) que
seria celebrado por suas virtudes ou censurado por seus viacutecios Resumindo os
oradores epidiacuteticos caracterizavam personalidades a partir de qualidades morais
Caso as qualidades fossem admiraacuteveis o indiviacuteduo seria fonte de inspiraccedilatildeo e
motivo de emulaccedilatildeo pois seu governo traria estabilidade434
Eacute exatamente isso
que Calpuacuternio faz nas Eclogae Ele resgata valores culturais do passado e celebra
os feitos do princeps-modelo (Augusto) de quem o imperador Nero eacute mais do que
imitaccedilatildeo ele o supera e se torna o proacuteprio soberano a ser imitado Secircneca segue a
mesma linha como vimos O seu Nero da Apocolocyntosis tambeacutem possuiacutea as
qualidades de Augusto mas as superava como fica ainda mais claro com o seu
Nero do De Clementia
Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca assim fazem uso de uma mesma toacutepica
apresentam o novo governante que sucede um periacuteodo de trevas e desorganizaccedilatildeo
433
SANTOS 2003 p 94 434
REZENDE 2010 p 113-114 SULLIVAN 1989 p 5-21
124
isto eacute um favor dos deuses que instaura uma nova ordem retomada dos tempos
antigos uma nova era de justiccedila e prosperidade Contudo natildeo devemos
simplificar a utilizaccedilatildeo dessa toacutepica como mera repeticcedilatildeo e muito menos como
falso elogio A proacutepria estrutura da toacutepica gera um entrelaccedilamento de
temporalidades e uma especificidade da toacutepica aplicada a Nero passado elevado
ruptura com guerras civis ordem retomada com Augusto e instauraccedilatildeo de um
grande Impeacuterio pela forccedila militar ruptura com maus imperadores e instauraccedilatildeo
de um Impeacuterio ainda maior pela paz e pela arte Em outros termos o uso da toacutepica
por Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca deixa claro que ela eacute por definiccedilatildeo lugar-comum
mas natildeo eacute uma repeticcedilatildeo vazia ela produz elementos proacuteprios que entram em
disputa para estabelecer a especificidade de Nero e a sua inserccedilatildeo em uma
tradiccedilatildeo comum que ganha novo sentido com sua presenccedila ndash no caso desses
autores uma presenccedila fortemente positiva
Um elemento especiacutefico de tal construccedilatildeo surge de modo destacado em
Calpuacuternio Siacuteculo a arte como parte de um projeto poliacutetico de afirmaccedilatildeo da
pacificaccedilatildeo e da unificaccedilatildeo do Impeacuterio Esse dado valorizado pela Historiografia
recente como vimos parte de uma leitura das fontes do seacuteculo II mas jaacute havia
sido colocado em disputa desde o comeccedilo do Principado de Nero como atestam
as Eclogae ndash sobretudo a seacutetima Se em um poeta da eacutepoca neroniana esse traccedilo
eacute visto como algo positivo e libertador em autores posteriores como Suetocircnio e
Taacutecito seraacute visto como algo desmedido e como fonte de opressatildeo As construccedilotildees
do princeps em Calpuacuternio Siacuteculo satildeo a grandeza de Roma e em Suetocircnio e
Taacutecito satildeo mostras de exagero e ruiacutena Todavia nosso objetivo natildeo eacute determinar
que fonte seguir e qual eacute a verdade oculta sobre Nero e sim perceber como a
constituiccedilatildeo de toacutepicas eacute apropriada pelos autores antigos que inserem nelas
modificaccedilotildees mas sem romper com o passado Essa allelopoiesis faz com que
cada autor compreenda seu proacuteprio tempo a partir do entendimento que constroacutei
do(s) passado(s) e este(s) por sua vez reorganiza(m) o entendimento do seu
proacuteprio tempo Presente e passado(s) se constroem mutuamente e de forma
indissociaacutevel Nesse sentido Nero daacute um novo sentido ao passado romano
especialmente a Augusto e gera um novo entendimento de Nero
125
Lucano Pharsalia
A partir daqui comeccedilaremos o exame da uacuteltima fonte contemporacircnea ao
princeps a Pharsalia composta por Marco Aneu Lucano Os poucos fatos
conhecidos da vida desse poeta derivam de duas biografias antigas uma de
autoria suetoniana denominada De Viris Illustribus e outra atribuiacuteda a um
gramaacutetico chamado Vacca conhecida como Expositor Lucani Aleacutem de tais
testemunhos existem tambeacutem informaccedilotildees disponiacuteveis nas obras de quatro
autores latinos Estaacutecio Marcial Taacutecito e Diatildeo Caacutessio
Com base nas fontes sabemos que Lucano era natural da cidade de
Coacuterdoba proviacutencia romana da Beacutetica localizada no sul da atual Espanha435
Nasceu no dia trecircs de novembro de 39 em uma das famiacutelias mais ilustres e ricas
da regiatildeo seu pai Marco Aneu Mela um rico equestre era filho do renomado
orador Secircneca o Velho e irmatildeo do filoacutesofo Secircneca o Jovem ndash jaacute discutido neste
capiacutetulo ndash que como destacamos anteriormente tambeacutem era nascido em
Coacuterdoba Beacutetica436
Quando Lucano era crianccedila seus pais decidiram se mudar
para Roma o que lhe possibilitou estudar latim grego retoacuterica e filosofia estoica
sendo as duas uacuteltimas ensinadas por Aneu Cornuto escravo liberto do seu tio
Secircneca437
Os relatos antigos comentam que ele rapidamente revelou enorme
destreza mostrando-se superior a todos seus colegas e instrutores438
Ao
completar 19 anos por volta do ano 58 viajou para Atenas no intuito de finalizar
sua formaccedilatildeo e laacute permaneceu pouco tempo pois Nero receacutem-entronado
solicitou o seu retorno439
De volta a Roma recebeu trecircs grandes favores
imperiais foi designado questor440
foi nomeado membro do Coleacutegio dos
Aacuteugures441
e foi escolhido como integrante do grupo literaacuterio do princeps442
Esse
grupo foi formado pelo soberano com os propoacutesitos de conhecer os talentos
435
Mart Ep 1619 Stat Silv 2729 Para mais dados biograacuteficos de Lucano cf AHL 1976 p
35-46 FANTHAM 2011 p 3-20 436
Vac 3 Vac 2 Vac 1 437
Vac 4-5 438
Stat Silv 2755-61 439
DUFF 1962 p x VIEIRA 2011 p 15 440
Vac 9-10 441
AHL 1976 p 37 Os aacuteugures eram os sacerdotes responsaacuteveis pela interpretaccedilatildeo do
comportamento dos animais na busca de pressaacutegios a exemplo do voo dos paacutessaros (ABBOTT
1901 p 159) 442
VIEIRA 2011 p 15
126
poeacuteticos da eacutepoca e de divulgar os seus proacuteprios443
Natildeo demorou para Lucano
demonstrar a sua genialidade e atrair a atenccedilatildeo do imperador o qual logo se
interessou em estabelecer um viacutenculo amigaacutevel com o poeta Vale destacar que os
dois tinham uma diferenccedila de idade de apenas dois anos (Nero era o mais velho)
e ambos nutriam uma paixatildeo aacutevida por literatura444
A amizade entre eles assegurou conquistas importantes a Lucano como o
precircmio de melhor poesia nos jogos Neronia do ano 60 devido agrave declamaccedilatildeo de
versos elogiosos ao soberano (Laudes Neronis)445 e a redaccedilatildeo de inuacutemeros
trabalhos entre 60 e 63 todos infelizmente perdidos Iliacon (Poema sobre a
Guerra de Troia) Catachtonion (Poema sobre a Descida aos Infernos) De
Incendio Vrbis (Sobre o Incecircndio da Cidade) Medea (Medeia) Saturnalia Silvae
(Silvas) epigramas libretos para pantomimas e os dez cantos da Pharsalia446
Todas as obras estavam em total sintonia com as predileccedilotildees culturais de Nero
que era apaixonado por mateacuteria de leve entretenimento447
As relaccedilotildees entre Lucano e o soberano mantiveram-se cordiais ateacute o ano de
63 Contudo em algum momento no final de 63 ou no iniacutecio de 64 a amizade
entre eles comeccedilou a deteriorar As razotildees para tanto natildeo satildeo esclarecidas pelas
fontes que nos fornecem somente dados escassos e confusos Ahl defende a
hipoacutetese de que a publicaccedilatildeo do trabalho De Incendio Vrbis no qual Lucano
supostamente descreveu o incecircndio de Roma e atribuiu a culpa a Nero foi o que
motivou o desentendimento448
Seja como for Nero impocircs ao poeta a proibiccedilatildeo de
recitar versos em puacuteblico fato que marcou o fim da sua carreira449
Por causa
disso ele se juntou agrave conspiraccedilatildeo pisoniana na tentativa de destronar o
imperador A trama foi descoberta e vaacuterios dos envolvidos cometeram suiciacutedio
como forma de natildeo sofrerem penas mais duras que recaiacutessem inclusive sobre
seus familiares e amigos Assim em 15 de abril de 65 Lucano cometeu suiciacutedio
natildeo tendo completado ainda 26 anos450
443
Tac Ann 1416 444
JOYCE 1993 p x 445
Vac 13 446
PLESSIS 1909 p 550-552 447
VIEIRA 2018 p 5 448
No apecircndice de Lucan An Introduction Ahl (1976 p 333-354) explica melhor essa hipoacutetese e
apresenta o suposto conteuacutedo do livro 449
Tac Ann 1549 Vac 14 450
Tac Ann 1570
127
Foi no meio desse contexto turbulento que o poeta publicou os trecircs
primeiros cantos da Pharsalia451
um poema de dez cantos com 7386 versos452
Nele relata as vicissitudes da guerra civil ocorrida entre Juacutelio Ceacutesar e Pompeu
durante 49 e 48 aC descrevendo desde a travessia de Ceacutesar do Rubicatildeo ateacute a
fuga e o assassinato de Pompeu no Egito O ponto alto da histoacuteria eacute a batalha de
Farsaacutelia e a obra possui as caracteriacutesticas tradicionais de um eacutepico como o uso de
hexacircmetros do tom elevado e da narrativa longa e contiacutenua453
Eacute repleta tambeacutem
de belas descriccedilotildees figuras retoacutericas prodiacutegios sonhos e preciosismos O
intrigante eacute que esses elementos claacutessicos satildeo empregados por Lucano com base
em uma loacutegica subversiva Os estudiosos comentam que ele desafia os aspectos da
eacutepica claacutessica ao fugir da textura mitoloacutegica e acrescentar tensotildees poliacuteticas
morais e filosoacuteficas agrave sua narrativa454
adiccedilatildeo que conforme Hardie insere a
Pharsalia em uma complexa relaccedilatildeo entre a fantasia poeacutetica e a realidade
histoacuterica Por exemplo as accedilotildees descritas na obra satildeo todas movidas por agentes
humanos e natildeo por entidades divinas e os deuses aparecem apenas para
contemporizar as ambiccedilotildees humanas455
ndash ou seja natildeo haacute lugar de destaque na
Pharsalia para os deuses romanos como os responsaacuteveis pelo desenrolar das
accedilotildees eles estatildeo ausentes e imoacuteveis ignorando as calamidades da guerra civil
Enfim o importante eacute entender que o objetivo do poeta ao elaborar o eacutepico foi
dar centralidade agraves accedilotildees humanas e aos seus resultados grandiosos tanto positiva
quanto negativamente sem que isso estivesse conectado agrave agecircncia divina Lucano
entra constantemente no seu texto para nos lembrar de quem o estaacute criando
estrateacutegia que aponta a sua posiccedilatildeo subjetiva456
Ao lermos a Pharsalia notamos de imediato a contestaccedilatildeo por parte do
poeta de certos aspectos positivos do passado recente de Roma e dos
protagonistas nos eventos decisivos desse tempo Nos versos ele apresenta a
Roma humana a cidade lotada de cidadatildeos que sofrem com as consequecircncias da
guerra civil O ambiente eacute o de uma luta que derrubou a res publica e provocou o
451
Originalmente o tiacutetulo dado ao poema por Lucano foi Bellum Ciuile (Guerra Civil) O nome
Pharsalia aparece apenas no nono canto em que o poeta utiliza as palavras Pharsalia nostra
(ldquonossa Farsaacuteliardquo) Todavia a partir do seacuteculo XVII essa expressatildeo foi adotada pelos tradutores
como o tiacutetulo da obra uso que persiste ateacute hoje e que adotaremos (VIEIRA 2011 p 20-21) 452
Os outros sete cantos foram divulgados apoacutes a morte do poeta (AHL 1976 p 41-42) 453
CARDOSO 2011 p 6-22 Sobre o gecircnero eacutepico em Lucano cf DINTER 2013 p 9-49 454
BRAMBLE 1982 p 536-537 WILLIAMS 2017 p 97 455
HARDIE 2013 p 225 456
HENDERSON 1987 p 149
128
fim da liberdade colocando os romanos sob o controle de tiranos os Juacutelio-
Claacuteudios Segundo Bartsch a Pharsalia nada mais eacute do que um ataque ao
cesarismo e agrave ficccedilatildeo de que o governo criado por Augusto restauraria a liberdade
Eacute um poema que retrata o colapso do mundo em que a libertas tivera uma chance
proclamando a desesperanccedila no futuro457
Eacute precisamente dentro de tal conjuntura
ampla com caraacuteter predominantemente negativo ou ateacute mesmo caoacutetico que
aparecem as menccedilotildees a Nero O princeps eacute citado somente no proecircmio da obra
em cinco momentos e os trechos satildeo interpretados pelos estudiosos de modos
conflitantes Diante dessa situaccedilatildeo adotaremos duas atitudes a priori
discutiremos as referecircncias considerando-as como ilustraccedilotildees da ascensatildeo de
Nero e como exemplares da categoria Nero prodigioso a posteriori
explanaremos as interpretaccedilotildees existentes justificando o nosso posicionamento ndash
como disse Bartsch a Pharsalia eacute um poema ldquodifiacutecil de lerrdquo458
Na primeira referecircncia Lucano divulga a ideia de que os sofrimentos da
guerra civil prepararam a vinda de Nero Vejamos
Pois se agrave vinda de Nero natildeo diversa o Fado459
via encontrou se caro se compram dos deuses reinos eternos e servir ao seu Tonante natildeo pocircde o ceacuteu sem guerrear antes Titatildes jaacute nada deuses lamentamos com tal precircmio infacircmia e crime agradam460
Os danos e os campos manchados de sangue dos conflitos satildeo tratados de
forma valiosa porque prepararam o caminho para o governo de Nero461
Em
concordacircncia com Griffin o que Lucano expressou no excerto foi basicamente a
visatildeo comum da aristocracia romana de que a Repuacuteblica e as libertas eram
preferiacuteveis mas que o Principado era uma necessidade praacutetica para a estabilidade
e a paz O poeta parece sugerir que embora a ruiacutena da Repuacuteblica fosse algo
457
BARTSCH 1997 p 5-6 458
BARTSCH 1997 p 4 459
Fados satildeo as divindades do destino como por exemplo as Parcas (GRIMAL 2005 p 164) 460
quod si non aliam uenturo fata Neroni inuenere uiam magnoque aeterna parantur regna deis
caelumque suo seruire Tonanti non nisi saeuorum potuit post bella gigantum iam nihil o
superi querimur scelera ipsa nefasque hac mercede placent (Luc 132-37) Traduccedilatildeo de Vieira
(2011 p 79) 461
HOLMES 1999 p 77
129
negativo valeu a pena porque nos deu Nero462
Infelizmente o destino natildeo
conseguiu encontrar outro caminho para a chegada do princeps senatildeo o penoso
Mas na visatildeo do poeta isso natildeo representava um problema pois a recompensa foi
grande Nero traria paz ao Impeacuterio Essa noccedilatildeo compensatoacuteria continua nos versos
seguintes nos quais Lucano canta
Que Farsaacutelia atulhe
os vis campos de sangue e sacie almas Puacutenicas que funesta na extrema Munda a luta ocorra a isso a fome de Peruacutesia463 e o preacutelio em Muacutetina464 se somem Ceacutesar e os navios que a dura Lecircucade465 feriu e as servis guerras no Etna ardente466 muito Roma afinal deve agraves lutas civis feitas prrsquoa ti467
Notemos que a fome sofrida pelos aliados de Marco Antocircnio em Peruacutesia o
assassinato de Bruto em Moacutedena os navios abatidos nas rochas de Lecircucade e os
embates proacuteximos ao Etna justificam-se pela ascensatildeo de Nero Roma deve agraves
guerras civis a daacutediva do novo imperador Foi preciso haver periacuteodos de
dificuldades e de perdiccedilatildeo para que o princeps salvador instaurasse uma nova
era468
ndash aquela que de fato trouxe a liberdade e o fim das contendas Para Rudich
esse elogio foi pensado por Lucano como um estratagema poliacutetico cujo intento
era afastar Nero do resto dos odiados Ceacutesares mostrando o quatildeo melhor ele
era469
Sobre o trecho ainda eacute importante comentar que as alusotildees agraves guerras civis
natildeo apenas se limitam agraves batalhas entre Ceacutesar e Pompeu posicionadas no centro
do poema mas tambeacutem envolvem conflitos posteriores que datildeo um tom negativo
aos que se proclamavam tiranicidas e aos que se afirmavam herdeiros de Ceacutesar
462
GRIFFIN 2001 p 159 463
Peruacutesia cidade italiana onde no ano 40 aC Otaviano sitiou Luacutecio Antocircnio e Fuacutelvia aliados
de Marco Antocircnio ateacute fazecirc-los se entregarem por fome (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 17) 464
Moacutedena (ou Muacutetina) cidade ao norte da Peniacutensula itaacutelica onde em 43 aC Marco Antocircnio
matou Bruto o assassino de Juacutelio Ceacutesar (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 15) 465
Lecircucade grupo de ilhas rochosas situado no Mar Jocircnico onde aconteceu a batalha naval de
Aacutecio na qual Otaviano venceu Marco Antocircnio (VIEIRA 2018 p 27) 466
Guerras sucedidas no mar da Siciacutelia em 36 aC entre Otaviano e Pompeu onde o uacuteltimo foi
derrotado As batalhas transcorreram sob as chamas do vulcatildeo Etna (RICHARDSON 2012 p 57) 467
Diros Pharsalia campos inpleat et Poeni saturentur sanguine manes ultima funesta
concurrant proelia Munda his Caesar Perusina fames Mutinaeque labores accedant fatis et
quas premit aspera classes Leucas et ardenti seruilia bella sub Aetna multum Roma tamen
debet ciuilibus armis quod tibi res acta est (Luc 138-45) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 79-80) 468
CASALI 2011 p 86 469
RUDICH 1997 p 115
130
No caso de Augusto haacute uma criacutetica impliacutecita agraves suas accedilotildees sobretudo no conflito
contra Marco Antocircnio pois a vitoacuteria em Aacutecio trouxe o fim da liberdade
Nos versos subsequentes o poeta anuncia a futura apoteose do soberano
Ao perfazeres tua estada
velho aos astros iraacutes e o paccedilo eteacutereo eleito te acolheraacute com ceacuteu festivo quer te agrade tomar o cetro ou conduzir de Febo a biga flamiacutegera e luzir com chama errante a terra sem medo do mudado sol Ceder-te-aacute o paccedilo todo nume e teraacutes por direito ser qualquer deus e pocircr teu reino onde quiseres470
A passagem expressa claramente o desejo lucaniano de que Nero buscasse
seu lugar no ceacuteu o mais tardar possiacutevel apoacutes eliminar as pragas beacutelicas da terra
Ao adentrar os reinos celestes elevar-se-ia do status humano para o divino sendo
recebido com imensa alegria Laacute os deuses o deixariam escolher qual papel
desempenharia as prerrogativas de Juacutepiter regendo o panteatildeo e o clima com o
seu cetro ou as de Febo conduzindo a sua biga e iluminando a terra471
Todas as
possibilidades estariam agrave disposiccedilatildeo do princeps ele poderia escolher o que
desejasse ateacute mesmo o local onde instalaria a sede do seu poder divino
Uma anaacutelise mais detalhada do trecho nos permite observar o
aprofundamento do elogio de Lucano Na mitologia romana Juacutepiter tambeacutem era
conhecido como a divindade que venceu os monstros Gigantes encerrando o ciclo
das forccedilas destrutivas e trazendo o reinado da paz eterna472
Febo (ou Apolo) por
sua vez era conhecido como o deus da justiccedila da lei e da ordem Esses
esclarecimentos deslindam o pensamento do poeta Juacutepiter e Febo foram
erradicadores de iacutempetos desordenadores em seu tempo limpando o mundo das
oposiccedilotildees Da mesma forma o princeps extirparia os conflitos civis instituindo a
paz O elogio a Nero na visatildeo de Thompson vai ainda aleacutem Por traacutes dele haacute
uma associaccedilatildeo com Augusto este soberano eliminou os monstruosos elementos
conflituosos do Impeacuterio e instaurou a pax Augusta que Nero agora presidia Nero
470
te cum statione peracta astra petes serus praelati regia caeli excipiet gaudente polo seu
sceptra tenere seu te flammigeros Phoebi conscendere currus telluremque nihil mutato sole
timentem igne uago lustrare iuuet tibi numine ab omni cedetur iurisque tui natura relinquet
quis deus esse uelis ubi regnum ponere mundi (Luc 145-52) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 471
NOCK 1926 p 18 472
Filhos de Gaia (a Terra) seres monstruosos na aparecircncia na forccedila e na estatura (GRIMAL
2005 p 184-185)
131
assim eacute uma espeacutecie de Augusto por excelecircncia mas um Augusto livre da maacute
fama de Augusto advinda da sua participaccedilatildeo na discoacuterdia civil473
Com o soberano jaacute acolhido no ceacuteu a humanidade enfim poderia viver
tranquila ldquoEntatildeo depondo as armas que os homens se cuidem e todos se amem
mutuamente e a paz geral trave de Jano belicoso as feacuterreas portasrdquo474
O Templo de Jano era um pequeno edifiacutecio no canto nordeste do Foacuterum
Romano cujo fechamento simbolizava paz eou cessaccedilatildeo de conflitos475
A ideia
de mencionaacute-lo eacute retirada pelo poeta da Eneida na qual Virgiacutelio afirma que
Augusto depocircs as guerras ao vencer em Aacutecio cerrando as portas do Templo
Entatildeo deposta a guerra
Se amolgue a feacuterrea idade a encanecida Feacute mais Vesta os irmatildeos Quirino e Remo Ditem leis Jano feche as diraacutes portas
Com trancas e aldrabotildees []476
De acordo com a Res Gestae Augusto fechou o Templo em trecircs ocasiotildees
trazendo para Roma a nova Idade de Ouro477
Jaacute no governo de Nero as portas
foram cerradas em duas oportunidades para comemorar o fim da guerra Parta e
para celebrar a paz da Armecircnia conquistada em 66 apoacutes a morte de Lucano478
Mesmo natildeo tendo presenciado os eventos Lucano evoca o simbolismo do
fechamento dos portotildees para sugerir que o princeps retomaria o periacuteodo aacuteureo do
passado e afastaria seu governo das contendas Trata-se portanto de uma
tentativa de representar Nero como um ldquosegundo Augustordquo o melhor exemplo da
famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia e tambeacutem uma tentativa de mostraacute-lo como superior a ele
pois a paz que Nero traria natildeo seria fruto de guerras sangrentas479
Eacute essencial
demarcar contudo que esse elogio a nosso ver natildeo deve ser associado apenas ao
fato de Nero evitar as guerras afinal houve sim guerra durante o Principado de
473
THOMPSON 1964 p 148-151 474
tum genus humanum positis sibi consulat armis inque uicem gens omnis amet pax missa per
orbem ferrea belligeri conpescat limina Iani (Luc 160-62) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 475
COARELLI 2007 p 51 476
Aspera tum positis mitescent saecula bellis cana Fides et Vesta Remo cum fratre Quirinus
iura dabunt dirae ferro et compagibus artis claudentur Belli portae [] (Verg A 1291-294)
Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 34) 477
Aug RG 13 478
A fim de celebrar essas conquistas Nero mandou cunhar diversas moedas Para uma breve nota
sobre as cunhagens cf BARENGHI 19992016 479
MARTINDALE 1984 p 72
132
Nero cuja paz foi celebrada depois da morte de Lucano A guerra que o poeta
criacutetica ndash e que deve ser evitada ndash eacute aquela desmedida movida internamente e que
tem por motivaccedilatildeo a gloacuteria pessoal Esta na concepccedilatildeo de Lucano natildeo era a
guerra que Nero buscava
Ao concluir o proecircmio da Pharsalia Lucano elogia Nero uma uacuteltima vez
Mas jaacute me eacutes nume E se te encarno nem quisera
Eu vate que o inquieto deus sondasse arcanos Cirreus480 nem mesmo deslocar Baco481 de Nisa482 Prsquora dar arroubo a carmes Romanos tu basta483
O princeps eacute a inspiraccedilatildeo de que o poeta necessita para escrever o restante
da Pharsalia Apolo e Baco deuses conhecidos por seus poderes criativos satildeo
dispensados Nero eacute o ldquomusordquo do poema aquele que concede a Lucano as forccedilas
para compor cantos romanos484
Esse elogio agrave primeira vista pode parecer
simplista mas se olharmos com atenccedilatildeo veremos uma subversatildeo do gecircnero eacutepico
O poeta adota como inspiraccedilatildeo uma figura humana e natildeo uma figura divina eou
mitoloacutegica ndash isto eacute ele troca o divino pelo humano dando a Nero as atribuiccedilotildees
divinas Para Ahl essa deificaccedilatildeo do imperador ocorrida dentro de uma obra na
qual os deuses natildeo exercem poder mostra que Lucano queria oferecer uma honra
simboacutelica muito elevada ao soberano485
Sobre o trecho cabe mencionar ainda
que nos poemas eacutepicos a comeccedilar pelos homeacutericos as divindades atuam ao lado
dos homens buscando favorececirc-los na guerra Em Lucano poreacutem os deuses natildeo
atuam na guerra sangrenta ndash que por sua vez eacute condenada pelo poeta Eacute Nero
quem tem sua apoteose antecipada e que vai agir em favor dos homens dando fim
agrave guerra civil No final das contas Ceacutesar e Augusto ateacute podem ter recebido gloacuterias
por terem vencido as guerras civis mas Nero tem uma gloacuteria ainda maior proacutepria
de um deus que eacute a de dar fim agraves contendas
480
Cirreus se refere a Cirra localidade proacutexima ao Oraacuteculo de Delfos dedicado a Apolo (VIEIRA
2011 p 83) 481
Tambeacutem denominado Dioniso era identificado como o deus do vinho do teatro e do ecircxtase
miacutestico (GRIMAL 2005 p 121-122) 482
Cidade localizada no extremo oeste da Traacutecia onde Baco teria nascido (JOYCE 1993 p 314) 483
sed mihi iam numen nec si te pectore uates accipio Cirrhaea uelim secreta mouentem
sollicitare deum Bacchumque auertere Nysa tu satis ad uires Romana in carmina dandas (Luc
163-66) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81-82) 484
HOLMES 1999 p 75 485
AHL 1976 p 48
133
Todos esses elogios a Nero contidos no proecircmio da Pharsalia satildeo objetos
de um feacutervido e longo debate no qual os classicistas tentam desvendar as reais
intenccedilotildees do poeta ao escrevecirc-los De modo geral as opiniotildees podem ser
organizadas em dois grupos De um lado estatildeo aqueles que leem o panegiacuterico
como irocircnico ou artificioso sob o argumento de que ele eacute muito exagerado para
ser veriacutedico Como ilustraccedilatildeo temos os trabalhos de Marti Griset Conte Ahl
Croisille Morford e Vieira486
De outro lado estatildeo aqueles que confiam na
sinceridade do proacutelogo sustentando uma composiccedilatildeo bipartite da Pharsalia
sendo os trecircs primeiros cantos elaborados antes da ruptura entre Nero e Lucano e
os cantos restantes redigidos elaborados apoacutes a ruptura ndash o que explicaria a
existecircncia nestes uacuteltimos de criacuteticas ao cesarismo Aiacute incluem-se as produccedilotildees
de Levi Brisset Dilke Grimal Thompson Jenkinson Williams Dewar e
Cardoso487
Semelhantemente a esses autores tambeacutem acreditamos que o proecircmio
foi pensado e divulgado por Lucano como um elogio sincero Por mais
extravagante que ele pareccedila devemos nos lembrar de que ao concebecirc-lo o poeta
utilizou a linguagem convencional da eacutepoca empregando noccedilotildees bastante
difundidas488
Em outras palavras o elogio com os seus elementos literaacuterios
estava integrado aos modos de expressatildeo padrotildees do Principado489
Lucano entatildeo
conhecia a ldquomoda literaacuteriardquo do periacuteodo neroniano e precisamente por conhececirc-la
podia se recusar a usaacute-la Ele podia por exemplo ter escrito uma elegia amorosa
ao inveacutes de um eacutepico490
Como bem notou Masters ldquoLucano tinha uma escolha
ele natildeo precisava escrever este poemardquo491
Isso nos leva a crer que o poeta de
alguma forma considerava Nero um governante pacificador e divino Enfim natildeo
haacute razatildeo convincente para supor que o proecircmio da Pharsalia seja desfavoraacutevel ao
princeps ldquodenunciar o imperador no livro de abertura de um eacutepico seria
desaconselhaacutevel possivelmente ateacute fatal para o poeta e o poemardquo492
486
MARTI 1945 p 352-376 GRISET 1955 p 56-61 p 134-138 p 203-238 CONTE 1966 p
42-53 AHL 1976 p 41 CROISILLE 1982 p 75-82 MORFORD 1985 p 2003-2031
VIEIRA 2011 p 36 487
LEVI 1949b p 71-78 BRISSET 1964 DILKE 1972 p 62-82 GRIMAL 1960 p 296-305
THOMPSON 1964 p 147-153 JENKINSON 1974 p 8-9 WILLIAMS 1978 p 163-165
DEWAR 1994 p 199-211 CARDOSO 2011 p 20 488
NOCK 1926 p 18 489
DEWAR 1994 p 209 490
RUDICH 1997 p 117 491
MASTERS 1992 p 7 492
AHL 1976 p 54
134
Portanto entendemos que Lucano construiu uma obra na qual expressa
uma visatildeo otimista sobre Nero e seu governo ndash perspectiva erigida por meio do
uso ldquorevolucionaacuteriordquo da eacutepica reconstituiacuteda agrave luz da sua proacutepria inuentio493
De
acordo com Leite o poeta abandonou a posiccedilatildeo padratildeo do narrador eacutepico
desinteressado expressando claramente suas preferecircncias opiniotildees e sofrimentos
Sua voz eacute apaixonada e interessada em oposiccedilatildeo agrave voz descolorida de Virgiacutelio
Lucano tambeacutem natildeo seguiu a textura mitoloacutegica usual afirma Leite Como jaacute
dissemos ele natildeo elegeu uma Musa como inspiraccedilatildeo para seus versos e sim um
homem o imperador ndash destinado agrave apoteose A Farsaacutelia eacute o canto de um homem
inspirado por outro homem494
Por uacuteltimo ao substituir as deidades pelo princeps
o poeta tornou a Pharsalia mais proacutexima da historia do que da fabula no sentido
de que coube aos humanos o protagonismo nos eventos Sua obra assim
aproximou-se do carmen togatum de cunho factual que resgata acontecimentos
do passado para justificar o presente Nesse sentido o Nero prodigioso de Lucano
tornou-se bem diferente dos Neros prodigiosos de Secircneca e Calpuacuternio Siacuteculo O
soberano representado pelo filoacutesofo e pelo poeta bucoacutelico era prodigioso no
presente porque de alguma forma era esperado algo dele no futuro ndash ou seja era
esperado que ele se comportasse de igual modo a Augusto ou que o superasse Jaacute
em Lucano Nero eacute representado como prodigioso no presente porque ele eacute o
resultado do passado Em outras palavras foram as nefastas guerras civis que
propiciaram a ascensatildeo de Nero Natildeo haacute preocupaccedilatildeo com o futuro Nero eacute uma
consequecircncia do passado e natildeo uma expectativa
Destacamos tambeacutem que para Lucano a paz e o natildeo envolvimento do
princeps com as guerras que marcaram duramente a histoacuteria romana colocam
Nero em uma posiccedilatildeo de destaque muito positiva a qual lhe asseguraria gloacuterias jaacute
alcanccediladas por seus antecessores Ceacutesar e Augusto ambos diui Todavia na visatildeo
do poeta alcanccedilar essa gloacuteria pela paz eacute algo uacutenico e isso coloca Nero em uma
posiccedilatildeo ainda mais elevada Assim o tema do afastamento de Nero dos conflitos
entra para o repertoacuterio de construccedilatildeo dos retratos do princeps gerando ao mesmo
tempo uma imagem positiva de Nero e uma negativa de Ceacutesar e Augusto
Por fim depois de analisarmos as fontes textuais deste capiacutetulo quatro
consideraccedilotildees se impotildeem Em primeiro lugar as composiccedilotildees de Secircneca
493
VIEIRA 2011 p 52 494
LEITE 2019 p 65
135
Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano possuem cinco temas proeminentes e recorrentes 1) a
aboliccedilatildeo de Nero dos abusos ocorridos no governo de Claacuteudio 2) a associaccedilatildeo do
princeps com Augusto 3) a associaccedilatildeo do imperador com Apolo e com outras
divindades 4) a manutenccedilatildeo da paz e 5) o retorno da Idade de Ouro Trata-se de
temas que a nosso ver estatildeo diretamente relacionados com o conceito de
allelopoiesis Relembremo-lo
[A] estreita conexatildeo entre modificaccedilatildeo e construccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica essencial dos processos de transformaccedilatildeo que podem ocorrer tanto diacrocircnica quanto sincronicamente Tais processos portanto levam a algo ldquonovordquo em dois sentidos ou seja a novas configuraccedilotildees mutuamente dependentes tanto na
cultura de referecircncia quanto naquela de recepccedilatildeo Essa relaccedilatildeo de interdependecircncia de reciprocidade seraacute denotada [] pelo termo allelopoiesis um neologismo formado a partir das raiacutezes gregas allelon (ldquomuacutetuordquo ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriaccedilatildeordquo ldquogeraccedilatildeordquo)495
Juntando essa definiccedilatildeo de Bergemann com a releitura do conceito feita
por Faversani e Joly interpretamos que Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano ao
falarem do passado de alguma maneira falaram do seu proacuteprio tempo E ao
refletirem sobre seu proacuteprio tempo projetaram problemas e perguntas que
emolduraram e redefiniram o que teria sido o passado ndash no caso os Principados de
Augusto e de Claacuteudio Por allelopoiesis entatildeo transformaram o passado ao
lanccedilarem novas questotildees sobre o tempo antecedente mas tambeacutem transformaram
o presente ao vecirc-lo com referecircncia nesse passado Allelopoiesis se revela assim
ldquo[] como uma alternativa para se pensar o passado como um legado e ao mesmo
tempo para se tomar esse passado como mateacuteria de uso pelo presente []rdquo que o
modificou496
Passado e presente se construiacuteram mutuamente Secircneca Calpuacuternio
Siacuteculo e Lucano ao representarem Nero alteraram a forma como o passado
poderia ser visto modificando simultaneamente a forma como viam seu
presente Por esse processo edificaram o retrato de um princeps que recompocircs
aspectos do passado ndash as lembranccedilas positivas e negativas dos governos
augustano e claudiano ndash e gerou elementos para a compreensatildeo do presente por
seus contemporacircneos ndash Nero seria o melhor pois tinha o bom caraacuteter de Augusto
495
BERGEMANN et al 2019 p 9 496
FAVERSANI JOLY no prelo 2021 Agradecemos aos professores pelo envio do artigo
Alexandre em Quinto Cuacutercio e o Principado Romano antes da publicaccedilatildeo
136
e abandonava o caraacuteter ruim de Claacuteudio Isso gerou um pequeno repertoacuterio a ser
transmitido ndash ou natildeo ndash daiacute em diante o do Nero prodigioso
Em segundo lugar os trabalhos dos trecircs autores ainda que tenham
enfoques diferentes centram-se majoritariamente em episoacutedios concernentes agrave
ascensatildeo do soberano representando-o como um jovem imperador com um
Principado deveras promissor o qual poderia vir a ser melhor do que o de
Augusto Secircneca por exemplo aponta no sentido de uma monarquia solar e
Lucano toma os tempos felizes iniciais como um sinal claro do governo de um
diuus Em terceiro a uacutenica obra que foge da temaacutetica da ascensatildeo satildeo as Eclogae
apresentando de forma positiva a figura do Nero construtor cujos
empreendimentos artiacutesticos ndash o anfiteatro e os espetaacuteculos com animais selvagens
ndash levariam Roma ao esplendor cultural Em quarto Secircneca e Lucano estiveram
em constante interaccedilatildeo com o princeps com suas ambiccedilotildees artiacutesticas e com sua
corte literaacuteria o que acreditamos ter fornecido inspiraccedilatildeo positiva para a produccedilatildeo
dos seus textos Sendo assim julgamos que na contemporaneidade do princeps
os elogios satildeo predominantes e evidentes As poucas criacuteticas existentes ndash se eacute que
existiram ndash satildeo frutos de interpretaccedilotildees posteriores feitas pelos classicistas atuais
e satildeo duacutebias e especulativas Logo entendemos o Nero criado por Secircneca
Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano como um soberano preponderantemente prodigioso
Natildeo existem aqui traccedilos de uma tradiccedilatildeo negativa e nem mesmo indiacutecios de que
Nero foi um mau imperador A literatura estaacute focada na comemoraccedilatildeo da vinda do
seu Principado Vejamos no proacuteximo capiacutetulo se tal visatildeo permaneceraacute
137
Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96)
Este capiacutetulo buscaraacute estudar a forma Nero transformado que se situaraacute no
contexto imediato apoacutes o fim do seu governo qual seja o da instauraccedilatildeo da
dinastia Flaviana no poder (69-96) Nosso objetivo eacute analisar como a imagem do
Nero prodigioso foi modificada ndash ou natildeo ndash com a consolidaccedilatildeo do novo cenaacuterio
poliacutetico surgido logo depois do seu suiciacutedio em 68 e apoacutes as guerras civis de 69
Nero permaneceu no comando do Impeacuterio Romano por longos 14 anos
(54-68) sendo o uacuteltimo soberano da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia A revolta liderada por
Vindex na Gaacutelia a perda de apoio dos exeacutercitos e dos pretorianos e a declaraccedilatildeo
do Senado que o transformou em inimigo puacuteblico fizeram-no se suicidar no dia 9
de junho quando somava 32 anos de idade497
A notiacutecia do seu falecimento de
acordo com Taacutecito despertou uma mistura de sentimentos entre a populaccedilatildeo os
senadores e os equestres regozijaram-se uma parcela da plebe os clientes e os
libertos daqueles que tinham sido condenados alegraram-se e as categorias
sociais mais baixas entristeceram-se498
Suetocircnio comenta que esta uacuteltima por
muito tempo enfeitou seu tuacutemulo com flores da primavera e do veratildeo499
Apoacutes a sua morte Roma teve um periacuteodo de guerra civil que se estendeu
por 18 meses de junho de 68 a dezembro de 69 Nesse iacutenterim tivemos a
ascensatildeo de quatro principes500
Houve Galba homem com uma carreira de
conquistas militares cujo governo de 7 meses estabeleceu uma poliacutetica austera
voltada agrave reorganizaccedilatildeo das financcedilas501
Otatildeo ex-governador da proviacutencia da
Lusitacircnia que por 3 meses natildeo deixou escapar nenhuma oportunidade de prestar
serviccedilos ou de ganhar popularidade dando por exemplo moedas de ouro a
homens da guarda pretoriana502
Viteacutelio ex-governador da proviacutencia da Germacircnia
inferior que ao longo de 5 meses demonstrou enorme crueldade assassinando
pessoas por quaisquer motivos503
e por fim Vespasiano comandante militar de
renome que conseguiu manter-se no trono e encerrar o periacuteodo de guerra civil
497
Dio 63293 498
Tac Hist 141 499
Suet Nero 571 500
Tac Hist 121 501
Suet Gal 7-8 15 502
Suet Otho 3-4 503
Suet Vit 14
138
dando iniacutecio a uma eacutepoca de estabilidade poliacutetica504
Sua ascensatildeo em dezembro
de 69 marcou o fim do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo e o comeccedilo da segunda
dinastia romana a Flaviana a qual geriu o Impeacuterio de 69 a 96 sob trecircs liacutederes
Vespasiano (69-79) e seus filhos Tito (79-81) e Domiciano (81-96)
Eacute essencial destacar que a turbulecircncia dos anos de 68 e 69 trouxe disputas
natildeo soacute pelo controle do Impeacuterio como tambeacutem pela manipulaccedilatildeo da memoacuteria de
Nero A imagem do falecido soberano foi apropriada pelos novos governantes de
modos diversos e contrastantes segundo os seus proacuteprios interesses poliacuteticos Por
exemplo Galba edificou sua imagem puacuteblica em contraposiccedilatildeo agrave imagem de
Nero no intuito de justificar a deposiccedilatildeo do predecessor e posicionar-se como
salvador Desse modo ordenou a cunhagem de moedas com a legenda Libertas
Restituta (Liberdade Restituiacuteda) insinuando que a tirania neroniana havia
terminado505
Em contrapartida Otatildeo e Viteacutelio exploraram positivamente a
memoacuteria de Nero pois acreditavam que ela os ajudaria a alcanccedilar popularidade
entre a plebe Otatildeo por exemplo mandou erguer estaacutetuas do ex-imperador
adotou o cognomen Nero e promoveu a conclusatildeo da Domus Aurea ao passo que
Viteacutelio fez sacrifiacutecios ao espiacuterito do finado e permitiu que suas canccedilotildees fossem
executadas em puacuteblico506
Vemos portanto que em um curto espaccedilo de tempo a
imagem do antigo princeps foi bastante utilizada para fomentar apoio aos novos
governos seja apoio por oacutedio seja apoio por amor ao antepassado Tal questatildeo
apesar de relevante para a nossa tese natildeo seraacute abordada neste capiacutetulo pois o uso
das representaccedilotildees de Nero por Galba Otatildeo e Viteacutelio aparece de forma jaacute
consolidada nas fontes literaacuterias escritas sob os Flaacutevios e Antoninos Ademais
natildeo temos fontes literaacuterias que possam ser seguramente datadas em cada um
desses breviacutessimos Principados do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo Os documentos
que tratam dessa temaacutetica foram elaborados em mais detalhes apenas na dinastia
Antonina e na dos Severos e seratildeo discutidos no proacuteximo capiacutetulo
504
Tito Flaacutevio Vespasiano nascido no dia 17 de novembro do ano 9 foi o primeiro imperador
romano da dinastia flaviana Descendia de uma famiacutelia da ordem equestre a qual atingiu a
categoria senatorial durante os governos dos imperadores da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Ao longo da
sua vida Vespasiano ganhou renome como general militar colocando sob o domiacutenio romano mais
de 20 cidades e duas tribos britacircnicas poderosas Ele foi tambeacutem o responsaacutevel pela vitoacuteria romana
na guerra contra os rebeldes judeus na Judeia iniciada em 66 ndash guerra inclusive que ele chefiou a
mando de Nero Foi essa campanha bem-sucedida que tornou possiacutevel sua ascensatildeo ao trono
sendo aclamado imperator pelas tropas em Alexandria pelo exeacutercito da Judeia por todos os
legionaacuterios das forccedilas auxiliares e pelas proviacutencias do leste (Tac Hist 279-81 Suet Vesp 1-6) 505
ROLLER 2001 p 261 506
Tac Hist 178 Suet Otho 7 Tac Hist 295 1
139
Falemos entatildeo do uso da imagem neroniana pelos Flauii As fontes
epigraacuteficas sobreviventes revelam uma forte condenaccedilatildeo da memoacuteria do princeps
por tal dinastia desenvolvida devido agrave necessidade do fortalecimento da
legitimidade do seu proacuteprio poder Os novos soberanos natildeo detinham
descendecircncia direta ou indireta nem de Augusto (um Juacutelio) nem de Liacutevia (uma
Claacuteudia) por isso a construccedilatildeo da legitimidade era algo de extrema
importacircncia507
E nada melhor para erigir a legitimidade do que deslegitimar o
governante anterior mostrando-se diferente dele508
Nessa perspectiva uma das
estrateacutegias utilizadas pelos Flaacutevios foi a obliteraccedilatildeo da memoacuteria neroniana ou
seja a transformaccedilatildeo da identidade ideoloacutegica e cultural da capital do Impeacuterio por
meio da destruiccedilatildeo da reconfiguraccedilatildeo eou da remoccedilatildeo dos retratos e das
construccedilotildees de Nero da esfera puacuteblica do apagamento do seu nome de algumas
inscriccedilotildees da contramarcaccedilatildeo de moedas e da construccedilatildeo ou reforma de edifiacutecios
para o benefiacutecio comum509
Ramage comenta sobre algumas accedilotildees adotadas especificamente por
Vespasiano Uma delas foi o uso da legenda Roma Ressurgens nas cunhagens
simbolizando a recuperaccedilatildeo moral e material da Vrbs ldquoRoma Ressurgens tinha
uma forte conotaccedilatildeo com a restauraccedilatildeo fiacutesica da cidade apoacutes a influecircncia tiracircnica
de Nerordquo Outra accedilatildeo foi o retorno da legenda Libertas Restituta jaacute usada por
Galba significando o restabelecimento da liberdade apoacutes a morte de Nero
Vespasiano tambeacutem cunhou moedas com as legendas Felicitas Publica
(Felicidade Puacuteblica) Fides Publica (Feacute Puacuteblica) e Securitas Populi Romani
(Seguranccedila do Povo Romano) no intuito de fortalecer a diferenccedila do seu governo
em relaccedilatildeo ao de Nero Tivemos ainda a construccedilatildeo do Templo da Paz a
reapropriaccedilatildeo do terreno da Domus Aurea para a estruturaccedilatildeo do Anfiteatro
Flaviano510
a substituiccedilatildeo da cabeccedila de Nero no Colosso pela cabeccedila do deus-sol
e a reconstruccedilatildeo do Templo de Claacuteudio Deificado realizada como uma rejeiccedilatildeo da
poliacutetica de Nero segundo a qual a adoraccedilatildeo de Claacuteudio foi ignorada e seu templo
507
RODRIGUES 2020 p 112 508
A depreciaccedilatildeo do antecessor como dispositivo de propaganda tem uma longa histoacuteria
remontando pelo menos aos tempos de Ciacutecero 509
DARWALL-SMITH 1996 p 253 ROSSO 2008 p 43 RIPOLL 1999 p 148 ZISSOS
2016 p 7 VARNER 2017 p 238 510
Cabe destacar que o Anfiteatro comeccedilou a ser construiacutedo por Vespasiano por volta do ano 70
e foi finalizado por Tito em torno de 80
140
desmontado511
No final das contas entatildeo Vespasiano ndash e os Flaacutevios ndash acreditava
que se apagasse os traccedilos de Nero apagaria sua memoacuteria
Outra estrateacutegia muito usada pelos Flaacutevios foi o patrociacutenio de obras
literaacuterias que endossavam a visatildeo de que Nero desonrara Augusto e o resto da
famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia Em outras palavras Vespasiano Tito e Domiciano
encorajaram a divulgaccedilatildeo de trabalhos que davam ao falecido soberano uma
coloraccedilatildeo tiracircnica512
De fato no periacuteodo foram produzidos vaacuterios trabalhos que
atribuiacuteam a ele atitudes negativas transformando-o em uma espeacutecie de monstro a
ser rejeitado513
Nessa perspectiva inserem-se Octauia composta por Pseudo-
Secircneca Naturalis Historia redigida por Pliacutenio o Velho Bellum Judaicum e
Antiquitates Judaicae elaborados por Flaacutevio Josefo Liber Spectaculorum e
Epigrammata produzidos por Marcial e as Siluae concebidas por Estaacutecio Cabe
destacar que a obra Institutio Oratoria (Educaccedilatildeo Oratoacuteria) escrita por
Quintiliano embora seja contemporacircnea agraves citadas natildeo menciona os episoacutedios da
vida de Nero que nos interessam
A anaacutelise dessas fontes nos permitiraacute observar que o tratamento dado agrave
imagem neroniana pelos Flaacutevios foi uma estrateacutegia voltada agrave propagaccedilatildeo de novos
ideais poliacuteticos e de uma memoacuteria transformada Nero serviu como uma peliacutecula
conveniente contra a qual a nova dinastia pretendia se definir positivamente514
Eacute
sob tal ponto que nos deteremos a seguir organizando nossa anaacutelise pelo estudo
das obras selecionadas que permitem uma percepccedilatildeo clara dos contrastes
produzidos com essa produccedilatildeo dos Neros transformados
Pseudo-Secircneca Octauia
A primeira composiccedilatildeo publicada nessa nova era poliacutetica foi a trageacutedia
Octauia uacutenico drama ndash cuja trama se daacute em uma ambientaccedilatildeo romana ndash que nos
chegou completo515
Trata-se de uma obra na qual satildeo relatados os uacuteltimos
instantes da vida de Otaacutevia filha do imperador Claacuteudio com sua terceira esposa
511
RAMAGE 1983 p 209-214 512
GRIFFIN 2001 p 15 513
LEFEBVRE 2017 p 26-27 514
TUCK 2016 p 110 515
GRIFFIN 2001 p 100
141
Messalina516
Nascida no ano 40 essa primeira foi irmatilde de Britacircnico meia-irmatilde
de Antocircnia e primeira esposa de Nero O enlace ocorreu em junho de 53 graccedilas
aos arranjos de Agripina517
Agrave eacutepoca ela tinha 13 anos ele 15 e ambos
mantinham uma relaccedilatildeo pouco afetuosa518
Por consequecircncia Nero se direcionou
agraves amantes apaixonando-se por Popeia esposa do seu amigo Otatildeo
519 A fim de
casar-se com ela divorciou-se de Otaacutevia em um processo complicado acusando-a
falsamente de adulteacuterio enviando-a para o exiacutelio e assassinando-a Toda essa
trama eacute narrada na Octauia em uma sequecircncia cronoloacutegica de trecircs dias situados
em junho de 62520
Eacute importante destacar que a autoria e a dataccedilatildeo da obra satildeo questotildees
problemaacuteticas ateacute os dias atuais No tocante agrave autoria a inclusatildeo do texto nos
manuscritos das Trageacutedias de Secircneca durante a Idade Meacutedia fez com que ele
fosse atribuiacutedo ao filoacutesofo Poreacutem eacute um consenso entre os estudiosos que Octauia
natildeo foi produzido por Secircneca e sim por um admirador eou seguidor dele521
Para Herington o escritor da obra deve ter sido algueacutem que estimava o trabalho
do tutor de Nero e conhecia os seus versos de cor empenhando-se em reproduzir
o seu estilo522
Ferri adiciona que os versos da Octauia satildeo demasiadamente
pobres e repetitivos bem diferentes dos elaborados versos senequianos523
O
marcante no texto eacute a ausecircncia de variaccedilatildeo as mesmas expressotildees idiomaacuteticas satildeo
repetidas duas ou mais vezes o que daacute uma ideia da gama limitada de soluccedilotildees
literaacuterias disponiacuteveis para o tragedioacutegrafo524
A recusa em conferir a paternidade
do texto a Secircneca fez com que a comunidade cientiacutefica atual chamasse o autor
desconhecido de Pseudo-Secircneca denominaccedilatildeo que tambeacutem adotaremos
Em relaccedilatildeo agrave dataccedilatildeo a maior parte dos estudiosos costuma situaacute-la apoacutes a
morte de Nero e sob o governo de Vespasiano entre 69 e 70525
Considera-se que
516
Tac Ann 1134 517
Suet Cl 27 Tac Ann 1258 Suet Nero 72 518
CHAMPLIN 2005 p 162 519
Tac Hist 113 Popeia eacute retratada na Octauia como uma mulher bela prendada pelos deuses e
de linhagem nobre ([Sen] Oct 544-545 551-552) 520
O periacuteodo de trecircs dias eacute obviamente uma convenccedilatildeo dramaacutetica os eventos reais
desenvolveram-se por um periacuteodo mais longo (FERRI 2014 p 522) 521
POE 1989 p 436 522
HERINGTON 1961 p 28 523
FERRI 2003 p 32 524
FERRI 2003 p 36 525
Lucarini (2005 p 263-284) ao contraacuterio tentou provar que a peccedila foi escrita depois do terceiro
ou quarto seacuteculos As provas apresentadas pelo autor satildeo fracas e resumem-se essencialmente a
algumas passagens em que Octauia eacute mais alusiva ou obscura do que Taacutecito
142
ela foi produzida nessa eacutepoca por trecircs motivos i) a imitaccedilatildeo do estilo senequiano
indica que ela foi escrita dentro de uma proximidade razoaacutevel da morte do
filoacutesofo526
ii) o seu forte tom antineroniano sugere que ela natildeo deve ter sido
elaborada durante a vida do finado princeps527
e iii) as suas referecircncias claras agrave
tirania de Nero ajustam-se com perfeiccedilatildeo agrave apropriaccedilatildeo flaviana negativa da
memoacuteria do soberano528
De acordo com Liberman essa dataccedilatildeo entre todas as
possiacuteveis eacute a mais adequada pois o modo como Pseudo-Secircneca narra os fatos eacute
bastante vivo e detalhista algo que soacute poderia ocorrer se ele tivesse testemunhado
os eventos Decerto foi algum membro da corte proacuteximo aos personagens
histoacutericos citados cujo nome infelizmente natildeo alcanccedilou a posteridade529
No que tange ao gecircnero a Octauia carrega as caracteriacutesticas de uma
praetexta imperial drama antigo do qual sabemos pouco530
O nome praetexta
adveacutem do traje usado pelos personagens no momento da atuaccedilatildeo do drama uma
praetexta toga (toga com bordas roxas) vestimenta destinada aos membros
pertencentes agrave categoria senatorial O uso da roupa era feito no intuito de
representar magistrados e outras figuras puacuteblicas que protagonizavam episoacutedios
poliacuteticos importantes em Roma As praetextae imperiais traziam criacuteticas a
aristocratas por meio da encenaccedilatildeo de uma peccedila sobre uma figura contemporacircnea
que possuiacutea um comportamento autocraacutetico531
Em outras palavras eram
produccedilotildees relacionadas agrave histoacuteria recente da capital do Impeacuterio a acontecimentos
ainda presentes na memoacuteria da populaccedilatildeo Agrave vista disso natildeo eram encenadas por
muito tempo depois de escritas eram apresentadas uma uacutenica vez em um evento
especiacutefico e para um puacuteblico restrito ou mesmo circuladas apenas sob a forma de
texto sem chegarem a ir para o palco Isso explicaria no entender de Pita a pouca
necessidade de preservaccedilatildeo dos textos e o consequente desaparecimento de todo
um gecircnero literaacuterio532
Fundamentados nesses aspectos de autoria dataccedilatildeo e gecircnero os criacuteticos
modernos leem a Octauia como uma obra de denuacutencia agrave opressatildeo exercida por
526
Para Boyle (2008 p xvi) uma imitaccedilatildeo muito posterior agrave morte de Secircneca natildeo faria sentido 527
BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p xix 528
ROYO 1983 p 200 529
LIBERMAN 1998 p vii-viii 530
Uma das discussotildees modernas mais extensas e completas sobre o gecircnero praetexta eacute a de
Kragelund (2002 p 5-51) 531
GOacuteMEZ 1997 p 573-574 532
PITA 2006 p 56 Aleacutem da Octauia haacute apenas uma menccedilatildeo a outra praetexta encenada no
periacuteodo imperial a qual eacute feita por Taacutecito no Dialogus de Oratoribus (Tac Dial 3)
143
Nero sobre o Impeacuterio uma composiccedilatildeo que condena os desvarios do soberano e
demonstra atraveacutes de um exemplo da histoacuteria recente os perigos que a
concentraccedilatildeo de poderes pode trazer Tal concepccedilatildeo eacute claramente perceptiacutevel no
texto Das linhas de abertura ateacute os versos finais Pseudo-Secircneca coloca Otaacutevia
expondo os assassinatos a repulsa emocional e os traumas vivenciados pelos seus
familiares e pelo povo de Roma533
Como afirmam Marti e Sullivan a Octauia eacute
uma ldquodiatribe contra Nerordquo um ldquodocumento poliacuteticordquo que expotildee as queixas das
suas viacutetimas534
Para entendermos com clareza a representaccedilatildeo de Nero construiacuteda por
Pseudo-Secircneca precisamos examinar a obra em detalhes Ela possui cinco atos e
nove personagens (aleacutem do coro) 1) Otaacutevia a protagonista 2) a escrava de
Otaacutevia 3) Secircneca 4) Nero 5) Agripina 6) Popeia 7) a escrava de Popeia 8) um
centuriatildeo e 9) um mensageiro535
Nesse cenaacuterio satildeo relatados episoacutedios da vida
de Otaacutevia dos quais o princeps participou Noacutes avaliaremos nove 1) a adoccedilatildeo de
Nero 2) o casamento dele com Otaacutevia 3) sua ascensatildeo 4) o assassinato de
Britacircnico 5) o assassinato de Agripina 6) o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia 7) o
casamento do imperador com Popeia 8) o incecircndio de Roma e 9) a construccedilatildeo da
Domus Aurea Com exceccedilatildeo da ascensatildeo neroniana essa eacute a primeira vez que
esses eventos aparecem no nosso corpus textual
Sem mais delongas tratemos do episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero536
Ele eacute
retratado como uma maquinaccedilatildeo de Agripina que estava disposta a qualquer coisa
para garantir o trono ao filho A matildee do futuro imperador eacute descrita pelo autor de
forma bem hostil ela aparece como uma mulher odiosa uma madrasta cruel e de
olhares ferozes537
Ela fez o marido Claacuteudio preferir538
533
SMITH 2003 p 397-425 534
MARTI 1952 p 28 SULLIVAN 1985 p 71 535
Os cinco atos satildeo bem desproporcionais o primeiro tem 376 versos o segundo tem 215 o
terceiro tem apenas 96 o quarto ato tem 129 e o quinto tem 162 536
Em Roma a adoccedilatildeo era o meacutetodo mais comum e eficaz de garantir a continuidade de um nome
da heranccedila e da memoacuteria (CROOK 1967 p 111) 537
[Sen] Oct 20-23 538
Agripina casou-se com Claacuteudio em 48 ou 49 O enlace eacute representado na Octauia de forma
muito negativa uma mulher selvagem ldquo[] com peacutes imortais entrou no templo vazio desonrou
com tocha infernal seu coraccedilatildeo sagrado rompeu as leis da natureza e tudo que eacute divinordquo
uacuamque Erinys saeua funesto pede intrauit aulam polluit Stygia face sacros penates iura
naturae furens ([Sen] Oct 161-163) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 19)
144
um nascido de outro sangue a seu filho
e dominado pelo amor tomou como esposa a filha de seu irmatildeo em uniatildeo amaldiccediloada a partir disso gerou uma seacuterie de crimes assassinato traiccedilatildeo ambiccedilatildeo por poder sede de sangue O genro tornou-se viacutetima do sogro para que por meio de teu casamento natildeo se tornasse poderoso
Que crime monstruoso Silano539 foi um presente dado a mulher para cobrir de sangue sua famiacutelia ancestral culpado de crime fictiacutecio O inimigo entrou ai de mim Tomou a casa por meio da astuacutecia da madrasta feito genro e filho do imperador jovem de gecircnio abominaacutevel e capaz de crimes cuja matildee maligna acendeu a tocha e por medo casou-te agrave forccedila540
Agripina preparou bem o caminho para assegurar a ascensatildeo do filho
Convenceu Claacuteudio a preferir Nero a Britacircnico seu filho legiacutetimo e eliminou
Silano casando Otaacutevia com Nero em uma ldquouniatildeo amaldiccediloadardquo A adoccedilatildeo eacute vista
de maneira ldquocatastroacuteficardquo pois com ela a casa dos Claacuteudios foi tomada por uma
mulher manipuladora e um jovem de gecircnio abominaacutevel541
Pseudo-Secircneca coloca
o futuro imperador em contraste com Britacircnico indicando que a adoccedilatildeo foi o
ldquoenterrordquo da famiacutelia Juacutelio-Claudiana Nero eacute figurado como um usurpador que
retirou uma posiccedilatildeo pertencente por direito a outro Por meio da astuacutecia da
madrasta o inimigo Nero infausto tomou a casa e trouxe consigo assassinato
traiccedilatildeo ambiccedilatildeo e sede de sangue
Aleacutem de articular a adoccedilatildeo Agripina tambeacutem agilizou o casamento do
filho com Otaacutevia A filha de Claacuteudio lamenta o infortuacutenio
539
Taacutecito conta que uma vez certa do seu enlace com Claacuteudio Agripina passou a arquitetar as bodas entre Nero e Otaacutevia O problema eacute que o imperador jaacute havia prometido Otaacutevia a Luacutecio
Silano bisneto de Augusto Entatildeo Agripina se uniu ao censor Viteacutelio (futuro imperador) para
articular acusaccedilotildees contra Silano dizendo que ele mantinha relaccedilotildees incestuosas com a irmatilde
Silano desinformado do complocirc e pretor naquele ano foi afastado da ordem senatorial por um
decreto de Viteacutelio Ao mesmo tempo Claacuteudio rompeu o noivado e Silano foi forccedilado a renunciar
agrave magistratura No dia do casamento de Otaacutevia Silano suicidou-se (Tac Ann 123-4 1281) 540
qui nato suo praeferre potuit sanguine alieno satum genitamque fratris coniugem captus sibi
toris nefandis flebili iunxit face hinc orta series facinorum caedes doli regni cupido
sanguinis diri sitis mactata soceri concidit thalamis gener uictima tuis ne fieret hymenaeis
potens pro facinus ingens feminae est munus datus Silanus et cruore foedauit suo patrios
penates criminis ficti reus intrauit hostis ei mihi captam domum dolis nouercae principis
factus gener idemque natus iuuenis infandi ingeni capaxque scelerum dira cui genetrix facem
accendit et te iunxit inuitam metu ([Sen] Oct 139-154) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 18-19) 541
KRAGELUND 2016 p 204 p 352
145
suportei de uma madrasta cruel as ordens
os olhares ferozes e a alma hostil ela ela como a terriacutevel Eriacutenia ao meu leito nupcial trouxe chamas infernais e te assassinou pai miseraacutevel quem haacute pouco o mundo todo obedeceu aleacutem do oceano
e do qual os bretotildees fugiram e antes desconhecidos por nossos comandantes viviam libertos Ai de mim pai pelas perfiacutedias de uma esposa estaacutes morto tua casa e tua filha servem como cativas a um tirano542
Aqui a matrona eacute identificada com Eriacutenia personagem mitoloacutegica que
aterrorizava eou amaldiccediloava os indiviacuteduos e vingava mortes543
Para Gozo ao
inserir um mito na histoacuteria o autor fortalece o retrato de Agripina como uma
mulher maligna cujas accedilotildees simultaneamente colocam Otaacutevia em uma posiccedilatildeo
de enorme infelicidade por casaacute-la com Nero e dificultam a vida da princesa por
a levarem a dominar Claacuteudio e a mataacute-lo544
A Otaacutevia entatildeo cabia apenas se
conformar com o seu destino ser cativa de um Nero tirano Mas segundo
Pseudo-Secircneca era difiacutecil esconder o luto insuportaacutevel uma vez que ela vivia sob
o jugo de um marido cruel e de uma madrasta selvagem545
Cega por sucesso Agripina ousa ameaccedilar o sagrado governo do mundo
afirma o autor Ela articula um crime na esperanccedila nefanda de tomar o poder
preparando venenos selvagens para o marido Com a morte de Claacuteudio o bastardo
Nero filho de Domiacutecio assume o controle e ldquomancha o nome de Augustordquo546
Agrave
frente do Impeacuterio toma suas primeiras decisotildees
542
tulimus saeuae iussa nouercae hostilem animum uultusque truces illa illa meis tristis
Erinys thalamis Stygios praetulit ignes teque extinxit miserande pater modo cui totus paruit
orbis ultra Oceanum cuique Britanni terga dedere ducibus nostris ante ignoti iurisque sui
coniugis heu me pater insidiis oppresse iaces seruitque domus cum prole tua capta tyranno
([Sen] Oct 21-33) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 13) 543
As Eriacutenias eram trecircs Megera Tisiacutefone e Alecto (GRIMAL 2005 p 146-147) 544
GOZO 2016 p 84 545
[Sen] Oct 46-48 170 546
[Sen] Oct 155-159 249-251
146
[Nero] ldquoCumpra minhas ordens Envie algueacutem que traga ateacute mim a cabeccedila decepada de Plauto e Sulardquo [Centuriatildeo] ldquoCumprirei sem demora Vou-me para o acampamento imediatamenterdquo [Secircneca] ldquoConveacutem que nada seja decidido precipitadamente contra parentesrdquo [Nero] ldquoEacute mais faacutecil ser justo quando o coraccedilatildeo estaacute livre de
medordquo [Secircneca] ldquoA clemecircncia eacute um grande remeacutedio para o temorrdquo [Nero] ldquoA maior virtude de um comandante eacute aniquilar o inimigordquo [Secircneca] ldquoPara um pai da paacutetria maior virtude eacute proteger seus cidadatildeosrdquo [Nero] ldquoPara um velho brando seria conveniente dar liccedilotildees agraves
crianccedilas [] A Fortuna me permite tudordquo547 [] [Secircneca] ldquoA gloacuteria consiste em fazer o que se deve natildeo o que eacute permitidordquo [Nero] ldquoO povo pisa no liacuteder indecisordquo [Secircneca] ldquoEsmaga o detestaacutevelrdquo [Nero] ldquo[] Conveacutem que um Ceacutesar seja temidordquo548
Na passagem Nero entra em cena solicitando as cabeccedilas de Plauto e Sula
homens considerados por ele como potenciais rivais na ocupaccedilatildeo do trono549
Ao
ouvir a ordem do soberano Secircneca550
passa a admoestaacute-lo criticando a forma
como tem exercido o poder e recomendando o uso da clemecircncia Nesse ponto
verificamos uma diferenccedila de tom entre os discursos do filoacutesofo No capiacutetulo
passado quando analisamos o De Clementia verificamos o tom prodigioso de
Secircneca ao falar da ascensatildeo de Nero Ele teceu diversos elogios ao imperador
exaltou a sua benignidade inocecircncia e mansidatildeo bem como destacou a
547
Fortuna era considerada a deusa romana do acaso da sorte do destino e da esperanccedila
Correspondia agrave divindade grega Tique Era representada com o corno da abundacircncia ndash com um
lema (porque eacute ela quem ldquopilotavardquo a vida dos homens) ndash ora sentada ora de peacute quase sempre
cega distribuindo seus desiacutegnios aleatoriamente (GRIMAL 2005 p 178) 548
[Nero] Perage imperata mitte qui Plauti mihi Sullaeque caesi referat abscisum caput
[Praefectus] Iussa haud morabor castra confestim petam [Seneca] Nihil in propinquos temere constitui decet [Nero] Iusto esse facile est cui uacat pectus metu [Seneca] Magnum timoris
remedium clementia est [Nero] Extinguere hostem maxima est uirtus ducis [Seneca] Seruare
ciues maior est patriae patri [Nero] Praecipere mitem conuenit pueris senem [] Fortuna
nostra cuncta permittit mihi [Seneca] Crede obsequenti parcius leuis est dea [Nero] Inertis
est nescire quid liceat sibi [Seneca] Id facere laus est quod decet non quod licet [Nero]
Calcat iacentem uulgus [Seneca] Inuisum opprimit [Nero] Ferrum tuetur principem []
[Nero] Decet timeri Caesarem ([Sen] Oct 436-458) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 31-32) 549
O primeiro por ser bisneto do ex-imperador Tibeacuterio e descendente consanguiacuteneo de Augusto e
o segundo por deter ligaccedilotildees estreitas com a famiacutelia imperial devido ao seu enlace com Antocircnia
filha de Claacuteudio Os dois foram inicialmente exilados e depois assassinados em 62 (Tac Ann
14591-2 13471-2) 550
O Secircneca da Octauia eacute apresentado como um bom velhinho abstecircmio e temperado que natildeo se
esquece de falar a verdade mesmo diante do perigo que tenta advertir seu aluno de ir longe
demais em seu desrespeito agrave humanidade (FERRI 2003 p 71)
147
tranquilidade com a qual o povo romano poderia viver pois Nero jaacute era um liacuteder
virtuoso Secircneca tambeacutem se posicionou como um homem que buscava a
sabedoria algueacutem que detinha a verdadeira receita da arte de governar cujo passo
a passo Nero adotaria O tom prodigioso usado para se referir a Nero nos textos do
proacuteprio autor poreacutem transformou-se aqui em um tom repreensivo na voz do
personagem Secircneca551
O filoacutesofo reprova veementemente a ordem do princeps
afirmando que ldquonada deve ser decidido contra parentesrdquo e que a maior virtude de
um pater patriae552 eacute ldquoproteger seus cidadatildeosrdquo Ao longo de todo o diaacutelogo
Secircneca natildeo tece nenhum elogio ao imperador apenas o censura e o relembra da
importacircncia da clemecircncia para o governo553
Nero ouve os conselhos e responde
com escaacuternio nomeando o filoacutesofo de ldquovelho brandordquo e declarando que seria
demecircncia natildeo usar a forccedila que possuiacutea Inclusive declara ndash em outro ponto do
diaacutelogo ndash que ateacute o proacuteprio Augusto usou da forccedila para erigir o seu Principado554
Como alega Erasmo a precipitaccedilatildeo de Nero aiacute eacute contrastada com a experiecircncia de
Secircneca por meio de ataques em termos poliacuteticos555
Em resumo ndash e aqui
concordamos com Buckley e Star ndash o princeps representado na Octauia natildeo eacute
mais um liacuteder virtuoso e sim uma figura que ascendeu ao trono e governaraacute
segundo seu proacuteprio plano de governo Eacute um soberano que faz parte de uma
linhagem de tiranos romanos que testam os limites do seu poder e cujo modo de
comando pode ser resumido pela maacutexima ldquoque odeiem desde que temam ndash ou
seja trata-se de um Nero infausto556
Eacute importante marcar que essa eacute a primeira vez que o episoacutedio da ascensatildeo
de Nero eacute apresentado de modo negativo O Nero prodigioso do capiacutetulo anterior
que traria um seacuteculo de ouro para o Impeacuterio e instauraria a paz comeccedilou a se
transformar A ascensatildeo do liacuteder clemente justo iacutentegro e divino deu lugar agrave
ascensatildeo de um soberano que defende a autocracia o uso das armas e o
extermiacutenio dos inimigos Como afirma Buckley o Nero da Octauia rejeita a
551
POE 1989 p 451 552
O tiacutetulo de pater patriae com que Augusto foi aclamado em 5 aC representa o apogeu do
movimento simboacutelico que o elevou agrave posiccedilatildeo de responsaacutevel pelos destinos da naccedilatildeo romana Com
isso ele atingiu a posiccedilatildeo de segundo fundador de Roma um sucessor de Rocircmulo (ESTEVES
2010 p 29) 553
STAR 2015 p 256 554
[Sen] Oct 504-513 555
ERASMO 2004 p 114 556
BUCKLEY 2013 p 135 STAR 2015 p 256-257
148
versatildeo da Era de Ouro augustana e reativa o passado da guerra civil tatildeo
abertamente deplorado no De Clementia e na Pharsalia557
Seguindo adiante temos o episoacutedio do assassinato de Britacircnico ocorrido
em 55558
Otaacutevia chora a morte do irmatildeo em uma conversa com sua escrava
[Otaacutevia] ldquo[] Ai de mim desse tirano beijar meu inimigo de quem ateacute mesmo as cariacutecias eu natildeo poderia tolerar apoacutes a terriacutevel morte de meu irmatildeo []rdquo [Escrava] ldquoTu tambeacutem jaz morto jovem infeliz sempre motivo de choro para noacutes
a uacuteltima estrela do mundo pilar da casa de Augusto oacute Britacircnico ai de mim agora soacute cinzas [] e triste sombra []rdquo [Otaacutevia] ldquoEle restituiraacute o irmatildeo tomado de mim por assassinatordquo [Escrava] ldquoQue tu permaneccedilas viva para restituir a casa decadente do teu pai um dia com filhos teusrdquo [Otaacutevia] ldquoSe ao menos o comandante dos ceacuteus pusesse em
chamas a cabeccedila vil do priacutencipe nefando [] Essa pestilecircncia eacute pior esse inimigo dos deuses [] tomou a vida do irmatildeo []rdquo559
Eacute possiacutevel notar que a descriccedilatildeo do assassinato natildeo eacute feita em detalhes A
imperatriz e a sua escrava natildeo nos datildeo informaccedilotildees sobre a forma como aconteceu
o incidente e nem sobre a repercussatildeo poliacutetica decorrente dele As duas apenas
sofrem e se enfurecem com Nero sem revelarem o enredo por traacutes do ocorrido A
nosso ver tal caracteriacutestica pode ser explicada com base no proacuteprio gecircnero da
obra Conforme Erasmo estamos lidando com uma praetexta imperial que
objetivava denunciar as atitudes crueacuteis de Nero sobretudo as que afetaram a vida
de Otaacutevia560
O foco eacute na tristeza da viacutetima na dramatizaccedilatildeo da sua trageacutedia561
Eacute
557
BUCKLEY 2013 p 141 558
Nascido no ano 41 Britacircnico era o uacutenico filho bioloacutegico de Claacuteudio e o herdeiro legiacutetimo do
trono imperial Em 50 tornou-se irmatildeo de Nero por adoccedilatildeo haja vista que Agripina apoacutes casar-se
com Claacuteudio fecirc-lo adotar Nero Depois de adotado ele teve o nome alterado para Nero Claacuteudio Ceacutesar Druso Germacircnico transformando-se em herdeiro de Claacuteudio As fontes relatam que antes
de falecer Claacuteudio arrependeu-se dessa decisatildeo e passou a preparar Britacircnico para o trono Ao
sentir a ameaccedila Nero supostamente ordenou o envenenamento de Britacircnico antes de ele
completar 14 anos (Tac Ann 1225-26 Suet Nero 71 Suet Cl 43 Dio 60341 Dio 6174) 559
[Octauia] [] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula timere nutus cuius
obsequium meus haud ferre posset fata post fratris dolor [] [Nutrix] Tu quoque extinctus
iaces deflende nobis semper infelix puer modo sidus orbis columen augustae domus
Britannice heu me nunc leuis tantum cinis et tristis umbra [] [Octauia] Ut fratrem ademptum
scelere restituat mihi [Nutrix] Incolumis ut sis ipsa labentem ut domum genitoris olim subole
restituas tua [Octauia] utinam nefandi principis dirum caput obruere flammis caelitum rector
paret [] haec grauior illo pestis hic hostis deum hominumque templis expulit superos suis
ciuesque patria spiritum fratri abstulit [] ([Sen] Oct 109-242) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p
17-24) 560
ERASMO 2004 p 67
149
importante lembrar que a estrateacutegia narrativa eacute concentrar as accedilotildees em trecircs dias
periacuteodo no qual os episoacutedios anteriores satildeo lembrados e tudo que aconteceu ao
longo de anos eacute apresentado de forma sinteacutetica intensa e conectada para gerar o
efeito dramaacutetico desejado O importante para Pseudo-Secircneca eacute falar da dor e da
raiva sentidas por Otaacutevia com a morte de Britacircnico e natildeo da morte em si E eacute
exatamente esses sentimentos que fazem o autor descrever Nero de maneira
negativa no excerto denominando-o de ldquotiranordquo ldquopriacutencipe nefandordquo ldquopestilecircnciardquo
e ldquoinimigo dos deusesrdquo tiacutetulos que nos possibilitam enquadrar o assassinato na
categoria Nero fratricida
Sobre o trecho cabe comentar ainda que Ferri e Kragelund defendem que
nele haacute uma representaccedilatildeo de Nero como usurpador haja vista que o trono por
nascimento pertencia a Britacircnico Enquanto Otaacutevia chora sua escrava reconhece
amargamente que o uacuteltimo descendente da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia o ldquouacuteltimo pilar
da casa de Augustordquo partiu para sempre A uacuteltima esperanccedila que a imperatriz
tinha de se vingar e de se livrar do marido tirano perecera Nero eacute figurado por
Pseudo-Secircneca entatildeo como um princeps ilegiacutetimo cujo governo possui fortes
traccedilos autocraacuteticos ndash muito diferentes aliaacutes dos traccedilos libertaacuterios mostrados no
capiacutetulo anterior562
Eis que os lamentos de Otaacutevia e da sua escrava chegam aos ouvidos do
coro romano que natildeo se mostra surpreso com o delito afinal este era soacute mais um
dos crimes perpetrados pelo imperador capaz de coisas piores Para ilustrar o
coro descreve outra atrocidade o assassinato de Agripina sucedido em 59563
561
HERINGTON 1961 p 30 562
FERRI 2003 p 159 KRAGELUND 2016 p 194-196 p 406 563
Nascida no ano 15 Agripina era a quarta filha de Germacircnico Ceacutesar com Agripina Maior Em
28 casou-se com Cneu Domiacutecio Aenobarbo por determinaccedilatildeo do imperador Tibeacuterio Em 37 no ano do falecimento de Tibeacuterio e da ascensatildeo de Caliacutegula deu agrave luz Nero Dois anos depois em 39
ela e sua irmatilde Juacutelia Livila foram exiladas por ordem de Caliacutegula Enquanto esteve longe de
Roma deixou Nero sob os cuidados de Domiacutecia Leacutepida tia paterna da crianccedila Em 41 Caliacutegula
foi assassinado e Claacuteudio tio de Agripina tornou-se imperador O novo soberano retirou as penas
de exiacutelio de Agripina e Juacutelia permitindo-lhes regressarem a Roma Foi provavelmente por esta
altura que Agripina casou-se pela segunda vez com Caio Passieno Crispo um rico e influente
orador Tal enlace parece natildeo ter durado muito tempo pois por volta de 49 Agripina estava viuacuteva
outra vez Seu terceiro e uacuteltimo casamento foi com Claacuteudio em 49 matrimocircnio que lhe rendeu a
adoccedilatildeo de Nero Apoacutes a uniatildeo ela tratou de colocar o seu filho cada vez mais proacuteximo da sucessatildeo
imperial Em 54 Claacuteudio supostamente foi envenenado por Agripina com cogumelos dando
espaccedilo para a ascensatildeo de Nero Nos meses iniciais do governo foram concedidos favores em
excesso a Agripina poreacutem com o tempo Nero desentendeu-se com a matildee passando a planejar o
seu assassinato ocorrido em 59 ([Sen] Oct 164-165 Tac Ann 4751 1223 Suet Cl 263
442 Dio 6041 60316 60323 6034)
150
[Coro romano] ldquoOs romanos antepassados tinham a virtude neles havia a verdadeira linhagem e sangue de Marte Expulsaram da cidade reis soberbos [] Esta era [] contemplou o crime odioso de um filho quando nosso priacutencipe traiu sua proacutepria matildee e a fez navegar pelo mar Tirreno em uma embarcaccedilatildeo mortal Comandados por ele os nautas partiram []
[] o navio alcanccedila o mar aberto quando se divide abre seu casco e se adentra no mar denso [] A morte suga muitos no mar profundo Augusta [Agripina] chora sobre suas vestes [] Quando natildeo haacute esperanccedila de seguranccedila ardendo a ira com a dor assolando lsquoessarsquo exclama lsquoeacute a recompensa
que me paga por meu grande presente filhorsquo Eu admito que mereccedilo esse barco te gerei dei a ti a luz o poder e o nome de Ceacutesar []rsquo [] A aacutegua afoga sua boca ela afunda no oceano e emerge [] Muitos [] corajosamente ajudam sua senhora [] Do que te foi uacutetil fugir do mar selvagem Tu estaacutes prestes a morrer pela matildeo do teu filho
cujo crime a posteridade natildeo esqueceraacute Nero se enfurece pelo resgate [] Ele apressa o destino de sua matildee [] Um capanga obedece agraves ordens abre seu peito com ferro Morrendo a infeliz pede a seu carrasco para que afunde a espada cruel em seu uacutetero dizendo lsquoafunde aqui sua espada aqui
onde essa monstruosidade nasceursquordquo564
564
[Chorus] Vera priorum uirtus quondam Romana fuit uerumque genus Martis in illis
sanguisque uiris Illi reges hac expulerunt urbe superbos [] Haec quoque nati uidere nefas
saecula magnum cum Tyrrhenum rate ferali princeps captam fraude parentem misit in
aequor Properant placidos linquere portus iussi nautae resonant remis pulsata freta fertur
in altum prouecta ratis quae resoluto robore labens pressa dehiscit sorbetque mare Tollitur
ingens clamor ad astra cum femineo mixtus planctu mors ante oculos dira uagatur quaerit
leti sibi quisque fugam alii lacerae puppis tabulis haerent nudi fluctusque secant repetunt alii
litora nantes multos mergunt fata profundo Scindit uestes Augusta suas laceratque comas
rigat et maestis fletibus ora postquam spes est nulla salutis ardens ira iam uicta malis lsquohaecrsquo exclamat lsquomihi pro tanto munere reddis praemia nate hac sum fateor digna carina
quae te genui quae tibi lucem atque imperium nomenque dedi Caesaris amens Exere uultus
Acheronte tuos poenisque meis pascere coniunx ego causa tuae miserande necis natoque
tuo funeris auctor en ut merui ferar ad manes inhumata tuos obruta saeuis aequoris undisrsquo
Feriunt fluctus ora loquentis ruit in pelagus rursumque salo pressa resurgit pellit palmis
cogente metu freta sed cedit fessa labori Mansit tacitis in pectoribus spreta tristi iam morte
fides multi dominae ferre auxilium pelago fractis uiribus audent bracchia quamuis lenta
trahentem uoce hortantur manibusque leuant Quid tibi saeui fugisse maris profuit undas
ferro es nati moritura tui cuius facinus uix posteritas tarde semper saecula credent Furit
ereptam pelagoque dolet uiuere matrem impius ingens geminatque nefas ruit in miserae fata
parentis patiturque moram sceleris nullam missus peragit iussa satelles reserat dominae
pectora ferro Caedis moriens illa ministrum rogat infelix utero dirum condat ut ensem lsquohic
est hic est fodiendusrsquo ait lsquoferro monstrum qui tale tulitrsquo ([Sen] Oct 291-372) Traduccedilatildeo de
Gozo (2016 p 26-29)
151
O matriciacutedio eacute cantado pelo coro em pormenores o filho lanccedila a matildee no
mar Tirreno em um navio mortal a morte a suga e ela quase se afoga no oceano
profundo ela magoa-se com a ldquorecompensardquo do filho pois deu a ele um Impeacuterio e
o nome de Ceacutesar e salva-se do naufraacutegio mas eacute assassinada friamente por um
ldquocapangardquo enviado a mando de Nero A nosso ver uma boa maneira de ler essa
descriccedilatildeo eacute a partir das interpretaccedilotildees poliacuteticas propostas por Coradini e
Lefebvre565
No iniacutecio do trecho o coro deixa claro que os soberanos
antepassados detinham a virtude uma vez que neles havia a verdadeira linhagem e
o sangue de Marte Como ilustraccedilatildeo cita Luacutecio Juacutenio Bruto liacuteder que expulsou o
monarca Tarquiacutenio o soberbo de Roma em 509 aC e ajudou a fundar a
Repuacuteblica Ou seja o coro defende que os tempos preteacuteritos eram bons porque
havia uma boa aristocracia indiviacuteduos que combatiam injusticcedilas e evitavam que
tiranias se afirmassem Em contrapartida os tempos presentes satildeo apontados
como ruins porque possuem Nero agrave frente do Impeacuterio soberano que cometeu o
ldquocrime odiosordquo de assassinar a matildee e natildeo foi punido566
Ele eacute o princeps que
ofende a uirtus dos antepassados colocando Roma sob uma eacutepoca de medo Para
as autoras entatildeo Pseudo-Secircneca estaacute dizendo que o pior momento da histoacuteria do
Impeacuterio foi aquele sob a administraccedilatildeo de Nero porquanto ele natildeo conhecia
limites para concretizar seus desejos extinguindo tudo quanto fosse obstaacuteculo
inclusive a matildee Tal reflexatildeo associada a outros elementos da trageacutedia como o
diaacutelogo anterior com Secircneca sugere uma visatildeo pessimista da histoacuteria por parte do
autor567
O mito tradicional da degenerescecircncia do mundo junta-se na Octavia a
um lugar-comum caro aos romanos aquele que elogia os antepassados e critica os
contemporacircneos Eacute portanto dentro desse contexto que o autor constroacutei a
representaccedilatildeo do Nero matricida sujeito que subjugou Roma a um scelus
nefarium (seacuteculo nefasto)
Apoacutes a morte de Agripina temos os episoacutedios do divoacutercio do exiacutelio e do
assassinato de Otaacutevia ocorridos em 62 Ao planejar o casamento com Popeia
Nero ordena ao centuriatildeo que coloque a imperatriz em um barco leve-a para a
Ilha da Pandataria e a elimine568
Quando ouve a notiacutecia Otaacutevia exclama
565
CORADINI 1997 p 83-84 LEFEBVRE 2017 p 34 566
Para contrapor o fato de Nero natildeo ter sido punido Pseudo-Secircneca cita histoacuterias romanas antigas
em que atos nefandos eram rigorosamente punidos ([Sen] Oct 294-299) 567
MOURA 1998 p 188 568
[Sen] Oct 874-876
152
[Otaacutevia] ldquoPara onde me levais Que lugar de exiacutelio o tirano
ou a rainha [Popeia] me ordenam Assim condoiacuteda ela me concede a vida jaacute vencida por meus numerosos males mas se com a minha morte pretende completar meus infortuacutenios por que tambeacutem me impede cruel de morrer em minha paacutetria
[] Vejo o barco do meu irmatildeo Este eacute o barco que um dia carregou sua matildee e agora carregaraacute a irmatilde expulsa do leito ai de mim [] Eis que o perverso tirano me envia tambeacutem ao mundo das tristes sombras e dos manesrdquo569
Otaacutevia eacute representada por Pseudo-Secircneca como uma viacutetima inocente do
soberano uma mulher negligenciada pelo marido trocada por uma ldquorainhardquo e
ainda enviada para a proacutepria morte Tudo isso em consequecircncia das accedilotildees
passionais de um ldquoperverso tiranordquo570
Aqui eacute essencial assinalar a escrita
tendenciosa do autor pois ele natildeo tece nenhum comentaacuterio acerca dos possiacuteveis
interesses poliacuteticos envolvidos na eliminaccedilatildeo da imperatriz Como relembra
Segurado e Campos Otaacutevia era filha legiacutetima de Claacuteudio e uacuteltima descendente
consanguiacutenea da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Apoacutes os assassinatos de Britacircnico
Agripina Plauto e Sula ela era a uacuteltima oposiccedilatildeo dentro da famiacutelia imperial isto
eacute o uacuteltimo obstaacuteculo para o princeps conquistar o poder por completo571
Sua
execuccedilatildeo entatildeo poderia ser muito mais poliacutetica do que passional Na percepccedilatildeo
de Garson e Pita o fato de Otaacutevia ainda estar viva era uma lembranccedila constante
para Nero de que ele natildeo detinha um nascimento tatildeo nobre quando o dela e o de
Britacircnico Nesse sentido o assassinato estaria atrelado agrave consciecircncia do princeps
de que sua ascensatildeo ao poder era questionaacutevel572
Segundo Griffin Nero deve ter
planejado o homiciacutedio visando a fortalecer o seu poder e a exterminar de vez
qualquer possiacutevel rival da linhagem Juacutelio-Claacuteudia ndash o que ele queria era
569
[Octauia] Quo me trahitis quodue tyrannus aut exilium regina iubet sic mihi uitam fracta
remittit tot iam nostris euicta malis sin caede mea cumulare parat luctus nostros inuidet
etiam cur in patria mihi saeua mori [] fratris cerno miseranda ratem hac est cuius uecta
carina quondam genetrix nunc et thalamis expulsa soror miseranda uehar [] Me quoque
tristes mittit ad umbras ferus et manes ecce tyrannus ([Sen] Oct 899-959) Traduccedilatildeo de Gozo
(2016 p 54-56) 570
BAUMAN 1994 p 207-208 571
SEGURADO E CAMPOS 1972 p 651-652 572
GARSON 1975 p 755 PITA 2006 p 64
153
consolidar sua posiccedilatildeo573
E para tanto natildeo poderia apenas se divorciar de
Otaacutevia pois uma princesa divorciada de nascimento real e viva era uma tentaccedilatildeo
grande demais para qualquer um que pretendesse remover Nero Essas questotildees
poreacutem natildeo satildeo mencionadas pelo poeta o qual prefere atribuir o crime soacute agrave
frivolidade do soberano qualificando-o como Nero uxoricida e Nero cruel574
As queixas de Otaacutevia intercalam-se com os lamentos do coro romano que
cita os pesados fados da domus Juacutelio-Claacuteudia Exiacutelios accediloites grilhotildees funerais
lutos torturas e mortes satildeo alguns dos exemplos dos infortuacutenios citados que
proporcionaram dias terriacuteveis e instaacuteveis para a dinastia fazendo-a perder
membros importantes575
O intrigante eacute que em nenhum momento Pseudo-Secircneca
associa o fim da dinastia a esses eventos traacutegicos preteacuteritos Ao contraacuterio coloca
Nero como o culpado por tal fim Essa culpabilidade aliaacutes jaacute eacute apontada desde o
episoacutedio do assassinato de Britacircnico em que Otaacutevia disse agrave sua escrava que seu
irmatildeo era o uacuteltimo ldquopilar da casa de Augustordquo e sua serva respondeu desejando
que sua domina permanecesse viva ldquopara restituir a casa decadenterdquo do pai com
filhos576
Dessa forma Nero jaacute vinha eliminando os descendentes da famiacutelia
imperial haacute algum tempo chegando ateacute a excluir a possibilidade de ter filhos
pertencentes a essa genealogia Isso nos permite interpretar o homiciacutedio de Otaacutevia
como a concretizaccedilatildeo de um plano usurpador do princeps de fundar sua proacutepria
dinastia Aenobarba independente e com fortes tendecircncias tiracircnicas
Depois do assassinato da imperatriz o princeps finalmente casa-se com
Popeia No dia do enlace o fantasma de Agripina retorna do inferno para
relembrar a trageacutedia da sua morte
[Agripina] ldquoRompi a terra e saiacute do Taacutertaro minha matildeo ensanguentada carrega uma tocha infernal
para o funesto casamento sob essas chamas Popeia se case com meu filho as quais matildeo vingativa e a dor de matildee transformaratildeo em tristes piras fuacutenebres Permanece em meio agraves sombras sempre a lembranccedila de minha morte iacutempia [] como pagamento para meus serviccedilos recebi um navio mortal [] [] Uma Eriacutenia vingativa prepara uma morte digna para o iacutempio tirano []rdquo577
573
GRIFFIN 2001 p 99 574
FERRI 2003 p 4 575
[Sen] Oct 924-957 576
[Sen] Oct 109-242 577
[Agrippina] Tellure rupta Tartaro gressum extuli Stygiam cruenta praeferens dextra facem
thalamis scelestis nubat his flammis meo Poppaea nato iuncta quas uindex manus dolorque
154
Na passagem Pseudo-Secircneca apresenta Agripina amaldiccediloando as novas
bodas de Nero com as matildeos ensanguentadas portando uma tocha infernal Ela
estaacute visivelmente ressentida com a traiccedilatildeo do filho e deseja revidar a sua morte
pois a lembranccedila do seu assassinato a acompanha em meio agraves sombras A maacutegoa eacute
grande porque para ela foi ela quem dera o trono ao filho e ele ingrato natildeo
reconheceu os seus meacuteritos578
Assim profetiza o falecimento do princeps
dizendo que uma Eriacutenia vingativa prepararia uma ldquomorte dignardquo para o ldquoiacutempio
tiranordquo579
Eacute no meio dessa ldquosede de vinganccedilardquo que estaacute o episoacutedio do casamento
do imperador com Popeia sendo o evento tambeacutem amaldiccediloado por Agripina A
finada matrona afirma que Popeia ateacute poderia desposar Nero mas as chamas da
sua ldquotocha infernalrdquo transformariam a uniatildeo em ldquotristes piras fuacutenebresrdquo A tocha
aqui eacute o elemento-chave para a interpretaccedilatildeo do trecho De acordo com Ferri nas
cerimocircnias nupciais gregas e romanas era costume a matildee do noivo carregar
tochas haja vista que as chamas atraiacuteam fertilidade e longevidade para a uniatildeo580
A fuacuteria de Agripina entretanto metamorfoseou as tochas nupciais e seus
pressaacutegios positivos em tochas fuacutenebres as quais eram costumeiramente
utilizadas segundo Carvalho e Omena para iluminar o cortejo fuacutenebre e queimar
o corpo do defunto581
ndash ou seja ela empregou as tochas de forma invertida usou
as chamas de bons pressaacutegios para trazer o mau agouro do assassinato de Nero
As bodas resultariam em oacutebitos eram um ldquofunesto casamentordquo O soberano
morreria e pagaria por todas as suas maldades afinal era um Nero cruel que
matou a matildee assassinou a esposa e estava se casando com a amante582
Para
Kragelund a junccedilatildeo dos elementos do fantasma com a vinganccedila e a do crime com
matris uertet ad tristes rogos manet inter umbras impiae caedis mihi semper memoria manibus nostris grauis adhuc inultis reddita et meritis meis funesta merces puppis et pretium imperi
nox illa qua naufragia defleui mea iam parce dabitur tempus haud longum peto ultrix Erinys
impio dignum parat letum tyranno [] ([Sen] Oct 593-620) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 41-
42) 578
[Sen] Oct 609-613 579
HARRISON 2015 p 120 580
O uso da tocha era feito para evocar a presenccedila dos deuses Eros e Himeneu A primeira deidade
era responsaacutevel grosso modo por acender a chama do amor nos coraccedilotildees dos noivos e sua
apariccedilatildeo trazia fecundidade Eros era frequentemente retratado como um garotinho alado de
cabelos loiros e portando um arco e flecha ou uma tocha acesa A segunda deidade era responsaacutevel
por conduzir o cortejo nupcial e sua vinda trazia durabilidade para o enlace Seus distintivos eram
a tocha uma coroa de flores e por vezes uma flauta (GRIMAL 2005 p 149 p 229) 581
CARVALHO E OMENA 2014 p 234 582
FERRI 2003 p 296
155
a puniccedilatildeo ilustram muito bem como Pseudo-Secircneca sabia se agarrar a questotildees e a
discursos que reforccedilariam a imagem negativa de Nero583
Eacute no contexto de tal casamento que Pseudo-Secircneca retrata o episoacutedio do
incecircndio de Roma sucedido em 64 O autor representa o princeps furioso com a
plebe da Vrbs porquanto ela repudiara publicamente o seu divoacutercio de Otaacutevia e o
seu enlace com Popeia O repuacutedio eacute manifestado atraveacutes da derrubada das estaacutetuas
de Popeia por toda a cidade cujo maacutermore claro eacute coberto com ldquolama ascosa e
pisadardquo584
Ao tomar conhecimento desse feito Nero proclama
[Nero] ldquoMas jaacute eacute pouco punir os crimes com a morte O iacutempio crime da plebe merece puniccedilatildeo mais grave Ela que o furor dos cidadatildeos lanccedila contra mim [] deve [] extinguir minha ira com seu sangue Que em breve o teto da cidade caia pelas minhas chamas
o fogo e a ruiacutena oprimam esse povo perverso e uma torpe miseacuteria e a fome e ainda o luto [] Essa turba corrupta e ingrata nem percebe minha clemecircncia [] Deve ser dominada com sofrimentos e oprimida por pesado jugo [] Fragilizada pelos castigos e com medo aprenderaacute a obedecer conforme o desejo do seu priacutenciperdquo585
Eacute niacutetida no excerto a coacutelera de Nero com a populaccedilatildeo de Roma taxada
por ele de ldquoingratardquo e ldquocorruptardquo Para puni-la ele pensa em condenar todos os
indiviacuteduos agrave morte mas logo percebe que o castigo natildeo seria perverso o
suficiente Assim planeja incendiar a cidade no intuito de oprimir o povo
extinguir a sua ira e instaurar a miseacuteria586
As fontes posteriores nos revelam que o
incecircndio foi grande em escala e feroz em velocidade durando nove dias
Comeccedilou na regiatildeo sul da Vrbs na parte do Circus Maximus adjacente agraves colinas
do Palatino e foi interrompido na regiatildeo norte ao peacute do Esquilino Dos 14
distritos em que a cidade estava dividida quatro permaneceram intactos trecircs
583
KRAGELUND 2016 p 243 p 262 584
[Sen] Oct 794-799 585
[Nero] Admissa sed iam morte puniri parum est grauiora meruit impium plebis scelus en
illa cui me ciuium subicit furor suspecta coniunx et soror semper mihi tandem dolori spiritum
reddat meo iramque nostram sanguine extinguat suo mox tecta flammis concidant urbis meis
ignes ruinae noxium populum premant turpisque egestas saeua cum luctu fames Exultat ingens
saeculi nostri bonis corrupta turba nec capit clementiam ingrata nostram ferre nec pacem
potest sed inquieta rapitur hinc audacia hinc temeritate fertur in praeceps sua malis
domanda est et graui semper iugo premenda ne quid simile temptare audeat contraque sanctos
coniugis uultus meae attollere oculos fracta per poenas metu parere discet principis nutu sui
([Sen] Oct 825-844) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 50-51) 586
PITA 2006 p 72-73 PRADO TEIXEIRA 2005 p 68
156
ficaram totalmente arrasados e sete subsistiram com edifiacutecios em ruiacutenas e
carbonizados587
Templos casas particulares lojas e corticcedilos tudo sucumbiu agraves
chamas588
Esse incecircndio todavia natildeo foi o primeiro sofrido pela capital
Segundo os estudiosos modernos Roma jaacute enfrentava incecircndios frequentes desde
o saque dos gauleses em 390 aC A grande populaccedilatildeo da Vrbs somada aos seus
preacutedios construiacutedos com material inflamaacutevel tornava essas ocorrecircncias
inevitaacuteveis589
O intrigante eacute que independentemente das causas provaacuteveis
Pseudo-Secircneca automaticamente atribui a culpa do incecircndio a Nero E o pior
associa o fogo ao desejo do soberano de retaliar a plebe pelos tumultos favoraacuteveis
a Otaacutevia pois ele queria casar-se com Popeia Essa postura do autor eacute refletida por
Closs com perspicaacutecia Octauia eacute uma ldquotrageacutedia de vinganccedilardquo na qual Nero
esboccedila a destruiccedilatildeo da cidade O princeps eacute desenhado como um Nero incendiaacuterio
e um Nero cruel incapaz de dominar tanto a populaccedilatildeo romana quanto suas
proacuteprias paixotildees planejando sitiar sua proacutepria Vrbs em represaacutelia pelo levante
civil montado contra ele590
Acerca da passagem eacute importante destacar ainda que
a acusaccedilatildeo de Nero como incendiaacuterio seraacute praticamente uma constante nos seacuteculos
seguintes e nessa trageacutedia as razotildees e as circunstacircncias do incecircndio estatildeo bem
distantes das que iratildeo predominar depois Notemos que natildeo haacute por exemplo
menccedilatildeo aos cristatildeos os quais passaratildeo a ter centralidade nos relatos sobre o
incecircndio especialmente em sociedades que tinham no Cristianismo uma doutrina
relevante Por oacutebvio natildeo eacute o caso da sociedade em que vivia Pseudo-Secircneca
Portanto resta claro que as apropriaccedilotildees dos eventos relativos agrave vida de Nero vatildeo
se alterando conforme mudam as sociedades que os relatam
Para finalizar vejamos o uacuteltimo episoacutedio o da construccedilatildeo da Domus
Aurea iniciada a partir do ano 65 Tal evento eacute mencionado ironicamente por
Agripina no mesmo excerto em que ela amaldiccediloa o novo casamento do filho
587
No ano 7 Augusto dividiu a cidade de Roma em 14 distritos e tomou providecircncias para que
alguns fossem tutelados por magistrados escolhidos por sorteio a cada ano e outros por ldquomestresrdquo
escolhidos entre a plebe de cada distrito (Suet Aug 301) 588
Tac Ann 1538-41 Suet Nero 38 Dio 62162-6 589
BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 149 590
CLOSS 2013 p 203-204
157
[Agripina] ldquoAinda que esse soberbo construa um palaacutecio de
maacutermore e o cubra de ouro [] viraacute o dia e o tempo em que ele entregaraacute a alma culpado por seus crimes e a garganta para seus inimigos sozinho destruiacutedo e privado de tudordquo591
A Domus Aurea integrava um complexo de edifiacutecios de diferentes
tamanhos espalhados entre os montes Palatino e Esquilino todos dentro de um
enorme parque com jardins lagos bosques vinhas zonas agriacutecolas e pastorais O
terreno do Palaacutecio dourado propriamente dito incluiacutea um enorme vestiacutebulo um
grande lago retangular cercado por elaborados terraccedilos e colunatas uma fonte
ldquoartificialmente naturalrdquo e uma aacuterea aberta com construccedilotildees menores a exemplo
do Templo da Fortuna No interior da residecircncia havia duas salas de jantar
flanqueadas por um paacutetio octogonal sendo este coroado por uma cuacutepula com um
gigante oacuteculo central para permitir a entrada de luz592
Tamanha suntuosidade
ficava agrave disposiccedilatildeo somente de Nero e dos seus ldquoamigosrdquo convidados para
banquetes leituras de poemas danccedilas entre outros divertimentos Tudo isso na
visatildeo de Agripina eacute apontado como algo inuacutetil pois mesmo ostentando riqueza e
oferecendo agrados para os ldquoamigosrdquo o Nero construtor terminaria seus dias
sozinho destruiacutedo e privado de tudo Ele morreria e ningueacutem viria a seu favor
Ela entatildeo menospreza a Domus Aurea frisando a superficialidade de cobrir um
palaacutecio de ouro A nosso ver essa profecia de Agripina deve ter soado aos
ouvintes da eacutepoca em que a trageacutedia foi escrita como algo muito vivo pois Nero
como veremos suicidou-se em escassa companhia e fora dos recintos da Domus
Aurea em uma instalaccedilatildeo humilde nos arredores de Roma593
Ademais sob
Vespasiano boa parte da Domus Aurea ndash construccedilatildeo monumental erigida para
durar ndash jaacute tinha deixado de existir dando lugar a obras construiacutedas por aqueles
que acusavam Nero de ter edificado monumentos exageradamente Uma dessas
obras inclusive foi o Anfiteatro Flaacutevio conhecido hoje como Coliseu edificado
no local onde estavam uma parte dos jardins e o lago da Domus Aurea Assim
591
[Agrippina] licet extruat marmoribus atque auro tegat superbus aulam limen armatae ducis
seruent cohortes mittat immensas opes exhaustus orbis supplices dextram petant Parthi
cruentam regna diuitias ferant ueniet dies tempusque quo reddat suis animam nocentem
sceleribus iugulum hostibus desertus ac destructus et cunctis egens ([Sen] Oct 624-631)
Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 42-43) 592
COARELLI 2007 p 180-181 593
Suet Nero 491-4
158
Octavia produz um efeito de verossimilhanccedila profeacutetica proacutepria daqueles que
falam desde o reino dos mortos toacutepica eacutepica bem conhecida por figurar na
Odisseia e na Eneida Com esse efeito as previsotildees e tambeacutem as avaliaccedilotildees de
Agripina se apresentaram como verdades aos ouvintes Nero morreraacute
iniquamente sua casa natildeo perduraraacute e ele era um tirano
Em siacutentese no decorrer da leitura da Octauia identificamos 11 das nossas
categorias de anaacutelise 1) Nero infausto conectada ao episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero
2) Nero tirano atrelada ao episoacutedio do casamento com Otaacutevia 3 ) Nero infausto
vinculada ao episoacutedio da ascensatildeo de Nero 4) Nero fratricida relacionadas ao
episoacutedio do assassinato de Britacircnico 5) Nero matricida ligada ao assassinato de
Agripina 6 e 7) Nero uxoricida e Nero cruel articuladas ao exiacutelio e ao
assassinato de Otaacutevia 8) Nero cruel concatenada ao casamento com Popeia 9 e
10) Nero incendiaacuterio e Nero cruel associadas ao incecircndio de Roma 11) Nero
construtor relativa agrave construccedilatildeo da Domus Aurea Vimos tambeacutem que a tirania
foi um fenocircmeno recorrente sendo Nero representado como um liacuteder petulante
vingativo e totalmente passional594
O cenaacuterio por traacutes da obra esteve recheado de
atrocidades tivemos adoccedilatildeo e ascensatildeo infausta fratriciacutedio matriciacutedio uxoriciacutedio
e incecircndio accedilotildees que ofereceram um potencial tiracircnico perfeitamente explorado
por Pseudo-Secircneca Natildeo agrave toa ele denominou o princeps de tirano 13 vezes ao
longo da trageacutedia sendo nove delas de modo expliacutecito e quatro de modo
impliacutecito595
A seu ver ndash e aqui citamos Prado e Teixeira ndash Nero usou de suas
prerrogativas como imperador para fazer valer sua vontade a todos e ordenou uma
seacuterie de execuccedilotildees poliacuteticas e o incecircndio da cidade596
Sem duacutevida entatildeo a
literatura prodigiosa neroniana iniciou o seu processo de metamorfose aqui O
soberano tatildeo elogiado na Apocolocyntosis no De Clementia nas Eclogae e na
Pharsalia natildeo existe mais suas qualidades desapareceram e seus defeitos
passaram a ser apontados597
A visatildeo negativa sobre Nero estaacute tomando forma e
suas histoacuterias de crueldade estatildeo surgindo598
O projeto dos Flavianos de
legitimaccedilatildeo poliacutetica comeccedilou perspicazmente A Octauia deu os primeiros passos
594
BILLOT 2003 p 130 595
Denominaccedilotildees expliacutecitas [Sen] Oct 33 87 110 250 303 610 620 899 958) Impliacutecitas
[Sen] Oct 65-69 443 453 470-471 596
PRADO TEIXEIRA 2005 p 68 597
GARSON 1975 p 756 598
WILLIAMS 1994 p 191
159
rumo agrave difamaccedilatildeo de Nero599
ndash natildeo randomicamente portanto Griffin diz a obra
estabeleceu Nero como ldquoo proverbial tirano [] uma mera encarnaccedilatildeo da vontade
para o mal natildeo afetado por conselhos ou influecircnciardquo600
Aleacutem disso se olharmos com atenccedilatildeo para alguns detalhes da trageacutedia
veremos uma estreita conexatildeo entre inuentio e allelopoiesis Por certo para
representar Nero Pseudo-Secircneca leu as narrativas de Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e
Lucano e construiu seus proacuteprios argumentos com base nos dos trecircs organizando-
os segundo seus interesses Tal organizaccedilatildeo a nosso ver foi feita a partir da
inversatildeo dos argumentos positivos dos trecircs autores a qual criou um novo Nero
com base no Nero do passado (um novo Nero anti-Nero) Vejamos como isso se
deu na praacutetica
Em relaccedilatildeo a Secircneca o tragedioacutegrafo utilizou as ideias contidas na
Apocolocyntosis para modificar a associaccedilatildeo entre Claacuteudio e Nero Na saacutetira
menipeia o governo neroniano foi apresentado como a superaccedilatildeo da autocracia
claudiana Agora na Octauia eacute exibido como a decadecircncia da casa de Claacuteudio
Ainda falando do filoacutesofo estoico Pseudo-Secircneca aproveitou as premissas
contidas no De Clementia para alterar a imagem do Nero clemente No tratado o
princeps foi descrito como o modelo virtuoso de governante aquele que superou
Augusto e soube preservar os interesses dos seus suacuteditos Na trageacutedia ele eacute
figurado como algueacutem que natildeo deseja superar Augusto mas igualar-se a ele por
usar a forccedila e natildeo mais a clemecircncia O emprego da forccedila se volta para o
tratamento dos seus suacuteditos ndash inclusive para puni-los indistintamente a exemplo
do episoacutedio do incecircndio
No tocante a Calpuacuternio Siacuteculo este pautou-se nas estrofes das Eclogae
para transfigurar o retrato de Nero como um novo Augusto Na poesia pastoril o
Principado neroniano foi louvado como o retorno do seacuteculo aacuteureo augustano
Aqui seu governo eacute representado como um seacuteculo nefasto
Por uacuteltimo Lucano se embasou nos versos da Pharsalia para mudar o
sentido positivo da ascensatildeo de Nero Na eacutepica a vinda do soberano foi vista
como o resultado de um processo ascendente que comeccedilou nas guerras civis e
terminou com a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de paz e prosperidade Nesse
momento eacute figurada como fruto de um longo processo decadente que iniciou
599
LEFEBVRE 2017 p 32 600
GRIFFIN 2001 p 100
160
com os anos virtuosos dos antepassados romanos e finalizou com o
estabelecimento de um periacuteodo do medo
Enfim foi assim que Pseudo-Secircneca montou o seu novovelho Nero
ressignificando elementos do passado enquanto ressignificava elementos do
presente Isso o fez modificar natildeo soacute a forma como via Nero mas tambeacutem como
achava que os outros deveriam tecirc-lo visto ou passarem a vecirc-lo Dessa forma a
obra procura mudar tanto a forma como se deveria entender o passado neroniano
quanto o modo como esse mesmo passado poderia ser visto aludindo a uma
maneira nova de perspectiva e nesse caso positiva com a instauraccedilatildeo da nova
dinastia no poder Por allelopoiesis o passado e o presente se construiacuteram
mutuamente o passado fez sentido pelo presente e vice-versa Essa ligaccedilatildeo natildeo
se fez livremente ou a partir do nada mas se pautou em uma tradiccedilatildeo que
estabeleceu ao mesmo tempo por um lado esses elementos centrais a serem
utilizados por meio da inuentio e por outro as possibilidades de criaccedilatildeo que
deram um patamar comum reconheciacutevel pelo autor e tambeacutem por seus ouvintes
Pliacutenio o Velho Naturalis Historia
A difamaccedilatildeo de Nero torna-se ainda mais acentuada na obra Naturalis
Historia escrita por Pliacutenio o Velho entre 77 e 78601
Caio Pliacutenio Segundo nasceu
em Novo Como na proviacutencia Cisalpina no norte da Peniacutensula Itaacutelica por volta
do ano 23 no decurso do Principado de Tibeacuterio Membro de uma abastada famiacutelia
equestre os Plinii viveu o iniacutecio da infacircncia na sua regiatildeo natal migrando para
Roma quando tinha sete anos onde realizou estudos retoacutericos com o grammaticus
Apiatildeo entre 31 a 34 e assumiu a toga virilis602 na idade usual em 39 Ao atingir
a juventude dedicou-se agrave carreira militar tornando-se de 47 a 57 praefectus
alae603 nas proviacutencias das Germacircnias superior e inferior posiccedilatildeo que exerceu
juntamente a Domiacutecio Corbulatildeo Pompocircnio Segundo e o futuro imperador Tito
601
As fontes antigas que tratam da vida de Pliacutenio o Velho satildeo trecircs Cartas do seu sobrinho Pliacutenio
o Jovem uma breve nota biograacutefica geralmente atribuiacuteda a Suetocircnio e passagens retiradas da sua
Naturalis Historia Usaremos principalmente as Cartas 602
Segundo Harrill (2002 p 255) assumir a toga virilis significava passar por uma seacuterie de rituais
que marcavam a maioridade (ou a puberdade) de um menino na sociedade romana O rito era
frequentemente celebrado entre os 14 e os 16 anos e tinha uma procissatildeo puacuteblica ateacute o Foacuterum O
menino deixava de lado seu amuleto apotropaico (bulla) e sua toga praetexta da infacircncia para
vestir a ldquotoga da masculinidaderdquo (toga virilis) 603
Comandante de alguma legiatildeo eou destacamento de legiatildeo militar (OCD 2012 p 1202)
161
(filho de Vespasiano) Enquanto esteve laacute escreveu De Iaculatione Equestri
(Sobre o Uso do Dardo como Arma da Cavalaria) Bella Germaniae (Histoacuteria da
Guerra de Roma contra os Germacircnicos) e De Vita Pomponi Secundi (Sobre a
Vida de Pompocircnio Segundo)604
Em 59 retornou a Roma com a intenccedilatildeo de
exercer a advocacia mas por motivos desconhecidos pelos estudiosos natildeo o fez e
permaneceu afastado da vida puacuteblica Esse afastamento na visatildeo de Syme pode
ser explicado pelo ciuacuteme de Nero em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos com reconhecimento
puacuteblico eou eminecircncia de nascimento O ciuacuteme estaacute na origem de muita
perseguiccedilatildeo atribuiacuteda a Nero embora isso pareccedila contraditoacuterio haja vista que ele
estimulava as artes605
Essa eacute a razatildeo apontada para que Pliacutenio tenha se afastado
da vida puacuteblica mantendo-se discreto e devotando seus talentos ao trabalho
seguro de redigir livros sobre gramaacutetica a exemplo de Studiosus (Tratado sobre a
Educaccedilatildeo do Orador) e Dubius Sermo (Tratado sobre a Liacutengua Latina) Apoacutes a
morte de Nero reinseriu-se na esfera puacuteblica posicionando-se favoravelmente agrave
nova dinastia Como recompensa foi nomeado entre 70 e 77 procurador de
quatro proviacutencias (Gaacutelia Narbonense Aacutefrica Hispacircnia Tarraconense e Gaacutelia
Beacutelgica) e prefeito da frota de Miseno na baiacutea de Naacutepoles606
Nessa eacutepoca
compocircs A Fine Aufidi Bassi (uma histoacuteria que dava continuidade agravequela escrita
por Aufiacutedio Basso possivelmente da morte de Claacuteudio em diante) e Naturalis
Historia Tempos depois voltou agrave capital do Impeacuterio e atuou como membro do
conselho de Vespasiano e de Tito Pliacutenio morreu no dia 24 de agosto de 79
durante a erupccedilatildeo do Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano Seu sobrinho
Pliacutenio o Jovem conta-nos que ele faleceu ao se aproximar para ver a erupccedilatildeo
sendo asfixiado por gases toacutexicos607
De todas as obras produzidas por ele somente a Naturalis Historia e o
Dubius Sermo sobreviveram ao processo de transmissatildeo As demais perderam-se
Organizada em 37 livros constitui um estudo metoacutedico da natureza o qual
envolve o cosmos (livro II) a geografia mundial (livros III-VI) criaturas vivas
(livros VII-XI) plantas (livro XII) medicamentos (livros XX-XXXII) metais e
604
Plin Ep 35 616 620 CHILVER 1941 p 106-107 MAXWELL-STUART 1995 p 1 605
SYME 1969 p 210 606
Plin Ep 35 616-20 Para dados sobre a carreira militar de Pliacutenio cf SYME 1969 p 201-
236 607
Plin Ep 35 616 620
162
minerais (livros XXXIII-XXXVII)608
Todos os livros satildeo precedidos por um
prefaacutecio elogioso dirigido a Tito princeps ldquodigniacutessimordquo609
No decorrer da
coletacircnea Pliacutenio expotildee os fenocircmenos do universo e mostra aos leitores como
deveriam relacionar-se com o mundo natural revelando o senso de respeito
apropriado Ao fazer isso tambeacutem conduz os leitores pelas tradiccedilotildees pelas
fantasias e pelos preconceitos por meio dos quais os romanos observavam o
mundo isto eacute os sistemas culturais com os quais entendiam a realidade610
Por se tratar de uma composiccedilatildeo que aborda assuntos tatildeo diversos a
Naturalis Historia eacute classificada na contemporaneidade como uma enciclopeacutedia
Todavia Murphy afirma que essa classificaccedilatildeo precisa ser vista com cuidado
caso contraacuterio associaremos os pressupostos das enciclopeacutedias modernas a um
artefato da cultura claacutessica sem as devidas ressalvas A definiccedilatildeo atual de
enciclopeacutedia segundo Arnar eacute livro que encapsula um corpo total ou universal
de conhecimento organizado de forma a preservaacute-lo e tornaacute-lo acessiacutevel a um
grande puacuteblico611
Com base nessa definiccedilatildeo Murphy afirma que a obra de Pliacutenio
simultaneamente eacute e natildeo eacute uma enciclopeacutedia Ela eacute porque exibe algumas
caracteriacutesticas do gecircnero tais como a preservaccedilatildeo do conhecimento amplo e a
imposiccedilatildeo de um sistema ao conhecimento dividido em campos de investigaccedilatildeo
E natildeo eacute porque o conceito de enciclopeacutedia natildeo existia na Antiguidade sendo
cunhado por Franccedilois Rabelais soacute em 1532 a partir de uma assimilaccedilatildeo errocircnea
do conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία612
Assim Pliacutenio natildeo concebeu a Naturalis
Historia como uma enciclopeacutedia no maacuteximo redigiu-a como um tratado um
material de consulta613
Mesmo assim os estudiosos assim a denominam devido agrave
tradiccedilatildeo literaacuteria construiacuteda em torno dela ou seja agrave forma como foi lida e
consultada ao longo do tempo Ignorar esse uso para Murphy significa descartar
608
BOSTOCK RILEY 1855 p xvi-xvii Para uma ilustraccedilatildeo conveniente de como a Naturalis
Historia eacute organizada cf ISAGER 2006 p 48 609
Plin Nat Pr 1 610
BEAGON 1992 p 26-54 611
ARNAR 1990 p xi 612
O conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία diz respeito a uma junccedilatildeo de ἐγκύκλιος (enkykliosldquomover-
se em ciacuterculosrdquo) com παιδεία (paideialdquoeducaccedilatildeordquo) cujo sentido era ldquotreinamento geralrdquo ou
ldquoeducaccedilatildeo diaacuteria geral recebida por todosrdquo Logo a noccedilatildeo de enciclopeacutedia ndash como a entendemos
hoje ndash natildeo existia para os antigos gregos (OCD 2002 p 95-209) Foi Rabelais quem fantasiou e
inventou a Enciclopeacutedia do grego ἐγκύκλιος παιδεία Ele estava preso entre as palavras e as coisas
ao redigir o seu livro Pantagruel (JACOB 1996 p 44) 613
Para Conte (1999 p 500-501) eacute bem provaacutevel que Pliacutenio tenha elaborado a Naturalis Historia
como um tratado haja vista que essa era uma tendecircncia cultural comum entre os romanos Como
exemplos de tratados temos os trabalhos de Varratildeo Vitruacutevio Columela e Quintiliano
163
os processos pelos quais passamos a lecirc-la614
Abandonar a ideia de que ela eacute uma
enciclopeacutedia soacute por ser anacrocircnico ldquo[] levaria ao subsolo as premissas e
suposiccedilotildees que colorem nossas leituras atuaisrdquo615
Portanto manteremos a
classificaccedilatildeo adotada nos dias de hoje
O importante eacute que a Naturalis Historia eacute uma obra fascinante e peculiar
tanto pelas informaccedilotildees que destaca quanto pela maneira como categoriza os
fenocircmenos em hierarquias de conhecimento Eacute tambeacutem uma obra ambiciosa
englobando informaccedilotildees sobre todos os aspectos do mundo natural em 37
volumes O proacuteprio Pliacutenio no prefaacutecio descreve seu enorme projeto em termos
quantitativos dizendo que leu cerca de dois mil trabalhos para escrever seu
texto616
um amontoado de dados que revela natildeo soacute a diligecircncia do autor mas
tambeacutem as suas opiniotildees Por exemplo Pliacutenio acredita que os romanos da sua
eacutepoca perderam o respeito pela natureza ignorando as suas daacutedivas e abusando
delas Eles eram ingratos e estavam mais preocupados em usufruir de uma vida
luxuosa do que em preservar as maravilhas disponiacuteveis para si Nesse sentido
mostra-se indignado com as despesas dos romanos em peacuterolas roupas de seda
perfumes e outras extravagacircncias617
O luxo para Pliacutenio desviava os indiviacuteduos
de uma compreensatildeo plena do mundo natural e das possibilidades positivas que
ele poderia apresentar618
Tal visatildeo reverbera na forma como o autor representou
Nero pois este eacute pintado como o monstro da extravagacircncia e da loucura algueacutem
que atacava a natureza sem hesitar construindo um canal que destruiacutea uma vinha
inteira ou queimando um ano de produccedilatildeo de incenso para enterrar a esposa619
As
referecircncias hostis satildeo tantas que eacute ateacute difiacutecil selecionaacute-las e isso chama muita
atenccedilatildeo porque como dissemos o objeto principal da obra natildeo eacute Nero
Possivelmente Pliacutenio usou na Naturalis Historia o material que serviu para a
composiccedilatildeo da obra A Fine Aufidi Bassi perdida no processo de transmissatildeo
Outra explicaccedilatildeo para tal ecircnfase pode ser atribuiacuteda agrave dedicaccedilatildeo elogiosa desses
livros a Tito demandando a desqualificaccedilatildeo do antecessor para colocar em mais
614
MURPHY 2004 p 11-16 615
DOODY 2010 p 6 Para uma discussatildeo da leitura da Naturalis Historia como enciclopeacutedia
cf DOODY 2010 p 1-10 616
Plin Nat Pr 17 617
Plin Nat 956 1126-27 134 618
O problema estava no uso que os humanos faziam da sua criatividade O luxo inspirava
inventividade mas essa invenccedilatildeo podia rivalizar com a criatividade da natureza e pervertecirc-la
(CITRONIMARCHETTI 1991 p 200-201) 619
Plin Nat 148 1241
164
relevo os meacuteritos do governante atual Essas poreacutem satildeo apenas hipoacuteteses de
leitura Manteremos o foco nas referecircncias a Nero e comentaremos apenas as que
condizem com nossa seleccedilatildeo de episoacutedios quais sejam as que abordam o
nascimento de Nero o matriciacutedio o incecircndio de Roma a visita de Tiridates agrave
Vrbs e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea
A imagem pliniana de Nero estaacute inteiramente articulada agrave ideia de
princeps antinatural aquele que desrespeitava a ordem orgacircnica das coisas um
comportamento que segundo o enciclopedista jaacute integrava a iacutendole imperial
desde o nascimento sucedido em 37
Natildeo eacute natural que uma crianccedila nasccedila com os peacutes primeiramente
e por esse motivo as pessoas chamam esses casos de ldquoAgripasrdquo sendo o nascimento ldquodifiacutecilrdquo [] Tambeacutem Nero que foi imperador haacute pouco tempo e que em todo o seu Principado foi inimigo do gecircnero humano nasceu com os peacutes primeiramente registra sua matildee Agripina Eacute devido agrave ordem da natureza que o homem entre no mundo primeiramente com a cabeccedila e seja levado para o tuacutemulo de maneira contraacuteria620
Na passagem eacute enfatizada a chegada anocircmala do soberano ao mundo Os
partos considerados normais na Roma Antiga ndash e ainda hoje ndash eram entendidos
como aqueles nos quais o bebecirc nascia primeiramente pela cabeccedila e depois pelos
peacutes sendo esta a melhor forma de dar agrave luz uma crianccedila pois natildeo acarretava
consequecircncias nem para a sauacutede da matildee nem para a do bebecirc Os partos destoantes
dessa normalidade esperada ndash os denominados partos peacutelvicos ndash traziam consigo
grandes riscos de complicaccedilotildees causando sofrimentos para ambos621
Esses riscos
satildeo marcados por Pliacutenio a partir do uso do vocaacutebulo ldquoAgripasrdquo derivado da frase
aegre partus (ldquonascido com dificuldaderdquo) encontrada tambeacutem em Aulo Geacutelio622
Os riscos e os possiacuteveis sofrimentos que causariam o parto a Nero e a Agripina
entretanto natildeo satildeo referidos por Pliacutenio Ele natildeo cita por exemplo a dor sentida
por Agripina ao passar pelo processo de dar agrave luz ou as complicaccedilotildees trazidas pelo
620
In pedes procidere nascentem contra naturam est quo argumento eos appellavere Agrippas ut
aegri partus [] Neronem quoque paulo ante principem et toto principatu suo hostem generis
humani pedibus genitum scribit parens eius Agrippina ritus naturae hominem capite gigni mos
est pedibus efferri (Plin Nat 78) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 535-537) 621
Alguns detalhes do processo do trabalho de parto na Roma do seacuteculo I satildeo fornecidos por
Celso nos livros II e VII da sua obra De Medicina 622
Gel 16161
165
parto para Nero Isso eacute muito curioso porque conforme alega Todman ldquoo parto
na sociedade romana era associado a um alto risco para o feto e para a matildee com
taxas substanciais de mortalidade []rdquo623
Pliacutenio era um enciclopedista mas no
excerto ele soacute divulga o sofrimento da humanidade com o nascimento antinatural
do soberano destacando que nada de positivo aconteceria ao mundo apoacutes aquele
evento Em outras palavras o autor traz uma espeacutecie de pressaacutegio negativo o
princeps nasceu como um problema e para ser um problema E tal pressaacutegio
aparentemente foi cumprido porquanto eacute salientado que durante todo o seu
Principado o imperador foi a maldiccedilatildeo do mundo624
Ele fora lanccedilado ao planeta
como um veneno era um Nero infausto desde o princiacutepio
Essa ideia nociva de Nero estaacute presente tambeacutem na maneira como Pliacutenio
narra o episoacutedio do assassinato de Agripina O naturalista declara
Entre os vegetais [] que satildeo consumidos com risco devo com boa razatildeo incluir os cogumelos uma comida muito saborosa eacute verdade mas merecidamente desprezada pelo notoacuterio crime cometido por Agripina que por intermeacutedio deles envenenou seu marido o imperador Claacuteudio e ao mesmo tempo infligiu
outra maldiccedilatildeo venenosa sobre o mundo inteiro e sobre ela mesma em particular o seu filho Nero625
Podemos observar que o autor concede uma atenccedilatildeo terciaacuteria ao
matriciacutedio A atenccedilatildeo primaacuteria repousa no uso dos elementos naturais ndash no caso
aqui dos cogumelos cuja finalidade eacute dupla de alimentaccedilatildeo e de envenenamento
A secundaacuteria baseia-se na criacutetica ao uso dado por Agripina aos cogumelos
(assassinar Claacuteudio) feito que transformou uma ldquocomida muito saborosardquo em
algo ldquodesprezadordquo E a terciaacuteria pauta-se na censura a Agripina acusada de trazer
uma ldquomaldiccedilatildeo venenosardquo sobre o mundo seu filho Nero quem mais tarde lhe
faria mal Eacute somente aiacute que o matriciacutedio emerge Mas vejam ele surge como um
tipo de castigo a Agripina mulher capaz de parir um filho infausto e envenenar o
marido para dar o poder ao filho que a matou Para Barrett Pliacutenio faz uma
623
TODMAN 2007 p 82 Gallivan e Wilkins (1999 p 239-255) desenvolvem uma boa
discussatildeo sobre as altas taxas de mortalidade infantil nas famiacutelias italianas dos seacuteculos I aC e I 624
Plin Nat 2246 625
Inter ea quae temere manduntur et boletos merito posuerim opimi quidem hos cibi sed
inmenso exemplo in crimen adductos veneno Tiberio Claudio principi per hanc occasionem ab
coniuge Agrippina data quo facto illa terris venenum alterum sibique ante omnes Neronem suum
dedit (Plin Nat 2246) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o
inglecircs de Rackham (1938-1962 p 359)
166
representaccedilatildeo hostil da matrona sugerindo que ela merecia morrer626
uma visatildeo
bem diferente das duas veiculadas na Octauia isto eacute a de Agripina como viacutetima
inocente e a de Nero vicioso O enciclopedista constroacutei um Nero matricida que eacute
consequecircncia dos maus atos da matildee um Nero infausto que cumpre o mau
pressaacutegio jaacute anunciado em seu parto Aliaacutes essa visatildeo dialoga bastante com a
perspectiva de um dos grupos apresentados no debate historiograacutefico do primeiro
capiacutetulo qual seja a de que Nero trazia consigo um pesado fardo geneacutetico o qual
era responsaacutevel por moldar negativamente sua personalidade e justificar o seu
modo de agir Nessa loacutegica seria a proacutepria Agripina a culpada pelo seu
assassinato pois transmitira ao filho seus piores defeitos sobretudo a rivalidade e
a ambiccedilatildeo627
Cabe frisar ainda que o uso da imagem do princeps natildeo eacute algo
fixo Sua reutilizaccedilatildeo pressupotildee permanecircncias que nos permitam identificar o
caraacuteter geral das accedilotildees e dos personagens mas cada autor e cada contexto vatildeo se
apropriando dessa imagem de forma nova Aqui Nero permanece como um
monstro poreacutem a culpa do matriciacutedio natildeo recai fundamentalmente sobre ele e
sim sobre quem o gerou Por esse mecanismo a viacutetima eacute a culpada Agripina
merecia seu destino mas a humanidade natildeo merecia Nero Pliacutenio indica que caso
natildeo queiramos sofrer com os Neros devemos evitar as Agripinas O Principado
para ser bom ou ruim dependia da casa que o originava
Os episoacutedios subsequentes continuam abordando essa nocividade do
princeps sobre o mundo e a humanidade Eacute o caso por exemplo do incecircndio da
Vrbs Leiamos a descriccedilatildeo
626
BARRETT 1996 p 237 Segundo Jones (1984 p 581-583) e Barrett (1996 p 237) a
concepccedilatildeo negativa de Pliacutenio sobre Agripina pode estar relacionada com um evento ocorrido em
39 Nesse ano Agripina juntamente agrave sua irmatilde Livila e a seu amante Marco Emiacutelio Leacutepido
(tambeacutem viuacutevo de Drusila) articulou uma trama para assassinar o imperador Caliacutegula e colocar Leacutepido no poder A trama foi logo descoberta pelo imperador que natildeo tardou em castigar os
envolvidos Agripina e Livila foram condenadas ao exiacutelio na ilha de Pandataacuteria e Leacutepido teve sua
garganta cortada por um pretoriano Mas isso natildeo foi tudo Antes de enviar Agripina para o exiacutelio
Caliacutegula a fez passar por uma humilhaccedilatildeo puacuteblica carregar as cinzas de Leacutepido por toda cidade de
Roma Foi aiacute que Vespasiano agrave eacutepoca pretor envolveu-se na situaccedilatildeo Quando Agripina entrou no
Senado com as cinzas Vespasiano moveu uma moccedilatildeo pedindo que elas fossem espalhadas ao
vento e permanecessem sem sepultura Desse ponto em diante comeccedilou uma enorme hostilidade
entre os dois Agripina nunca esqueceu esse insulto e durante o futuro governo de Nero fez de
tudo para dificultar a carreira poliacutetica de Vespasiano Portanto tendo em vista o apoio de Pliacutenio agrave
nova dinastia ldquo[] eacute improvaacutevel que sua representaccedilatildeo de Agripina [] fosse simpaacutetica
Certamente em sua [] Histoacuteria Natural [] as informaccedilotildees incidentais sobre Agripina satildeo quase
uniformemente hostisrdquo (BARRETT 1996 p 237) 627
BEATO 2000b p 13 Inclusive em Nat 3558 Pliacutenio afirma que durante o Principado de
Claacuteudio tal ambiccedilatildeo a fazia comandar o Senado
167
Essas aacutervores eram do tipo urtiga e pela exuberacircncia dos seus
galhos proporcionavam uma sombra deliciosa Caecina Largos um dos homens notaacuteveis de Roma [] costumava mostraacute-las para mim na minha juventude e como eu jaacute mencionei acerca da notaacutevel longevidade das aacutervores acrescentaria aqui que elas existiram ateacute o periacuteodo em que o imperador Nero ateou fogo agrave cidade cento e oitenta anos depois da eacutepoca de Crasso estando
elas ainda verdes e com todo o frescor se aquele priacutencipe tambeacutem natildeo tivesse achado adequado apressar a morte das proacuteprias aacutervores628
Pliacutenio diz que as aacutervores duraram ateacute o governo de Nero periacuteodo em que
ele incendiou a cidade Elas teriam permanecido verdes e jovens se o princeps
tambeacutem natildeo tivesse acelerado a morte delas Para Barrett esse ldquotambeacutemrdquo (etiam)
pode significar que o soberano aleacutem de matar aacutervores no incecircndio matou
pessoas Isso parece bastante condenatoacuterio todavia natildeo temos como afirmar com
certeza629
Ateacute porque Pliacutenio natildeo menciona o incecircndio nem os motivos que
levaram Nero a atear fogo na capital do Impeacuterio Ele natildeo comenta nada apenas
refere-se ao ocorrido e agraves consequecircncias acarretadas agrave natureza ndash no caso a
queima de aacutervores antigas e frondosas Essa ausecircncia de razotildees percorre os 37
livros da Naturalis Historia fato que nos intriga bastante pois a atribuiccedilatildeo de um
motivo para o incecircndio eacute um dos eixos fundamentais da tradiccedilatildeo negativa
neroniana estando em quase todas as fontes literaacuterias Afinal sabemos que
quanto mais friacutevola for a motivaccedilatildeo do crime mais monstruoso o princeps se
torna Inclusive vimos haacute pouco na Octauia a indicaccedilatildeo dessa frivolidade para
justificar o incecircndio Pliacutenio levou tatildeo a seacuterio as regras de composiccedilatildeo da sua
Enciclopeacutedia que aparentemente soacute citou o incecircndio devido agrave destruiccedilatildeo da
natureza Como afirma Champlin ldquoPliacutenio que estava em Roma durante o
incecircndio e detestava Nero tinha certeza de que ele era culpadordquo de que ele era
um Nero incendiaacuterio mas sua culpa estava muito mais ligada agrave queima das
aacutervores do que a outros fatores630
Percebam que aqui temos uma ampliaccedilatildeo do
repertoacuterio do uso da imagem de Nero Agrave eacutepoca que Pliacutenio escreveu a Naturalis
628
haec fuere lotoe patula ramorum opacitate lascivae caecina largo [] iuventa nostra eas in
domo sua ostentante duraveruntque ndash quoniam et de longissimo aevo arborum diximus ndash ad
neronis principis incendia cultu virides iuvenesque ni princeps ille adcelerasset etiam arborum
mortem ac ne quis vilem de cetero Crassi domum nihilque in ea iurganti domitio fuisse licendum
praeter arbores iudicet (Plin Nat 171) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 5) 629
BARRETT 2020 p 123 630
CHAMPLIN 2005 p 182
168
Historia jaacute era muito difundida a acusaccedilatildeo contra Nero quanto ao incecircndio
Coube ao enciclopedista entatildeo natildeo soacute repetir o que lhe trazia a tradiccedilatildeo ainda
recente mas ele tambeacutem adicionou ao retrato do Nero incendiaacuterio um novo
elemento ndash este destruiacutera tanto a cidade que nem as aacutervores escaparam
De qualquer forma depois do incecircndio a cidade de Roma precisou ser
reconstruiacuteda Wiedemann sustenta que o empreendimento foi muito custoso
fazendo com que o soberano procurasse fontes de recursos variadas para financiar
as obras631
Uma das encontradas por exemplo foi o confisco de riquezas
religiosas e privadas como tesouros de templos ou bens das elites provinciais
Sobre os uacuteltimos Pliacutenio alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras
detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a
mando de Nero para o confisco dos seus recursos632
As riquezas usurpadas daiacute ndash
e de outras regiotildees ndash foram empregadas na melhoria da infraestrutura da Vrbs a
saber no alargamento das ruas na edificaccedilatildeo de poacuterticos na implantaccedilatildeo de
paacutetios internos dentro das insulae entre outras accedilotildees De acordo com Rudich elas
tambeacutem foram utilizadas na construccedilatildeo da Domus Aurea a partir de 65 a opulenta
residecircncia imperial633
Sua edificaccedilatildeo financiada por recursos adquiridos de modo
violento gerou fortes criacuteticas a Nero suscitando rumores de que ele teria
propositalmente instigado o fogo no intuito de erigir o seu palaacutecio dourado e de
dar agrave cidade reconstruiacuteda o nome de Neroacutepolis Tais rumores aliaacutes foram
propagados pelas fontes literaacuterias posteriores as quais defendem uma relaccedilatildeo de
intencionalidade entre o incecircndio os confiscos e a Domus Aurea634
O autor natildeo se preocupa com o incecircndio tampouco com os possiacuteveis
interesses do soberano por detraacutes dele Vejamos
Nero cobriu o Teatro de Pompeu com ouro para usaacute-lo por um
uacutenico dia o dia em que se propocircs a mostraacute-lo ao rei Tiridates da Armecircnia E no entanto quatildeo pequeno era este teatro em comparaccedilatildeo com aquele seu Palaacutecio Dourado com o qual ele rodeava a nossa cidade635
631
WIEDEMANN 1996 p 251 632
Plin Nat 187 633
RUDICH 2005 p 80 634
Suet Nero 38 635
huius deinde successor Nero Pompei theatrum operuit auro in unum diem quo Tiridati
Armeniae regi ostenderet et quota pars ea fuit aureae domus ambientis urbem (Plin Nat 3316)
A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham
(1938-1962 p 45)
169
[] Duas vezes vimos toda a cidade rodeada pelos palaacutecios dos imperadores Caliacutegula e Nero o do uacuteltimo para que nada falhe em sua magnificecircncia sendo revestido de ouro636
O que verificamos aiacute eacute um vitupeacuterio ao tamanho do palaacutecio e agrave
personalidade excessiva do Nero construtor aspectos diretamente relacionados
aos objetivos da Naturalis Historia de repreender os abusos da natureza
perpetrados pelos romanos Os meios que levaram o princeps a erigir a Domus
Aurea natildeo satildeo significativos para Pliacutenio assim como natildeo o eacute a possibilidade de
ter havido uma relaccedilatildeo de intencionalidade com o incecircndio O cerne estaacute no uso
desmedido de um material mineral o ouro A propoacutesito nem mesmo o episoacutedio
da ida de Tiridates a Roma para realizar sua coroaccedilatildeo eacute minuciado637
O evento
soacute aparece para recriminar Nero acerca da utilizaccedilatildeo exagerada de ouro na
decoraccedilatildeo do Teatro de Pompeu a qual segundo o autor foi aproveitada soacute por
um dia Na percepccedilatildeo de Wallace-Hadrill qualquer tipo de uso desmedido dos
bens naturais eacute considerado por Pliacutenio como antinatural e luxuoso
Os produtos da natureza satildeo absolutos e perfeitos em si
mesmos Reuni-los e misturaacute-los por ostentaccedilatildeo natildeo eacute questatildeo de engenhosidade humana eacute impudentia A ideia do natural estaacute [] intimamente ligada agrave simplicidade baixo custo e acessibilidade O luxo [] eacute caracterizado pelo supeacuterfluo Eacute sempre um excesso de exigecircncias Eacute um desperdiacutecio e eacute destrutivo638
636
Sed omnes eas duae domus vicerunt bis vidimus urbem totam cingi domibus principum Gai et
Neronis huius quidem ne quid deesset aurea (Plin Nat 3624) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 87) 637
Tiridates foi o rei da Armecircnia por um periacuteodo de quase 20 anos entre 53 e 72 Tornou-se rei por aclamaccedilatildeo do seu irmatildeo Vologeso rei do Impeacuterio Parta Esse Impeacuterio foi palco de diversas
guerras contra o Impeacuterio Romano as quais levaram devastaccedilatildeo e opressatildeo agrave regiatildeo Por exemplo
entre os anos de 58 a 63 o Impeacuterio Parta vivenciou um confronto contra as forccedilas romanas pelo
controle das suas proacuteprias terras E por quecirc O Impeacuterio Parta era um reino submisso a Roma desde
a eacutepoca de Augusto mas em 53 conseguiu instalar Tiridates no trono um aristocrata nascido e
criado ali de linhagem arsaacutecida Tal evento coincidiu com a ascensatildeo de Nero ao poder que lutou
vigorosamente contra essa possiacutevel independecircncia dos partas O conflito perdurou por cinco anos e
envolveu um nuacutemero consideraacutevel de legionaacuterios terminando apoacutes um acordo diplomaacutetico
firmado entre Nero e Tiridates o priacutencipe parta seria reconhecido como o novo rei da Armecircnia
mas deveria ser coroado pelo imperador de Roma Ou seja Tiridates deveria ir ateacute a Vrbs colocar
seu diadema diante de Nero e ser coroado pelas matildeos dele A coroaccedilatildeo ocorreu no final do ano 66
e teve como cenaacuterio o Teatro de Pompeu cuja decoraccedilatildeo foi toda trabalhada em ouro
(CHAMPLIN 2005 p 221-224) 638
WALLACE-HADRILL 1990 p 86-88
170
A luxuacuteria traz consigo apenas uma seacuterie de fraquezas juntamente com
ambiccedilatildeo avareza supersticcedilatildeo e medos O luxo do homem eacute portanto uma falha
E nesse caso a falha de Nero estaacute ligada ao seu descontrole e agrave sua falta de
princiacutepios morais para lidar com a natureza Eacute uma criacutetica conforme Lefebvre ao
fato de o soberano se importar demasiadamente com a sua gloacuteria pessoal e com a
grandeza do Impeacuterio distanciando-se dos grandes generais do passado romano
republicano639
Continuando as recriminaccedilotildees Pliacutenio acusa o princeps de ter enclausurado
uma infinidade de obras de arte para enfeitar a Domus Aurea ldquoa Domus Aurea de
Nero foi a prisatildeo das produccedilotildees deste artista [Facircmulo] e por isso satildeo poucas as
que podem ser vistas em qualquer lugarrdquo640
Os mais ceacutelebres de todos os trabalhos [] foram dedicados []
pelo imperador Vespasiano no Templo da Paz e em outros preacutedios puacuteblicos construiacutedos por ele Eles haviam sido anteriormente carregados agrave forccedila por Nero e trazidos a Roma e arranjados por ele nas salas de recepccedilatildeo do seu palaacutecio dourado641
Ao frisar a atitude do novo princeps Pliacutenio contrapotildee a uoluptas de Nero agrave
utilitas de Vespasiano Ele dispotildee os liacutederes lado a lado no intuito de salientar
suas diferenccedilas de caraacuteter sendo um atento agrave virtude da simplicitas e outro atento
ao viacutecio da luxuria642
A Domus Aurea eacute fruto da vontade e do capricho do
priacutencipe da futilidade e dos sonhos neronianos de realizaccedilotildees fantaacutesticas trata-se
de uma construccedilatildeo inuacutetil que revela a superficialidade e a vaidade do
imperador643
Nero eacute um soberbo que soacute se preocupa consigo mesmo a exemplo
de Caliacutegula em contraste com Vespasiano o optimus princeps que sabe
639
LEFEBVRE 2017 p 137 640
carcer eius artis domus aurea fuit et ideo non extant exempla alia magnopere (Plin Nat
3537) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Rackham (1938-1962 p 349) 641
atque ex omnibus quae rettuli clarissima quaeque in urbe iam sunt dicata a vespasiano
principe in templo pacis aliisque eius operibus violentia neronis in urbem convecta et in sellariis
domus aureae disposita (Plin Nat 3419) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 189-191) 642
Viacutecio que vale acrescentar fez o primeiro flaviano encontrar o Impeacuterio com as financcedilas
esgotadas (Plin Nat 25) 643
LEFEBVRE 2017 p 129-131
171
demonstrar liberalitas publica assim como Augusto644
A realizaccedilatildeo de tal
condenaccedilatildeo pelo enciclopedista deve ser entendida como uma tentativa de
legitimar a nova dinastia que pretendia apagar os vestiacutegios do Principado
anterior destruindo suas construccedilotildees ndash em particular as que integravam o
complexo da Domus Aurea Natildeo nos esqueccedilamos de que a Naturalis Historia foi
dedicada a Tito logo eacute uma obra que reflete fortemente os valores flavianos
Como sustenta Baldwin o elogio de Pliacutenio agraves poliacuteticas artiacutesticas dos Flavianos
natildeo eacute meramente uacutetil mas uma expressatildeo genuiacutena da sua crenccedila na nova dinastia
como restauradora dos valores republicanos de Augusto645
Vespasiano eacute frequentemente apresentado em termos calculados
para fazer a audiecircncia romana lembrar de Augusto Ele eacute por exemplo geralmente referido como imperator Augustus grande tiacutetulo negado ao longo da Histoacuteria Natural a outros imperadores de Tibeacuterio em diante [hellip] Vespasiano [hellip] eacute simplesmente ldquoo imperadorrdquo o grande homem646
Dessa forma Pliacutenio se aproveita da tradiccedilatildeo criacutetica que se instaurava sobre
Nero e a recompotildee e a amplia Esse uacuteltimo episoacutedio deixa clara uma criacutetica bem
riacutegida Nero eacute aquele que acaba com os recursos do Impeacuterio para locupletar seus
desejos pessoais ou para embelezar a cidade de maneira efecircmera sem que
houvesse nenhum ganho puacuteblico com isso O que poderia ser uma caracteriacutestica
positiva do princeps como seu desejo de melhorar a Vrbs eacute transformado em
exagero despropositado e inuacutetil Os paracircmetros para a avaliaccedilatildeo aqui satildeo dois o
tempo presente e a atividade ediliacutecia de Vespasiano em contraposiccedilatildeo agrave de Nero
A maior obra de Nero seria a sua casa dourada privada e a maior obra de
Vespasiano e Tito seria um novo anfiteatro conhecido pelo nome da sua dinastia
Flaacutevia A nosso ver o julgamento de Nero por Pliacutenio ganha significacircncia para os
ouvintes atraveacutes da allelopoiesis que daacute novo sentido para o passado neroniano a
partir do presente flaviano e vice-versa Assim o anfiteatro Flaacutevio soacute faz sentido
como uma construccedilatildeo natildeo exagerada e excessiva quando colocada em paralelo
com a memoacuteria a ser destruiacuteda de uma Domus Aurea e de um teatro de Pompeu de
ouro usado em um soacute dia O anfiteatro eacute uma obra puacuteblica para a grandeza de
644
LEFEBVRE 2017 p 127-132 Em toda Naturalis Historia Pliacutenio descreve Caliacutegula como um
imperador vaidoso e extravagante tal como no trecho a seguir (Plin Nat 3322) 645
BALDWIN 1995 p 59 646
BALDWIN 1995 p 59
172
Roma e para o uso continuado por seacuteculos A Domus Aurea eacute uma construccedilatildeo
privada para a ganacircncia do imperador que logo desapareceu da paisagem Eacute desse
modo que o Nero construtor deixa de ser um soberano positivo para ser um
homem reprovaacutevel em seu despropoacutesito
Apoacutes realizarmos a anaacutelise da Naturalis Historia verificamos quatro das
nossas categorias de anaacutelise 1) Nero infausto relativa ao episoacutedio do nascimento
de Nero 2) Nero matricida referente ao episoacutedio do assassinato de Agripina 3)
Nero incendiaacuterio vinculada ao incecircndio de Roma e 4) Nero construtor
conectada agrave visita de Tiridates agrave Vrbs e agrave edificaccedilatildeo da Domus Aurea Por meio
delas entendemos que Pliacutenio estava totalmente empenhado em revelar o lado
antinatural de Nero As atitudes do soberano foram divulgadas a partir das lentes
de um enciclopedista dedicado em manter a natureza sagrada eterna e infinita647
Tudo o que atrapalhou tal manutenccedilatildeo foi motivo de condenaccedilatildeo como por
exemplo a construccedilatildeo da Domus Aurea Nesse ponto concordamos com o
argumento de Laehn ldquopara Pliacutenio a integraccedilatildeo completa do mundo da natureza
com a vida humana exigia o alinhamento dos limites da ordem poliacutetica com os
limites do mundo naturalrdquo648
ndash um alinhamento que ele acreditava ter sido Nero
incapaz de criar Foi assim que o autor contribuiu para a tradiccedilatildeo negativa
mostrando que o soberano natildeo possuiacutea o senso da importacircncia de viver em acordo
com a natureza
Antes de finalizarmos cabe frisar que essa contribuiccedilatildeo de Pliacutenio natildeo deve
ser desconectada dos seus intentos enciclopedistas Isto significa que seu objetivo
primordial nunca foi falar de Nero e do seu governo Ele apenas os inseriu na
narrativa quando assim julgou vaacutelido ou necessaacuterio agrave elaboraccedilatildeo dos seus
argumentos dividindo a abordagem entre de um lado criacuteticas agraves agressotildees agrave
natureza cometidas por Nero e de outro oposiccedilatildeo da imagem deste agrave dos Flaacutevios
Foi por meio dessa divisatildeo que ele utilizou a inuentio para em poucas e parcas
passagens mostrar seu pensamento negativo acerca do soberano Estamos falando
de um pensamento que a nosso ver esteve muito mais ligado agrave sua experiecircncia
pessoal eou proximidade poliacutetica com os Flaacutevios do que com um embasamento
na tradiccedilatildeo literaacuteria anterior ndash algo por exemplo feito por Pseudo-Secircneca A
647
Plin Nat 21 648
LAEHN 2010 p 25
173
uacutenica exceccedilatildeo foi o uso dos registros de Agripina mencionados por ele no evento
do nascimento do princeps649
O surpreendente eacute que mesmo natildeo se apoiando na tradiccedilatildeo literaacuteria
precedente Pliacutenio criou um Nero que eacute mutuamente novo e dependente do Nero
do passado ndash ou seja ele fez allelopoiesis Como ilustraccedilatildeo o seu Nero continuou
sendo infausto mas agora eacute infausto desde o ventre materno e natildeo mais desde o
iniacutecio do seu Principado Tambeacutem permaneceu sendo matricida poreacutem aqui eacute
acusado de matar uma matildee que merecera morrer natildeo uma viacutetima inocente
Manteve-se como incendiaacuterio mas neste momento sem crueldade com a plebe e
sem motivos para queimar Roma E prosseguiu sendo um construtor que
despendeu ouro em demasia para erguer a Domus Aurea e adornar o teatro de
Pompeu Sem duacutevidas a vivecircncia sob os governos de Nero e de Vespasiano deu a
Pliacutenio a oportunidade de selecionar classificar e interrogar realidades diversas as
quais por sua vez permitiram-lhe criar allelopoieticamente novos Neros mais
adequados ao presente que foram incorporados ao repertoacuterio que seraacute utilizado
posteriormente Por esse processo a possibilidade de criar novos retratos de Nero
vai se ampliando com o tempo e novas possibilidades vatildeo surgindo e se ligando
agraves antigas recompondo o entendimento do presente e do passado
Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae
Tratemos agora da representaccedilatildeo de Nero feita por Tito Flaacutevio Josefo650
O historiador judeu nasceu em Jerusaleacutem no ano 37 data da ascensatildeo de Caliacutegula
no interior de uma famiacutelia aristocraacutetica sacerdotal651
Cresceu em sua cidade natal
e recebeu uma soacutelida educaccedilatildeo judaica voltada agrave tradiccedilatildeo oral ao exerciacutecio da
memoacuteria e ao estudo da Toraacute e do grego No desenvolver da sua formaccedilatildeo
demonstrou inteligecircncia e anamnese excepcionais as quais o fizeram ser
649
Plin Nat 76 650
Eacute importante destacar que ao nascer ele foi batizado com o nome hebraico Yosef ben
Mattityahu ha-Cohen (מתתיהו בן יוסף) O nome Flaacutevio Josefo sob o qual eacute conhecido na
contemporaneidade natildeo aparece em suas obras O designativo surgiu em 69 quando lhe foi
concedida a cidadania romana por Vespasiano Com a concessatildeo Josefo recebeu os tria nomina
aquele que se chamava Yosef filho de Mattityahu adotou os praenomina Titus e Flavius em
homenagem a seu libertador (Titus Flavius Vespasianus) Assim Yosef ben Mattityahu ha-Cohen
passou a chamar-se Titus Flavius Josephus (Tito Flaacutevio Josefo) denominaccedilatildeo que adotaremos em
nosso texto (BARTLETT 1985 p 72-76 LAMOUR 2006 p 29) 651
Jos Vit 1 Jos BJ 1Pr1 As informaccedilotildees sobre a vida de Josefo estatildeo contidas em sua
autobiografia Vita (Vida) e em declaraccedilotildees esparsas no Bellum Judaicum
174
procurado por rabinos eruditos para esclarecimentos acerca das leis judaicas652
Em 53 ao completar 16 anos decidiu vivenciar os princiacutepios das ramificaccedilotildees do
judaiacutesmo (Fariseus Saduceus e Essecircnios) no intuito de eleger uma para seguir
Apoacutes conhececirc-las profundamente optou por seguir a dos Fariseus a mais
numerosa e de maior influecircncia sobre a populaccedilatildeo da Judeia653
A relaccedilatildeo com os
Fariseus deve tecirc-lo tornado influente tambeacutem pois no ano 62 foi incumbido de
viajar ateacute Roma para apresentar-se diante de Nero e implorar a libertaccedilatildeo de
alguns sacerdotes que tinham sido levados para laacute como prisioneiros654
Ao chegar
agrave Vrbs conheceu Popeia e reuniu-se com ele que intercedeu em prol dos
sacerdotes juntamente ao princeps ganhando a soltura de todos655
Com a missatildeo
bem-sucedida retornou a Jerusaleacutem em 66 onde haacute pouco havia eclodido a
revolta da Judeia contra Roma Tal rebeliatildeo conforme Goodman ocorreu em
funccedilatildeo da atitude de Nero em confiscar parte do ouro do Templo de Jerusaleacutem
siacutembolo maacuteximo da cultura judaica656
A revolta estendeu-se ateacute o ano 70 quando
Jerusaleacutem foi dominada pelas tropas do general Tito filho de Vespasiano que a
essa altura jaacute era imperador Do iniacutecio ao fim da insurreiccedilatildeo Josefo assumiu
papeacuteis diferentes estando a priori na condiccedilatildeo de comandante das tropas
rebeldes e a posteriori reduzido a prisioneiro de Vespasiano Enquanto ficou
como refeacutem Josefo afirma que o soberano o tratou com distinccedilatildeo e respeito
agradando-lhe de vaacuterias maneiras657
Sua liberdade foi concedida um ano e meio
652
Jos Vit 2 653
Jos Vit 2 654
Jos Vit 3 655
Jos Vit 3 Nas Antiquitates Judaicae Josefo denomina Popeia como ldquomulher temente a Deusrdquo
(Jos Ant 20811) Lamour (2006 p 21) acredita que essa expressatildeo relaciona-se a uma possiacutevel
origem judaica da imperatriz ou simplesmente agrave sua ldquosimpatiardquo pelos judeus 656
GOODMAN 1994 p 158 Wiedemann (1996 p 251) esclarece que os altos custos da
reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o incecircndio debilitaram as financcedilas fazendo Nero apropriar-se de metais preciosos nas proviacutencias do leste e do oeste sendo a Judeia o local onde foi desencadeado o
conflito mais duradouro 657
Jos Vit 75 Do inverno de 66 ao veratildeo de 67 Josefo comandou o exeacutercito defensor da Galileia
contra as forccedilas romanas lideradas por Vespasiano Esse uacuteltimo sitiou a cidade fortificada de
Jotapata e a capturou apoacutes um cerco de 47 dias Com a captura Josefo escondeu-se em uma
caverna juntamente com outros sobreviventes mas eles logo foram descobertos por soldados
romanos Ao ser levado perante Vespasiano e seu filho Tito Josefo profetizou que Vespasiano
tornar-se-ia imperador A princiacutepio o soberano ficou ceacutetico no entanto ao saber que uma seacuterie de
profecias anteriores de Josefo haviam se tornado realidade melhorou as condiccedilotildees do seu cativo
concedendo-lhe roupas e outros presentes Dois anos depois em julho de 69 Vespasiano foi
aclamado imperador pelas legiotildees estacionadas em Alexandria no Egito Aiacute lembrou-se da
profecia de Josefo e o libertou do cativeiro ordenando que suas correntes fossem cortadas com um
machado (Jos BJ 3736-389) Desse ponto em diante a vida de Josefo seria irrevogavelmente
ligada agrave sorte da casa Flaviana
175
depois em 72 momento em que preferiu seguir para a capital do Impeacuterio ao lado
do princeps e de Tito ao inveacutes de voltar agrave sua terra natal Em Roma foi
autorizado a residir na antiga uilla de Vespasiano tornou-se cidadatildeo e recebeu
uma pensatildeo com a qual viveu sem problemas financeiros Josefo morou na Vrbs
ateacute falecer na passagem do seacuteculo I para o II658
Foi sob essas circunstacircncias que ele iniciou e completou a escrita das suas
obras Durante os anos 70 redigiu seu primeiro e mais conhecido trabalho o
Bellum Judaicum em sete volumes cuja narrativa descreve toda a histoacuteria da
Revolta Judaica a eclosatildeo o curso e a conclusatildeo dos eventos bem como os fatos
a eles posteriores659
Nos anos 80 a 90 elaborou seu segundo trabalho as
Antiquitates Judaicae em 20 volumes no qual relata a histoacuteria do povo judeu
desde seus primoacuterdios ateacute a revolta de 66660
Entre 93 e 94 divulgou sua
autobiografia em apenas um volume Vita em que fala sobre o periacuteodo em que
foi comandante das tropas rebeldes Pouco tempo depois veio sua uacuteltima obra
Contra Apionem (Contra Apiatildeo) contendo dois volumes nos quais defende o
judaiacutesmo e o povo judeu contra os ataques feitos pelos antissemitas do mundo
greco-romano sobretudo aqueles vindos do autor alexandrino Apiatildeo Os escritos
de Josefo segundo Degan oferecem uma excelente oportunidade para refletirmos
acerca dos desafios enfrentados pelos judeus do seacuteculo I das relaccedilotildees entre o
centro do poder poliacutetico (Roma) e as suas periferias e do refazer da memoacuteria de
um autor particular661
Suas duas primeiras composiccedilotildees Bellum Judaicum e Antiquitates
Judaicae ndash a serem analisadas neste capiacutetulo ndash constituem trabalhos de
historiografia enquanto os demais satildeo classificados pelos estudiosos como relatos
pessoais que embora natildeo sejam desprovidos de conteuacutedo histoacuterico natildeo podem
ser considerados historiograacuteficos Essas duas obras manifestam a ambiccedilatildeo de
Josefo em ser um historiador em termos de meacutetodos seguidor de Tuciacutedides o
renomado historiador grego do seacuteculo V aC662
Na visatildeo de Wiseman Tuciacutedides
foi o responsaacutevel por reformular a operaccedilatildeo historiograacutefica de Heroacutedoto e por
658
THACKERAY 1967 p 15 Para detalhes da biografia de Josefo cf RAJAK 2002 p 11-45 659
Para uma descriccedilatildeo dos livros do Bellum Judaicum cf MASON 2016 p 19-20 660
Sobre a divisatildeo das Antiquitates Judaicae cf SCHWARTZ 2016 p 37 661
DEGAN 2010 p 30-31 EDMONDSON 2005 p 7 662
RAJAK 2002 p 9 DEGAN 2013 p 226
176
estabelecer padrotildees de objetividade para a escrita da historia663
Ou seja foi ele
quem instituiu a ideia de que a historia deveria ser contemporacircnea buscar as
causas ldquoverdadeirasrdquo por traacutes da superficialidade dos eventos e basear-se na
anaacutelise criacutetica do depoimento de testemunhas oculares664
Era a ele quem Josefo
queria se assemelhar para conceber a histoacuteria do povo judeu Ele desejava ldquo[]
aparecer e ser avaliado como um historiador heleniacutestico da mais estrita escolardquo665
Para escrever a historia Tuciacutedides seguia em geral trecircs princiacutepios
metodoloacutegicos O primeiro dizia respeito agrave abordagem de temas contemporacircneos
ou quase contemporacircneos comumente entendidos como grandiosos Momigliano
argumenta que os leitores tendiam a dar mais creacutedito agraves narrativas de cujos
eventos os historiadores haviam sido testemunhas in loco ou agravequelas cujas fontes
eram recentes666
Josefo atendeu a esse princiacutepio na medida em que vivenciou os
fatos da Guerra Judaica delineando uma histoacuteria em que discutiu o passado
poliacutetico da Judeia para interpretar a chegada dos Flavianos ao poder O segundo
concernia agrave utilizaccedilatildeo de discursos para a construccedilatildeo das narrativas Dito de outro
modo trata-se da exibiccedilatildeo da habilidade retoacuterica do autor para recuperar as
palavras dos personagens envolvidos no ocorrido e edificar sua histoacuteria ndash
habilidade inclusive aliada agrave inuentio De acordo com Thackeray os discursos
usados por Josefo satildeo de trecircs tipos os minoritaacuterios formados por palavras
realmente proferidas pelos personagens os intermediaacuterios compostos pela
proximidade real das palavras proferidas (proximidade condizente com o caraacuteter
do personagem) e os majoritaacuterios constituiacutedos por elementos puramente
imaginaacuterios667
Nas palavras do proacuteprio Tuciacutedides
663
WISEMAN 1979 p 41 Para Heroacutedoto o historiador era o encarregado de expor e investigar
(historiacutee) os acontecimentos provocados pelos homens Ao fazer isso assumia a funccedilatildeo de hiacutestor
isto eacute a funccedilatildeo de juiz cabendo a ele julgar quais acontecimentos seriam dignos de memoacuteria
Portanto sua noccedilatildeo de histoacuteria ndash ou sua metodologia ndash compreendia a investigaccedilatildeo (historiacutee) feita
pelo hiacutestor juntamente agrave sua exposiccedilatildeo em forma de narrativa Dessa maneira havia uma
preocupaccedilatildeo em separar o estilo literaacuterio da exposiccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (HARTOG 2001 p 51-52) 664
MOMIGLIANO 1987 p 14-15 Eacute essencial destacar contudo que quando falamos de
histoacuteria na Antiguidade natildeo estamos nos referindo a uma categoria particular de profissionais que
detinha um local especiacutefico de produccedilatildeo Ao contraacuterio no mundo greco-romano como ressaltou
Hartog (2001 p 19) a historiografia foi assumida por uma instituiccedilatildeo que codificava suas regras 665
BILDE 1988 p 203 666
MOMIGLIANO 1984 p 49 667
THACKERAY 1967 p 42-43
177
De quanto foi dito em discursos por cada um a ponto de entrar
em guerra ou jaacute estando nela era difiacutecil recordar com exatidatildeo cada palavra tanto para mim quando eu proacuteprio as escutei quanto para os que me informavam a partir de alguma outra fonte Como me parecia que cada um teria falado o que devia sobre a situaccedilatildeo do momento atendo-me o mais proacuteximo possiacutevel ao sentido geral do que foi verdadeiramente dito eacute assim que tudo se diraacute668
Os dois primeiros tipos de discursos foram retirados por Josefo de uma
variedade de fontes a exemplo da Toraacute dos Comentarii de Vespasiano sobre a
conduccedilatildeo da campanha judaica e de a Histoacuteria Universal de Nicolau de Damasco
historiador da corte de Herodes669
O terceiro e uacuteltimo princiacutepio metodoloacutegico tucidideano relacionava-se agrave
criacutetica aos relatos anteriores e agrave preocupaccedilatildeo em instituir uma histoacuteria que
desacreditasse os relatos jaacute existentes sobre os fatos no intuito de desvelar a
ldquoverdaderdquo por traacutes deles Para Tuciacutedides isso significava escrever natildeo recolhendo
informaccedilotildees de qualquer um mas as que ele mesmo tinha presenciado e checado
com a maior exatidatildeo possiacutevel670
Dito de outra forma significava ser imparcial e
construir relatos verossiacutemeis
Josefo prosseguiu com essa preocupaccedilatildeo ao compor suas obras porquanto
acusou seus predecessores de ignorarem ldquoa verdade exata dos fatosrdquo e elaborarem
histoacuterias pautadas em boatos contendo lisonjas eou oacutedios671
Seu intento foi
escrever para o bem dos que amam a verdade e natildeo para o bem dos que se
agradam com histoacuterias fictiacutecias672
Planejando alcanccedilar essa verdade dedicou-se agrave
averiguaccedilatildeo das fontes disponiacuteveis a fim de comparaacute-las avaliaacute-las e classificaacute-
las como veriacutedicas ou falsas Eacute precisamente em tal ponto que entra sua
representaccedilatildeo de Nero Ao consultar as evidecircncias Josefo tentou identificar quais
eram as narrativas confiaacuteveis e duvidosas acerca do imperador E eis que no meio
do processo ele observou uma falsificaccedilatildeo deliberada dos fatos
668
καὶ ὅσα μὲν λόγῳ εἶπον ἕκαστοι ἢ μέλλοντες πολεμήσειν ἢ ἐν αὐτῷ ἤδη ὄντες χαλεπὸν τὴν
ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι ἦν ἐμοί τε ὧν αὐτὸς ἤκουσα καὶ τοῖς ἄλλοθέν
ποθεν ἐμοὶ ἀπαγγέλλουσιν ὡς δ᾽ ἂν ἐδόκουν ἐμοὶ ἕκαστοι περὶ τῶν αἰεὶ παρόντων τὰ δέοντα
μάλιστ᾽ εἰπεῖν ἐχομένῳ ὅτι ἐγγύτατα τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων οὕτως εἴρηται
(Thuc 1221) (HARTOG 2001 p 81 traduccedilatildeo de Brandatildeo) 669
MASON 2016 p 25 670
Thuc 1222 671
Jos BJ 11 672
Jos BJ 1Pr12
178
[] Muitos foram os que compuseram a histoacuteria de Nero
Alguns se afastaram da verdade dos fatos devido a benefiacutecios recebidos dele Outros por oacutedio e antipatia a ele retrataram-no com tanta hostilidade que o cobriram imprudentemente com mentiras e estes merecem ser condenados [] Mas eu natildeo me surpreendo com os que contaram mentiras sobre Nero visto que natildeo preservaram em seus escritos a verdade da histoacuteria quanto aos fatos anteriores agrave sua eacutepoca []673
O historiador judeu entatildeo percebeu que os registros sobre Nero e seu
governo foram manipulados conforme os interesses daqueles que floresceram ou
sofreram sob o comando do princeps Houve um descuido com a verdade tanto
para o bem quanto para o mal Essa percepccedilatildeo eacute bastante significativa para a nossa
tese pois nos revela a existecircncia de uma dupla tradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave memoacuteria de
Nero Ou seja agrave eacutepoca da escrita das Antiquitates Judaicae subsistiam ao mesmo
tempo narrativas vituperiosas e laudatoacuterias As primeiras como sabemos
chegaram ateacute noacutes em grande quantidade Mas as segundas alcanccedilaram a
posteridade em nuacutemeros iacutenfimos E por quecirc Natildeo sabemos exatamente o porquecirc
poreacutem essa exiguidade evidencia um desinteresse na sua preservaccedilatildeo e tambeacutem
nos mostra que ela eacute viva e dinacircmica Claramente Josefo jaacute natildeo estava tratando
apenas dos Neros da proacutepria eacutepoca em que esse imperador viveu (cujas imagens
eram falsas por serem produto de adulaccedilatildeo) nem soacute dos Neros produzidos sob os
Flaacutevios (igualmente falsos pois eram fruto da antipatia ao princeps) Isso nos
mostra que Josefo deliberadamente decidiu produzir um novo Nero com base
nesses a que ele conseguia ter acesso por uma dupla tradiccedilatildeo ambas falsas Ele
natildeo criaraacute seu novo Nero a partir de elementos novos que eram desconhecidos por
essas duas tradiccedilotildees o que ele faz eacute recombinar elementos previamente existentes
dando mais peso para uns novos significados para outros e descartando alguns
Ao agir assim Josefo natildeo soacute se aproveita da tradiccedilatildeo como tambeacutem a transforma
ndash atitude inclusive adotada por outros autores analisados nesta tese Por fim
cumpre destacar que ao compor retratos os autores natildeo somente recuperam
673
Ἀλλὰ περὶ μὲν τούτων ἐῶ πλείω γράφειν πολλοὶ γὰρ τὴν περὶ Νέρωνα συντετάχασιν ἱστορίαν ὧν
οἱ μὲν διὰ χάριν εὖ πεπονθότες ὑπ᾽ αὐτοῦ τῆς ἀληθείας ἠμέλησαν οἱ δὲ διὰ μῖσος καὶ τὴν πρὸς αὐτὸν
ἀπέχθειαν οὕτως ἀναιδῶς ἐνεπαρῴνησαν τοῖς ψεύσμασιν ὡς ἀξίους αὐτοὺς εἶναι καταγνώσεως καὶ
θαυμάζειν οὐκ ἔπεισί μοι τοὺς περὶ Νέρωνος ψευσαμένους ὅπου μηδὲ τῶν πρὸ αὐτοῦ γενομένων
γράφοντες τὴν ἀλήθειαν τῆς ἱστορίας τετηρήκασιν καίτοι πρὸς ἐκείνους αὐτοῖς οὐδὲν μῖσος ἦν ἅτε
μετ᾽ αὐτοὺς πολλῷ χρόνῳ γενομένοις (Jos AJ 2083) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com
base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800- 180- p 261-262)
179
destacam e ressignificam determinados elementos mas tambeacutem os apagam No
caso de Josefo o desinteresse pelos elementos ligados agrave tradiccedilatildeo positiva
desqualificada como adulatoacuteria segundo Rajak estaria ligado ao projeto flaviano
de legitimaccedilatildeo do poder o qual priorizou as obras que marcaram os viacutecios do
antecessor674
Tal procedimento foi levado bem a seacuterio por Josefo que reconhece
a existecircncia das narrativas positivas mas natildeo as explora ndash talvez por medo de
perder os benefiacutecios conferidos por Vespasiano ou talvez por acreditar
sinceramente no Principado desse frente ao do seu antecessor
De qualquer forma o importante eacute que o historiador se contradiz
porquanto a busca pela verdade Tucidideana pautava-se na exploraccedilatildeo de ambas
as versotildees da histoacuteria e natildeo soacute de uma Assim a nosso ver Josefo constroacutei uma
imparcialidade aparente a qual se manifesta no seu comedimento ao citar os
episoacutedios da vida Nero675
a comeccedilar pela adoccedilatildeo
[] O proacuteprio Claacuteudio [] morreu e deixou Nero para ser seu
sucessor no Impeacuterio a quem ele havia adotado pelos deliacuterios da sua esposa Agripina a fim de ser seu sucessor embora tivesse um filho seu cujo nome era Britacircnico de Messalina sua ex-esposa e uma filha cujo nome era Otaacutevia que ele casou com
Nero []676
De igual modo a Pseudo-Secircneca Josefo representa a adoccedilatildeo como uma
manobra de Agripina Devido aos ldquodeliacuteriosrdquo da esposa provavelmente ligados agrave
sua ambiccedilatildeo pelo poder Claacuteudio elegeu Nero como sucessor ignorando a
legitimidade de Britacircnico Poreacutem ao contraacuterio do tragedioacutegrafo Josefo natildeo cita os
futuros assassinatos advindos da adoccedilatildeo e nem foca no caraacuteter negativo da matildee de
Nero ele apenas se restringe a reproduzir uma versatildeo jaacute conhecida da adoccedilatildeo
desde a Octauia a de que a matrona era a responsaacutevel pelo feito E o faz sem
atribuir criteacuterios de julgamento a Nero o que nos impossibilita de categorizar o
episoacutedio Por isso analisemos outros
674
RAJAK 2002 p 204 675
MAIER 2013 p 386 676
ὃν ταῖς Ἀγριππίνης τῆς γυναικὸς ἀπάταις ἐπὶ κληρονομίᾳ τῆς ἀρχῆς εἰσεποιήσατο καίπερ υἱὸν
ἔχων γνήσιον Βρεττανικὸν ἐκ Μεσσαλίνης τῆς προτέρας γυναικὸς καὶ Ὀκταουίαν θυγατέρα τὴν ὑπ᾽
αὐτοῦ ζευχθεῖσαν Νέρωνι γεγόνει δ᾽ αὐτῷ καὶ ἐκ Παιτίνης Ἀντωνία (Jos BJ 2249) A traduccedilatildeo
para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928
p 421)
180
Agora [falarei] em relaccedilatildeo aos diversos momentos em que
Nero agiu como louco transtornado pelo seu excesso de poder e riqueza [] assassinou o seu irmatildeo sua esposa sua matildee e depois voltou sua crueldade contra as pessoas proacuteximas a ele e por uacuteltimo ele estava tatildeo distraiacutedo que se tornou ator nos palcos do teatro Eu omito dizer qualquer coisa a mais sobre ele porque existem escritores suficientes em todo lugar para tratar
desses assuntos entatildeo me dedicarei agraves accedilotildees ocorridas em seu governo que envolveram os judeus677
No fragmento Josefo se recusa a fornecer mais detalhes sobre a vida do
soberano mencionando os assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina de
maneira raacutepida e sucinta Como argumenta Schubert ele natildeo utiliza as
oportunidades que tem para criticar Nero dando-nos representaccedilotildees visivelmente
contidas pela mera referecircncia aos casos jaacute bem conhecidos por sua audiecircncia678
Essa relativa indulgecircncia segundo Lefebvre e Mason pode ser explicada a partir
do fato de que o princeps estava ldquofora do campo de interesse de Josefordquo O
historiador afirma que ldquoomitiraacute dizer qualquer coisa a mais sobre o imperadorrdquo
porque desejava concentrar suas observaccedilotildees nos judeus Em outras palavras o
foco do Bellum Judaicum ndash e tambeacutem das Antiquitates Judaicae ndash era contar a
histoacuteria do povo judeu e natildeo a histoacuteria de Nero Eacute por isso que o autor daacute essa
visatildeo raacutepida dos assuntos romanos de 54 aos anos seguintes679
Mesmo assim
Josefo tem o cuidado de referenciar os crimes tradicionalmente atribuiacutedos ao
soberano agrave sua eacutepoca representando-o como Nero fraticida Nero uxoricida e
Nero matricida Eacute provaacutevel que esses trecircs delitos fossem bem conhecidos nos
meios literaacuterios quando ele publicou suas narrativas Gruen adiciona Josefo
seguiu o consenso dos retratos que prevaleciam no periacuteodo dos Flavianos680
De acordo com Barrett Fantham e Yardley o comentaacuterio do historiador
sobre o assassinato de Britacircnico eacute do seu especial interesse devido agrave sua amizade
677
Ὅσα μὲν οὖν Νέρων δι᾽ ὑπερβολὴν εὐδαιμονίας τε καὶ πλούτου παραφρονήσας ἐξύβρισεν εἰς τὴν
τύχην ἢ τίνα τρόπον τόν τε ἀδελφὸν καὶ τὴν γυναῖκα καὶ τὴν μητέρα διεξῆλθεν ἀφ᾽ ὧν ἐπὶ τοὺς
εὐγενεστάτους μετήνεγκεν τὴν ὠμότητα καὶ ὡς τελευταῖον ὑπὸ φρενοβλαβείας ἐξώκειλεν εἰς σκηνὴν
καὶ θέατρον ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν παραλείψω τρέψομαι δὲ ἐπὶ τὰ Ἰουδαίοις κατ᾽ αὐτὸν
γενόμενα (Jos BJ 2250) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego
para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 421) 678
SCHUBERT apud LEFEBVRE 2017 p 29 Isso se estende a outros imperadores Juacutelio-
Claudianos Josefo descreve rapidamente o caraacuteter sombrio e suspeito de Tibeacuterio e a
megalomania assassina de Caliacutegula (Tibeacuterio ndash Jos AJ 1865 18610 Caliacutegula ndash Jos AJ 1881
1911 1925) 679
LEFEBVRE 2017 p 29 MASON 2016 p 25 680
GRUEN 2011 p 156-157
181
com o futuro imperador Tito que foi criado com Britacircnico e supostamente
estava no banquete onde ocorreu o envenenamento681
Nesse caso Josefo deve ter
repetido a versatildeo do evento que circulava na corte no iniacutecio dos anos 90 graccedilas
aos testemunhos do proacuteprio Tito Essa sua atitude de retransmitir algo negativo da
vida de Nero prossegue no texto
Eu omiti dar um relato exato deles porque satildeo bem conhecidos
por todos e satildeo descritos por um grande nuacutemero de autores gregos e romanos ainda assim por causa da conexatildeo dos assuntos e para que minha histoacuteria natildeo seja incoerente acabei de falar rapidamente sobre tudo682
Seus comentaacuterios acerca do imperador entatildeo soacute reforccedilam aquilo que jaacute
circulava uma espeacutecie de vulgata oficial A propoacutesito eacute por meio de tal
perspectiva que ele evoca com brevidade os episoacutedios da revolta de Vindex e o
suiciacutedio de Nero sucedidos em 68683
Nesse iacutenterim soube-se que havia comoccedilotildees na Gaacutelia e que
Vindex juntamente com os homens no poder daquele paiacutes havia se rebelado contra Nero [] Esse relato assim relacionado a Vespasiano animou-o a prosseguir vigorosamente com a guerra []684
681
BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 50 682
πάντα ταῦτα διεξιέναι μὲν ἐπ᾽ ἀκριβὲς παρῃτησάμην ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν καὶ πολλοῖς
Ἑλλήνων τε καὶ Ῥωμαίων ἀναγέγραπται συναφείας δὲ ἕνεκεν τῶν πραγμάτων καὶ τοῦ μὴ
διηρτῆσθαι τὴν ἱστορίαν κεφαλαιωδῶς ἕκαστον ἐπισημαίνομαι (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 149) 683
O suiciacutedio de Nero foi o resultado de um longo processo de enfraquecimento poliacutetico que
comeccedilou em 64 com o incecircndio na Vrbs Tal processo se intensificou em 65 com a Conspiraccedilatildeo
de Pisatildeo cujos envolvidos tentaram colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo homem de famiacutelia
nobre Ao descobrir a insurreiccedilatildeo Nero realizou uma dura repressatildeo mandando assassinar
cavaleiros e senadores Sua posiccedilatildeo jaacute bastante fragilizada aiacute tornou-se ainda mais instaacutevel
quando ele rumou agrave Greacutecia em 66 para participar de concursos artiacutesticos deixando seu liberto
Heacutelio na capital como informante do estado das coisas Enquanto estava laacute Juacutelio Vindex governador da Gaacutelia Lugdunense sublevou-se contra ele promovendo uma revolta na Gaacutelia Para
fortalecer sua rebeliatildeo Vindex convidou Galba governador da Hispacircnia para se aliar agrave revolta
Galba ndash o futuro imperador ndash natildeo hesitou e aceitou o convite Sua entrada no movimento na
concepccedilatildeo de Brandatildeo (2020 p 98) tornou tudo mais seacuterio pois o general ldquo[] era oriundo de
uma linhagem de distintos poliacuteticos do passado tinha sido proacuteximo da casa de Augusto atraveacutes do
favor de Liacutevia prestara grandes serviccedilos e acumulara honras nos Principados de Caliacutegula e
Claacuteudio dera provas de possuir excepcionais dons administrativos e rigor no governo das
proviacutencias []rdquo Ao ouvir as notiacutecias da sublevaccedilatildeo de Vindex e do apoio de Galba Nero retornou
a Roma em 68 Percebendo que o princeps estava isolado Ninfiacutedio Sabino prefeito do Pretoacuterio
juntou-se a Galba com os pretorianos Pouco tempo depois em 8 de junho de 68 o Senado
declarou Nero inimigo puacuteblico Um dia depois fora de Roma ele cometeu suiciacutedio auxiliado por
um de seus libertos (FAVERSANI JOLY 2020 p 92-93) 684
Ἐν δὲ τούτῳ τὸ περὶ τὴν Γαλατίαν ἀγγέλλεται κίνημα καὶ Οὐίνδιξ ἅμα τοῖς δυνατοῖς τῶν
ἐπιχωρίων ἀφεστὼς Νέρωνος περὶ ὧν ἐν ἀκριβεστέροις ἀναγέγραπται Οὐεσπασιανὸν δ᾽ ἐπήγειρεν
182
Agora que Vespasiano retornou agrave Cesareia e estava se preparando com o seu exeacutercito para marchar diretamente para Jerusaleacutem ele foi informado de que Nero estava morto depois de ter reinado treze anos e oito dias Ele abusou de seu poder no seu governo e comprometeu a gestatildeo dos negoacutecios []685
A contenccedilatildeo nos detalhes nos leva a acreditar que os eventos as suas
consequecircncias e os seus personagens eram muito conhecidos por todos686
Isso
tanto pela proximidade temporal dos envolvidos quanto pela produccedilatildeo literaacuteria
acerca dos fatos e pela crescente predominacircncia de uma visatildeo negativa sobre
Nero O proacuteprio Josefo aliaacutes reconhece que existiam assuntos tatildeo conhecidos que
ele nem precisava mais falar sobre eles Isso significa como alega Mason que ele
sabia mais do que estava dizendo687
natildeo obstante preocupa-se outra vez em
citar negativamente o soberano destacando a grande revolta contra ele e o seu
abuso de poder concebendo-o como um Nero antiprinceps No final das contas a
narrativa comedida somada agrave menccedilatildeo aos delitos mais famosos reflete sua
agenda apologeacutetica Flaviana escondida por traz de uma aparente imparcialidade
Eacute essencial demarcarmos ainda outra atitude de Josefo a esquematizaccedilatildeo
Conforme vimos ele constroacutei uma lista sinteacutetica dos crimes de Nero cuja
divulgaccedilatildeo deve ter facilitado a perpetuaccedilatildeo da memoacuteria negativa deste No
estado atual das nossas fontes essa eacute a primeira vez que eacute implementada a
esquematizaccedilatildeo um tipo de organizaccedilatildeo usada pelo historiador em mais de uma
oportunidade como no exemplo a seguir
εἰς τὴν ὁρμὴν τοῦ πολέμου τὰ ἠγγελμένα (Jos BJ 4481) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com
base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 129) 685
Οὐεσπασιανῷ δ᾽ εἰς Καισάρειαν ἐπιστρέψαντι καὶ παρασκευαζομένῳ μετὰ πάσης τῆς δυνάμεως
ἐπ᾽ αὐτῶν τῶν Ἱεροσολύμων ἐξελαύνειν ἀγγέλλεται Νέρων ἀνῃρημένος τρία καὶ δέκα βασιλεύσας
ἔτη καὶ ἡμέρας ὀκτώ περὶ οὗ λέγειν ὃν τρόπον εἰς τὴν ἀρχὴν ἐξύβρισεν πιστεύσας τὰ πράγματα τοῖς
πονηροτάτοις [] (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 147) 686
BRIGHTON 2009 p 54 687
MASON 2016 p 24
183
Claacuteudio Ceacutesar morreu depois de governar por treze anos oito
meses e vinte dias e circulou a notiacutecia de que ele foi envenenado por sua esposa Agripina [] Ela trouxe consigo um filho Domiacutecio [Nero] [] Antes disso [Claacuteudio] por ciuacutemes jaacute havia matado sua esposa Messalina com quem teve seus filhos Britacircnico e Otaacutevia [] Ele tambeacutem casou Otaacutevia com Nero [] adotando-o como seu filho Mas agora
Agripina com medo de que Britacircnico viesse a ser um homem de Estado e sucedesse seu pai no governo desejava apoderar-se do Principado de antematildeo para seu proacuteprio filho [Nero] em vista disso circulou um boato de que ela tinha planejado a morte de Claacuteudio Por conseguinte ela enviou Burro [] imediatamente e com ele os tribunos e tambeacutem os libertos de maior autoridade para trazer Nero ateacute o acampamento e saudaacute-
lo como imperador Quando Nero assumiu o governo ele conseguiu que Britacircnico fosse envenenado de forma que as pessoas natildeo percebessem embora ele tivesse matado a sua matildee publicamente natildeo muito tempo depois [] Ele tambeacutem matou Otaacutevia sua proacutepria esposa e muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra ele [Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo]688
Em poucas palavras uma parte da trajetoacuteria do princeps nos eacute narrada
Todavia tanto aiacute quanto em outros momentos os eventos da sua vida satildeo
comentados de forma breve pela simples menccedilatildeo aos episoacutedios Por exemplo os
assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina satildeo referenciados com as
sinteacuteticas expressotildees ldquoenvenenadordquo ldquomatado a sua matildee publicamenterdquo e ldquomatou
Otaacuteviardquo E a Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo689
eacute apresentada com a pequena frase ldquomatou
muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra elerdquo As
menccedilotildees concisas poreacutem satildeo suficientes para o enquadramento dos episoacutedios nas
688
Δεδοικυῖα δ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα μὴ ὁ Βρεττανικὸς ἀνδρωθεὶς αὐτὸς παρὰ τοῦ πατρὸς τὴν ἀρχὴν
παραλάβοι τῷ δὲ αὐτῆς παιδὶ προαρπάσαι βουλομένη τὴν ἡγεμονίαν τά τε περὶ τὸν θάνατον τοῦ
Κλαυδίου καθάπερ ἦν λόγος διεπράξατο καὶ παραχρῆμα πέμπει τὸν τῶν στρατευμάτων ἔπαρχον
Βοῦρρον καὶ σὺν αὐτῷ τοὺς χιλιάρχους τῶν τε ἀπελευθέρων τοὺς πλεῖστον δυναμένους ἀπάξοντας
εἰς τὴν παρεμβολὴν τὸν Νέρωνα καὶ προσαγορεύσοντας αὐτὸν αὐτοκράτορα Νέρων δὲ τὴν ἀρχὴν οὕτως παραλαβὼν Βρεττανικὸν μὲν ἀδήλως τοῖς πολλοῖς ἀναιρεῖ διὰ φαρμάκων φανερῶς δ᾽ οὐκ εἰς
μακρὰν τὴν μητέρα τὴν ἑαυτοῦ φονεύει ταύτην ἀμοιβὴν ἀποτίσας αὐτῇ οὐ μόνον τῆς γενέσεως ἀλλὰ
καὶ τοῦ ταῖς ἐκείνης μηχαναῖς τὴν Ῥωμαίων ἡγεμονίαν παραλαβεῖν κτείνει δὲ καὶ τὴν Ὀκταουίαν ᾗ
συνῴκει πολλούς τε ἐπιφανεῖς ἄνδρας ὡς ἐπ᾽ αὐτὸν ἐπιβουλὰς συντιθέντας (Jos AJ 2081-3) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800-
180- p 260-262) 689
A Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo foi uma conjura de senadores romanos ocorrida em 65 que tentou
assassinar Nero e colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo descendente da nobreza republicana
que gozava de ampla popularidade A ideia dos senadores era matar o imperador quando ele
estivesse participando de corridas de bigas no Circus Maximus O esquema todavia natildeo deu certo
pois o liberto do senador Flaacutevio Escavino relatou ao princeps os preparativos suspeitos do seu
patrono Descoberta a conjuraccedilatildeo houve uma dura repressatildeo alguns participantes foram
decapitados outros forccedilados a cometer suiciacutedio como Secircneca e Lucano alguns foram exilados e
a minoria foi perdoada eou absolvida (Tac Ann 15 48-74)
184
categorias Nero fratricida Nero uxoricida e Nero matricida Cabe apontar ainda
em concordacircncia com Ehrenkrook que os episoacutedios citados estatildeo vinculados ao
discurso moralizante romano Desde o iniacutecio a maacutequina de legitimaccedilatildeo Flaviana
foi especialmente diligente em promover a impressatildeo de um renascimento da
romanitas tradicional Os valores morais tipicamente associados agrave Repuacuteblica ndash
por exemplo temperanccedila integridade e prudecircncia ndash foram anexados pela nova
famiacutelia imperial ao passo que uma constelaccedilatildeo potente de viacutecios ndash como tirania
luxuacuteria e avareza ndash passou a ser ligada a esse notoacuterio ldquovilatildeordquo dos Juacutelio-
Claudianos Nero Se ele realmente merecia essa reputaccedilatildeo natildeo podemos dizer
mas logo ele se tornou o emblema de tudo que potencialmente minaria e destruiria
a estabilidade do Impeacuterio690
A discussatildeo desenvolvida ateacute aqui mostrou que ao lermos o Bellum
Judaicum e as Antiquitates Judaicae deparamo-nos com cinco categorias de
anaacutelise 1) Nero fraticida referente ao assassinato de Britacircnico 2) Nero
uxoricida relativa ao assassinato de Otaacutevia 3) Nero matricida ligada ao
assassinato de Agripina 4) Nero cruel conectada agrave Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo e 5)
Nero antiprinceps vinculada agrave Revolta de Vindex e ao suiciacutedio de Nero Como
vimos ao relatar tais episoacutedios Josefo pretende seguir o modelo de Tuciacutedides
Esse historiador nos termos de Degan quis ser e foi reconhecido como o pai da
Histoacuteria verdadeira instituindo uma narrativa pautada no desvelar da verdade dos
acontecimentos a qual rejeitava os cacircnones narrativos poeacuteticos691
Ou seja ele
isentava-se de proferir julgamentos natildeo engradecendo ou embelezando a
realidade e nem seduzindo os ouvidos alheios com fabulaccedilotildees conforme o
paradigma de Tuciacutedides692
Josefo tenta seguir ao maacuteximo esses fundamentos
mas soacute os cumpre em parte dando-nos uma narrativa de aparente imparcialidade
Embora natildeo tenha emitido julgamentos extensos a respeito de Nero e de seu
governo ele soacute seleciona os episoacutedios negativos apresentando-os de forma
esquematizada e colocando adjetivos pontuais que evidenciavam o caraacuteter
negativo das ocorrecircncias referenciadas Onde foram parar os eventos positivos
Por que natildeo foram citados mesmo ele tendo reconhecido sua existecircncia Josefo
natildeo leva em consideraccedilatildeo nenhuma composiccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria positiva
690
EHRENKROOK 2011 p 177-178 691
DEGAN 2010 p 26 692
Thuc 1222-4
185
precedente Talvez ele ateacute tenha lido Secircneca e Lucano mas natildeo julga seus elogios
veriacutedicos o suficiente Seus argumentos satildeo todos elaborados a partir de obras
hostis a Nero como os Comentarii de Vespasiano aos quais teve acesso direto
Portanto ele faz uma inuentio orientada tentando persuadir o puacuteblico a aceitar o
seu ponto de vista693
Ele aponta uma versatildeo amplamente aceita que estava sendo
produzida e circulando no tempo em que viveu em Roma ndash lembremo-nos de que
Josefo escreveu o Bellum Judaicum e as Antiquitates Judaicae entre os anos 70 e
90 A versatildeo aceita sobre Nero aiacute jaacute era negativa e por isso eacute apresentada como
verdadeira Qualquer narrativa longe de tal perspectiva eacute descartada
Essa sua atitude relaciona-se perfeitamente com o conceito de retrato Ao
ignorar as representaccedilotildees positivas anteriores do princeps Josefo reforccedila a
tradiccedilatildeo negativa do presente Como um historiador que ambicionava dizer a
verdade ele natildeo soacute daacute autoridade agrave tradiccedilatildeo negativa como tambeacutem a faz parecer
mais verossiacutemil do que a positiva Poreacutem ele natildeo usa a tradiccedilatildeo negativa de modo
extenso mas apenas expotildee os traccedilos que permitiam aos leitores trazerem agrave cena
outros retratos de Nero mais detalhados e guardados na memoacuteria Se Josefo
tivesse se dedicado a ressaltar os traccedilos positivos deveria tecirc-los divulgado mais
minuciosamente para que fizessem sentido em um ambiente onde predominavam
as visotildees negativas Desse modo ele prioriza certos elementos episoacutedios e
tradiccedilotildees interpretativas escolha que gera duas consequecircncias a elevaccedilatildeo de
determinados eventos que a partir daqui seratildeo sempre dignos de memoacuteria a
exemplo dos trecircs assassinatos familiares e a desvalorizaccedilatildeo de outros que eram
muito rememorados e agora passaram despercebidos Como ilustraccedilatildeo o episoacutedio
da ascensatildeo de Nero ndash tatildeo prodigioso no passado e infausto no presente ndash eacute
aludido atraveacutes da exiacutegua indicaccedilatildeo de que Agripina matara Claacuteudio para dar o
trono ao filho
Outro aspecto marcante nas obras de Josefo ndash e que nos permite
compreender melhor essa mecacircnica de produccedilatildeo dos retratos literaacuterios de Nero ndash eacute
que ele dialoga com dois puacuteblicos distintos necessitando para tanto de tornar seu
Nero compreensiacutevel para ambos ao mesmo tempo Natildeo satildeo os romanos que estatildeo
discutindo sua histoacuteria domeacutestica e sim um judeu que estaacute apresentando como a
histoacuteria de seu povo conectou-se agrave de Roma O contraponto eacute produzido de uma
693
KENNEDY 1994 p 4
186
outra oacutetica a qual gerou uma nova perspectiva para o retrato de Nero Josefo
entendia a revolta dos judeus natildeo como uma recusa ao poder romano mas como
uma contraposiccedilatildeo agrave tirania de Nero que saqueou o templo de Jerusaleacutem Logo
natildeo coube a ele debater se Nero era tirano ou natildeo pois isso jaacute estava dado Seu
ponto foi contrapor o poderio romano que gerou a revolta com o poderio romano
atual representado pelos dignos soberanos Vespasiano e Tito Ele daacute ecircnfase
entatildeo ao retrato do Nero tirano que levou os judeus agrave revolta Por outro lado
tambeacutem utiliza esse retrato da tirania para mostrar aos judeus que o poderio
romano natildeo era Nero Usando o contraste dominante em seu tempo ele projeta
esse Nero tirano como o motor de desobediecircncia que natildeo existia mais Agora no
novo contexto a revolta perde o sentido e natildeo deve mais existir Nesse ponto o
mecanismo de allelopoiesis eacute claro Josefo mescla as temporalidades e projeta no
presente uma conjunccedilatildeo que daacute sentido simultaneamente ao presente e ao
Principado de Nero ndash ela daacute sentido tanto para a revolta dos judeus quanto para a
derrota tanto para a tirania do princeps quanto para a legitimidade dos Flaacutevios
Por uacuteltimo consideramos que as escolhas metodoloacutegicas de Josefo natildeo
devem ser separadas da sua posiccedilatildeo sociopoliacutetica Natildeo deixemos de lado o fato de
que o historiador pagava um tributo de gratidatildeo a dois imperadores sucessivos
Vespasiano e Tito o que inseriu o seu texto em um processo complexo de
redaccedilatildeo tornando os Flaacutevios seus patrocinadores e seus leitores ao mesmo
tempo694
A relaccedilatildeo com os principes significava que a ldquoverdaderdquo histoacuterica de
qualquer narrativa seria escrita visando ao bem da nova dinastia e natildeo ao bem dos
que amavam a verdade695
E nada melhor para produzir o ldquobemrdquo dos novos
governantes do que produzir o ldquomalrdquo do falecido soberano
Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae
Essa fabricaccedilatildeo da imagem negativa neroniana tambeacutem se faz presente nas
obras de Marcial e Estaacutecio uacuteltimos autores a serem analisados neste capiacutetulo O
Liber Spectaculorum os Epigrammata e as Siluae condenam o princeps por
quatro feitos o conflito contra os partas o assassinato de Agripina o incecircndio de
Roma e a construccedilatildeo da Domus Aurea Poreacutem antes de detalharmos essas
694
HADAS-LEBEL 1991 p 45 695
Jos BJ 1Pr12
187
condenaccedilotildees eacute importante apresentarmos os dados biograacuteficos dos autores A
opccedilatildeo por analisaacute-los em conjunto adveacutem do fato de que foram contemporacircneos e
podem ter tido os mesmos patronos696
Marcos Valeacuterio Marcial nasceu em Biacutelbilis na Hispacircnia Tarraconense
entre os anos 38 e 41697
Desde muito jovem recebeu uma excelente educaccedilatildeo
devido agraves preocupaccedilotildees dos seus pais Fronto e Flacila que o colocaram sob a
tutoria de um gramaacutetico e de um retoacuterico698
Em 64 por volta dos 24 anos de
idade foi enviado agrave capital do Impeacuterio para completar sua educaccedilatildeo699
Ao chegar
laacute foi acolhido pela famiacutelia espanhola mais conspiacutecua de Roma a de Secircneca que
o introduziu nos ciacuterculos literaacuterios de Nero A relaccedilatildeo com os Aneus somada agrave
inserccedilatildeo na corte imperial facilitou a divulgaccedilatildeo dos seus talentos poeacuteticos
fazendo com que ele conquistasse o auxiacutelio de patronos importantes700
Todavia a
descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo por Nero atingiu o filoacutesofo e outros artistas da
corte levando Marcial a perder seus principais suportes financeiros O golpe de
maacute sorte fecirc-lo comeccedilar a redigir poemas curtos para os patronos que conseguiu
reunir isto eacute ele retribuiacutea o apoio com versos elogiosos701
Tempos depois no
ano 80 publicou 30 epigramas intitulados Liber Spectaculorum nos quais
descreveu os espetaacuteculos ofertados pelo imperador Tito no receacutem-concluiacutedo
Anfiteatro Flaviano702
Segundo Conte tal publicaccedilatildeo deve ter lhe dado
notoriedade pois seus escritos seguintes foram todos patrocinados por Tito e
mais tarde por Domiciano703
Com a ajuda imperial elaborou 12 livros de
epigramas os Epigrammata escritos e gradualmente divulgados de 86 a 102 bem
como compocircs os epigramas Xenia e Apophoreta que hoje integram os livros 13 e
696
DOMINIK 2016 p 412 MOZLEY 1967 p viii 697
Mart 10103 Esse e os demais dados biograacuteficos chegaram ateacute noacutes atraveacutes de seus proacuteprios
versos Para detalhes acerca da vida e das publicaccedilotildees de Marcial cf SULLIVAN 1991 p 1-55 698
Mart 973 699
Mart 10103 700
De acordo com Saller (1989 p 49) trecircs aspectos caracterizavam uma relaccedilatildeo de patrocinium
deveria existir uma troca reciacuteproca de bens e serviccedilos entre patrono e cliente deveria haver uma
relaccedilatildeo pessoal entre ambos e tal relaccedilatildeo deveria ser assimeacutetrica ou seja patrono e cliente
deveriam ser membros de categorias sociais distintas 701
Mart 1117-118 702
Esses epigramas foram compostos de forma independente mas hoje integram o livro dos
Epigrammata Cabe adicionar tambeacutem que o nome Liber Spectaculorum foi dado agrave coleccedilatildeo de
epigramas posteriormente (SHACKLETON BAILEY 1993 p 2) 703
CONTE 1999 p 505
188
14 dos Epigrammata704
O favor dos Flavianos tambeacutem rendeu a Marcial trecircs
outras conquistas significativas i) as nomeaccedilotildees para o tribunatus semestris
(Tribunato de Seis Meses)705
e para um provaacutevel tribunato militar ii) a elevaccedilatildeo
ao status de equestre e iii) a dispensa do ius trium liberorum (Direito dos Trecircs
Filhos)706
No ano 100 Marcial decidiu deixar Roma e retornar a Biacutelbilis no
desejo de viver seus uacuteltimos dias sossegado Na proviacutencia encontrou a paz que
buscava mas isso natildeo o impediu de sentir nostalgia da vida turbulenta da Vrbs
Saudoso ele faleceu por volta de 104 deixando-nos uma quantidade expressiva
de versos707
Por sua vez Puacuteblio Papiacutenio Estaacutecio nasceu em Naacutepoles na Campacircnia
entre os anos 40 e 50708
Filho de um prestigiado grammaticus e professor de
poesia foi instruiacutedo nos mais altos padrotildees da composiccedilatildeo poeacutetica heleniacutestica
709
ganhando precircmios quando ainda era bem jovem710
Apoacutes a morte do pai em 69
mudou-se para Roma e assumiu a poesia como profissatildeo sobrevivendo de forma
modesta e ignota como poeta-cliente Felizmente em 83 sua vida sofreu uma
reviravolta a escrita da obra Agave um necroloacutegio para a morte de Paacuteris ndash amante
da imperatriz Domiacutecia ndash proporcionou-lhe renome gerando convites para recitar
seus versos em jantares ilustres711
A partir daiacute recebeu a proteccedilatildeo de Domiciano
e publicou os cinco livros das Siluae de 92 em diante os 12 cantos da Thebais
(Tebaida) em 93 e a Achilleis (Aquileida) em 95 poema eacutepico inacabado do
704
LEITE 2003 p 39 O arranjo atual das obras completas de Marcial possivelmente eacute o de uma
ediccedilatildeo antiga feita apoacutes a morte do autor (RIMELL 2009 p 5) 705
De acordo com Marquardt (apud ALLEN JR et al 1970 p 346) os tribuni semestres
provavelmente serviam por um ano mas ldquosoacute no papelrdquo pois na verdade o seu desempenho real
durava seis meses embora recebessem um ano inteiro de salaacuterio Essa magistratura era conferida
pelo imperador agravequeles que natildeo pretendiam seguir uma carreira militar 706
ALLEN JR et al 1970 p 345-348 Em 18 aC Augusto promulgou a lei de casamento Lex Iulia de Maritandis Ordinibus cujo propoacutesito era regular o matrimocircnio e o divoacutercio na sociedade
romana Entre as vaacuterias sanccedilotildees da lei estava o ius trium liberorum que conferia aos chefes de
famiacutelia com trecircs filhos ou mais incentivos fiscais e prioridade na obtenccedilatildeo de magistraturas
(EDWARDS 2002 p 39) Os indiviacuteduos que natildeo os tivessem por quaisquer motivos poderiam
pedir diretamente ao imperador a dispensa do ius trium liberorum (STEINWENTER 1919 p
1281-1285) No caso de poetas a dispensa era concedida caso eles redigissem uma obra que o
princeps julgasse ter alguma importacircncia esteacutetica eou poliacutetica como aconteceu com Marcial 707
SHACKLETON BAILEY 1993 p 4 708
Stat Silv 3512-13 As informaccedilotildees biograacuteficas sobretudo as relacionadas agrave sua famiacutelia e agrave
sua infacircncia satildeo deduzidas de relatos feitos pelo proacuteprio autor ao longo das Siluae Para mais
informaccedilotildees sobre a vida de Estaacutecio cf NAUTA 2002 p 195-203 709
Stat Silv 53209-213 710
Stat Silv 53225-230 711
JUNIOR 2016 p 80
189
qual temos apenas o primeiro e o segundo livros712 Estaacutecio provavelmente
faleceu na capital do Impeacuterio no ano 96 pouco antes de Domiciano713
Com base nas biografias podemos ver que ambos os poetas nasceram
viveram e morreram no mesmo periacuteodo Dominik inclusive defende a
possibilidade de eles terem participado da mesma rede de relaccedilotildees intelectuais e
clientelistas da dinastia Flaviana714
Natildeo eacute agrave toa que os dois divulgaram reflexotildees
similares acerca das praacuteticas sociais e culturais durante o governo dos Flavii ndash
opiniotildees que embora sejam semelhantes satildeo apresentadas atraveacutes de gecircneros
literaacuterios distintos Por exemplo no Liber Spectaculorum e nos Epigrammata
Marcial relata cenas da Roma imperial utilizando o gecircnero poeacutetico
epigramaacutetico715
isto eacute poemas de circunstacircncias com versos curtos716
cujo
objetivo era perpetuar a memoacuteria de um acontecimento importante Segundo
Agnolon e Leite um epigrama poderia incluir mateacuterias vaacuterias em discurso
obsceno e agudo e nele eram garantidas sempre a brevidade e a condensaccedilatildeo
Marcial procurava explorar as possibilidades do epigrama em todos os aspectos
ou seja preocupava-se em explorar sua ampla gama temaacutetica e estendecirc-la ainda
mais acrescentando uma tonalidade satiacuterica e jocosa717
Em outras palavras
Marcial descreve Roma e os vaacuterios indiviacuteduos que ocupavam os seus espaccedilos com
olhar malicioso desvelando os piores viacutecios da natureza humana (vaidade
avareza petulacircncia entre outros)718
Ele
712
MOZLEY 1967 p viii 713
GIBSON 2006 p xvii 714
DOMINIK 2016 p 412 Eacute intrigante que apesar dos perfis literaacuterios parecidos e do fato de
suas vidas terem se entrecruzado nenhum menciona o outro Esse silecircncio levou alguns criacuteticos
como Martin (1939 p 461-462) a suspeitarem de uma hostilidade entre eles 715
Originalmente epigrama em grego (ἐπί-γραφὼ) significava ldquoqualquer palavra ou marca inscrita em artefatos oferendas votivas sepulturas monumentos ou edifiacutecios representando o proprietaacuterio
o criador o doador o dedicataacuterio ou apenas a proacutepria mensagemrdquo (OCGD 2002 p 126) Na
Greacutecia arcaica entatildeo o epigrama era uma composiccedilatildeo de tom formal que tratava de temas seacuterios
Poreacutem durante o periacuteodo alexandrino ganhou os temas amorosos e neles se expandiu ateacute que
mais tarde jaacute em Roma teve em Marcial o mais alto grau de apuro na teacutecnica e na arte do
epigrama satiacuterico e jocoso razatildeo dessa fama que acompanha a forma epigrama desde entatildeo
(LEITE 2013 p 63-66 AGNOLON 2010 p 74-75) Para uma discussatildeo mais longa sobre a
histoacuteria do epigrama antigo e o lugar de Marcial nele cf LAURENS 1965 p 315-341 716
Mart 9502-3 717
AGNOLON 2010 p 75-76 p 26 LEITE 2013 p 79 Leite (2013 p 19) inclusive comenta
que a escolha de Marcial pelo epigrama pelas invectivas satiacutericas e pela linguagem obscena
tornou-o alvo de incompreensatildeo e de acusaccedilotildees diversas incoerente friacutevolo preconceituoso
oportunista inoacutecuo inferior 718
CONTE 1999 p 508
190
observa o espetaacuteculo da realidade e aqueles que ocupam seu
palco com um olhar distorcido Acentua seus traccedilos grotescos e os reduz a tipos recorrentes (parasitas vaidosos [] etc) Eacute uma saacutetira social sem aspereza e ele prefere o riso agrave indignaccedilatildeo com [] o absurdo do mundo em que se encontra719
Sua poesia eacute mordaz divertida e irreverente muito diferente da poesia de
Estaacutecio que se concentra nos aspectos mais dignos e edificantes da cultura
romana Nas Siluae720
o autor discorre acerca da vida na Vrbs usando poemas
curtos de ocasiatildeo compostos por encomenda para eventos especiacuteficos a exemplo
de aniversaacuterios casamentos despedidas e viagens721
Em vista disso seus versos
sempre trazem um destinataacuterio em geral membros da elite como nobres patronos
e o princeps os quais satildeo louvados por suas riquezas e realizaccedilotildees Sua obra
entatildeo possui um tom elogioso marcante fugindo dos relatos sobre os viacutecios da
sociedade romana Como um poeta que descreve a sociedade de seu tempo
Estaacutecio se distancia de Marcial ao evitar a grosseria e sua poesia reflete a
sensibilidade de seu caraacuteter722
Resumindo estamos lidando com leituras de mundo bem distintas a de
Marcial viacutevida satiacuterica e preocupada com a falibilidade da existecircncia humana e a
de Estaacutecio reverente em relaccedilatildeo a seus personagens e ao universo social da
elite723
Isso natildeo quer dizer que essas leituras natildeo tenham um ponto de
convergecircncia ambas satildeo produtos da era Flaviana O epigrama e a poesia
ocasional transmitem os valores romanos atraveacutes dos vislumbres eou dos
julgamentos dos autores que avaliam os gostos esteacuteticos o status o caraacuteter e as
virtudes tradicionais presentes nos agentes sociais de sua eacutepoca Ambas tambeacutem
culpabilizam Nero por determinadas atrocidades expondo julgamentos muito
negativos Ele eacute visto de modo bastante tiracircnico como o exemplo de mau
imperador Vejamos primeiramente os episoacutedios mencionados por Marcial a
719
CONTE 1999 p 508 720
A palavra Siluae significa literalmente ldquobosquerdquo ldquovegetaccedilatildeo rasteira ou terra natildeo cultivadardquo
Metaforicamente denota uma variedade profusa ou mateacuteria-prima incluindo um esboccedilo (OCD
2012 p 1367) Para Wray (2007 p 128) este uacuteltimo significado eacute o que mais se relaciona com a
obra por se aproximar do gecircnero de poemas de encomenda 721
NAGLE 2004 p 3-4 Em sua tese de Doutorado Carvalho (2018 p 24-53) localiza as Siluae
como subgecircnero literaacuterio pertencente agrave liacuterica 722
GIBSON 2006 p xiv 723
DOMINIK 2016 p 431
191
saber o assassinato de Agripina e a construccedilatildeo da Domus Aurea Comecemos
pelo assassinato
Enquanto Ceriacutelia uma matildee navegava de Baulos para Baias encontrou a morte afogada pelo crime de um mar agitado Aacuteguas que gloacuteria vocecircs perderam Uma vez embora ordenado vocecircs recusaram a Nero essa coisa monstruosa724
A referecircncia ao delito feita por Marcial nos leva a refletir sobre duas
questotildees Em primeiro lugar ele natildeo revela detalhes sobre a forma como o
homiciacutedio de fato ocorreu ele somente alude ao assassinato de Agripina
planejado por meio de um naufraacutegio a partir da menccedilatildeo ao afogamento de Ceriacutelia
Vale lembrar que ateacute o momento o naufraacutegio de Agripina soacute apareceu na
Octauia o que talvez indique a leitura da trageacutedia por Marcial ou que ele e
Pseudo-Secircneca conheciam fontes em comum que divulgaram o episoacutedio Essa eacute a
hipoacutetese mais provaacutevel pois tal elemento da narrativa (o afogamento) seraacute
apresentado tambeacutem em fontes posteriores como veremos Se tal hipoacutetese estiver
correta observamos o mesmo mecanismo de simples alusatildeo aos malfeitos de Nero
em Josefo Nesse sentido Marcial ao se apoiar em uma tradiccedilatildeo criacutetica
consolidada sob os Flaacutevios natildeo tem que divulgar detalhes sobre a fracassada
tentativa de matar Agripina com um barco destinado a naufragar A mera menccedilatildeo
ao barco e ao naufraacutegio jaacute bastavam para compor a imagem do Nero matricida
Em segundo lugar em concordacircncia com Ginsberg e Lefebvre o poeta critica
tanto Nero quanto sua matildee dado que recrimina o princeps por ter realizado uma
ldquocoisa monstruosardquo (o matriciacutedio) e censura o mar por ter perdido a gloacuteria de
matar Agripina Ou seja Marcial ao mesmo tempo condena o Nero matricida e
sugere que Agripina merecia morrer725
Tal imagem negativa de Agripina emergiu
tambeacutem na Naturalis Historia quando Pliacutenio o Velho retratou o homiciacutedio como
algo merecido pois a matrona trouxera Nero ao mundo726
Isso nos fornece
subsiacutedios para cogitarmos o iniacutecio da construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo negativa acerca
de Agripina embora natildeo seja esse o foco da tese
724
Dum petit a Baulis mater Caerellia Baias occidit insani crimine mersa freti gloria quanta
perit vobis haec monstra Neroni nec iussae quondam praestiteratis aquae (Mart 463) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton
Bailey (1993 p 331) 725
GINSBERG 2019 p 37-38 LEFEBVRE 2017 p 176 726
Plin Nat 2246
192
Outro episoacutedio referenciado por Marcial eacute a construccedilatildeo da Domus Aurea
No Liber Spectaculorum ele recrimina o soberano pela apropriaccedilatildeo indevida dos
espaccedilos puacuteblicos citadinos para a edificaccedilatildeo do Palaacutecio privado
Onde o colosso estrelado vecirc as constelaccedilotildees de perto []
uma vez brilhavam os odiosos corredores de um monarca cruel e em toda Roma havia uma uacutenica casa Onde se ergue diante dos nossos olhos o [] Anfiteatro foi outrora o lago de Nero Onde admiramos os banhos quentes [] uma altiva extensatildeo de terra roubou dos pobres suas moradias Onde a colunata claudiana se desdobra em sua sombra ampla ficava a parte mais externa do palaacutecio727
A Domus Aurea eacute visivelmente caracterizada como um empreendimento
odioso erigido por um ldquomonarca cruelrdquo que roubou dos pobres miseraacuteveis suas
casas uma construccedilatildeo tatildeo grande que tomou conta da capital dando a impressatildeo
de que em toda Roma soacute existia uma uacutenica casa visto que a Vrbs havia se
transformado em uma cidade-palaacutecio728
Aqui temos uma criacutetica vigorosa agrave
vaidade de Nero e ao seu individualismo pois o seu complexo residencial nos
termos de Sullivan alojava ldquoum no lugar de muitosrdquo729
Para Lefebvre ao frisar a
ocupaccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico para a construccedilatildeo de uma residecircncia privada Marcial
sublinha fortemente o escacircndalo do projeto eacute um sinal claro de tirania A Domus
Aurea eacute representada como o siacutembolo por excelecircncia de um poder tiracircnico que
subordina egoisticamente o espaccedilo da cidade aos desejos de um soacute homem730
Lembremo-nos de que anteriormente Pliacutenio o Velho jaacute havia reclamado ldquoo
Palaacutecio Dourado de Nero rodeava a nossa cidaderdquo731
A criacutetica entatildeo eacute reforccedilada
por Marcial que aponta o caraacuteter autoritaacuterio do soberano enquanto ridiculariza os
ldquoodiosos corredoresrdquo da sua casa Cabe frisar que esse eacute um dos poucos trechos no
qual o epigramista se delonga na tratativa do assunto fato que revela sua real
insatisfaccedilatildeo com a habitaccedilatildeo imperial
727
Hic ubi sidereus propius videt astra colossus et crescunt media pegmata celsa via invidiosa
feri radiabant atria regis unaque iam tota stabat in urbe domus hic ubi conspicui venerabilis
Amphitheatri erigitur moles stagna Neronis erant hic ubi miramur velocia munera thermas
abstulerat miseris tecta superbus ager Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras ultima
pars aulae deficientis erat (Mart Sp 21-10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 13-15) 728
RIMELL 2009 p 117-118 729
SULLIVAN 1991 p 8-9 730
LEFEBVRE 2017 p 126 731
Plin Nat 3316
193
Ainda na mesma passagem o poeta tece elogios a Tito princeps
munificente que desmantelou a Domus Aurea e abriu seu espaccedilo ao usufruto
comum ldquoRoma foi restaurada a si mesma e sob seu governo Ceacutesar os prazeres
que pertenciam a um mestre senhor agora pertencem ao povordquo732
Notamos que o
local antes reservado a divertimentos privados agora traz termas quentes e o
Anfiteatro Flaviano tudo aberto ao populus733
Como alega Gunderson esse passa
a ser o lugar onde as velhas e as maacutes maravilhas da casa de Nero que todos viam
e odiavam foram transformadas em novos espetaacuteculos puacuteblicos oferecidos e
apreciados por todos734
Tito eacute o liacuteder magnacircnimo que substituiu o edifiacutecio do ldquoum
no lugar de muitosrdquo pelo edifiacutecio dos ldquomuitos no lugar de umrdquo735
Essa
contraposiccedilatildeo entre os imperadores na visatildeo de Rosso eacute na verdade uma
antiacutetese aparente criada por Marcial O fato de Nero ter transformado a cidade em
seu palaacutecio pessoal eacute que faz a restauraccedilatildeo desse espaccedilo feita pelos Flavianos se
tornar algo excepcional Ou seja como os Flavianos queriam fortalecer a ideia de
que seu programa de urbanismo era uma restitutio da Domus Aurea neroniana
eles passaram a retratar o projeto de Nero como algo ruim Dessa maneira a
antiacutetese que eacute sistemaacutetica e perfeita eacute tambeacutem complementar o Tito munificente
soacute existiria se o Nero egoiacutesta existisse Um precisava do outro Nesse caso Rosso
afirma ndash e aqui concordamos com ele ndash que seria aconselhaacutevel ldquo[] inverter a
grade de leitura e considerar que o ponto de vista flaviano estaacute em primeiro lugar
O Nero desta tradiccedilatildeo eacute uma criaccedilatildeo ad hoc forjada no negativo e de acordo com
as intenccedilotildees da nova dinastiardquo736
Eacute importante adicionar que o Anfiteatro Flaviano foi e ainda eacute uma
conquista arquitetocircnica colossal De acordo com Jones e Zanker a construccedilatildeo
tinha cerca de 50 metros de altura com dois andares de colunas doacutericas e jocircnicas e
um terceiro andar com arcadas coriacutentias Possuiacutea capacidade para 50 mil
espectadores os quais ficavam dispostos nas arquibancadas segundo suas
categorias sociais O piso da arena era de madeira cobrindo um labirinto de tocas
732
reddita Roma sibi est et sunt te praeside Caesar deliciae populi quae fuerant domini (Mart
Sp 211-12) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Shackleton Bailey (1993 p 15) 733
Para uma discussatildeo detalhada sobre os conceitos de publicus e priuatus no periacuteodo imperial cf
WINTERLING 2009 p 58-76 734
GUNDERSON 2003 p 652 735
SULLIVAN 1991 p 8-9 736
ROSSO 2008 p 56-57
194
de animais elevadores e ralos de drenagem737
Para a inauguraccedilatildeo Tito ofereceu
diversas atraccedilotildees por 100 dias houve lutas de gladiadores uma batalha naval em
um lago artificial e a exposiccedilatildeo de milhares de animais de procedecircncia exoacutetica738
A descriccedilatildeo desses espetaacuteculos eacute feita por Marcial em detalhes no Liber
Spectaculorum no qual ele intitula o monumento de ldquomaravilha do Mundo
Antigordquo739
denominaccedilatildeo a nosso ver conferida natildeo soacute pelo fato de o complexo
ser majestoso e puacuteblico como tambeacutem por contrastar o Principado de Nero com o
de Tito O Anfiteatro representa ali a fronteira entre o passado vicioso e o presente
virtuoso entre o dominus Nero e o praeses Tito E ao mesmo tempo significa a
ligaccedilatildeo entre eles pois as obras dos Flaacutevios ganham sentido por sua comparaccedilatildeo
com o projeto ediliacutecio de Nero e vice-versa A Domus Aurea e seu
desaparecimento natildeo satildeo a mera destruiccedilatildeo de uma monstruosidade e sim a
necessidade de colocar em seu lugar algo que natildeo servisse a um tirano mas ao
populus algo que justamente por servir a muitos seria ainda mais grandioso A
grandiosidade das obras dos Flaacutevios deve superar as de Nero assim como suas
virtudes devem superar os viacutecios do tirano tudo imponente e memoraacutevel
constituiacutedo um em razatildeo do outro em simultaneidade como jaacute argumentou
Rosso740
Marcial coloca o Nero construtor e o Nero vaidoso preocupados soacute com
a sua cidade-palaacutecio em oposiccedilatildeo ao benevolente Tito interessado em erigir uma
Roma para todos741
Percebemos assim que a atividade arquitetocircnica dos
imperadores eacute usada pelo poeta como mecanismo de manipulaccedilatildeo da memoacuteria
cujo intento eacute projetar os Flavii como benfeitores puacuteblicos notaacuteveis em oposiccedilatildeo
ao autoindulgente Nero742
Natildeo eacute agrave toa que em outra passagem o epigramista
designa o ano da morte de Nero como o ldquogrande ano sagrado em que o mundo foi
737
JONES 1992 p 93 ZANKER 2010 p 70 Juntamente ao Anfiteatro existiam ainda outras
estruturas a norte havia as Termas de Tito inauguradas com o Anfiteatro em 80 a leste estava o
Ludus Magnus construiacutedo por Domiciano para oferecer aos gladiadores acesso subterracircneo agrave
arena principal e entre o final da Via Sacra e a entrada leste do Foacuterum Romano ficava o Arco de
Tito uma das rotas de acesso ao proacuteprio Anfiteatro Todas as edificaccedilotildees ligadas ao Anfiteatro
preenchiam uma aacuterea consideraacutevel do centro de Roma (MILLAR 2005 p 119-120) Para dados
detalhados cf DIMACCO 1971 738
Mart Sp 8-13 739
Mart Sp 18 740 ROSSO 2008 p 56-57 741
ROMAN 2010 p 96 DIAS 2019 p 122-123 742
ldquoO caraacuteter propagandista do Liber Spectaculorum eacute inegaacutevel []rdquo (SULLIVAN 1991 p 8)
195
libertadordquo haja vista que no seu governo os espaccedilos puacuteblicos eram destruiacutedos e
sob o Principado de Tito eram construiacutedos743
O curioso eacute que a ferocidade utilizada por Marcial para criticar o egoiacutesmo
de Nero e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea natildeo eacute usada para mencionar as termas
erigidas pelo falecido soberano em 62 Ao contraacuterio o poeta elogia os banhos
puacuteblicos ldquoO que eacute pior do que Nero O que eacute melhor do que as termas de
Nerordquo744
comenta que as pessoas relaxavam laacute ldquo[Ele] [] relaxa nos banhos
quentes de Nerordquo745
aconselha os indiviacuteduos a conservarem tais locais ldquo[]
Cuide dos banhos de Nerordquo746
e tece mais outros elogios aos banhos quentes do
princeps747
Ateacute mesmo Estaacutecio elogia o local ldquo[] Algueacutem que se banhou
ultimamente nos banhos de Nero se recusaria a se banhar aqui outra vezrdquo748
As
thermae Neronianae foram os segundos balneares puacuteblicos de Roma
Localizavam-se no Campus Martius natildeo muito longe do Panteatildeo e das antigas
termas de Agripa ocupando uma aacuterea retangular de cerca de 190 metros por
120749
Segundo Ashby e Platner escavaccedilotildees diversas trouxeram agrave luz vestiacutegios
arquitetocircnicos da grande beleza desses locais entre eles quatro colunas de granito
vermelho capiteacuteis de maacutermore branco fragmentos de colunas de poacuterfiro granito
cinzento e uma enorme bacia para fonte de 67 metros de diacircmetro recortada de
um uacutenico bloco de granito vermelho750
Estamos falando entatildeo de um espaccedilo
extremamente luxuoso e custoso que agradava agrave populaccedilatildeo da Vrbs ndash tatildeo luxuoso
e custoso quanto a proacutepria Domus Aurea E por que Marcial condena somente o
743
postquam bis senis ingentem faseibus annum rexerat asserto qui saeer orbe fuit (Mart 7639-
10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Shackleton Bailey (1993 p 129) 744
quid Nerone peius quid thermis melius Neronianis (Mart 7344-5) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p
105) Yeguumll (1942 p 30) esclarece que os banhos puacuteblicos eram parte integrante de um dia de
muitos que viviam na Roma antiga Aleacutem de suas funccedilotildees higiecircnicas normais eles forneciam instalaccedilotildees para esportes e recreaccedilatildeo Sua natureza puacuteblica criava o ambiente adequado ndash muito
parecido com um clube da cidade ou um centro comunitaacuterio ndash para relaccedilotildees sociais variando de
fofocas de bairro a discussotildees de negoacutecios Ademais os banhos incorporavam bibliotecas salas de
aula colunatas e passeios assumindo um caraacuteter como o ginaacutesio grego 745
Neronianas is refrigerat thermas (Mart 3254) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base
na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 219) 746
et thermas tibi have Neronianas (Mart 2488) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base
na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 169) 747
Mart 10483-4 12835 748
Neronea nee qui modo lotus in unda hie iterum sudare neget (Stat Silv 1562-63) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton
Bailey (2015 p 63) 749
COARELLI 2007 p 293-296 750
ASHBY PLATNER 1929 p 531-532
196
Palaacutecio e natildeo as termas A nosso ver porque o Palaacutecio proporcionava um
usufruto privado as termas um usufruto comum O problema natildeo era o luxo ou o
gasto despendido na construccedilatildeo dos edifiacutecios mas a quantidade de pessoas que
atendiam e agradavam Fagaacuten e Graccedila inclusive afirmam que os banhos do
princeps caracterizados por seu requinte e excelente niacutevel de aquecimento
interno eram os preferidos da populaccedilatildeo de Roma Menos frequentados eram os
banhos receacutem-construiacutedos por Tito situados nas proximidades do anfiteatro
Flaacutevio751
Dyson e Prior esclarecem que a preferecircncia estava vinculada natildeo apenas
ao luxo mas tambeacutem ao fato de as termas serem maiores e mais antigas o que
significava que jaacute faziam parte do cotidiano diaacuterio das pessoas haacute tempos752
Cabe
rememorar que Calpuacuternio Siacuteculo na seacutetima Eacutecloga teceu louvores ao Anfiteatro
erigido pelo soberano e aos espetaacuteculos ofertados laacute753
Isso nos leva a perceber
que as criacuteticas ao Nero construtor soacute emergiam quando ele agradava a si mesmo e
se esquecia dos demais habitantes da cidade
Por outro lado tais elogios embora pontuais permitem-nos compreender
uma questatildeo sobre a qual sempre chamamos atenccedilatildeo a inuentio era criada a partir
do material disponiacutevel que de algum modo jaacute era conhecido pelos ouvintes O
repertoacuterio negativo sobre Nero durante o governo dos Flaacutevios vai estar cada vez
mais dominado por referecircncias negativas sobretudo quando se aproximava do
ciacuterculo imperial Em outros ciacuterculos poreacutem como nos populares as visotildees
positivas continuaram circulando E a permanecircncia de algumas das construccedilotildees
neronianas na Vrbs a exemplo das termas e das vaacuterias melhorias feitas na cidade
apoacutes o incecircndio ajudava na manutenccedilatildeo dessas visotildees era muito difiacutecil relegar ao
esquecimento os monumentos que permeavam a vida e a memoacuteria das pessoas
Logo o que o trabalho de Marcial nos mostra eacute que a criaccedilatildeo do retrato do
princeps natildeo foi feita livremente no presente ela foi feita com base no passado o
qual natildeo podia ser modificado sem limites Isso significa dizer que o presente
interferia no modo como se via o passado no entanto ndash e esse eacute outro ponto que
buscamos evidenciar ndash por allelopoiesis o passado tambeacutem dava elementos para
se pensar o presente
751
FAGAN 2002 p 14-21 GRACcedilA 2004 p 120-121 752
DYSON PRIOR 1995 p 251-252 753
Cal Ecl 723-56
197
Ainda sobre as termas de Nero haacute outro ponto que precisa ser discutido
No terceiro livro dos Epigrammata Marcial afirma ldquoDiga-me Musa o que meu
amigo Cano Rufo anda fazendo [] Ele estaacute se banhando nas aacuteguas mornas de
Tito754
ou [] nos banhos do libertino Tigelinordquo755
Como jaacute dissemos Ofocircnio
Tigelino era o prefeito da Guarda Pretoriana desde o ano 62 quando Burro
faleceu e Secircneca pediu afastamento da corte imperial756
Agrave eacutepoca ele era visto
como um indiviacuteduo cruel devasso e sem nenhum princiacutepio moral ou poliacutetico757
Flaacutevio Josefo inclusive alega no Bellum Judaicum que Nero confiou a
administraccedilatildeo dos assuntos puacuteblicos ao infeliz e vil Tigelino758
Em adiccedilatildeo como
comentamos no primeiro capiacutetulo da tese uma parte da Historiografia moderna ndash
situada no grupo Nero fantoche ndash acredita que Nero era comandado por tal sujeito
e que o periacuteodo ruim do seu Principado comeccedilou quando ele colocou Tigelino agrave
frente dos negoacutecios Desse modo sua personalidade infame influenciava
negativamente o princeps direcionando-o aos piores viacutecios da natureza
humana759
Em vista disso a fala de Marcial torna-se bastante sintomaacutetica Seu
objetivo parece ser expropriar algo positivo construiacutedo pelo soberano e atribuir a
ideia a Tigelino ou seja representar Nero como algueacutem incapaz ateacute mesmo de
melhorar a proacutepria cidade O propoacutesito eacute esvaziar qualquer meacuterito do imperador
figurando-o como um governante incapaz de ter boas iniciativas As coisas bem-
feitas por ele natildeo foram planejadas por ele mas por seu auxiliar que por
conseguinte controlava a ele e ao seu Impeacuterio Portanto aqui haacute um vigoroso
ataque poliacutetico ao princeps juntamente a uma tentativa de desmerecer o seu
programa arquitetocircnico ndash como bem resume Darwall-Smith760
a loacutegica foi voltar
o seu projeto contra ele mesmo761
754
De acordo com Ashby Platner (1929 p 533-534) e Coarelli (2007 p 186-187) as Thermae Titi foram inauguradas por Tito no ano 80 juntamente com o Anfiteatro Flaacutevio Elas ficavam bem
proacuteximas ao Anfiteatro e dentro do recinto da Domus Aurea de Nero ocupando uma aacuterea quase
retangular de cerca de 105 metros por 120 755
Die Musa quid agat Canius meus Rufus [] Titine thermis an lavatur Agrippae an impudici
balneo Tigillini (Mart 3201 15-16) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo
do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 215) 756
GRIFFIN 2001 p 81 757
Tac Ann 1451 15 371 758
Jos BJ 4491 759
MORDINE 2017 p 113 760 DARWALL-SMITH 1996 p 38 761
Cabe destacar aqui um evento referenciado por Marcial nos Epigrammata mesmo ele
pertencendo agrave nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ldquoDesde a morte de Nero os verdes frequentemente
vencem a corrida e ganham muitos precircmios Vaacute agora morrendo de inveja e diga que vocecirc cedeu
198
Passemos agora agrave anaacutelise dos episoacutedios contidos nas Siluae quais sejam o
conflito contra os partas o incecircndio de Roma e o assassinato de Agripina A
princiacutepio falemos do conflito Ele estaacute inserido em um encocircmio a Crispino por
ocasiatildeo de sua nomeaccedilatildeo como tribuno militar na idade precoce de 16 anos dois
anos antes do tempo esperado O poeta elogia a juventude e a ancestralidade do
jovem representada na figura do pai Veacutecio Bolano renomado general militar que
atuou como prococircnsul na Aacutesia ao lado de Domiacutecio Corbulatildeo durante o governo de
Nero Entre os objetivos da ode o que mais nos interessa eacute a apresentaccedilatildeo de
Bolano como um exemplum a ser seguido por Crispino762
Estaacutecio faz diversos
elogios ao general no intento de que seu filho siga seus passos
Pois no limiar da idade adulta seu pai abriu grandes precedentes para tua fama Ele ao entrar na juventude [] atacou Araxes com suas aljavas trazendo a guerra e a Armecircnia que natildeo podia ser ensinada a servir ao feroz Nero Corbulatildeo assumiu o papel principal na guerra rigorosa mas ele admirava
demais Bolano seu camarada na guerra e parceiro de seus trabalhos durante batalhas distintas [] Bolano [] buscava cumes que fossem adequados para acampamentos seguros avaliava o terreno abria caminhos nos bosques hostis [] cumpria todo o plano de seu reverenciado comandante e sozinho estava agrave altura de seus grandes comandos763
a Nero com certeza natildeo foi Nero que venceu mas os verdesrdquo Saepius ad palmarn prasinus post
fata Neronis pervenit et victor praemia plura refert i nunc livor edax dic te cessisse Neroni
vicit nirnirum non Nero sed prasinus (Mart 1133) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com
base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 33) De modo sucinto os
verdes os azuis os vermelhos e os brancos eram os ldquotimesrdquo que compunham as corridas de bigas
no Circus Maximus em Roma durante a Repuacuteblica e o Impeacuterio Em especial a rivalidade entre os
verdes e os azuis era intensa e mais tarde no seacuteculo VI eles se tornaram os times proeminentes
Os azuis representavam as categorias sociais mais altas e os verdes as baixas Os cocheiros que
em geral eram escravos ou libertos inscreviam-se nas competiccedilotildees porque o precircmio costumava
ser bastante atrativo Por exemplo em uma uacutenica corrida podiam ganhar diversos sacos de ouro
vindos tanto de apostas do puacuteblico quanto do apoio imperial Nero assim como Caliacutegula torcia
para os verdes e sempre demonstrava publicamente o seu apoio (CAMERON 1976 p 5-104) Apesar de tal apoio vemos no excerto a defesa de que natildeo era o princeps quem dava vitoacuterias aos
verdes mas os verdes quem as conquistavam Haacute uma clara sugestatildeo para natildeo se considerar tudo o
que era vinculado ao soberano como algo negativo pois algumas coisas poderiam natildeo estar
relacionadas a ele e nem dependerem do seu apoio ou financiamento Em suma Marcial estaacute
dizendo que uma coisa para ser muito boa natildeo precisava nem de Nero (nem de Tigelino) 762
BERNSTEIN 2007 p 183-185 763
sed enim tibi magna parabat ad titulos exempla pater quippe ille iuventam protinus
ingrediens pharetratum invasit Araxen belliger indocilemque fero servire Neroni Armeniam
rigidi summam Mavortis agebat Corbulo sed comitem belli sociumque laborum ille quoque
egregiis multum miratus in armis Bolanum atque illi curarum asperrima suetus credere
partirique metus quod tempus amicum fraudibus exserto quaenam bona tempora bello quae
suspecta fides aut quae fuga vera ferocis Armenii Bolanus iter praenosse timendum Bolanus
tutis iuga quaerere commoda castris metiri Bolanus agros aperire malignas torrentum
nemorumque moras tantamque verendi mentem implere ducis iussisque ingentibus unus
199
Em 61 Bolano foi enviado para a Armecircnia com a missatildeo de fazer com que
os partos se retirassem do territoacuterio romano cuja fronteira haviam cruzado
violando o acordo de paz entre ambas as potecircncias No trecho vemos que Estaacutecio
o retrata tanto como amigo de Corbulatildeo quanto como parceiro de trabalhos
durante os momentos difiacuteceis da guerra764
isto eacute como um general que sabia
desempenhar muito bem o seu papel evitando as rotas perigosas procurando
locais seguros para acampamentos e abrindo caminhos Segundo Vervaet a
exaltaccedilatildeo de Bolano feita pelo poeta apesar de exagerada revela que Corbulatildeo
de fato confiava no general e que este provavelmente ajudou-o a conquistar a
vitoacuteria na Armecircnia765
Cabe esclarecer que o conflito contra os partas eclodiu em
54 poucos meses apoacutes a ascensatildeo de Nero Na ocasiatildeo o princeps designou
Corbulatildeo para liderar a campanha contra os inimigos pois ele jaacute era um militar
bastante respeitado766
Depois de 12 anos de disputas Roma prevaleceu e o rei
estabelecido na Armecircnia Tiridates foi coroado pelas matildeos de Nero na Vrbs em
66 Para Barrett Fantham e Yardley isso significa que a Armecircnia foi ldquo[] o
grande sucesso da lsquopoliacutetica externarsquo do Principado de Nero []rdquo a qual lhe rendeu
a saudaccedilatildeo de Imperator pelos pretorianos767
Contudo tal vitoacuteria natildeo parece ter
sido conquistada de forma faacutecil porquanto Estaacutecio afirma que a Armecircnia ldquonatildeo
podia ser ensinada a servir ao feroz Nerordquo ndash ou seja era um oponente indoacutecil e
irredutiacutevel ateacute mesmo para o selvagem soberano A ecircnfase na ferocidade do
imperador pode ser entendida como um elogio ao seu modo agressivo de lidar
com os assuntos externos um elogio agrave sua boa administraccedilatildeo inicial e ao seu
comando eficiente das proviacutencias que mantinha o Impeacuterio fortalecido Ao mesmo
tempo acreditamos que o poeta atribui essa boa administraccedilatildeo natildeo a Nero mas a
seus auxiliares Bolano e Corbulatildeo768
Inclusive Estaacutecio diz que Corbulatildeo
assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo Nesse sentido o jovem princeps soacute
prevaleceu sob os partas porque escolheu sabiamente seus generais Eacute uma
desvalorizaccedilatildeo clara da sua capacidade de ter iniciativa algo jaacute feito por Marcial
sufficere (Stat Silv 5230-46) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 291) 764
VERVAET 2003 p 448 765
VERVAET 2003 p 439 766
Para uma biografia de Corbulatildeo cf SYME 1970 p 27-39 767
BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 81 Imperator era um termo usado para se
referir ao princeps ou a um comandante militar indicando seu triunfo (GRIFFIN 2001 p 222-
231) 768
GIBSON 2006 p 197
200
em relaccedilatildeo agraves termas Vale recordar que essa toacutepica da fraca atuaccedilatildeo militar eacute
muito aceita nos debates historiograacuteficos modernos sendo utilizada para construir
a imagem de Nero como um mau imperador Assim aqui compreendemos que o
poeta constroacutei um Nero antiprinceps que natildeo tem interesse e nem experiecircncia nas
lides beacutelicas Sua vitoacuteria ao final nunca foi propriamente sua
No tocante aos episoacutedios do incecircndio de Roma e do assassinato de
Agripina Estaacutecio os referencia dentro de uma ode a Polla Argentaacuteria viuacuteva de
Lucano No poema eacute feita uma extensa homenagem ao falecido poeta naquele
que seria o dia do seu aniversaacuterio Leiamos
Venham para a festa de aniversaacuterio de Lucano [] Fluam mais
abundantemente os riachos poeacuteticos e sejam mais verdes brilhantes oacute bosques de Aoacutenia e se em algum lugar sua sombra se abriu e recebeu a luz do sol deixe guirlandas suaves preencherem a sala [] Sobre Lucano noacutes cantamos mantenha silecircncio sagrado este eacute o vosso dia Musas guardai silecircncio enquanto aquele que vos tornou gloriosas nas duas artes [] eacute honrado como o sumo sacerdote do coro romano [] Ainda como um bebecirc receacutem-nascido ele engatinhou e com as
primeiras palavras docemente choramingou e Caliacuteope769 o levou para seu seio amoroso Entatildeo ela [] disse ldquo[] na tenra juventude deves praticar tua pena em Heitor e nas carruagens da Tessaacutelia e no ouro suplicante do rei Priacuteamo e desbloquearaacutes as moradas do inferno o ingrato Nero e o proacuteprio Orfeu770 seratildeo vistos por ti nos teatros Deves contar como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Roma Oacute crime oacute
crime mais hediondordquo [] Ela falou isso enquanto afastava as laacutegrimas Mas tu [] olha para a terra e ri dos sepulcros [] tu visita o Taacutertaro e ouve de longe as chicotadas do culpado e vecirc Nero paacutelido agrave vista da tocha de sua matildee esteja presente em esplendor brilhante e uma vez que Polla te chama ganhe um dia eu imploro aos deuses do mundo silencioso estaacute aberta aquela porta para os maridos voltarem para suas noivas771
769
ldquoUma das Musas [] A partir da eacutepoca alexandrina eacute-lhe atribuiacutedo como seu domiacutenio a poesia
liacutericardquo (GRIMAL 2005 p 71) 770
Orfeu era filho de Caliacuteope e do deus Apolo Ele era o cantor por excelecircncia o muacutesico e o poeta
Tocava lira e ciacutetara instrumento cuja invenccedilatildeo lhe eacute atribuiacuteda ldquo[] Sabia cantar melodias tatildeo
suaves que ateacute as feras o seguiam as aacutervores e as plantas se inclinavam na sua direccedilatildeo e os
homens mais rudes se acalmavamrdquo (GRIMAL 2005 p 340-341) 771
Lucani proprium diem frequentet [] docti largius evagentur amnes et plus Aoniae virete
silvae et si qua patet aut diem recepit sertis mollibus expleatur umbra [] Lucanum
canimus favete linguis vestra est ista dies favete Musae dum qui vos geminas tulit per artes
et vinctae pede vocis et solutae Romani colitur chori sacerdos [] Natum protinus atque
humum per ipsam primo murmure dulce vagientem blando Calliope sinu recepit turn primum
posito remissa luctu longos Orplieos exuit dolores et dixit ldquo[] ac primum teneris adhuc in
annis ludes Hectora Thessalosque currus et supplex Priami potentis aurum et sedes reserabis
inferorum ingratus Nero dulcibus theatris et noster tibi proferetur Orpheus dices culminibus
Remi vagantis infandos domini nocentis ignes mdash o dirum scelus o scelus mdash tacebisrdquo sic fata
est leviterque decidentes abrasit lacrimas nitente plectro At tu seu rapidum poli per axem
201
Estaacutecio evoca a memoacuteria de Lucano ao mesmo tempo em que condena
Nero A ocasiatildeo do aniversaacuterio do falecido poeta eacute acompanhada pelo lamento do
seu fim prematuro e consequentemente pela condenaccedilatildeo daquele que privou a
Terra dos talentos do jovem prodiacutegio Estaacutecio retrata Caliacuteope carregando o receacutem-
nascido Lucano nos braccedilos e prevendo o futuro brilhante do poeta A Musa entatildeo
chora a morte iminente do seu protegido o silenciamento da sua voz poeacutetica
qualificando-o como ldquocrime hediondordquo772
Tal expressatildeo a nosso ver atribui ao
princeps as caracteriacutesticas de um tirano representando-o como cruel feroz e
impiedoso Inclusive eacute sob esse retrato de tirano cruel que o imperador aparece
nos versos de Marcial ldquoAh cruel Nero natildeo poderia haver morte mais odiada
[]rdquo773
O uso do vocaacutebulo crudelis pelo epigramista tambeacutem marca a coloraccedilatildeo
tiracircnica de Nero Notemos que no intento de glorificar a memoacuteria de Lucano
Estaacutecio e Marcial mantiveram silecircncio sobre a causa da sua morte (no caso seu
envolvimento na Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo) Ao fazer isto Lefebvre defende que eles
privaram o ato do princeps de qualquer possiacutevel justificativa dando ao soberano a
imagem perturbadora de um tirano cruel774
Embora a morte de Lucano natildeo componha nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ela
eacute importante porque eacute dentro do cenaacuterio do Nero cruel que satildeo citados o incecircndio
da Vrbs e o assassinato de Agripina No caso do primeiro a passagem mostra
Caliacuteope profetizando a Lucano que durante sua trajetoacuteria poeacutetica ele ldquocontaria
como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Romardquo Aiacute
temos uma alusatildeo ao poema lucaniano perdido De Incendio Vrbis no qual
supostamente o incecircndio foi descrito Para Champlin as palavras domini nocentis
constituem uma acusaccedilatildeo clara contra Nero e eacute bem provaacutevel que o De Incendio
Vrbis jaacute trouxesse essa acusaccedilatildeo Estaacutecio nesse sentido estaria apenas
parafraseando Lucano775
Esse argumento tambeacutem eacute sustentado por Ahl que
acredita fortemente que Estaacutecio estaria se referindo ao poema Claro eacute possiacutevel
Famae cuiribus arduis levatus qua surgunt aniniae potentiores terras despicis et sepulcra
rides [] noscis Tartaron et procul nocentum audis verbera pallidumque visa matris lampade
respicis Neronem adsis lucidus et vocante Polla unum quaeso diem deos silentum exores
solet hoc patere limen ad nuptas redeuntibus maritis (Stat Silv 271-123) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 129-137) 772
MALAMUDE 2014 p 12-14 NEWLANDS 2002 p 44 773
Nero crudelis nullaque invisior umbra debuit hoc saltem non licuisse tibi (Mart 721) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton
Bailey (1993 p 93) 774
LEFEBVRE 2017 p 67-68 775
CHAMPLIN 2005 p 320
202
que Lucano tenha descrito o fogo em termos muito mais neutros e que Estaacutecio
tenha incluiacutedo as opiniotildees poliacuteticas de sua proacutepria eacutepoca Isso poreacutem natildeo diminui
a importacircncia do trecho tanto Lucano quanto Estaacutecio acreditavam na
responsabilidade do princeps pelo fogo Afinal como alega Ahl se Estaacutecio natildeo
concordasse com Lucano ele natildeo teria citado o incecircndio ou a obra perdida776
A
crenccedila em comum mostra que jaacute circulava a ideia no final do primeiro seacuteculo da
responsabilidade do Nero incendiaacuterio no incidente E claramente essa crenccedila
estava sendo transmitida por aqueles que buscavam obter favores do regime atual
Deve ser enfatizado lembra Barrett que estamos falando de uma crenccedila na culpa
informal de Nero ao inveacutes de uma culpa real Apesar de toda a difamaccedilatildeo os
imperadores Flavianos nunca o culparam oficialmente pelo incecircndio777
Dando continuidade no excerto Estaacutecio diz que o falecido Lucano desce
do ceacuteu e visita o Taacutertaro (mundo dos mortos) Laacute encontra o culpado Nero que
paacutelido contempla a matildee com uma tocha nas matildeos Vejamos que o poeta coloca
Agripina jaacute morta e assombrando o filho sem nos dar detalhes sobre como o
assassinato aconteceu e sem sequer mencionar o naufraacutegio Ainda assim um
aspecto valoroso dessa descriccedilatildeo eacute a alusatildeo a alguns elementos da Octauia Na
trageacutedia Pseudo-Secircneca conta que no dia do casamento de Nero com Popeia o
fantasma de Agripina retornou do Taacutertaro portando uma tocha e profetizou a
morte do filho778
Nas Siluae Estaacutecio apresenta Nero jaacute morto e vendo a matildee ou
seja a profecia de Agripina cumprira-se Ademais na Octauia a matrona pede a
uma das Eriacutenias vingativas que prepare uma ldquomorte digna para o iacutempio tiranordquo779
Lembremo-nos de que as Eriacutenias ou Fuacuterias ldquo[] eram espiacuteritos do inferno que
vingavam mortes aterrorizavam eou amaldiccediloavam os indiviacuteduosrdquo780
Nesse
sentido entendemos que Marcial estaacute associando Agripina a uma Eriacutenia pois ela
persegue o filho no inferno ela ficara tatildeo ressentida com a crueldade de Nero e
com seu assassinato que viera atraacutes dele para aterrorizaacute-lo781
No final das contas
ela estaacute castigando-o pelos males promovidos em vida pelo fato de ele ter sido
um Nero matricida Esse tipo de visatildeo do universo dos mortos conecta-se muito
776
AHL 1976 p 341-342 777
BARRETT 2020 p 122-124 778
[Sen] Oct 593-620 779
[Sen] Oct 619-620 780
GRIMAL 2005 p 146-147 781
CHAMPLIN 2005 p 294
203
bem com a Apocolocyntosis de Secircneca em especial com a pena recebida por
Claacuteudio de ser escravo de Caliacutegula e jogar dados com uma caixa de dados furada
por toda a eternidade782
A correspondecircncia entre as Siluae e a Octauia nos leva a refletir ainda
sobre trecircs questotildees A primeira Estaacutecio de igual modo a Marcial foi leitor de
Pseudo-Secircneca o que mostra que a Octauia natildeo soacute iniciou o processo de
difamaccedilatildeo de Nero como tambeacutem se transformou em uma referecircncia literaacuteria da
tradiccedilatildeo negativa Dietrich defende a influecircncia da Octauia na redaccedilatildeo de
Estaacutecio783
A segunda o registro sutil da tocha indica um conhecimento profundo
da Octauia ou de outras fontes comuns por parte de Estaacutecio e da sua audiecircncia o
que fazia com que o poeta esperasse do seu puacuteblico o entendimento da alusatildeo
Natildeo nos esqueccedilamos de que os versos de Estaacutecio sempre possuiacuteam um
destinataacuterio logo a menccedilatildeo era reservada a um grupo especiacutefico E por fim a
terceira questatildeo se o poeta esperava que o grupo entendesse a alusatildeo eacute porque o
grupo jaacute conhecia a histoacuteria do matriciacutedio por isso o delito natildeo precisava ser
minuciado Em outras palavras Nero jaacute era conhecido por muitos como um Nero
matricida Tal informaccedilatildeo fica evidente tambeacutem nos escritos de Josefo em que a
omissatildeo de detalhes eacute justificada com a afirmaccedilatildeo de que os crimes jaacute eram ldquobem
conhecidos por todosrdquo e ldquodescritos por um grande nuacutemero de autoresrdquo784
Chegamos a um ponto portanto em que o Nero matricida se consolidou como
um elemento primordial da memoacuteria imperial
Em suma no decorrer da investigaccedilatildeo do Liber Spectaculorum dos
Epigrammata e das Siluae constatamos cinco das nossas categorias de anaacutelise 1)
Nero antiprinceps referente ao conflito com os partas 2) Nero matricida
vinculada ao assassinato de Agripina 3) Nero incendiaacuterio ligada ao incecircndio de
Roma 4 e 5) Nero construtor e Nero vaidoso atreladas agrave construccedilatildeo da Domus
Aurea Das cinco a do Nero matricida foi a mais presente aparecendo nos
escritos de Marcial e Estaacutecio Nos do primeiro surgiu de forma ambiacutegua pois ao
mesmo tempo em que houve a condenaccedilatildeo do imperador pelo homiciacutedio houve a
sugestatildeo de que Agripina merecia morrer nos do segundo por outro lado
emergiu inserida em um castigo haja vista que o princeps foi representado morto
782
Sen Apoc 145 151-2 783
DIETRICH 2015 p 310 784
Jos BJ 492
204
no Taacutertaro contemplando a matildee com uma tocha nas matildeos Por sua vez a
categoria Nero antiprinceps apareceu pela primeira vez estando associada agrave falta
de iniciativa do soberano nos conflitos contra a Armecircnia Por uacuteltimo a categoria
Nero construtor despontou juntamente agrave do Nero vaidoso sendo avaliadas a partir
da ambivalecircncia puacuteblico x privado Marcial enfatizou a diferenccedila do Principado
de Nero em relaccedilatildeo ao de Tito mostrando que este uacuteltimo se preocupava em
edificar espaccedilos para o usufruto comum ao passo que o primeiro soacute pensava no
seu Palaacutecio privado
Vimos tambeacutem que para elaborarem seus argumentos ambos os autores
utilizaram elementos da Octauia Marcial usou o naufraacutegio e Estaacutecio usou o
fantasma de Agripina portando a tocha o que nos leva a propor duas questotildees 1)
o Nero matricida eacute o Nero da Octauia e 2) o Nero matricida consolidou-se dentro
da tradiccedilatildeo negativa Observamos ainda que as categorias Nero antiprinceps e
Nero incendiaacuterio foram referenciadas somente por Estaacutecio estando esta uacuteltima
pautada em possiacuteveis criacuteticas a Nero contidas em uma obra lucaniana perdida o
De Incendio Vrbis Nesse ponto houve uma alusatildeo agrave Apocolocyntosis e ao castigo
de Claacuteudio Ao seu turno as categorias Nero construtor e Nero vaidoso foram
mencionadas apenas por Marcial por meio das suas experiecircncias cotidianas na
Roma de Nero x na Roma dos Flaacutevios Portanto a inuentio feita por Marcial e
Estaacutecio perpassou a seleccedilatildeo de obras e de argumentos muito mais hostis ao
soberano do que elogiosos Apesar de terem lido relatos positivos ndash a exemplo da
leitura da Apocolocyntosis por Estaacutecio ndash e vivido coisas positivas ndash como as
termas frequentadas por Marcial ndash preferiram fortalecer a grade negativa de
leitura sobre o imperador priorizando o ponto de vista flaviano Nas palavras de
Faversani cada autor se apegou a uma forma de desenhar Nero ldquo[] que melhor
se ajustasse a suas convicccedilotildees poliacuteticas para atacar seu adversaacuteriordquo785
A representaccedilatildeo de Nero entatildeo dependeu do interesse dos autores que
transportaram as informaccedilotildees sobre ele e que estavam disponiacuteveis naquele
momento histoacuterico Eacute assim que uma representaccedilatildeo se constitui como algo
verossiacutemil atraveacutes de um longo processo allelopoieacutetico de apropriaccedilatildeo e
reapropriaccedilatildeo Trata-se de um processo que segundo Hausteiner Huhnholz e
Walter gera uma transformaccedilatildeo histoacuterica e uma ecircnfase em determinados
785
FAVERSANI 2020 p 382
205
elementos em prol de outros786
Como ilustraccedilatildeo a ascensatildeo do princeps agora
seja prodigiosa seja infausta jaacute natildeo eacute mais lembrada A culpa de Nero no
matriciacutedio vincula-se agrave personalidade detestaacutevel de Agripina agrave construccedilatildeo da
Domus Aurea a seus iacutempetos egoiacutestas
Como destacamos o uso dos diversos episoacutedios envolvendo Nero e a
valecircncia positiva ou negativa que se daacute a eles vatildeo se alterando com o passar do
tempo A retomada de tais episoacutedios permite a eles que sejam cada vez mais
conhecidos e atraiam a atenccedilatildeo dos autores para seu uso pois se tornam
proverbiais A mera menccedilatildeo a Nero e a uma ou duas palavras que admitam a
raacutepida identificaccedilatildeo do episoacutedio especiacutefico a que se faz menccedilatildeo eacute o que passa a
ocorrer Isso tem um poder retoacuterico enorme por ser sinteacutetico e carregar uma
enargeia uma vivacidade para o discurso E ademais gera um ciclo interessante
quanto mais se fala do princeps mais conhecido ele se torna mais reconheciacuteveis
se tornam os episoacutedios ligados a ele e mais ricos se tornam o repertoacuterio e a sua
possibilidade de novos usos
Aleacutem disso cremos ser possiacutevel jaacute perceber a partir da anaacutelise desse
corpus textual que Nero progressivamente vai deixando de ser relevante por
aquilo que foi no passado para se tornar um personagem da tradiccedilatildeo construiacutedo
em muacuteltiplas temporalidades (que se constroem mutuamente por allelopoiesis)
Por esse mecanismo ele faz parte do seu tempo assim como de alguma maneira
eacute contemporacircneo de outras temporalidades podendo ressurgir a qualquer
momento como elemento a ser usado para compreender o que eacute um mau
imperador um tirano um construtor megalomaniacuteaco um destruidor incendiaacuterio
um familiar violento um artista mediacuteocre e ciumento ou qualquer outra faceta
construiacuteda para Nero nessa tradiccedilatildeo Tal processo como vimos inicia-se sob os
Flaacutevios e embora supere os limites desta tese parece-nos seguir acontecendo ateacute
os dias atuais sem pistas de interrupccedilatildeo
Em conclusatildeo faz-se necessaacuterio ainda o apontamento de algumas
consideraccedilotildees Em primeiro lugar os episoacutedios da vida de Nero apareceram nas
obras de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o Velho Flaacutevio Josefo Marcial e Estaacutecio sob as
seguintes ocorrecircncias i) assassinato de Agripina (seis vezes ndash em todas as obras)
ii) incecircndio de Roma (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e nas Siluae)
786
HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 14
206
iii) construccedilatildeo da Domus Aurea (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e
no Liber Spectaculorum) iv) assassinato de Britacircnico (trecircs vezes ndash na Octauia no
Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) v) assassinato de Otaacutevia (trecircs
vezes ndash na Octauia no Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) vi)
ascensatildeo de Nero (duas vezes ndash na Octauia e nas Antiquitates Judaicae) vii)
suiciacutedio de Nero (duas vezes ndash no Bellum Judaicum e nas Silvae) viii) casamento
com Popeia (uma vez ndash na Octauia) ix) nascimento de Nero (uma vez ndash na
Naturalis Historia) x) conflito com os partas (uma vez ndash nas Siluae) xi) visita de
Tiridates agrave Urbs (uma vez ndash na Naturalis Historia) xii) revolta de Vindex (uma
vez ndash no Bellum Judaicum) xiii) conspiraccedilatildeo de Pisatildeo (uma vez ndash no Bellum
Judaicum) Em segundo lugar as ocorrecircncias mais frequentes nos revelam que
durante o governo dos Flaacutevios alguns episoacutedios passaram a constituir a tradiccedilatildeo
negativa compondo a imagem negativa do Nero matricida do Nero incendiaacuterio
do Nero construtor do Nero fratricida e do Nero uxoricida Em terceiro as
ocorrecircncias menos frequentes sinalizam que momentos nunca antes valorizados
da vida do soberano como o conflito com os partas a revolta de Vindex e a
conspiraccedilatildeo de Pisatildeo comeccedilaram a surgir nas fontes embora natildeo sejam ainda
referecircncias fortes para a tradiccedilatildeo negativa Em quarto e uacuteltimo lugar se
colocarmos todas as ocorrecircncias daqui em comparaccedilatildeo com as do capiacutetulo
anterior verificaremos que os Neros satildeo demasiadamente distintos Laacute tiacutenhamos
praticamente soacute Neros prodigiosos agora praticamente soacute temos Neros infaustos
Como sabemos isso tem relaccedilatildeo direta com os contextos sob os quais os Neros
foram produzidos No seu governo existiam sujeitos interessados em elogiaacute-lo e
em bajulaacute-lo aleacutem tambeacutem de haver o perigo de criticaacute-lo publicamente No
governo dos Flavianos existe o projeto de poder pautado no ataque agrave sua
memoacuteria cuja finalidade eacute a legitimaccedilatildeo dinaacutestica Nessa transiccedilatildeo poliacutetica houve
uma mudanccedila na seleccedilatildeo dos episoacutedios por parte dos autores das fontes no
capiacutetulo anterior eles abordaram sobretudo a ascensatildeo do soberano e a
realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro dispostos nas categorias Nero prodigioso e Nero
construtor aqui abordaram 12 episoacutedios enquadrados em 24 categorias O que
isso significa Que o Nero negativo estaacute se tornando mais complexo e elaborado
do que o positivo restando deste uacuteltimo apenas o louvor agraves suas construccedilotildees
puacuteblicas Eacute portanto um Nero totalmente novo transformado com um pequeno
207
resquiacutecio do velho Mas seraacute que ele permaneceraacute assim Vejamos as fontes do
proacuteximo capiacutetulo
208
Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235)
Este capiacutetulo examinaraacute a forma Nero consolidado que englobaraacute o final
da dinastia Flaviana ateacute o governo dos Severos (97-235) Nosso propoacutesito eacute
analisar os episoacutedios da vida do soberano contidos nos Annales no De Vita
Caesarum e na Historia Romana a fim de compreendermos de que maneira esse
novo contexto poliacutetico influenciou na consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa
sobre Nero e seu governo Hoje essas trecircs fontes satildeo as que nos oferecem a
descriccedilatildeo mais completa detalhada e conhecida de boa parte do Principado de
Nero Isso significa que a maior parcela das representaccedilotildees existentes sobre o
soberano proveacutem dos relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio como mostramos
no primeiro capiacutetulo da tese Assim qualquer pessoa que queira estudar os
retratos de Nero precisa necessariamente ler (e analisar) os textos desses autores
Eacute o que faremos a partir de agora
No capiacutetulo anterior vimos que a segunda dinastia imperial romana
assumiu o poder no ano 69 com a ascensatildeo de Vespasiano e o deixou em 96
com o assassinato de Domiciano Entre ambos Tito governou por um periacuteodo
curto de dois anos (79-81) ainda que tenha atuado como co-regente de seu pai por
um periacuteodo mais longo787
Um dos elementos centrais da legitimaccedilatildeo desses
governantes foi a difamaccedilatildeo da imagem de Nero Paralelamente operou-se uma
obliteraccedilatildeo da sua memoacuteria no espaccedilo fiacutesico da cidade de Roma realizada a partir
da reconfiguraccedilatildeo de alguns edifiacutecios puacuteblicos e da publicaccedilatildeo de obras literaacuterias
que o representavam por exemplo como tirano cruel matricida e incendiaacuterio788
Com o assassinato de Domiciano Roma passou para as matildeos da dinastia
Antonina composta por sete imperadores Nerva (96-98) Trajano (98-117)
Adriano (117-138) Antonino Pio (138-161) e Marco Aureacutelio (161-180) que
governou juntamente com Luacutecio Vero (161-169) e Cocircmodo (180-192)789
Durante
esses reinados isto eacute no seacuteculo II o Impeacuterio viveu um periacuteodo de relativa paz e
liberdade
As guerras foram reduzidas as proviacutencias desfrutaram de uma
consideraacutevel prosperidade o equiliacutebrio entre o poder civil e o militar foi
787
RODRIGUES 2020 p 111 788
TUCK 2016 p 110 ZISSOS 2016 p 7 789
Para mais informaccedilotildees a respeito dos imperadores Antoninos cf GRIFFIN 2000 p 84-194
209
garantido e uma poliacutetica interna de deferecircncia ao Senado foi empreendida790
Resumindo a vasta extensatildeo do Impeacuterio foi comandada por liacutederes prudentes
fato que contribuiu para a criaccedilatildeo da denominaccedilatildeo ldquoseacuteculo de ourordquo791
Em
especial o respeito ao Senado foi demasiadamente importante porque influenciou
no modo como os imperadores da eacutepoca ndash e tambeacutem os precedentes ndash foram
representados nas produccedilotildees literaacuterias As obras elaboradas nesse contexto como
a de Taacutecito e a de Suetocircnio utilizaram as criacuteticas aos liacutederes preteacuteritos ndash Tibeacuterio
Caliacutegula Nero e Domiciano ndash para louvar as gloacuterias da sua eacutepoca marcada pela
deferecircncia ao Senado Nesse sentido os amigos do Senado foram bem retratados
e os inimigos natildeo792
Eacute claro que cada obra trazia consigo os interesses dos seus
autores mas em geral a criacutetica se mantinha Por exemplo Taacutecito com sua
retoacuterica politicamente carregada criticou a consolidaccedilatildeo do poder imperial
ocorrida durante os Principados Juacutelio-Claacuteudianos vista por ele como a destruidora
da liberdade de expressatildeo e da autonomia do Senado793
Por sua vez Suetocircnio
com seu gosto pelos detalhes condenou os abusos de poder cometidos pelos
imperadores e os seus defeitos de caraacuteter794
Aos Antoninos sucederam os seis imperadores da dinastia Severa que
governaram o Impeacuterio de 193 a 235 Septiacutemio Severo (193-211) Geta (211)
Caracala (211-217) Macrino (217-218) Heliogaacutebalo (218-222) e Severo
Alexandre (222-235)795
Segundo Frighetto esse novo periacuteodo deve ser entendido
sob uma dupla oacutetica por um lado a da continuidade da era paciacutefica promovida
pelos Antoninos e por outro a do agravamento dos problemas militares que
marcavam o mundo romano haacute tempos Dentre os problemas o autor destaca a
ampliaccedilatildeo significativa do territoacuterio imperial a qual resultou no aumento das
invasotildees e no crescimento dos gastos com o exeacutercito Para resolvecirc-los os Severos
790
Durante muito tempo os estudiosos identificaram a dinastia dos Antoninos como a idade de
aacutepice do sistema poliacutetico imperial a idade de paz total Mas no ano 2000 Purcell (2000 p 421)
apresentou um argumento contraacuterio a tal consenso vigente Ele afimou que a paz total eacute uma ideia
enganosa pois a violecircncia permaneceu tanto no campo quanto na cidade Mesmo em Roma onde
os horrores da guerra eram teoricamente distantes o imperador e as pessoas envolviam-se com a
guerra Os espetaacuteculos aludiam agrave guerra ateacute mesmo os jogos nas tabernas eram simulacros de
conflitos Por fim o autor defende tambeacutem que a loacutegica da centralidade do poder dependia do
direito de conquista 791
GIBBON 1989 p 87 GRIMAL 2008 p 103 MENDES 2006 p 46-47 792
GAIA 2020 p 178 GUNDERSON 2017 p 335 793
BENARIO 2012 p 113 MORFORD 1990 p 1599 794
RIVES 2007 p 15-16 795
Sobre a dinastia Severa cf CAMPBELL 2005 p 1-27
210
nomearam mais de um Augusto na tentativa de manter uma presenccedila vigilante no
Impeacuterio aumentaram a concessatildeo da cidadania romana no intuito de
maximizarem a arrecadaccedilatildeo de impostos e a manutenccedilatildeo do exeacutercito e
fortaleceram a aceitaccedilatildeo do princeps pelos soldados oferecendo a eles
determinados benefiacutecios796
Ou seja realizaram muitos gastos militares os quais
consequentemente diminuiacuteram agrave atenccedilatildeo voltada agrave publicaccedilatildeo de obras literaacuterias
ndash situaccedilatildeo que hoje aliaacutes limita nosso conhecimento acerca desse periacuteodo
histoacuterico As fontes comeccedilaram a rarear e a se tornar cada vez mais escassas e as
poucas sobreviventes a exemplo da Historia Romana de Diatildeo Caacutessio tornaram-
se porta-vozes dos interesses senatoriais Dessa forma Diatildeo Caacutessio assim como
Taacutecito e Suetocircnio projetou seu retrato de Nero sob a oacutetica das esferas superiores
da sociedade romana sustentando a concepccedilatildeo de optimus princeps ndash a ideia de
que o soberano deveria ser a encarnaccedilatildeo de virtudes como clementia e iustitia797
Explicaremos melhor as concepccedilotildees de cada um dos autores agrave medida que
adentrarmos no capiacutetulo O importante agora eacute apenas apontar que eles estiveram
inseridos em contextos especiacuteficos que interferiram diretamente na forma como
representaram Nero Tambeacutem eacute essencial evidenciar outra vez que Taacutecito
Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio satildeo as figuras que nos oferecem os relatos mais completos
e famosos sobre Nero As histoacuterias inconcebiacuteveis de que o princeps matou a sua
matildee e a sua esposa incendiou Roma e cantou enquanto a cidade queimava satildeo
todas contadas por eles Essas histoacuterias foram transmitidas a noacutes de modo tatildeo
consistente que nunca nos permitiram pensar algo diferente e positivo sobre Nero
Natildeo eacute agrave toa que ele com frequecircncia eacute evocado negativamente na miacutedia Portanto
consideramos que se faz urgente compreender as muitas maneiras pelas quais
Nero foi recebido interpretado e reapropriado pois ao comprendecirc-las
enxergaremos os objetivos dos autores e tambeacutem os elementos das histoacuterias do
796
FRIGHETTO 2012 p 56-91 Muitos autores defenderam que os primeiros Severos foram os
responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de uma monarquia militar por buscarem apoio entre os elementos
militares para ascenderem e permanecerem no poder Essa noccedilatildeo poreacutem tem sido questionada por
autores modernos a exemplo de Gonccedilalves (2006 p 183) e Carrieacute e Rouselle (1999 p 72-75)
que acreditam que Septiacutemio Severo natildeo se baseou unicamente no militarismo De igual modo a
outros imperadores ele pautou sua posiccedilatildeo em um suporte militar mas tambeacutem reconheceu a
necessidade de acomodar os desejos das aristocracias romanas e provinciais 797
GOWING 1997 p 2564-2586
211
princeps que foram suprimidos eou mantidos forjando a imagem nefasta que
temos dele hoje798
Taacutecito Annales
Taacutecito eacute o primeiro autor a ser discutido Sobre sua vida possuiacutemos apenas
algumas informaccedilotildees advindas de suas proacuteprias obras e das cartas do seu amigo
Pliacutenio o Jovem Nem a data e nem o local do seu nascimento satildeo conhecidos e haacute
incertezas ateacute mesmo sobre o seu praenomen ndash se era Caio ou Puacuteblio799
De
qualquer forma predominam entre os estudiosos contemporacircneos as opiniotildees de
que seu nascimento ocorreu em 56 ou 57 na proviacutencia da Gaacutelia Narbonensis e de
que seu pai tenha sido o equestre Corneacutelio Taacutecito procurador da Gaacutelia Beacutelgica800
Eacute provaacutevel que Taacutecito em algum momento da sua juventude tenha ido para
Roma finalizar sua educaccedilatildeo combinando o estudo da retoacuterica com o atendimento
aos tribunais801
Suas primeiras magistraturas vieram durante o Principado de
Vespasiano no qual serviu aos vigintiviri e ao tribunato militar802
Em 77 casou
com a filha de Cneu Juacutelio Agriacutecola renomado cocircnsul fato que para Joly
impulsionou sua carreira puacuteblica803
Entre 79 e 81 no governo de Tito foi
nomeado questor804
e em 88 agrave eacutepoca do Principado de Domiciano tornou-se
pretor e membro do coleacutegio sacerdotal dos xv viri sacris faciundis805
Depois
disso assumiu algum cargo provincial pois ficou afastado de Roma de 89 a 93806
Taacutecito retornou agrave Vrbs apoacutes 97 ocupando o consulado nessa mesma data807
Nos
798
LEVI 1995 p 17-18 799
Essa duacutevida eacute fomentada pelas fontes recopiladas na posteridade Por exemplo Sidocircnio
Apolinaacuterio um bispo do seacuteculo V atribui a ele o praenomen Caio (Sid Ep 4141 222) Em
contrapartida o Coacutedice Mediceus I datado do seacuteculo IX concede a ele o praenomen Puacuteblio
Corneacutelio (SYME 1967 p 59) 800
MARTIN 1989 p 26 GRANT 1956 p 7 801
PAGAacuteN 2012 p 3 Walker (1960 p 162) aponta a possibilidade de Taacutecito ter sido aluno de
Quintiliano com quem aprendeu as artes da oratoacuteria e da eloquecircncia 802
BARRETT 2008 p x Entre os 18 e 20 anos de idade ldquo[] um senador comeccedilava sua carreira
como um dos vinte vigintiviri (literalmente lsquovinte varotildeesrsquo coleacutegio de magistrados responsaacuteveis por
funccedilotildees como manutenccedilatildeo das ruas e estradas policiamento cunhagem e litiacutegios judiciais) Em
seguida ele era designado para uma proviacutencia como comandante militar auxiliar de uma ou
tribuno de uma legiatildeordquo (CAMPOS 2013 p 64-65) 803
Tac Agric 97 JOLY 2004 p 38 804
Eacute a esse acontecimento que ele provavelmente alude quando afirma que sua dignitas foi
ldquoaumentada pelo imperador Titordquo (Tac Hist 11) 805
Tac Ann 11111 Os xv viri sacris faciundis eram um coleacutegio sacerdotal encarregado da
supervisatildeo da religiatildeo romana (MELLOR 2010 p 59) 806
Tac Agric 455 MARTIN 1989 p 28 807
Plin Ep 216
212
anos seguintes representou a proviacutencia da Aacutefrica em uma acusaccedilatildeo de extorsatildeo
contra seu ex-governador Maacuterio Prisco e foi prococircnsul na Aacutesia808
Natildeo sabemos
ao certo quando faleceu Eacute possiacutevel que tenha vivido ateacute os primeiros anos do
reinado de Adriano mas natildeo temos uma data precisa809
Em toda a sua vida Taacutecito escreveu cinco obras A primeira delas De Vita
Iulii Agricolae (Vida de Agriacutecola) foi publicada em 98 e narra a vida de seu sogro
Juacutelio Agriacutecola810
A segunda De Origine et Situm Germanorum (Germacircnia) foi
divulgada tambeacutem em 98 e descreve a geografia da Germacircnia assim como os
costumes as instituiccedilotildees e a cultura dos seus povos A terceira Dialogus de
Oratoribus (Diaacutelogo dos Oradores) sem data precisa de publicaccedilatildeo (102-107)
versa sobre o decliacutenio da eloquecircncia romana811
A quarta Historiae foi lanccedilada
entre 104 e 109 e aborda desde as guerras civis de 68-69 ateacute a morte de
Domiciano em 96812
Por fim a uacuteltima obra Annales dentre as que nos chegaram
foi redigida entre 115 e 120 e descreve os governos dos Juacutelio-Claudianos que
sucederam Augusto Infelizmente os Annales natildeo foram preservados em sua
totalidade sobrevivendo apenas os livros 1 a 4 o iniacutecio do livro 5 todo o 6
metade do 11 e do livro 12 ateacute a metade do 16 Ou seja temos o Principado de
Tibeacuterio os uacuteltimos anos do de Claacuteudio e parte do de Nero813
Tanto os Annales quanto as Historiae definiram Taacutecito como historiador
Haacute que se apresentar entatildeo o modo por meio do qual foi elaborada sua narrativa
Potter e Walker argumentam que ele utilizou uma gama variada de fontes desde
documentos puacuteblicos e privados (acta senatus acta diurna inscriccedilotildees diaacuterios e
biografias)814
ateacute testemunhos orais e obras de autores antigos a exemplo de
Saluacutestio Tito Liacutevio Secircneca Faacutebio Ruacutestico Cluacutevio Rufo entre outros815
Segundo
808
Plin Ep 211 A realizaccedilatildeo do proconsulado estaacute gravada em uma inscriccedilatildeo em Mylasa na Aacutesia Cf DOUBLET 1890 p 603-630 809
MARQUES 2012 p 90 Sobre a biografia de Taacutecito cf BIRLEY 2000 p 230-247 810
HUTTON PETERSON 1914 p 151-152 811
LUCE 1993 p 12 REZENDE 2014 p 17 Para uma discussatildeo acerca da decadecircncia da
eloquecircncia na passagem da Repuacuteblica para o Impeacuterio cf WALLACE-HADRILL 1996 p 284
VARELLA 2008 p 73-75 812
MOORE 1925 p x 813
MARQUES 2010 p 45-46 Para um comentaacuterio detalhado dos livros dos Annales cf
BENARIO 2012 p 104-116 814
ldquoActa significa lsquoas coisas que foram feitasrsquo e tem dois sentidos especializados e sobrepostos na
Histoacuteria romana um eacute diaacuterio o outro satildeo atos oficiais especialmente de um imperadorrdquo (OCD
2012 p 10) 815
POTTER 2012 p 128 WALKER 1960 p 143 Durante muito tempo foi aceito que Taacutecito
teria usado apenas uma fonte para redigir as Historiae e os Annales O principal proponente dessa
213
Woodman a anaacutelise feita por Taacutecito desses escritos foi bem diferente daquela
documental realizada pelos historiadores modernos816
Por exemplo em alguns
momentos ele usou expressotildees como ldquoeacute dito querdquo ldquomuitos autores relataramrdquo e
ldquofoi frequentemente relatadordquo sem se importar em verificar a autenticidade e a
procedecircncia das informaccedilotildees817
Tal atitude nos mostra que sua preocupaccedilatildeo natildeo
foi de construir um relato verdadeiramente criacutetico com a confrontaccedilatildeo de fontes
mas sim de expor o consenso acerca de determinado tema818
Aliaacutes eacute o que ele
mesmo afirma ldquovou seguir o consenso das fontes poreacutem no caso de darem
relatos divergentes os transmitirei sob os nomes dos proacuteprios escritoresrdquo819
Isso demonstra que Taacutecito lidou com o seu material e redigiu a sua
narrativa histoacuterica de acordo com a mentalidade do Mundo Antigo Woodman
sustenta que os gregos e os romanos definiam a escrita histoacuterica em termos de
oratoacuteria e poesia O termo grego historia na Antiguidade natildeo significava o que
hoje entendemos por uma disciplina acadecircmica820
Na Greacutecia antiga Aristoacuteteles
defendeu que a histoacuteria tinha ldquocerta afinidade com a poesiardquo podendo ser
considerada ldquouma espeacutecie de poema em prosardquo821
Tempos depois na Repuacuteblica
romana Ciacutecero alegou que a historia era ldquouma tarefa essencialmente oratoacuteriardquo e
no Impeacuterio Quintiliano declarou que era ldquomais como um poema em prosardquo822
Essas definiccedilotildees nos indicam que na Greacutecia e em Roma a oratoacuteria a poesia e a
histoacuteria eram consideradas atividades retoacutericas cada qual com um tipo de discurso
persuasivo823
Assim a narrativa construiacuteda por Taacutecito passa a fazer sentido seu
uso das fontes nada tinha a ver com a elaboraccedilatildeo de uma narrativa histoacuterica
precisa e sim com a composiccedilatildeo de um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo
literaacuteria dominante Griffin aponta que a verdadeira utilidade da histoacuteria para os
premissa era Philippe Fabia (1893) Hoje a teoria eacute refutada por diversos pesquisadores como
Boissier (1934 p 74-79) 816
WOODMAN 1988 p 176-177 817
Tac Ann 2402 1294 11341 675 1661 818
WOODMAN 2004 p xvii 819
nos consensum auctorum secuturi quae diversa prodiderint sub nominibus ipsorum trademus
(Tac Ann 13202) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o
inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 280) 820
Woodman (1988 p 78-116) eacute o principal estudioso a aprofundar a discussatildeo das relaccedilotildees entre
histoacuteria e retoacuterica nas obras taciteanas Adotaremos os seus argumentos por considerarmos que
servem bem ao estudo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero 821
Arist Poet 1451a936 822
Cic de Orat 21562-64 Quint Inst 10131 823
WOODMAN 2004 p xviii
214
historiadores gregos e romanos natildeo era fornecer um arquivo completo mas criar
um relato com ldquomais estilordquo que deleitasse os leitores824
O que de fato concernia agrave histoacuteria era ser magistra vitae (ldquomestra da
vidardquo) como escreveu Ciacutecero em De Oratore ldquo[] Que testemunha o passar dos
tempos lanccedila luz sobre a realidade daacute vida agrave lembranccedila e orientaccedilatildeo agrave existecircncia
humana e traz notiacutecias de tempos antigos []rdquo825
Agrave histoacuteria cabia ensinar por
exemplos de modo que um exemplo anterior agrave vida do leitor pudesse ser usado
como referecircncia para a conduta moral e ciacutevica Em suma a histoacuteria narraria o
passado ao mesmo tempo em que ensinaria o leitor a evitar os erros cometidos
pelos grandes homens
Foi com base em tal loacutegica que Taacutecito compocircs os Annales826
Ao relatar as
accedilotildees dos imperadores Juacutelio-Claudianos preocupou-se em apontar exemplos para
seus leitores827
Eacute assim aliaacutes que o governo e a vida de Nero satildeo descritos
atraveacutes da menccedilatildeo de acontecimentos ora positivos ora negativos Sem mais
delongas vejamos como ele fez isso na praacutetica Tratemos do nascimento de Nero
[] Nero teve uma filha com Popeia [] [e] chamou a crianccedila
de Augusta [] O parto foi em Acircncio onde o proacuteprio soberano havia nascido828
Quando ela [Agripina] consultou os caldeus sobre Nero eles responderam que ele seria o imperador e mataria sua matildee ldquoDeixe que me materdquo respondeu ela ldquocontanto que governerdquo829
Taacutecito nos daacute duas notiacutecias i) o nascimento de Nero ocorreu em Acircncio e
ii) Agripina consultou os astroacutelogos e eles lhe disseram que seu filho governaria e
a mataria Falemos da primeira notiacutecia Com ela o autor reporta um dado
824
GRIFFIN 2009 p 174-175 825
Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra vitae nuntia vetustatis
qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur (Cic de Orat 2936) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Sutton (1942 p 224) 826
MELLOR 2002 p 95 827
RYBERG 1942 p 397 828
Memmio Regulo et Verginio Rufo consulibus natam sibi ex Poppaea filiam Nero ultra mortale
gaudium accepit appelavitque Augustam dato et Poppaea eodem cognomento locus puerperio
colonia Antium fuit ubi ipse generatus erat (Tac Ann 15231) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 349) 829
nam consulenti super Nerone responderunt Chaldaei fore ut imperaret matremque occideret
atque illa ldquooccidatrdquo inquit ldquodum imperetrdquo (Tac Ann 1493) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa
com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308)
215
histoacuterico sem atribuir criteacuterio de julgamento O mesmo poreacutem natildeo acontece com
a segunda notiacutecia marcada pelo costume romano da pesquisa astroloacutegica
Segundo Maacutervaacutenyos a partir da consulta ao horoacutescopo de uma pessoa os
astroacutelogos tiravam conclusotildees a respeito de eventos posteriores agrave vida de um
indiviacuteduo e sobre seu caraacuteter830
Foi assim que Agripina descobriu o seu fado e o
de Nero ser assassinada e ter um filho matricida ndash ambos os destinos traacutegicos831
Relembremos que essa relaccedilatildeo entre o matriciacutedio e o nascimento do princeps jaacute
fora construiacuteda por Pliacutenio o Velho o qual disse que Agripina havia infligido ao
mundo e a si mesma uma maldiccedilatildeo venenosa (Nero)832
Taacutecito entatildeo ao
reutilizar a ideia e inserir o novo elemento astroloacutegico fortalece a visatildeo negativa
sobre a matrona e consolida a concepccedilatildeo de que uma mulher ruim soacute geraria um
Nero infausto Em outras palavras o novo item daacute ao historiador um poderoso
argumento para captar a atenccedilatildeo do seu leitor um matricida estava por vir833
Notemos ainda que Nero justifica o assassinato atribuindo a Agripina um
apetite descontrolado pelo poder Esse elemento que seraacute apontado em outros
trechos por Taacutecito eacute aqui recombinado com a desmedida de Nero Isso cria um
retrato que combina dois traccedilos gerados em momentos diferentes um no proacuteprio
principado de Nero e outro no posterior a sua morte Tal combinaccedilatildeo forma um
novo retrato de Nero o qual estaraacute presente em outras fontes dessa eacutepoca como
veremos adiante Contudo queremos desde jaacute destacar esse mecanismo que
coloca em um mesmo tempo a composiccedilatildeo de traccedilos originados em momentos e
em contextos diferentes um retrato natildeo uma descriccedilatildeo de um acontecimento
Depois do nascimento Taacutecito nos fornece poucas informaccedilotildees sobre a
infacircncia de Nero Sabemos que ele direcionou seu ldquoespiacuterito inquietordquo para
interesses variados esculpiu pintou cantou conduziu bigas e compocircs versos834
Percebemos tambeacutem que ele teve Secircneca como tutor835
presenciou o casamento
da matildee com o imperador Claacuteudio836
e foi adotado por este837
Sobre a adoccedilatildeo em
830
MAacuteRVAacuteNYO 2014 p 64-65 831
MARTIN 1983 p 71 832
Plin Nat 2246 833
KENNEDY 1994 p 4 834
Tac Ann 1331 835
Agripina convenceu Claacuteudio a trazer Secircneca de volta do exiacutelio (Tac Ann 1282) 836
Agrave eacutepoca o matrimocircnio foi considerado incesto por alguns senadores pois Claacuteudio e Agripina
eram tio e sobrinha (Tac Ann 122-7) Ginsburg (2006 p 116-120) explica que para os romanos
o incesto constituiacutea um ato imoral e violador da harmonia das relaccedilotildees humanas e divinas Apesar
216
especial o historiador nos diz que foi articulada por Agripina e por Pallas liberto
imperial de Claacuteudio e amante da matrona
[] Pallas [] insistia com Claacuteudio para este pensar no bem do Estado e fornecer proteccedilatildeo para Britacircnico em seus primeiros anos Ele citou o paralelo do deificado Augusto em cuja famiacutelia [] os enteados tiveram um papel proeminente e o caso de Tibeacuterio que teve seus proacuteprios filhos mas tambeacutem adotou
Germacircnico Ele disse a Claacuteudio que ele tambeacutem deveria se munir de um jovem que assumisse algumas de suas responsabilidades Convencido disso Claacuteudio colocou Domiacutecio [] agrave frente do proacuteprio filho fazendo um discurso no Senado [] Os eruditos observaram que aquela era a primeira adoccedilatildeo entre os patriacutecios da famiacutelia Claudiana [] Mesmo assim o imperador foi agradecido e a bajulaccedilatildeo de Domiacutecio foi
particularmente bem construiacuteda sendo aprovada uma lei que previa sua adoccedilatildeo pela famiacutelia Claudiana com o nome Nero838
Aqui eacute necessaacuterio comentar sobre duas questotildees A primeira a adoccedilatildeo eacute
descrita por Taacutecito como fruto sobretudo das ambiccedilotildees de um liberto e de
Agripina e natildeo como um desejo do proacuteprio Claacuteudio839
A atitude manipuladora de
ambos subjugou o imperador e o transformou em um liacuteder sem autoridade
Conforme Faversani e Mancini essa imagem do liacuteder submisso que concedia
liberdade exagerada aos subalternos jaacute circulava nas fontes contemporacircneas ao
governo de Claacuteudio840
Taacutecito entatildeo soacute reforccedilou algo que todos pareciam saber
Eacute essencial contudo esmiuccedilar a concepccedilatildeo negativa sobre Agripina ndash e
neste ponto entramos na segunda questatildeo Azevedo sustenta que o historiador
membro da elite senatorial considerava-a uma mulher transgressora do ideal de
da aprovaccedilatildeo do casamento pelo Senado o enlace deve ter contribuiacutedo para a edificaccedilatildeo do retrato
de Agripina como mulher incestuosa 837
A adoccedilatildeo exigiu uma dispensa teacutecnica da lei porque Claacuteudio jaacute tinha um filho Britacircnico
(BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 2) 838
C Antistio M Suillio consulibus adoptio in Domitium auctoritate Pallantis festinatur qui
obstrictus Agrippinae ut conciliator nuptiarum et mox stupro eius inligatus stimulabat Claudium
consuleret rei publicae Britannici pueritiam robore circumdaret sic apud divum Augustum
quamquam nepotibus subnixum viguisse privignos a Tiberio super propriam stirpem
Germanicum adsumptum se quoque accingeret iuvene partem curarum capessituro his evictus
triennio maiorem natu Domitium filio anteponit habita apud senatum oratione eundem in quem a
liberto acceperat modum adnotabant periti nullam antehac adoptionem inter patricios Claudios
reperiri eosque ab Atto Clauso continuos duravisse Ceterum actae principi grates quaesitiore in
Domitium adulatione rogataque lex qua in familiam Claudiam et nomen Neronis transiret (Tac
Ann 1225 261) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o
inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 246-247) 839
MELLOR 2010 p 134 SYME 1967 p 412 840
FAVERSANI MANCINI 2010 p 38 Por exemplo Secircneca na Apocolocyntosis debocha da
subserviecircncia claudiana aos libertos aos secretaacuterios e agraves mulheres (Sen Apoc 62)
217
matrona romana e usurpadora do poder masculino o que o fez representaacute-la a
partir do estereoacutetipo retoacuterico pejorativo da dux femina (ldquomulher comandanterdquo)
usado para caracterizar mulheres que ambicionavam exercer poder como homens
apropriando-se de uma autoridade que natildeo deveriam possuir Por oacutebvio tal
estereoacutetipo acabava recaindo sobre Claacuteudio que por natildeo conseguir controlar a
esposa era fraco e conivente com suas accedilotildees841
Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito recrimina
a ldquofalta de limitesrdquo e a ldquoambiccedilatildeo exageradardquo de Agripina842
ndash criacuteticas tambeacutem
divulgadas na Octauia e no Bellum Judaicum843
Apoacutes a adoccedilatildeo Taacutecito narra que Agripina demitiu centuriotildees e tribunos da
Guarda Pretoriana que pensava favorecer Britacircnico e persuadiu Claacuteudio a
substituiacute-los por Burro comandante do ldquomais alto caraacuteterrdquo e que saberia
reconhecer a quem devia sua posiccedilatildeo844
Em seguida ela fez Claacuteudio agilizar o
casamento de Nero e Otaacutevia ocorrido em 53845
O dia do enlace segundo o
historiador foi infeliz desde o iniacutecio equivalente a um funeral ldquoOtaacutevia [] foi
escoltada ateacute uma casa na qual soacute encontraria tristeza com seu pai sendo retirado
dela por envenenamento e seu irmatildeo [] imediatamente depoisrdquo846
Notemos que
o matrimocircnio eacute retratado de duas formas i) como uma manobra de Agripina e ii)
como um infortuacutenio para Otaacutevia Quanto agrave primeira consideramos que o interesse
da matrona residia no fato de a uniatildeo legitimar a adoccedilatildeo de Nero uma vez que
Otaacutevia pertencia agrave gens Juacutelia e Claacuteudia847
Mordine explica que as mulheres
imperiais sempre foram instrumentos de legitimidade estabelecendo e reforccedilando
o direito do princeps de governar Tal papel feminino de agente legitimador eacute
especialmente importante no caso de Nero pois Otaacutevia lhe asseguraria o lugar na
sucessatildeo de uma famiacutelia que ainda natildeo havia adotado ningueacutem848
Agripina dessa
forma soacute estava garantindo que seu filho ndash e natildeo Britacircnico ndash estivesse pronto
841
AZEVEDO 2012 p 86-87 p 133 Sobre a visatildeo taciteana de Agripina cf GINSBURG 2006
p 106-132 E sobre a visatildeo das mulheres em geral cf WALLACE 1991 p 3556-3574 842
Tac Ann 12572 843
[Sen] Oct 93 Jos BJ 2249 844
Tac Ann 12412 421 Taacutecito afirma que depois da adoccedilatildeo Britacircnico provocava Nero
chamando-o de Domiacutecio (Tac Ann 12413) 845
Tac Ann 12581 846
huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum
haberet erepto per venenum patre et statim fratre tum ancilla domina validior et Poppaea non
nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni exitio gravius (Tac Ann 14633) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e
Yardley (2008 p 336) 847
GINSBURG 2006 p 30 FAVERSANI 2018 p 3 848
MORDINE 2013 p 107
218
quando a hora chegasse Em relaccedilatildeo ao casamento como um infortuacutenio Taacutecito
delineia um destino de anguacutestias para Otaacutevia ndash anguacutestias a propoacutesito jaacute citadas na
trageacutedia de Pseudo-Secircneca na qual a jovem lamentou ldquo[] Ai de mim desse
tirano beijar meu inimigordquo849
Portanto o historiador usou a narrativa do passado
para construir a imagem de uma Otaacutevia que eacute viacutetima dos intentos da madrasta
louca para botar as matildeos no poder e esposa infeliz do Nero infausto produto da
avidez materna
Eacute essencial comentar ainda que Taacutecito ao descrever os episoacutedios da
adoccedilatildeo e do casamento realizou allelopoiesis e inuentio Nesse sentido fortaleceu
o retrato de Agripina da mulher manipuladora e cruel (presente na Octauia) e ao
mesmo tempo erigiu um novo o da matrona que parecia ter interesses em
comandar o filho e o seu Principado A nosso ver esse novo retrato baseou-se na
visatildeo senatorial negativa do envolvimento de mulheres e de libertos nos assuntos
poliacuteticos Por serem considerados sujeitos desprovidos de legitimidade natildeo lhes
era permitido interferir nas demandas do Estado pois isso entre outras questotildees
evidenciava a desarmonia das relaccedilotildees existentes dentro e fora da domus e a
incapacidade imperial de manter a ordem850
Eacute por essa razatildeo que Taacutecito os
critica851
Em outros termos recrimina a influecircncia de Agripina e por
conseguinte o reflexo dela no caraacuteter e no governo de Nero
Tal influecircncia se torna muito mais notoacuteria quando a matrona comeccedila a
articular a ascensatildeo do filho Taacutecito relata que em 54 Agripina aproveitou a
peacutessima condiccedilatildeo de sauacutede de Claacuteudio para envenenaacute-lo com cogumelos Quando
o imperador estava prestes a morrer ela impediu Britacircnico e suas irmatildes Antocircnia e
Otaacutevia de tomarem uma atitude impedindo-os de saiacuterem dos seus quartos852
849
[] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula ([Sen] Oct 109-110) Traduccedilatildeo
de Gozo (2016 p 17) 850
AZEVEDO 2012 p 143 851
FUNARI GARRAFFONI 2016 p 125 852
Tac Ann 1266-68 Sobre o assassinato de Claacuteudio cf LEVICK 1990 p 69-80
219
Entatildeo ao meio dia do dia 13 de outubro as portas do palaacutecio
de repente se abriram Nero com Burro o acompanhando se dirigiu agrave coorte que [] estava em serviccedilo de guarda A mando do comandante ele foi aplaudido e colocado em uma liteira Dizem que alguns soldados hesitaram olhando em volta e perguntando onde estava Britacircnico mas natildeo havendo oposiccedilatildeo aceitaram aquele que lhes estava sendo oferecido Nero foi
carregado para o acampamento e apoacutes algumas palavras preliminares adequadas agrave ocasiatildeo prometeu donativos iguais aos que o seu pai Claacuteudio em outros tempos lhes dera e foi saudado como imperador A decisatildeo das tropas foi acatada pelo Senado e pelas proviacutencias A Claacuteudio foram votadas honras divinas e sua cerimocircnia fuacutenebre correspondeu agrave do deificado Augusto []853
Na narrativa percebemos que foram Agripina e Burro os grandes
planejadores da ascensatildeo Como vimos a matrona jaacute vinha preparando o caminho
haacute tempos casando o filho demitindo homens que favoreciam Britacircnico e
escolhendo Burro como Prefeito uacutenico da guarda pretoriana854
De acordo com
Mordine essa escolha demonstra claramente que ela tinha consciecircncia da
centralidade dos pretorianos na aclamaccedilatildeo imperial e que por isso precisava
controlaacute-los Poreacutem o autor acredita que ao dominaacute-los e colocar Burro agrave frente
do comando Agripina gera um problema para si mesma pois se mostra exemplo
do exagero feminino Isso significa que o feiticcedilo volta-se contra o feiticeiro O seu
sucesso inicial passaraacute a ser visto como uma busca desmedida pelo poder a qual
inclusive seraacute utilizada por Nero para justificar o matriciacutedio855
Nas palavras de
OrsquoGorman ldquoo sucesso da imperatriz em viver o suficiente para ver esta
culminaccedilatildeo tambeacutem eacute sua maior fraquezardquo856
Resumindo ela desenvolveu um
excelente esquema para dar o trono ao filho Nero agora era princeps soacute restava
saber se ele a suportaria
853
Tunc medio diei tertium ante Idus Octobris fortibus palatii repente diductis comitante Burro
Nero egreditur ad cohortem quae more militiae excubiis adest ibi monente praefecto faustis
vocibus exceptus inditur lecticae dubitavisse quosdam ferunt respectantis rogitantisque ubi
Britannicus esset mox nullo in diversum auctore quae offerebantur secuti sunt inlatusque castris
Nero et congruentia tempori praefatus promisso donativo ad exemplum paternae largitionis
imperator consalutatur sententiam militum secuta patrum consulta nec dubitatum est apud
provincias caelestesque honores Claudio decernuntur et funeris sollemne perinde ac divo Augusto
celebratur aemulante Agrippina proaviae Liviae magnificentiam (Tac Ann 1269) A traduccedilatildeo
para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008
p 268-269) 854
Tac Ann 12412 855
MORDINE 2013 p 110 Tac Ann 14111 856
OrsquoGORMAN 2006 p 132-133
220
Taacutecito prossegue seu relato dizendo que o jovem iniciou seu governo
demonstrando piedade filial e sobriedade Ele ofereceu um funeral magniacutefico a
Claacuteudio tecendo-lhe elogios a partir de um sofisticado discurso previamente
elaborado por Secircneca857
Na ocasiatildeo os idosos observaram que Nero era o
primeiro soberano a precisar da retoacuterica de outro homem pois Ceacutesar trazia
consigo grandes talentos e Augusto tinha a oratoacuteria apropriada a um imperador858
Encerrada a cerimocircnia fuacutenebre Nero entrou no Senado e delineou os contornos do
Principado vindouro natildeo haveria suborno sob o seu comando o Senado manteria
suas prerrogativas antigas as proviacutencias se dirigiriam aos tribunais dos cocircnsules
ele cuidaria do exeacutercito e conservaria os negoacutecios da sua domus separados dos
interesses da res publica859
O historiador afirma que por algum tempo Nero
cumpriu sua palavra e que Agripina o controlou em vaacuterias oportunidades860
O formato de Principado traccedilado por Nero com a cuidadosa divisatildeo de
competecircncias e de responsabilidades eacute proacuteximo do prescrito por Augusto Como
sabemos este soberano foi considerado o melhor dos imperadores detentor de
proeminentes virtudes romanas como pietas iustitia (justiccedila) e clementia Seu
governo era entendido como um paradigma de accedilotildees e condutas a serem imitadas
reverenciadas e aceitas A associaccedilatildeo com ele portanto ajudaria a criar consensos
acerca do novo imperador os quais por sua vez tornariam aceitaacutevel o
estabelecimento do novo Principado861
A ideia era reavivar o passado para tornaacute-
lo presente ou nos termos de Martins ldquotrazer agrave mente para trazer de voltardquo862
Eacute importante frisar que embora exista um tom elogioso aqui o historiador
critica sutilmente a falta de eloquentia do princeps863
A nosso ver ele insinua que
tanto os bons discursos quanto as boas iniciativas do Principado de Nero seriam
realizados por Secircneca e Burro864
Relembremos duas informaccedilotildees i) a leitura do
discurso no Senado aconteceu em 54 e o De Clementia foi elaborado na
passagem de 55 para 56 ndash ou seja agrave eacutepoca da ascensatildeo Secircneca jaacute trabalhava na
857
BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 25 858
Tac Ann 133 859
Tac Ann 134 Taacutecito alega que Nero tambeacutem considerou fazer uma Reforma Fiscal e abolir a
vectigalia (impostos indiretos que incidiam sobre as mercadorias importadas e exportadas) mas
acabou sendo dissuadido por seus conselheiros (Tac Ann 13502-3) 860
Tac Ann 135 861
PRADO 2011 p 15-16 862
MARTINS 2011 p 151-152 863
O papel de Secircneca como compositor dos discursos de Nero aparece duas vezes nos Annales
(Tac Ann 13112 14113) 864
JONES 2000 p 455
221
obra em que delineou um programa de governo para Nero e ii) Taacutecito enxergava
Burro como um general detentor do ldquomais alto caraacuteterrdquo865
Isso indica que para
esse primeiro Nero estava sob o auxiacutelio de dois excelentes conselheiros e cada
um exerceria uma influecircncia positiva Burro traria austeridade Secircneca eloquecircncia
ndash e os dois juntos assegurar-se-iam de que as tentaccedilotildees do soberano
permaneceriam dentro dos ldquolimites da indulgecircncia permissiacutevelrdquo866
Essa eacute uma
ideia corrente diriacuteamos ateacute dominante na historiografia moderna a de que Nero
durante os anos iniciais do seu governo foi controlado por Secircneca e Burro Por
ser muito jovem entende-se que neste primeiro momento havia uma parceria
entre ambos para orientaacute-lo com Secircneca representando os interesses do Senado e
Burro os dos equestres867
Em uacuteltima anaacutelise cabe apontarmos as mudanccedilas e as permanecircncias
observadas nas representaccedilotildees da ascensatildeo neroniana Em primeiro lugar a ideia
da ascensatildeo positiva advinda das fontes contemporacircneas ao princeps manteve-se
Taacutecito reforccedilou os retratos contidos em Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano (ao
que tudo indicava) o imperador traria seacuteculos felizes868
Isso mostra que ele
provavelmente teve contato com as obras desses autores e concordou com elas
Mas sua concordacircncia foi parcial pois o bom governo natildeo se pautava no fato de
Nero ser um Nero prodigioso por si mesmo mas no fato de Nero ser um Nero
prodigioso por ter bons conselheiros Em segundo a noccedilatildeo do controle de
Agripina mencionada apenas por Pseudo-Secircneca foi fortalecida Taacutecito reutilizou
certos elementos presentes na Octauia ndash os de que Agripina persuadiu Claacuteudio a
adotar Nero e a priorizaacute-lo na sucessatildeo ndash e os lapidou construindo a nova imagem
do Nero antiprinceps869
Pouco tempo apoacutes a ascensatildeo o princeps precisou lidar com o seu
primeiro inimigo nas fronteiras do Impeacuterio os partas Conforme Taacutecito o jovem
demorou a resolver o conflito tendo dificuldades em estabelecer uma poliacutetica
militar coerente No final de 54 os partas invadiram o territoacuterio da Armecircnia cujo
domiacutenio era romano atraveacutes de um rei-cliente
865
Tac Ann 12421 866
Tac Ann 1321 867
Essa concepccedilatildeo eacute criticada por FAVERSANI 2012 p 136 868
Sen Apoc 41 Calp Ecl 133-44 Luc 160-62 869
[Sen] Oct 139-154
222
Como resultado [] perguntas estavam sendo feitas ldquocomo um
imperador com apenas dezessete anos podia arcar com esse fardo ou evitar a crise Que apoio poderia se esperar de um
homem governado por uma mulherrdquo870
Enquanto essas e outras observaccedilotildees eram feitas Nero enviou para a
Armecircnia alguns reis-clientes e Corbulatildeo ndash general ldquointeligenterdquo e ldquorespeitadordquo ndash
esperando que eles recuperassem o controle da regiatildeo A nomeaccedilatildeo deste uacuteltimo eacute
retratada por Taacutecito como um ato imperial muito positivo por meio da afirmaccedilatildeo
de que as virtudes estavam retornando Entre 55 e 57 Corbulatildeo organizou suas
tropas e atacou o adversaacuterio Em 58 conquistou a rendiccedilatildeo de vaacuterias localidades
incluindo Artaxata capital da Armecircnia Por causa disso871
Nero foi saudado como Imperator [] e apoacutes um decreto
senatorial oraccedilotildees de agradecimento foram realizadas Estaacutetuas arcos triunfais e contiacutenuos consulados foram votados para o soberano []872
Em 61 o confronto irrompeu novamente e sua conduccedilatildeo foi entregue
outra vez a Corbulatildeo que preparou suas legiotildees e invadiu a Armecircnia Em 63
depois de inuacutemeros combates ele convenceu os irmatildeos Tiridates rei da Armecircnia
e Vologeso rei do Impeacuterio Parta a aceitarem um acordo os trecircs com os seus
respectivos exeacutercitos deveriam se encontrar em um local especiacutefico e Tiridates
reverenciaria as estaacutetuas de Nero fingindo ser coroado rei da Armecircnia pelo
princeps depois ele deveria ir pessoalmente ateacute agrave Vrbs jurar lealdade ao
soberano Em resposta a essas accedilotildees Corbulatildeo retiraria suas tropas da Armecircnia
Passados alguns dias os exeacutercitos se encontraram873
870
igitur in urbe sermonum avida quem ad modum princeps vix septem decem annos egressus
suscipere eam molem aut propulsare posset quod subsidium in eo qui a femina regeretur (Tac
Ann 1367) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Barrett e Yardley (2008 p 272-273) 871
Tac Ann 138-39 872
Ob haec consal[ut]atus imperator Nero et senatus consulto supplicationes habitae statuaeque
et arcus et continui consulatus principi utque inter festos referretur dies quo patrata victoria
(Tac Ann 13414) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o
inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 292) 873
Tac Ann 151-25
223
[] De um lado estava a cavalaria parta com os seus esquadrotildees e as suas insiacutegnias tribais do outro estavam as legiotildees romanas organizadas em colunas com aacuteguias brilhantes estandartes e representaccedilotildees dos deuses como em um templo No meio deles havia um tribunal que tinha uma cadeira curul e a cadeira tinha uma estaacutetua de Nero Tiridates foi adiante [] tirou o diadema da sua cabeccedila e colocou-o aos peacutes da imagem
feito que despertou emoccedilotildees profundas em todos os presentes []874
A narrativa de Taacutecito se encerra neste ponto devido agrave perda dos livros
finais dos Annales no processo de transmissatildeo Mas o relato que sobreviveu nos
permite realizar algumas reflexotildees Inicialmente o historiador constroacutei uma
relaccedilatildeo entre a pouca idade e a inexperiecircncia do princeps forjando a ideia de que
ele seria incapaz de resolver o conflito exitosamente De acordo com Johansson
esse eacute um retrato comum nos documentos redigidos pela elite romana e aqui haacute
tambeacutem o agravante do controle materno875
Depois o historiador demarca o
papel de Corbulatildeo na finalizaccedilatildeo dos embates Ao longo da narrativa as accedilotildees
deste satildeo detalhadas e acompanhadas por muitos elogios sendo a paz na Armecircnia
atribuiacuteda totalmente ao seu trabalho Assim Taacutecito ignora outros indiviacuteduos
essenciais no encerramento da guerra a exemplo dos reis-clientes Aristoacutebulo
Antiacuteoco Agripa e Soemo Gowing explica que os reis-clientes eram monarcas natildeo
romanos que em geral estabeleciam relaccedilotildees de amizade com Roma Sua funccedilatildeo
era atender agraves necessidades do Impeacuterio quando solicitados e em troca tinham
seu poder local assegurado Nas fronteiras eram eles muitas vezes que lidavam
com as invasotildees representando o poder pessoal do princeps876
Tais homens satildeo
citados por Taacutecito uma uacutenica vez algo intrigante haja vista que os reinos de
Aristoacutebulo e Antiacuteoco ficavam a poucas milhas da fronteira parta877
ndash ou seja eacute
pouco provaacutevel que eles natildeo tivessem participado das batalhas Nesse sentido
Barrett defende que a omissatildeo foi realizada natildeo porque o historiador natildeo soubesse
874
tum placuit Tiridaten ponere apud effigiem Caesaris insigne regium nec nisi manu Neronis
resumere et conloquium osculo finitum dein paucis diebus interiectis magna utrimque specie inde
eques compositus per turmas et insignibus patriis hinc agmina legionum stetere fulgentibus
aquilis signisque et simulacris deum in modum templi medio tribunal sedem curulem et sedes
effigiem Neronis sustinebat ad quam progressus Tiridates caesis ex more victimis (Tac Ann
15292-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Barrett e Yardley (2008 p 352-353) 875
JOHANSSON 2016 p 28 876
GOWING 1990 p 316 877
BARRETT 1979 p 469
224
dos fatos mas sim porque ele queria conceder meacuterito completo a Corbulatildeo A
seu ver o general era um homem virtuoso um modelo de comportamento a ser
seguido E a sua maior virtude para aleacutem da destreza militar era a moderatio
imprescindiacutevel a qualquer sujeito que quisesse sobreviver sob o Principado
Notemos que na passagem a gloacuteria da vitoacuteria eacute toda concedida a Nero mesmo o
comandante tendo sido o responsaacutevel por sua conquista Como sabemos durante
o Principado ningueacutem podia se sobressair em meacuteritos ao soberano se outro
homem alcanccedilasse notoriedade poderia ser visto como substituto do imperador e
correr risco de vida Corbulatildeo parecia estar ciente disso pois transferiu o
reconhecimento a Nero o qual foi saudado como imperator878
Resumindo para
Taacutecito a honra natildeo foi dada a quem de fato mereceu-a Nero eacute o mau governante
que aleacutem de natildeo se interessar pelos assuntos militares ignorava as virtudes dos
seus generais e se apossava das suas vitoacuterias879
Ainda sobre esse assunto Aguiar traz um apontamento importante
Decerto Corbulatildeo foi muito competente no comando do seu exeacutercito Poreacutem se
houve uma guerra vencida foi porque Nero tomou as decisotildees poliacuteticas
necessaacuterias para a resoluccedilatildeo dos conflitos Entatildeo de certa forma este uacuteltimo
tambeacutem foi o responsaacutevel pela vitoacuteria Natildeo queremos com isso desmerecer o
trabalho de Corbulatildeo mas mostrar que o soberano natildeo foi um Nero (tatildeo)
antiprinceps assim Precisamos estar atentos ao fato de que a escrita de Taacutecito foi
produzida por um historiador que manipulou a narrativa para alcanccedilar uma
finalidade criar a imagem negativa de Nero880
Os paralelos entre Nero e Corbulatildeo satildeo claros Taacutecito estaacute construindo dois
retratos que mais ou menos se repetem e reforccedilam-se tornando-se familiares para
sua audiecircncia Notemos que as fontes que analisaremos a seguir Suetocircnio e Diatildeo
Caacutessio daratildeo um tratamento muito diferente a Corbulatildeo Suetocircnio sequer o
mencionaraacute e Diatildeo Caacutessio natildeo daraacute ao general a centralidade e o tratamento
detalhado dispensado por Taacutecito Sendo assim o caso de Corbulatildeo torna evidente
de que natildeo eacute apenas cada eacutepoca que produz um novo Nero mas que eles satildeo
diversos e se comunicam de forma sincrocircnica e diacrocircnica
878
AGUIAR 2013 p 75-77 879
AGUIAR 2013 p 79 880
AGUIAR 2013 p 79 Para uma reflexatildeo a respeito da discussatildeo historiograacutefica atual relativa agrave
poliacutetica neroniana no Oriente cf AGUIAR 2014 p 75-80
225
Cabe falar ademais que depois de Estaacutecio essa foi a segunda vez que o
confronto com os partas aparece nas fontes Nas Silvae o poeta diz que Corbulatildeo
assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo sugerindo que Roma soacute prevaleceu porque
Nero sabiamente escolheu o general881
Taacutecito reforccedila tal concepccedilatildeo nos
Annales erigindo o retrato de um princeps que natildeo sentia necessidade de estar agrave
frente das suas legiotildees As mudanccedilas de enquadramento e de composiccedilatildeo que vatildeo
sendo operadas para a construccedilatildeo dos retratos de Nero e dependem ndash como
esperamos estar ficando claro ndash do aproveitamento de todo o material jaacute
disponiacutevel anteriormente e conhecido por parte das audiecircncias
Depois de representar Nero como um governante desinteressado pelos
assuntos militares o historiador inicia a construccedilatildeo do retrato do Nero fratricida
Para tanto relata que Agripina viu sua influecircncia sobre o filho enfraquecer pois
ele se apaixonara por Acte uma liberta a quem passa a dedicar muito da sua
atenccedilatildeo A paixatildeo fora despertada porque o princeps abominava a sua esposa
Otaacutevia natildeo obstante a nobreza e a honra dela882
A priori a matrona ignora a
afeiccedilatildeo esperando que o filho se canse da relaccedilatildeo883
Mas a posteriori quando
nota que Acte cada vez mais ganhava autoridade sobre Nero passa a admoestaacute-
lo O problema alega Taacutecito eacute que quanto mais ela o recriminava mais acendia
nele a paixatildeo Entatildeo resolve mudar sua estrateacutegia comeccedila a dizer que Britacircnico
jaacute estava crescido e que o poder estava sendo exercido por um intruso adotado
graccedilas agraves manobras de Agripina Ela tambeacutem ameaccedila levar Britacircnico Secircneca e
Burro ateacute as coortes pretorianas e reclamar o ldquogoverno do mundordquo884
Preocupado
Nero trama um modo de retirar Britacircnico do seu caminho envenenando-o Assim
durante um banquete em 55
881
Stat Silv 535 882
Tac Ann 1312-15 883
Taacutecito fala que Agripina tentou chamar a atenccedilatildeo do filho convidando-o para a intimidade do
seu quarto Poreacutem o jovem natildeo se deixou enganar e seus mais iacutentimos amigos o advertiam para
ter cautela com os ardis de uma mulher atroz e falsa (Tac Ann 13132) 884
Tac Ann 13143
226
Britacircnico recebe uma bebida inoacutecua e tambeacutem muito quente
[] Entatildeo quando ele a recusa por causa da sua temperatura o veneno eacute adicionado em um pouco de aacutegua fria [e misturado agrave bebida] e espalha-se de forma tatildeo eficaz por todo o corpo do menino que ele perde a capacidade de falar e respirar Aqueles que estatildeo sentados ao seu redor alarmam-se e os imprudentes fogem mas os mais espertos permanecem em seus assentos
olhando para Nero Ele [] fingindo natildeo saber de nada observa que se trata de algo relacionado agrave epilepsia de Britacircnico sofrida por ele desde a infacircncia e que sua visatildeo e sentidos voltariam gradualmente Mas de Agripina [] vem um olhar fugaz de pacircnico e confusatildeo dando a entender que ela e [] Otaacutevia sabiam do ocorrido Ela estava comeccedilando a perceber [] que seu uacuteltimo apoio havia sido removido e que
um precedente tinha sido aberto para o assassinato de um membro da famiacutelia Otaacutevia tambeacutem apesar da tenra idade aprendera a esconder a dor o afeto e todas as suas emoccedilotildees E assim apoacutes um breve silecircncio a folia do banquete recomeccedila885
O corpo de Britacircnico eacute enterrado na mesma noite no Campus Martius sob
uma chuva torrencial que eacute interpretada pela plebe como um sinal de raiva divina
Nero conduz o funeral apressadamente argumentando que agora os senadores e
o povo deveriam apoiaacute-lo mais pois ele era o uacutenico sobrevivente de uma famiacutelia
nascida no poder886
Em geral no episoacutedio do fratriciacutedio percebemos que o
historiador desenha um princeps amedrontado pela ameaccedila materna da sua
ilegitimidade887
Esse aspecto bastante evidente na narrativa torna-se ainda mais
claro quando Taacutecito i) alega que Nero se irrita ao ver Britacircnico cantar nas
Saturnaacutelias sobre o roubo do seu direito de primogenitura e ii) quando diz que
885
Mos habebatur principum liberos cum ceteris idem aetatis nobilibus sedentes vesci in adspectu
propinquorum propria et parciore mensa illic epulante Britannico quia cibos potusque eius
delectus ex ministris gustu explorabat ne omitteretur institutum aut utriusque morte proderetur
scelus talis dolus repertus est innoxia adhuc ac praecalida et libata gustu potio traditur Britannico dein postquam fervore aspernabatur frigida in aqua adfunditur venenum quod ita
cunctos eius artus pervasit ut vox pariter et spiritus [eius] raperentur trepidatur a
circumsedentibus diffugiunt imprudentes at quibus altior intellectus resistunt defixi et Neronem
intuentes ille ut erat reclinis et nescio similis solitum ita ait per comitialem morbum quo prima
ab infantia adflictaretur Britannicus et redituros paulatim visus sensusque at Agrippina[e] is
pavor ea consternatio mentis quamvis vultu premeretur emicuit ut perinde ignaram fuisse
[quam] Octaviam sororem Britannici constiterit quippe sibi supremum auxilium ereptum et
parricidii exemplum intellegebat Octavia quoque quamvis rudibus annis dolorem caritatem
omnes adfectus abscondere didicerat ita post breve silentium repetita convivii laetitia (Tac Ann
1316) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Barrett e Yardley (2008 p 278) 886
Tac Ann 13173 Sobre a plausibilidade do envenenamento descrito por Taacutecito cf MARTIN
1999 p 75-85 887
SHOTTER 2008 p 12
227
Britacircnico era o ldquouacuteltimo vestiacutegio do sangue claudianordquo888
Portanto o historiador
representa Nero como um usurpador como o herdeiro indigno sublinhando sua
ascensatildeo irregular889
Vale lembrar contudo que esse tema do princeps ilegiacutetimo
natildeo eacute exclusivo dos Annales jaacute tendo sido referenciado na Octauia e no Bellum
Judaicum Tanto Pseudo-Secircneca quanto Flaacutevio Josefo citaram o caraacuteter usurpador
da adoccedilatildeo e da ascensatildeo de Nero890
Cientes disso eacute faacutecil compreender o retrato
taciteano Nero foi um liacuteder que alcanccedilou o poder de modo fraudulento ndash devido
agraves artimanhas de sua matildee ndash e Roma teria ficado melhor sem ele(s)
Precisamos tambeacutem discutir outro aspecto do fratriciacutedio Quando o
historiador descreve o banquete ele expotildee as reaccedilotildees dos presentes Por exemplo
anuncia que algumas pessoas se apavoraram e fugiram e que Agripina e Otaacutevia se
horrorizaram e esconderam esse sentimento A referecircncia a tais reaccedilotildees tem
ligaccedilatildeo direta com a dissimulatio Segundo Rudich o Principado trouxe consigo
uma dinacircmica cultural e social amplamente ilusoacuteria A natureza dicotocircmica do
regime ndash uma autocracia com uma aparecircncia republicana ndash criou uma seacuterie de
problemas de comunicaccedilatildeo poliacutetica pautada na ficccedilatildeo da parceria entre o Senado
e o imperador891
Isso resultou em termos de atitude e de comportamento na
criaccedilatildeo da dissimulatio meio dissidente de acomodaccedilatildeo agrave realidade Ou seja os
senadores fingiam viver sob uma Repuacuteblica na qual o poder do soberano natildeo era
superior ao deles e na qual eles possuiacuteam liberdade de iniciativa e o imperador
fingia natildeo ter um poder autocraacutetico Caso os senadores quisessem sobreviver
nunca poderiam mostrar publicamente seu descontentamento com essa situaccedilatildeo O
grande problema de acordo com Rudich eacute que tal fingimento deslocou-se da
esfera puacuteblica para a privada trazendo ambiguidades para todos os niacuteveis de
interaccedilatildeo pessoal com o princeps Inclusive trouxe ambiguidades ateacute para a
produccedilatildeo literaacuteria impossibilitando os escritores de se expressarem livremente892
Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito proclama no prefaacutecio dos Annales
888
illum supremum Claudiorum sanguinem (Tac Ann 13172) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 278) 889
SCHUBERT 1998 p 287-440 890
[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 891
WINTERLING 2009 p 1-5 892
RUDICH 1997 p 4
228
[] Natildeo faltaram mentes excelentes para registrar o periacuteodo
augustano ateacute que a onda de subserviecircncia os espantou As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes893
Logo a alusatildeo ao comportamento de Agripina e de Otaacutevia revela que
Taacutecito enxergava Nero como um tirano cujas atitudes despertavam medo O fato
de as duas terem permanecido em silecircncio indica que elas sabiam dissimular para
sobreviver a um Nero fraticida e a um Nero cruel capaz de tratar um assassinato
com normalidade Desse modo concluiacutemos que na concepccedilatildeo de Taacutecito durante
o Principado o que se vecirc natildeo eacute real pois todos fingiam para sobreviver
A [] descriccedilatildeo [taciteana] eacute uma sobreposiccedilatildeo de visotildees possiacuteveis e incertas Cabe ao ouvinte treinar sua capacidade de ver muitas cenas onde existe uma Entre a cena que se vecirc e as muitas que se ocultam cabe a quem vecirc natildeo simplesmente ver
mas tambeacutem compor a cena O Principado natildeo admite testemunhas inocentes de seus acontecimentos [] Cabe ao leitor a indiscriccedilatildeo de ver o que a narrativa natildeo pode colocar diante dos olhos894
Em uacuteltima anaacutelise consideramos que o historiador ao descrever o
assassinato de Britacircnico retoma acusaccedilotildees feitas contra Nero pelas fontes
flavianas ndash como o caraacuteter usurpador da adoccedilatildeo e da ascensatildeo895
ndash e as divulga de
uma forma nova criando um Nero consciente da sua ilegitimidade e disposto a
tudo para assegurar a sua posiccedilatildeo896
Melhor dizendo Taacutecito elabora um novo
Nero com base em elementos comuns do passado erigindo um exemplum de liacuteder
autocrata que melhor se ajustava agrave sua compreensatildeo do Principado Isso nos leva a
perceber que os aspectos positivos de Nero vatildeo perdendo espaccedilo nos relatos e que
os negativos vatildeo se tornando cada vez mais destacados
893
sed veteris populi Romani prospera vel adversa claris scriptoribus memorata sunt
temporibusque Augusti dicendis non defuere decora ingenia donec gliscente adulatione
deterrerentur Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae
postquam occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 112) A traduccedilatildeo para o
portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 894
FAVERSANI 2015 p 52 895
[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 896
Para uma discussatildeo complementar sobre o assassinato de Britacircnico cf MURGATROYD
2006 p 97-100
229
Dois anos depois em 57 Nero oferece os primeiros espetaacuteculos puacuteblicos
em Roma Sobre o feito Taacutecito escreve
No segundo consulado de Nero e Luacutecio Pisatildeo poucos eventos sucederam dignos de registro a menos que se deseje preencher paacuteginas com elogios aos alicerces e agraves traves que o imperador usou para erguer seu gigantesco anfiteatro no Campus Martius []897
Analisaremos esse episoacutedio em conjunto com os Juvenalia ocorridos em
59 apoacutes o assassinato de Agripina Acreditamos que a leitura contiacutegua
proporcionaraacute um entendimento mais completo do modo como Taacutecito elabora sua
representaccedilatildeo do Nero artista Falemos entatildeo do matriciacutedio898
O historiador
comenta que Nero em meio ao seu poder e ao seu novo amor por Popeia cria
coragem para articular o assassinato da matildee A grande instigadora do crime era
Popeia pois desejosa de se casar com o princeps e fazecirc-lo se divorciar de Otaacutevia
queria se livrar da matrona alegando que ela controlava o filho899
Conforme
Taacutecito a ideia para a execuccedilatildeo do homiciacutedio veio do liberto Aniceto que sugeriu
a construccedilatildeo de um navio desmontaacutevel do qual uma parte se abriria e lanccedilaria
Agripina ao mar Essa ideia logo agradou Nero porque ele sabia que ningueacutem
atribuiria a morte a algueacutem mas agrave conhecida inconstacircncia do mar900
Assim o
princeps chama a sua matildee para se juntar a ele em Baiacuteas Naacutepoles e oferece a ela
um enorme jantar Quando Agripina resolve partir de Baiacuteas Nero a acompanha e
despede-se dela com ternura901
Mas seu navio natildeo vai longe
897
Nerone iterum L Pisone consulibus pauca memoria digna evenere nisi cui libeat laudandis
fundamentis et trabibus quis molem amphitheatri apud campum Martis Caesar exstruxerat
volumina implere cum ex dignitate populi Romani repertum sit res inlustres annalibus talia diurnis urbis actis mandare (Tac Ann 13311) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na
traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 285-286) 898
Depois do fratriciacutedio a matrona desaparece da narrativa dos Annales voltando a surgir soacute
agora no iniacutecio do livro 14 Para Barrett Fantham e Yardley (2016 p 55) essa ausecircncia sugere
duas coisas i) que ela teve pouco contato com Nero apoacutes o assassinato de Britacircnico e ii) que
nesse intervalo ela natildeo desempenhou nenhum papel relevante na vida poliacutetica de Roma 899
Tac Ann 141 Taacutecito nos conta que Agripina vendo o amor de Nero por Popeia fica com
medo de ter a sua influecircncia diminuiacuteda Por isso ela tenta manter relaccedilotildees incestuosas com o filho
Essa afirmaccedilatildeo eacute feita pelo historiador com base nos relatos de dois autores Faacutebio Ruacutestico e
Cluacutevio Rufo O primeiro atribui os desejos incestuosos a Nero e o segundo a Agripina Taacutecito
obviamente concorda com o uacuteltimo sustentando que o passado da imperatriz era lascivo (Tac
Ann 1422) 900
Tac Ann 1433 901
Tac Ann 1444
230
Dois escravos domeacutesticos estavam com Agripina Crepereio
Galo [] e Acerrocircnia [] Entatildeo um sinal eacute dado o teto que cobre o local desaba [] e Crepereio eacute imediatamente esmagado Agripina e Acerrocircnia salvam-se debaixo das laterais da cama que se projetava acima delas [] [] A desintegraccedilatildeo do navio natildeo acontece [] Desse modo os marinheiros acham melhor jogar o peso para um lado e virar o navio mas natildeo
conseguem chegar a um consenso [] fazendo com que as viacutetimas caiam no mar A imprudente Acerrocircnia grita que era Agripina e que a matildee do imperador deveria ser socorrida e eacute espancada ateacute a morte com [] quaisquer instrumentos mariacutetimos que estivessem agrave matildeo [dos marinheiros] Agripina permanecendo em silecircncio diminui a chance de reconhecimento [] Nadando ela encontra alguns esquifes que
a levam ao lago Lucrino e de laacute eacute transportada para sua proacutepria vila902
Agripina ao chegar em casa entende o ocorrido e julga prudente fingir
natildeo saber de nada Ao ouvir sobre o salvamento Nero se preocupa declarando
que sua matildee a qualquer momento prepararia uma vinganccedila Entatildeo ele convoca
Secircneca e Burro para ajudaacute-lo e este uacuteltimo afirma que os pretorianos tinham
jurado lealdade agrave casa dos Ceacutesares e por isso natildeo matariam a matrona Aniceto
deveria terminar o que comeccedilou903
Assim
Aniceto isola a vila e arromba a porta Ele se livra dos escravos
encontrados em seu caminho ateacute chegar agrave porta do quarto [de Agripina] [] Ela diz logo que se ele vinha visitaacute-la anunciasse ao princeps que estava recuperada [] Os assassinos se colocam ao redor da cama e Aniceto assume a lideranccedila golpeando-a na cabeccedila com uma clava O centuriatildeo entatildeo desembainha sua espada para desferir o golpe mortal
ldquoGolpeia-me no ventrerdquo ela grita mostrando seu uacutetero E assim morre por feridas de espada904
902
nec multum erat progressa navis duobus e numero familiarium Agrippinam comitantibus ex
quis Crepereius Gallus haud procul gubernaculis adstabat Acerronia super pedes cubitantis reclinis paenitentiam filii et recuperatam matris gratiam per gaudium memorabat cum dato signo
ruere tectum loci multo plumbo grave pressusque Crepereius et statim exanimatus est Agrippina
et Acerronia eminentibus lecti parietibus ac forte validioribus quam ut oneri cederent protectae
sunt nec dissolutio navigii sequebatur turbatis omnibus et quod plerique ignari etiam conscios
impediebant visum dehinc remigibus unum in latus inclinare atque ita navem submergere sed
neque ipsis promptus in rem subitam consensus et alii contra nitentes dedere facultatem lenioris
in mare iactus verum Acerronia imprudentia dum se Agrippinam esse utque subveniretur matri
principis clamitat contis et remis et quae fors obtulerat navalibus telis conficitur Agrippina silens
eoque minus agnita (unum tamen vulnus umero excepit) nando deinde occursu lenunculorum
Lucrinum in lacum vecta villae suae infertur (Tac Ann 145) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 305-306) 903
Tac Ann 1461-71-2 904
Anicetus villam statione circumdat refractaque ianua obvios servorum abripit donec ad fores
cubiculi veniret cui pauci adstabant ceteris terrore inrumpentium exterritis cubiculo modicum
231
Agripina eacute cremada na mesma noite em um funeral insignificante anuncia
Taacutecito905
Os centuriotildees parabenizam Nero por escapar dos perigos da matildee e os
senadores decretam accedilotildees de graccedilas em todos os templos906
Daiacute em diante o
imperador se entrega agraves torpezas estendendo ldquoseus crimes por muitos anosrdquo907
Como pudemos ver Taacutecito representa Nero como um indiviacuteduo aacutevido por
eliminar a matildee devido ao seu controle exacerbado exercido por ela sobre si ndash
efetivado ateacute no acircmbito amoroso contra suas relaccedilotildees com Acte e Popeia Ou
seja o matriciacutedio eacute algo justificaacutevel pois o princeps natildeo a suportava mais Aliaacutes
parece que ningueacutem mais a suportava haja vista que o historiador pontua as
congratulaccedilotildees dadas pelos senadores e centuriotildees Agripina entatildeo ndash e natildeo apenas
o soberano ndash eacute alvo de criacutetica ela natildeo se conformava com o seu papel social
Barrett argumenta que ela provavelmente foi muito influente na poliacutetica romana
da sua eacutepoca sendo sua morte uma forma de os senadores revelarem aquilo que
natildeo estavam dispostos a tolerar Natildeo eacute agrave toa que nenhuma outra mulher teve
espaccedilo no meio poliacutetico por um seacuteculo e meio depois908
Mas apesar da
insatisfaccedilatildeo suscitada pelo controle de Agripina provavelmente ningueacutem pensou
que Nero seria tatildeo desumano a ponto de mandar assassinaacute-la Mesmo com a
justificativa apresentada o crime chocou a todos marcando negativamente ndash e
para sempre ndash a reputaccedilatildeo do imperador como um Nero matricida Desse modo
no final das contas a profecia dos caldeus se cumpriu ele reinou mas a matou909
Ainda sobre esse assunto Mellor nos chama a atenccedilatildeo para uma questatildeo
importante natildeo devemos nos esquecer de que o retrato de Agripina divulgado
nos Annales ndash e em outras fontes ndash estaacute cheio de poderosos estereoacutetipos retoacutericos
lumen inerat et ancillarum una magis ac magis anxia Agrippina quod nemo a filio ac ne Agermus
quidem aliam fore laetae rei faciem nunc solitudinem ac repentinos strepitus et extremi mali
indicia abeunte dehinc ancilla ldquotu quoque me deserisrdquo prolocuta respicit Anicetum trierarcho
Herculeio et Obarito centurione classiario comitatum ac si ad visendum venisset refotam nuntiaret sin facinus patraturus nihil se de filio credere non imperatum parricidium
circumsistunt lectum percussores et prior trierarchus fusti caput eius adflixit iam [in] morte[m]
centurioni ferrum destringenti protendens uterum ldquoventrem ferirdquo exclamavit multisque vulneribus
confecta est (Tac Ann 1482-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 307-308) 905
Taacutecito outra vez recorre a alguns autores (desta vez sem especificaacute-los) e escreve Nero ldquo[]
viu sua matildee depois de morta e louvou as belas formas do seu corpo haacute quem o afirme e quem o
neguerdquo Haec consensu produntur aspexeritne matrem exanimem Nero et formam corporis eius
laudaverit sunt qui tradiderint sunt qui abnuant (Tac Ann 1491) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute
nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308) 906
Tac Ann 14101-2 907
Tac Ann 14132 908
BARRETT 2001 p 195 909
Tac Ann 1493
232
os quais precisam ser questionados Eacute possiacutevel que a competecircncia dela fosse real
afinal ela era temida por muitos indiviacuteduos inclusive por Claacuteudio e Nero A
aristocracia romana ateacute pode ldquo[] ter odiado as matriarcas imperiais mas o
Impeacuterio como um todo encontrou mais paz sob os Juacutelio-Claudianos [] com suas
mulheres extraordinariamente fortes []rdquo do que em qualquer outro momento910
Para aleacutem do retrato do Nero matricida consideramos que Taacutecito tambeacutem
constroacutei aqui o retrato do Nero artista Notemos que o delito eacute descrito de
maneira bem dramaacutetica o navio desmontaacutevel o desabamento do teto a morte da
escrava o nado de Agripina ateacute a praia e o golpe mortal no ventre Esses
elementos nos colocam em um universo artiacutestico sugerindo que o princeps
adorava viver a sua vida em um grande palco O objetivo de Taacutecito em
concordacircncia com Dominik foi criar uma apresentaccedilatildeo convincente das accedilotildees de
Nero Isso quer dizer que ele queria usar todos os argumentos possiacuteveis para
conferir ao imperador um peacutessimo (e provaacutevel) caraacuteter911
fato que se torna mais
notaacutevel quando nos lembramos de que os Annales foram escritos sob uma
sociedade na qual Taacutecito
[] desempenhava um papel significativo e natildeo precisava ser lembrado dos perigos que ameaccedilavam qualquer um que ofendesse [] o imperador Enquanto a tradiccedilatildeo romana [parecia] permitir que um satirista em verso [adotasse] uma persona para expressar as opiniotildees poliacuteticas um pouco
perigosas ou difamatoacuterias sem grandes medos de processo ou retaliaccedilatildeo a posiccedilatildeo de Taacutecito como um historiador era potencialmente menos segura [] [Logo] uma das suas estrateacutegias retoacutericas para expressar seus pontos de vista sem se comprometer com qualquer perspectiva eacute o uso da ecircnfase narrativa o arranjo das causas dos eventos histoacutericos e da motivaccedilatildeo possiacutevel por traacutes das accedilotildees dos vaacuterios personagens912
Para finalizarmos a discussatildeo sobre assassinato de Agripina julgamos
vaacutelido destacar mais duas questotildees A primeira eacute provaacutevel que apoacutes o matriciacutedio
a relaccedilatildeo entre Nero Secircneca e Burro tenha se enfraquecido pois os conselheiros
natildeo quiseram ajudar o jovem a finalizar o crime A segunda para redigir o
episoacutedio o historiador usa elementos da Octauia da Naturalis Historia e dos
910
MELLOR 2010 p 140 911
DOMINIK 2016 p 174 912
DOMINIK 2016 p 181
233
Epigrammata No caso da primeira fonte utiliza a noccedilatildeo de Nero como um liacuteder
que subjugou Roma a uma era decadente uma vez que eacute afirmado que Nero
estendeu seu reinado e crimes por muitos anos depois913
Das duas outras fontes
emprega a concepccedilatildeo de que Agripina mereceu o seu destino porquanto trouxe ao
mundo um governante ruim914
O empreacutestimo desses elementos mostra que os
traccedilos negativos do princeps estatildeo se tornando cada vez mais conectados entre as
narrativas e tambeacutem mais fortes As criacuteticas estatildeo se sucedendo no decorrer do
tempo consolidando a figura do matricida Natildeo podemos dizer se esse era o
objetivo central dos Annales mas com certeza Taacutecito reforccedila a constataccedilatildeo que
se construiu apoacutes o reinado de Nero a de que ele assassinou a matildee e o fez por
seus viacutecios de caraacuteter e natildeo para salvar o Estado (ainda que a criacutetica aos excessos
de Agripina se mantenha) Em outros termos ele por allelopoiesis pegou as
tradiccedilotildees interpretativas que o alcanccedilaram e concedeu a elas tons artiacutesticos
almejando que isso mudasse a forma como as pessoas se propunham a ver Nero
Depois da morte materna Nero comeccedila a dar mais expressatildeo puacuteblica a seu
entusiasmo pelas artes915
Secircneca e Burro inclusive deixam-no promover corridas
de bigas diante de um puacuteblico seleto916
Empolgado ele institui em 59 os jogos
Juvenalia celebrados provavelmente nos jardins da sua casa para os quais houve
inscriccedilotildees generalizadas
Nem o nascimento nobre nem as magistraturas do passado impediram algueacutem de representar um ator grego ou romano e
ateacute de imitar seus movimentos corporais pouco masculinos e sua muacutesica As matronas tambeacutem planejavam realizar desempenhos obscenos [] [] O resultado foi um aumento do comportamento degenerado e escandaloso e nunca nem nos tempos antigos de maior corrupccedilatildeo se viu maior depravaccedilatildeo do que aquela [] Finalmente o proacuteprio homem entrou no palco afinando cuidadosamente sua lira e se preparando [] Uma
coorte de soldados tambeacutem compareceu agrave apresentaccedilatildeo juntamente com centuriotildees tribunos e Burro que chorou e aplaudiu917
913
Tac Ann 132 914
Plin Nat 2246 Mart 463 915
Entusiasmo que jaacute vinha desde a sua infacircncia (Tac Ann 1331) 916
Tac Ann 14145 917
Ne tamen adhuc publico theatro dehonestaretur instituit ludos Iuvenalium vocabulo in quos
passim nomina data non nobilitas cuiquam non aetas aut acti honores impedimento quo minus
Graeci Latinive histrionis artem exercerent usque ad gestus modosque haud viriles quin et
feminae inlustres deformia meditari exstructaque apud nemus quod navali stagno circumposuit
Augustus conventicula et cauponae et posita veno inritamenta luxui dabantur stipes quas boni
234
A descriccedilatildeo dos Juvenalia e da construccedilatildeo do anfiteatro eacute formulada a
partir de dois argumentos centrais i) a corrupccedilatildeo dos costumes e da hierarquia
social e ii) a infacircmia de Nero Na passagem referente ao anfiteatro Taacutecito
assevera que a construccedilatildeo natildeo era digna de registro pois natildeo estava de acordo
com a ldquodignidade do povo romanordquo918
Ou seja para ele o edifiacutecio corrompera a
sociedade Entretanto Schulz comenta que em Roma a edificaccedilatildeo de preacutedios
puacuteblicos era esperada de um imperador uma vez que eles o ajudavam a promover
positivamente a sua imagem e a ganhar apoio sobretudo da plebe A construccedilatildeo
ligava-se agrave ideia de evergetismo praacutetica de conceder presentes agrave comunidade por
meio da constituiccedilatildeo de edifiacutecios da doaccedilatildeo de dinheiro do patrociacutenio de
espetaacuteculos entre outras atividades919
Nero levou tal praacutetica muito a seacuterio
embora Taacutecito natildeo reconheccedila isso Por exemplo Calpuacuternio Siacuteculo menciona o
luxo do anfiteatro erguido no Campus Martius920
E por que Taacutecito natildeo reconhece
a grandeza do edifiacutecio A nosso ver por causa da transgressatildeo social realizada por
Nero no local Sear explica que quando um evento ocorria em um anfiteatro toda
uma hierarquia social precisava ser mantida Como ilustraccedilatildeo para cada grupo
social era designado um assento especiacutefico e as apresentaccedilotildees eram restritas para
os atores e os cantores os quais em geral eram escravos ou libertos921
Eacute aiacute que
entra a criacutetica de Taacutecito O historiador anuncia que nos Juvenalia ndash sucedidos
dois anos depois da edificaccedilatildeo do anfiteatro ndash membros da elite e o proacuteprio
princeps se apresentaram Isso significa que apesar de ter planejado um preacutedio
magniacutefico Nero o usou para promover espetaacuteculos que desrespeitaram os status
sociais O resultado um ldquoaumento do comportamento degenerado e escandalosordquo
como defende Taacutecito Portanto os jogos satildeo representados como uma afronta agrave
honra da aristocracia e agrave dececircncia dos costumes922
A estrateacutegia usada pelo autor
foi se apropriar da imagem de um soberano generoso e propositor de preacutedios
necessitate intemperantes gloria consumerent inde gliscere flagitia et infamia nec ulla moribus
olim corruptis plus libidinum circumdedit quam illa conluvies vix artibus honestis pudor
retinetur nedum inter certamina vitiorum pudicitia aut modestia aut quicquam probi moris
reservaretur postremus ipse scaenam incedit multa cura temptans citharam et praemeditans
adsistentibus ph[on]ascis accesserat cohors militum centuriones tribunique et maerens Burrus ac
laudans (Tac Ann 14151-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 311) 918
Tac Ann 13311 919
SCHULZ 2019 p 70-138 920
Cal Ecl 723-56 921
SEAR 2006 p 2 922
Tac Ann 14152
235
luxuosos ndash exposta nas Eclogae ndash e transformaacute-la na imagem de um soberano
devasso e construtor de edifiacutecios imorais Em siacutentese Nero deixa de ser um
homem comprometido com a inovaccedilatildeo cultural (Nero prodigioso) para se tornar
um liacuteder comprometido com a licenciosidade (Nero antiprinceps e Nero artista)
Outro ponto precisa ser comentado aqui a ausecircncia de uma oposiccedilatildeo
expliacutecita por parte de Secircneca e Burro durante a realizaccedilatildeo da performance
neroniana Conforme Belchior e Devillers essa ausecircncia esteve vinculada ao
fenocircmeno da bajulaccedilatildeo atitude sintomaacutetica de uma sociedade em que o poder
centrava-se em um uacutenico indiviacuteduo923
Isso indica o fato de que os dois tutores ndash
de igual modo aos outros membros da elite romana ndash estavam inseridos em um
jogo de poder no qual muitas vezes ficar calado era essencial agrave sobrevivecircncia
Natildeo nos esqueccedilamos tambeacutem de que era a partir da bajulaccedilatildeo que os senadores e
os equestres adquiriam proeminecircncia magistraturas e honrarias Isso implica que
Secircneca e Burro se desejassem manter suas posiccedilotildees poliacuteticas e sociais natildeo
podiam dizer explicitamente aquilo que pensavam o que explica o aplauso
choroso de Burro
No ano seguinte em 60 o soberano continuou se dedicando aos seus
desejos artiacutesticos instituindo em Roma a primeira ediccedilatildeo dos Neronia festas
quinquenais aos moldes gregos
[] O resultado foi que qualquer coisa capaz de ser corrompida ou de causar corrupccedilatildeo estava agrave vista na cidade e os jovens
estavam se tornando decadentes com os modismos do exterior ndash visitando os ginaacutesios vagabundeando e entregando-se a casos de amor degradantes E o imperador e o Senado eram os responsaacuteveis natildeo apenas aprovavam tais viacutecios mas tambeacutem pressionavam os nobres romanos a se apresentarem no palco sob o pretexto de fazer discursos e poesia [] Os precircmios propostos para os oradores e para os poetas seriam um incentivo
ao talento e nenhum juiz acharia ofensivo emprestar seu ouvido a atividades intelectuais honradas e diversotildees legiacutetimas [] Ningueacutem levou o precircmio de oratoacuteria mas Nero foi declarado o vencedor924
923
BELCHIOR 2016 p 146-147 DEVILLERS 2012 p 174 924
[hellip] nulla cuiquam civium necessitate certandi ceterum abolitos paulatim patrios mores
funditus everti per accitam lasciviam ut quod usquam corrumpi et corrumpere queat in urbe
visatur degeneretque studiis externis iuventus gymnasia et otia et turpes amores exercendo
principe et senatu auctoribus qui non modo licentiam vitiis permiserint sed vim adhibeant [ut]
proceres Romani specie orationum et carminum scaena polluantur quid superesse nisi ut corpora
quoque nudent et caestus adsumant easque pugnas pro militia et armis meditentur an iustitiam
auctum iri et decurias equitum egregium iudicandi munus [melius] expleturos si fractos sonos et
236
Os espetaacuteculos foram uma inovaccedilatildeo em Roma com competiccedilotildees musicais
e de ginaacutestica925
Taacutecito atesta que a populaccedilatildeo manifestou-se positiva e
sobretudo negativamente com alguns afirmando que os gastos foram custeados
pelo princeps e outros falando que os paacutetrios costumes estavam decaiacutedos926
Em
relaccedilatildeo a esta uacuteltima declaraccedilatildeo vemos que eacute fortalecida a ideia da corrupccedilatildeo dos
costumes jaacute apresentada nos Juvenalia Nesse sentido o historiador assevera que
a devassidatildeo podia ser vista por toda a cidade e que o imperador juntamente com
os senadores pressionava os nobres a se apresentarem Tal imposiccedilatildeo eacute muito
demarcada por Taacutecito no excerto o que nos leva a considerar que a seu ver Nero
estava saindo do controle pois aqueles que o regulavam estavam mortos
(Agripina) ou com medo (Secircneca e Burro)
Mais um aspecto a ser destacado na passagem eacute a paixatildeo do soberano
pelas coisas gregas advinda tambeacutem desde os Juvenalia Griffin fornece algumas
explicaccedilotildees para tal sentimento i) as maiores influecircncias familiares sobre Nero o
seu avocirc Germacircnico e o seu tio Caliacutegula viveram na Greacutecia por certo tempo e em
aacutereas de forte influecircncia grega ii) o princeps era um visitante frequente de
Naacutepoles cidade de colonizaccedilatildeo grega que tradicionalmente proporcionava
relaxamento e entretenimento para os romanos e iii) ele encontrou na atitude
helecircnica frente agraves artes e espetaacuteculos um modelo de Principado que trazia uma
noccedilatildeo de monarquia divina927
Notemos que Taacutecito natildeo atribui um tom tatildeo nocivo
a essa paixatildeo mas apenas a aponta Mas Mratschek acredita que a pequena
menccedilatildeo revela seu intento de criticar a atitude imperial de diminuir a importacircncia
da cultura romana e aumentar a da grega ndash isto eacute Taacutecito estaacute insinuando que o
soberano prioriza os festivais e as celebraccedilotildees gregas ao inveacutes das romanas928
dulcedinem vocum perite audissent noctes quoque dedecori adiectas ne quod tempus pudori
relinquatur sed coetu promisco quod perditissimus quisque per diem concupiverit per tenebras
audeat [] oratorum ac vatum victorias incitamentum ingeniis adlaturas nec cuiquam iudici
grave aures studiis honestis et voluptatibus concessis impertire laetitiae magis quam lasciviae
dari paucas totius quinquennii noctes quibus tanta luce ignium nihil inlicitum occultari queat
sane nullo insigni dehonestamento id spectaculum transi[i]t ac ne modica quidem studia plebis
exarsere quid redditi quamquam scaenae pantomimi certaminibus sacris prohibebantur
eloquentiae primas nemo tulit sed victorem esse Caesarem pronuntiatum (Tac Ann 1520-21) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e
Yardley (2008 p 313-314) 925
CHAMPLIN 2005 p 72 LEIGH 2017 p 24 926
Tac Ann 1520-21 927
GRIFFIN 2001 p 209-215 928
MRATSCHEK 2013 p 45-64
237
Cabe salientar igualmente que Nero natildeo se apresentou nos Neronia nem
mesmo para um puacuteblico seleto como fez nos Juvenalia ao que parece ele soacute
assistiu agraves performances Poreacutem Champlin defende que um resultado infeliz desse
natildeo envolvimento foi o surgimento da praacutetica de lhe conceder precircmios sob
qualquer pretexto Daiacute em diante todas as coroas por tocar lira de todas as
competiccedilotildees seratildeo ofereciadas a ele atitude que para o autor colocaraacute o Nero
artista no caminho de escolhas perigosas929
Um uacuteltimo aspecto eacute o crescente
domiacutenio do jovem imperador sobre as pessoas que realizavam performances no
palco controlando as apresentaccedilotildees de cidadatildeos respeitaacuteveis por meio de
ldquoconvitesrdquo Esse desejo manter-se-aacute na esfera do controle ateacute 64 quando passaraacute a
compor e a cantar suas proacuteprias composiccedilotildees publicamente
Encerrados os jogos o princeps teve que direcionar sua atenccedilatildeo para a
fronteira noroeste do Impeacuterio a fim de resolver os problemas na Britacircnia
Segundo Taacutecito essa rebeliatildeo trouxe uma peacutessima imagem puacuteblica para o
imperador As contendas comeccedilaram no ano 60 quando Prasutago rei iceniano
famoso por sua riqueza nomeia Nero e suas duas filhas como herdeiros pensando
que esse ato de subserviecircncia manteria o seu reino e a sua famiacutelia fora de perigo
Contudo o resultado foi o contraacuterio seu reino eacute saqueado por centuriotildees
romanos sua esposa Boudica eacute accediloitada e suas filhas estupradas Impelido por
esse ultraje Prasutago incita os bretotildees agrave revolta930
Entatildeo Nero solicita a
Suetocircnio Paulino governador da Britacircnia que organize as suas tropas e marche
sobre os inimigos em Londres Ao ver isso Boudica monta em uma carruagem e
profere um discurso para os seus soldados dizendo que vingaria a tortura do seu
corpo e a honra manchada das suas filhas Poreacutem os romanos prevalecem
eliminando quase 80 mil bretotildees Ao final do conflito em 61 Boudica se suicida
e Nero envia o liberto Policlito agrave Britacircnia no intuito de que ele pacifique de vez
a regiatildeo Ao chegar laacute Policlito vira motivo de piada pois os bretotildees natildeo estavam
familiarizados com o poder dos libertos Conforme Taacutecito eles tambeacutem ficaram
surpresos com o fato de que Paulino o general que havia vencido a guerra tivesse
que dar ouvidos a um ex-escravo931
929
CHAMPLIN 2005 p 73 930
Tac Ann 1431-37 931
Tac Ann 14391-3 Para os confrontos na Britacircnia cf DU TOIT 1977 149-158 ROBERTS
1988 p 118-132
238
Nesse relato destacaremos o envio de Policlito agrave Britacircnia O julgamento
de Taacutecito eacute muito claro aiacute a confianccedila imperial em um liberto para pacificar a
situaccedilatildeo expocircs os romanos e um comandante bem-sucedido agrave humilhaccedilatildeo
puacuteblica932
Ao colocar Policlito na cena o historiador critica a distorccedilatildeo da
hierarquia social realizada por Nero haja vista que aqueles que deveriam estar na
base da piracircmide estavam no topo933
Mellor argumenta que Taacutecito desprezava os
soberanos que colocavam os libertos acima dos senadores enxergando-os como
liacutederes fracos e viciosos Assim Nero eacute caracterizado como um antiprinceps
altamente controlado por aqueles que ele deveria controlar934
Apoacutes a resoluccedilatildeo de tais conflitos Taacutecito nos conta que as tribulaccedilotildees do
Estado ficavam a cada dia mais seacuterias tornando-se piores com a morte de Burro
no iniacutecio de 62935
Nas palavras do autor foi grande a saudade que dele teve
Roma tanto pela sua integridade quanto pela infacircmia do comandante que o
substituiu Tigelino um forte instigador dos viacutecios imperiais936
Sem Burro e
incapaz de contar com a guarda pretoriana Secircneca solicita um afastamento Ao ter
o pedido negado muda sua rotina fugindo das comitivas e das visitas e evitando
sair de casa sob o pretexto de problemas de sauacutede ou estudos937
Assim os
homens que aconselharam Nero desde o iniacutecio do seu governo isto eacute por mais de
oito anos afastam-se dando espaccedilo para o poder de Tigelino e as suas maacutes
qualidades crescerem diariamente938
Popeia aproveita desse novo clima para
convencer Nero a se divorciar de Otaacutevia (com a qual ele jaacute estava casado haacute mais
de nove anos) e a casar-se com ela que de acordo com Taacutecito vivia em Roma e
932
GRIFFIN 2001 p 230 933
SAILOR 2008 p 80 934
MELLOR 2010 p 100 935
Taacutecito comenta natildeo saber se a morte foi por doenccedila ou veneno ldquo[] que se tratava de doenccedila
foi deduzido pelo fato de que ele parou de respirar quando havia um inchaccedilo grande em sua garganta e sua traqueia estava fechada Algumas pessoas alegaram que seguindo as instruccedilotildees de
Nero aplicaram um veneno em sua garganta com o pretexto de ser um remeacutedio Burro disseram
percebeu o crime e quando o imperador veio visitaacute-lo desviou o olhar e em resposta agraves perguntas
de Nero disse apenas lsquoestou bemrsquordquo Sed gravescentibus in dies publicis malis subsidia
minuebantur concessitque vita Burrus incertum valetudine an veneno valetudo ex eo
coniectabatur quod in se tumescentibus paulatim faucibus et impedito meatu spiritum finiebat
plures iussu Neronis quasi remedium adhiberetur inlitum palatum eius noxio medicamine
adseverabant et Burrum intellecto scelere cum ad visendum eum princeps venisset adspectum
eius aversatum sciscitanti hactenus respondisse ldquoego me bene habeordquo (Tac Ann 14511) A
traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e
Yardley (2008 p 328-329) 936
Tac Ann 14512-3 937
Tac Ann 1453-56 938
Tac Ann 14571
239
era bonita lasciva e inteligente sempre direcionando seus afetos a homens muito
ricos Foi assim que se casou com o senador Otatildeo Ele por sua vez seduziu-a
pelo seu estilo de vida luxuoso e pelo fato de ser um amigo proacuteximo de Nero939
O
historiador fala que Otatildeo ficou tatildeo empolgado com a uniatildeo que passou a elogiar
demasiadamente a esposa na frente do imperador Logo natildeo demorou para ele
querer conhececirc-la Ao se encontrar com o princeps Popeia com uma fala doce e
ardilosa finge estar apaixonada mostrando que natildeo podia resistir-lhe Ao
conquistar Nero dizia que era casada e natildeo podia abandonar o marido Natildeo tardou
para o soberano se livrar de Otatildeo nomeando-o governador da proviacutencia da
Lusitacircnia940
Tempos depois Popeia persuade Nero a se casar com ela Para tanto
ela articula um plano induzir um dos familiares de Otaacutevia a acusaacute-la de adulteacuterio
com um escravo As escravas da imperatriz satildeo chamadas e todas defendem a
inocecircncia da ama941
Fracassado o plano Nero separa-se com as aparecircncias de um
divoacutercio legal dando agrave ex-esposa vaacuterios donativos e propriedades942
Sob
influecircncia de Popeia ele alega publicamente que Otaacutevia era esteacuteril e que ele
estava preocupado com o futuro do trono Tal seria a razatildeo da separaccedilatildeo Ao saber
do divoacutercio a plebe derruba as estaacutetuas de Popeia e enfeita as de Otaacutevia com
flores943
Popeia com medo de que a violecircncia puacuteblica provocasse uma mudanccedila
de atitude no amante chama Nero e lhe fala que se fosse do seu interesse deveria
trazer para casa a mulher que o controlava mas por sua proacutepria vontade e natildeo por
coaccedilatildeo Essa fala afirma Taacutecito apavora e irrita Nero que entatildeo decide que a
acusaccedilatildeo de adulteacuterio deveria ser mais bem planejada e feita por algueacutem a quem a
subversatildeo tambeacutem pudesse ser atribuiacuteda E para isso Aniceto parece uma boa
escolha Convocando-o Nero lhe diz que ele precisa admitir um adulteacuterio com
Otaacutevia pelo que caso o fizesse seria recompensado com grandes presentes
Aniceto faz a confissatildeo diante de amigos reunidos pelo imperador e eacute banido para
a Sardenha Em seguida o princeps envia Otaacutevia para a ilha de Pandataacuteria944
939
Popeia deixou Rufo Crispino um equestre para casar-se com Otatildeo (Tac Ann 13454) 940
Tac Ann 13463 941
Taacutecito alega que a pureza de Otaacutevia era tatildeo grande que nem sob tortura as criadas contaram
algo que pudesse prejudicaacute-la (Tac Ann 14601-2) 942
Tac Ann 14604 943
A destruiccedilatildeo das estaacutetuas de Popeia pela plebe eacute apontada na Octavia ([Sen] Oct 794-799) 944
Tac Ann 1460-62
240
[] Depois de alguns dias a ordem de morte eacute dada Ela eacute
acorrentada e suas veias satildeo abertas [] e porque o sangue [] fluiacutea muito devagar sua morte eacute apressada pelo vapor de um banho quente Segue-se um ato de selvageria ainda mais atroz sua cabeccedila eacute cortada e levada a Roma para que Popeia a visse945
Iniciaremos a anaacutelise dos episoacutedios a partir de um ponto defendido por
Barrett a submissatildeo de Nero a mulheres com personalidade forte A primeira foi
sua matildee Agripina que dominou avidamente o iniacutecio da sua vida e do seu governo
E a segunda foi Popeia sua amante e futura esposa Flaacutevio Josefo jaacute havia
apontado que ela era bela e detentora de poderes muito reais a exemplo da
determinaccedilatildeo da soltura de prisioneiros judeus946
Nos Annales sua influecircncia eacute
apresentada por meio da sugestatildeo de que ela instigou tanto o matriciacutedio947
quanto
o divoacutercio de Nero em relaccedilatildeo a Otaacutevia conseguindo despertar a paixatildeo no
soberano e garantir o envio de Otatildeo agrave Lusitacircnia Como jaacute dissemos a ambiccedilatildeo
dessas mulheres era vista pela elite romana como um problema grave pois
revelava que um imperador natildeo conseguia controlar sua domus ndash entidade maior
sobre a qual ele presidia948
E para Taacutecito Nero deixava a ambiccedilatildeo delas desafiar
as restriccedilotildees constitucionais dando espaccedilo para que produzissem intrigas Tal
visatildeo adveacutem da sua concepccedilatildeo de corrupccedilatildeo moral do Principado a qual fazia
com que as mulheres articulassem manobras infinitas visando a preservaccedilatildeo da
sua influecircncia sobre os soberanos Em outros termos Taacutecito acreditava que elas
eram capazes de mandar assassinar rivais apenas pelo medo de perderem suas
posiccedilotildees Tudo valia para assegurar a proximidade e a influecircncia sobre o princeps
Barrett argumenta que precisamos considerar o fato de que agraves vezes Nero se
sujeitava a elas natildeo porque era fraco mas sim porque achava que eram
945
At Nero praefectum in spem sociandae classis corruptum et incusatae paulo ante sterilitatis
oblitus abactos partus conscientia libidinum eaque sibi comperta edicto memorat insulaque
Pandateria Octaviam claudit non alia exul visentium oculos maiore misericordia adfecit
meminerant adhuc quidam Agrippinae a Tiberio recentior Iuliae memoria obversabatur a
Claudio pulsae sed illis robur aetatis adfuerat laeta aliqua viderant et praesentem saevitiam
melioris olim fortunae recordatione adlevabant huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit
deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum haberet erepto per venenum patre et statim fratre
tum ancilla domina validior et Poppaea non nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni
exitio gravius (Tac Ann 14641-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo
do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 334-337) 946
Jos Vit 3 947
Tac Ann 141 948
BARRETT 2017 p 63-76
241
inteligentes e tinham boas ideias949
O problema eacute que em algum momento ele
parecia se cansar das intromissotildees Natildeo agrave toa Taacutecito desenha o relacionamento
imperial com elas de modo ldquopsicologicamente complexordquo passando de um
estaacutegio inicial de subserviecircncia para antipatia e violecircncia brutal Havia um padratildeo
de comportamento a submissatildeo sempre desembocava em assassinato Logo o
destino de Popeia mais tarde seraacute o mesmo de Agripina950
Contudo o
assassinato de Otaacutevia natildeo pode ser inserido nessa loacutegica Desde o iniacutecio da sua
narrativa Taacutecito frisa que para ela o matrimocircnio com Nero foi algo funesto e que
o princeps a abominava apesar da (ou ateacute mesmo por) nobreza e honra dela951
Ou seja o historiador mostra que Nero nunca se subordinou agrave filha de Claacuteudio e
sim agrave ambiccedilatildeo de sua matildee que casou os dois com objetivos dinaacutesticos e agrave de
Popeia capaz de fazecirc-lo seguir adiante com acusaccedilotildees falsas
Outro ponto a ser destacado eacute que o princeps soacute se divorciou porque
aqueles que poderiam se opor estavam mortos (Burro e Agripina) ou afastados
(Secircneca) Essa oposiccedilatildeo estaria ligada ao fato de eles saberem que o casamento
com Otaacutevia era o elemento garantidor do trono a Nero o ldquoelo vital com
Claacuteudiordquo952
O divoacutercio entatildeo aumentaria o espectro de rivais e teria sua
legitimidade reduzida Para evitar ambos os cenaacuterios ele precisaria fazer duas
coisas i) eliminar os possiacuteveis rivais e ii) desonrar a imagem de Otaacutevia E ele
assim os fez revela Taacutecito No primeiro caso sancionou os assassinatos de
Rubeacutelio Plauto e Fausto Sula descendentes de Augusto953
E no segundo alegou
que Otaacutevia era esteacuteril e o havia traiacutedo inicialmente com um escravo e depois
com Aniceto Griffin sustenta que Nero sempre temeu a repercussatildeo puacuteblica da
sua separaccedilatildeo o que explicaria o generoso divoacutercio inicial E seus receios
materializaram-se haja vista que a plebe se mostrou bastante insatisfeita com a
decisatildeo Foi por isso que ele sob influecircncia de Popeia fortaleceu a acusaccedilatildeo de
adulteacuterio e envolveu Aniceto ele natildeo podia perder a legitimidade do seu governo
e nem o apoio da turba Na percepccedilatildeo de Griffin Popeia e Nero ficaram
alarmados e as consequecircncias de tais temores foram duras o banimento e a morte
949
BARRETT 2017 p 63-76 950
BARRETT 2017 p 63-76 951
Tac Ann 14633 952
GRIFFIN 2001 p 98-112 953
Tac Ann 1457-59
242
de Otaacutevia954
Como registra Scullard a liberdade de que o Senado gozara graccedilas a
Secircneca e Burro no iniacutecio do reinado estava agora perdida e Nero estava sendo
corrompido pelo poder desenfreado Ao oacutedio do Senado foi adicionado o do povo
de Roma955
Eacute curioso notar ainda que a descriccedilatildeo taciteana de Nero e da filha de
Claacuteudio eacute muito semelhante agrave de Pseudo-Secircneca o princeps eacute um tirano perverso
e movido pelas paixotildees e Otaacutevia eacute uma jovem impassiacutevel que lamenta seu
destino Isso indica que o historiador teve a Octavia como sua fonte primordial de
informaccedilotildees baseando-se no seu enredo traacutegico para montar os Annales A grande
diferenccedila eacute que na Octavia a personagem de Popeia natildeo eacute ardilosa e natildeo tem
todo esse poder sobre Nero ndash laacute o princeps casou-se com ela porque se
apaixonara e natildeo porque ela o dominara Assim vecirc-se que Taacutecito acrescentou
mais drama ao drama adicionando detalhes mais soacuterdidos a uma histoacuteria que jaacute
era soacuterdida956
Consoante Murgatroyd mais um aspecto a ser ressaltado eacute a maneira
eficaz como Taacutecito destaca trecircs protagonistas entrelaccedilados em sua narrativa Em
primeiro lugar existe a ferramenta Nero O insensiacutevel imperador eacute um dos vilotildees
da histoacuteria mas embora tome a decisatildeo de se divorciar de Otaacutevia e ordene a
Aniceto que confesse um adulteacuterio falso ele eacute na verdade um grande fantoche de
Popeia Em segundo existe o motor principal a ardilosa Popeia que estaacute
determinada a eliminar Otaacutevia Ela sugere a acusaccedilatildeo letal de adulteacuterio com
Aniceto e perversamente segura a cabeccedila amputada da ex-esposa Nos Annales
ela eacute oposta a Otaacutevia e sua perversidade contrastante aumenta a simpatia pela
filha de Claacuteudio Em terceiro existe a viacutetima Otaacutevia Ela estaacute quase totalmente
sozinha contra dois oponentes malignos e poderosos e os seus ajudantes e parece
ainda mais pura ao lado de tantas pessoas maacutes957
Sua morte apesar de compor a
menor parte da narrativa eacute motivo de revolta para Taacutecito o qual afirma
954
GRIFFIN 2001 p 98-112 955
SCULLARD 2010 p 260 956
HURLEY 2013 p 36-37 Para mais semelhanccedilas entre os Annales e a Octavia cf BILLOT
2003 p 126-141 957
MURGATROYD 2008 p 264
243
[] Qualquer um que saiba sobre as tribulaccedilotildees daqueles
tempos por mim [] pode dar como certo que sempre que o imperador autorizava o exiacutelio ou o assassinato oraccedilotildees eram feitas aos deuses de modo que aquilo que antigamente era o sinal de puacuteblicas fortunas agora se tornou siacutembolo de desastre puacuteblico E no entanto natildeo devo me calar sobre nenhum decreto senatorial que marcou novos estaacutegios de subserviecircncia ou servilismo958
A localizaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo ao final do episoacutedio aumenta seu efeito
sobre os leitores Nero eacute condenado natildeo soacute por suas palavras e accedilotildees como
tambeacutem pelo servilismo impingido ao Senado Para Varella o historiador estaacute
insinuando aiacute que a pouca autonomia senatorial existente antes teria desaparecido
completamente O casamento com Popeia eacute o divisor de aacuteguas entre por um lado
um governo que ainda tinha algum aspecto moderado e por outro um governo
dominado pelo medo e pela luxuacuteria O Principado prodigioso de 59 estaacute se
tornando vicioso e exterminador da liberdade e das virtudes De 60 a 62 haacute um
novo arranjo poliacutetico negativo encabeccedilado por Popeia e Tigelino959
Para encerrar entendemos que Taacutecito retrata esses eventos como feitos
criminosos empregando para tanto uma ampla gama de detalhes a fim de
estimular seus leitores a visualizaacute-los sob a mesma luz que ele Por inuentio ele
opera acreacutescimos no seu texto como o domiacutenio de Popeia e a acusaccedilatildeo de
adulteacuterio de modo a possibilitar que os fatos (ou pelo menos sua versatildeo deles) se
tornem tatildeo emotivos a ponto de falarem por si mesmos E por allelopoiesis
transforma o Nero do passado ndash uxoricida e cruel ndash presente na Octavia e lanccedila
uma nova questatildeo sobre ele o controle feminino Dito de outro modo ele usa o
Nero do passado como um legado e ao mesmo tempo toma esse Nero como
mateacuteria de uso pelo presente modificando-o e tornando-o mais rico e complexo
aos nossos olhos No final das contas o princeps continua sendo um Nero cruel
mas deixa de ser um simples Nero uxoricida para se tornar um Nero antiprinceps
958
dona ob haec templis decreta que[m] ad finem memorabimus quicumque casus temporum
illorum nobis vel aliis auctoribus noscent praesumptum habeant quotiens fugas et caedes iussit
princeps totiens grates deis actas quaeque rerum secundarum olim tum publicae cladis insignia
fuisse neque tamen silebimus si quod senatus consultum adulatione novum aut paenitentia
postremum fuit (Tac Ann 14643) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do
latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 337) 959
VARELLA 2006 p 1-10
244
Passados dois anos no iniacutecio de 64 Taacutecito relata que Nero realiza os seus
desejos de se apresentar publicamente nos teatros
[] Ateacute aquele ponto ele havia confinado seu canto agrave sua casa ou ao seu jardim durante os jogos da Juvenalia mas agora estava comeccedilando a desdenhar deles pois [] eram muito limitados para ostentarem sua voz Todavia natildeo arriscaria uma estreia em Roma e escolhe Naacutepoles por ser uma cidade grega
Esse seria o seu ponto de partida ele pensa [] Assim reuacutene uma multidatildeo de habitantes da cidade e a eles se juntam aqueles de [] colocircnias e municiacutepios proacuteximos [] Tudo isso lota o teatro de Naacutepoles No teatro ocorre um incidente que a maioria pensa ser um pressaacutegio sinistro mas Nero acha providencial e um sinal de favor divino Depois que o puacuteblico vai embora o teatro vazio desaba sem causar ferimentos Por
conseguinte ele compotildee hinos agradecendo aos deuses e celebrando a boa sorte que acompanhou o colapso recente []960
Na passagem Taacutecito deixa muito claro que Nero escolhe se apresentar
publicamente em uma cidade de colonizaccedilatildeo grega ao inveacutes de uma cidade
romana Mas por quecirc A nosso ver por um uacutenico motivo precauccedilatildeo Fantham
esclarece que as apariccedilotildees de Nero no palco eram em certo sentido vistas pela
elite romana como algo inapropriado Isso significa que o imperador natildeo deveria
gastar quantias extraordinaacuterias de dinheiro em espetaacuteculos ndash que instigavam
devassidatildeo ndash e muito menos assumir o papel de um cantor no palco destinado a
escravos ou libertos Ao contraacuterio ele deveria ser um indiviacuteduo virtuoso em
maior grau do que todos os outros homens apresentando as qualidades de
gravitas dignitas e fides Nesse sentido ao se exibir no teatro de Naacutepoles Nero
assume um papel muito distante daquele reservado a um princeps (pelo menos o
princeps como entendido pelos senadores) Ele deixava de ser o mais nobre dos
960
C Laecanio M Licinio consulibus acriore in dies cupidine adigebatur Nero promiscas scaenas
frequentandi nam adhuc per domum aut hortos cecinerat Iuvenalibus ludis quos ut parum
celebres et tantae voci angustos spernebat non tamen Romae incipere ausus Neapolim quasi
Graecam urbem delegit inde initium fore ut transgressus in Achaiam insignesque et antiquitus
sacras coronas adeptus maiore fama studia civium eliceret ergo contractum oppidanorum vulgus
et quos e proximis coloniis et municipiis eius rei fama civerat quique Caesarem per honorem aut
varios usus sectantur etiam militum manipuli theatrum Neapolitanorum complent Illic plerique
ut arbitra[ba]ntur triste ut ipse providum potius et secundis numinibus evenit nam egresso qui
adfuerat populo vacuum et sine ullius noxa theatrum collapsum est ergo per compositos cantus
grates dis atque ipsam recentis casus fortunam celebrans petiturusque maris Hadriae traiectus
apud Beneventum interim consedit ubi gladiatorium munus a Vatinio celebre edebatur (Tac Ann
1533-34) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Barrett e Yardley (2008 p 353-354)
245
homens para se tornar o mais ignoacutebil fato que revelava agrave elite sua subordinaccedilatildeo a
um sujeito infame961
E Nero aparentemente tinha consciecircncia do que tal
subordinaccedilatildeo poderia gerar por isso natildeo arrisca estrear em Roma Eacute em uma
cidade de colonizaccedilatildeo grega que ele daacute o passo final e se apresenta diante de um
grande puacuteblico pela primeira vez Cabe salientar em concordacircncia com Lefebvre
que a progressatildeo instaurada por Taacutecito ndash a qual nos leva de um espetaacuteculo privado
perante um pequeno puacuteblico nos Juvenalia para um espetaacuteculo enorme perante
uma multidatildeo ndash objetiva demarcar um escacircndalo a degradaccedilatildeo neroniana que
expotildee uma paixatildeo artiacutestica indevida em vez de escondecirc-la semeando o caos Sua
atuaccedilatildeo portanto eacute lida pelo historiador como uma ofensa um perigo962
Ainda analisando o excerto Mordine ressalta outro ponto A apresentaccedilatildeo
puacuteblica neroniana embora lasciva fazia parte de um caacutelculo poliacutetico racional o
cultivo da plebe como contrapeso a uma elite senatorial cada vez mais hostil Na
verdade como princiacutepio geral as benfeitorias imperiais eram extensotildees do
funcionamento tradicional do sistema patrono-cliente pautado na estrutura social
de lealdade e dependecircncia Assim como os patronos forneciam comida e dinheiro
para seus dependentes tambeacutem os imperadores espalhavam sua generosidade para
todo o puacuteblico romano como se fossem todos seus clientes E Nero amava a
pompa proporcionando entretenimentos extravagantes para o povo e
compartilhando com ele seu prazer ndash a plebe a quem nossos antigos historiadores
de elite consideravam uma raleacute soacuterdida adoradora de comportamentos
permissivos963
Natildeo agrave toa Taacutecito afirma que ela sempre estava pronta para
acreditar no pior964
Antes de encerrarmos esse episoacutedio eacute imprescindiacutevel comentar que a ida
de Nero a Naacutepoles demonstra que um princeps mesmo sendo a maior autoridade
do Impeacuterio natildeo tinha liberdade de fazer o que quisesse ndash ou pelo menos natildeo
quando envolvia desafiar a honra da elite romana Caso a desafiasse as paacuteginas
contendo a sua histoacuteria seriam dominadas por retratos hostis965
Para sintetizar vemos que ateacute aqui Taacutecito delineia quatro contornos
negativos para o retrato do Nero artista i) Nero tinha ambiccedilotildees de tornar puacuteblico
961
FANTHAM 1994 p 83-85 962
LEFEBVRE 2017 p 116 963
MORDINE 2013 p 114-115 964
Tac Ann 15642 965
FANTHAM 1994 p 87-88
246
o seu lado artiacutestico ii) desde os primeiros jogos os membros das altas categorias
sociais apareceram com ele no palco ndash por obrigaccedilatildeo ou por vontade proacutepria
devido a uma provaacutevel recompensa iii) ele via suas atividades artiacutesticas em um
contexto grego e iv) sua paixatildeo inicialmente controlada aos poucos foi
adquirindo reacutedeas mais livres966 Esses contornos negativos satildeo produtos como
bem dissemos das insatisfaccedilotildees de um senador ou seja de um indiviacuteduo que se
utilizou das fontes agrave sua disposiccedilatildeo para erigir o estereoacutetipo retoacuterico de um mau
imperador Afinal o que ele apresenta na sua narrativa e como o faz dependem
diretamente dos seus propoacutesitos literaacuterios
Apoacutes Naacutepoles Taacutecito menciona que no final de 64 e no iniacutecio de 65
aconteceram dois grandes desastres na capital do Impeacuterio o incecircndio e a
construccedilatildeo da Domus Aurea967
Acerca do fogo o historiador anuncia natildeo saber se
foi acidental ou planejado por Nero pois suas fontes traziam ambas as versotildees
Contudo defende que foi a cataacutestrofe mais calamitosa jaacute vivida pelos habitantes
da Vrbs O fogo iniciado nas colinas do Palatino espalhou-se depressa indo das
planiacutecies ateacute os montes O pacircnico instalou-se na cidade e a populaccedilatildeo tentou
combater o fogo poreacutem algumas pessoas atrapalhavam os esforccedilos Estas assim o
fizeram porque segundo Taacutecito estavam sob ordens de Nero968
966
WINTERLING 2012 p 16 967
Eacute importante destacar que antes desse episoacutedio Taacutecito desenvolve uma sequecircncia narrativa
para fortalecer sua construccedilatildeo posterior da imagem negativa de Nero no incecircndio A narrativa
concerne ao torpe banquete ofertado por Tigelino e do casamento do princeps com Pitaacutegoras De
acordo com o historiador Nero ldquocontaminado por atos liacutecitos e iliacutecitos natildeo deixou nenhuma
enormidade inexplorada que pudesse aprofundar sua depravaccedilatildeo []rdquo ipse per licita atque
inlicita foedatus nihil flagitii reliquerat (Tac Ann 15374) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa
com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 356) 968
Tac Ann 15387
247
Na eacutepoca Nero estava em Acircncio e natildeo voltou para a cidade ateacute
que o fogo se aproximasse do preacutedio que ele havia feito construir para conectar o palaacutecio com os jardins de Mecenas [Domus Transitoria]969 Entretanto impedir que o fogo consumisse o palaacutecio e tudo na vizinhanccedila provou ser impossiacutevel Contudo para socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitiva Nero abriu o Campo de Marte os monumentos de
Agripa e ateacute seus proacuteprios jardins e ergueu edifiacutecios improvisados para abrigar as multidotildees desamparadas Suprimentos vitais foram enviados de Oacutestia e de municiacutepios vizinhos e o preccedilo dos gratildeos caiu [] Essas medidas [] se revelaram um fracasso terriacutevel pois se espalhou o boato de que no mesmo momento em que a cidade estava em chamas Nero subiu no seu palco privado e cantou sobre a destruiccedilatildeo de Troia
fazendo uma comparaccedilatildeo entre as tristezas do presente e os desastres do passado970
Como pudemos perceber logo no iniacutecio Taacutecito afirma suas incertezas
sobre o incecircndio declarando que suas fontes natildeo esclarecem se o desastre ocorreu
por acidente ou por um esquema de Nero Ele entatildeo ignora as incertezas e
prossegue com a descriccedilatildeo da violecircncia do fogo sem apontar para uma ou outra
direccedilatildeo Mas ele natildeo demora a escolher uma versatildeo dos fatos e faz sua primeira
insinuaccedilatildeo acerca da culpabilidade imperial ningueacutem ousou combater o incecircndio
porque alguns indiviacuteduos ameaccedilavam quem o fizesse dizendo que estavam sob
ordens971
A partir daiacute a narrativa muda de tom Taacutecito diz que o soberano
ausente de Roma soacute retornou quando ouviu que seu novo palaacutecio corria perigo
Trata-se de um comentaacuterio bastante ardiloso argumenta Barrett pois Taacutecito
apresenta os eventos de modo a criar a impressatildeo de que Nero era indiferente aos
sofrimentos dos cidadatildeos e soacute agiu quando seus interesses foram ameaccedilados ndash isto
eacute o motivo do retorno foi pessoal e egoiacutesta Barrett tambeacutem defende que Taacutecito
969
ldquo[] Durante os primeiros anos do seu Principado (entre 54 e 64) Nero supervisionou a construccedilatildeo da Domus Transitoria (Casa de Passagem) cujo nome refletia sua funccedilatildeo de unir as
possessotildees imperiais no Palatino com os Jardins de Mecenas no Esquilinordquo (COARELLI 2007 p
180) 970
Eo in tempore Nero Anti agens non ante in urbem regressus est quam domui eius qua
Palantium et Maecenatis hortos continuaverat ignis propinquaret neque tamen sisti potuit quin
et Palatium et domus et cuncta circum haurirentur sed solacium populo exturbato ac profugo
campum Martis ac monumenta Agrippae hortos quin etiam suos patefacit et subitaria aedificia
exstruxit quae multitudinem inopem acciperent subvectaque utensilia ab Ostia et propinquis
municipiis pretiumque frumenti minutum usque ad ternos nummos quae quamquam popularia in
inritum cadebant quia pervaserat rumor ipso tempore flagrantis urbis inisse eum domesticam
scaenam et cecinisse Troianum excidium praesentia mala vetustis cladibus adsimulantem (Tac
Ann 1539) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de
Barrett e Yardley (2008 p 357) 971
SCHULZ 2019 p 144
248
omite a explicaccedilatildeo mais oacutebvia pela demora no regresso a de que Nero
provavelmente deixou a resoluccedilatildeo da situaccedilatildeo para seus conselheiros voltando soacute
quando percebeu que o incecircndio era de fato grave972
Ao regressar viu que salvar
o seu palaacutecio era impossiacutevel o que natildeo o impediu de tomar medidas ldquopara
socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitivardquo973
Eacute intrigante que Taacutecito natildeo se
delongue nessas medidas positivas alegando que elas foram consideradas vatildes pela
populaccedilatildeo pois circulou o boato de que enquanto a cidade queimava Nero subiu
em seu palco privado e cantou a destruiccedilatildeo de Troia Na visatildeo de Barrett o
historiador inseriu tais boatos nesse ponto do texto com o intuito de fortalecer a
imagem negativa artiacutestica do princeps Lembremo-nos de que em 59 Nero
realizou performances para um puacuteblico restrito nos Juvenalia e em 64
apresentou-se pela primeira vez para um puacuteblico grande em Naacutepoles De acordo
com o autor ambas as apresentaccedilotildees sobretudo a uacuteltima foram as que deram
base para os boatos gerando especulaccedilotildees hostis a respeito do soberano974
Cabe
frisar que Taacutecito natildeo problematiza os boatos apenas os cita ndash atitude ratificadora
de uma afirmaccedilatildeo feita na introduccedilatildeo do capiacutetulo ele utilizava informaccedilotildees de
autores anteriores a ele para compor um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo
literaacuteria dominante Como certifica Woodman Taacutecito eacute retoacuterico e daacute um
tratamento literaacuterio a uma verdade factual para fins de dar vivacidade ao relato
natildeo pretendendo reconstituir uma verdade histoacuterica no sentido almejado por certas
abordagens modernas Isso significa que ele natildeo estava interessado em relatar o
que ldquorealmente aconteceurdquo mas o que ldquopoderia ter acontecidordquo975
Resumindo a
seu ver um imperador que jaacute tinha demonstrado interesses inapropriados em
coisas artiacutesticas obrigando os membros da elite a participarem dos espetaacuteculos e
invertendo a ordem social podia facilmente incendiar uma cidade e se apresentar
enquanto a via queimando
Taacutecito nos informa de que passados seis dias o fogo diminuiu poreacutem
natildeo tardou para ele voltar com toda intensidade nos lugares abertos da Vrbs a
972
BARRETT 2020 p 73 973
Gaia (2010 p 87-88) adiciona que o princeps diminuiu o peso dos aacuteureos (moedas de ouro) e
dos denaacuterios (moedas de prata) reduzindo o teortiacutetulo do metal precioso delas Depois de
Augusto Nero foi o uacutenico soberano a modificar o sistema monetaacuterio do Impeacuterio 974
BARRETT 2020 p 126 975
WOODMAN 1988 p 199
249
exemplo dos poacuterticos976
Daiacute emergiu um novo rumor popular o de que Nero
desejava erigir uma nova Roma dando-lhe o seu nome A esse rumor sucedeu
outro o soberano ordenou o incecircndio para adquirir terrenos para a construccedilatildeo da
sua Domus Aurea um novo palaacutecio que inspiraria
[] admiraccedilatildeo natildeo tanto com pedras preciosas e ouro [] mas com seus campos lagos e bosques [] O arquiteto e o engenheiro responsaacuteveis foram Severo e Ceacuteler que tiveram a genialidade e a audaacutecia de tentar imitar artificialmente a natureza e para tanto abusaram dos recursos do imperador []
Nero sempre buscou o incriacutevel Ele tentou cavar as alturas ao lado do Averno e os vestiacutegios de suas esperanccedilas fuacuteteis permanecem ateacute hoje []977
Vecirc-se que o complexo palaciano eacute figurado como a representaccedilatildeo da
ostentaccedilatildeo e do desperdiacutecio de dinheiro Conforme Beste e Hesberg natildeo haacute razatildeo
para acreditarmos que o imperador tenha induzido o incecircndio no afatilde de
desenvolver seu novo projeto pessoal Todavia independentemente de qualquer
coisa precisamos referenciar o enorme gasto de dinheiro puacuteblico dispendido na
situaccedilatildeo978
Taacutecito inclusive critica veementemente tal atitude falando que a
Itaacutelia foi devastada para aumentar os recursos de Nero e que templos foram
saqueados e proviacutencias foram arruinadas979
Ao inveacutes de seguir um caminho
moderado apoacutes um desastre que arruinou a cidade o princeps seguiu o da
dissipaccedilatildeo e o da extravagacircncia Segundo Kragelund esses excessos ndash que jaacute eram
considerados ruins pela elite romana na esfera privada ndash tornavam-se uma ameaccedila
na esfera puacuteblica gerando uma espiral cada vez mais viciosa de gastos e
976
Com o segundo incecircndio Taacutecito diz que dos 14 distritos em que Roma estava dividida quatro
permaneceram intactos trecircs foram totalmente destruiacutedos e sete ficaram em ruiacutenas (Tac Ann
15411) 977
Ceterum Nero usus est patriae ruinis exstruxitque domum in qua haud proinde gemmae et aurum miraculo essent solita pridem et luxu vulgata quam arva et stagna et in modum
solitudinem hinc silvae inde aperta spatia et prospetus magistris et machinatoribus Severo et
Celere quibus ingenium et audacia erat etiam quae natura denegavisset per artem temptare et
viribus principis inludere namque ab lacu Averno navigabilem fossam usque ad ostia Tibernia
depressuros promiserant squalenti litore aut per montes adversos neque enim aliud umidum
gignendis aquis occirrit quam Pomptinae paludes cetera abrupta aut arentia ac si perrumpi
possent intolerandus labor nec satis causae Nero tamen ut erat incredibilium cupitor effodere
proxima Averno iuga conisus est manentque vestigia inritae spei (Tac Ann 1542) A traduccedilatildeo
para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008
p 358) 978
BESTE HESBERG 2013 p 324 979
Tac Ann 15451 Pliacutenio o Velho alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras
detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a mando de Nero para
o confisco dos seus recursos (Plin Nat 187)
250
extorsotildees Ou seja quanto mais dinheiro Nero desembolsasse mais necessidade
sentiria de desembolsar E isso era muito perigoso980
Aleacutem de desaprovar o uso de recursos do Estado para a construccedilatildeo de algo
privado Taacutecito tambeacutem censura Nero por ter edificado a Domus Aurea sob ldquoas
ruiacutenas da paacutetriardquo981
Em outros termos ele o condena por ter usurpado
propriedades privadas e monumentos puacuteblicos para transformaacute-los no seu novo
complexo palaciano982
Essa criacutetica torna-se mais clara se voltarmos ao episoacutedio
da ascensatildeo quando o jovem no discurso inaugural do seu governo disse que os
negoacutecios da sua domus se manteriam independentes dos interesses da res
publica983
Seu projeto portanto contradiz claramente sua promessa anterior
Milnor explica que Taacutecito acreditava que a vida domeacutestica de um imperador
deveria ser separada da sua vida ciacutevica e militar Ele tambeacutem entendia que as
ldquoboas praacuteticas domeacutesticas virtuosasrdquo dos ancestrais romanos foram corrompidas
pela imoralidade trazida agrave esfera puacuteblica com o advento do Principado
Resumindo ele julgava que Nero ndash e outros soberanos ndash foi incapaz de manter
uma distinccedilatildeo adequada entre os negoacutecios puacuteblicos e os privados Natildeo eacute mera
coincidecircncia que nos Annales um dos escacircndalos do seu governo seja a Domus
Aurea O autor quis mostrar que Nero materializou um problema trazido haacute muito
pela dinastia Juacutelio-Claudiana a corrupccedilatildeo da sociedade fruto da ostentaccedilatildeo
realizada por liacutederes que davam agrave vida domeacutestica uma presenccedila exagerada no
palco puacuteblico984
Barrett chama a atenccedilatildeo para outro ponto importante na Roma imperial
os edifiacutecios grandiosos transmitiam uma mensagem ambiacutegua Eles podiam tanto
simbolizar excentricidade ou megalomania do governante quanto representar um
desejo altruiacutesta de fornecer amenidades para a populaccedilatildeo A primeira visatildeo jaacute foi
detectada na narrativa taciteana mas e a segunda O historiador trata pouco sobre
isso anunciando que o espaccedilo remanescente da cidade apoacutes a construccedilatildeo da
Domus Aurea foi ocupado por preacutedios e casas edificados de modo planejado e
regulado985
As novas medidas agradaram ao povo por sua praticidade e pelo
980
KRAGELUND 2000 p 497 981
Tac Ann 15421 982
WARDEN 1991 p 271 983
Tac Ann 1342 984
MILNOR 2012 p 465-473 985
Tac Ann 15431-4