As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...

403
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ANA LUCIA SANTOS COELHO As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da tradição literária sobre o último Júlio-Cláudio e o seu Principado (I-III d.C.) Mariana 2021

Transcript of As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...

Page 1: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA

ANA LUCIA SANTOS COELHO

As metamorfoses de Nero

Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo

Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC)

Mariana

2021

ANA LUCIA SANTOS COELHO

As Metamorfoses de Nero

Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo

Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Histoacuteria do Instituto de

Ciecircncias Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Ouro Preto

(UFOP) como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutora em

Histoacuteria

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Poder e

Linguagens

Linha de Pesquisa Ideias Linguagens e

Historiografia

Orientador Prof Dr Faacutebio Faversani

Mariana

Instituto de Ciecircncias Humanas e Sociais ndash UFOP

2021

Coelho Ana Lucia SantosCoeAs Metamorfoses de Nero [manuscrito] um estudo da construccedilatildeo datradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC) Ana Lucia Santos Coelho - 2021Coe403 f

CoeOrientador Prof Dr Faacutebio FAVERSANICoeTese (Doutorado) Universidade Federal de Ouro Preto Departamentode Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em HistoacuteriaCoeAacuterea de Concentraccedilatildeo Histoacuteria

Coe1 Imperadores - Roma 2 Nero Imperador de Roma 37- 68 3Tradiccedilatildeo Literaacuteria I FAVERSANI Faacutebio II Universidade Federal de OuroPreto III Tiacutetulo

Bibliotecaacuterio(a) Responsaacutevel Luciana De Oliveira - SIAPE 1937800

SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMACcedilAtildeO

C672a

CDU 9394

MINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

REITORIA INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTORIA

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

Ana Luacutecia Santos Coelho

As metamorfoses de Nero Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacutelmo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-IIIdC)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federalde Ouro Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tulo de Doutor

Aprovada em 28 de maio de 2021

Membros da banca

Prof Dr Faacutebio Faversani - Orientador (Universidade Federal de Ouro Preto)Profa Dra Semiacuteramis Corsi Silva - (Universidade Federal de Santa Maria)

Profa Dra Sarah Fernandes Lino de Azevedo - (Universidade de Satildeo Paulo)Profa Dra Helena Amalia Papa - (Universidade Estadual de Montes Claros)

Prof Dr Fabio Duarte Joly - (Universidade Federal de Ouro Preto)

Faacutebio Faversani orientador do trabalho aprovou a versatildeo final e autorizou seu depoacutesito no Repositoacuterio Instucional da UFOP em 12072021

Documento assinado eletronicamente por Fabio Faversani PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR em 10072021 agraves1913 conforme horaacuterio oficial de Brasiacutelia com fundamento no art 6ordm sect 1ordm do Decreto nordm 8539 de 8 de outubro de 2015

A autencidade deste documento pode ser conferida no site hpseiufopbrseicontrolador_externophpacao=documento_conferirampid_orgao_acesso_externo=0 informando o coacutedigo verificador 0177106 e o coacutedigo CRC 8DC6421C

Referecircncia Caso responda este documento indicar expressamente o Processo nordm 231090053372021-33 SEI nordm 0177106

R Diogo de Vasconcelos 122 - Bairro Pilar Ouro PretoMG CEP 35400-000 Telefone 3135579406 - wwwufopbr

A meus pais Alberto e Lucia

Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia

A todas as Anas (boas e ruins) surgidas ao longo desta tese

A Nero

AGRADECIMENTOS

Ao teacutermino de um trabalho acadecircmico eacute impossiacutevel natildeo agradecer agravequeles

que de alguma forma estiveram presentes durante o processo de escrita Entatildeo

vamos laacute

Agradeccedilo primeiramente a mim mesma pela perseveranccedila e resiliecircncia

ao longo destes cincos anos principalmente neste uacuteltimo ano pandecircmico

Ao Professor Dr Faacutebio Faversani por me acolher como orientanda na

UFOP desde 2016 guiando meus passos e dedicando-me atenccedilatildeo e paciecircncia

Aos Professores Doutores Faacutebio Duarte Joly e Artur Costrino pelas

sugestotildees recomendadas durante o Exame de Qualificaccedilatildeo as quais foram

fundamentais para o acerto dos rumos da minha pesquisa Agrave Universidade Federal

de Ouro Preto e ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria por possibilitarem a

execuccedilatildeo deste trabalho Ao Giovani Duarte pela revisatildeo atenta deste texto que

certamente conferiu melhorias a ele

Aos meus pais Lucia e Alberto que tanto renunciaram aos seus sonhos

para que eu pudesse realizar os meus Esta conquista natildeo eacute minha eacute nossa

Ao meu irmatildeo Rafael pela amizade pelo carinho e por estar sempre

torcendo pelas minhas conquistas

A meus colegas do LEIR-UFOP Caroline Morato Stephanie Caroline

Coelho Joatildeo Victor e Mamede pelas ideias e dicas

Aos meus colegas de profissatildeo e de vida Norma Cloacutevis Elenise Barata

Nei Faniacute Amali Marcos Ludmila e Andrey pela forccedila nestes tempos sombrios

A todos os meus queridos alunos por me confirmarem a cada dia o quatildeo

maravilhoso eacute ser professora

Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia por todo amor que

vocecircs trazem ao meu mundo

ldquoE o injusto hoje eacute justo amanhatilde

para a cidaderdquo1

1 καὶ πόλις ἄλλως ἄλλοτ᾿ ἐπαινεῖ τὰ δίκαια (Aes Sept 1070-1071) Traduccedilatildeo de Vieira (2018 p

105)

RESUMO

Esta tese eacute um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre Nero e seu

Principado (I-III dC) Analisamos como a imagem desse soberano foi se

modificando ao longo dos seacuteculos ateacute se consolidar negativamente com as obras

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Com o passar do tempo os traccedilos positivos de

tal imperador foram sendo apagados esquecidos eou alterados por diversos

autores antigos Acreditamos que isso ocorreu porque os julgamentos sobre ele e

seu governo foram feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios especiacuteficos que por

mudarem no decorrer dos anos geraram um processo de reelaboraccedilatildeo da

memoacuteria Ou seja cada autor dentro da sua proacutepria temporalidade produziu um

Nero condizente com seus valores e dilemas o qual por sua vez transformou os

Neros anteriores e reforccedilou mais e mais os aspectos negativos Empreendemos

essa investigaccedilatildeo por meio da anaacutelise de fontes textuais variadas situadas entre os

seacuteculos I e III selecionando as referecircncias sobre o imperador contidas aiacute e

inserindo-as em um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias

Portanto mostramos como as criacuteticas a Nero retiraram suas caracteriacutesticas

individuais transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua

realidade histoacuterica para tornaacute-lo um modelo atemporal de mau governante

Palavras-chave Impeacuterio Romano Principado de Nero Tradiccedilatildeo Literaacuteria

Allelopoiesis

ABSTRACT

This thesis investigates the formation of the literary tradition concerning Nero and

his Principate (I-III AD) We analyze the ways this sovereignrsquos image changed

across the centuries until its consolidation in the negative sense through the works

of Tacitus Suetonius and Cassius Dio With the passage of time positive

attributes of this emperor were gradually eliminated forgotten andor altered by

several authors We claim this happened because judgments that befell him and

his government were made in specific historical and literary contexts and these

judgments spawned a process of memory rewriting In other words each author

within hisher own temporality depicted a version of Nero consistent with hisher

values and dilemmas which in turn transformed the preceding portrayals of Nero

and helped reinforce more and more of his negative traits We develop our study

by examining various textual sources situated between the first and third

centuries AD selecting references therein that allude to the emperor and placing

them in a multiple categorical complex guided by 13 categories Therefore we

show how the criticisms towards Nero removed from him his individual

characteristics converted him into a figure ever more disconnected from his

historical reality and wound up turning him into an atemporal model of bad ruler

Keywords Roman Empire Neronian Principate Literary Tradition

Allelopoiesis

ABREVIATURAS DE OBRAS ANTIGAS

Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em

latim ou em grego

Tiacutetulo da obra em

portuguecircs

Aes Sept Eacutesquilo Septem contra Thebas

Ἑπτὰ ἐπὶ Θήβας Sete Contra Tebas

Arist Poet Aristoacuteteles De Poetica Περὶ

ποιητικῆς Peri poietikecircs Poeacutetica

Aug RG Augusto Res Gestae A Vida e os Feitos do

Divino Augusto

Calp Ecl Calpuacuternio

Siacuteculo Eclogae Bucoacutelicas

Cic de Orat

Cic Rhet

Her

Ciacutecero

De oratore

Rhetorica ad

Herennium

Do Orador

Retoacuterica a Herecircnio

Dio Diatildeo Caacutessio Historia Romana

Ῥωμαϊκὴ Ἱστορία Histoacuteria Romana

Hor Ars P Horaacutecio Ars Poetica Arte Poeacutetica

Jos AJ

Jos BJ

Jos Vit

Flaacutevio

Josefo

Antiquitates Judaicae

Bellum Judaicum

Vitae

Antiguidades Judaicas

Guerras Judaicas

Vida

Gel Aulo Geacutelio Noctes Atticae Noites Aacuteticas

Pers Peacutersio Saturae Saacutetiras

Luc Lucano Pharsalia Farsaacutelia

Mart Ep

Mart Marcial

Epigrammata

Liber Spectaculorum

Epigramas

Livro dos Espetaacuteculos

Plin Ep Pliacutenio o

Jovem Epistulae Cartas

Plin Nat Pliacutenio o

Velho Naturalis Historiae Histoacuteria Natural

Plut Alex Plutarco Vitae Parallelae

Βίοι Παράλληλοι Vidas Paralelas

Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em

latim ou em grego

Tiacutetulo da obra em

portuguecircs

Quint Inst Quintiliano Institutio Oratoria Instituiccedilatildeo Oratoacuteria

Sen Apoc

Sen Cl Secircneca

Apocolocyntosis divi

Claudii

De Clementia

Apocolocintose

Sobre a Clemecircncia

[Sen] Oct Pseudo-

Secircneca Octauia Otaacutevia

Sid Ep Sidocircnio

Apolinaacuterio Epistulae Cartas

Stat Silv Estaacutecio Silvae Silvas

Suet Aug

Suet Cl

Suet Gal

Suet Nero

Suet Otho

Suet Vesp

Suet Vit

Suetocircnio

(De Vita Caesarum)

Divus Augustus

Divus Claudius

Galba

Nero

Otho

Divus Vespasianus

Vitellius

(Vida dos Doze

Ceacutesares)

Divino Augusto

Divino Claacuteudio

Galba

Nero

Otatildeo

Divino Vespasiano

Viteacutelio

Tac Agric

Tac Ann

Tac Dial

Tac Hist

Taacutecito

Agricola

Annales

Dialogus de Oratoribus

Historiae

Agriacutecola

Anais

Diaacutelogo dos Oradores

Histoacuterias

Thuc Tuciacutedides Historiae

Ἱστορίαι

Histoacuteria da guerra do

Peloponeso

Vac Vaca Vita Marco Annaei

Lucani

Vida de Marco Aneu

Lucano

Verg A Viacutergilio Aeneid Eneida

VH _

(Scriptores Historiae

Augustae)

Vita Hadriani

(Histoacuteria Augusta)

Vida de Adriano

OBRAS DE REFEREcircNCIA

ILS ndash Inscriptiones Latinae Selectae

OCD ndash Oxford Classical Dictionary

OCGD - Oxford Classical Greek Dictionary

OLD ndash Oxford Latin Dictionary

RIC ndash The Roman Imperial Coinage

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 16

Capiacutetulo 1 Neros recentes 34

Nero um mau imperador 37

Nero um bom imperador 43

Nero o imperador fantoche 49

Os verdadeiros Neros 57

Os muacuteltiplos Neros 81

Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69) 87

Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia 90

Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae 110

Lucano Pharsalia 125

Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96) 137

Pseudo-Secircneca Octauia 140

Pliacutenio o Velho Naturalis Historia 160

Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae 173

Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae 186

Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235) 208

Taacutecito Annales 211

Suetocircnio De Vita Caesarum 264

Diatildeo Caacutessio Historia Romana 308

Consideraccedilotildees Finais 348

Referecircncias 358

Apecircndice 398

Apecircndice A Cronologia da vida de Nero 399

Anexos 400

Anexo A Aacutervore genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia 401

Anexo B Mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 402

Anexo C Mapa da Roma neroniana 403

PROacuteLOGO

Reconstituiccedilatildeo hiper-realista de Nero2

Fonte httpscesaresderomacomPROYECTO

2 A reconstituiccedilatildeo foi produzida pelo escultor espanhol Salva Ruano em 2019 Ela adveio de um

projeto intitulado Ceacutesares de Roma desenvolvido com o intuito divulgar a histoacuteria romana

claacutessica a partir de uma percepccedilatildeo mais humana real e moderna Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpscesaresderomacomPROYECTO Acesso em 12 mar 2021

16

Introduccedilatildeo

A pesquisa apresentada nesta tese teve iniacutecio em 2016 com o ingresso da

discente no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de

Ouro Preto (UFOP) O projeto desenvolvido teve como objeto de estudo a

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa que se consolidou acerca do imperador Nero e do seu

Principado a qual o transformou no decorrer dos seacuteculos em exemplo notaacutevel de

monstruosidade e tirania

A ideia para a pesquisa adveio da observaccedilatildeo dos usos midiaacuteticos

negativos da figura do soberano que eacute constantemente evocado no cinema no

teatro na muacutesica na oacutepera na pintura e na literatura No cinema por exemplo

Nero foi rememorado no famoso filme Quo vadis lanccedilado em 19511 cujo

roteiro baseou-se no livro de Henryk Sienkiewicz de 1895-1896 e ambas as

produccedilotildees trazem uma leitura francamente desfavoraacutevel do princeps2 No teatro

foi relembrado na burlesca peccedila Time of Nero and Seneca from Soviet escrita em

1984 pelo russo Radzinsky que discute a relaccedilatildeo conturbada de Nero e Secircneca3

Por sua vez na muacutesica foi desenhado em 1946 como uma ldquomulher histeacutericardquo na

composiccedilatildeo de Louis Jordan intitulada Ainrsquot that just like a woman e tambeacutem

como um soberano louco e festeiro em 1997 na muacutesica Danccedila da Manivela da

banda Asa de Aacuteguia Na oacutepera foi reavivado em 1643 na encenaccedilatildeo

Lrsquoincoronazione di Poppea de autoria do maestro Claacuteudio Monteverdi bem

como na produccedilatildeo Neacuteron apresentada em 1879 pelo pianista Anton Rubistein

Ao seu turno na pintura e na literatura fez-se presente na prestigiada tela The

remorse of Nero after the murder of his mother criada por John Waterhouse em

1878 e no recente livro Maman je veux pas ecirctre empereur elaborado por

1 Para uma lista de filmes sobre Nero cf PUCCI 2011 p 62-75

2 ldquo[] O tiacutetulo de princeps (o mais eminente cidadatildeo do Estado) era dado a um cidadatildeo que

ocupasse uma posiccedilatildeo de lideranccedila e destaque na cidade obtida pela consagraccedilatildeo de sua

popularidade dignitas e auctoritas Haacute muita diferenccedila entre a posiccedilatildeo dos priacutencipes republicanos

e a posiccedilatildeo de Otaacutevio como priacutencipe do Senado Durante a Repuacuteblica a preeminecircncia do priacutencipe

natildeo era permanente sendo revestida de noccedilotildees de paridade e equidade [] lsquoprimeiro entre os

iguaisrsquordquo (MENDES 2006 p 26) 3 A peccedila foi adaptada para a televisatildeo no mesmo ano apresentando o encontro do imperador mais

sanguinaacuterio de Roma com Secircneca em uma arena romana Uma longa conversa entre os dois

termina na exibiccedilatildeo do relacionamento do princeps com Deus e com o poder Informaccedilatildeo

disponiacutevel em httpswwwnytimescom19840914moviestheater-time-of-nero-and-seneca-

from-soviethtml Acesso em 02 set 2019

17

Franccediloise Xenakis em 2001 Esta uacuteltima produccedilatildeo em particular concede ao

soberano a imagem de um menino sensiacutevel e incompreendido que embarcou

contra a sua vontade ldquono mundo conturbado da poliacuteticardquo4

A figura do princeps tambeacutem eacute muito recorrente no debate poliacutetico atual

A emergecircncia contemporacircnea de governos conservadores com perfil autoritaacuterio

tem sido associada agrave tirania neroniana trazendo aos holofotes o retrato negativo

imperial Como ilustraccedilatildeo vimos em 2018 a associaccedilatildeo do soberano ao entatildeo

presidente dos Estados Unidos Donald Trump tido como o ldquonovo Nerordquo em

consequecircncia dos incecircndios florestais na Califoacuternia As devastaccedilotildees foram

divulgadas pelos jornais norte-americanos com os seguintes tiacutetulos ldquoNero toca

lira enquanto Trump ateia fogordquo5 ldquoTocando lira enquanto a Ameacuterica queima

Trump eacute o atual imperador Nerordquo6 Um ano depois em 2019 foi a vez de

assistirmos agrave comparaccedilatildeo do princeps com o presidente da Repuacuteblica no Brasil

Jair Bolsonaro considerado o ldquoincendiaacuterio modernordquo devido aos desmatamentos

e agraves queimadas na floresta Amazocircnica A esse respeito os jornais logo criaram as

suas manchetes ldquoNero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar

incecircndiosrdquo7 ldquoBolsonaro imita Nerordquo

8 e ldquoBolsonaro queima o Brasil para o

mundordquo9 Tais notiacutecias nos fizeram entender que os defeitos ou os crimes

imperiais satildeo relembrados para condenar estadistas que tiveram atitudes

4 LEFEBVRE 2017 p 13 Em 2013 foi veiculado um livreto de Monteiro Lobato denominado

No Tempo de Nero Na aventura os personagens do Siacutetio do Pica-Pau Amarelo conhecem a Roma

neroniana Ao chegarem agrave capital do Impeacuterio satildeo presos por terem ldquocara de cristatildeosrdquo e

condenados pelo pior crime da eacutepoca Enquanto o grupo eacute obrigado a enfrentar um rinoceronte em

pleno Coliseu Emiacutelia inventa um plano para tirar todo mundo daquela encrenca e retornar ao Siacutetio

Cf LOBATO 2013 5 HURT C Nero fiddles while Trump burns The Washington Times Nova Iorque 18 set 2018

Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwwashingtontimescomnews2018nov18nero-

fiddles-while-trump-burns Acesso em 02 set 2019 6 ADDIS F Fiddling while America burns Trump is todayrsquos emperor Nero CITYAM London

17 set 2018 Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwcityamcomfiddling-while-america-burns-trump-todays-emperor-nero Acesso em 02 set 2019 Em abril de 2018 o

classicista Freudenburg publicou um artigo intitulado Donald Trump and Romersquos Mad Emperors

no jornal online Common Dreams em que discute essa associaccedilatildeo entre Donald Trump e Nero Cf

httpswwwcommondreamsorgviews20180429donald-trump-and-romes-mad-emperors 7 PRATES J P Nero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar incecircndios Carta

Capital Satildeo Paulo 29 de ago 2019 Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em

httpswwwcartacapitalcombropiniaonero-brasileiro-bolsonaro-joga-gasolina-em-vez-de-

apagar-incendios Acesso em 30 ago 2019 8 SILVA B da Bolsonaro imita Nero Miacutedia Ninja Satildeo Paulo 30 ago 2019 Poliacutetica

Reportagem disponiacutevel em httpsmidianinjaorgbeneditadasilvabolsonaro-imita-nero Acesso

em 01 set 2019 9 STRECKER M Bolsonaro queima o Brasil para o mundo Istoeacute Satildeo Paulo 30 ago 2019

Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em httpsistoecombrbolsonaro-queima-o-brasil-para-o-

mundo Acesso em 01 set 2019

18

semelhantes agraves atribuiacutedas ao soberano ndash ou seja os meios de comunicaccedilatildeo

associam Nero a poliacuteticos na tentativa de desqualificar estes uacuteltimos10

Essa desqualificaccedilatildeo pode ocorrer segundo Faversani de trecircs formas A

primeira ndash e a mais empregada ndash eacute a acusaccedilatildeo de os governantes serem vaidosos

em excesso e cegos perante a falta de talentos que os aduladores lhes atribuem

fato que produz um estadista com o ego demasiadamente inflado A segunda eacute o

ataque a condutas do proacuteprio governante sobretudo agravequelas de destruiccedilatildeo material

ou abstrata de patrimocircnios ou valores A terceira eacute a menccedilatildeo agrave tirania ou uma

combinaccedilatildeo desta com alguns dos crimes imperiais11

Independentemente da

desqualificaccedilatildeo escolhida uma questatildeo eacute recorrente os usos de Nero possibilitam

uma nova interpretaccedilatildeo do passado e uma anaacutelise ineacutedita do presente O problema

historiograacutefico eacute que esses usos retiram o princeps do seu contexto original e

colocam-no em um cenaacuterio permeado por esquemas preexistentes e selecionados

para criar a imagem de um soberano cruel Em outras palavras sua imagem eacute

sempre relembrada de maneira que as menccedilotildees positivas a ele satildeo esquecidas e as

negativas satildeo mantidas agravadas eou acrescidas de elementos novos

A constante retomada de Nero ao longo de seacuteculos gera um efeito

interessante de se observar o de sua familiarizaccedilatildeo entre os indiviacuteduos mesmo

entre a ampla parcela da populaccedilatildeo que nunca recebeu uma educaccedilatildeo erudita com

grande contato com a literatura claacutessica Nero eacute simultaneamente o imperador

romano distante no tempo e um personagem atemporal de caraacuteter traacutegico capaz

de accedilotildees monstruosas As retomadas agrave sua imagem tendem a mesclar o

personagem histoacuterico com outros personagens que agiram como se fossem Nero ndash

os novos Neros ndash ou com o Nero heroacutei traacutegico atemporal que se combina com

aquele histoacuterico de forma indissociaacutevel Assim Nero estaacute no passado mas natildeo

estaacute aprisionado nele podendo reaparecer a qualquer momento e encarnar o anti-

heroacutei em alguma de nossas muitas trageacutedias contemporacircneas

Essas apropriaccedilotildees contemporacircneas do imperador ndash pouco rigorosas do

ponto de vista historiograacutefico mas usuais e compreendidas pelo grande puacuteblico ndash

fomentaram a nossa curiosidade em verificar como as fontes literaacuterias da

10

Em 2020 Faversani publicou um artigo na revista Histoacuteria da Historiografia intitulado Tirano

Louco e Incendiaacuterio BolsoNero Anaacutelise da Constituiccedilatildeo da Assimilaccedilatildeo entre o Presidente da

Repuacuteblica do Brasil e o Imperador Romano como ldquoAllelopoiesisrdquo no qual discute perspicazmente

essa relaccedilatildeo midiaacutetica entre Jair Bolsonaro e Nero 11

FAVERSANI 2020 p 377

19

Antiguidade o representavam Apoacutes algumas leituras notamos que a loacutegica se

repete os relatos criacuteticos se sobrepotildeem aos elogiosos com a maior parte das

narrativas descrevendo-o como um monstro Em certos momentos os autores

claacutessicos fornecem informaccedilotildees falsas para apoiar essa imagem dele e omitem

dados que possam contradizecirc-la em outros apresentam as accedilotildees do soberano fora

de contexto a fim de que seu significado original seja obscurecido ou entendido

apenas com dificuldade Portanto percebemos que na documentaccedilatildeo antiga em

termos da memoacuteria do imperador o ldquomaurdquo perpetuamente domina

Depois de refletirmos sobre os usos midiaacuteticos do princeps e lermos o

corpus textual do passado entendemos que a imagem do Nero incendiaacuterio e

assassino comeccedilou a ser criada na Antiguidade sendo retomada por geraccedilotildees

futuras a partir de debates poliacuteticos eou de representaccedilotildees artiacutesticas12

Essas

reaproximaccedilotildees transformaram o soberano em um personagem tiracircnico sem

paralelos contribuindo para o desenvolvimento e a durabilidade de uma tradiccedilatildeo

negativa que acabou apagando ndash quase completamente ndash qualquer traccedilo positivo

desse imperador ou do seu governo

Eacute a construccedilatildeo de tal tradiccedilatildeo na Antiguidade que investigaremos nesta

tese ndash ou se usarmos a expressatildeo do nosso tiacutetulo as Metamorfoses de Nero A

palavra metamorfose remete agrave obra homocircnima do poeta Oviacutedio escrita no iniacutecio

do seacuteculo I que traz descriccedilotildees de mutaccedilotildees incomuns como as de homens em

plantas animais rios pedras e em outros elementos Essas mutaccedilotildees satildeo relatadas

por Oviacutedio de uma forma que muito nos interessa aqui atraveacutes de uma narrativa

pautada na oposiccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e permanecircncia isto eacute de uma histoacuteria

que traz os traccedilos dos indiviacuteduos existentes antes das transformaccedilotildees e que depois

de modificados permaneceram na nova forma13

Tal procedimento nos ajuda a

compreender como as representaccedilotildees literaacuterias de Nero se consolidaram

negativamente tivemos diversas histoacuterias sobre ele que foram contadas (e

modificadas) ao longo do tempo mas que sempre mantiveram certa imagem

negativa contiacutenua

No nosso caso em especiacutefico trabalharemos com a tradiccedilatildeo literaacuteria

Decidimos lidar apenas com ela porque de todas as tradiccedilotildees existentes como a

monetaacuteria a iconograacutefica ou a epigraacutefica ela a nosso ver eacute a mais longa

12

Cf REA TOMEI 2011 13

CARVALHO 2010 p 19

20

contiacutenua e dominante influenciando na posteridade de forma mais determinante

do que as culturas material ou epigraacutefica na edificaccedilatildeo de outras tradiccedilotildees

Ademais acreditamos que as diferentes linguagens se comunicam de alguma

maneira mas tambeacutem guardam certa autonomia Por exemplo as imagens

literaacuterias e monetaacuterias de Nero natildeo podem ser entendidas como desconectadas

pois dialogam mas o fazem por uma miriacuteade de canais que natildeo permitem uma

comparaccedilatildeo direta e simples Logo sem negar que haja pontos de contato cada

forma de representaccedilatildeo cria uma tradiccedilatildeo proacutepria que precisa ser compreendida

em suas particularidades inclusive no que tange agrave cronologia

Dito isso eacute importante esclarecer o que concebemos como tradiccedilatildeo A

palavra tradiccedilatildeo adveacutem do vocaacutebulo latino traditio o qual de acordo com o

Oxford Latin Dictionary (OLD) possui dois significados i) a) ato de entregar a

entrega de bens posses etc b) a renuacutencia de pessoas territoacuterios etc ii) a) a

transmissatildeo de conhecimento ensino etc b) a entrega do conhecimento um item

de conhecimento tradicional crenccedila etc14

A segunda definiccedilatildeo eacute a que mais se

aproxima daquilo que pensamos por tradiccedilatildeo ou seja a passagem de um saber

para um indiviacuteduo ou grupo em tempos presentes ou futuros Nesse acircmbito

concordamos com Lerer quando afirma que a palavra traz consigo um sentido de

poder e controle uma espeacutecie de personificaccedilatildeo da autoridade Para o autor a

obra literaacuteria necessita ser lida como agente de poder como objeto que pode

legitimar ou deslegitimar governos e governantes15

Eacute dentro dessa perspectiva

que compreenderemos a prevalecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero

Nesse aspecto examinaremos a forma pela qual os escritores claacutessicos

controlaram a imagem do princeps persuadindo os leitores futuros a aceitarem a

figura de um monstro16

Ao fazecirc-lo focaremos na anaacutelise dos modelos

empregados por eles para comporem seus retratos do soberano Esses retratos

obviamente natildeo nasceram como criaccedilatildeo puramente ficcional dos autores eles

vieram de eventos testemunhados pelos proacuteprios autores ou por pessoas com as

quais eles conviveram aleacutem de narrativas tambeacutem Estas uacuteltimas se inseriam em

14

OLD 1968 p 1956 15

LERER 2016 p 2 16

Nesta tese empregaremos o conceito de imagem utilizado por Pesavento (2004 p 85-87) em

seu livro Histoacuteria amp Histoacuteria Cultural ldquorepresentaccedilotildees do mundo para serem vistasrdquo que possuem

uma ldquo[] funccedilatildeo epistecircmica de dar a conhecer algo uma funccedilatildeo simboacutelica de dar acesso a um

significado e uma esteacutetica de produzir sensaccedilotildees e emoccedilotildees no espectadorrdquo

21

diversas tradiccedilotildees jaacute constituiacutedas fixando uma grade hegemocircnica de leitura e

escrita que por sua vez era mobilizada para a inserccedilatildeo de novos ldquoretratosrdquo17

Estabelecidos esses pressupostos comeccedilamos a desenvolver nossa

pesquisa E natildeo havia ponto de partida melhor do que a busca pelo nascimento

dessa grade hegemocircnica de interpretaccedilatildeo sobre o imperador Eacute consenso entre os

pesquisadores contemporacircneos que a origem proveacutem dos trabalhos de trecircs autores

Taacutecito (AnnalesAnais livros 13-16) Suetocircnio (De Vita CaesarumVida dos Doze

Ceacutesares) e Diatildeo Caacutessio (Ῥωμαϊκὴ ἹστορίαHistoria Romana livros 61-63) cujas

obras foram compostas entre a primeira metade do seacuteculo II e a primeira metade

do seacuteculo III18

A leitura delas nos permite identificar criacuteticas acerca do princeps

ldquo[] Nero estendeu seu reinado e crimes por muitos anos []rdquo19

ldquoprostituiu seu

proacuteprio corpo a tal ponto que quando praticamente todas as partes [] estavam

maculadas ele concebeu uma praacutetica nova e sem precedentes []rdquo20

e ldquoele se

entregou a muitas accedilotildees licenciosas tanto em casa quanto pela cidade de noite e

de dia []rdquo21

As trecircs obras satildeo as grandes fontes responsaacuteveis pela cristalizaccedilatildeo da

figura do Nero tirano no imaginaacuterio ocidental por meio da repeticcedilatildeo de elementos

nelas presentes associados aos novos contextos a que se dirigiam22

Tal ponto eacute

fundamental para nosso estudo as acusaccedilotildees contra o soberano natildeo satildeo simples

repeticcedilotildees feitas ao longo do tempo e sim elaboraccedilotildees apresentadas com base em

elementos comuns formulados de um modo novo Contudo essas trecircs fontes ndash e

as que derivam delas ndash natildeo satildeo as uacutenicas a tratarem do princeps Existem outros

textos tatildeo importantes quanto esses e muito mais proacuteximos temporalmente do

objeto que analisam mas que natildeo satildeo tatildeo considerados pelos claacutessicos Exemplos

17

Aqui eacute fundamental especificarmos o que entendemos como retrato conceito definido por Azevedo (2012 p 25) a palavra deriva do vocaacutebulo latino retraho cujo significado eacute ldquoretirarrdquo

pois os autores antigos sobretudo Taacutecito ldquoretiravamrdquo argumentos de pessoas ou de

acontecimentos que lhe eram uacuteteis para construir a representaccedilatildeo de personagens ou de situaccedilotildees 18

A menos que se indique o contraacuterio todas as datas desta tese satildeo referentes a depois do

nascimento de Cristo (dC) 19

[] ut multos post[ea] annos Nero imperium et scelera continuaverit (Tac Ann 1412) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 310) 20

suam quidem pudicitiam usque adeo prostituit ut contaminatis paene omnibus membris []

(Suet Nero 29) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs

de Edwards (2000 p 210) 21

καὶ πολλὰ μὲν οἴκοι πολλὰ δὲ καὶ ἐν τῇ πόλει [] (Dio 6181) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 53) 22

JOLY 2005 p 112

22

satildeo o De Clementia (Sobre a Clemecircncia) escrito por Secircneca e as Eclogae

(Bucoacutelicas) redigidas por Calpuacuternio Siacuteculo ambos compostos na segunda metade

do seacuteculo I por contemporacircneos ao governo de Nero Nesses documentos

observamos um quadro bem diferente temos elogios agrave bondade imperial ldquoisto

teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti [Nero] mas encenada de

vez em quandordquo23

aleacutem de enaltecimentos agrave era de paz instaurada no Impeacuterio

ldquo[] aquele que o nosso mundo governa com a sua divindade propiacutecia e a paz

perpeacutetua manteacutemrdquo24

Vale adicionar que as fontes contemporacircneas positivas com

relaccedilatildeo ao soberano e ao seu Principado tornaram-se depois pouco confiaacuteveis

vistas como marcadas pela adulaccedilatildeo e pelo temor ao tirano Esse tipo de leitura

aliaacutes eacute construiacutedo desde a Antiguidade como mostra Taacutecito nos Annales

As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram

distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando eles morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes25

Ao redigirem suas obras os autores retomavam elementos de fontes

anteriores recombinando-os Os aspectos positivos perdiam espaccedilo nas narrativas

e os negativos tornavam-se cada vez mais destacados Nesse processo Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ocupam um lugar importante para a produccedilatildeo de uma

visatildeo negativa do princeps ainda que preservem elementos positivos Ora o

Taacutecito que fala que Nero cometeu ldquocrimes por muitos anosrdquo eacute o mesmo que diz

que ele vinha

[] seguindo demandas persistentes do povo que vinha acusando os publicanos de excessos Nero considerou se deveria ordenar a suspensatildeo de todos os impostos indiretos e fazer disso o seu melhor presente para a raccedila humana26

23

difficile hoc fuisset si non naturalis tibi ista bonitas esset [] (Sen Cl 116) Traduccedilatildeo de

Braren (2013 p 39) 24

[] qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore pacem laetus et

augusto felix arrideat ore (Calp Ecl 484-86) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 25

Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae postquam

occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 11) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 4) 26

eodem anno crebris populi flagitationibus immodestiam publicanorum arguentis dubitavit Nero

an cuncta vectigalia omitti iuberet idque pulcherrimum donum generi mortalium daret sed

impetum eius multum prius laudata magnitudine animi [] (Tac Ann 1350) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p

298)

23

O Suetocircnio que denuncia a ldquoprostituiccedilatildeordquo eacute o mesmo que afirma Nero

ldquo[] declarou que governaria de acordo com os princiacutepios de Augusto e natildeo

perdeu nenhuma oportunidade de demonstrar sua generosidade clemecircncia ou

afabilidaderdquo27

E o Diatildeo Caacutessio das ldquoaccedilotildees licenciosasrdquo eacute aquele que diz ldquo[] na

verdade ele agora se conduzia com mais prudecircncia do que nuncardquo28

A percepccedilatildeo dessas aparentes incoerecircncias nas fontes nos colocou

simultaneamente diante de uma afirmaccedilatildeo ndash jaacute realizada ndash e de um problema de

pesquisa Repetiremos a afirmaccedilatildeo a tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e sobre seu

Principado consolidou-se na Antiguidade com os escritos de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio29

O problema mas o que de fato ocasionou essa consolidaccedilatildeo

Nossa hipoacutetese eacute a de que a tradiccedilatildeo negativa se consolidou a partir de

julgamentos sobre Nero e seu governo feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios

especiacuteficos que por mudarem ao longo do tempo geraram um processo de

reelaboraccedilatildeo da memoacuteria o qual se compotildee a partir da mescla das seleccedilotildees feitas

nesses diversos contextos combinando fontes produzidas em diferentes

temporalidades e contextos30

Tal processo gerou o apagamento dos traccedilos

positivos ndash inseridos no iniacutecio dessa tradiccedilatildeo e mantidos ainda que com peso

menor em periacuteodos posteriores ndash e a manutenccedilatildeo dos negativos Assim cada

eacutepoca produziu um novo soberano condizente com seus proacuteprios valores e

dilemas sem que ele fosse inteiramente novo pois dialogava com essa cada vez

mais longa tradiccedilatildeo ndash um novo Nero que ao mesmo tempo transforma os Neros

anteriores reforccedilando mais e mais os aspectos negativos Buscaremos mostrar

tambeacutem que as representaccedilotildees de Nero natildeo satildeo livres manipulaccedilotildees a cargo de

cada novo autor porque i) dependem da criaccedilatildeo de um regime de

verossimilhanccedila e ii) remetem a uma tradiccedilatildeo anterior (toacutepicas gerais e

especiacuteficas estabelecidas sobre o princeps) que restringe tudo aquilo que se possa

27

[] ex Augusti praescripto imperaturum se professus neque liberalitatis neque clementiae ne

comitatis quidem exhibendae ullam occasionem omisit (Suet Nero 10) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 199) 28

οὔτε ἐνεωτέρισέ τι οὔτε ᾐτιάθη (Dio 62236) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 128) 29

ldquoCerca de vinte e cinco autores antigos natildeo cristatildeos tem algo de valor a dizer sobre Nero mas

o grosso da imagem que temos vem de apenas trecircs deles os historiadores Taacutecito e Diatildeo Caacutessio e o

bioacutegrafo Suetocircniordquo (CHAMPLIN 2005 p 37) 30

Adotaremos o conceito de memoacuteria formulado por Le Goff (2003 p 471) ldquoa memoacuteria na qual

cresce a Histoacuteria que por sua vez a alimenta procura salvar o passado para servir ao presente e ao

futurordquo

24

afirmar de novo31

Verificaremos ainda como essa tradiccedilatildeo modificada ao longo

de seacuteculos produziraacute um Nero que em certa medida jaacute natildeo pertence mais a

nenhuma dessas temporalidades mas as perpassa compondo um modelo

atemporal de mau governante32

Para o exame da hipoacutetese perseguiremos cinco objetivos especiacuteficos os

quais natildeo devem ser tomados como estanques e sim como articulados ganhando

maior ou menor pesos na anaacutelise segundo os elementos oferecidos pelas fontes e

pelos diferentes contextos estudados Assim pretenderemos i) identificar

representaccedilotildees sobre Nero nos textos produzidos tanto na contemporaneidade

quanto na posteridade de seu governo ii) reconhecer os contextos e os modelos

empregados pelos autores antigos para moldarem suas representaccedilotildees do

princeps iii) identificar similitudes e diferenccedilas mudanccedilas e permanecircncias entre

essas mesmas representaccedilotildees iv) compreender a relaccedilatildeo entre por um lado os

interesses e os valores daqueles que produziram as fontes sobre o soberano e

sobre o seu governo e por outro os interesses e os valores daqueles que as

julgaram e finalmente v) identificar como ao longo do tempo as criacuteticas natildeo

apenas se sucederam mas retiraram as caracteriacutesticas individuais de Nero

transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua realidade

histoacuterica e consequentemente um modelo atemporal de mau governante

Tanto a hipoacutetese quanto os objetivos seratildeo enquadrados na baliza

cronoloacutegica fixada entre os seacuteculos I e III que nos parece suficiente para perceber

a dinacircmica que operou a construccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo Bem sabemos como jaacute foi

destacado que essa tradiccedilatildeo natildeo se cristaliza e nem se manteacutem inalterada do

seacuteculo III em diante A proposta de situar o recorte aiacute adveio da constataccedilatildeo de

que parte relevante da tradiccedilatildeo literaacuteria surgiu e se consolidou nesse intervalo de

tempo comeccedilando ndash entre as obras que chegaram ateacute noacutes ndash com a publicaccedilatildeo da

Apocolocyntosis em 54 e terminando com a Historia Romana de Diatildeo Caacutessio

31

Utilizaremos o conceito de representaccedilatildeo postulado por Chartier (2002 p 165) ldquorepresentar eacute

pois fazer conhecer as coisas lsquopela pintura de um objetorsquo lsquopelas palavras e gestosrsquo lsquopor algumas

figuras por marcasrsquo ndash como os enigmas os emblemas as faacutebulas as alegorias Representar no

sentido juriacutedico e poliacutetico eacute tambeacutem lsquomanter o lugar de algueacutem ter em matildeos sua autoridadersquordquo

Esse uacuteltimo sentido eacute o que mais se aproxima da nossa tese pois concebemos as representaccedilotildees

em conexatildeo direta com poliacutetica e poder como produtoras e produto de praacuteticas culturais de

ordenaccedilotildees simboacutelicas que permitem apropriaccedilotildees e significaccedilotildees sobre a realidade Em suma

entendemo-las como construccedilotildees sociais da realidade em que os sujeitos fundamentam suas visotildees

de mundo a partir dos seus interesses e do seu grupo (CHARTIER 1990 p 17) 32

Cabe frisar que natildeo estaacute no escopo desta tese alcanccedilar a contemporaneidade por significar a

criacutetica de material muito extenso

25

por volta de 230 Eacute dentro dessa cronologia que investigaremos as nossas fontes

cuja divisatildeo dar-se-aacute em trecircs blocos fontes contemporacircneas a Nero (54-69)

fontes da dinastia Flaviana (69-96) fontes da dinastia Antonina e dos Severos

(97-235) O foco nesses trecircs pontos de observaccedilatildeo eacute como qualquer outro

arbitraacuterio pois como jaacute indicamos essa tradiccedilatildeo se constroacutei com base em

continuidades e rupturas sendo qualquer fronteira riacutegida e clara impossiacutevel de ser

percebida Contudo isso natildeo significa que os blocos se constituiacuteram sem criteacuterios

Esperamos demonstrar que eles constituem trecircs momentos distinguiacuteveis e

relevantes para a comparaccedilatildeo e percepccedilatildeo da dinacircmica que eacute objeto desse estudo

Em relaccedilatildeo ao primeiro bloco vale destacar que a sua dataccedilatildeo se encerraraacute

em 69 e natildeo em 68 (ano do suiciacutedio de Nero) porque os imperadores Oto e

Viteacutelio ainda tentaram reabilitar positivamente a imagem do princeps Todavia

depois de 69 com a derrota dos exeacutercitos de Viteacutelio pelos de Vespasiano e a

consolidaccedilatildeo desse imperador no poder a possibilidade de uma reabilitaccedilatildeo plena

da memoacuteria de Nero foi claramente perdida Vespasiano revogou a liberdade

concedida agrave Greacutecia por Nero abriu a Domus Aurea ao puacuteblico e dedicou o

Colosso de Nero ao Sol aleacutem de construir o Anfiteatro Flaacutevio como uma clara

marca de contestaccedilatildeo ao modelo urbano de Nero33

Enfim com a chegada da nova

dinastia Flaviana e a ascensatildeo de uma moralidade mais rigorosa e austera

juntamente agrave publicaccedilatildeo de obras como a trageacutedia Octauia (Otaacutevia) de Pseudo-

Secircneca a reputaccedilatildeo monstruosa do soberano foi se tornando dominante34

Desse

modo nosso primeiro bloco elencaraacute as seguintes fontes Apocolocyntosis

(Apocolocintose) e De Clementia escritas por Secircneca Eclogae redigidas por

Calpuacuternio Siacuteculo e Pharsalia (Farsaacutelia) por Lucano

Ao seu turno o segundo bloco o das fontes da dinastia Flaviana marcado

como vimos por um momento de negaccedilatildeo de uma visatildeo positiva de Nero

abrangeraacute a Octauia a Naturalis Historia (Histoacuteria Natural) de Pliacutenio o Velho

o Bellum Judaicum (Guerras Judaicas) e as Antiquitates Judaicae (Antiguidades

Judaicas) de Flaacutevio Josefo o Liber Spectaculorum (Livro dos Espetaacuteculos) e os

Epigrammata (Epigramas) de Marcial e as Siluae (Silvas) de Estaacutecio

33

ROSSO 2008 p 43-78 34

CHAMPLIN 2005 p 9

26

O terceiro bloco o dos Antoninos e dos Severos pode ser bem

representado pela maacutexima de Taacutecito sine ira et studio35 ndash seria assim um

periacuteodo em que os autores jaacute estariam livres de oacutedios recentes (ira) e igualmente

do impulso da adulaccedilatildeo (studio) Cabe destacar que o findar do governo flaviano

levou agrave ascensatildeo de principes que se representavam como diferentes de

Domiciano figurado nos textos da eacutepoca como o tirano acabado36

Nesse

instante Nero natildeo foi mais o tirano fundamental a ser repudiado ndash como foi sob

os Flaacutevios ndash mas integrou um repertoacuterio a ser lido sob um novo olhar No entanto

percebe-se nesse terceiro momento a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa

representada nos Annales escritos por Taacutecito no De Vita Caesarum composto

por Suetocircnio e na Historia Romana elaborada por Diatildeo Caacutessio Sabemos que

nesse periacuteodo houve a produccedilatildeo de outras obras que talvez ajudariam a ampliar o

estudo da tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e seu Principado a exemplo das Epistulae

(Cartas) de Pliacutenio o Jovem das Saturae (Saacutetiras) de Juvenal e das Vitae

Parallelae (Vidas Paralelas) de Plutarco Poreacutem como o nosso interesse eacute

investigar a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo manteremos o foco apenas nos trecircs autores

jaacute mencionados

O corpus textual escolhido engloba obras de gecircneros literaacuterios distintos

como o satiacuterico o biograacutefico o eacutepico o traacutegico e o histoacuterico Isso nos permite

conhecer diversos registros sobre o soberano e sobre seu governo37

No entanto eacute

importante enfatizar que natildeo nos aprofundaremos na avaliaccedilatildeo dos gecircneros e nos

problemas de constituiccedilatildeo de cada elemento da tradiccedilatildeo textual Decerto sabemos

que uma histoacuteria deva ser lida de forma diferente de uma biografia e em vista

disso faremos um apontamento das principais caracteriacutesticas dos gecircneros quando

seus aspectos forem relevantes para nossa anaacutelise Entretanto o aprofundamento

no gecircnero de cada fonte exigiria a criaccedilatildeo de uma nova pesquisa com uma

organizaccedilatildeo distinta da documentaccedilatildeo o que mudaria o foco da tese

A catalogaccedilatildeo das referecircncias a Nero nas fontes seraacute realizada a partir de

um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias 1) Nero infausto 2)

35

ldquoSem ira e nem afeiccedilatildeordquo (Tac Ann 113) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 36

GALIMBERTI 2016 p 92-108 37

Concordamos com Doody (2010 p 6) ldquogecircnero eacute uma matriz poderosa para a compreensatildeo de

textos ateacute porque configura meios alternativos de relacionar um texto a outro diferentes daquele

baseado exclusivamente na contingecircncia histoacuterica O gecircnero eacute importante porque fornece aos

leitores um meio de relacionar um texto a outro atraveacutes do tempo e do espaccedilo []rdquo

27

Nero prodigioso 3) Nero fratricida 4) Nero matricida 5) Nero uxoricida 6)

Nero artista 7) Nero vaidoso 8) Nero cruel 9) Nero incendiaacuterio 10) Nero

antiprinceps 11) Nero construtor e por uacuteltimo 12) Nero anticristo Todas elas

seratildeo examinadas dentro dos 26 episoacutedios da vida do soberano recorrentemente

citados nas fontes isto eacute daqueles que a nosso ver mais influenciaram na

construccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa a saber o nascimento de Nero a adoccedilatildeo dele por

Claacuteudio o seu casamento com Otaacutevia a sua ascensatildeo o conflito entre ele e os

partas o assassinato de Britacircnico a realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro erguido por

Nero o assassinato de Agripina a promoccedilatildeo dos jogos Juvenalia a promoccedilatildeo da

primeira ediccedilatildeo dos Neronia a rebeliatildeo de Boudica na Britacircnia o casamento de

Nero com Popeia Sabina o divoacutercio o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia a

apresentaccedilatildeo artiacutestica puacuteblica de Nero em Naacutepoles o incecircndio de Roma o iniacutecio

da construccedilatildeo da Domus Aurea a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos a Conspiraccedilatildeo de

Pisatildeo a promoccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo dos Neronia o assassinato de Popeia o

casamento de Nero com Estatiacutelia Messalina a visita de Tiridates a Roma a turnecirc

artiacutestica de Nero pela Greacutecia a revolta de Vindex e por fim o suiciacutedio de Nero

A anaacutelise dos episoacutedios ocorreraacute em conjunto com a sistematizaccedilatildeo do

complexo categorial de modo que buscaremos alocar os primeiros no segundo

Por exemplo Secircneca no De Clementia relata o episoacutedio da ascensatildeo do princeps

como algo positivo o que nos permitiraacute alocaacute-lo na categoria Nero prodigioso

Em contrapartida Pliacutenio o Velho em sua Naturalis Historia descreve o mesmo

evento como algo negativo o que nos permitiraacute inseri-lo na categoria Nero

infausto Eacute certo que os dois textos pertencem a temporalidades distintas sendo

um contemporacircneo ao soberano e outro posterior Entretanto como

investigaremos a tradiccedilatildeo literaacuteria seraacute imprescindiacutevel a comparaccedilatildeo entre obras

contextualmente diferentes pois eacute exatamente isso que possibilitaraacute a verificaccedilatildeo

da mudanccedila nos julgamentos sobre Nero

Delineada a metodologia de trabalho falta apontarmos as nossas opccedilotildees

teoacutericas Utilizaremos trecircs conceitos o de forma (focircrma) o de allelopoiesis e o de

inuentio (invenccedilatildeo) O primeiro nos auxiliaraacute na organizaccedilatildeo da tese

fundamentando a divisatildeo dos capiacutetulos e os outros seratildeo empregados na leitura

do corpus textual

28

Eacute no artigo Uma Morfologia da Histoacuteria As Formas da Histoacuteria Antiga

publicado em 2003 que Guarinello explica o conceito de forma (focircrma) Nesse

trabalho o autor esclarece que os historiadores constroem formas para pensarem o

passado conferirem-lhe sentido e o divulgarem aos seus leitores As formas

seriam generalizaccedilotildees artificiais criadas para atribuir significado ao passado

instituindo uma sensaccedilatildeo de realidade e de completude Em outras palavras as

formas seriam as maneiras por meio das quais os historiadores tornam o passado

inteligiacutevel no presente Sua fixaccedilatildeo surge a partir do instante em que os

pesquisadores organizam as informaccedilotildees encontradas na documentaccedilatildeo e impotildeem

contextos para lhes darem loacutegica38

Como sabemos as fontes satildeo um fundamento primaacuterio para o exame do

passado o alicerce com o qual se pode confirmar ou negar uma hipoacutetese E os

historiadores estatildeo sempre atribuindo uma ordem a elas unindo-as ou separando-

as segundo as teorias defendidas por eles Essas teorias estatildeo ligadas ao modo

como cada estudioso escreve a Histoacuteria seleciona os fatos pertinentes e os coloca

em associaccedilatildeo Mesmo quando impliacutecitas satildeo modos de transformar as evidecircncias

em interpretaccedilotildees do passado e de propor reconstruccedilotildees especiacuteficas da Histoacuteria

Por exemplo se um historiador julga os episoacutedios econocircmicos decisivos ele

escolheraacute dados com esses vieses e os ordenaraacute de um jeito que decirc ldquoformardquo agrave sua

anaacutelise39

Portanto a Histoacuteria eacute um jogo interpretativo entre teorias e fontes feito

de generalizaccedilotildees ndash as formas ndash que satildeo aceitas como vaacutelidas pelos escritores e

seus leitores E tais formas satildeo necessaacuterias porque as fontes ldquo[] satildeo sempre

singulares e do ponto de vista de um historiador natildeo tecircm sentido em si

mesmasrdquo40

Podemos dizer entatildeo que as formas a par dos meacutetodos e das teorias

integram qualquer reconstruccedilatildeo histoacuterica sendo impossiacutevel para um historiador

entender o passado sem usaacute-las Complementamos esse raciociacutenio com uma

valorosa afirmaccedilatildeo de Marc Bloch

38

GUARINELLO 2003 p 42 39

GUARINELLO 2003 p 44 40

GUARINELLO 2003 p 45

29

A realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de

linhas de forccedila todas convergindo para o mesmo fenocircmeno A escolha que fazemos entre elas pode muito bem se fundar em caracteriacutesticas [] bastante dignas de atenccedilatildeo mas natildeo deixa de se tratar sempre de uma escolha41

No nosso caso escolhemos quatro formas para orientar os capiacutetulos da

tese Neros recentes Nero originaacuterio (54-69) Nero transformado (69-96) e Nero

consolidado (97-235) A primeira forma seraacute constituiacuteda pelos debates

historiograacuteficos contemporacircneos a respeito do imperador e as demais seratildeo

formadas pelas fontes histoacutericas produzidas em tempos e lugares diferentes por

agentes sociais distintos e com propoacutesitos variados mas que colocadas em

conjunto criaratildeo uma mesma unidade de sentido

O segundo conceito adotado seraacute o de allelopoiesis A consolidaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa neroniana pode ser bem capturada por esse termo

derivado do grego allelon (ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriarrdquo) No artigo Imperial

Interpretations The Imperium Romanum as Category of Political Reflection

Hausteiner Huhnholz e Walter afirmam que o conceito traz uma relaccedilatildeo de

reciprocidade isto eacute implica que a constituiccedilatildeo de um domiacutenio de recepccedilatildeo

ocorre em relaccedilatildeo a um domiacutenio de referecircncia sendo este uacuteltimo moldado e

construiacutedo atraveacutes do primeiro e vice-versa42

Tal definiccedilatildeo eacute esclarecida por Faversani no artigo Entre a Repuacuteblica e o

Impeacuterio Multiplicidade de Fronteiras Aiacute o autor explica que a cada instante em

que produzimos uma nova interpretaccedilatildeo sobre algo esse algo deixa de ser o que

era pois estabelecemos uma nova maneira de ver que modifica o fenocircmeno e ao

mesmo tempo cria novas modulaccedilotildees para os diversos modos de vecirc-lo logo cada

vez que tratamos desse algo o modificamos E modificamos natildeo soacute o modo como

o entendemos mas tambeacutem como achamos que os outros deveriam tecirc-lo visto e

assim modificamos o que ele eacute para noacutes (desejando que isso mude o que ele eacute

41

BLOCH 2002 p 156 42

HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 11-16 O artigo dos trecircs autores eacute fruto do

Projeto A11 do Centro de Pesquisa Colaborativa 644 conhecido pelo nome Transformaccedilotildees da

Antiguidade O projeto vigorou entre 2005 a 2016 e foi sediado na Universidade de Humboldt O

foco das pesquisas repousava no papel constitutivo da Antiguidade no desenvolvimento do sistema

cientiacutefico e na autoconstruccedilatildeo cultural das sociedades europeias modernas Um dos seus resultados

mais positivos foi a formulaccedilatildeo do conceito de allelopoiesis o qual ainda hoje infelizmente eacute

pouco utilizado pela comunidade acadecircmica brasileira Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpswwwgeschichtehu-berlindeenforschung-und-projekte-en-

oldfoundmeddokumenteforschung-und-projektesfb-644 Acesso em 03 set 2019

30

para os outros ou que pelo menos modifique a forma como as pessoas se

propotildeem a vecirc-lo)43

Entatildeo ndash trazendo esse aspecto para a nossa tese ndash cada novo

entendimento produzido sobre Nero natildeo altera soacute o passado como tambeacutem a

proacutepria eacutepoca que o interpreta e a tradiccedilatildeo em questatildeo O passado natildeo determina o

presente nem o presente constroacutei o passado ambos satildeo produzidos de forma

simultacircnea e mediados por uma tradiccedilatildeo viva e dinacircmica aberta a novas

interpretaccedilotildees tanto quanto o passado e o presente que satildeo arbitrariamente

conectados por essas tradiccedilotildees e natildeo de forma direta Essa tradiccedilatildeo produz Neros

natildeo pertencentes apenas ao passado ou ao presente mas sim mesclados em

temporalidades e siacutenteses distintas as quais de um lado comunicam-se atraveacutes de

um repertoacuterio a ser reapropriado e reinterpretado de acordo com o surgimento de

novos eventos e quadros de interesse que possam mobilizar novas leituras quer

seja do passado quer seja do presente e de outro satildeo fundadas em uma criacutetica da

tradiccedilatildeo Portanto nossa tese natildeo examina de modo estanque o Nero do seu

proacuteprio tempo e sim pensa os diferentes Neros como uma tradiccedilatildeo que se

constitui reciprocamente em temporalidades diversas ou seja allelopoiesis44

O uacuteltimo conceito o de inuentio vincular-se-aacute aos elementos retoacutericos

empregados na caracterizaccedilatildeo de Nero e do seu Principado Em seu tratado

Rhetorica ad Herennium Ciacutecero explica que a inuentio era a primeira das cinco

partes componentes de um discurso retoacuterico inuentio (invenccedilatildeo) dispositio

(arranjo) elocutio (elocuccedilatildeo) memoria e actio (accedilatildeo)

Invenccedilatildeo eacute a concepccedilatildeo da mateacuteria verdadeira ou plausiacutevel que tornaria o caso convincente Arranjo eacute a ordem e distribuiccedilatildeo do

assunto deixando claro o lugar para o qual cada coisa deve ser atribuiacuteda Estilo eacute a adaptaccedilatildeo de palavras e frases adequadas ao assunto planejado A memoacuteria eacute a retenccedilatildeo firme na mente do assunto das palavras e do arranjo A entrega eacute a regulaccedilatildeo elegante da voz do semblante e do gesto45

43

FAVERSANI 2013 p 149 44

FAVERSANI 2013 p 146-152 45

Oportet igitur esse in oratore inventionem dispositionem elocutionem memoriam

pronuntiationem Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium quae causam

probabilem reddant Dispositio est ordo et distributio rerum quae demonstrat quid quibus locis sit

conlocandum Elocutio est idoneorum verborum et sententiarum ad inventionem adcommodatio

Memoria est firma animi rerum et verborum et dispositionis perceptio Pronuntiatio est vocis

vultus gestus moderatio cum Venustate (Cic Rhet Her 123) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Caplan (1954 p 7)

31

Ou seja cabia ao orador reunir os argumentos que sustentavam seu caso

colocaacute-los na ordem mais eficaz encontrar as palavras certas para expressaacute-los

memorizar o discurso elaborar os gestos e o tom de voz que apoiariam a

comunicaccedilatildeo dos argumentos e proferir o discurso46

Em especiacutefico o objetivo da

invenccedilatildeo era a descoberta por parte do orador das ideias verdadeiras ou

verossiacutemeis que tornassem comprovaacutevel seu argumento e convencessem seus

ouvintes Reboul esclarece que se tratava de uma noccedilatildeo com duplo sentido de um

lado era o ldquoinventaacuteriordquo a detecccedilatildeo pelo orador de todos os argumentos ou

procedimentos retoacutericos disponiacuteveis para a construccedilatildeo do seu discurso e de

outro era a ldquoinvenccedilatildeordquo no sentido moderno a criaccedilatildeo de argumentos e de

instrumentos de prova a partir da articulaccedilatildeo daqueles elementos que compunham

um repertoacuterio de conhecimento geral Resumindo a invenccedilatildeo era o processo

minucioso de classificaccedilatildeo das maneiras pelas quais uma situaccedilatildeo poderia ser

analisada a fim de se identificarem todas as possiacuteveis linhas de argumento Em

funccedilatildeo dessa dupla articulaccedilatildeo Reboul afirma que o orador necessitava i)

dominar o tema do seu discurso por meio da leitura de tudo o que jaacute havia sido

escrito sobre ele ii) saber o gecircnero e as regras de composiccedilatildeo do seu discurso e

iii) conhecer a audiecircncia para a qual proferiria o seu discurso no intuito de

conseguir deleitaacute-la e convencecirc-la47

Estamos falando entatildeo de um conceito que

envolvia a construccedilatildeo de linhas de argumentaccedilatildeo e a busca de provas para a

construccedilatildeo de tais linhas ndash um conceito que envolvia segundo Ciacutecero ldquopersuadir

os ouvintes do curso desejadordquo48

Na praacutetica isso significa que cada autor antigo

ao desenvolver a inuentio representou o seu Nero a partir de uma ordenaccedilatildeo

proacutepria produzindo novos Neros (a partir dos Neros do passado) e encontrando

argumentos para apoiar julgamentos eou transmiti-los ao presente

A organizaccedilatildeo do texto da tese se distribui em quatro capiacutetulos aleacutem desta

introduccedilatildeo Os capiacutetulos de dois a quatro estaratildeo dispostos em diacronia e

sincronia O eixo diacrocircnico lidaraacute com as fontes e com os episoacutedios

cronologicamente posicionando-os em relaccedilatildeo aos eventos sociais poliacuteticos

econocircmicos e culturais de cada eacutepoca Ao seu turno o sincrocircnico investigaraacute a

46

STEEL 2009 p 79 47

REBOUL 2004 p 43-44 48

Cic Rhet Her 334

32

documentaccedilatildeo e os episoacutedios situando-os em relaccedilatildeo a eventos ocorridos em

temporalidades distintas

No primeiro capiacutetulo intitulado Neros recentes apresentaremos o debate

historiograacutefico moderno acerca dos retratos do princeps Ou seja examinaremos o

modo como os autores a noacutes contemporacircneos leram os relatos das fontes literaacuterias

problematizaram-nos ndash explicitamente ou natildeo ndash e elaboraram os seus proacuteprios

Neros Eacute importante notar que mesmo com a variedade de textos antigos

disponiacuteveis para o estudo de Nero hoje os escritores sempre recorrem de maneira

central a Taacutecito a Suetocircnio e a Diatildeo Caacutessio No segundo denominado Nero

originaacuterio (54-69) analisaremos o corpus textual produzido durante o governo do

soberano na tentativa de observarmos como ele foi representado em vida No

terceiro Nero transformado (69-96) investigaremos as fontes elaboradas no

contexto imediato agrave sua morte a fim de verificarmos de que maneira a ascensatildeo

de uma nova dinastia a Flaviana influenciaraacute nas suas representaccedilotildees No quarto

Nero consolidado (97-235) avaliaremos as narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio buscando entender como eles se apropriaram dos retratos dos Neros do

passado e reelaboraram sua memoacuteria apagando seus traccedilos positivos e mantendo

eou cristalizando os negativos Por fim nas Consideraccedilotildees finais sintetizaremos

os argumentos discutidos no trabalho agrave luz das fontes examinadas

Com o desenvolvimento desta pesquisa almejamos oferecer contribuiccedilotildees

cientiacuteficas e sociais relevantes A priori ambicionamos cooperar cumulativamente

com a comunidade claacutessica de duas formas executando um exame cronoloacutegico

das fontes bem distinto dos jaacute realizados e propondo uma nova opccedilatildeo

metodoloacutegica para o estudo do Principado neroniano a partir de uma abordagem

sincrocircnica e tambeacutem de outra diacrocircnica o que talvez lance um novo olhar sobre

um tema muito debatido A posteriori pretendemos colaborar com a sociedade

brasileira e com os debates poliacuteticos que a compotildeem por meio da reflexatildeo

universal e transgeracional do que caracteriza um governante louco e tiracircnico Tal

debate infelizmente faz-se muito atual

Por fim gostariacuteamos de expor quatro questotildees teacutecnicas i) as autorias das

traduccedilotildees latinas e gregas dos textos antigos seratildeo sempre destacadas nas notas de

rodapeacute ii) as traduccedilotildees do inglecircs para o portuguecircs satildeo de nossa autoria tendo por

referecircncia as traduccedilotildees dos textos antigos latinos e gregos iii) as traduccedilotildees do

33

inglecircs para o portuguecircs das obras modernas tambeacutem satildeo de nossa autoria iv) esta

tese possui um apecircndice a saber uma cronologia com os episoacutedios mais

relevantes relacionados agrave vida de Nero e trecircs anexos a exemplo da aacutervore

genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia do mapa do Impeacuterio Romano durante o

governo de Nero e do mapa da Roma neroniana

34

Capiacutetulo 1 Neros recentes

Se existe um tema que parece ter sido amplamente explorado pelas fontes

da Antiguidade eacute o que se refere ao Principado de Nero Ceacutesar Augusto cuja

duraccedilatildeo compreendeu os anos de 54 a 68 Satildeo muito conhecidas as narrativas do

mundo greco-romano que consideraram esse periacuteodo como a encarnaccedilatildeo do

exagero da devassidatildeo e da crueldade Ceacutelebres satildeo as passagens que nos

informam como o soberano assassinou sua matildee Agripina envenenou o seu meio-

irmatildeo Britacircnico chutou sua esposa na eacutepoca graacutevida ateacute a morte e mandou

queimar a cidade de Roma49

Parece natildeo se ignorar mais nada acerca do princeps e de seu governo os

quais satildeo representados sob o signo da tirania Aliaacutes as narrativas da crueldade de

Nero romperam as fronteiras da Antiguidade podendo ser lidas na literatura

moderna foi esse imperador que serviu de inspiraccedilatildeo para a escrita do matriciacutedio

presente na famosa obra Hamlet de William Shakespeare50

A historiografia contemporacircnea tambeacutem acompanhou esse processo Ao

verificaacute-la observamos que amiuacutede o soberano eacute apresentado como um mau

imperador Por exemplo Mommsen em seu livro A History of Rome under the

Emperors alega que Nero era ldquoalheio aos assuntos de Estadordquo51

Rostovtzeff em

Histoacuteria de Roma afirma que o Principado de Nero assim como o de Caliacutegula

foi cruel e terriacutevel52

e Warmington em Nero Reality and Legend enfatiza a

incompetecircncia militar imperial53

Mas nem soacute de retratos negativos vive a pesquisa atual Diversas tentativas

de reabilitar a imagem de Nero total ou parcialmente jaacute foram feitas Uma das

mais radicais eacute a de Cardano que em sua autobiografia elaborada em 1642

49

Cf no Apecircndice A a cronologia da vida de Nero e no Anexo A a aacutervore genealoacutegica da

dinastia Juacutelio-Claacuteudia 50

Hamlet evoca a histoacuteria de Nero quando este pensa em matar sua matildee ldquoNero era um homem

grande de corpo Com um grande esqueleto E sua matildee era pequena Ele se perguntava desde

sempre Onde nela se encontrava tanto lugar Em um espaccedilo tatildeo limitado Em que ela tenha

podido o colocar no mundo Sem querer renunciar a seu projeto E tendo assim imaginado a

coisa seguinte Ele daacute a ordem que a abram em duas Ele assim teve que sofrer isso Por causa de

suas maacutes inclinaccedilotildees Ele olha sob o peito E descendo ao longo de todo o corpo Ele contempla

maravilhas sem nuacutemerordquo (SHAKESPEARE 2003 p 181) 51

MOMMSEN 2005 p 148 52

ROSTOVTZEFF 1983 p 198 53

WARMINGTON 1969 p 71-72

35

intitulada The Book of my Like argumenta que os termos usados pelos autores das

fontes para se referirem a Nero satildeo ldquorobustos rudes e irritantesrdquo54

Outra tentativa

conhecida eacute a obra The Life and Principate of the Emperor Nero composta por

Henderson em 1903 na qual o professor afirma que Nero natildeo confrontou o

Senado e nem rompeu com os costumes antigos55

Mais um estudo renomado eacute o

artigo Faut-il reacutehabiliter Lrsquoempereur Neacuteron redigido por Wankenne em 1981

em que o pesquisador sem desculpar o priacutencipe em todos os aspectos insiste nas

medidas louvaacuteveis tomadas por ele56

Tais esforccedilos reabilitativos foram muito importantes porque aleacutem de

recuperarem positivamente a figura de Nero revelaram as dificuldades existentes

em sua anaacutelise Os obstaacuteculos em geral estatildeo vinculados agrave deformaccedilatildeo dos fatos

e aos elementos fictiacutecios inseridos nas narrativas pelos escritores claacutessicos os

quais apagaram ou alteraram os motivos do princeps impossibilitando a

construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo mais positiva

Mesmo assim o exame da lenda negativa natildeo parou de despertar interesse

nos historiadores Nos uacuteltimos anos autores como Picard Griffin Champlin

Elsner Masters e Woodman prosseguiram com as investigaccedilotildees buscando definir

quem era o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano e o que foi feito dele Seus trabalhos

demonstraram as diferenccedilas entre os elementos retoacutericos empregados na

caracterizaccedilatildeo do imperador e a ldquoverdaderdquo histoacuterica separando ndash ou pelo menos

tentando separar ndash a ficccedilatildeo da realidade57

As produccedilotildees dessa natureza tornaram-se mais comuns e profiacutecuas a partir

de 1994 com a promoccedilatildeo do V Coloacutequio da Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes

Neacuteroniennes (SIEN) intitulado Neacuteron Histoire et Leacutegende O evento contou com

a participaccedilatildeo de pesquisadores renomados a saber Perrin Cizek Croisille

Martin e Chevallier que enfatizaram a necessidade de se considerarem os

modelos literaacuterios existentes por detraacutes das representaccedilotildees do princeps As

diversas comunicaccedilotildees proferidas na oportunidade conectaram-se a um fio

54

CARDANO 2002 p 270 55

HENDERSON 1903 p 93 56

WANKENNE 1981 p 135-152 57

Como exemplo temos a coletacircnea de artigos disposta no livro Reflections of Nero Culture

History amp Representation (1994) editado por Elsner e Masters a qual apresenta uma anaacutelise de

Nero que vai desde a sua representaccedilatildeo na histoacuteria e na literatura de sua eacutepoca ateacute a posterioridade

e os diversos artigos presentes no Companion to the Neronian Age (2013) e no The Cambridge

Companion to the Age of Nero (2017) que oferecem uma visatildeo abrangente dos processos e

interesses culturais existentes por traacutes da construccedilatildeo do ldquomonstro Nerordquo

36

condutor que visava a confirmar o caraacuteter complexo e multidisciplinar de Nero e

do seu governo Tais comunicaccedilotildees foram divididas em trecircs seccedilotildees cada qual

com uma temaacutetica especiacutefica A primeira intitulada LrsquoHistoire (A Histoacuteria)

englobou os trabalhos que discutiram a figura de Nero em Taacutecito e nos

historiadores tardios Nero em seu tempo e Nero sob os sucessores flavianos A

segunda denominada La Litteacuterature et la Leacutegende (A Literatura e a Lenda)

envolveu as contribuiccedilotildees que abordaram a imagem do princeps na tradiccedilatildeo

antiga as visotildees literaacuterias a seu respeito nos seacuteculos XVII e XVIII e o seu retrato

na literatura no cinema e nos manuais didaacuteticos A terceira Plastique Peinture

Musique (Escultura Pintura Muacutesica) abarcou os artigos que trataram das

representaccedilotildees do soberano nas artes modernas58

Ao final do Coloacutequio Perrin

proferiu uma palestra de encerramento na qual celebrou esse novo olhar das

pesquisas acadecircmicas sobre Nero ressaltando a importacircncia do estudo das figuras

histoacutericas e das suas mitologias atraveacutes dos tempos59

A nosso ver o evento da

SIEN foi de suma importacircncia para os debates da Antiguidade porque trouxe

reflexotildees ineacuteditas acerca de um imperador que ateacute entatildeo parecia fadado agrave

polarizaccedilatildeo mau versus bom ndash isto eacute ele revelou que existem muacuteltiplos acircngulos

de investigaccedilatildeo e que cada um deles pode produzir um Nero diferente novo

Eacute exatamente nesses acircngulos que nos deteremos a partir de agora

apresentando o debate historiograacutefico que traz os diversos retratos do princeps e

do seu governo Em outros termos analisaremos o modo como os estudiosos

contemporacircneos mais reconhecidos leram as fontes antigas e elaboraram os seus

proacuteprios Neros Organizamos a anaacutelise em cinco grupos com a finalidade de

melhor estruturar a apresentaccedilatildeo 1) Nero um mau imperador 2) Nero um bom

imperador 3) Nero o imperador fantoche 4) Os verdadeiros Neros e 5) Os

muacuteltiplos Neros Os dois primeiros grupos trataratildeo basicamente da personalidade

do soberano os trecircs restantes de elementos variados a exemplo das influecircncias

sofridas por ele e dos impasses poliacuteticos do Principado Eacute essencial salientar que

esse arranjo pode se mostrar incoerente em alguns momentos pois certos autores

suportariam a disposiccedilatildeo em mais de um grupo Mas nossas escolhas foram

58

As informaccedilotildees sobre o V Coloacutequio da SIEN estatildeo disponiacuteveis em httpwwwsien-

neronfrcolloques-et-actesactes-de-neronia-v-1994 Acesso em 20 fev 2020 59

CROISILLE MARTIN PERRIN 1999 p 5 BENOIST 2001 p 472-475

37

pensadas almejando uma exposiccedilatildeo consistente das concepccedilotildees historiograacuteficas

as quais nos ajudaratildeo adiante na apreciaccedilatildeo das fontes

Nero um mau imperador

Iniciaremos a discussatildeo comentando sobre quatro autores cujas pesquisas

interpretam Nero como um dos piores soberanos de todos os tempos o modelo

negativo de governante Entre eles Mommsen (1817-1903) eacute o mais antigo

considerado o maior historiador claacutessico do seacuteculo XIX De sua biografia

sabemos que cursou Estudos Claacutessicos e Direito em Kiel na Pruacutessia entre os anos

de 1838 e 1843 e tambeacutem que tentou uma curta carreira no Jornalismo Em 1854

assumiu a cadeira de Histoacuteria Antiga na Universidade de Breslau onde comeccedilou a

redigir o famoso compecircndio A History of Rome under the Emperors produccedilatildeo

poliacutetica que reflete a sua participaccedilatildeo na fundaccedilatildeo do Deutsche Fortschrittspartei

(Partido Progressista Alematildeo)60

Esse envolvimento influenciou na sua

representaccedilatildeo da queda da Repuacuteblica Romana a qual eacute colorida por uma profunda

desilusatildeo com a poliacutetica liberal nacionalista alematilde61

Foi exatamente tal vivecircncia que permeou a sua visatildeo do Principado

romano Para Mommsen esse regime deveria se assemelhar ao Parlamentarismo

amparando-se no equiliacutebrio de poderes em que o imperador seria uma espeacutecie de

ldquochancelerrdquo e o Senado o ldquoparlamentordquo concepccedilatildeo refletida nas paacuteginas do seu

compecircndio em que analisa todos os governos Juacutelio-Claudianos Flavianos

Antoninos Severos Constantinos e Teodoacutesios A ideia geral da obra eacute a de que o

Principado romano foi uma espeacutecie de monarquia constitucional uma Repuacuteblica

com um monarca em sua cabeccedila na qual o Senado jamais esteve em peacute de

igualdade com o imperador62

O poder deste uacuteltimo equivalia a uma autocracia e

era potencialmente ilimitado e proveniente das estruturas magistraacuteticas

60

Segundo Epstein (2018) a obra natildeo finalizada eacute dominada por preocupaccedilotildees poliacuteticas e

filosoacuteficas Mommsen estava entre aquele seleto grupo de ldquohistoriadores filosoacuteficosrdquo que incluiacutea

Hume Gibbon e Macaulay ldquolsquoHistoriadores filosoacuteficosrsquo satildeo aqueles interessados na natureza

humana conforme ela se desenvolve nos amplos campos dos assuntos poliacuteticos e militares da

cultura e da economia para eles a histoacuteria estaacute centrada tanto no caraacuteter quanto no acontecimento

Devido a esse interesse pela natureza humana e pelo caraacuteter dos grandes homens (sobretudo) e

mulheres eles proacuteprios encontraram um lugar de destaque e merecido natildeo apenas na

historiografia mas na literaturardquo 61

LENDERING 2020 62

MOMMSEN 2005 p 309

38

republicanas como o imperium proconsulare63 e a tribunicia potestas64

O

postulado existente por traacutes do Principado consistia no governo pessoal em que o

soberano era um funcionaacuterio administrativo com o monopoacutelio do poder65

Em funccedilatildeo disso a eacutepoca imperial representou para o autor uma falecircncia

poliacutetica militar econocircmica e moral da Repuacuteblica Falecircncia porque os imperadores

nunca conseguiram equilibrar a balanccedila do poder e criar uma coexistecircncia de

responsabilidades entre si mesmos e o Senado Ao acumularem magistraturas e

engrandecerem a sua auctoritas66

tornaram irreal qualquer ideia de domiacutenio

senatorial E sem a cooperaccedilatildeo do Senado natildeo poderia haver um Principado

eficiente e seguro um governo com a aparecircncia republicana que ocultasse a

imagem usurpadora do princeps Segundo Mommsen Augusto foi o uacutenico que se

preocupou em manter a fachada republicana Nero em contraste foi um dos que

mais se afastou desconsiderando tudo o que natildeo estivesse voltado ao seu

diletantismo artiacutestico67

[] O negoacutecio do governo era repugnante para ele Ele natildeo apreciava esforccedilos em larga escala sobretudo de tipo militar Ele foi o primeiro imperador que natildeo sentiu necessidade de estar agrave frente de suas tropas [] Ele detestava completamente a aristocracia romana procurando erradicar o Senado e dominar

apenas com homens livres e equestres68 Era uma natureza covarde e natildeo militar69

63

O termo imperium proconsulare designava um feixe de poderes com os quais eram investidos os

magistrados superiores que acumulavam responsabilidades civis ndash como a administraccedilatildeo puacuteblica e

fiscal a seguranccedila interna e o poder judicial ndash e responsabilidades militares como o comando dos

exeacutercitos em campanha (GRIMAL 2008 p 51) 64

A tribunicia potestas conferia ao imperador os poderes de um tribuno ou seja o de convocar o

Senado de vetar suas decisotildees e de apresentar projetos de lei Esse poder podia ser concedido de

modo vitaliacutecio e tornava o possuidor imune agrave interferecircncia das outras magistraturas (LE GLAY

2009 p 217) 65

MOMMSEN 2005 p 22 66

ldquoA auctoritas do priacutencipe era sustentada pelas mesmas noccedilotildees que regulavam as relaccedilotildees entre

patrono e cliente De iniacutecio era entendida como um processo ou seja o desempenho de uma perpeacutetua lideranccedila militar uma accedilatildeo contiacutenua como o maior benfeitor da Res publica natildeo somente

pela demonstraccedilatildeo das suas virtudes (prudecircncia justiccedila sabedoria clemecircncia pietas gravitas)

pelas suas accedilotildees e realizaccedilotildees (meritis) como tambeacutem por ser o mais rico O benefiacutecio gerado pelo

imperador criava um deacutebito (officium) o qual deveria ser reparado pela gratidatildeo (gratia) A

relaccedilatildeo de troca entre o imperador e seus suacuteditos poderia dificilmente ser em termos iguais em

decorrecircncia da disparidade de recursos e poderesrdquo (MENDES 2006 p 40) 67

MOMMSEN 2005 p 153 68

ldquoO ordo equester era composto de cidadatildeos romanos de nascimento livre cujos pais e avoacutes

tambeacutem fossem ingenui Por seu estatuto distinguiam-se pelo uso de um anel de ouro na matildeo

esquerda e pela tuacutenica angusticlauia uma tuacutenica marcada por uma faixa puacuterpura estreita no seu

cumprimento Aleacutem disso detinham o tiacutetulo de eques romanus e tinham o direito de se sentarem

nas fileiras logo apoacutes os senadores no teatro [] A dignidade equestre sob o Alto Impeacuterio natildeo era

hereditaacuteria pois a entrada na ordem equestre era uma decisatildeo que competia ao princeps que por

meio da adlectio uma das prerrogativas do censor nomeava um cidadatildeo para a ordem

39

A apatia era tanta que o autor menciona o fato de o princeps nunca ter

escrito os seus discursos era Secircneca quem os compunha para ele Todos os outros

soberanos sem exceccedilatildeo redigiram os seus Nero gostava mesmo era de se

apresentar no palco como ator e cantor e mesmo nisso mostrou-se totalmente

inepto Tamanha indiferenccedila poliacutetica levou Mommsen a declarar

Ele foi indiscutivelmente o imperador mais despreziacutevel que jaacute

sentou no trono de Roma e isso realmente diz alguma coisa Ele era um adolescente covarde que estava consciente do seu poder Na sua mentalidade fantasmal ele procurou a destruiccedilatildeo de todo o globo70

Prosseguindo Rostovtzeff (1870-1952) eacute outro estudioso bastante

reconhecido considerado um dos maiores historiadores do seacuteculo XX Com

formaccedilatildeo em Filologia Claacutessica realizou nas aacutereas de Histoacuteria Grega e Histoacuteria

Romana Antigas pesquisas centradas nos aspectos econocircmicos e sociais Entre os

anos de 1898 e 1918 atuou como professor de Latim na Universidade de Satildeo

Petersburgo cargo que precisou abandonar devido ao iniacutecio da Revoluccedilatildeo Russa

Rostovtzeff abominava as pretensotildees radicais do Partido Bolchevique cujas ideias

pautavam-se no fim da Monarquia Czarista a partir de uma revoluccedilatildeo popular

armada que resultaria na implantaccedilatildeo imediata e radical do socialismo Ele em

contrapartida defendia uma transiccedilatildeo mais branda e democraacutetica estabelecida

pelo fortalecimento inicial da burguesia ndash e do Capitalismo ndash que seria seguido

pela implantaccedilatildeo posterior do Socialismo Com a vitoacuteria bolchevique todos

aqueles contraacuterios ao Partido foram perseguidos o que fez Rostovtzeff buscar

exiacutelio nos Estados Unidos71

Laacute foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade

de Wisconsin entre 1920 e 1925 e professor de Histoacuteria Antiga e Arqueologia na

Universidade de Yale de 1925 em diante72

Em 1928 publicou o seu livro

Histoacuteria de Roma em que aborda desde as correntes de imigraccedilatildeo para a Itaacutelia no

inscrevendo-o numa lista oficial Apesar disso salvo se tivesse comportamento indigno ou se a

famiacutelia se empobrecesse o filho de um eques romanus tinha a expectativa de integrar esta ordemrdquo

(ESTEVES 2010 p 38-39) 69

MOMMSEN 2005 p 153 70

MOMMSEN 2005 p 152 71

WES 1990 p 5-53 72

Informaccedilatildeo disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyMikhail-Ivanovich-

Rostovtzeff Acesso em 20 fev 2020

40

seacuteculo VIII aC ateacute as causas do decliacutenio da civilizaccedilatildeo antiga no seacuteculo IV73

Essa obra eacute uma siacutentese do seu monumental The Social and Economic History of

the Roman Empire composto em 192674

Eacute no capiacutetulo 16 intitulado A Dinastia Juacutelio-Claacuteudia que Rostovtzeff

discute o Principado neroniano Ao abordaacute-lo o autor fundamenta-se na sua

experiecircncia autoritaacuteria da Revoluccedilatildeo Russa considerando-o um periacuteodo de accedilotildees

sanguinaacuterias a exemplo dos assassinatos de Britacircnico e Agripina A seu ver

Nero mesmo influenciado por Secircneca e Burro natildeo soube lidar com a oposiccedilatildeo da

aristocracia romana instituindo um ldquoreinado de terror [] com o massacre de

todos os suspeitos de natildeo simpatizarem com ele ou com seus meacutetodos de

governordquo75

Essa conduta hostil somada ao desinteresse do princeps pela

atividade militar agrave sua paixatildeo pelo teatro e agrave preferecircncia em prol dos gregos

provocou um crescente desagrado nos senadores e na Guarda Pretoriana76

cuja

reaccedilatildeo concretizou-se no preparo de um ldquogolperdquo eles jaacute natildeo suportavam o tirano

o ldquosenhor e deusrdquo e queriam restaurar a liberdade que ele tinha suprimido

obrigando-o a se suicidar em junho de 6877

Eacute sob esse mesmo vieacutes tiracircnico que Abbott (1803-1879) redigiu a sua obra

History of Nero em 1853 Com formaccedilatildeo a niacutevel superior em Teologia na Andover

Newton Theological School situada em Massachusetts fundou a Igreja Eliot

Congregational em 1834 e tornou-se pastor dela fato que o impulsionou a

escrever pequenos livros de contos infantis moralistas Os volumes compostos

traziam histoacuterias sobre um personagem chamado Rollo que viajava pelo mundo

se aventurando A proposta de Abbott era fazer o leitor acompanhar as andanccedilas

73

CALDER 1928 p 174-175 74

Concordamos com Reinhold (1946 p 362-363) quando ele afirma que a biografia de

Rostovtzeff influenciou no modo como ele escreveu essa obra O autor russo entendia que o

Mundo Antigo experimentou em menor escala o mesmo processo de desenvolvimento que o mundo estava experimentando nas deacutecadas de 40-50 O desenvolvimento moderno difere do antigo

apenas em quantidade e natildeo em qualidade ldquoEste axioma baacutesico da ausecircncia das diferenccedilas

qualitativas entre a estrutura da Civilizaccedilatildeo Antiga e a da sociedade capitalista moderna permite

uma transposiccedilatildeo para a Antiguidade do padratildeo e das categorias do modo de produccedilatildeo e troca

capitalista sua estrutura de classes configuraccedilotildees ideoloacutegicas e terminologias especiais Todos os

maiores esforccedilos de Rostovtzeff no campo da Histoacuteria Social e Econocircmica satildeo lsquomodernizadosrsquo

com conceitos como lsquocapitalistasrsquo lsquoburguesiarsquo lsquoproletariadorsquo lsquofaacutebricasrsquo e lsquoproduccedilatildeo em massarsquordquo 75

ROSTOVTZEFF 1983 p 198 76

A Guarda Pretoriana (cohors praetoria) ldquo[] era uma pequena escolta que acompanhava um

comandante do Exeacutercito na Repuacuteblica [] Durante as guerras civis as dinastias militares

mantiveram guarda-costas pessoais e em 27 aC Augusto estabeleceu uma forccedila permanente

consistindo de nove coortes cada uma contendo 500 (ou possivelmente 1000) homens recrutados

principalmente da Itaacutelia e das proviacutencias romanizadasrdquo (OCD 2012 p 1204) 77

ROSTOVTZEFF 1983 p 195-198

41

de Rollo e ao mesmo tempo aperfeiccediloar o conhecimento sobre Histoacuteria

Geografia Ciecircncia e sobretudo Eacutetica cristatilde78

Esses pequenos contos o

inspiraram tambeacutem a produzir histoacuterias biograacuteficas como as de Aniacutebal Juacutelio

Ceacutesar Cleoacutepatra e Nero79

Decerto sua biografia de Nero eacute atravessada por sua orientaccedilatildeo cristatilde e

moralista No iniacutecio do livro explana sobre os homiciacutedios de Britacircnico Otaacutevia

Agripina e Popeia crimes antinaturais que revelaram a posiccedilatildeo do princeps agrave

frente de tudo o que a depravaccedilatildeo humana jaacute havia presenciado80

No caso

especiacutefico do matriciacutedio Abbott menciona que natildeo constituiu um ato de

autodefesa pois Agripina natildeo pretendia causar danos ao seu filho Tambeacutem natildeo

foi um feito de necessidade poliacutetica como um meio para obter um desejo puacuteblico

Na verdade foi um crime legal e deliberado efetuado com o objetivo de eliminar

um obstaacuteculo agrave perpetraccedilatildeo de outro delito ldquoNero assassinou a sua matildee a sangue

frio apenas porque ela estava no caminho de seus planos para se divorciar da sua

esposa inocente [Otaacutevia] e se casar adulteramente com outra mulher aduacuteltera

[Popeia]rdquo81

Tal atrocidade natildeo causou remorsos no imperador afirma Abbott Ao

contraacuterio ele investiu em vaacuterias espeacutecies de excesso e desordem negligenciando

[] os negoacutecios puacuteblicos do Impeacuterio82 ndash aparentemente considerando o vasto poder e os imensos recursos que estavam

sob seu comando como os uacutenicos meios para a gratificaccedilatildeo completa de suas [] paixotildees pessoais A ambiccedilatildeo que realmente o motivou foi o desejo de alcanccedilar fama como cantor e ator no palco83

Para tanto dispendeu somas de dinheiro incalculaacuteveis realizando

confiscos e exaccedilotildees despoacuteticas de muacuteltiplos tipos e ausentando-se dos assuntos de

poliacutetica externa Isso tudo o tornou orgulhoso vaidoso voluntarioso cruel e

acostumado a ceder sem restriccedilatildeo a todas aquelas tendecircncias imorais que sempre

78

TIKKANEN 2012 79

Essas histoacuterias biograacuteficas pertencem a uma seacuterie de narrativas denominada Makers of History

Com a seacuterie Abbott pretendia fornecer aos leitores um relato preciso e fiel das vidas e accedilotildees dos

personagens mais famosos da Histoacuteria O grande problema eacute que seus relatos confiam em demasia

nas fontes histoacutericas No caso de Nero por exemplo ele acredita piamente nos discursos negativos

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e natildeo os critica 80

ABBOTT 1958 p 213 81

ABBOTT 1958 p 208 82

Cf Anexo B com o mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 83

ABBOTT 1958 p 215

42

ganham domiacutenio sobre a alma humana84

Natildeo demorou muito entatildeo para que a

sua extravagacircncia e profusatildeo despertassem nas altas categorias sociais a vontade

de destruiacute-lo e substituiacute-lo por Galba um comandante ndash no entendimento da elite

ndash distinto honrado e respeitoso perante as tradiccedilotildees e instituiccedilotildees romanas85

De igual modo Warmington (1924-2013) elucida a excentricidade do

princeps Esse autor comeccedilou os estudos em Claacutessicos e Histoacuteria na Peterhouse

College na Universidade de Cambridge agraves veacutesperas da Segunda Guerra Mundial

Mas infelizmente precisou interrompecirc-los devido agrave convocaccedilatildeo para servir

como oficial do Corpo de Inteligecircncia do Exeacutercito Britacircnico Juntamente a outros

estudantes de Claacutessicos foi enviado para a Austraacutelia com a finalidade de decifrar

transmissotildees de raacutedio japonesas Findada a guerra retornou a Cambridge e obteve

o grau de honras em Claacutessicos e Histoacuteria ganhando o Precircmio Thirlwall86 Depois

assumiu a posiccedilatildeo de Lecturer em Histoacuteria Antiga na Universidade de Bristol

onde publicou obras significativas como A History of the Roman World from AD

138 to 337 e Nero Reality and Legend87

Esse uacuteltimo impresso em 1969 eacute marcado por sua participaccedilatildeo na guerra

uma vez que Warmington destaca dentre vaacuterios aspectos possiacuteveis a fraca

atuaccedilatildeo militar de Nero e sua precaacuteria administraccedilatildeo provincial No livro afirma

que Nero ldquo[] nunca visitou os seus soldados [em campo] e natildeo demonstrava

interesse por elesrdquo88

Os seus encargos se limitavam agrave escolha de governadores

para as proviacutencias em que existiam forccedilas beacutelicas e agrave aprovaccedilatildeo de medidas para

apoiaacute-los caso ocorressem problemas Elucida tambeacutem que a administraccedilatildeo

provincial ficou esquecida havendo uma diminuiccedilatildeo na concessatildeo da cidadania

romana e na fundaccedilatildeo de colocircnias fora da Itaacutelia89

O autor comenta ainda sobre as

84

ABBOTT 1958 p 115-121 85

ABBOTT 1958 p 121 86

O Precircmio Thirlwall foi criado em 1884 pela Universidade de Cambridge em homenagem ao

Bispo Connop Thirlwall Era concedido apenas em anos iacutempares para a melhor e mais original

pesquisa sobre Histoacuteria eou Literatura Britacircnica O vencedor recebia uma medalha e uma quantia

em dinheiro para custear as despesas da sua pesquisa (CAMBRIDGE 2008 p 716-857) 87

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBrian-H-Warmington Acesso em 20

fev 2020 No livro sobre Nero Warmington (1969 p 3) afirma que ldquo[] eacute impossiacutevel

desacreditar em sua totalidade a imagem hostil do soberano na tradiccedilatildeo histoacuterica []rdquo Ainda

assim ele se propotildee a enfrentar o desafio escolhendo a interpretaccedilatildeo tradicional das fontes que

temos sobre o princeps Ou seja ele utiliza majoritariamente Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio

embora tambeacutem use Secircneca em alguns momentos 88

WARMINGTON 1969 p 71 89

WARMINGTON 1969 p 71-72

43

dificuldades financeiras que o soberano impingiu ao Impeacuterio e as suas ambiccedilotildees

autocraacuteticas90

Acerca das primeiras conta-nos que

as reservas de ouro do Tesouro foram rapidamente reduzidas por aumentos repentinos nas despesas [] As uacutenicas alternativas quando se necessitava de mais dinheiro era o aumento da tributaccedilatildeo ou a apreensatildeo da propriedade dos ricos Nero eacute um dos vaacuterios imperadores que foram acusados de condenar homens agrave morte [] para conquistar sua riqueza91

Quanto agraves ambiccedilotildees Nero anuncia um movimento na mesma direccedilatildeo de

Caliacutegula ou seja um impulso de embasar o governo em um poder pessoal com

sanccedilatildeo religiosa Como prova Warmington alega que de 65 em diante esse

primeiro autorizou a produccedilatildeo de moedas em cobre retratando a si mesmo com a

chamada coroa irradiada destinada apenas a imperadores deificados Outra prova

eacute a estaacutetua colossal de si proacuteprio feita pelo artista grego Zenodoro e inserida no

vestiacutebulo da Domus Aurea a qual ldquo[] apoacutes a sua morte precisou de pouca

alteraccedilatildeo para ser transformada em uma imagem do deus-Solrdquo92

Como buscamos deixar claro a partir dos exemplos selecionados a

apreciaccedilatildeo negativa comum desses autores natildeo significa a utilizaccedilatildeo dos mesmos

aspectos para a construccedilatildeo do juiacutezo de cada um Os elementos mobilizados e a

combinaccedilatildeo deles tiveram muita relaccedilatildeo com as experiecircncias pessoais dos autores

e com os contextos particulares em que viveram A nosso ver isso eacute vaacutelido no

geral mas eacute muito mais evidente neste bloco do que em qualquer um dos

seguintes Por isso jaacute deixamos esse ponto demarcado aqui

Nero um bom imperador

Em contrapartida agraves concepccedilotildees negativas temos os trecircs autores dispostos

no segundo grupo Aqui se situam os estudos que veem Nero como um

governante incompreendido pela Histoacuteria e que tentam construir um retrato

positivo representando-o como um princeps desenvolvedor de bons projetos

90

WARMINGTON 1969 p 69 91

WARMINGTON 1969 p 69 92

WARMINGTON 1969 p 121

44

O primeiro autor eacute Henderson (1871-1929) diplomado em Estudos

Claacutessicos no Lincoln College na Universidade de Oxford Durante sua carreira

foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade de Londres e na Universidade de

Cambridge Seus interesses acadecircmicos sempre estiveram direcionados a

temaacuteticas militares compondo livros acerca da histoacuteria das campanhas romanas

fossem as guerras dos romanos contra os povos estrangeiros fossem as guerras

civis Suas obras mais conhecidas satildeo The life and Principate of the Emperor

Nero escrita no ano de 1903 e Civil War and Rebellion in the Roman Empire

AD 69-70 Companion to the lsquoHistoriesrsquo of Tacitus lanccedilado em 190893

Eacute alicerccedilado no vieacutes militarista que Henderson construiu o seu Nero Seu

trabalho sobre o princeps eacute meticuloso e preciso trazendo os principais episoacutedios

da sua vida94

Ele elogia o soberano e cria justificativas para minimizar suas

atrocidades declarando jaacute nas primeiras paacuteginas

Concedemos ao grande imperador toda a nossa admiraccedilatildeo justa

e [] talvez devamos confessar que a nossa visatildeo de historiador sobre Nero pode ser tatildeo inadequada quanto o gosto jornaliacutestico de todas as eras95

Essa admiraccedilatildeo eacute dada por certas qualidades que o autor atribui a Nero

um governante habilidoso e genial cuja administraccedilatildeo teria feito honra ao

veterano mais bem-sucedido Um princeps que escutava de bom grado o conselho

dos seus tutores Secircneca e Burro e que tinha ideias proacuteprias Um soberano que

realizou um governo com coragem e sucesso apesar da preferecircncia artiacutestica em

detrimento dos assuntos de Estado96

Em suma um homem que

93

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBernard-W-Henderson Acesso em 22

fev 2020 94

O livro de Henderson eacute praticamente uma justificaccedilatildeo Ele comenta repetidamente sobre os

primeiros anos do governo de Nero suas promessas justas ao Senado a sagacidade da sua

administraccedilatildeo provincial entre outros episoacutedios As fontes histoacutericas satildeo tratadas sobretudo do

ponto de vista moral e poliacutetico (RICHARDS 1904 p 57-61) O autor utiliza Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio mas tambeacutem se pauta em outros relatos a exemplo dos de Marcial e Pliacutenio o Velho 95

HENDERSON 1903 p 15 96

HENDERSON 1903 p 76-126

45

[] por treze anos cumpriu um bom serviccedilo ao Estado serviccedilo

esse que natildeo pode ser enterrado sob uma massa esmagadora de iniquidades Os primeiros anos do seu governo foram anos de justiccedila e misericoacuterdia e de uma poliacutetica cuidadosa [] Dentro das fronteiras nenhuma guerra perturbou a paz ateacute o ano de sua morte []97

Fini (1943- ) compartilha da visatildeo elogiosa de Henderson Sem instruccedilatildeo

na aacuterea de Estudos Claacutessicos atua como ensaiacutesta ativista e jornalista em

conhecidos veiacuteculos da imprensa italiana a saber no jornal LrsquoIndipendente e no Il

Fatto Quotidiano Em suas publicaccedilotildees posiciona-se criticamente em relaccedilatildeo a

determinadas ideologias do mundo moderno a exemplo do liberalismo do

marxismo do industrialismo e da democracia representativa98

Acredita que a

contemporaneidade internalizou os piores aspectos do Iluminismo como o

universalismo e o crescimento econocircmico rejeitando a liberdade de expressatildeo e a

democracia direta alcanccedilaacuteveis em aacutereas bastante limitadas Por conta dessas

opiniotildees Fini tem sido acusado por intelectuais italianos de se aproximar da

extrema direita e de simpatizar com o fascismo Trata-se de acusaccedilotildees que a

nosso ver natildeo satildeo desprovidas de embasamento Em alguns artigos do seu blog

pessoal ele afirma que o combate ao fascismo natildeo deveria existir em uma

verdadeira democracia porque isso constituiria uma atitude antidemocraacutetica Em

outros elogia Mussolini como um grande estadista responsaacutevel por desenvolver

projetos urbanos e artiacutesticos monumentais Defende ainda que foi com o Duce

que a Itaacutelia presenciou as uacuteltimas poliacuteticas direcionadas agraves camadas populares

bem como viveu o seu resquiacutecio de sentimento patrioacutetico99

Tal visatildeo de Mussolini fundamenta toda a sua interpretaccedilatildeo do Principado

neroniano exposta no livro Nero ndash O Imperador Maldito Dois Mil Anos de

Mentiras impresso em 1993100

Para o autor Nero foi uma espeacutecie de Duce

97

HENDERSON 1903 p 421-422 98

FINI 2020 99

FINI 2020 100

Ao longo de todo o livro Fini tenta com um senso objetivo revelar quem ldquorealmente foirdquo Nero

e dissipar a sombra que haacute milhares de anos obscurece a sua imagem Para tanto realiza trecircs

operaccedilotildees em primeiro lugar insere Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio no periacuteodo histoacuterico em que

escreveram tentando identificar suas ideologias e verificando as contradiccedilotildees internas em suas

obras em segundo analisa as moedas os achados arqueoloacutegicos as epiacutegrafes as inscriccedilotildees os

papiros e as circulares que irradiavam do centro do Impeacuterio em direccedilatildeo agrave periferia em terceiro

lugar verifica os resultados concretos que o imperador obteve deixando suas inclinaccedilotildees sexuais

de lado (FINI 1993 p 14)

46

melhorado visto que natildeo possuiacutea caracteriacutesticas ditatoriais e racistas O princeps

foi um grande estadista um visionaacuterio o artiacutefice de uma revoluccedilatildeo cultural e um

homem agrave frente de seu tempo Ele sempre recorreu a uma poliacutetica econocircmica em

prol dos menos ricos era muito cauteloso com o dinheiro do eraacuterio nunca pensou

em instituir uma monarquia teocraacutetica encorajou a mentalidade pacifista sempre

caminhava em direccedilatildeo de medidas amenas natildeo era sanguinaacuterio e odiava a guerra

a violecircncia e as execuccedilotildees capitais suportava com paciecircncia os impropeacuterios das

pessoas era tolerante no acircmbito religioso e jamais perdeu o senso dos seus

deveres a despeito do amor pelos espetaacuteculos101

Esse amor segundo Fini natildeo surgiu ao acaso mas foi fruto dos desgostos

poliacuteticos sofridos no iniacutecio do governo A recusa do Senado em aceitar a proposta

da Reforma Fiscal em 58102

e o incidente de Pedacircnio Segundo em 61103

levaram

Nero a se distanciar das atividades administrativas e a procurar introduzir

elementos da menos grosseira e mais civilizada cultura helenista104

Ambos os

eventos ajudaram-no a compreender que qualquer poliacutetica social como chamamos

hoje era impossiacutevel com uma elite que natildeo tolerava nenhum arranhatildeo nos

proacuteprios privileacutegios e nas suas imensas riquezas Foi por isso que ele se

direcionou a plebe ela o entendia o amava e o respeitava Natildeo agrave toa que

durante os quatorze anos do seu reinado o Impeacuterio experimentou um periacuteodo de paz prosperidade e dinamismo econocircmico e cultural que jamais teve ou teria no futuro [] Este imperador muacutesico cantor poeta ator escritor auriga interessado na ciecircncia e na teacutecnica promotor das mais ousadas

exploraccedilotildees autor e admirador de projetos grandiosos foi um unicum e natildeo soacute na histoacuteria do Impeacuterio Romano105

Ainda no caminho laudativo incluiacutemos outro jornalista Holland (1960- )

De origem inglesa e sem formaccedilatildeo historiograacutefica trabalhou por 25 anos no jornal

London Times publicando novelas com temas e personagens variados fantasmas

monstros fadas bruxaria lugares assombrados animais fantaacutesticos e o

Principado de Nero Ademais atuou como editor da Paranormal Magazine e

participou de programas de Raacutedio na BBC que debatiam o mundo sobrenatural

101

FINI 1993 p 52-178 102

Sobre a Reforma Fiscal cf LEVI 1949a p 270-272 103

Acerca do incidente de Pedacircnio Segundo cf BRADLEY 1994 p 108-114 104

FINI 1993 p 91 105

FINI 1993 p 14-15

47

Hoje trabalha como editor independente de um site dedicado a fantasmas

folcloacutericos britacircnicos e eacute coautor de um aplicativo localizador de assombraccedilotildees

Portanto tem uma carreira alicerccedilada em discussotildees controversas e na produccedilatildeo e

venda de best-sellers ndash a tatildeo conhecida literatura de massa106

O Nero concebido por Holland no livro Nero The Man Behind the Myth

lanccedilado em 2000 eacute uma figura editorial criada com o intuito de despertar o maior

interesse possiacutevel nos leitores107

O autor faz questatildeo de ser bem polecircmico em sua

escrita afirmando que o mundo deveria pedir desculpas ao princeps108

pois ele

foi ldquo[] mais libertaacuterio do que opressor [] a sua poliacutetica consistia em lsquofazer

amor e natildeo guerrarsquo e [] ele se tornou [] o primeiro grande pop star da

Histoacuteriardquo109

Ele prossegue com as afirmaccedilotildees impactantes assegurando que Nero

era um homem e natildeo um monstro que era um grande populista que natildeo tinha

gosto pela crueldade que desprezava as categorias sociais na escolha dos amigos

e que queria tornar o mundo um lugar mais bonito110

Sua administraccedilatildeo consistia

[] em manter a paz e a harmonia dentro das fronteiras restringindo a atividade militar a um miacutenimo necessaacuterio preferindo a diplomacia agrave guerra Sua poliacutetica domeacutestica [] baseava-se em evitar o assassinato de qualquer forma mantendo as pessoas felizes e tentando elevar suas visotildees para o

que ele considerava serem as melhores coisas da vida ndash muacutesica poesia artes visuais e delitos eroacuteticos111

Nero entatildeo eacute visto erroneamente como o maior vilatildeo da histoacuteria sustenta

Holland Conquanto fosse excessivo em tudo o que fizesse nunca torturou

ningueacutem e soacute cometeu assassinatos quando se sentiu ameaccedilado Na verdade ele

era bem mais moderado do que as fontes antigas demonstram

106

HOLLAND 2002 107

No livro o autor defende que Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ao escreverem sobre Nero natildeo

contaram necessariamente mentiras diretas mas ficaram felizes em tratar boatos como fatos ou em

inventar palavras para colocar na boca das pessoas Esse meacutetodo foi reconhecido no Mundo

Antigo como sendo natural agrave arte da retoacuterica cujo propoacutesito natildeo eacute simplesmente informar mas

persuadir (HOLLAND 2000 p vi) 108

Em entrevista ao jornal Independent antes do lanccedilamento do seu livro Holland afirmou ldquo[]

Natildeo estou tentando calar Nero Soacute quero esclarecer as coisasrdquo (MENDICK THOMPSON 2000) 109

HOLLAND 2000 p vii 110

HOLLAND 2000 p xii 5 77 214 111

HOLLAND 2000 p 10

48

Nos primeiros oito anos do seu reinado o nuacutemero total de

homiciacutedios foi quatro duas mulheres e dois homens sua matildee sua esposa seu cunhado e um primo Em cada caso ele tentou outras soluccedilotildees ao inveacutes do assassinato durante [] anos [] [] Este registro de quatro assassinatos confirmados em oito anos todos confinados ao mesmo grupo familiar natildeo eacute a marca de um homicida monstruoso [] mas a reaccedilatildeo demorada de um

governante cauteloso que sabe que se ele for esfaqueado nas costas seraacute por um dos seus parentes ou amigos []112

Em siacutentese os dois grupos expostos ateacute agora explicitaram uma polaridade

de percepccedilotildees sobre Nero ora o imperador eacute cruel e sanguinaacuterio ora eacute beneacutevolo e

exemplar Os autores em geral parecem estar mais preocupados em compor uma

reconstruccedilatildeo imaginaacuteria e apaixonada do passado do que em tentar apreendecirc-lo

sob uma perspectiva de fato histoacuterica Aiacute reside um problema de anaacutelise das

fontes Sob nossa perspectiva os escritores fazem um exame superficial e

limitado delas ndash sobretudo de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ndash tendendo a seguir

os seus planos narrativos e a ignorar os contextos e os interesses existentes por

detraacutes de cada uma Juntamente a isso desenvolvem uma interpretaccedilatildeo a partir de

concepccedilotildees pessoais e modernas gerando anacronismos prejudiciais agraves suas

obras logo oferecem uma reavaliaccedilatildeo da vida e da personalidade de Nero no

lugar de um estudo focado no periacuteodo histoacuterico que condicionou as evidecircncias

literaacuterias e o soberano

Ademais as obras examinadas obviamente estatildeo vinculadas agrave forma

polecircmica jaacute consolidada na literatura especializada de avaliar muito

negativamente o governo neroniano Poreacutem percebemos entre elas uma visatildeo

comum de indignaccedilatildeo com a aristocracia romana que criticava o soberano mas

que natildeo era em nada melhor do que ele De forma difusa os autores mostram uma

desconfianccedila em relaccedilatildeo ao que parecia ser uma opiniatildeo geral fruto de distorccedilatildeo e

de interesses inconfessaacuteveis

Por fim eacute necessaacuterio destacar que as produccedilotildees analisadas nos dois grupos

iniciais foram redigidas ou por historiadores mais antigos ou por jornalistas Os

escritores da primeira categoria ignoram a noccedilatildeo de Histoacuteria como uma

construccedilatildeo relativamente arbitraacuteria e os da segunda usam a noccedilatildeo da Histoacuteria

como fonte de uma verdade ignorada pelo senso comum Essa uacuteltima concepccedilatildeo

112

HOLLAND 2000 p 142

49

ainda eacute bastante popular entre os natildeo especialistas e desperta grande curiosidade

na imprensa especialmente hoje em tempos de grande impulso de todas as

formas de negacionismo Doravante falaremos dos grupos mais heterogecircneos dos

que priorizam abordagens temaacuteticas ou aspectos especiacuteficos das fontes literaacuterias

Vejamos portanto o terceiro grupo nomeado Nero o imperador fantoche

Nero o imperador fantoche

Os nove autores alocados nesse grupo natildeo estatildeo interessados em verificar

se Nero era bom ou mau mas sim em analisaacute-lo como um princeps manipulaacutevel

O argumento central eacute o de que a administraccedilatildeo do soberano foi positiva ou

negativa consoante as influecircncias recebidas Isso significa que Nero fez um bom

governo enquanto esteve sob a influecircncia de bons conselheiros a exemplo de

Secircneca e Burro e fez um mau governo enquanto esteve sob a influecircncia de maus

conselheiros ndash no caso Agripina Tigelino e Popeia Essa eacute a visatildeo mais comum

nos estudos sobre Nero ainda que natildeo seja a mais popular entre o puacuteblico

Inseridos nessa perspectiva temos a obra Vida e Eacutepoca de Nero elaborada

em 1956 pelo jornalista italiano Franzero113

o manual Historia de Roma escrito

no ano 1989 pelos espanhoacuteis Roldaacuten Blaacutezquez e del Castillo professores da

Universidade Complutense de Madrid e da Universidade de Alicante114

e o livro

Histoacuteria de Roma composto em 2003 por Grimal ex-catedraacutetico da

Universidade de Sorbonne115

Existem tambeacutem outras produccedilotildees mais

reconhecidas no meio acadecircmico cuja abordagem concede maior atenccedilatildeo agraves

fontes literaacuterias e aos demais tipos de evidecircncias histoacutericas Eacute delas que

trataremos agora

A obra de Weigall (1880-1934) eacute a primeira da lista Esse autor apesar de

natildeo possuir instruccedilatildeo a niacutevel superior foi um grande apaixonado pelo Mundo

Claacutessico exercendo a funccedilatildeo de pesquisador de antiguidades egiacutepcias no iniacutecio do

113

Franzero (1958 p 104) afirma que durante a supervisatildeo de Secircneca e Burro a administraccedilatildeo

imperial foi muito satisfatoacuteria ldquoOito anos de paz haviam permitido ao Impeacuterio desenvolver ao

maacuteximo os seus recursos Secircneca e Burro guiavam com matildeo leve o governo imperial Roma

dominava o mundo sem oprimi-lordquo 114

Para os professores foi somente com a influecircncia de Secircneca e Burro que Nero conseguiu gerir

o Impeacuterio de modo beneacutefico assegurando agrave aristocracia senatorial o respeito ao seu status

econocircmico e social (BLAacuteZQUEZ DEL CASTILLO ROLDAacuteN 1989 p 151) 115

Grimal (2008 p 97) diz que sob a influecircncia de Secircneca e de Burro Nero cumpriu as

promessas que tinham sido feitas em seu nome respeitando os privileacutegios senatoriais

50

seacuteculo XX bem como de cenoacutegrafo jornalista e escritor de guias de viagens

roteiros cinematograacuteficos romances e biografias histoacutericas Dentre suas vinte e

quatro publicaccedilotildees destacamos o roteiro do filme Burning Sands lanccedilado em

1922 e o livro Nero Emperor of Rome redigido em 1930116

Ao lermos esse

uacuteltimo verificamos que Weigall muitas vezes ignora a cronologia das fontes

histoacutericas quando ela serve ao seu propoacutesito e tambeacutem considera o discurso

taciteano como verdade absoluta117

Isso fica evidente na apresentaccedilatildeo dos

personagens que dominaram Nero pois o seu Secircneca o seu Burro a sua Agripina

o seu Tigelino e a sua Popeia satildeo sujeitos bons e maus segundo os relatos do

historiador antigo

O autor acredita que as interferecircncias ruins na vida de Nero comeccedilaram

desde antes do seu nascimento com a instaacutevel e licenciosa famiacutelia dos

Aenobarbi118 O pai do imperador Cneu Aenobarbo e sua matildee Agripina foram

tatildeo corruptos e imorais que nunca deram bons exemplos ao filho Para piorar

Nero viveu a sua infacircncia sob o governo do seu tio Caliacutegula um ambiente vicioso

que moldou de maneira danosa os primeiros traccedilos da sua personalidade119

O

grande problema poreacutem foi Agripina afirma Weigall Sedenta pela manutenccedilatildeo

do filho no poder ela edificou um projeto de princeps divergente daquilo que

Nero pensava para si Ela queria fazer dele um ldquohipoacutecrita convencionalrdquo pelo

ldquobem de Romardquo e pela ldquogloacuteria da casa imperialrdquo Ela era incapaz de compreender

o temperamento do soberano exercendo um domiacutenio tatildeo amplo sobre ele que fez

despertar nele coisas ruins Assim as saiacutedas noturnas de Nero e seu gosto pela

muacutesica tatildeo criticados foram na praacutetica respostas agraves vontades austeras da matildee120

Em contraste Secircneca e Burro sempre aguccedilaram o melhor visto que eram

uma ldquoboa combinaccedilatildeordquo121

De um lado estava

116

HANKEY 2001 p 5-53 No livro Weigall utiliza uma gama de fontes antigas bastante

variada dando-nos uma visatildeo bem completa de Nero Por exemplo ele usa os relatos contidos na

Octauia no Bellum Judaicum nas Antiquitates Judaicae nas Siluae na Naturalis Historia no De

Vita Caesarum na Historia Romana e principalmente nos Annales 117

GEER 1931 p 51 118

Os Aenobarbi eram assim chamados por causa de suas barbas ruivas (Suet Nero 1) 119

WEIGALL 1930 p 25-36 120

WEIGALL 1930 p 81-115 121

WEIGALL 1930 p 99

51

[] o cortecircs Secircneca com sua habilidade diplomaacutetica de lidar

com as pessoas sua consideraccedilatildeo filosoacutefica e ponderada por todos os direitos dos homens e sua adesatildeo natildeo muito riacutegida aos princiacutepios estoacuteicos [de outro estava] o honesto Burro com sua lealdade contundente sua disciplina militar e sua habilidade de comandar a devoccedilatildeo do exeacutercito122

Enquanto esteve sob a autoridade deles o princeps diminuiu os impostos

evitou o desperdiacutecio de vidas manteve uma relaccedilatildeo cordial com o Senado e

aprovou leis para retirar os indiviacuteduos da opressatildeo123

Os trecircs proacuteximos autores Scullard (1903-1983) Grant (1954-2004) e

Bishop (1959-1981) seratildeo debatidos em conjunto porquanto fazem a mesma

abordagem das fontes O primeiro deles foi um historiador britacircnico formado em

Estudos Claacutessicos pelo St Johnrsquos College na Universidade de Cambridge Foi

tambeacutem professor de Histoacuteria Antiga no Kingrsquos College na Universidade de

Londres onde editou o renomado Oxford Classical Dictionary De todas as suas

produccedilotildees a mais conhecida eacute From the Gracchi to Nero A History of Rome from

133 BC to AD 68 divulgada em 1959124

O segundo fez formaccedilatildeo em Estudos

Claacutessicos no Trinity College na Universidade de Cambridge Especializou-se em

Numismaacutetica Antiga desenvolvendo pesquisas inovadoras acerca das moedas

romanas as quais ele argumentava serem um registro social viacutevido do Impeacuterio

Ocupou a cadeira de Ciecircncias Humanas em Cambridge entre os anos de 1948 a

1959 compondo cerca de 70 obras que abrangem desde a traduccedilatildeo dos Annales

ateacute biografias de Juacutelio Ceacutesar e de Nero125

Por seu turno o terceiro foi professor

de Estudos Claacutessicos e Histoacuteria Antiga na Universidade de New England de 1959

a 1981 Foi graccedilas a seus esforccedilos que a aacuterea de Claacutessicos consolidou-se na

Austraacutelia visto que ele ajudou a fortalecer um campo pouco investigado no paiacutes

lanccedilando dois livros Nero The Man and the Legend em 1969 e The Cost of

Power Studies in the lsquoAeneidrsquo of Virgil em 1988126

Os trecircs autores em nosso

entendimento usam as obras de Taacutecito Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio para

produzirem suas proacuteprias narrativas ao mesmo tempo em que tentam cada um a

seu modo comprovar a veracidade dos relatos antigos

122

WEIGALL 1930 p 99 123

WEIGALL 1930 p 82-116 124

WALBANK 1984 p 189-191 125

MARTIN 2004 126

JORDAN 2004 p 101

52

Por exemplo Scullard127

e Grant128

sustentam a ideia de que as tutorias de

Secircneca e Burro trouxeram um momento de bem-estar social para o Impeacuterio O

primeiro autor destaca a otimizaccedilatildeo da administraccedilatildeo financeira e do

fornecimento de gratildeos para Roma129

O segundo salienta as melhorias na gestatildeo

do tesouro e na ordem puacuteblica com ldquo[] provisotildees contra falsificaccedilotildees e

instruccedilotildees de que os governadores de proviacutencias e seus oficiais natildeo deveriam dar

espetaacuteculos gladitoriais ou de bestas selvagens []rdquo130

Ambos defendem tambeacutem

ndash semelhantemente a Weigall ndash a nocividade de Agripina para Nero

argumentando que sua presenccedila dominadora o impedia de dirigir natildeo soacute o Impeacuterio

como a proacutepria vida Ele odiava a influecircncia que a sua matildee tinha sobre ele e

estava ansioso para emancipar-se de sua ascendecircncia psicoloacutegica O matriciacutedio

entatildeo eacute apontado pelos autores como algo compreensiacutevel e justificaacutevel131

Bishop tambeacutem defende a noccedilatildeo da maacute influecircncia de Agripina132

Ele

atribui a culpa das accedilotildees ruins do soberano agrave matildee cuja ganacircncia insaciaacutevel

dominava a mente e o Principado do filho Nero ldquo[] se tornou o peatildeo de uma

matildee ambiciosa []rdquo e permaneceu como o foco de uma das mulheres mais

controladoras da histoacuteria133

Na avidez de tornaacute-lo princeps ela suprimiu vaacuterios

potenciais rivais mandando assassinar Juacutenio Silano tataraneto de Augusto

Narciso o fiel liberto de Claacuteudio e o proacuteprio imperador Claacuteudio envenenado por

cogumelos134

Essa matanccedila toda de acordo com o autor ocorreu quando Nero

127

Concordamos com Rathbone (2010 p xxvi) quando ele alega que ldquoa visatildeo geral de Scullard

sobre a Histoacuteria Romana estaacute fundamentada no Liberalismo do iniacutecio do seacuteculo XXrdquo Um

Liberalismo que aceita a conquista em nome da paz e da prosperidade e defende a condenaccedilatildeo do

controle estadista em prol da liberdade individual Nesse sentido Scullard critica as accedilotildees do

Senado durante a Repuacuteblica argumentando que o Conselho era extremamente burocraacutetico e natildeo

representativo da vontade do povo taxando em demasia as proviacutencias e a plebe ndash uma maacute

administraccedilatildeo que soacute foi retificada com a chegada do Impeacuterio a partir das boas decisotildees de

Augusto Tibeacuterio Claacuteudio e dos conselheiros de Nero Secircneca e Burro que promoveram o bem-

estar das proviacutencias Eacute importante frisar que essa visatildeo de Scullard sobre o Principado de Nero eacute pautada natildeo soacute no uso dos trecircs autores mais recorrentes mas tambeacutem no da numismaacutetica 128

Para construir sua representaccedilatildeo de Nero Grant vai aleacutem das narrativas de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio recorrendo agraves inscriccedilotildees epigraacuteficas e agraves moedas O resultado eacute um livro lindamente

montado com vaacuterias moedas estaacutetuas bustos e pinturas 129

SCULLARD 2010 p 258 130

GRANT 1970 p 59 131

SCULLARD 2010 p 259 GRANT 1970 p 74 132

Adotamos a visatildeo de Crook (1965 p 364-365) a respeito do livro de Bishop sua histoacuteria eacute a de

Nero e natildeo a do Impeacuterio Seu livro eacute essencialmente uma reescrita das fontes antigas com uma

linguagem menos polida O uso de Taacutecito em especiacutefico eacute exacerbado e pouco criacutetico Ademais a

obra estaacute cheia de clichecircs todas as mulheres parecem ser bastante ldquoespirituosasrdquo exceto Otaacutevia

que ldquovivia nas sombrasrdquo 133

BISHOP 1964 p 192-193 134

BISHOP 1964 p 11-33

53

era bem jovem situaccedilatildeo que o fez enxergar o homiciacutedio como algo comum Para

ele o assassinato

[] era uma arma com a qual ele jaacute estava acostumado desde a infacircncia se natildeo por experiecircncia pessoal por meio do testemunho vicaacuterio de muita coisa que se passava ao seu redor [] O assassinato era um meacutetodo conveniente de remover os seus inimigos [] Ele viu seu proacuteprio padrasto eliminado por

sua matildee para abrir caminho para ele Seu proacuteprio uso dessa arma fatalmente faacutecil deve ter parecido natural quando a ocasiatildeo exigiu isso135

Enfim as atitudes sanguinaacuterias de Nero satildeo resultantes da cobiccedila de

Agripina por poder Isso faz com que a sua peacutessima reputaccedilatildeo mereccedila ser

reconsiderada pela Histoacuteria afinal ele se tornou o peatildeo de uma matildee ambiciosa

que o fez imperador

A partir desse momento ele vivia como ela queria Sua vida pessoal estava arruinada mas grande parte do seu povo o considerava um governante consciencioso para seus interesses e

muitos lamentaram sua morte precoce Nenhuma outra explicaccedilatildeo pode ser verdade pois seu retorno foi esperado com alegria136

Tempos depois Griffin (1935-2018) uma das principais estudiosas sobre

Nero entrou nesse debate Com uma trajetoacuteria educacional admiraacutevel conquistou

o bacharelado em Filosofia Claacutessica na Universidade Columbia em 1956 No

mesmo ano ingressou no mestrado na Universidade de Harvard e ao terminaacute-lo

cursou o doutorado com bolsa Fulbright na Universidade de Oxford sob

orientaccedilatildeo de Syme Finalizada a formaccedilatildeo assumiu em 1967 a cadeira de

Histoacuteria Antiga no Sommerville College na Universidade de Oxford posiccedilatildeo que

exerceu com excelecircncia ateacute 2002137

No decorrer da sua carreira Griffin desempenhou um papel crucial na

apreciaccedilatildeo da escrita filosoacutefica dos antigos romanos em particular a de Secircneca

redigindo livros relevantes como Seneca a Philosopher in Politics no ano de

1967 Aleacutem da temaacutetica filosoacutefica pesquisou a dinastia imperial Juacutelio-Claudiana

135

BISHOP 1964 p 185-186 136

BISHOP 1964 p 192-193 137

EDWARDS 2018

54

com ecircnfase no imperador Nero Em sua biografia Nero The End of a Dynasty

divulgada em 1984 propotildee-se a investigar duas questotildees i) o caraacuteter do soberano

e o modo como ele foi afetado por circunstacircncias particulares e pelo conselho de

outros e ii) as pressotildees intriacutensecas ao Principado as quais condicionavam a

conduta de qualquer governante Essas questotildees fizeram-na classificar o seu livro

como hiacutebrido pois eacute tanto biograacutefico na medida em que se concentra na

personalidade do imperador quanto histoacuterico dado que analisa a sua queda em

termos da sua interaccedilatildeo com o sistema poliacutetico Logo a parte I da sua obra

denominada Nerorsquos Principate destina-se agrave pesquisa biograacutefica e a parte II

intitulada Post-Mortem on the Fall of Nero ao exame histoacuterico138

Tal diferenccedila

de foco ocasionou a disposiccedilatildeo das suas ideias em locais distintos do nosso texto

sendo a parte I discutida aqui no terceiro grupo e a parte II no quinto

Diferente de Weigall de Scullard de Grant e de Bishop Griffin natildeo toma

os relatos das fontes histoacutericas como imediatamente vaacutelidos e nem tenta justificaacute-

los seu objetivo eacute averiguar a documentaccedilatildeo questionando as narrativas e

contextualizando-as dentro do sistema poliacutetico Por exemplo a primeira duacutevida do

seu texto na parte I repousa na independecircncia e no interesse do soberano pela

tarefa imperial ldquodevemos acreditar em Diatildeo Caacutessio que Nero deixou as decisotildees

para os outros ou em Suetocircnio que ele estava no controle total ou em Taacutecito de

que ele era ativo sob orientaccedilatildeordquo139

Como resposta alega ser perverso assumir a

passividade poliacutetica do imperador nas boas iniciativas Sua determinaccedilatildeo e seu

compromisso com a promoccedilatildeo das artes sugerem que ele ldquo[] natildeo poderia ter sido

totalmente dominado por seus conselheiros []rdquo e que teria sido capaz de tomar

um interesse ativo em outros aspectos mais convencionais do governo140

A segunda duacutevida do seu livro recai sobre o domiacutenio de Secircneca e Burro

ldquoqual teria sido a natureza e a duraccedilatildeo da influecircncia dos conselheirosrdquo A

resposta se vincula ao assassinato de Agripina Para Griffin tanto Secircneca quanto

Burro deviam suas posiccedilotildees a ela porquanto Secircneca tornou-se conselheiro do

138

Tendo em vista que para Griffin (2001 p 16-17) ldquoo evento mais importante do reinado de

Nero foi seu colapsordquo a ecircnfase do seu livro estaacute necessariamente no sistema e no envolvimento do

governante nele e natildeo no proacuteprio indiviacuteduo e seu meacutetodo eacute temaacutetico em vez de estritamente

analiacutetico O resultado eacute uma anaacutelise minuciosa e persuasiva um trabalho soacutebrio atencioso e

confiaacutevel A autora problematiza bastante as fontes antigas dando atenccedilatildeo especial agraves narrativas

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e em algumas ocasiotildees agraves de Secircneca Ela tambeacutem investiga

documentaccedilatildeo epigraacutefica e numismaacutetica 139

GRIFFIN 2001 p 40 140

GRIFFIN 2001 p 43

55

jovem princeps em 49 e Burro virou o uacutenico Prefeito da Guarda Pretoriana de

Roma em 51 Por isso nunca foram a favor de mataacute-la a despeito da sua peacutessima

interferecircncia Essa oposiccedilatildeo provocou uma quebra de confianccedila na relaccedilatildeo com o

princeps a qual jamais foi restaurada Quando Nero percebeu que havia efetivado

o matriciacutedio sem a ajuda dos dois viu que natildeo precisava mais deles o que

enfraqueceu o controle positivo dos tutores141

A partir daiacute a autora discorre sobre o Turning Point (Ponto da Virada)

momento em que a influecircncia de Secircneca e de Burro de fato desapareceu e

surgiram parceiros ruins Nessa loacutegica apresenta a terceira pergunta da sua obra

ldquoquando ocorreu a descida de Nero agrave tiraniardquo Ela demonstra que Suetocircnio natildeo eacute

muito uacutetil em dar uma data Taacutecito opta pelo falecimento de Burro e a ascensatildeo de

Tigelino em 62 e Diatildeo Caacutessio seleciona os homiciacutedios de Britacircnico em 55 e o de

Agripina em 59 Com base nesses dados formula sua proacutepria soluccedilatildeo a descida agrave

tirania se inicia em 62 com o divoacutercio e o assassinato de Otaacutevia Os dois eventos

causaram o rompimento da ligaccedilatildeo de Nero com Claacuteudio e com a dinastia Juacutelio-

Claacuteudia a qual legitimava a sua posse do trono Trata-se de um rompimento

seguido pelo controle de Tigelino e Popeia que passaram a encorajar o

exibicionismo como um meio para a popularidade e a repressatildeo como um antiacutedoto

para o medo142

O uacuteltimo autor do grupo Shotter (1939- ) ratifica o posicionamento de

Griffin acerca da interferecircncia nociva de Tigelino Professor emeacuterito de Histoacuteria

do Impeacuterio Romano na Universidade de Lancaster ele eacute um pesquisador

especialista nas dinastias Juacutelio-Claudiana e Flaviana com publicaccedilotildees bastante

famosas e comercializadas a exemplo dos livros Nero (1997) Augustus Caesar

(2004) e The Fall of the Roman Republic (2005)143

Em relaccedilatildeo agrave obra Nero Shotter escreveu uma biografia com a intenccedilatildeo de

atingir um puacuteblico leigo dado que faz uma anaacutelise restrita e pouco criacutetica das

fontes Nesse sentido referencia em poucos momentos a trageacutedia Octauia e as

narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio os mais recorrentes nos estudos do

Principado neroniano144

Aliaacutes o seu uso de tais escritores eacute seletivo porque

141

GRIFFIN 2001 p 67-82 142

GRIFFIN 2001 p 83-118 143

SHOTTER 2002 144

O livro de Shotter pertence a uma seacuterie intitulada Lancaster Pamphlets cujo objetivo eacute oferecer

relatos concisos e atualizados dos principais toacutepicos histoacutericos a fim de ajudar alunos que fazem

56

privilegia os relatos taciteanos a fim de demonstrar que Nero foi um bom

governante enquanto permitiu-se deixar-se guiar e assistir por homens de

consideraacutevel capacidade145

O autor alega que durante o controle de Secircneca e de Burro o Principado

seguiu um vieacutes moderado paciacutefico e conciliatoacuterio A seguranccedila e a prosperidade

progrediram na maior parte do Impeacuterio graccedilas agraves influecircncias dos tutores na

escolha de bons comandantes militares e governadores de proviacutencias os quais

despendiam forccedilas e os proacuteprios recursos para solucionar os problemas No

entanto a morte de Burro e o afastamento de Secircneca trouxeram agrave cena ldquo[] o

perverso Ofocircnio Tigelino que encarou como sua funccedilatildeo aquiescer aos mais

rasteiros instintos de Nerordquo146

Ele incentivou a concretizaccedilatildeo de vaacuterias

atrocidades como as mortes de Rubeacutelio Plauto e de Fausto Sula levando o

princeps a acreditar que esses homens ndash e muitos outros ndash configuravam uma

potencial rivalidade em virtude das ligaccedilotildees que tinham com a casa imperial147

A ascensatildeo de Tigelino entatildeo causou o decliacutenio do bom governo Mas

natildeo apenas isso as mortes de Agripina de Otaacutevia de Secircneca e de Burro

possibilitaram o desenvolvimento de projetos que estavam abandonados148

Segundo Shotter essas perdas significavam um caminho livre de obstaacuteculos o

qual se afastava das linhas tradicionais delineadas por Augusto149

Era o caminho

dos prazeres culturais e sociais do soberano artista e do monarca heleniacutestico

opccedilotildees que despertaram insatisfaccedilotildees na ordem senatorial e nas tropas150

Em resumo acreditamos que os autores desse bloco ainda que de modo

parcial redigiram suas obras a partir da discussatildeo da tradiccedilatildeo mais comum acerca

do Principado neroniano Eles buscaram estabelecer uma interlocuccedilatildeo entre por

um lado as fontes antigas ndash em especial os Annales de Taacutecito ndash e por outro as

suas apresentaccedilotildees do governo do princeps as quais dividem esse periacuteodo em um

cursos introdutoacuterios nas universidades Para tanto disponibiliza notas e referecircncias adequadas

bem como extensa bibliografia ferramentas essenciais agrave compreensatildeo do Principado neroniano O

grande problema e nesse ponto concordamos com Barrett (2009 p 813) e Ehrhardt (1997 p 5) eacute

que Shotter faz uma discussatildeo rasa de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio natildeo nos dando uma imagem

clara da poliacutetica romana do sistema imperial ou da proacutepria vida e eacutepoca de Nero 145

SHOTTER 2008 p 46-48 146

SHOTTER 2008 p 53 147

SHOTTER 2008 p 54 148

SHOTTER 2008 p 54 149

SHOTTER 2008 p 54 150

SHOTTER 2008 p 142

57

momento inicial de esplendor e um momento final de tirania No final das

contas Nero natildeo era bom ou mau mas o resultado das influecircncias que sofreu

Os verdadeiros Neros

Em contraste com as ideias dos trecircs grupos expostos o quarto grupo busca

a essencialidade do soberano Os verdadeiros Neros satildeo representados por aqueles

que tentam encontrar o real caraacuteter do princeps e os seus autecircnticos propoacutesitos

governamentais e de vida Ateacute o momento lidamos com as abordagens

metodoloacutegicas inseridas em Nero um mau imperador e em Nero um bom

imperador que fizeram uma reconstruccedilatildeo fantasiosa do passado por meio da

leitura em geral literal de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Ocupamo-nos tambeacutem

dos procedimentos historiograacuteficos dos autores dispostos em Nero um imperador

fantoche os quais embora tenham feito um exame mais criacutetico da documentaccedilatildeo

adotam a versatildeo usual acerca do Principado neroniano De ora em diante

trataremos das interpretaccedilotildees que questionam as fontes e procuram suas

inverdades e contradiccedilotildees visando a construir um retrato mais real Iremos

apresentaacute-las em trecircs sub-blocos o primeiro abordaraacute as caracteriacutesticas

psicoloacutegicas do imperador o segundo versaraacute sobre seu lado artiacutestico e o terceiro

investigaraacute sua relaccedilatildeo com alguns aspectos do Principado Dito isso vamos ao

primeiro sub-bloco composto por trecircs autores

Iniciaremos com Vandenberg (1941- ) um proliacutefico escritor europeu de

livros histoacutericos e biograacuteficos para o grande puacuteblico Formado em Histoacuteria da

Arte e Histoacuteria Germacircnica na Universidade de Munique trabalhou por diversos

anos como jornalista nas revistas Quick e Playboy Em 1975 iniciou a redaccedilatildeo da

sua imensa seacuterie de livros publicando Ramseacutes II (1977) Nero (1981) Os

Conspiradores de Pedro (2006) entre outros Suas obras jaacute alcanccedilaram um total

de 25 milhotildees de coacutepias divulgadas em 34 idiomas e satildeo classificadas pelas

grandes livrarias mundiais como parapsicoloacutegicas ou seja satildeo parte da literatura

que expressa o subconsciente os transtornos e a histeria dos personagens O seu

58

Nero eacute entatildeo uma reflexatildeo sobre o estado mental do soberano e sobre o modo

como suas patologias se manifestavam151

Ao se basear especialmente nos relatos morais de Suetocircnio Vandenberg

argumenta que as atitudes do princeps precisam ser lidas a partir do exame dos

ancestrais da domus152 Juacutelio-Claacuteudia ldquohaveria nessas duas antiquiacutessimas famiacutelias

casos de anomalia mentalrdquo153

Ele responde apresentando pesquisas

desenvolvidas por historiadores da Medicina cujos resultados indicam as

tendecircncias bissexuais e a epilepsia de Ceacutesar os complexos fiacutesicos de Augusto a

esquizofrenia de Tibeacuterio a loucura de Caliacutegula e a debilidade mental de Claacuteudio

Era dessa ldquoseara de doidosrdquo que descendia Nero ldquoSeus antepassados pelo lado

paterno os Enobarbos [] eram indiviacuteduos instaacuteveis e desregradosrdquo154

Tal ancestralidade na visatildeo do autor justificaria os comportamentos

exibidos pelo imperador e as situaccedilotildees que lhes deram origem Por exemplo o

medo de novas oposiccedilotildees apoacutes a descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo em 65

levou-o a reforccedilar a guarda e a exterminar quaisquer possiacuteveis rivais155

Essa

atitude ndash e diversas outras ndash deve ser lida como uma consequecircncia da opressatildeo

sentida por um jovem inseguro sentado no trono

Todos esses comportamentos satildeo humanos e podem ser explicados [] Por isso natildeo se pode definir Nero como um

deacutebil mental ou um esquizofrecircnico Do ponto de vista psicopatoloacutegico os historiadores da medicina colocam Nero quando muito na categoria dos maniacuteacos A mania provoca uma necessidade de atividades em excesso fortalece os instintos suscita a fuga das ideias e a supervalorizaccedilatildeo do ego Nero nunca foi louco Mas entatildeo o que foi ele Um joguete da Histoacuteria156

151

VANDENBERG 1987 p 303 O livro de Vandenberg eacute um romance histoacuterico O autor usa os

textos de Taacutecito de Diatildeo Caacutessio e sobretudo de Suetocircnio para narrar com detalhes minuciosos

os episoacutedios da vida de Nero Em alguns momentos inclusive ele apresenta informaccedilotildees sobre o

princeps que natildeo estatildeo disponiacuteveis nas fontes O curioso eacute que apesar disso Vandenberg possui a

criticidade de entender que o cunho negativo da imagem de Nero deve-se ao modo como as fontes

foram transmitidas e ao contexto no qual estava inserido cada autor que as escreveu 152

De acordo com Saraiva (2006 p 393) o vocaacutebulo domus tinha diversos significados mas os

que se aplicam aqui satildeo ldquocasardquo ldquomoradardquo e ldquofamiacuteliardquo 153

VANDENBERG 1987 p 270 154

VANDENBERG 1987 p 270-273 155

VANDENBERG 1987 p 278 156

VANDENBERG 1987 p 278

59

Tempos depois Auguet (1935-1994) e Cazenave (1942-2018) aprofundam

o raciociacutenio psicoloacutegico O primeiro foi um jornalista especializado em Ciecircncias

Sociais e produtor na Radio-France com forte interesse na aacuterea de Histoacuteria

Antiga Entre os anos de 1974 e 1984 compocircs os ensaios Os Jogos Romanos e

Caliacutegula157

O segundo foi filoacutesofo radialista escritor e um apaixonado pela

psicanaacutelise especialista na obra de Carl Jung De 1984 a 2005 presidiu o Grupo

de Estudo Carl Jung de Paris e o Ciacuterculo Francoacutefono de Reflexatildeo e Informaccedilatildeo

sobre o trabalho do mesmo Seu fasciacutenio por Jung eacute refletido em muitas de suas

produccedilotildees como no Pequeno Dicionaacuterio do Amor Louco (2005) e Jung e os

Religiosos (2012)158

Esse mesmo fasciacutenio adentra tambeacutem a obra Os Imperadores Loucos

Ensaio de Mito-anaacutelise Histoacuterica elaborada em 1981 Nela Cazenave em

parceria com Auguet propotildee uma nova forma de fazer Histoacuteria a Histoacuteria

Etioloacutegica construiacuteda sobre alicerces independentes e em constante interaccedilatildeo Os

alicerces satildeo o poliacutetico o econocircmico o morfoloacutegico e o arquetipoloacutegico cuja

existecircncia se associa agrave psicanaacutelise de Jung Eacute no uacuteltimo que eles insistem a fim de

introduzirem na disciplina histoacuterica a dupla hipoacutetese de ldquoarqueacutetipos da

sociabilidaderdquo e de manifestaccedilotildees de uma ldquorealidade psiacutequica objetivardquo159

A

investigaccedilatildeo arquetipoloacutegica ldquo[] exige que o observador se situe no acircmago da

dinacircmica do arqueacutetipo estudado tornando-se deste modo como o fiacutesico quacircntico

ou o analista junguiano um participante na realidade que persegue []rdquo160

Eacute a partir desse ponto de vista que avaliam Nero perseguindo sobretudo

a narrativa suetoniana sobre o que eacute dito acerca dele161

Para os autores se

quisermos entender o imperador precisamos captar como ele pensava o seu

mundo e um dos principais elementos para tanto reside na religiatildeo visto que ele

tentou se fazer reconhecer como um deus162

157

Disponiacutevel em httpswwwidreffr026696401 Acesso em 24 fev 2020 158

CAZENAVE 2019 159

AUGUET CAZENAVE 1995 p 14-15 160

AUGUET CAZENAVE 1995 p 17 161

Aceitamos a visatildeo de Oliveira (1996 p 368) sobre o trabalho de Auguet e Cazenave ldquo[] aqui

estaacute um livro escrito com inteligecircncia e arguacutecia diria ateacute com alguma paixatildeo com paacuteginas

interessantes para serem lidas por quem se interessa por coisas romanas dispotildee de algum juiacutezo

criacutetico e gosta de controveacutersia Uma tentativa de reabilitaccedilatildeo pela mito-anaacutelise das figuras dos

imperadores loucos []rdquo com o propoacutesito de mostrar que eles natildeo eram tatildeo loucos assim

Todavia acreditamos que os autores empregam os relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio da

maneira que convecircm agrave sua anaacutelise criticando-os ou natildeo apenas quando julgam necessaacuterio 162

AUGUET CAZENAVE 1995 p 150-151

60

De acordo com Auguet e Cazenave a divindade de Nero afirma-se desde a

sua origem em Acircncio no ano 37 quando foi tocado pelos raios do sol ao

nascer163

Para os antigos egiacutepcios nascer ao romper do sol era equivaler

simbolicamente ao deus-sol Raacute e ser o seu representante o ldquoungido do Senhorrdquo

A ressonacircncia egiacutepcia e o fundamento solar divino se fortalecem no momento em

que Nero se torna imperador e adere aos misteacuterios do Masdeiacutesmo graccedilas agrave

influecircncia de Tiridates164

Entre as divindades cultuadas nessa religiatildeo estava

Anahita deusa do amor e da fertilidade a qual era adorada por Nero e foi

associada em Roma agrave deusa Cibele165

Nessa via de interpretaccedilatildeo falar da adoraccedilatildeo a Cibele eacute exatamente o que

permite dar sentido agraves atitudes do soberano Consideremos um episoacutedio que os

autores retiram de Suetocircnio o casamento com o liberto Esporo em 66 O

imperador exigiu a castraccedilatildeo do liberto vestiu-o de mulher mandou-o vir com o

seu dote e o seu veacuteu alaranjado num cortejo e o tomou como sua esposa Tal cena

embora grotesca era a mesma de um dos rituais a Cibele166

Auguet e Cazenave

explicam que uma parte do ritual consistia na castraccedilatildeo de jovens que apoacutes se

mutilarem com facas jogavam as partes iacutentimas ensanguentadas sobre a estaacutetua

da deusa passando depois a se vestirem com roupas femininas e a cultivarem

cabelos longos O enlace com Esporo portanto foi uma tentativa neroniana de se

aproximar da deusa Cibele o que suplantava uma simples atitude violenta

afirmam os autores167

A verdade eacute que se o princeps fosse lido de modo

adequado deixaria de ser um monstro ridiacuteculo e odioso Ele foi louco idiota e

canalha mas pode ter sido tambeacutem qualquer coisa de extremamente

extraordinaacuterio Os estudiosos precisam ir aleacutem dos testemunhos das fontes que

ignoram os motivos religiosos em prol da oposiccedilatildeo poliacutetica Essa eacute uma

interpretaccedilatildeo pobre que negligencia o contexto real das disputas pelo poder e

163

AUGUET CAZENAVE 1995 p 151 164

AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Fundada na antiga Peacutersia pelo profeta Zoroastro o

Masdeiacutesmo tambeacutem chamado de Zoroastrismo era uma religiatildeo dualista que ensinava o eterno

combate entre as potecircncias sobrenaturais do bem e do mal O culto girava em torno das forccedilas e

deuses da aacutegua e do fogo (BOYCE 2001 p 3-12) 165

AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Sobre o culto a Cibele cf SILVA 2021 p 1-22 166

AUGUET CAZENAVE 1995 p 155 167

AUGUET CAZENAVE 1995 p 156

61

reteacutem apenas alguns siacutembolos de alcance praacutetico da Histoacuteria romana sem

verdadeiro e obscuro conteuacutedo psiacutequico168

O debate psicoloacutegico finaliza aqui com Beato (1935- ) docente de Latim

da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Licenciado em Filologia

Claacutessica Mestre e Doutor em Literatura Latina pela mesma instituiccedilatildeo eacute autor de

artigos sobre criacutetica literaacuteria divulgados em revistas especializadas Eacute compositor

tambeacutem de uma biografia chamada Nero (2000) de uma traduccedilatildeo das Bucoacutelicas

(2006) de Calpuacuternio Siacuteculo e outra das Confissotildees (2008) de Agostinho169

Ao biografar Nero Beato recorre aos textos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio cujas narrativas fundamentam suas afirmaccedilotildees e conferem credibilidade

ao seu trabalho170

Recorre ainda agrave Psicologia se natildeo apta de redimir Nero dos

muitos crimes que praticou ao menos capaz de integraacute-lo no contexto em que

foram cometidos e assim atenuar a sua responsabilidade Em poucas paacuteginas

delineia o caraacuteter do mais jovem imperador de Roma mostrando-o como um

indiviacuteduo dominado por quatro caracteriacutesticas instabilidade medo duplicidade e

megalomania171

A primeira herdada da famiacutelia materna manifesta-se ao longo

de todo o seu governo

Nas circunstacircncias banais do dia-a-dia bem como nos momentos decisivos da sua governaccedilatildeo ela estaacute sempre em

evidecircncia O contraste que assinala o iniacutecio do seu Principado ndash em que revela um notaacutevel domiacutenio emocional ndash e o fim do mesmo ndash em que demonstra uma total falta de controle ndash prova agrave sociedade o que se acaba de dizer172

A segunda caracteriacutestica adveacutem da infacircncia de Nero devido agrave presenccedila

intimidante de Agripina que o forccedilava a assumir atitudes contraacuterias agrave sua forma

de estar no mundo O soberano infelizmente ldquo[] natildeo foi capaz de vencer o

medo que antes da morte nasceu de si proacuteprio Por isso se lhe rendeu recorrendo

168

AUGUET CAZENAVE 1995 p 209 169

BEATO 2000a p 3 170

O trabalho de Beato estaacute inserido na coleccedilatildeo Vultos da Antiguidade que traz livros curtos

superficiais e com narrativas proacuteximas a um romance dando a conhecer as figuras mais famosas

da Antiguidade Ao escrever sobre Nero o autor analisa as narrativas das trecircs fontes antigas agrave luz

de duas perguntas ldquoi) teratildeo os trecircs bioacutegrafos de Nero recorrido agraves mesmas fontes por certo

restritas para a elaboraccedilatildeo das suas obras e ii) essas fontes seriam as uacutenicasrdquo Eacute com base nelas

que Beato tenta encontrar novos dados sobre o princeps que lhe permitam reformular a opiniatildeo do

leitor sobre Nero (BEATO 2000b p 9) 171

BEATO 2000b p 14 172

BEATO 2000b p 14

62

ao suiciacutediordquo173

A terceira a duplicidade eacute definida por Beato como a marca

central da personalidade imperial Nero foi capaz ao mesmo tempo de usar da

maior liberalidade como da maior avareza Eacute por essa razatildeo que ora ele

proporcionava jogos ao povo e distribuiacutea trigo aos pretorianos ora roubava os bens

das pessoas na escuridatildeo da noite e servia-se do incecircndio de Roma para se

aproveitar da falta de dinheiro mandando fundir as estaacutetuas dos deuses174

A

quarta e uacuteltima caracteriacutestica eacute o aspecto pelo qual o princeps guiava as suas accedilotildees

e pelo qual eacute mais criticado Para Beato

as exibiccedilotildees histriocircnicas a que se presta os esforccedilos que empreende para rebatizar determinadas cidades do Oriente a tentativa que faz para substituir o nome do mecircs de abril pelo de Nero [] satildeo disso um claro testemunho Natildeo menos significativos do que estes fatos satildeo o construir da Domus

Aurea o pescar com redes de ouro e nunca viajar ldquocom menos de mil viaturasrdquo []175

Em resumo dentro do vieacutes psicoloacutegico Nero eacute lido como um homem

cheio de defeitos e dotado de um pesado fardo geneacutetico Desde o seu nascimento

eacute envolvido numa teia de influecircncias imorais e negativas que moldam a sua iacutendole

do pior modo possiacutevel No fim eacute como se todos os defeitos dos Juacutelio-Claudianos

tivessem sido transmitidos a ele e justificassem o seu modo de agir e de pensar A

nosso ver tais abordagens satildeo importantes e merecem ser destacadas ndash ainda que

por boas razotildees sejam pouco aceitas ndash pois elas evidenciam uma faceta essencial

da tradiccedilatildeo da construccedilatildeo dos Neros sua loucura Os autores ao comporem seus

livros em uma eacutepoca em que a medicalizaccedilatildeo da sauacutede mental jaacute havia se

consolidado atribuiacuteram novos sentidos agraves informaccedilotildees das fontes produzindo

interpretaccedilotildees impensaacuteveis para os antigos sobretudo se considerarmos a

historicidade da loucura

A seguir trataremos das obras que datildeo mais ecircnfase aos desejos artiacutesticos

de Nero Elas o representam mais como um artista do que como um imperador

colocando-o no papel de fundador de uma nova ordem mundial quase miacutetica de

revoluccedilotildees esteacuteticas Sob tal oacutetica estatildeo dispostas muacuteltiplas produccedilotildees como o

artigo Nero the Artist Criminal redigido em 1966 por Frazer Jr ex-professor da

173

BEATO 2000b p 14 174

BEATO 2000b p 15 175

BEATO 2000b p 15

63

Universidade de Tulane176

o livro Nero escrito em 1999 por Malitz docente da

Universidade Catoacutelica de Eichstaumltt-Ingolstadt177

a obra Nero Monstro

Sanguinaacuterio ou Imperador Visionaacuterio concebida em 2010 pelo historiador

Schmidt178

e por uacuteltimo o artigo The Performing Prince composto no ano de

2013 por Fantham professora emeacuterita da Universidade de Princeton179

Entre

todos os trabalhos jaacute publicados optamos novamente por dissecar os quatro mais

referenciados nos debates sobre Nero o artista

Nesse cenaacuterio as ideias de Charles-Picard (1913-1998) satildeo um excelente

ponto de partida Filho de um importante helenista desde jovem envolveu-se com

a Antiguidade acompanhando o pai em exploraccedilotildees arqueoloacutegicas por Roma e

Cartago Esse envolvimento despertou a sua vontade de seguir uma carreira na

aacuterea levando-o a se graduar em Histoacuteria em 1938 e a se doutorar em Letras em

1954 ambas as formaccedilotildees feitas na Universidade de Paris-Sorbonne Foi laacute que

atuou como Professor de Histoacuteria e membro do Comitecirc Francecircs de Trabalhos

Histoacutericos e Cientiacuteficos na seccedilatildeo de Arqueologia e Arte Sua educaccedilatildeo e carreira

profissional refletem-se no teor de suas produccedilotildees entre as quais se destacam

LrsquoArt Romain (1962) Architecture Universelle Le Monde Romain (1965) e

Empire Romain (1980)180

A temaacutetica artiacutestica norteia todo o seu livro Auguste et Neacuteron Le Secret de

LrsquoEmpire lanccedilado em 1962 Nele o autor analisa os eventos dos Principados

augustano e neroniano agrave luz da Arqueologia no intuito de construir uma

interpretaccedilatildeo histoacuterica dos monumentos No governo de Nero em especiacutefico

utiliza tambeacutem os relatos de Taacutecito de Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio181

O princeps eacute

176

ldquoNossa anaacutelise do personagem de Nero confirma a imagem que temos de um artista-arsonista e

nos faz questionar se algum dos outros crimes de que eacute acusado mostra o toque do artistardquo

(FRAZER JR 1966 p 18) 177

Malitz (2005 p 40-79) afirma que os interesses artiacutesticos de Nero tomaram muito do seu

tempo e que seu verdadeiro entusiasmo recaiacutea sobre performances artiacutesticas 178

Schmidt (2011 p 9) questiona se apesar dos fracassos Nero natildeo compreendeu muito melhor o

seu tempo do que se tinha pensado tentando reformaacute-lo artisticamente 179

Nesse artigo Fantham (2013 p 17-28) descreve o tipo de atividade esportiva ou artiacutestica que

as monarquias constitucionais modernas consideram aceitaacutevel em um priacutencipe e as compara com

as atividades exercidas pelos priacutencipes Juacutelio-Claudianos Feito isso ela analisa a evoluccedilatildeo artiacutestica

de Nero indo desde a sua apresentaccedilatildeo privada com a lira ateacute as suas performances puacuteblicas 180

DANESI FRANCcedilOIS 2015 181

No livro Charles-Picard (1962 p 5) se propotildee a responder a trecircs perguntas ldquo1) o que eacute um

imperador 2) por que e quando nasceu essa dignidade 3) como isso se difere da realeza e da

ditadurardquo Para responder a elas investiga os governos de Augusto e de Nero na tentativa de

determinar o que significava para cada um tornar-se imperador e o efeito que sua reaccedilatildeo teve no

desenvolvimento do Principado Em especial no estudo de Nero procura demonstrar que se ele

64

exibido por Charles-Picard como um monarca que se considerava um artista

negligenciando os deveres poliacuteticos e tentando substituir o Impeacuterio da forccedila pelo

reinado da esteacutetica ndash um poeta apaixonado pela beleza que nutria um sentimento

de revolta contra a ordem estabelecida enquanto sonhava com um mundo natildeo

mais comandado pelas regras morais tradicionais Na concepccedilatildeo do autor o

soberano trocou o racionalismo por uma esteacutetica fundada na paixatildeo convocando a

magia dos sonhos o misteacuterio e o extraordinaacuterio Ou seja Nero implantou uma

revoluccedilatildeo esteacutetica ele ldquo[] se comprometeu a perturbar o mundo pelo qual era

responsaacutevel [] a fim de tornaacute-lo mais bonito do seu ponto de vistardquo182

Para

cumprir tal objetivo criou um ciacuterculo literaacuterio a Aula Neronis no qual era

naturalmente o liacuteder Esse ciacuterculo afirma Charles-Picard reunia-se no palaacutecio

imperial e tinha como membros os artistas e pessoas de bom gosto da eacutepoca

Consistia em uma espeacutecie de partido cuja atividade ao inveacutes de ser poliacutetica ou

militar era de ordem esteacutetica Os principais meios de accedilatildeo se pautavam em festas

as quais serviam a trecircs propoacutesitos unir o grupo provocar a admiraccedilatildeo do puacuteblico

por sua suntuosidade e desafiar a moralidade contraacuteria ao novo ideal183

Ademais Nero promoveu alguns eventos culturais em Roma a exemplo

dos Juvenalia no ano 59 e dos Neronia em 60 e 65 O primeiro contou com

diversos tipos de performances teatrais gregas e romanas184

Agrave ocasiatildeo o

soberano encorajou o envolvimento de senadores e equestres e fez sua primeira

apariccedilatildeo no palco afinando sua lira e testando sua voz185

O segundo foi um

festival quinquenal aos moldes gregos que teve a apresentaccedilatildeo de indiviacuteduos da

aristocracia em concursos de poesia de muacutesica de atletismo e de corridas de

bigas Segundo o autor os jogos demonstraram a vontade neroniana de criar uma

nova ordem reeducar a populaccedilatildeo e alegrar o seu mundo186

As competiccedilotildees no

estilo helecircnico indicaram o seu desejo de trazer para Roma eventos civilizados

menos sangrentos e que englobassem todos os habitantes abolindo as distinccedilotildees

entre as categorias sociais

negligenciou os deveres poliacuteticos que lhe incumbiram foi porque compreendeu perfeitamente o

seu papel artiacutestico (TOWNEND 1967 p 249) 182

CHARLES-PICARD 1962 p 199 183

CHARLES-PICARD 1962 p 199-222 184

Os Juvenalia foram celebrados para comemorar a primeira barba feita de Nero (Suet Nero 12) 185

CHARLES-PICARD 1962 p 217 186

CHARLES-PICARD 1962 p 219-220

65

O grande problema foi que Nero ao perseguir o seu sonho perdeu a razatildeo

alega Charles-Picard Sua ousadia o fez esquecer o limite do possiacutevel e do

impossiacutevel do real e do imaginaacuterio Isso poreacutem natildeo diminui o fato de ele ter

projetado uma realidade governada por padrotildees esteacuteticos

Nero natildeo eacute o precursor de uma sociedade possiacutevel nascido cedo demais Ele eacute o campeatildeo de uma utopia e o mais surpreendente em sua aventura eacute que essa utopia poderia ter seduzido uma fraccedilatildeo consideraacutevel da humanidade187

Anos mais tarde Cizek (1932-2008) divulgou a sua opiniatildeo acerca desse

debate Trata-se de um estudioso romeno com dois doutorados um em Filologia

na Universidade de Bucareste e outro em Letras na Universidade de Lyon Entre

1985 e 1993 foi professor de Literatura Latina na Universidade de Bucareste e na

Universidade de Lyon onde se aposentou Em geral seus interesses acadecircmicos

concerniam ao estudo das mentalidades poliacuteticas e coletivas bem como da

Axiologia teoria sobre as regras e os preceitos morais reguladores do

comportamento humano Dentro dessa perspectiva redigiu em 1982 o livro

Neacuteron e em 2005 o artigo Lrsquoexpeacuterience Neacuteronienne Reacuteforme ou Reacutevolution188

Eacute embasado na Axiologia que Cizek escreveu o seu Neacuteron no qual relecirc

toda a documentaccedilatildeo disponiacutevel sobre o princeps e a apresenta de forma

inovadora tentando natildeo julgar o soberano mas compreendecirc-lo189

Nesse sentido

admite que Nero foi um sujeito devotado a implantar uma reforma axioloacutegica na

sociedade romana ndash reforma porque ele natildeo empreendeu uma ruptura total de

padrotildees culturais mas preferiu transformaccedilotildees progressivas e graduais

187

CHARLES-PICARD 1962 p 269 188

Disponiacutevel em httpswwwlesbelleslettrescomlivreeugen-cizek Acesso em 24 fev 2020 189

Concordamos com Dubuisson (1987 p 241-242) quando afirma que se os historiadores da

contemporaneidade tecircm uma imagem de Nero diferente daquela do estereoacutetipo contido nas fontes

histoacutericas eacute graccedilas em parte ao trabalho de Cizek o qual trouxe uma percepccedilatildeo clara das

correntes ideoloacutegicas do primeiro seacuteculo dando novo sentido aos atos e aos comportamentos do

princeps Ao inveacutes de julgar o soberano Cizek procura entender a loacutegica do seu pensamento

tarefa que realiza segundo Dubuisson por meio da reflexatildeo de trecircs questotildees i) com que propoacutesito

Nero confrontou o Senado ii) com que intenccedilatildeo se exibia no palco e iii) por que apesar da forte

oposiccedilatildeo senatorial ele fez uma grande viagem agrave Greacutecia que parece ter contribuiacutedo para sua

queda A resposta eacute construiacuteda a partir do uso de toda documentaccedilatildeo disponiacutevel ndash literaacuteria e natildeo

literaacuteria ndash de onde Cizek extrai tudo libertando-se da dependecircncia estreita de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio Por exemplo ele explora a numismaacutetica e os tratados De Clementia e De Vita Beata

escritos por Secircneca Acima de tudo o autor enxerga no Principado de Nero um momento

particularmente importante no confronto tatildeo caracteriacutestico do primeiro seacuteculo entre o Oriente

helenizado e o Ocidente romanizado

66

desafiando realidades existentes ou anteriores para reivindicar outras Dito de

outro modo reformou o sistema de valores fazendo a sociedade aceitar preceitos

morais muito distintos daqueles que ela conhecia ateacute entatildeo190

Sem duacutevida a reforma das mentalidades foi orientada [] para

uma reorientaccedilatildeo dos valores o que preferimos chamar de reforma axioloacutegica Estas satildeo as palavras que achamos mais apropriadas Em nossa opiniatildeo esta eacute a substacircncia do projeto de Nero para mudar a vida de seus suacuteditos [] Eacute certo que essa mudanccedila gradual implicou outras reformas de longo alcance como as reformas da moral educaccedilatildeo cultura e estruturas poliacuteticas Entatildeo Nero estava considerando todas elas na

esperanccedila de alcanccedilar uma vida inimitaacutevel e incriacutevel que era importante para ele191

Na praacutetica ele desejava libertar os romanos dos tabus de seus ancestrais

modificando o modo como ajuizavam o mundo Consciente de que o coacutedigo

sociocultural da antiga Roma republicana era obsoleto comprometeu-se a

reordenar a velha virtus revisando a gravitas (seriedade) a pudicitia (castidade)

a pietas (piedade) entre outros princiacutepios ndash reconsiderados em consonacircncia com a

vocaccedilatildeo artiacutestica do imperador o absolutismo teocraacutetico baseado no Helenismo e

a expansatildeo das fronteiras do Impeacuterio192

Agrave revisatildeo dos valores seguiu-se a disseminaccedilatildeo de dois novos agocircn e

luxus Cizek esclarece que o primeiro advindo do grego significa ldquocompeticcedilatildeordquo

ou ldquolocalidade para jogos para concorrentes e para espectadoresrdquo Eacute portanto um

preceito vinculado ao feito esportivo o que revela a intenccedilatildeo imperial de seguir o

caminho artiacutestico com vistas agrave satisfaccedilatildeo pessoal O segundo termo procedente do

latim tem sentido de ldquoauspiciosordquo ldquoexcessordquo e ldquolibertinagemrdquo ou seja tudo o

que permite diversatildeo sem impedimentos Ao passo que o agocircn relacionava-se ao

componente heleniacutestico da reforma o luxus conotava a parte italiana referindo-se

ao prazer livre tatildeo amado por Nero Esses dois novos valores apesar de

importantes para o imperador natildeo o fizeram aniquilar os antigos ideais romanos

os quais foram inseridos como secundaacuterios na reforma axioloacutegica a fim de

reduzir oposiccedilotildees193

Essa inserccedilatildeo foi acompanhada ainda de medidas voltadas

ao sucesso total do projeto a saber a inauguraccedilatildeo de jogos e de espetaacuteculos os

190

CIZEK 1982b p 21 191

CIZEK 1982a p 108 192

CIZEK 1982b p 408-409 193

CIZEK 1982b p 161-165

67

Juvenalia e os Neronia a criaccedilatildeo de escolas imperiais onde se podia adquirir

treinamento artiacutestico a formaccedilatildeo dos Augustiani194 jovens propagandistas da

nova educaccedilatildeo e o assassinato de Agripina que se opunha ao projeto195

Natildeo demorou entatildeo para a plebe da Vrbs196 e uma parcela da elite

aderirem agrave reforma Alguns senadores e equestres poreacutem fingiram concordar

com o projeto no intuito de mais tarde oporem-se a ele ostensivamente Cizek

pondera a dificuldade de certos membros do Senado em lidar com uma axiologia

centrada no agocircn e na luxus e que transformava uma dolce vita em um plano de

governo Isso revela que o fato de Nero ter tentado reformar ndash e natildeo revolucionar

ndash o coacutedigo sociocultural natildeo tornou o seu negoacutecio mais faacutecil Verdade seja dita

suas ideias natildeo foram um capricho impensado porque o novo projeto de axiologia

surgiu num momento em que era necessaacuteria a renovaccedilatildeo da mentalidade197

Em oposiccedilatildeo a Cizek temos Champlin (1948- ) Natural de Nova Iorque

cresceu e fez quase toda a sua formaccedilatildeo na cidade de Toronto no Canadaacute onde

conquistou os diplomas de bacharel em Histoacuteria e mestre em Estudos Claacutessicos

Seguiu depois para a Universidade de Oxford finalizando o doutorado em

Estudos Claacutessicos Atualmente ensina no Departamento de Humanidades da

Cotsen na Universidade de Princeton pesquisando a histoacuteria social e cultural da

Repuacuteblica romana tardia e do iniacutecio do Impeacuterio No decorrer dos seus 40 anos

como docente escreveu cerca de 40 artigos e lecionou cursos com temaacuteticas

variadas tornando-se uma das figuras mais influentes no campo dos Estudos

Claacutessicos Todas as suas obras trazem rigor filoloacutegico e uso criativo dos textos

literaacuterios como documentos histoacutericos aleacutem de mesclarem elementos juriacutedicos

topograacuteficos folcloacutericos e mitoloacutegicos Citamos aqui as mais prestigiadas The

Augustan Empire 43 BC-AD 69 (1996) The Cambridge Ancient History ndash

Volume X (1996) e Nero (2005)198

O ponto central dessa uacuteltima obra eacute a autoconceitualizaccedilatildeo de Nero em

termos das Mitologias Grega e Romana Champlin sugere que o soberano era um

mestre manipulador de mitos para fins poliacuteticos usando figuras mitoloacutegicas para

194

ldquo[] Equestres [] que faziam soar o dia e a noite com aplausos e elogios agrave beleza e a voz

divinas de Nero []rdquo (CHAMPLIN 2005 p 60) 195

CIZEK 1982a p 113 196

Cidade ou circuito da cidade (SARAIVA 2006 p 1244) 197

CIZEK 1982a p 115 198

CHAMPLIN 2020

68

criar uma potente imagem imperial Argumenta que os excessos teatrais do

princeps que chocaram e fascinaram os contemporacircneos devem ser tratados

como performances evocadoras do mundo da mitologia ao inveacutes de serem apenas

o produto dos preconceitos das fontes199

O autor explica que o elemento mitoloacutegico sempre esteve presente no

cotidiano romano Na Arte na Literatura nas casas particulares nas pinturas nas

esculturas e nos grafites era comum encontrar vocabulaacuterios lendaacuterios que

forneciam coacutedigos decifraacuteveis por todos A popularidade das lendas facilitava a

associaccedilatildeo dos governantes a deuses e a heroacuteis pois eles sabiam que os cidadatildeos

captariam suas mensagens Alexandre Pompeu e Marco Antocircnio por exemplo

vincularam-se agraves faccedilanhas de Dioniacutesio e de Heacutercules transformando os pedigrees

heroicos em armas para a legitimaccedilatildeo do poder Nero por sua vez associou-se agrave

figura de Orestes encenando seus feitos no palco200

Para Champlin entatildeo havia uma racionalidade por traacutes das atitudes do

soberano a qual natildeo foi captada e transmitida pela nossa tradiccedilatildeo literaacuteria hostil

Eacute possiacutevel encontrar para a maioria dos seus atos mesmo os mais excecircntricos

uma finalidade que natildeo possui relaccedilatildeo com os motivos que lhe foram atribuiacutedos

Por mais monstruoso que seu comportamento parecesse havia um objetivo para

tanto Ele a todo o tempo calculava os efeitos das suas atitudes em uma

audiecircncia201

Inclusive suas performances teatrais eram planejadas com o fito de

atingirem certos propoacutesitos O proacuteprio assassinato de Agripina foi encenado em

consonacircncia com o mito de Orestes uma relaccedilatildeo cautelosamente pensada202

O autor comenta que o matriciacutedio foi o ato definidor do Principado de

Nero libertando-o da pessoa que o mantinha longe dos palcos Natildeo eacute agrave toa que

apoacutes o homiciacutedio o imperador comeccedilou a se apresentar sendo Orestes um dos

199 CHAMPLIN 2005 p 236-237 Segundo Roche (2006 p 1-4) os dois pressupostos fundamentais que regem o estudo de Champlin satildeo a racionalidade das accedilotildees do imperador e a

ressonacircncia dessas mesmas accedilotildees nas atitudes sociais da eacutepoca Ele representa Nero como um

brilhante inteacuterprete e explorador de exempla mitoloacutegicos um princeps cujas inversotildees das normas

sociais e das estruturas de poder estavam inseridas em um programa abrangente de imagens

puacuteblicas que buscavam constantemente confirmar e estender a conexatildeo entre o imperador e o seu

puacuteblico Sua construccedilatildeo da representaccedilatildeo neroniana vai aleacutem da simples leitura de Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio pautando-se tambeacutem em fontes materiais e em outras fontes literaacuterias

como a Apocolocyntosis a Octauia os Epigrammata e a Naturalis Historia 200

CHAMPLIN 2005 p 93-94 201

CHAMPLIN 2005 p 237 202

CHAMPLIN 2005 p 99-103

69

seus papeacuteis favoritos203

ndash favoritismo que na opiniatildeo de Champlin relacionava-se

ao fato de Orestes ser um matricida justificado Ele matara a matildee natildeo soacute porque

seu pai e Apolo exigiram vinganccedila mas porque Clitemnestra roubara sua heranccedila

e o povo de Micenas estava sofrendo sob a tirania de uma mulher204

Essa era a essecircncia da campanha poacutestuma contra Agripina sobretudo quando relatada na carta de Secircneca ao Senado que ela havia ido aleacutem de seu papel feminino para almejar o poder supremo minando lealdades e ateacute planejando matar seu filho como Clitemnestra teria ameaccedilado a crianccedila Orestes a

preservaccedilatildeo de Nero [] estava intimamente ligada agrave preservaccedilatildeo do Impeacuterio [] 205

No fim foi Nero ndash e natildeo seus inimigos ndash que escolheu mitificar a morte da

sua matildee Ao dramatizar Orestes no palco ele usava uma maacutescara com suas

proacuteprias feiccedilotildees almejando conceder credibilidade aos seus tormentos

existenciais e publicizar a sua culpa206

Aliaacutes o autor alega que o ecircxito na

demarcaccedilatildeo da culpa foi tatildeo grande que os antigos criacuteticos reagiram

demonstrando que ele natildeo era comparaacutevel a Orestes e sim pior

Filoacutestrato em sua Vida de Apolocircnio de Tiana observou que o

pai de Orestes havia sido assassinado por sua matildee mas que Nero devia sua adoccedilatildeo e o Impeacuterio a sua matildee Filoacutestrato o velho assinalou que enquanto Orestes vingava seu pai Nero natildeo tinha tal desculpa207

Em conclusatildeo Champlin atesta que se escrutinarmos a imagem de Nero

veremos que ele queria tornar-se o heroacutei de sua histoacuteria ansiando a imortalidade e

203

CHAMPLIN 2005 p 96-97 A histoacuteria de Orestes eacute a seguinte Agamenon rei de Micenas

tinha sido comandante-chefe do exeacutercito grego em Troia Ao retornar para casa depois da guerra

ele foi morto em sua banheira por sua esposa Clitemnestra e pelo amante dela Egisto Filho de

Clitemnestra e de Agamenon Orestes ao saber do crime fugiu de Micenas em direccedilatildeo agrave Foacutecida

pois suspeitava que Egisto tambeacutem pudesse mataacute-lo Ao se tornar adulto Orestes perguntou ao

oraacuteculo de Apolo em Delfos se deveria vingar seu pai Apolo respondeu que sim Disfarccedilado

Orestes foi ateacute Micenas e assassinou Egisto e Clitemnestra Reconhecendo seu filho Clitemnestra

apelou para seus sentimentos filiais desnudando o seio que o nutrira mas ele a derrubou

(GRIMAL 2005 p 338-340) 204

CHAMPLIN 2005 p 97 205

CHAMPLIN 2005 p 98 206

CHAMPLIN 2005 p 98 207

CHAMPLIN 2005 p 100

70

a fama ldquoEle era um artista que confiava em suas habilidades e visatildeo [] um

esteta comprometido com a vida como se ela fosse uma obra de arterdquo208

O encerramento da discussatildeo cultural dar-se-aacute com a exposiccedilatildeo do

pensamento de Edwards (1963- ) professora de Claacutessicos e Histoacuteria Antiga da

Birkbeck College na Universidade de Londres Com bacharelado e doutorado em

Estudos Claacutessicos pela Universidade de Cambridge apresenta atualmente a seacuterie

da BBC Mothers Murderers and Mistresses Empresses of Ancient Rome bem

como contribuiu para o programa de raacutedio In our Time da mesma emissora

debatendo sobre Cleoacutepatra e sobre a Eneida entre outros temas Suas pesquisas

centram-se na histoacuteria cultural do Mundo Antigo sobretudo na Roma do iniacutecio do

Principado com foco nas maneiras pelas quais os valores culturais e os aspectos

da identidade pessoal e social operavam atraveacutes da linguagem e eram

influenciados por ela Nessa linha teoacuterica lanccedilou os livros The Politics of

Immorality in Ancient Rome em 1993 Writing Rome Textual Approaches to the

City em 1996 e Death in Ancient Rome em 2007209

Entre os seus renomados textos haacute um capiacutetulo abrangendo o Principado

neroniano intitulado Beware of Imitations Theatre and the Subversion of

Imperial Identity (1994) cujo propoacutesito eacute debater as imagens artiacutesticas hostis de

Nero criadas por Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio O artigo traz a ideia jaacute bem

comentada da preocupaccedilatildeo do soberano em ser mais artista do que governante210

Trata-se de uma preocupaccedilatildeo que no entender da autora fecirc-lo transcender as

regras ordenadoras da sociedade romana recusando as virtudes imperiais no caso

dignitas (dignidade) e fides (fidelidade) e se apossando da teatralidade como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo do poder211

Ao fazer isso Nero virou a ordem social de

cabeccedila para baixo pois essas virtudes deveriam ser exibidas pelos governantes em

maior grau do que o apresentado pelos demais romanos Quando se tornou ator

assumiu um papel que parecia tatildeo distante quanto possiacutevel daquele de imperador

208

CHAMPLIN 2005 p 236 209

EDWARDS 2018 210

O capiacutetulo da autora estaacute contido no livro Reflections of Nero Culture History amp

Representation (1994) editado por Elsner e Masters o qual objetiva reexaminar as representaccedilotildees

de Nero nas fontes histoacutericas e questionar os fundamentos do mito neroniano Em seu texto

Edwards argumenta que o princeps esteve implicado em sua proacutepria representaccedilatildeo sendo pelo

menos em parte responsaacutevel por promover a imagem que sobreviveu apoacutes sua morte Ela defende

tambeacutem que o interesse de Nero pelo palco foi problemaacutetico para os membros da elite romana

ajudando na sua queda (ELSNER MASTERS 1994 p 6) 211

EDWARDS 1994 p 90-91

71

O homem que deveria ter sido o mais nobre de todos os

romanos alinhou-se com o mais ignoacutebil [] As virtudes romanas foram abandonadas O imperador imperator deveria ser o siacutembolo da coragem militar mas Nero era o inverso de um soldado bem-sucedido212

Nas matildeos de um ator-princeps portanto os valores foram distorcidos As

vitoacuterias militares que costumeiramente geravam a saudaccedilatildeo do soberano como

imperator transformaram-se em usos de soldados como audiecircncia para

performances teatrais Edwards inclusive menciona o fato de Nero ter decidido

natildeo conversar com suas tropas a fim de preservar sua voz para concursos de canto

A distorccedilatildeo continua quando o princeps ao retornar da sua turnecirc artiacutestica pela

Greacutecia executou um insulto agrave tradiccedilatildeo militar213

Na ocasiatildeo ele comemorou suas

vitoacuterias nos jogos helecircnicos como se fossem um triunfo honraria reservada aos

generais de grande sucesso Vestindo um robe decorado com estrelas douradas

ele montou na carruagem que Augusto usara em seu proacuteprio triunfo Em sua

cabeccedila Nero natildeo usava os louros triunfantes de um general mas a coroa oliva

oliacutempica e ele natildeo foi ao templo de Jupiter Optimus Maximus214

mas ao de

Apolo deus das artes215

O problema argumenta a autora foi que o princeps ao

fazer isso perdeu a distinccedilatildeo entre ilusatildeo e verdade Na tentativa de modificar as

virtudes que regiam a sociedade ele levou o teatro muito a seacuterio e se perdeu As

aparecircncias do palco tornaram confusas as relaccedilotildees entre signo e significado natildeo

havendo mais contraste entre o teatro e a vida real216

Tendo sido apontados os principais autores que investigam o Nero artista

duas questotildees merecem a nossa atenccedilatildeo Em primeiro lugar vimos que a visatildeo

negativa sobre a dedicaccedilatildeo imperial ao mundo cultural eacute bastante forte Por mais

que alguns estudiosos tenham interpretado o princeps como um homem agrave frente

de seu tempo propositor de reformas e revoluccedilotildees eles natildeo conseguiram escapar

dos relatos hostis das fontes e dos criacuteticos que natildeo aceitavam que um imperador

pudesse ser tambeacutem um ator ndash hostilidade intrincada na percepccedilatildeo de que um

212

EDWARDS 1994 p 87-91 213

EDWARDS 1994 p 90 214

O templo de Jupiter Optimus Maximus localizava-se no pico do monte Capitolino e era um dos

mais importantes da cidade de Roma Dentre as cerimocircnias ocorridas laacute destacavam-se a leitura de

auspiacutecios por magistrados que iniciariam campanhas militares e a oferta de sacrifiacutecios por generais

vitoriosos na conclusatildeo da procissatildeo triunfal (COARELLI 2007 p 32) 215

EDWARDS 1994 p 90 216

EDWARDS 1994 p 93

72

soberano com legiotildees sob o seu comando jamais poderia abandonar as atividades

puacuteblicas para competir como um artista A indulgecircncia amadora em uma arte ou

esporte ateacute seria perdoaacutevel mas a dedicaccedilatildeo obsessiva natildeo era Em segundo

notamos que alguns pesquisadores frisam a seriedade artiacutestica de Nero Defendem

que apesar da criacutetica e dos limites morais de sua eacutepoca ele levou a arte bem a

seacuterio criando jogos competiccedilotildees e novos valores para o seu mundo Sendo assim

o seu Principado deve ser lido se natildeo como uma espeacutecie de triunfo da arte sobre a

poliacutetica como uma tentativa de diminuir a fronteira entre os dois

Cremos ainda que se enganam aqueles que pensam que tais trabalhos estatildeo

ligados a uma emergecircncia casual e passageira da chamada Histoacuteria Cultural Esse

aspecto mais interno ao ambiente acadecircmico certamente tem seu peso Poreacutem

essas leituras que valorizam o papel da cultura e da arte dentro de um projeto

poliacutetico tecircm a ver para o bem e para o mal com a utilizaccedilatildeo efetiva da alianccedila

cultura-poder Os regimes autoritaacuterios que emergiram no seacuteculo XX ndash e no XXI ndash

claramente se embasaram nessa alianccedila a exemplo dos vaacuterios grupos nazifascistas

espalhados pelo mundo afora e que ainda hoje infelizmente satildeo bastante

atuantes Diversas perspectivas de revoluccedilatildeo ou reforma da sociedade sobretudo

aquelas de inspiraccedilatildeo Gramsciana tambeacutem apontaram nesse sentido Portanto a

atuaccedilatildeo de Nero como artista a qual em geral ligava-se mais agrave sua loucura

ganhou outra perspectiva o uso da arte como base para a afirmaccedilatildeo de um projeto

poliacutetico Isso nos leva a duas reflexotildees fundamentais i) o Principado de Nero

antecipa a ideia de que nenhum projeto poliacutetico pode se afirmar e conquistar as

massas sem possuir um projeto artiacutestico esteacutetico ii) a arte ao perder sua

autonomia frente ao Estado ou frente a um governante tiracircnico perde a razatildeo da

sua existecircncia passando a servir apenas aos desmandos do poder agraves vaidades e agrave

egolatria Sem duacutevida essa associaccedilatildeo Neroarte foi se alterando ao longo do

tempo e gerando muacuteltiplas leituras tanto do passado quanto do presente Trata-se

de um aspecto bastante atual e em aberto na constituiccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa Por

isso julgamo-lo essencial na composiccedilatildeo do repertoacuterio dos retratos neronianos

merecendo ser bem analisado pelos estudiosos do tema

Resta agora abordarmos o uacuteltimo sub-bloco desse grupo o dos autores que

examinam a relaccedilatildeo entre o soberano e o Principado Tal relaccedilatildeo se resume em

dois aspectos as dificuldades imperiais em lidar com os problemas inerentes do

73

Principado e os desentendimentos ocorridos entre Nero o Senado o exeacutercito e a

Guarda Pretoriana O primeiro tange agraves complicaccedilotildees sucessoacuterias do Principado

ao controle monetaacuterio e agraves expectativas militares geradas pelo sistema O segundo

ndash e o mais aprofundado nas obras ndash se refere ao fato de Nero natildeo ter escondido

sua posiccedilatildeo excepcional sob uma fachada republicana mas tecirc-la exercido de

forma manifesta Logo os autores daqui natildeo estatildeo interessados em avaliar os

traccedilos da personalidade do princeps e sim a maneira como ele conduziu o seu

governo Nesse acircmbito trataremos das produccedilotildees de Levi (1949) Griffin (2001)

Belchior (2016) e Osgood (2017) pois satildeo as que julgamos mais influentes

Comecemos por Levi (1902-1998) Historiador italiano e arqueoacutelogo

lecionou Histoacuteria Romana e Histoacuteria Grega na Universidade de Milatildeo entre os

anos de 1968 e 1977 Ao longo da sua carreira dedicou-se ao estudo das

antiguidades puacuteblicas e privadas gregas e romanas da histoacuteria social heleniacutestica e

de temas claacutessicos da Historiografia e da Cultura Poliacutetica grega Todavia a maior

parte da sua produccedilatildeo concernia agrave histoacuteria romana com atenccedilatildeo aos processos de

crise e de transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees217

Por exemplo no livro Augusto e il suo

Tempo caracterizou o contexto social da accedilatildeo poliacutetica de Otaviano e seu papel

como governante Em Nerone e i suoi Tempi revisitou os relatos de Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio colocando o governo de Nero no quadro geral do tempo e

pintando um afresco da vida social da eacutepoca218

O foco no vieacutes institucional levou o autor a defender que o verdadeiro

motivo da queda de Nero foi uma discussatildeo com o Senado ocorrida entre 56 e 58

cujo foco foi o indeferimento da Reforma Fiscal Durante o seu terceiro

consulado Nero moveu no Senado uma moccedilatildeo de extinccedilatildeo dos impostos

indiretos visando a diminuir o custo de vida e a aumentar a capacidade de

consumo dos estratos sociais mais baixos219

Poreacutem o Senado natildeo se dispocircs a

217

MUSTI 1993 218

Nesse livro Levi natildeo se mostra iludido com o caraacuteter de Nero mas apenas busca oferecer uma

explicaccedilatildeo do porquecirc de os eventos do seu governo terem seguido o curso que seguiram

Resumidamente sua visatildeo eacute a de que a ascensatildeo do princeps coincidiu com o cliacutemax de uma luta

cultural entre influecircncias heleniacutesticas versus tradiccedilotildees romanas genuiacutenas a qual ocorria desde os

dias da Repuacuteblica tardia e durante os governos de Caliacutegula e Claacuteudio parecia estar se movendo de

forma constante em favor dos elementos orientais Tal visatildeo eacute erigida a partir de uma leitura atenta

das fontes antigas na qual ele insiste nas discrepacircncias bastante marcantes entre Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio (SALMON 1952 p 55-56) 219 ldquoO consulado era a magistratura maior sempre exercida por duas pessoas Detinham os

cocircnsules o poder executivo quer no plano poliacutetico (convocavam e presidiam ao Senado e aos

comiacutecios e zelavam pelo cumprimento das decisotildees aiacute tomadas) quer no plano militar promoviam

74

aprovar o plano pois boa parte dos seus membros seria prejudicada de modo

financeiro Por conseguinte o princeps natildeo podia desconsiderar o veredicto do

Senado em um assunto que era tradicionalmente da responsabilidade deste pois

caso o fizesse alteraria o equiliacutebrio da esfera poliacutetica A inexistecircncia do aval para

Levi foi a pior coisa que aconteceu porque o soberano se sentiu incapacitado de

beneficiar os grupos que mais o apoiavam Tal situaccedilatildeo provocou uma ruptura nas

relaccedilotildees com a Cuacuteria e colocou Nero em um caminho perigoso220

Como consequecircncia o plano passou a ser o de implantar uma nova poliacutetica

cultural de valorizaccedilatildeo dos costumes gregos Do ponto de vista artiacutestico houve o

enaltecimento da muacutesica do atletismo e do teatro aos moldes heleniacutesticos E do

ponto de vista do culto imperial houve a tendecircncia agrave adoraccedilatildeo e agrave divinizaccedilatildeo do

imperador Segundo o autor a poliacutetica promovida por Nero difundiu a ideia de

que a civilizaccedilatildeo grega tinha um valor superior ao da romana de modo que a

uacuteltima precisava imitar a primeira221

Natildeo tardou para que a divulgaccedilatildeo dos ideais

helecircnicos acompanhasse uma resistecircncia estoica cujas concepccedilotildees morais

compunham o caraacuteter eacutetico da vida romana A criacutetica dos estoicos era bastante

importante ldquo[] natildeo pelo nuacutemero mas pela qualidade intelectual social e poliacutetica

daqueles que a exerciam e tambeacutem porque suas criacuteticas correspondiam a ideias

enraizadas [] de respeito ao mos maiorum []rdquo222

Os adversaacuterios acusavam

Nero de diminuir a dignidade proacutepria e a do povo da Vrbs incentivando haacutebitos

ofensivos agraves tradiccedilotildees republicanas Esse ressentimento logo proporcionou os

meios para a criaccedilatildeo de um movimento de revolta eclodido na conspiraccedilatildeo

pisoniana de 65 a grande responsaacutevel pelo suiciacutedio do soberano e pelo fim da

linhagem Juacutelio-Claacuteudia223

Levi tambeacutem menciona outros determinantes na queda de Nero A priori

defende que o princeps natildeo obteve vitoacuterias militares dignas dos padrotildees romanos

o recrutamento de soldados e exerciam o comando geral dos exeacutercitos sendo da sua

responsabilidade as nomeaccedilotildees dos oficiais Ser cocircnsul constituiacutea [] a maior ambiccedilatildeo de um

senador [] porque era a magistratura que lhe proporcionava depois o exerciacutecio das mais altas

funccedilotildees administrativas e poliacuteticasrdquo (DENCARNACcedilAtildeO 2007 p 101) 220

LEVI 1949b p 168-161 221

LEVI 1949b p 173 222

LEVI 1949b p 177 A expressatildeo mos maiorum significa ldquocostume dos antepassadosrdquo Ela eacute a

combinaccedilatildeo do vocaacutebulo mos (ldquocostumesrdquo ldquocomportamentosrdquo) com o vocaacutebulo maiores

(ldquoantepassadosrdquo ldquovelhosrdquo) na sua forma genitiva maiorum (SARAIVA 2006 p 754 705) 223

LEVI 1949b p 143

75

e nem foi capaz de conquistar novas terras e rotas comerciais224

A posteriori

anuncia que o reavivamento dos processos de lesa-majestade em 62 acrescido

dos confiscos de bens e dos imensos gastos na reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o

incecircndio aumentaram as inimizades e evidenciaram a ganacircncia imperial225

Tudo

isso se juntou ao conflito com o Senado e fez com que Nero revelasse as

deficiecircncias do seu caraacuteter e a sua dificuldade em acatar os tracircmites do

Principado abrindo caminho para uma crise de legitimidade226

Foi embasada em argumentos similares que Griffin criou o seu Nero Na

segunda parte da sua obra denominada Post-mortem on the Fall of Nero a autora

examina a queda imperial que eacute apresentada como a incapacidade do soberano

em lidar com as pressotildees do Principado227

Para o desenvolvimento do estudo

Griffin remete o leitor ao iniacutecio do seu livro quando argumentou que os crimes de

Nero natildeo foram a causa da sua derrubada O evento mais importante do seu

reinado foi o seu colapso causado pelos obstaacuteculos do sistema que o jovem

vaidoso tentou contornar mas natildeo conseguiu228

A sua queda foi determinada pelo

sistema erguido por Augusto ou seja teve mais a ver com a inadequaccedilatildeo do

aparelho imperial do que com os defeitos do caraacuteter de Nero229

De modo geral a complicaccedilatildeo foi sucessoacuteria Como o Principado natildeo era

identificado abertamente como uma monarquia natildeo poderia haver

reconhecimento do princiacutepio hereditaacuterio e nem leis para regulaacute-lo Em teoria a

escolha de um sucessor cabia ao Senado uma vez que ele era o responsaacutevel por

conferir a um homem as magistraturas tradicionais transformando-o em princeps

Na praacutetica contudo nenhum soberano respeitava isso porquanto entendia que a

uacutenica maneira de assegurar poderes agrave sua famiacutelia quando morresse era

designando o seu proacuteprio herdeiro230

Assim o imperador tendia a ignorar o

Senado fazendo a sua indicaccedilatildeo e contando com o apoio da Guarda Pretoriana

para a legitimaccedilatildeo da sua escolha ndash ou comprando-o Logo a sucessatildeo

desregulada se tornou um foco natural para a intriga Como natildeo havia criteacuterios

palpaacuteveis de elegibilidade os descendentes de famiacutelias nobres que tinham

224

LEVI 1949b p 211 225

LEVI 1949b p 213 226

LEVI 1949b p 231 227

ldquoPara simplificar um pouco Nero natildeo era o homem para o trabalhordquo (SEAGER 1986 p 99) 228

GRIFFIN 2001 p 8 229

GRIFFIN 2001 p 17 230

GRIFFIN 2001 p 191

76

nascimento e status dos Julii e dos Claudii nutriam ambiccedilotildees ao trono Daiacute

adveio um nuacutemero grande de rivais e de herdeiros que o princeps precisou

expurgar em prol de sua seguranccedila como Rubeacutelio Plauto e Juacutenio Silano231

O sistema encorajou temores aos quais Nero estaria propenso

em qualquer caso Todavia sua obsessatildeo com os cometas que supunha pressagiar uma troca de governante e sua tendecircncia geral agrave paranoia compartilhada com sua matildee tornam-se mais inteligiacuteveis quando se percebe que ele enfrentou um problema maior do que todos os seus antecessores Ele ainda estava cercado de descendentes de famiacutelias republicanas tatildeo antigas e ilustres como os Juacutelio-Claudianos e o nuacutemero de homens que

poderiam reivindicar descendecircncia de imperadores do passado aumentava naturalmente agrave medida que a dinastia continuava232

Quando Nero morreu a dinastia Juacutelio-Claudiana tinha quase 100 anos

Seria necessaacuteria outra longa dinastia para elevar o nuacutemero de inimigos ao niacutevel

que alcanccedilara o da famiacutelia de Augusto Essa situaccedilatildeo segundo Griffin natildeo

justifica a crueldade do princeps no entanto tornam compreensiacuteveis as decisotildees

que afetaram a estabilidade da sua posiccedilatildeo233

Aleacutem do transtorno sucessoacuterio Griffin comenta sobre mais trecircs questotildees

causadoras do decliacutenio do soberano A primeira foi de ordem financeira pois as

necessidades de Nero em satisfazer as suas expectativas e as do seu puacuteblico

fizeram com que ele sobrecarregasse o eraacuterio234

A segunda foi de ordem

filelecircnica visto que a atenccedilatildeo concedida pelo princeps aos valores gregos agrave

muacutesica e ao atletismo gerou insatisfaccedilotildees aristocraacuteticas235

Por fim a terceira foi

de ordem militar dado que Nero ao contraacuterio de Ceacutesar Augusto e Tibeacuterio natildeo

obteve vitoacuterias extraordinaacuterias ndash e as poucas que obteve foram graccedilas ao trabalho

de comandantes e natildeo ao seu proacuteprio A gloacuteria militar que ele precisava ter foi

substituiacuteda por precircmios artiacutesticos236

Em suma Griffin alega que

231

GRIFFIN 2001 p 194-195 232

GRIFFIN 2001 p 196 233

GRIFFIN 2001 p 17 234

GRIFFIN 2001 p 197-207 235

GRIFFIN 2001 p 208-220 236

GRIFFIN 2001 p 221-234

77

Nero nunca alcanccedilou uma imagem satisfatoacuteria e consistente

como princeps No final ele sabia que seu fracasso nesse papel havia sido completo A confianccedila que ansiava tinha chegado a ele apenas como artista dos insultos que apareceram nos eacuteditos de Vindex ele contestou somente as criacuteticas agrave sua lira237

Se formos mais longe nesse debate veremos que as dificuldades do

Principado se manifestam de modo central no raciociacutenio de Belchior (1987- )

Bacharel e doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo trabalha

atualmente como professor no Departamento de Histoacuteria da Universidade

Estadual de Minas Gerais campus Campanha (UEMG) Suas aacutereas de

especializaccedilatildeo satildeo Repuacuteblica e Principado Romano e Historiografia Romana

Elaborou muitas produccedilotildees relevantes como o livro Nero bom ou mau

imperador Retoacuterica Poliacutetica e Sociedade em Taacutecito (54 a 69 dC) em 2016 e o

artigo BNCC e a Histoacuteria Antiga Uma possiacutevel compreensatildeo do presente pelo

passado e do passado pelo presente em 2017

Em especiacutefico no livro sobre Nero fruto de uma dissertaccedilatildeo de mestrado

o autor analisa os Annales de Taacutecito e defende que para o historiador antigo o

jogo poliacutetico do Principado dependia de muitas outras coisas que natildeo

necessariamente das atitudes imperiais Segundo Belchior Taacutecito entendia o

Principado como um sistema de governo onde todas as posiccedilotildees hieraacuterquicas eram

alcanccedilaacuteveis sobretudo pelos membros do Senado romano Em vista disso cabia

ao soberano equilibrar a balanccedila entre a sua autonomia e a sua sujeiccedilatildeo agraves leis e as

normas da respublica a fim de permitir o funcionamento da sociedade em acordo

com suas leis Ou seja o princeps deveria articular a sua atuaccedilatildeo em conjunto

com a do Senado Caso a balanccedila pesasse para o seu lado os senadores poderiam

contestar publicamente a sua lideranccedila238

Dessa maneira Belchior compreende

que os conflitos ocorridos durante o Principado de Nero os quais resultaram na

sua queda podem ser explicados a partir da complexidade das relaccedilotildees poliacuteticas

inerentes ao sistema inaugurado por Augusto o que vai aleacutem das simples criacuteticas

agraves condutas individuais de Nero

Finalizaremos esse sub-bloco com Osgood (1973- ) Bacharel e doutor em

Estudos Claacutessicos pela Universidade de Yale trabalha atualmente como professor

237

GRIFFIN 2001 p 234 238

BELCHIOR 2016 p 159-160

78

no Departamento de Claacutessicos na Universidade de Georgetown em Washington

Suas aacutereas de especializaccedilatildeo satildeo Histoacuteria Romana e Literatura Latina com ecircnfase

na queda da Repuacuteblica nas biografias imperiais e em saacutetira antiga Redigiu muitas

obras famosas incluindo o livro Claudius Caesar Image and Power in the Early

Roman Empire (2010) o capiacutetulo Nero and the Senate (2017) e o livro How To

Be a Bad Emperor An Ancient Guide to Truly Terrible Leaders (2020)239

No capiacutetulo sobre Nero o autor defende a partir das narrativas de Taacutecito e

de Diatildeo Caacutessio que o Senado natildeo foi o responsaacutevel pelo decliacutenio do princeps

ponderando a importacircncia poliacutetica de tal conselho240

Em momentos criacuteticos como a morte de um herdeiro

favorecido ou a supressatildeo de uma conspiraccedilatildeo o Senado poderia ajudar a reunir apoio por traacutes do imperador Aleacutem disso os imperadores confiavam nos senadores para fazerem o trabalho real de governar Os senadores comandavam os exeacutercitos [] dirigiam a maior parte das proviacutencias do Impeacuterio ocupavam importantes funccedilotildees administrativas na proacutepria cidade de Roma e aconselhavam os imperadores sobre a poliacutetica no conselho semioficial241

Para Osgood os poderes senatoriais mantiveram-se reais durante todo o

Principado embora limitados Como exemplo relembra a busca constante de

Nero pelos conselhos dos magistrados destacando o discurso de 54 no qual este

afirmou que restauraria a dignidade da instituiccedilatildeo tatildeo perseguida por Claacuteudio

Rememora tambeacutem os bons anos de cooperaccedilatildeo entre os dois antes de o princeps

comeccedilar a se sentir ameaccedilado por certos membros Segundo o autor a relaccedilatildeo

entre eles comeccedilou a deteriorar no final do governo dando lugar a um clima de

suspeita e rivalidade242

239

OSGOOD 2019 240

O capiacutetulo do autor estaacute contido no The Cambridge Companion to the Age of Nero (2017)

editado por Bartsch Freudenburg e Littlewood o qual pretende analisar os debates histoacutericos que

a eacutepoca de Nero estimulou e as maneiras como ele foi recebido e interpretado na Era Cristatilde do

primeiro seacuteculo e aleacutem Em seu texto Osgood examina Taacutecito e Diatildeo Caacutessio a partir das suas

proacuteprias perspectivas isto eacute a de historiadores senatoriais que foram viacutetimas sofredoras da era

neroniana Ademais investiga o que significava ser um senador sob Nero em um periacuteodo no qual

os poderes do Senado haviam se tornado secundaacuterios e circunscritos e ainda eram em alguns

aspectos muito reais (BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p 5) 241

OSGOOD 2017 p 34 242

OSGOOD 2017 p 39-41

79

Apoacutes as corridas de bigas de Nero na Juvenalia e no Neronia de

60 da chocante estreia do imperador como citaredo em Naacutepoles em 64 e do grande incecircndio que destruiu parte de Roma alguns senadores talvez se perguntassem literalmente o que restaria da cidade deles243

Com medo da resposta que obteriam organizaram em conjunto com

alguns equestres e oficiais da Guarda Pretoriana a primeira conspiraccedilatildeo contra

Nero O plano era assassinaacute-lo no Circus Maximus no decorrer do festival de

Ceres e substituiacute-lo por Calpuacuternio Pisatildeo um aristocrata que atraiacutea entusiasmo por

sua superioridade moral O movimento rapidamente alcanccedilou os ouvidos do

soberano o qual aproveitou para matar rivais e oferecer recompensas aos que

mostraram lealdade Na situaccedilatildeo ldquo[] o Senado investiu em accedilotildees de graccedilas e

celebraccedilotildees [] [pois] Nero tinha voltado ao padratildeo de governo Claudianordquo244

Apoacutes isso a convivecircncia entre os dois manteve-se paciacutefica por um breve

intervalo A interrupccedilatildeo veio em 67 com a turnecirc artiacutestica do princeps pela Greacutecia

cuja realizaccedilatildeo diminuiu o seu prestiacutegio perante os senadores e soldados Osgood

explica que enquanto o imperador estava na Greacutecia o senador Juacutelio Vindex

iniciou uma rebeliatildeo na Gaacutelia em marccedilo de 68 Ele emitiu eacuteditos insultando o

soberano e escreveu para governadores de proviacutencia como Galba incentivando a

associaccedilatildeo na revolta Quando essas notiacutecias chegaram a Nero ele decidiu ficar

por mais oito dias em Naacutepoles desfrutando das competiccedilotildees atleacuteticas ao inveacutes de

retornar a Roma Ao voltar natildeo procurou o Senado para falar da rebeliatildeo

preferindo passar o dia ldquo[] exibindo alguns instrumentos de aacutegua de um tipo

novo []rdquo245

Somente no instante em que os avisos sobre a adesatildeo de Galba

chegaram eacute que o princeps decidiu agir designando o comandante Virgiacutenio Rufo

e suas legiotildees da Germacircnia para lutarem contra o oponente Mas Nero se limitou agrave

designaccedilatildeo pois em nenhum instante reuniu-se com o Senado ou foi ao campo de

batalha conversar com as tropas Ademais atrasou o pagamento dos soldados

devido ao deacuteficit financeiro decorrente das extravagacircncias na Greacutecia Esses

eventos levaram os homens da Guarda Pretoriana a retirarem o seu apoio a Nero e

243

OSGOOD 2017 p 42 244

OSGOOD 2017 p 43 245

OSGOOD 2017 p 45

80

o depositarem em Galba Portanto o autor acredita que os militares foram os

responsaacuteveis pela derrubada do princeps e natildeo o Senado246

A queda de Nero serve como um bom estudo de caso sobre onde estava o poder no Impeacuterio Romano Juntos um comandante do exeacutercito e suas tropas poderiam representar uma seacuteria ameaccedila ao soberano Em Roma tambeacutem eram os soldados que importavam [] bem como os funcionaacuterios domeacutesticos do

imperador O Senado natildeo estava orientando eventos mesmo se os comandantes apelassem agrave sua autoridade [] Muitos senadores inundados de dinheiro e [] vaidosos estavam felizes o suficiente com jantares perucas e roupas []247

Em conclusatildeo os textos expostos nesse sub-bloco demonstram que as

complexidades do Principado serviram como criteacuterios de julgamento para o

governo neroniano ndash julgamento construiacutedo a partir dos relatos das fontes hostis

escritas por membros ressentidos da ordem senatorial ou equestre que natildeo

estavam interessados em avaliar as fraquezas do sistema ou o desempenho de

Nero em termos institucionais As visotildees construiacutedas sobre o princeps

privilegiaram apenas a sua postura monaacuterquica sem levar em conta o proacuteprio jogo

poliacutetico que dependia de muitas outras coisas que natildeo necessariamente o caraacuteter

imperial Essas leituras satildeo em boa medida o produto de experiecircncias modernas

que natildeo se limitam mas que podem ser exemplificadas pelo espectro que vai

desde Hitler ateacute o recentiacutessimo Trump Esses governantes monstruosos

dificilmente seriam compreendidos apenas por seus defeitos individuais A

emergecircncia e a afirmaccedilatildeo dessas figuras tecircm estreita relaccedilatildeo tanto com os

sistemas democraacuteticos modernos quanto com os viacutecios as omissotildees e as

imperfeiccedilotildees das elites que lhes deram sustentaccedilatildeo por um periacuteodo bem mais

longo do que seria razoaacutevel No final das contas tal abordagem traz para o

repertoacuterio das representaccedilotildees de Nero essa ldquopaisagemrdquo que ao mesmo tempo

produz os retratos neronianos e gera sua condenaccedilatildeo quando o seu projeto de

poder fracassa Assim os ldquoNerosrdquo entram no repertoacuterio mais do que como

indiviacuteduos eles satildeo o fracasso e a vergonha de uma geraccedilatildeo

246

OSGOOD 2017 p 46 247

OSGOOD 2017 p 46

81

Os muacuteltiplos Neros

Expostos os quatro grupos prosseguiremos a jornada em direccedilatildeo ao fim do

debate com o quinto e uacuteltimo conjunto de autores Esta seccedilatildeo concerne agravequeles

que conjecturam a existecircncia natildeo de um uacutenico Nero mas de diversos conforme a

mudanccedila dos contextos Citaremos duas autoras Ketterij (1986- ) e Lefebvre

(1981- ) historiadoras com formaccedilatildeo em instituiccedilotildees europeias A primeira

graduou-se em Histoacuteria na Universidade de Leiden na Holanda e atualmente

leciona para alunos do Ensino Meacutedio na escola Nehalennia Kruisweg Em 2009

defendeu a dissertaccedilatildeo de mestrado em Histoacuteria Antiga na Universidade de

Leiden intitulada The Development of the Image of Nero as Murderer Arsonist

and Persecutor of Christians passando em seguida ao doutorado com uma

pesquisa sobre a formaccedilatildeo de cidades no iniacutecio do periacuteodo moderno248

A segunda

graduou-se em Letras Claacutessicas fez mestrado em Ciecircncias da Antiguidade e

doutorado em Liacutengua e Literatura Antigas na Universidade de Lille na Franccedila

Hoje trabalha como docente no Departamento de Letras Claacutessicas dessa mesma

instituiccedilatildeo realizando estudos sobre mitos literaacuterios e Nero materializados no

artigo De la Mythologie agrave Lrsquohistoire de Lrsquohistoire aux Mythes De Quelques

Incestes Ceacutelegravebres publicado em 2013 e no livro Le Mythe Neacuteron La Fabrique

drsquoun Monstre dans la Litteacuterature Antique (Ier-Ve s) lanccedilado em 2017

249

Ambas as autoras se dedicam agrave avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa

sobre Nero verificando o impacto dos relatos hostis na formaccedilatildeo da imagem do

soberano Ketterij observa a mudanccedila no retrato imperial da eacutepoca claacutessica ateacute a

contemporaneidade250

Partindo da Antiguidade analisa os testemunhos de Taacutecito

248

KETTERIJ 2020 249

LEFEBVRE 2020 250

Em seu trabalho Ketterij (2009 p 3-9) estuda trecircs aspectos da imagem de Nero no intuito de

compreender como seu retrato foi se tornando cada vez mais negativo O primeiro aspecto

avaliado eacute Nero como assassino de seus parentes investigado nas fontes a partir das seguintes

perguntas 1) quais assassinatos satildeo mencionados e vistos como histoacutericos nas fontes 2) esses

assassinatos satildeo motivados Quais satildeo as motivaccedilotildees mencionadas O segundo e o terceiro

aspectos observados satildeo Nero como incendiaacuterio e Nero como perseguidor de cristatildeos procurados

na documentaccedilatildeo por meio de quatro questionamentos 1) Nero eacute visto como um incendiaacuterio 2)

quais motivos satildeo mencionados 3) existe alguma relaccedilatildeo entre o incecircndio de Roma e a

perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 4) e haacute algo dito sobre por que os cristatildeos foram perseguidos Aleacutem

disso Ketterij tambeacutem busca entender a imagem de Nero na contemporaneidade Para tanto aplica

um questionaacuterio em 100 pessoas cristatildes e natildeo cristatildes a fim de descobrir o que pensavam sobre

Nero O resultado eacute surpreendente existem dois locais em que o nome de Nero eacute frequentemente

82

Suetocircnio Diatildeo Caacutessio Eutroacutepio Oroacutesio Sulpiacutecio Severo Aureacutelio Victor

Euseacutebio de Cesareia entre outros concluindo que a maioria dos escritores do

Mundo Antigo era negativa sobre Nero pois suas representaccedilotildees vinculavam-se a

interesses aristocraacuteticos251

Na Idade Meacutedia aponta a intervenccedilatildeo do catolicismo

na representaccedilatildeo de Nero visto por Tertuliano como modelo de depravaccedilatildeo moral

e crueldade252

No Renascimento demonstra que o reavivamento da cultura

claacutessica acrescido agrave redescoberta do texto taciteano criou um Nero tirano Nos

seacuteculos XIX XX e XXI exibe uma mudanccedila de paradigma na reputaccedilatildeo negativa

de Nero devido agrave difusatildeo de trabalhos histoacutericos e biograacuteficos que questionam a

culpabilidade do imperador no incecircndio de Roma e nas mortes de Britacircnico

Agripina e Popeia253

Tal mudanccedila de acordo com a autora manteve a

predominacircncia da imagem hostil visto que a influecircncia cristatilde na longa duraccedilatildeo

incutiu na cultura popular o retrato do Nero Anticristo254

Lefebvre ao seu turno pretende examinar a construccedilatildeo e a evoluccedilatildeo da

figura do monstro Nero somente na Antiguidade Ao fazecirc-lo discute um corpus

textual extenso cuja abrangecircncia comeccedila na morte do soberano e termina nos

escritos de Agostinho o uacuteltimo representante da cultura claacutessica255

A pertinecircncia

do seu livro reside na forma como examina as fontes porquanto se concentra nos

modelos usados pelos antigos para comporem seus retratos de Nero

Por um lado suas visotildees dos fatos satildeo impostas pela perspectiva do seu ambiente geralmente a da ordem senatorial

da qual eles participavam Por outro o treinamento retoacuterico que eles receberam influencia nos lugares da memoacuteria e na representaccedilatildeo dos fatos256

mencionado a Igreja e a Escola Cerca de um quarto dos cristatildeos aprendeu algo sobre Nero na

Igreja ou na Escola Dominical 251

KETTERIJ 2009 p 42-47 252

KETTERIJ 2009 p 35-37 253 KETTERIJ 2009 p 25-34 254

KETTERIJ 2009 p 47 255

No livro a autora investiga a criaccedilatildeo da lenda do monstro Nero Para tanto dedica-se a um

longo exame das fontes latinas e gregas apresentadas de maneira temaacutetica Todos os crimes que

tais fontes imputaram a Nero (crueldade vida voluptuosa amor agraves artes matriciacutedio incecircndio em

Roma entre outros) criaram em torno dele um mito padronizado que os uacuteltimos abreviadores

resumiram Nero eacute o imperador citaredo e matricida Eacute essa imagem que Lefebvre discute nos dois

capiacutetulos centrais do seu estudo intitulados Neacuteronologie Structurale Durante a discussatildeo analisa

a imagem consolidada de Nero como a antiacutetese do priacutencipe do chefe de Estado romano o

soberano ausente da cena poliacutetica estrangeira aleacutem de tambeacutem discutir a imagem do Nero-tirano

que mata as elites por vinganccedila pessoal e natildeo por necessidade poliacutetica 256

LEFEBVRE 2017 p 15

83

A averiguaccedilatildeo dos modelos leva a autora a entender que Taacutecito Suetocircnio

Diatildeo Caacutessio Flaacutevio Josefo Estaacutecio Marcial e muitos outros lidaram com os fatos

segundo as necessidades da sua causa Por exemplo os escritores do ciacuterculo

senatorial frustrados com a perda dos seus privileacutegios delinearam um pessimus

princeps os escritores de liacutengua grega devido ao amor do soberano pela cultura

heleniacutestica focaram na imagem do citaredo e os cristatildeos por causa da

perseguiccedilatildeo privilegiaram o tema da crueldade Contudo um topos norteia todos

os modelos o caraacuteter tiracircnico de Nero257

Lefebvre afirma que os relatos claacutessicos

foram ajustados para comporem um retrato em que a tirania era bem perceptiacutevel

Eles de certa forma estabeleceram diretrizes destinadas a demonstrar a

adequaccedilatildeo de Nero a um tirano e monstro Isso significa que os antigos apagaram

ou alteraram os pretextos que justificariam as atitudes imperiais Como ilustraccedilatildeo

as medidas tomadas pelo soberano apoacutes o incecircndio de Roma em vez de serem

lidas positivamente tornaram-se marcas de ganacircncia258

Ao concluir a autora atesta que os escritores antigos transmitiram por

meio de Nero seus proacuteprios medos seus ressentimentos e suas desilusotildees

colocando-o assim no comando de suas preocupaccedilotildees contemporacircneas Em suma

a figura de Nero

[] evoluiu segundo dois princiacutepios agrave primeira vista contraditoacuterios mutaccedilatildeo e permanecircncia [] A homogeneizaccedilatildeo da figura de Nero e sua reduccedilatildeo em torno de certos toacutepicos foram acompanhadas por um fenocircmeno de esquematizaccedilatildeo

progressiva e de obliteraccedilatildeo dos detalhes [] que imperceptivelmente transformou Nero em um tipo atemporal e a-histoacuterico desconectado da sua realidade primitiva Isto ocorre porque Nero foi percebido menos como um indiviacuteduo especiacutefico e mais como uma encarnaccedilatildeo impessoal de tirania259

Entre as duas pesquisadoras Lefebvre eacute a que mais se aproxima da nossa

proposta De igual modo a ela investigaremos a evoluccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria

negativa acerca do princeps no periacuteodo da Antiguidade utilizando fontes textuais

variadas Nossos trabalhos todavia distanciam-se em trecircs aspectos o temporal o

metodoloacutegico e o teoacuterico No primeiro porque ela natildeo considera a documentaccedilatildeo

contemporacircnea ao imperador e avanccedila para aleacutem do seacuteculo III no segundo

257

LEFEBVRE 2017 p 268-270 258

LEFEBVRE 2017 p 269 259

LEFEBVRE 2017 p 268

84

porque ela investiga os episoacutedios do Principado neroniano apenas de forma

temaacutetica examinando o mesmo evento em fontes de temporalidades distintas e

no terceiro porque ela natildeo utiliza os mesmos conceitos que noacutes a exemplo do de

allelopoiesis inuentio retrato e forma Ainda assim trata-se de um estudo

notaacutevel por sua completude por sua bibliografia e pelo panorama disponibilizado

da ldquofaacutebrica do monstrordquo auxiliando-nos na compreensatildeo dos mecanismos

criadores da lenda negativa de Nero

Estando delineadas todas as cinco visotildees do debate algumas conclusotildees se

impotildeem Em primeiro lugar a figura de Nero mesmo com o passar dos anos

continuou instigante e atual estimulando jornalistas historiadores e literatos a

redigirem obras que o representaram sob distintos vieses Em segundo por mais

que os trabalhos tenham abordado o princeps de modos diferentes a tradiccedilatildeo

literaacuteria negativa sempre esteve presente o que fortalece a perpetuaccedilatildeo do terriacutevel

retrato neroniano Em terceiro vimos que o desenho de tal retrato foi embasado

principalmente nas narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Por mais que

alguns autores tenham utilizado fontes arqueoloacutegicas ou outros documentos

literaacuterios os relatos dos trecircs nunca foram abandonados em sua centralidade fato

que tambeacutem justifica o teacutermino do nosso recorte temporal no seacuteculo III Em

quarto lugar a lenda negativa passou a ser ndash e tem sido cada vez mais ndash

reanalisada por determinados estudiosos interessados em repensar as tradiccedilotildees do

passado Como prova apontamos os nuacutemeros dos nossos grupos tivemos dez

autores que condenaram o soberano (os dispostos nos grupos Nero um mau

imperador e Nero o imperador fantoche) contra os quinze que problematizaram

as atitudes atribuiacutedas a ele (os fixados em Nero um bom imperador Os muacuteltiplos

Neros e Os verdadeiros Neros) Isso revela que os pesquisadores tecircm considerado

com maior precisatildeo as controveacutersias existentes nas fontes hostis ao princeps

atentando-se para os julgamentos dos claacutessicos e para as correntes ideoloacutegicas de

oposiccedilatildeo Talvez essa virada tenha sido ocasionada pelo V Coloacutequio da SIEN

como vimos na introduccedilatildeo do capiacutetulo Ou talvez tenha sido causada pelo

interesse dos historiadores nas uacuteltimas deacutecadas em natildeo trabalhar com a ideia de

que haacute um veacuteu que cobre a realidade do governo de Nero ou a de que as fontes

podem revelar uma verdade uacutenica e clara sobre esse imperador seja ela favoraacutevel

85

seja desfavoraacutevel O essencial eacute que cada vez mais as difamaccedilotildees propagadas

contra o soberano tecircm sido objetos de questionamentos

Todavia essa nova forma de examinar a imagem de um imperador natildeo se

restringe soacute a Nero Por exemplo as avaliaccedilotildees recentes sobre Caliacutegula e

Domiciano tecircm questionado a escrita da Histoacuteria pautada em julgamentos morais

realizada dentro da perspectiva da magistra vitae Os historiadores tecircm produzido

obras que inserem a histoacuteria de cada soberano em seu contexto especiacutefico bem

como analisam as teacutecnicas retoacutericas contidas nas fontes Como exemplos temos

os livros Caligula a Biography composto por Winterling em 2003 e

Deconstructing Imperial Representation Tacitus Cassius Dio and Suetonius on

Nero and Domitian lanccedilado por Schulz em 2019

Outra nova forma deriva da criacutetica agraves democracias modernas as quais tecircm

apontado para os problemas dos sistemas de representaccedilatildeo A falta de qualidade

de determinados governantes eleitos colocou em duacutevida a proacutepria validade do

sistema democraacutetico levando a uma mudanccedila na visatildeo do passado Assim os

pesquisadores uniram a criacutetica ao governante agrave criacutetica ao sistema de governo

tentando entender a seguinte questatildeo satildeo maus sistemas de governo que

produzem maus governantes ou satildeo maus governantes que deturpam bons

sistemas de governo Esse questionamento fez tanto sucesso que em 2020

Painter ndash ex-advogado do Conselho de Eacutetica da Casa Branca ndash e Golenbock ndash

formado pela NYU Law School ndash lanccedilaram o livro American Nero The History of

the Destruction of the Rule of Law and Why Trump is the Worst Offender

De qualquer forma natildeo se trata aqui de trazer agrave tona as mudanccedilas

contemporacircneas nas avaliaccedilotildees sobre o soberano mas sim de compreender as

mudanccedilas nas fontes textuais da Antiguidade situadas na baliza dos seacuteculos I ao

III No capiacutetulo seguinte iniciaremos tal processo a partir da anaacutelise das fontes

coevas ao Principado neroniano a fim de verificarmos como os autores antigos

fizeram-no ndash ou natildeo ndash herdeiro de tudo aquilo que consideravam negativo

Agrave guisa de conclusatildeo deixamos claro que nosso propoacutesito natildeo eacute

desvendar o que as fontes dizem sobre Nero (embora isso seja relevante) e nem

mesmo verificar dentro do que eacute dito aquilo que se aproxima ou natildeo da verdade

Objetivamos menos ainda avaliar o ldquolegadordquo do princeps o que ele teria a nos

ensinar hoje ndash se foi um bom ou um mau modelo de governante ndash e a loacutegica da

86

sua recepccedilatildeo no tempo presente ou em algum momento da modernidade Nosso

ponto de investigaccedilatildeo estaacute mais proacuteximo deste uacuteltimo bloco Logo recusamos a

busca pelo verdadeiro Nero no passado ou por quem eacute Nero para noacutes

Pretendemos estudar de que maneira o retrato do soberano se construiu e foi

sendo composto ao longo dos seacuteculos I a III tendo como foco a composiccedilatildeo desse

retrato e os seus mecanismos sem nos preocuparmos em categorizar um deles

como mais verossiacutemil eou mais uacutetil e tambeacutem sem focar na descriccedilatildeo das

mudanccedilas que se podem perceber nos vaacuterios Neros Queremos analisar os

mecanismos que geraram essas mudanccedilas e na medida do possiacutevel as bases

histoacutericas que os moveram a par do papel especiacutefico da criaccedilatildeo retoacuterica realizada

por cada um dos autores pesquisados Trata-se como se vecirc de uma tarefa

complexa a qual restaraacute sempre parcial e incompleta dado o infinito nuacutemero de

variaacuteveis a se observar Nossa contribuiccedilatildeo a esse debate em pleno curso tanto na

Historiografia quanto na arena puacuteblica seraacute apresentada nos proacuteximos trecircs

capiacutetulos cujos limites e criteacuterios de organizaccedilatildeo jaacute foram divulgados na

introduccedilatildeo Vamos a eles

87

Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69)

Comeccedilaremos agora a investigaccedilatildeo da forma Nero originaacuterio cuja

abrangecircncia envolveraacute os anos de 54 a 69 Tal forma examinaraacute o iniacutecio do

processo de construccedilatildeo da imagem do princeps ou seja o modo como os

escritores da sua eacutepoca o representaram e a seu governo

A preponderacircncia dos textos hostis de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio nos

estudos sobre o soberano fez com que as fontes contemporacircneas ao seu Principado

fossem esquecidas eou ignoradas Essa escolha aleacutem de fortalecer

exageradamente um momento da tradiccedilatildeo negativa desconsidera atitudes

positivas tomadas pelo princeps em vida as quais estatildeo contidas em diversas

narrativas hodiernas a ele A riqueza e a diversidade dessas narrativas satildeo

atestadas por Sullivan que defende o Principado de Nero depois do de

Augusto260

foi um periacuteodo de enorme riqueza cultural Isso porque o soberano

nutria um grande entusiasmo pela literatura pela muacutesica pelas performances

teatrais e pelas declamaccedilotildees poeacuteticas as quais foram estimuladas para muito aleacutem

do utilitarismo poliacutetico Nero promoveu um ldquorenascimento literaacuteriordquo durante o seu

governo uma espeacutecie de ldquoenergia culturalrdquo inovadora que trouxe o ressurgimento

da Idade de Ouro261

O creacutedito por esse renascimento deve ser concedido ao proacuteprio Nero

afirma Sullivan262

Sua enorme devoccedilatildeo pelas artes personificada na expressatildeo

qualis artifex pereo263 ndash criada para representar suas uacuteltimas palavras e

transmitida por Suetocircnio deacutecadas depois ndash concretizou-se na criaccedilatildeo dos

Juvenalia e dos dois Neronias bem como na formaccedilatildeo de um ciacuterculo literaacuterio que

era parte central da Aula Neronis264

Esse grupo era composto por pessoas com

aptidatildeo para as letras cujas habilidades ainda natildeo tinham atraiacutedo atenccedilatildeo

260

Os leitores de literatura latina antiga estatildeo acostumados a conceberem soacute o Principado de

Augusto (3127 aC-14) como um periacuteodo de esplendor poeacutetico A razatildeo deve-se agrave tendecircncia dos

pesquisadores claacutessicos de considerarem Virgiacutelio Horaacutecio Oviacutedio Tibulo e Propeacutercio os maiores

exemplos de excelecircncia e maturidade literaacuterias Tais autores vivenciaram os benefiacutecios da

estabilidade poliacutetica e militar advindos com o fim das guerras civis apoacutes a batalha de Aacutecio

produzindo obras que engendraram a chamada Idade de Ouro (CITRONI 2009 p 8) 261

SULLIVAN 1968 p 454 262

SULLIVAN 1985 p 23 263

ldquoQue grande artista perece comigordquo (Suet Nero 49) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 224) 264

SULLIVAN 1985 p 28

88

puacuteblica265

Entre os membros havia importantes indiviacuteduos da poliacutetica e da

literatura romanas a saber Calpuacuternio Pisatildeo um respeitado senador Cluacutevio Rufo

um historiador consular os futuros imperadores Nerva Viteacutelio e Tito e os

conhecidos autores Petrocircnio e Lucano aleacutem de Secircneca A produccedilatildeo aiacute era

proliacutefica e recompensada por privileacutegios poliacuteticos a exemplo da concessatildeo de

magistraturas e riquezas

Esse grupo estimulou no princeps o desejo de promover escritores

contemporacircneos gerando uma longa lista de talentos Secircneca o gecircnio versaacutetil das

composiccedilotildees Calpuacuternio Siacuteculo o bucoacutelico perfeccionista Lucano o prodiacutegio da

eacutepica Columella o intelectual agrocircnomo Petrocircnio e Peacutersio os notaacuteveis satiristas

Pliacutenio o Velho o ceacutelebre naturalista Luciacutelio e Nicarco os criacuteticos epigramatistas

gregos Aneu Cornuto e Musocircnio Rufo os distintos filoacutesofos estoicos entre

outros autores266

Segundo Faversani Joly e Winterling essa preferecircncia de Nero

pelo campo artiacutestico longe de ser uma mera excentricidade mostra-nos sua forma

de se inserir no ambiente de competiccedilatildeo intra-aristocraacutetica romano e tambeacutem sua

concepccedilatildeo de Principado No seu governo a referecircncia agrave res publica deixa de ser

a base para a posiccedilatildeo imperial A hierarquia poliacutetica tradicional em que a honra

social resultava de cargos poliacuteticos eacute anulada e substituiacuteda por uma alternativa

um tipo de meritocracia passa a ser a base da classificaccedilatildeo social Natildeo honores de

cargos puacuteblicos mas a participaccedilatildeo em ciacuterculos literaacuterios e em competiccedilotildees surge

como a base da gloacuteria imperial267

Essa concepccedilatildeo fez Nero estimular fortemente a elaboraccedilatildeo de obras

literaacuterias Foi desse estiacutemulo que sucederam a Apocolocyntosis e o De Clementia

redigidos por Secircneca as Eclogae por Calpuacuternio Siacuteculo e a Pharsalia por

Lucano Advieram ainda as Saturae (Saacutetiras) de Peacutersio o Laus Pisonis (Elogio a

Pisatildeo) de Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo o De Re Rustica (Da Agricultura) de

Columela e outras composiccedilotildees de Secircneca Trata-se de publicaccedilotildees que embora

tenham o seu proacuteprio valor literaacuterio natildeo seratildeo avaliadas neste capiacutetulo e

explicaremos o porquecirc Por outro lado outras obras como o Satyricon

(Satiacutericon) de Petrocircnio e as Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais) de Secircneca

265

Tac Ann 1416 266

GRIFFIN 2001 p 146-155 267

FAVERSANI JOLY 2020 p 91-92 WINTERLING 2012 p 17

89

entre outras foram escritas no principado de Nero mas com seus autores muito

provavelmente jaacute afastados de sua Aula

No caso de Peacutersio natildeo abordaremos suas Saturae por entendermos em

consonacircncia com Sullivan e Witke que as informaccedilotildees contidas ali natildeo se

dirigem de fato ao imperador268

A obra natildeo cita nomes como objetos de

condenaccedilatildeo e o uacutenico verso das Saturae em que Peacutersio talvez ataque o soberano

ndash Auriculas asini Mida rex habet269 ndash natildeo eacute necessariamente verdadeiro Sullivan

esclarece ldquo[] acredita-se hoje em dia que natildeo haacute um ataque especiacutefico a Nero

na primeira saacutetira de Peacutersio []rdquo pois a difamaccedilatildeo puacuteblica no Principado estava

ligada ao crime de maiestas270 e isso representaria um risco agrave vida do poeta

271 A

afirmaccedilatildeo do autor eacute complementada por Kenney no artigo The First Satire of

Juvenal ldquoHoraacutecio Peacutersio e Juvenal [] natildeo atacam e natildeo poderiam ter atacado

pessoas vivas sem sofrerem as consequecircnciasrdquo272

No tocante a Petrocircnio natildeo investigaremos o Satyricon porque o escritor

aleacutem de natildeo referenciar o princeps supostamente faz apenas algumas alusotildees

contundentes a ele a partir do personagem Trimalquiatildeo Tais alusotildees na visatildeo de

Crum e Highet natildeo satildeo categoacutericas Esse uacuteltimo autor aliaacutes afirma ldquo[] foi

proposto que o que Petrocircnio escreveu em suas uacuteltimas horas e enviou a Nero foi o

Satyricon e que Trimalchiatildeo eacute Nero Isso eacute tatildeo ridiacuteculo que nem precisa de

refutaccedilatildeo []rdquo273

No que tange a Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo e seu Laus Pisonis

compartilhamos do argumento de Champlin ldquoa evidecircncia histoacuterica para os anos

neronianos pode ser resumida de modo breve natildeo existe nenhuma O imperador eacute

pouco mencionado e natildeo haacute alusatildeo a qualquer fato histoacuterico reconheciacutevel []rdquo

Em outras palavras o autor defende que natildeo existe certeza entre os estudiosos se

o Laus Pisonis foi composto durante o governo de Nero bem como natildeo haacute certeza

268

SULLIVAN 1978 p 159-170 WITKE 1984 p 802-812 269

ldquoO Rei Midas tem orelhas de burrordquo (Pers 1121) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Ramsay (1918 p 329) 270

Expressatildeo ldquo[] usada como uma abreviatura para o crime maiestas minuta populi Romani lsquoa

diminuiccedilatildeo da majestade do povo romanorsquo Esta acusaccedilatildeo foi introduzida pela primeira vez por L

Apuleio Saturnino com a lex Appuleia (provavelmente em 103 aC)rdquo Com o tempo a acusaccedilatildeo

passou tambeacutem a englobar qualquer forma de traiccedilatildeo revolta ou falha no serviccedilo puacuteblico (OCD

2012 p 888) Para detalhes cf CHILTON 1955 p 73-81 271

SULLIVAN 1978 p 159 272

KENNEY 1962 p 38 273

HIGHET 1941 p 188 CRUM 1952 p 161-168

90

se o homem identificado como Calpuacuternio Pisatildeo no texto seja o responsaacutevel pela

Conspiraccedilatildeo de 65274

Tudo isso a nosso ver torna o uso da obra problemaacutetico

Quanto a Columella acreditamos que o seu De Re Rustica apesar de ter

sido redigido no governo de Nero traz em seu conteuacutedo soacute informaccedilotildees

agriacutecolas abordando desde tipos de trabalhos campestres ateacute a fabricaccedilatildeo de

conservas Contudo Joly sustenta que a obra incorpora debates poliacuteticos mais

amplos versando acerca da autoridade e do modo imperial de se postar diante da

aristocracia275

Mas tais debates natildeo se encaixam em nossas categorias de anaacutelise

Por fim em relaccedilatildeo a Secircneca natildeo examinaremos seus demais trabalhos

porque os dois citados anteriormente satildeo os uacutenicos em que o filoacutesofo menciona

Nero pelo nome Em todos os outros o soberano natildeo aparece ou quando o faz

surge de modo alusivo situaccedilatildeo que pode gerar leituras controversas e duvidosas

dos episoacutedios276

Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia

Comecemos entatildeo por Luacutecio Aneu Secircneca Ele nasceu por volta de 4

aC na colocircnia romana de Coacuterdoba na Beacutetica a mais rica e paciacutefica das

proviacutencias espanholas277

Sua famiacutelia era equestre e tinha origem italiana uma vez

que o sobrenome Aneu proclamava uma ancestralidade uacuteltima do nordeste da

Itaacutelia278

Secircneca era fruto do casamento de Secircneca o Velho com Heacutelvia ocorrido

por volta de 8 aC que resultou no nascimento de trecircs filhos Aneu Novato o

primogecircnito o nosso autor e Marco Aneu Mela pai do poeta Lucano Na

infacircncia em torno do ano 5 mudou-se para Roma e iniciou os estudos orientados

pelo retoacuterico e filoacutesofo Papiacuterio Fabiano o estoico Aacutetalo o ciacutenico Demeacutetrio e o

neopitagoacuterico Soacutecion Mais tarde em 25 empreendeu por questotildees de sauacutede

uma viagem ao Egito cujo prefeito era o marido da sua tia materna279

Tempos

274

CHAMPLIN 1989 p 102 275

JOLY 2003 p 281-299 276

DOODY 2013 p 296 HINE 2006 p 63 277

O nosso propoacutesito natildeo eacute fazer um estudo biograacutefico de Secircneca mas apenas fornecer alguns

dados que facilitem a anaacutelise das fontes Isso se aplicaraacute tambeacutem aos outros autores estudados

nesta tese A respeito da vida de Secircneca cf GRIFFIN 1992 p 29-174 VEYNE 2003 p 1-157 278

GRIFFIN 1992 p 31 279

Star (2012 p 167) esclarece que Secircneca sofria de constantes problemas respiratoacuterios

91

depois regressou a Roma e iniciou o cursus honorum280

exercendo a Questura

entre 31 e 37 e o Tribunato da Plebe entre 38 e 39281

A essa altura seu talento

oratoacuterio deve ter se tornado conhecido pois despertou ciuacutemes em Caliacutegula que

quase o sentenciou agrave morte Mesmo com o reveacutes seu talento continuou atraindo

atenccedilatildeo ateacute 41 quando foi condenado ao exiacutelio na ilha da Coacutersega por Claacuteudio

sob acusaccedilatildeo de adulteacuterio com Juacutelia Livila sobrinha de Claacuteudio e irmatilde de

Caliacutegula Secircneca permaneceu desterrado ateacute 49 quando Agripina garantiu o seu

perdatildeo e o seu retorno transformando-o em tutor do seu filho Nero282

Foi no papel de tutor atuando lado a lado com Burro prefeito da Guarda

Pretoriana que ele presenciou a ascensatildeo de Nero ao trono em 54 tornando-se

seu conselheiro pessoal e poliacutetico Assim ldquoSecircneca que correu o risco de ser

morto por um Ceacutesar e foi exilado por outro passava agora a ser uma das pessoas

mais proacuteximas do imperador []rdquo283

Contudo a morte de Burro em 62 fez a sua

influecircncia como conselheiro diminuir causando sua retirada gradual da vida

puacuteblica Infeliz e suspeito aos olhos de Nero e do novo prefeito da Guarda

Pretoriana Tigelino foi implicado na Conspiraccedilatildeo Pisoniana ocorrida em abril de

65 e alcanccedilado pela repressatildeo que se seguiu Informado de que seria condenado

cometeu suiciacutedio no mesmo ano284

No decorrer da sua vida Secircneca percorreu um enorme espaccedilo geograacutefico

conhecendo as partes ocidental e oriental do Impeacuterio Romano Na trajetoacuteria viu

muitas coisas e comentou sobre vaacuterias delas em suas obras escrevendo acerca de

tudo o que um erudito da sua eacutepoca costumava escrever filosofia mitologia

poliacutetica moral pobreza vida morte e fenocircmenos naturais Entre as obras que

280

Constitui a carreira ou a ordem senatorial ldquoNormalmente por volta dos 18 ou 20 anos de idade

um senador comeccedilava uma carreira como vigintiviri Seguia depois geralmente para uma proviacutencia

na qualidade de tribunus legionis Aos 25 anos tornava-se formalmente membro do Senado na

qualidade de quaestor Depois tornava-se tribunus plebis ou aedilis e com 30 anos atingia o cargo de praetor (os limites etaacuterios muitas vezes quebrados por privileacutegios pessoais eram na praacutetica

limites miacutenimos) Com a categoria de pretor podia exercer alguns cargos da competecircncia do

Senado principalmente o de prococircnsul de uma proviacutencia senatorial mas muitos outros cargos tais

como o de comandante da legiatildeo (legatus legionis) e de governador de uma proviacutencia imperial

(legatus Augusti pro praetore) sem guarniccedilatildeo da legiatildeo ou soacute com uma legiatildeo estavam ao serviccedilo

do imperador e eram por este diretamente concedidos Aos 40 ou mais geralmente aos 43 anos de

idade o senador podia tornar-se cocircnsul havendo vaacuterios todos os anosrdquo (ALFOumlLDY 1989 p 136) 281

Os questores eram os representantes financeiros do governo de Roma responsaacuteveis pela

arrecadaccedilatildeo de impostos e pela administraccedilatildeo do tesouro puacuteblico Por sua vez o Tribunato da

Plebe era a magistratura que atuava juntamente ao Senado em defesa dos direitos e dos interesses

da plebe (ABBOTT 1901 p 44-72) 282

VEYNE 2003 p 9 HABINEK 2014 p 9 283

FAVERSANI 2012 p 15 284

GRIFFIN 1992 p 369

92

sobreviveram dessa diversa produccedilatildeo as de caraacuteter filosoacutefico satildeo as de maior

nuacutemero285

Algumas inclusive foram reunidas no coacutedice ambrosiano intitulado

Dialogi (Diaacutelogos) Temos aiacute tratados breves que abordam questotildees eacuteticas e

psicoloacutegicas cujas publicaccedilotildees variam entre os anos 37 e 62 De Prouidentia

(Tratado sobre a Providecircncia Divina) De Constantia Sapientis (Tratado sobre a

Constacircncia do Saacutebio) De Ira (Tratado sobre a Ira) Ad Marciam de Consolatione

(Consolaccedilatildeo a Maacutercia) De Vita Beata (Tratado sobre a Felicidade) De Otio

(Tratado sobre o Oacutecio) De Tranquillitate Animi (Tratado sobre a Tranquilidade

da Alma) De Brevitate Vitae (Tratado sobre a Brevidade da Vida) Ad Polybium

de Consolatione (Consolaccedilatildeo a Poliacutebio) e Ad Helviam de Consolatione

(Consolaccedilatildeo a Heacutelvia)286

Os demais trabalhos filosoacuteficos transmitidos a noacutes de modo independente

satildeo os sete livros do De Beneficiis (Tratado sobre os Benefiacutecios) redigidos entre

50 e 60 o De Clementia elaborado na passagem dos anos 55 e 56 e os vinte

livros das Ad Lucilium Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais a Luciacutelio) compostos

em 62 Aleacutem disso dispomos de trabalhos cientiacuteficos como os sete livros das

Naturales Quaestiones escritos em 62 de nove Trageacutedias com dataccedilatildeo incerta

(Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra Oedipus Agamemnon

Thyestes e Hercules Oetaeus) de uma saacutetira menipeia intitulada Apocolocyntosis

divulgada em 54 e de textos atribuiacutedos a Secircneca como a trageacutedia Octauia

produzida entre 68 e 70 e uma seacuterie de Epigramas287

Tendo em vista todas essas obras Whitton defende que a mais

extravagante desconcertante e cocircmica eacute a Apocolocyntosis288

As razotildees para

tanto satildeo duas i) ela combina rigor filoloacutegico com um toque de liberaccedilatildeo saturnal

e ii) ela eacute um panfleto poliacutetico da nova era neroniana difamando o governo

285

Secircneca identificava-se como estoico e seguia uma tradiccedilatildeo de inovaccedilatildeo filosoacutefica estoica

exemplificada mais claramente por Paneacutecio e Possidocircnio que introduziram alguns exemplos

platocircnicos e aristoteacutelicos enquanto adaptavam o estoicismo agraves circunstacircncias romanas Secircneca

estava preocupado acima de tudo em aplicar princiacutepios eacuteticos estoicos agrave sua vida e agrave vida dos

outros Os toacutepicos principais discutidos por ele eram como reconciliar a adversidade com a

providecircncia como libertar-se das paixotildees (sobretudo a raiva e a tristeza) como enfrentar a morte

como desvincular-se do envolvimento poliacutetico como praticar a pobreza e como beneficiar os

outros (HINE 2010 p xv) 286

BRAUND 2015 p 15-28 287

MARSHALL 2014 p 33-44 288

WHITTON 2013 p 151

93

claudiano em prol do novo Principado289

Sobre a primeira razatildeo Roncali explica

que ela adveacutem do fato de o texto provavelmente ter sido escrito e lido durante as

Saturnaacutelias290

momento em que a ordem social era invertida e o ldquoimperador

tornava-se um palhaccedilo e o palhaccedilo um imperadorrdquo O trabalho eacute uma paroacutedia da

deificaccedilatildeo de um rei dos tolos ou de um tolo rei redigido no espiacuterito

carnavalesco291

Quanto agrave segunda razatildeo Marchetti declara O fato eacute que a

qualidade burlesca embora constitua um dos prazeres da leitura empresta armas

efetivas ao empreendimento da propaganda poliacutetica292

A Apocolocyntosis foi composta logo depois do falecimento de Claacuteudio

ocorrido em 54 A inspiraccedilatildeo derivou do ressentimento de Secircneca em relaccedilatildeo ao

soberano que lhe submeteu ao exiacutelio bem como do desprezo que ele nutria pela

atuaccedilatildeo imperial de Claacuteudio considerado incapaz e abobalhado Ela retrata

portanto a coacutelera do filoacutesofo defronte agraves atrocidades que o princeps cometera

contra ele e contra o ideal de governo romano Eacute o resultado do silecircncio e da fuacuteria

duas forccedilas terriacuteveis que a moldam atravessam-na datildeo-lhe aquele caraacuteter peculiar

que a torna uma obra-prima293

Ao escrevecirc-la Secircneca objetivava ridicularizar a

deificaccedilatildeo de Claacuteudio pois para ele o soberano natildeo merecia nenhuma apoteose

mas sim ser mandado ao inferno294

O texto pertence agrave saacutetira menipeia assim denominado devido agrave Menipo de

Gaacutedara escritor da escola ciacutenica do seacuteculo III aC Infelizmente natildeo haacute como

conhecermos ou caracterizarmos melhor esse tipo de gecircnero295

Satildeo poucos os

textos que sobreviveram desse registro Apesar disso temos acesso a algumas

especificidades graccedilas a uma pesquisa desenvolvida por Bakhtin em seu livro

Problemas da Poeacutetica de Dostoievski no qual elenca 14 aspectos dos quais

289

A presenccedila de uma dimensatildeo poliacutetica na Apocolocyntosis eacute aceita pela maioria dos estudiosos Eden (1984 p 1-23) em sua traduccedilatildeo do texto senequiano discute amplamente tal dimensatildeo 290

Festas em honra ao deus Saturno que aconteciam em dezembro (GRIMAL 2005 p 414) Tais

festas satildeo referidas por Secircneca duas vezes quando Claacuteudio eacute eleito Saturnalicius princeps durante

a assembleia dos deuses e quando apoacutes o falecimento do imperador os iurisconsulti consolam o

choro dos advogados dizendo Dicebam uobis non semper Saturnalia erunt ndash Eu vos falava natildeo

haveraacute sempre as Saturnais (Sen Apoc 82 122) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 31-41) 291

RONCALI 2014 p 678 292

MARCHETTI 1989 p 339 293

GRAMMATICO 1999 p 109 294

ALMEIDA 2014 p 70 O ritual da apoteose grosso modo consistia em transformar o

imperador em uma divindade Resumidamente o ritual pode ser descrito como tendo trecircs fases i)

uma lamentaccedilatildeo puacuteblica realizada no Foacuterum ii) uma procissatildeo dali ateacute o campo de Marte e iii) a

cremaccedilatildeo realizada neste uacuteltimo local (HARTOG 2014 p 177-178) 295

Sobre o que eacute uma saacutetira menipeiana cf RELIHAN 1984 p 226-229

94

destacamos seis Eles fazem referecircncia agrave presenccedila nesse tipo de saacutetira em

questatildeo i) de efeito cocircmico ii) de construccedilotildees de planos (por exemplo ceacuteu e

inferno) iii) de heroacuteis deuses e figuras lendaacuterias e mitoloacutegicas iv) de violaccedilatildeo

das normas v) de enfoques na atualidade e vi) de excepcional liberdade de

invenccedilatildeo do enredo sem nenhuma exigecircncia de verossimilhanccedila Bakhtin enxerga

a saacutetira menipeia como a personificaccedilatildeo literaacuteria de uma visatildeo carnavalesca da

vida uma percepccedilatildeo da sociedade e do mundo construiacuteda a partir de opiniotildees

desafiadoras das coisas296

Estamos lidando entatildeo com um espeacutecime singular da literatura latina

antiga um trabalho de irreverecircncia luacutedica que fabrica a desintegraccedilatildeo de um tema

No caso o tema eacute a apoteose de Claacuteudio e sua desintegraccedilatildeo jaacute inicia no tiacutetulo da

obra uma vez que a palavra grega ἀποκολοκύντωσις (Apocolocyntosis)297

significa ldquoaboborizaccedilatildeordquo ou ldquotransformaccedilatildeo em aboacuteborardquo Silva explica que o

radical apo- presente em apoteose juntou-se agrave palavra latina colocynthis cujo

significado eacute ldquoerva cabaccedilardquo (ldquoaboacuteborardquo) da famiacutelia das cucurbitaacuteceas

Considerando-se que no texto natildeo haacute uma cena em que Claacuteudio sofra uma

verdadeira metamorfose em aboacutebora devemos considerar a mutaccedilatildeo somente no

sentido figurado pois a palavra aboacutebora jaacute era usada entre os romanos para

indicar pessoas tolas298

Constituiacuteda por 15 paraacutegrafos a obra conteacutem um enredo bem simples a

trajetoacuteria percorrida pela alma de Claacuteudio apoacutes a morte em quatro localidades na

Terra no ceacuteu a caminho do inferno e no inferno A trama desenrola-se da

seguinte maneira Claacuteudio estaacute falecendo e Mercuacuterio pede a uma das Parcas que

acelere sua partida O princeps segue para o ceacuteu e eacute anunciado a Juacutepiter que envia

Heacutercules para interrogaacute-lo Um tipo de debate senatorial na Cuacuteria celeste eacute

entatildeo realizado para determinar se o imperador deveria receber o status divino

No meio do debate Juacutepiter e Augusto discursam sendo o uacuteltimo contraacuterio agrave

proposta Em seguida Mercuacuterio acompanha o rejeitado Claacuteudio ateacute o inferno

observando no caminho o seu alegre funeral Ao chegarem ao inferno as viacutetimas

indignadas de Claacuteudio o perseguem perante o tribunal de Eacuteaco e acusam-no de

296

BAKHTIN 1981 p 113-118 297

Diatildeo Caacutessio e apenas ele testemunha que Secircneca escreveu a Apocolocyntosis e que essa

composiccedilatildeo ganhou o tiacutetulo de ἀποκολοκύντωσις (Dio 60353) 298

SILVA 2008 p 16

95

assassinato Ele eacute condenado a jogar dados com uma caixa de dados furada por

toda a eternidade Mas Caliacutegula aparece e o reivindica como seu escravo299

A narrativa encerra-se nesse ponto com a reduccedilatildeo de Claacuteudio a escravo

destinado a jogar um jogo de dados sem fim Depois natildeo temos mais informaccedilotildees

acerca do falecido A falta de notiacutecias poreacutem natildeo muda o fato de que no decorrer

da obra Secircneca aponta os diversos niacuteveis da indignidade do soberano o modo

como ele ldquo[] emporcalhou todas as coisasrdquo300

ndash maledicecircncias reveladoras da

sua real intenccedilatildeo destruir a reputaccedilatildeo de Claacuteudio como princeps mostrando o

quatildeo despreziacutevel ele fora Tal ideia integra uma tendecircncia da literatura do

primeiro seacuteculo de difamar um governante morto para exaltar um vivo301

Assim

Claacuteudio eacute feito um monstro com um Principado abominaacutevel em contrapartida a

Nero que promete uma eacutepoca de ouro idiacutelica A importacircncia da Apocolocyntosis

para a nossa tese reside aiacute na construccedilatildeo de expectativas positivas sobre o

Principado neroniano Secircneca produziu a saacutetira a fim de exaltar o governo

vindouro argumentando que o novo princeps traria um periacuteodo de gloacuterias para

Roma Trata-se nesse sentido de uma obra poliacutetica que nos ajuda a compreender

um episoacutedio a ascensatildeo do Nero prodigioso

Como jaacute dissemos no ano 54 a sociedade romana presenciou o

falecimento de Claacuteudio e a consequente substituiccedilatildeo do trono O stylus de Secircneca

logo comeccedilou a trabalhar anunciando a chegada do novo imperador ldquoDesejo

transmitir agrave histoacuteria aquilo acontecido no ceacuteu no terceiro dia antes dos idos de

outubro em um ano-novo no iniacutecio de um seacuteculo muito felizrdquo302

No anuacutencio a

expressatildeo initio saeculi felicissimi eacute propositalmente usada pelo filoacutesofo para

enfatizar as expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo Principado haja vista que a

morte claudiana deixou para traacutes um periacuteodo de tirania o qual foi aliaacutes muito

criticado no decorrer da obra sendo frisadas a saeuitia (ferocidade) e a crudelitas

(crueldade) do soberano303

Todas essas criacuteticas satildeo feitas por Secircneca no intuito de

celebrar o fim do desgoverno e o surgimento das esperanccedilas Como observam

Faversani e Mancini em contraste com Claacuteudio que deixava o poder Secircneca

299

SULLIVAN 1985 p 49 300

[] omnia certe concacauit (Sen Apoc 43) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 24) 301

WHITTON 2013 p 152 302

quid actum sit in caelo ante diem III idus Octobris anno nouo initio saeculi felicissimi uolo

memoriae tradere (Sen Apoc 11) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 16) 303

Sen Apoc 122 115 104 62 47 13

96

apresenta uma imagem auspiciosa de Nero demonstrando que se dissipavam as

trevas e que a partir do iniacutecio do seu Principado comeccedilava a era das luzes304

Apoacutes o anuacutencio da chegada do novo princeps a narrativa prossegue com a

agonia poacutes-morte de Claacuteudio isto eacute com a tentativa de sua anima (alma) de

abandonar o corpo O filoacutesofo relata que essa jaacute exalava um cheiro ruim natildeo

conseguindo encontrar a saiacuteda Mercuacuterio305

entatildeo aparece e solicita a Cloto uma

das trecircs Parcas306

a liberaccedilatildeo da alma argumentando que o falecido jaacute havia

vivido por 64 anos e que por isso seria mais saacutebio entregaacute-lo agrave morte

consentindo que o ldquomelhorrdquo reinasse no ldquopalaacutecio desocupadordquo307

Vejam que no

argumento mercuriano haacute uma alusatildeo ao fato de Nero ser um soberano melhor do

que Claacuteudio mesmo sem ainda ter governado Acreditamos que Secircneca implanta

tal ideia por um motivo diminuir as contestaccedilotildees durante a ascensatildeo de Nero Por

ser membro da elite o filoacutesofo sabia das criacuteticas poliacuteticas feitas ao Principado

claudiano da sua tendecircncia agrave centralizaccedilatildeo e agrave autocracia E por ser tutor de

Nero sabia da necessidade de posicionar o seu aluno ndash e se posicionar ndash

publicamente favoraacutevel agraves criacuteticas Assim ao sugerir que ldquoo melhor reine no

palaacutecio desocupadordquo ele queria definir a posiccedilatildeo do novo governo conferindo um

plano poliacutetico prodigioso agrave sociedade e ao jovem Nero Nesse aspecto

concordamos com Braren quando afirma que a pretensatildeo de Secircneca natildeo poderia

ser diferente afinal ele estava muito proacuteximo do poder tanto como preceptor de

Nero quanto como aristocrata O filoacutesofo provavelmente detinha informaccedilotildees

que muitos outros natildeo detinham e as usou a favor do novo governo308

Avanccedilando Cloto ouve o apelo de Mercuacuterio e corta o fio da vida de

Claacuteudio309

Em seguida Laacutequesis outra Parca passa a tecer o fio aacuteureo de Nero

304

FAVERSANI MANCINI 2010 p 31-32 305

Mercuacuterio eacute o deus romano protetor dos comerciantes e dos viajantes (GRIMAL 2005 p 306-

307) Como a alma de Claacuteudio ldquoviajariardquo da terra para o ceacuteu eacute ele que aparece para auxiliaacute-lo 306

As Parcas satildeo as deusas do destino Em nuacutemero de trecircs Aacutetropo Cloto e Laacutequesis satildeo

representadas como fiandeiras medindo a bel-prazer a vida das pessoas (GRIMAL 2005 p 355) 307

Sen Apoc 32 Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 20) 308

BRAREN 19941995 p 168-169 309

Sen Apoc 33

97

[] Cingindo e enfeitando os cabelos com o poeacutetico louro

coroando a cabeleira e a face toma de uma niacutevea latilde os puros fios para serem temperados por matildeo feliz os quais conduzidos adquirem cor nova As irmatildes admiram sua latilde fiada muda-se a latilde comum em precioso metal do fio formoso seacuteculos de ouro aproximam-se E natildeo haacute limite para elas que conduzem as favoraacuteveis latildes E alegram-se em encher as matildeos com a latilde doces que satildeo esses deveres310

Notemos que todo o excerto eacute constituiacutedo por expressotildees positivas ldquoniacutevea

latilderdquo ldquopuros fiosrdquo ldquocor novardquo ldquolatilde afiadardquo ldquoprecioso metalrdquo ldquofio formosordquo

ldquofavoraacuteveis latildesrdquo e ldquoseacuteculos de ourordquo Sobre esses uacuteltimos Silva explica que os

romanos confiavam no ritmo regular do universo e na sua virtude regeneradora

esperando que um periacuteodo de horrores fosse substituiacutedo por outro aacuteureo311

Nessa

loacutegica ndash como jaacute dissemos ndash a morte de Claacuteudio representa o fim de uma eacutepoca

de atrocidades ao passo que o Principado de Nero representa um tempo de

tranquilidade e de paz Encontramos a mesma ideia no canto sexto da Eneida de

Virgiacutelio no qual o poeta cita a Idade de Ouro trazida por Augusto

Eis eis o prometido Augusto Ceacutesar

Diva estirpe varatildeo que ao Laacutecio antigo Haacute de os Satuacuternios seacuteculos dourados Restituir e sobre os Garamantes E Indos seu mando propagar dos signos Clima aleacutem situado aleacutem das todas

Do ano e do Sol por onde aos ombros vira O celiacutefero Atlante o eixo ardente

De estrelas tauxiado312

Diante disso julgamos que Secircneca utilizou a referecircncia virgiliana no

intuito de associar a loacutegica da Idade de Ouro augustana ao governo de Nero pois

Augusto foi considerado um modelo de imperador o representante do ideal

romano o fiador da paz da estabilidade da seguranccedila e da ordem313

Claramente

310

at Lachesis redimita comas ornata capillos Pieria crinem lauro frontemque coronans

Candida de niueo subtemina uellere sumit Felici moderanda manu quae ducta colorem

Assumpsere nouum Mirantur pensa sorores Mutatur uilis pretioso lana metallo Aurea formoso

descendunt saecula filo Nec modus est illis felicia uellera ducunt Et gaudent implere manus sunt

dulcia pensa (Sen Apoc 41) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 21) 311

SILVA 2008 p 73 312

Augustus Caesar divi genus aurea condet saecula qui rursus Latio regnata per arva

Saturno quondam super et Garamantas et Indos proferet imperium iacet extra sidera tellus

extra anni solisque vias ubi caelifer Atlas axem umero torquet stellis ardentibus aptum (Verg A

6 792-797) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 254) 313

MENDES 2006 p 40

98

temos aiacute uma ldquopoliacutetica a favor de Nerordquo na qual o filoacutesofo alude ao bom governo

augustano para insinuar que o jovem soberano seria um novo Augusto314

A narrativa progride com a inserccedilatildeo do deus Apolo no texto Ele adentra

para pedir a Laacutequesis que teccedila o fio de Nero agrave sua semelhanccedila

ldquoNatildeo lanccedilais nada oacute Parcas diz Febo [Apolo] que ele dos mortais exceda o tempo de vida a mim semelhante em rosto e em beleza nem em canto nem em voz inferior Aos desventurados felizes seacuteculos ofereceraacute e romperaacute o silecircncio das leis Como Luacutecifer dissipando os astros que fogem [] o

Sol radiante contempla a terra e lanccedila do nascente seus primeiros raios Tal Ceacutesar estaacute presente agora Roma olharaacute tal Nero Brilha com liacutempida honra seu resplandecente rosto e com o cabelo solto sua bela nucardquo Essas coisas disse Apolo315

No Mundo Antigo Apolo era representado como a divindade do sol da

beleza da muacutesica da justiccedila e da liberdade316

Sua entrada na obra constitui uma

estrateacutegia senequiana para comprovar que Nero detinha trecircs atributos

imprescindiacuteveis a um bom princeps beleza talento oratoacuterio e integridade Os dois

primeiros satildeo observaacuteveis na fala de Apolo quando ele diz que Nero era

semelhante a ele em rosto e em beleza possuindo um ldquoresplandecente rostordquo uma

ldquobela nucardquo e natildeo era ldquonem em canto nem em voz inferiorrdquo Ao seu turno a

integridade eacute verificada nas expressotildees ldquoromperaacute o silecircncio das leisrdquo e ldquobrilha

com liacutempida honrardquo as quais sugerem a edificaccedilatildeo por Nero de um Principado

de respeito agraves leis

A opccedilatildeo do filoacutesofo por Apolo tambeacutem marca a ligaccedilatildeo existente entre a

divindade e Augusto Em seu governo esse imperador empregou fortes

referecircncias apoliacutenicas lanccedilando-se como um salvador e protegido do deus sem

precedentes na histoacuteria romana A imagem divina era usada no acircmbito poliacutetico

como siacutembolo de disciplina moralidade e purificaccedilatildeo e no acircmbito cultural como

314

ALMEIDA 2014 p 301 315

ldquoNe demite Parcae Phoebus ait uincat mortalis tempora uitae Ille mihi similis uultu

similisque decore Nec cantu nec uoce minor Felicia lassis Saecula praestabit legumque silentia

rumpet Qualis discutiens fugientia Lucifer astra Aut qualis surgit redeuntibus Hesperus astris

Qualis cum primum tenebris Aurora solutis Induxit rubicunda diem Sol aspicit orbem Lucidus et

primos a carcere concitat axes Talis Caesar adest talem iam Roma Neronem Aspiciet Flagrat

nitidus fulgore remisso Vultus et adfuso ceruix formosa capillordquo Haec Apollo (Sen Apoc 41-2)

Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 22-23) 316

GRIMAL 2005 p 32-34

99

siacutembolo de paz e estiacutemulo agraves artes317

Agrave semelhanccedila de Augusto Nero vinculou o

seu governo agrave proteccedilatildeo de Apolo Eacute bem verdade que o seu viacutenculo era mais

direcionado ao campo artiacutestico mas isso natildeo muda o fato de que os dois principes

se associaram a Apolo na intenccedilatildeo de legitimarem os seus Principados Inclusive

como bem destaca Silva Nero acreditava muito nessa associaccedilatildeo com Apolo e era

saudado por seus bajuladores como sendo o proacuteprio deus Ademais ele se

aproveitou como era praxe desde Juacutelio Ceacutesar dessa associaccedilatildeo dos romanos com

os deuses para se autorrepresentar como a personificaccedilatildeo da justiccedila e da

liberdade318

Assim a escolha de Secircneca pela divindade demonstra claramente o

seu intuito de marcar a vinda de uma nova eacutepoca para o povo romano319

Cabe destacar ainda que os elogios feitos a Nero ao longo da

Apocolocyntosis satildeo sempre dispostos em contrapartida aos defeitos fiacutesicos de

Claacuteudio320

Por exemplo o filoacutesofo menciona o seu comportamento social

indigno o seu jeito coxo de caminhar e a sua peacutessima voz321

Em especial a

menccedilatildeo aos distuacuterbios na fala traz uma criacutetica seacuteria por parte de Secircneca Os

autores Osgood Braund e James afirmam que os aristocratas romanos

valorizavam muito a habilidade de discursar em puacuteblico sendo a voz de um

homem a grande reveladora do seu caraacuteter 322

Logo a dificuldade do falecido em

se expressar aponta uma grave falha poliacutetica de Claacuteudio sua inaptidatildeo para

governar Como ele sofria de um problema de fala ele fornecia ldquo[] o primeiro

exemplo de uma eloquentia indigna de um princepsrdquo323

Se ele natildeo conseguia

controlar o funcionamento baacutesico do seu corpo natildeo conseguiria controlar o

funcionamento do Estado Eacute assim que Secircneca frisa a imperfeiccedilatildeo de Claacuteudio

aproveitando para simultaneamente frisar a perfeiccedilatildeo de Nero324

Nas palavras de

Braund e James o filoacutesofo constroacutei uma relaccedilatildeo significativa entre a aparecircncia do

governante e o caraacuteter de seu regime O mau e fraco Claacuteudio com seu regime mau

317

ZANKER 1988 p 167-238 318

Cabe mencionar que Nero mandou cunhar diversas moedas em que a identidade com Apolo e

outros deuses era bastante niacutetida Cf RIC 178 319

SILVA 2008 p 74 320

Levick (1990 p 14-15) faz uma boa apresentaccedilatildeo das enfermidades fiacutesicas de Claacuteudio 321

Sen Apoc 43 52-3 322

OSGOOD 2007 p 341-345 BRAUND JAMES 1998 p 294 323

OSGOOD 2007 p 342 324

BRAUND JAMES 1998 p 307-308

100

e fraco foi substituiacutedo pelo bom e forte Nero que presidiraacute uma eacutepoca de ouro O

corpo vil de Claacuteudio eacute sucedido pelo corpo belo de Nero325

Retomando a narrativa Laacutequesis ouve as palavras de Apolo e finaliza o

tear do fio de Nero ldquo[] com a matildeo cheia fez Nero e com muitos anos o

brindardquo326

A essa altura cessam no texto as menccedilotildees ao novo princeps e

prosseguem os relatos sobre os destinos da alma claudiana

Em siacutentese entendemos que a Apocolocyntosis espelhou um momento

singular da vida romana cheio de ansiedades e de incertezas A distinta saacutetira

com suas situaccedilotildees extremas e elementos provocativos gerou o riso e a reflexatildeo

acerca do futuro proacuteximo Ela serviu a um fim poliacutetico Secircneca entreteve divertiu

e instruiu a elite romana Claacuteudio foi ejetado do mecanismo de legitimaccedilatildeo

imperial Nero por outro lado foi divinamente estabelecido como soberano

necessaacuterio Adotando o raciociacutenio de Freudenburg o filoacutesofo se apoderou

sabiamente da ocasiatildeo da troca de imperadores inundada por hipocrisias

obrigatoacuterias ndash no caso as formalidades exageradas da apoteose ndash para representar

um velho pouco carismaacutetico e desajeito sendo substituiacutedo por um jovem Apolo

Secircneca reivindicou esse instante como a oportunidade ideal para a implantaccedilatildeo de

um novo tipo de discurso o tipo decididamente antigo republicano de respeito agraves

leis A Apocolocyntosis ldquo[] permite que aqueles que riem juntamente com ela

pensem que desta vez as coisas seratildeo diferentes []rdquo e que a liberdade

republicana estaraacute de volta ao menu327

A obra nos leva ao coraccedilatildeo da ascensatildeo

neroniana criando espaccedilo para um destino grandioso para o Nero prodigioso

Complementarmente eacute imprescindiacutevel ainda demarcar duas questotildees i) a

escolha criativa do filoacutesofo pelo gecircnero menipeacuteico e ii) o uso da inuentio com

excepcional liberdade Secircneca poderia ter optado por qualquer gecircnero literaacuterio

para atacar Claacuteudio e elogiar Nero mas preferiu selecionar aquele que lhe

permitiu utilizar figuras mitoloacutegicas e deuses a exemplo de Mercuacuterio e Apolo e

produzir ao mesmo tempo um riso vituperioso e uma sacralidade prodigiosa

Tambeacutem empregou a inuentio na criaccedilatildeo de situaccedilotildees extraordinaacuterias que

provocaram e brincaram com a verdade328

ndash ou seja contou uma histoacuteria que natildeo

325

BRAUND JAMES 1998 p 295 326

at Lachesis quae et ipsa homini formosissimo faueret fecit illud plena manu et Neroni multos

annos de suo donat (Sen Apoc 42) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 23) 327

FREUDENBURG 2015 p 104-105 328

SILVA 2008 p 12

101

necessariamente era veriacutedica mas que possuiacutea uma ligaccedilatildeo com os eventos do

momento Como citamos anteriormente a invenccedilatildeo na saacutetira menipeia consistia

na libertaccedilatildeo das limitaccedilotildees histoacutericas das exigecircncias da verossimilhanccedila Nesse

sentido a narrativa construiacuteda pautava-se em geral na atualidade sociopoliacutetica329

Isso significa que Secircneca edificou um discurso sobre o ldquoburburinhordquo do momento

ironizando a maacute governaccedilatildeo de um passado recente e saudando a esperanccedila da

nova era de felicidade do presente e do futuro330

O proacuteximo trabalho a ser analisado o De Clementia complementaraacute a

anaacutelise do episoacutedio da ascensatildeo de Nero que novamente seraacute disposto na

categoria Nero prodigioso Ao passo que a Apocolocyntosis possui um tom

satiacuterico ridicularizando a deificaccedilatildeo de Claacuteudio o De Clementia possui um tom

elevado construindo um programa de governo Como veremos nessa obra o

filoacutesofo organizou sua argumentaccedilatildeo a fim de convencer a sua audiecircncia acerca da

melhor forma de conduzir o Principado E eacute aiacute que entrou a inuentio Nero eacute o

soberano que trouxe verossimilhanccedila ao modelo de Estado senequiano Em outras

palavras o melhor Principado soacute existiria se houvesse um Nero em seu comando

De acordo com Schofield o De clementia eacute a performance literaacuteria mais

deslumbrante de Secircneca ldquoum trabalho altamente originalrdquo331

A obra constitui um

manual de conselhos para o jovem imperador tal como o filoacutesofo desejava que ele

fosse nos seus primeiros anos de governo Eacute um texto no qual Secircneca recomenda

a Nero um modelo de Principado centrado predominantemente na virtude da

clemecircncia elemento-chave para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio entre o princeps e os

seus suacuteditos A clemecircncia ldquo[] fazia parte da publicidade do novo regime []rdquo

era a ideologia-base que ajudaria a sociedade a esquecer dos erros do passado e a

focar nos acertos do presente332

A obra data do iniacutecio do governo de Nero entre o final do ano 55 e o

iniacutecio do ano 56 apoacutes o assassinato de Britacircnico333

O texto eacute inspirado na

tradiccedilatildeo dos specula principum (espelhos de priacutencipes) cujo nascimento remonta

329

BAKHTIN 1981 p 114 330

FERREIRA 2008 p 186 331

SCHOFIELD 2015 p 68 332

GRIFFIN 1992 p 135 333

Essa data eacute aceita pela maioria dos estudiosos como por exemplo Braund (2009 p 16)

Todavia alguns pesquisadores delimitam-na antes do assassinato de Britacircnico a exemplo de

Giancotti (1954 p 329-344)

102

agraves monarquias heleniacutesticas do seacuteculo IV aC334

Empenhados em justificar o poder

poliacutetico dos monarcas os filoacutesofos gregos elaboraram manuais de gestatildeo do

Estado no intuito de direcionarem as virtudes do bom soberano em prol da

cidade ldquo[] Os espelhos de priacutencipe tinham como fim mostrar ao governante por

meio dos mais diversos exemplos como a sua accedilatildeo poderia vir em benefiacutecio

daqueles cuja vontade lhe pertenciardquo335

Em relaccedilatildeo agrave estrutura Malaspina informa que o De Clementia eacute um

tratado inacabado provavelmente destinado a compreender trecircs livros dos quais

temos apenas o primeiro e o iniacutecio do segundo totalizando vinte e seis

capiacutetulos336

No primeiro livro Secircneca explica a importacircncia e os benefiacutecios

particulares da clementia para os governantes a qual caracterizaria o priacutencipe

virtuoso ndash que eacute distinguido do tirano ndash como um liacuteder racional quase divino E

no segundo preocupa-se em definir clementia e diferenciaacute-la das noccedilotildees de

piedade e misericoacuterdia337

Mas afinal qual eacute o sentido da palavra clementia para o filoacutesofo No

decorrer do tratado satildeo apresentadas quatro definiccedilotildees i) ldquoa clemecircncia eacute a

temperanccedila de espiacuterito de quem tem o poder de castigar ou ainda a brandura de

um superior perante um inferior ao estabelecer a penalidaderdquo338

ii) ldquo[] eacute a

inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo339

iii) ldquo[] a

clemecircncia eacute a moderaccedilatildeo que retira alguma coisa de uma puniccedilatildeo merecida e

devidardquo340

iv) ldquo[] eacute a clemecircncia que faz desviar a puniccedilatildeo pouco antes da

execuccedilatildeo que poderia ter sido estabelecida por merecimentordquo341

Portanto a

clemecircncia seria uma espeacutecie de justiccedila exercida por uma instacircncia superior de

caraacuteter humanitaacuterio Ao apresentaacute-la desse modo Secircneca natildeo soacute traduziu o

conteuacutedo ideoloacutegico que almejava introduzir no Impeacuterio como tambeacutem

334

Para detalhes sobre o gecircnero dos espelhos de priacutencipes cf GOODENOUGH 1928 335

VIZENTIM 2005 p 92 336

MALASPINA 2014 p 175-176 337

Sen Cl 131 338

Clementia est temperantia animi in potestate ulciscendi vel lenitas superioris adversus

inferiorem in constituendis poenis (Sen Cl 231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 339

[] itaque dici potest et inclinatio animi ad lenitatem in poena exigenda (Sen Cl 231)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 340

Illa finitio contradictiones inveniet quamvis maxime ad verum accedat si dixerimus

clementiam esse moderationem aliquid ex merita ac debita poena remittentem [] (Sen Cl 232)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 341

[] Atqui hoc omnes intellegunt clementiam esse quae se flectit citra id quod merito constitui

posset (Sen Cl 232) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43)

103

demonstrou sua preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo filosoacutefico-moral de Nero ndash e

tambeacutem a vontade de colocar em praacutetica toda uma teoria de governo baseada nos

mais altos padrotildees morais342

Tal preocupaccedilatildeo fica evidente jaacute no proecircmio da obra A primeira frase do

tratado chama a atenccedilatildeo do leitor para as expectativas do filoacutesofo

Dispus-me a escrever a respeito da clemecircncia oacute Nero Ceacutesar

para que eu de certa forma desempenhasse a funccedilatildeo de espelho e te mostrasse a tua pessoa como a que haacute de vir para a maior de todas as satisfaccedilotildees343

Secircneca utiliza o espelho para mostrar a Nero sua verdadeira natureza Mas

natildeo apenas isso o espelho eacute empregado perspicazmente para revelar natildeo soacute o

reflexo do que jaacute existia como tambeacutem do que poderia existir344

Nas palavras de

Schofield ele eacute usado para dar-lhe prazer o prazer de inspecionar e examinar sua

proacutepria boa consciecircncia ndash antes de desviar o olhar e contemplar o destino que teria

a ldquoenorme massardquo (multitudo) da populaccedilatildeo A imagem de si mesmo que Nero

veria quando se olhasse no espelho de Secircneca estaria portanto envolvida em um

autoexame Em suma o que estaacute sendo dito eacute que Nero deveria fazer da clemecircncia

sua primeira e mais elevada prioridade345

E por que tanta preocupaccedilatildeo com a clementia De acordo com Griffin a

razatildeo deve ser procurada em Roma mais precisamente naquela contemporacircnea ao

filoacutesofo346

A clementia passou a ser usada como um conceito de virtude do

homem poliacutetico a partir de 49 aC Segundo Rocha Pereira ela adquiriu uma aura

extraordinaacuteria no tempo das guerras civis ficando particularmente ligada agrave figura

de Ceacutesar a quem o Senado honrou com um templo dedicado a clementia

Caesaris onde a personificaccedilatildeo da clemecircncia aparecia de matildeos dadas com o

general347

O orador Ciacutecero entatildeo ao perceber a relevacircncia da noccedilatildeo helecircnica de

clemecircncia para a posiccedilatildeo do governante inseriu-a nos seus Discursos como

qualidade de um excelente estadista Depois disso os imperadores seguintes se

342

BRAREN 2013 p 20 CORASSIN 1999 p 279 343

scribere de clementia Nero Caesar institui ut quodam modo speculi vice fungerer et te tibi

ostenderem perventurum ad voluptatem maximam omnium (Sen Cl Pr 11) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 37) 344

OLIVEIRA 2000 p 111-112 345

SCHOFIELD 2015 p 69 BRYAN 2013 p 144 346

GRIFFIN 1992 p 149-150 347

ROCHA PEREIRA 1984 p 358

104

apossaram da ideia Augusto adicionou a clementia no seu Res Gestae Tibeacuterio

inscreveu clementia e moderatio em moedas confeccionadas sob o seu Principado

Caliacutegula foi elogiado como clemente pelo Senado e Claacuteudio em seu discurso

inicial prometeu ao Senado que governaria sob o veacuteu da clemecircncia348

Assim

as razotildees de Secircneca para enfatizar a clementia na ascensatildeo de Nero [] satildeo oacutebvias se a clementia era reconhecida como uma das qualidades mais desejaacuteveis em um princeps era a que mais precisava ser destacada em Nero natildeo apenas por causa da sua hereditariedade mas por causa da crueldade do seu antecessor [Claacuteudio]349

Os abusos de Claacuteudio tatildeo repudiados na Apocolocyntosis haviam sido

deixados para traacutes O filoacutesofo queria destacar a tranquilidade com a qual o povo

romano poderia viver haja vista que os tempos de horror tinham acabado Nero

seria o governante virtuoso que inauguraria uma nova era Ele restauraria a fama

da dinastia Juacutelio-Claacuteudia fundada por Ceacutesar e Augusto e interrompida por

Claacuteudio Lido dessa maneira o De Clementia transforma-se em uma espeacutecie de

manifesto otimista do novo Impeacuterio iluminado350

Eacute com essa esperanccedila que Secircneca ainda no proecircmio da obra elogia a

benignidade de Nero insinuando que agora os romanos estavam em seguranccedila

Ceacutesar podes anunciar galhardamente que todas as coisas que vieram confiadas a tua guarda e tutela satildeo consideradas seguras que por teu intermeacutedio nada de mau se prepara contra o Estado [] Isto teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti mas encenada de vez em quando351

Tamanha seguranccedila adviria tambeacutem da inocecircncia do soberano

348

GRIFFIN 2001 p 149 349

GRIFFIN 1992 p 150 350

Na Apocolocyntosis Secircneca afirma que Claacuteudio mandou executar 35 senadores e 221 equestres

(Sen Apoc 141) BRAUND 2009 p 63 351

potes hoc Caesar audacter praedicare omnia quae in fidem tutelamque tuam venerunt tuta

haberi nihil per te neque vi neque clam adimi rei publicae [] Difficile hoc fuisset si non

naturalis tibi ista bonitas esset sed ad tempus sumpta (Sen Cl Pr 115-6) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 38-39)

105

Cobiccedilaste uma distinccedilatildeo bastante rara e que ateacute agora natildeo se

concedeu a priacutencipe nenhum a inocecircncia Esta singular bondade natildeo pocircs a perder tua obra [] Adquiriste este reconhecimento nunca um homem foi tatildeo caro a outro homem quanto tu eacutes ao povo romano []352

Para sublinhar ainda mais o bom caraacuteter de Nero Secircneca relata um

episoacutedio em que o princeps se entristeceu ao assinar a execuccedilatildeo de dois ladrotildees

No momento em que ia condenar dois ladrotildees Burro o teu prefeito [] exigia de ti que escrevesses os nomes dos condenados e por que motivos querias a condenaccedilatildeo Ele insistia para que finalmente fizesses aquilo que era sempre postergado Quando ele constrangido apresentara o documento

e o entregava a ti tambeacutem constrangido exclamaste ldquogostaria de natildeo saber escreverrdquo Que pronunciamento digno Que pudessem ouvi-lo todos os povos que habitam o Impeacuterio Romano [] Que pronunciamento digno da inocecircncia universal do gecircnero humano []353

Na acepccedilatildeo do filoacutesofo uma vez que a natureza do imperador era boa a

realizaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial seria plena E enquanto a administraccedilatildeo

fosse plena a satisfaccedilatildeo dos cidadatildeos tambeacutem seria Nesse sentido Secircneca

reconhece que no Principado de Nero existia

[] uma seguranccedila profunda contiacutenua um direito colocado

acima de toda injusticcedila [] uma forma de Estado que se mostra aos nossos olhos como muito satisfatoacuteria Estado ao qual nada falta para a liberdade absoluta []354

352

Rarissimam laudem et nulli adhuc principum concessam concupisti innocentiam Non perdit

operam nec bonitas ista tua singularis ingratos aut malignos aestimatores nancta est Refertur tibi gratia nemo unus homo uni homini tam carus umquam fuit quam tu populo Romano magnum

longumque eius bonum (Sen Cl Pr 115) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 38-39) 353

Animadversurus in latrones duos Burrus praefectus tuus vir egregius et tibi principi natus

exigebat a te scriberes in quos et ex qua causa animadverti velles hoc saepe dilatum ut

aliquando fieret instabat Invitus invito cum chartam protulisset traderetque exclamasti ldquoVellem

litteras nesciremrdquo O dignam vocem quam audirent omnes gentes quae Romanum imperium

incolunt quaeque iuxta iacent dubiae libertatis quaeque se contra viribus aut animis attollunt O

vocem in contionem omnium mortalium mittendam in cuius verba principes regesque iurarent O

vocem publica generis humani innocentia dignam [] (Sen Cl 211-3) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 41) 354

Multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta

adfluens ius supra omnem iniuriam positum obversatur oculis laetissima forma rei publicae cui

ad summam libertatem nihil deest nisi pereundi licentia (Sen Cl Pr 118) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 39)

106

Todas as qualidades do princeps fizeram com que o seu governo fosse

considerado superior ao do grande Augusto e ao de Tibeacuterio

Ningueacutem fala mais do divino Augusto nem dos primeiros tempos de Tibeacuterio Ceacutesar nem querendo imitar um modelo procura outro aleacutem do teu avalia-se o teu Principado por esta prova355

A mansidatildeo de Nero difundiu-se por todo o vasto territoacuterio do Impeacuterio

levando-o a uma eacutepoca de grandiosidade ldquo[] brotam a partir desta soacutelida

substacircncia e em seu devido tempo [as coisas fingidas] desenvolvem-se em algo

maior e melhorrdquo356

Movendo-se do proecircmio para o primeiro e o segundo livros do tratado

Secircneca abandona o discurso filosoacutefico-moral para iniciar o discurso praacutetico-

poliacutetico Vizentim explica que eacute aiacute onde ele se baseia na tradiccedilatildeo dos espelhos de

priacutencipe para desenvolver a teoria por traacutes da sua obra qual seja converter o

despotismo em monarquia tornando o absolutismo poliacutetico aceitaacutevel desde que a

moralidade e a poliacutetica se unam e que o rei virtuoso possa ser um modelo para

seus governados357

Tal ideia conforme a autora ligava-se agraves circunstacircncias

histoacutericas nas quais o De Clementia foi composto Sob o Impeacuterio o regime

adotado jaacute natildeo era mais tatildeo combatido e tudo dependia de um uacutenico homem O

foco era a figura do indiviacuteduo do priacutencipe era o seu poder que estava em jogo

que seria contestado O soberano deveria se configurar como o elemento de

ordenaccedilatildeo puacuteblica de forma a natildeo permitir a desagregaccedilatildeo das forccedilas do Impeacuterio

Secircneca entatildeo percebeu que a monarquia necessitava de novas razotildees para se

manter358

Foi por isso que defendeu a clemecircncia o modelo ideal de soberania soacute

existiria se fosse pautado nos auspiacutecios da clementia Esta orientaria a vida do

princeps disciplinando seus caprichos e garantindo a ele um bom desempenho A

Repuacuteblica seria personificada pelo imperador com a clemecircncia transformando-o

no ldquomaiorrdquo por proporcionar um componente humaniacutestico Ela ajudaria Nero a

355

[] nemo iam divum Augustum nec Ti Caesaris prima tempora loquitur nec quod te imitari

velit exemplar extra te quaerit principatus tuus ad gustum exigitur (Sen Cl Pr 116) Traduccedilatildeo

de Braren (2013 p 39) 356

[] Ex solido enascuntur tempore ipso in maius meliusque procedunt (Sen Cl Pr 116)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39) 357

VIZENTIM 2005 p 97 358

OMENA 2002 p 89

107

manter seu poder coeso e duradouro pois o coibiria de praticar abusos juriacutedicos

conservaria a felicidade dos cidadatildeos e manteria a seguranccedila359

O que se apreende enfim eacute que a clemecircncia seria o elemento de liberdade

sob o exerciacutecio do poder absoluto do princeps Em um regime de caraacuteter absoluto

sem qualquer controle externo ela seria a uacutenica restriccedilatildeo sobre o imperador

aquilo que o impediria de governar tiranicamente360

Como afirma o proacuteprio

filoacutesofo o poder natildeo precisa ser nocivo se estiver constituiacutedo sob a lei da

natureza361

De sua praacutetica adviriam a paz e o cumprimento das leis Soberano e

suacuteditos coexistiriam em harmonia e os interesses de ambos seriam preservados e

respeitados Soacute assim Nero ganharia o consentimento e a devoccedilatildeo dos cidadatildeos

peccedilas-chave para a estabilidade do Estado362

Todo esse debate acerca da teoria senequiana foi desenvolvido com um

objetivo mostrar as consequecircncias da desconsideraccedilatildeo da clemecircncia pelos

soberanos No segundo livro do De Clementia Secircneca denuncia as condutas

autoritaacuterias dos priacutencipes salientando os momentos em que suas vontades

ameaccedilaram a liberdade dos cidadatildeos Nessa perspectiva contrapotildee o imperador

clemente agrave figura do tirano culpado por exorbitar o absolutismo e a

arbitrariedade Ele critica a dissipaccedilatildeo praticada pelos tiranos em contraste com a

liberalidade autocontrolada do soberano justo e clemente363

Como ilustraccedilatildeo

aponta as falhas de Augusto e Claacuteudio durante os seus Principados enfatizando

suas atitudes crueacuteis Tal discussatildeo eacute bastante relevante para a nossa tese haja vista

que o filoacutesofo aponta essas falhas a fim de argumentar que Nero jamais as

cometeria pois era virtuosamente superior aos dois

Em relaccedilatildeo a Augusto Secircneca comenta que ele soacute aderiu agrave clemecircncia

quando jaacute havia se tornado velho e experiente364

Antes disso foi um princeps de

ldquocabeccedila quenterdquo conduzindo Roma de modo atroz e sanguinaacuterio Nero por outro

359

VIZENTIM 2005 p 96-97 360

Secircneca deixa claro que a clemecircncia natildeo deveria ser usada a qualquer custo mas com razatildeo e

discernimento O mote era a medida ldquodevemos manter um padratildeo mas como todo comedimento eacute

difiacutecil tudo o que for aleacutem da equidade deveraacute pender para o lado mais humanitaacuteriordquo modum

tenere debemus sed quia difficile est temperamentum quidquid aequo plus futurum est in partem

humaniorem praeponderet (Sen Cl Pr 22) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 40) 361

Sen Cl 3171 362

GONCcedilALVES 1999 p 68 363

CORASSIN 1999 p 281 364

Rudich (1997 p 63) acrescenta que a adesatildeo de Augusto agrave clemecircncia natildeo foi um movimento

espontacircneo do coraccedilatildeo mas o resultado de um frio caacutelculo poliacutetico

108

lado trazia a clemecircncia a bondade e a mansidatildeo consigo desde jovem natildeo

derramando uma uacutenica gota de sangue civil Vejamos

[] Na juventude [Augusto] inflamou-se e a coacutelera arruinou-o fez muitas coisas agraves quais voltava os olhos constrangido Ningueacutem ousaraacute comparar a tua mansidatildeo agrave do divino Augusto mesmo se fossem levados agrave disputa os teus anos juvenis e a velhice dele mais do que madura [] A verdadeira clemecircncia

Ceacutesar eacute esta que tu desempenhas e que natildeo tendo arrependimento de seviacutecias praticadas comeccedila sem qualquer maacutecula sem nunca ter derramado sangue civil [] Preservaste Ceacutesar a naccedilatildeo sem sangue e o fato que tanto glorificou teu grande espiacuterito eacute que natildeo derramaste nenhuma gota de sangue humano em todo o mundo []365

Griffin argumenta que Secircneca realccedila a conversatildeo tardia de Augusto agrave

clemecircncia para tornar a clementia juvenil de Nero notaacutevel366

O seu propoacutesito era

aumentar a credibilidade de Nero indicando a sua superioridade em relaccedilatildeo ao

seu ancestral Natildeo podemos nos esquecer de que na Apocolocyntosis o filoacutesofo

apresentou Augusto como um governante ideal e o associou a Nero defendendo

que o Principado neroniano seria tatildeo bom quanto o augustano367

Agora poreacutem

Secircneca proclama que Nero seria melhor do que Augusto e natildeo mais igual Para

Croisille e Ehrhardt Augusto deveria ser imitado mas sobretudo ultrapassado368

O governo de Nero por se aproximar do de Augusto no tempo suplantaria

[] o modelo estabelecido por esse uacuteltimo de modo a ser

tomado a partir de entatildeo como o paradigma por excelecircncia a ser seguido pelas geraccedilotildees futuras [] Augusto nesse sentido deixa de ser um ideal para se tornar apenas uma referecircncia sobre quem Nero tem uma superioridade moral []369

No que se refere a Claacuteudio o filoacutesofo manteacutem o mesmo discurso da

Apocolocyntosis a saber o de que ele era um monstro com um Principado

365

[] in adulescentia caluit arsit ira multa fecit ad quae invitus oculos retorquebat Comparare

nemo mansuetudini tuae audebit divum Augustum etiam si in certamen iuvenilium annorum

deduxerit senectutem plus quam maturam [] [] Haec est Caesar clementia vera quam tu

praestas quae non saevitiae paenitentia coepit nullam habere maculam numquam civilem

sanguinem fudisse [] Praestitisti Caesar civitatem incruentam et hoc quod magno animo

gloriatus es nullam te toto orbe stillam cruoris humani misisse eo maius est mirabiliusque quod

nulli umquam citius gladius commissus est (Sen Cl 1111-3) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 59) 366

GRIFFIN 1992 p 411 367

Sen Apoc 41-2 368

CROISILLE 1994 p 58 EHRHARDT 2001 p 134 369

VIZENTIM 2005 p 182

109

abominaacutevel370

No De Clementia a sua crueldade novamente eacute rememorada

com ecircnfase na natureza autocraacutetica e ilegal do seu governo Secircneca explana as

repetidas puniccedilotildees de parriciacutedios autorizadas por Claacuteudio as quais serviram para

transformar as condenaccedilotildees em espetaacuteculos ao inveacutes de ajudarem na correccedilatildeo dos

criminosos ldquoteu pai durante cinco anos mandou costurar dentro de sacos muito

mais condenados do que ouvimos mencionar em todos os seacuteculosrdquo371

O retrato

claudiano eacute divulgado como exemplum de despotismo vinculado sobretudo agrave

falta de preocupaccedilatildeo com o exerciacutecio da justiccedila Ele representa o desgoverno

siacutembolo de oacutedio e rebeliatildeo enquanto Nero simboliza o governo de um homem

racional e clemente Para Roller o contraste com Claacuteudio eacute feito tambeacutem como

alternativa para Nero escolher por si mesmo um caminho diferente ldquoNa verdade

o De Clementia pode ser considerado como um esforccedilo urgente para estabelecer

um modelo para o jovem imperador que o levaraacute a agir de maneira vantajosa para

os aristocratas []rdquo para que eles natildeo sofram mais humilhaccedilotildees e injuacuterias como

as que ocorreram no reinado anterior372

Como argumentam Bryan e Bueno o

foco na clementia de Nero uma virtude essencialmente ligada agrave praacutetica juriacutedica

serve para enfatizar sua diferenccedila em relaccedilatildeo a Claacuteudio para afastar a imagem do

novo imperador de seu antecessor conhecido por suas ilegalidades373

Cabe salientar que as criacuteticas a Claacuteudio foram o meio utilizado por Secircneca

para lembrar os seus leitores dos tempos sombrios enfrentados por Roma Afinal

ele mesmo tinha sofrido com os desmandos imperiais Mas com Nero Roma

poderia sentir-se protegida pois detinha um princeps manso de coraccedilatildeo E isso

para o filoacutesofo jaacute se refletia pela cidade ldquo[] hoje a todos os teus cidadatildeos

obriga-se a confessar que satildeo felizes e que jaacute nada mais se pode acrescentar agraves

suas venturas exceto que sejam permanentesrdquo374

A magnificecircncia do novo

soberano natildeo podia mais ser ocultada ldquo[] a ti natildeo eacute dado esconder-te mais do

370

Sen Apoc 122 115 104 62 47 13 371

pater tuus plures intra quinquennium culleo insuit quam omnibus saeculis insutos accepimus

(Sen Cl 1231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 72) 372

ROLLER 2001 p 247 373

BRYAN 2013 p 144 BUENO 2016 p 125 374

[] multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta

(Sen Cl Pr 17) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39)

110

que ao sol Existe muita luz agrave tua volta para ela convergem os olhos de todos e se

julgas poder mostrar-te elevas-terdquo375

Enfim o De Clementia foi elaborado por Secircneca para integrar o momento

da ascensatildeo de Nero fornecendo a ideologia do novo Principado Em periacuteodos de

trocas de imperadores era de se esperar que a elite romana ficasse ansiosa com as

direccedilotildees do proacuteximo governo E Secircneca soube aproveitar muito bem esse instante

para assegurar a todos que o novo princeps possuiacutea as virtudes necessaacuterias para

construir um excelente Principado E ainda que ele natildeo as tivesse o filoacutesofo

estava mostrando o caminho a seguir um modelo ideal de soberania baseado nos

auspiacutecios da moderaccedilatildeo Esta orientaria sua proacutepria vida disciplinaria seus

caprichos e ambiccedilotildees pessoais visando a uma finalidade uacutenica proporcionar um

bom desempenho como chefe do imperium cumprindo nestas condiccedilotildees suas

funccedilotildees como um homem sapiente e como tutor rei publicae Restava soacute um

princeps virtuoso com poderes extraordinaacuterios para ordenar os indiviacuteduos

dispostos agrave desordem376

Este era Nero Em breve ele revelaria a sua alma

clemente atraveacutes de boas accedilotildees mostrando-se como o Nero prodigioso e todos

poderiam saudar sua ascensatildeo ldquo[] como o iniacutecio de um novo seacuteculo de uma

idade de ouro de caraacuteter quase miacutesticordquo377

Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae

Discutida a ascensatildeo do soberano nas duas obras senequianas

abordaremos a partir deste ponto a presenccedila dela nas Eclogae de Calpuacuternio

Siacuteculo Tal poeta eacute pouquiacutessimo estudado na atualidade sendo negligenciado por

completo ou quando notado descartado com desprezo378

Na concepccedilatildeo de

Martin um fator significativo contribui para isso a comparaccedilatildeo da sua obra com

aquelas de mesmo nome dos seus dois ilustres predecessores Teoacutecrito e Virgiacutelio

O autor alega que o texto de Calpuacuternio natildeo possui a profundidade dos seus

precursores o que natildeo quer dizer que seu trabalho natildeo tenha meacuterito algum Ao

375

[] tibi non magis quam soli latere contingit Multa circa te lux est omnium in istam conversi

oculi sunt prodire te putas Oriris (Sen Cl 184) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 54) 376

FAVERSANI 2012 p 141 377

GUARINELLO 1996 p 58 378

FEAR 1994 p 269

111

contraacuterio sua poesia eacute encantadora e tecnicamente habilidosa379

ndash aspecto que

aliaacutes foi confirmado por vaacuterios outros classicistas a partir da segunda metade do

seacuteculo XX gerando um aumento do interesse cientiacutefico pelo poeta380

As novas investigaccedilotildees tiveram que lidar com a nebulosidade em torno da

biografia de Calpuacuternio Sua vida ainda hoje eacute pouco conhecida pelos modernos e

poder-se-ia dizer incompreendida381

Tudo o que sabemos sobre ele adveacutem das

descriccedilotildees e alusotildees presentes em seus proacuteprios versos382

Determinados trechos

por exemplo permitem-nos afirmar que ele era um homem humilde e de escassos

recursos e que nutria um enorme desejo de singrar na vida383

Outros possibilitam-

nos propor a localizaccedilatildeo da sua cidade natal no sul da Itaacutelia mais especificamente

na Siciacutelia384

o que explicaria o cognomen Siacuteculo385

A essa proposiccedilatildeo somam-se

vaacuterias menccedilotildees a plantas e a animais da regiatildeo mediterracircnica como faia platanus

orientalis e hystrix Talvez entatildeo Amat teria razatildeo ao estabelecer que a melhor

hipoacutetese parece ser a mais simples aquela que faz de Calpuacuternio Siacuteculo um

siciliano por origem386

As Eclogae estatildeo inseridas no gecircnero bucoacutelico estilo que encontrou

poucos representantes no seu longo caminhar sendo produzido pelo grego

Teoacutecrito no seacuteculo III aC e depois adotado pelos latinos Virgiacutelio Calpuacuternio e

Nemesiano nos seacuteculos I e III387

Segundo Santos a poesia bucoacutelica possui como

pano de fundo o cenaacuterio campestre ruacutestico com um protagonista que pastoreia

cabras eou ovelhas Esse pastor eacute um indiviacuteduo que vive uma vida modesta e

tranquila em meio agrave natureza fora das agitaccedilotildees citadinas Eacute um homem que

busca a paz em seu existir e que aparece vestido singelamente e acompanhado dos

seus cajados e dos catildees enquanto se ocupa de cantigas sobre amores sonhos e

tristezas Calpuacuternio em especiacutefico eacute um apaixonado pelas belezas naturais e

379

MARTIN 1996 p 17 380

A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo tivemos trecircs novas traduccedilotildees criacuteticas das Eclogae feitas por Verdiegravere

(1954) Korzeniewski (1971) e Amat (1991) bem como pesquisas sobre sua tradiccedilatildeo manuscrita

suas caracteriacutesticas literaacuterias e sua relaccedilatildeo com a ideologia imperial 381

Para detalhes biograacuteficos do poeta cf BEATO 1995 p 617-627 382

AMAT 1991 p vii 383

Calp Ecl 193-95 384

Calpuacuternio na Ecloga 1 refere-se agrave planta fagus aquas (ldquopinhalrdquo) (Calp Ecl 19) Segundo

Beato (1996 p 16) essa planta a faia apesar de se encontrar cultivada de forma geral nas

montanhas da Europa era muito mais faacutecil de ser encontrada na Siciacutelia 385

Era costume dos autores de eacutepocas remotas adotar como sobrenome o nome de sua paacutetria

(REBELLO 2004 p 75) 386

AMAT 1991 p x 387

Para detalhes a respeito do gecircnero bucoacutelico cf ALPERS 19721973 p 352-371

112

pelos prazeres campestres apresentando-nos uma imagem idealizada mas natildeo

irreal da vida rural em uma linguagem plena de vivacidade realismo e humor388

Esse sentimentalismo eacute exibido nas Eclogae em sete livros os quais

abordam temaacuteticas variadas 1) poliacutetica 2) idealismo pastoril 3) idealismo

pastoril poder da canccedilatildeo 4) poliacutetica 5) realidade ruacutestica 6) realidade ruacutestica

poder da canccedilatildeo e 7) poliacutetica Os princiacutepios da organizaccedilatildeo da obra satildeo bem

claros nas Eclogae 1 4 e 7 o poeta preocupa-se com a esfera poliacutetica ao passo

que nas Eclogae 2 3 5 e 6 atenta-se para questotildees ruacutesticas usuais O primeiro

grupo de poesias eacute o uacutenico em que Calpuacuternio cita acontecimentos ensejam

especulaccedilotildees acerca do seu tempo histoacuterico qual seja o Principado neroniano389

Grande parte dos pesquisadores aceita essa dataccedilatildeo devido agraves referecircncias do poeta

a um princeps jovem belo patrocinador de jogos esplecircndidos e sucessor de um

governante tiracircnico390

Keene inclusive declara que as evidecircncias a favor da

eacutepoca neroniana satildeo esmagadoras e que o ldquo[] reinado de nenhum outro

imperador apresenta tantas coincidecircnciasrdquo391

Assim tambeacutem consideraremos

essa demarcaccedilatildeo como a mais provaacutevel utilizando-nos dos versos calpurnianos

para examinarmos dois episoacutedios da vida de Nero a sua ascensatildeo e a realizaccedilatildeo

de jogos em um anfiteatro O primeiro seraacute lido sob a oacutetica da categoria Nero

prodigioso e o segundo sob a da Nero construtor O episoacutedio da ascensatildeo

aparece basicamente nas Eclogae 1 e 4 o dos jogos na 7

A primeira bucoacutelica inicia-se com os pastores Coacuteridon e seu irmatildeo Oacuternito

protegendo-se do calor veranil no interior de um bosque agrave sombra de uma aacutervore

faia Enquanto desfrutam do momento refrescante veem um poema gravado na

casca da faia o qual verificam ter sido escrito pelo deus Fauno392

Coacuteridon entatildeo

sugere a Oacuternito que leia o poema divino em voz alta

388

SANTOS 2003 p 8-39 389

BEATO 1996 p 51 DAVIS 1987 p 32 TOWNEND 1980 p 166-174 390

Existem poucos pesquisadores que fogem de tal delimitaccedilatildeo como Champlin (1978 p 95) que

defende que as Eclogae podem ser alinhadas com os reinados de Heliogaacutebalo e Severo Alexandre 391

KEENE 1885 p 377 392

Fauno foi ldquo[] um antiquiacutessimo deus de Roma cujo culto estava localizado no Palatino ou nas

suas imediaccedilotildees Pelo nome aparece como um deus benfazejo lsquofavoraacutevelrsquo (qui fauet) protetor

em particular dos rebanhos e dos pastores []rdquo (GRIMAL 2005 p 166)

113

[Oacuternito] ldquoEu Fauno [] que protejo os bosques e

as montanhas anuncio aos povos o futuro apraz-me gravar nesta aacutervore sagrada estes felizes versos reveladores dos destinos Alegrai-vos principalmente voacutes oacute habitantes dos bosques alegrai-vos voacutes oacute povos da Itaacutelia Embora todo o rebanho vagueie sem preocupaccedilatildeo de guarda e o pastor natildeo queira fechar os estaacutebulos agrave

noite com o cancelo de freixo nem assim o ladratildeo faraacute assaltos aos redis ou soltos os cabrestos roubaraacute os animais de carga Assegurada a paz renasce a Idade de Ouro e uma vez eliminada a torpeza e a sordidez a beneacutefica Teacutemis regressa enfim agrave terrardquo393

A passagem possui uma linguagem profeacutetica anunciadora do renascimento

da Idade de Ouro Para Beato e Momigliano Calpuacuternio estaacute se referindo aiacute aos

tempos advindos com a nova sucessatildeo da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Os autores

sustentam que o poeta provavelmente escreveu esses versos nos primeiros meses

do novo Principado a fim de divulgar uma visatildeo auspiciosa do soberano O seu

intento era propagar os sinais de um presente proacutespero surgido haacute pouco no

horizonte e regido por um jovem deus Nero seria aquele que instauraria uma

eacutepoca nova em Roma restaurando a paz e implementando uma seguranccedila

generalizada394

Tal seguranccedila inclusive eacute marcada por Calpuacuternio logo nas

primeiras linhas onde o Fauno cita os benefiacutecios que seratildeo obtidos pelos coloni

com o governo vindouro os ladrotildees natildeo faratildeo mais assaltos aos redis e nem

roubaratildeo os animais de carga

Sobre essa passagem eacute possiacutevel ainda extrairmos conotaccedilotildees mais

profundas A menccedilatildeo ao retorno da Idade Aacuteurea retoma versos da Eneida nos

quais Virgiacutelio louva os seacuteculos dourados (aurea saecula) trazidos por Augusto395

Como jaacute dissemos Augusto foi apreciado como o grande pacificador do Impeacuterio

responsaacutevel por retirar Roma das turbulentas guerras civis e restituir o mos

maiorum aos moldes tradicionais Ao realizar a intertextualidade com a eacutepica

Calpuacuternio constroacutei um discurso laudatoacuterio identificando Nero positivamente com

393

[Ornytus] ldquoqui iuga qui siluas tueor satus aethere Faunus haec populis uentura cano iuuat

arbore sacra laeta patefactis incidere carmina fatis uos o praecipue nemorum gaudete coloni

uos populi gaudete mei licet omne uagetur securo custode pecus nocturnaque pastor claudere

fraxinea nolit praesepia crate non tamen insidias praedator ouilibus ullas afferet aut laxis

abiget iumenta capistris aurea secura cum pace renascitur aetas et redit ad terras tandem

squalore situque alma Themis posito iuuenemque beata sequunturrdquo (Calp Ecl 133-44)

Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 394

BEATO 1996 p 21 MOMIGLIANO 1944 p 97 395

Verg A 6 792-797

114

Augusto Nero eacute o novo Augusto aquele que recuperaria os ecos de um passado

feliz controlando os conflitos civis e fixando a paz396

Isso fica mais evidente se

atentarmos para o retorno da ldquobeneacutefica Teacutemisrdquo presente no excerto Na mitologia

antiga Teacutemis era considerada a divindade da justiccedila da lei e da ordem capaz de

equilibrar o mundo entre as leis universais e as paixotildees humanas397

A alusatildeo a

ela entatildeo indica o regresso de um periacuteodo de justiccedila em Roma personificado na

figura do jovem princeps A administraccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica equilibrada e

harmocircnica que predominou nos anos augustanos ndash e que foi negligenciada por

Claacuteudio ndash estava de volta Com a deusa o poeta expressa as suas esperanccedilas as

de que a ldquomiseacuteriardquo e o ldquodesmazelordquo mantivessem-se distantes Nesse ponto

concordamos com Dominik Garthwaite e Roche ela eacute uma escolha apropriada

para o contexto pois combina poderes divinos com a autoridade legal incorporada

pelo jovem priacutencipe398

Eacute necessaacuterio destacar que o elemento literaacuterio da eacutepoca aacuteurea permite-nos

aproximar as Eclogae da Apocolocyntosis Nas duas obras o elemento se destaca

na primeira temos um Fauno anunciando o advento da Idade de Ouro e na

segunda vemos a Parca Laacutequesis tecendo o fio de ouro da vida de Nero Mayer

afirma que existe uma grande possibilidade de Calpuacuternio ter se inspirado na saacutetira

senequiana para a composiccedilatildeo do seu trabalho Isso porque no princiacutepio do

governo de Nero houve um renascimento do gecircnero bucoacutelico sendo Calpuacuternio

um dos representantes do movimento O poeta entatildeo embarcou no elogio contido

na saacutetira de Secircneca para construir o seu proacuteprio fato que revela um sentimento

comum entre ambos expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo governo399

Em suma o marco nestes versos iniciais da primeira Ecloga eacute o retorno

da paz e da justiccedila augustanas ao Principado de Nero ideia consolidada por

Calpuacuternio no prosseguir da profecia fauniana

396

MENDES 2006 p 40 DAVIS 1987 p 41 POSTGATE 1902 p 40 397

GRIMAL 2005 p 435-436 398

DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 313 399

MAYER 2006 p 454

115

[Oacuternito] ldquoEnquanto um deus em pessoa governar

os povos a iacutempia Belona poraacute as matildeos vencidas atraacutes das costas e despojada de armas lanccedilaraacute mordeduras loucas contra as suas proacuteprias entranhas e travaraacute contra si as guerras civis que recentemente difundiu em todo o orbe Roma jaacute natildeo choraraacute desastres [] nem cativa celebraraacute quaisquer triunfos Todas as

guerras seratildeo encerradas no caacutercere Tartaacutereo [] A paz apresentar-se-aacute esplendorosa []rdquo400

O fim do derramamento de sangue eacute representado pela referecircncia agrave deusa

da guerra Belona401

a qual eacute pintada de modo impotente despojada de suas armas

e com as matildeos amarradas nas costas Sem poder pois o jovem deus a dominou

ela natildeo consegue instigar uma guerra civil e passa a se autodestruir cravando

dentadas em suas entranhas Outra vez o poeta pega emprestado versos da

Eneida porquanto Belona surge no escudo de Eneias para retratar a vitoacuteria de

Augusto na batalha de Aacutecio402

No meio ecircneas armadas e Aacutecias guerras Todo a ferver Leucate em marte instruto Com o ouro viras fulgurar as ondas

Caacute nrsquoalta popa Augusto arrasta aos preacutelios Senado e povo os deuses e os penates De ambas as fontes ledo exala flamas Na cabeccedila a luzir a estrela paacutetria [] Com triacuteplice triunfo entrado em Roma De Itaacutelia aos deuses cumpre os votos Ceacutesar [] Festa aplauso alegria as ruas soam []403

A alegria sentida pelo povo das Vrbes apoacutes a derrota de Marco Antocircnio e

Cleoacutepatra em Aacutecio eacute associada por Calpuacuternio agrave felicidade sentida pelo populus

400

[Ornytus] ldquodum populos deus ipse reget dabit impia uictas post tergum Bellona manus

spoliataque telis in sua uesanos torquebit uiscera morsus et modo quae toto ciuilia distulit orbe secum bella geret nullos iam Roma Philippos deflebit nullos ducet captiua triumphos

omnia Tartareo subigentur carcere bella immergentque caput tenebris lucemque timebunt

candida pax aderit []rdquo (Calp Ecl 146-55) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 401

Deusa romana da guerra Eacute por vezes considerada a esposa de Marte Assemelha-se muito agrave

representaccedilatildeo tradicional das Fuacuterias (GRIMAL 2005 p 60) 402

A batalha de Aacutecio ocorreu no ano 31 aC e foi uma disputa entre Marco Antocircnio e Augusto na

qual este uacuteltimo lutou contra a ameaccedila de orientalizaccedilatildeo de Roma por esse primeiro e Cleoacutepatra

(MENDES 2006 p 26) 403

in medio classis aeratas Actia bella cernere erat totumque instructo Marte videres fervere

Leucaten auroque effulgere fluctus hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus

populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flammas [] at

Caesar triplici invectus Romana triumphos moenia dis Italis votum immortale sacrabat

maxima ter centum totam delubra per urbem laetitia ludisque viae plausuque fremebant []

(Verg A 8 675-680 714-717) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 339-340)

116

romanus com o regresso da Era de Ouro no Principado neroniano Livre de

confrontos Roma jaacute natildeo choraria e todos os seus inimigos seriam abandonados

na escuridatildeo do caacutercere Tartaacutereo404

abrindo espaccedilo para o reinado da candida pax

ndash uma paz que como Wiseman sugeriu traria o contraste entre o passado paciacutefico

claudiano aparente e o presente paciacutefico neroniano real A paz brilhante

disponiacutevel agora seria real e natildeo apenas uma maacutescara como era com Claacuteudio405

Em vista disso o Fauno profetiza a restauraccedilatildeo das relaccedilotildees paciacuteficas entre

o Senado e o imperador predizendo um periacuteodo de respeito aos direitos

constitucionais e agrave autoridade dos cocircnsules

[Oacuternito] ldquo[] Seraacute plena a tranquilidade que

desconhecedora do desembainhar da espada traraacute ao Laacutecio [] um segundo reinado de Numa o primeiro que aos exeacutercitos exultantes com as carnificinas e ainda inflamados com as guerras de Rocircmulo ensinou o esforccedilo da paz e ordenou que caladas as armas as trombetas soassem no meio das cerimocircnias religiosas e natildeo no meio das batalhas O cocircnsul jaacute natildeo deixaraacute de comprar a aparecircncia de uma honra fictiacutecia nem reduzido ao silecircncio

receberaacute fasces sem poder ou um tribunal ilusoacuterio mas restauradas as leis vigoraraacute plenamente o direito e um deus melhor [] eliminaraacute a eacutepoca de opressatildeordquo406

O Principado de Nero eacute contraposto ao anterior Calpuacuternio assinala a

substituiccedilatildeo dos assassinatos dos senadores por uma plena quietude Vale recordar

que a gestatildeo claudiana irracional jaacute havia sido criticada por Secircneca na

Apocolocyntosis e no De Clementia o que reflete novamente a concepccedilatildeo

positiva dos autores acerca do novo soberano ele viera para redimir o passado

infeliz407

Eacute essencial destacar tambeacutem que tal vinda no excerto eacute vinculada ao

retorno do reino de Numa Pompiacutelio e agrave morte do reino de Rocircmulo Mas por que

Numa e Rocircmulo De acordo com o Oxford Classical Dictionary (OCD) Numa

404

Regiatildeo mais profunda do mundo situada sob os proacuteprios infernos Na mitologia romana eacute o

local onde as diferentes geraccedilotildees divinas abandonavam os seus inimigos para serem castigados

(GRIMAL 2005 p 429-430) 405

WISEMAN 1982 p 58-59 406

[Ornytus] ldquoplena quies aderit quae stricti nescia ferri altera Saturni referet Latialia regna

altera regna Numae qui primus ouantia caede agmina Romuleis et adhuc ardentia castris

pacis opus docuit iussitque silentibus armis inter sacra tubas non inter bella sonare iam nec

adumbrati faciem mercatus honoris nec uacuos tacitus fasces et inane tribunal accipiet consul

sed legibus omne reductis ius aderit moremque fori uultumque priorem reddet et afflictum

melior deus auferet aeuumrdquo (Calp Ecl 163-74) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 62) 407

DAVIS 1987 p 41-42

117

foi o segundo dos sete reis que governaram Roma antes da fundaccedilatildeo da

Repuacuteblica Ele reinou de 715 a 673 aC sendo considerado um governante

paciacutefico creditado pelo estabelecimento do direito da lei e dos bons costumes

bem como pela criaccedilatildeo de alguns fundamentos religiosos a exemplo dos cultos de

Marte e Juacutepiter Numa era visto como a contraparte paciacutefica de Rocircmulo o seu

antecessor e lendaacuterio fundador de Roma que era tido como siacutembolo de conflito

civil devido ao assassinato do seu irmatildeo Remo A menccedilatildeo aos dois feita por

Calpuacuternio portanto carrega uma mensagem bem significativa Nero eacute o novo

Numa Pompiacutelio o anti-Rocircmulo o deus melhor que garantiria a observacircncia da

justiccedila afastando a Era decadente Sob o seu comando os cocircnsules natildeo teriam

mais falsas honras e a antiga tradiccedilatildeo republicana seria retomada408

Apoacutes abundantes manifestaccedilotildees de esperanccedilas Oacuternito finaliza a leitura da

profecia do Fauno gravada na casca da faia e convida o seu irmatildeo Coacuteridon a

cantaacute-la ao som da flauta a fim de que ela alcanccedilasse os ouvidos neronianos

Temos assim o encerramento da primeira Eacutecloga calpurniana e a sua imediata

sucessatildeo no acircmbito poliacutetico pela quarta Eacutecloga classificada como a poesia

central da obra409

Nela os irmatildeos Coacuteridon e Amintas compotildeem diversas canccedilotildees

com a flauta para Melibeu patrono de Coacuteridon no intuito de convencecirc-lo a incluir

este uacuteltimo nos ciacuterculos literaacuterios imperiais Dentro das canccedilotildees destacamos

quatro trechos nos quais Calpuacuternio mais uma vez alude ao episoacutedio da ascensatildeo

do princeps No primeiro Coacuteridon louva a Idade de Ouro renovada manifestando

a alegria da nova era em relaccedilatildeo ao passado sombrio ldquoadmito que disse isso oacute

Melibeu [] Agora os tempos jaacute satildeo outros e o deus natildeo eacute o mesmo A esperanccedila

jaacute nos sorri mais []rdquo410

No segundo os irmatildeos exaltam a juventude de Nero e

comparam a sua eloquecircncia com a de Apolo

[Coacuteridon] ldquoMas a mim que me sorria alegre e feliz com o seu augusto rosto aquele que o nosso mundo governa com sua

divindade propiacutecia e a paz perpeacutetua manteacutem com vigor juvenilrdquo

408

OCD 2012 p 1181 LEACH 1973 p 62 409

KARAKASIS 2016 p 48 410

[Corydon] ldquohaec ego confiteor dixi Meliboee sed olim non eadem nobis sunt tempora non

deus dem spes magis arridet []rdquo (Calp Ecl 429-31) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 79)

118

[Amintas] ldquoTambeacutem para mim acompanhado do eloquente Apolo Ceacutesar volva o seu olhar []rdquo411

A menccedilatildeo a Apolo parece ser uma toacutepica comum entre os autores

contemporacircneos a Nero Na Apocolocyntosis Secircneca jaacute havia evocado a figura do

deus para enaltecer a beleza o talento oratoacuterio e a integridade do imperador bem

como para frisar a conexatildeo entre o soberano Augusto e Apolo Ele o evoca no

intuito de legitimar e elevar o Principado vindouro Aqui Calpuacuternio estaacute

interessado no mesmo ponto ao colocar ldquoCeacutesar acompanhado do eloquente

Apolordquo ele projeta a benccedilatildeo divina para o novo governo posicionando Nero sob

o patronato apoliacutenico Em resumo temos novamente a sugestatildeo do renascimento

de uma Idade de Ouro (aurea aetas) paciacutefica e a indicaccedilatildeo de Apolo como

patrono do jovem imperador412

Mas natildeo apenas isso o fato de o princeps estar ao

lado de Apolo demonstra que o poeta o enxergava como um liacuteder divino em

disfarce humano Eacute o que ele demonstra nos versos posteriores

[Coacuteridon] ldquoTu igualmente oacute Ceacutesar quer sejas o proacuteprio Juacutepiter413 revestido de outra aparecircncia quer sejas qualquer outro deus ocultado sob uma imagem falsa e mortal (pois eacutes de fato um deus) governa peccedilo-te governa eternamente este mundo estes povosrdquo414

Ao ser associado a Juacutepiter divindade responsaacutevel por presidir os ceacuteus

Nero eacute colocado natildeo soacute em uma posiccedilatildeo divina como tambeacutem em um lugar de

comandante pastoral Ou seja sob a sua administraccedilatildeo o mundo pastoril viveria

fecundo Ao ouvir o seu nome a terra inerte se aqueceria e produziria flores as

aacutervores renasceriam e a seara abundante cresceria Os pastores jaacute natildeo receariam

mais trabalhar pois o jovem divino havia lhes propiciado terra farta segura e

411

[Corydon] ldquoat mihi qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore

pacem laetus et augusto felix arrideat orerdquo [Amyntas] ldquoMe quoque facundo comitatus

Apolline Caesar respiciat []rdquo (Calp Ecl 484-88) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 412

CHAMPLIN 2003 p 280 KARAKASIS 2016 p 251 413

ldquoJuacutepiter eacute o deus romano assimilado a Zeus Eacute por excelecircncia o grande deus do panteatildeo

romano Surge como a divindade do ceacuteu da luz divina das condiccedilotildees climateacutericas e tambeacutem do

raio e do trovatildeo []rdquo (GRIMAL 2005 p 261-262) 414

[Corydon] ldquotu quoque mutata seu Iuppiter ipse figura Caesar ades seu quis superum sub

imagine falsa mortalique lates (es enim deus) hunc precor orbem hos precor aeternus

populos regerdquo (Calp Ecl 4142-144) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 83)

119

paciacutefica415

Com medo de perder esses benefiacutecios o poeta pede aos deuses que

deixem Nero viver perpetuamente

[Amintas] ldquoPeccedilo-vos oacute deuses que a este jovem por voacutes enviado do ceacuteu (disso estou certo) o faccedilais regressar apoacutes uma longa vida ou antes que o liberteis da sua condiccedilatildeo humana e lhe concedais um fio celeste de um metal impereciacutevel que ele seja um deus e natildeo queira trocar o seu palaacutecio pelo ceacuteurdquo416

Apoacutes o pedido Coacuteridon e Amintas concluem as canccedilotildees Ao ouvi-las

Melibeu elogia a qualidade delas mostrando-se surpreso com a capacidade dos

dois pastores de escreverem versos tatildeo doces Coacuteridon agradece o elogio e roga a

Melibeu novamente que leve as canccedilotildees ao sagrado palaacutecio no Palatino417

Ateacute

aqui foi possiacutevel notar que Calpuacuternio eacute um poeta atento e sensiacutevel agrave realidade

sociopoliacutetica do seu tempo histoacuterico Contemporacircneo de uma nova era ele faz

questatildeo de expressar ora de maneira clara e incisiva ora de forma impliacutecita sua

felicidade com a ascensatildeo do princeps

A proacutexima Eacutecloga a ser examinada a seacutetima tornaraacute ainda mais niacutetida

essa empolgaccedilatildeo do poeta e representaraacute Coacuteridon deixando o mundo pastoril para

visitar Roma no desejo de conhecer o princeps pessoalmente Ao chegar agrave capital

do Impeacuterio esse primeiro logo se dirige ao anfiteatro ndash erguido por Nero ndash para

assistir a espetaacuteculos418

Ao entrar no edifiacutecio fica perplexo com sua imensidatildeo e

o descreve nas seguintes palavras

415

Calp Ecl 4108-116 4117-130 416

[Amyntas] ldquoa di precor hunc iuuenem quem uos (neque fallor) ab ipso aethere misistis post

longa reducite uitae tempora uel potius mortale resoluite pensum et date perpetuo caelestia fila

metallo sit deus et nolit pensare palatia caelordquo (Calp Ecl 4137-142) Traduccedilatildeo de Beato (1996

p 83) 417

Calp Ecl 4157-160 418

Cf Anexo C com o mapa da Roma neroniana

120

[Coacuteridon] ldquoVi elevar-se no ceacuteu um anfiteatro formado por um

entranccedilado de vigas quase dominando a rocha Tarpeia Depois de percorrer as enormes bancadas e as rampas de acesso [] cheguei ao local onde [] o povoleacuteu de roupa escura e coccedilada contemplava o espetaacuteculo [] [] Ali o centro da curva arena forma uma planiacutecie deixando no meio um espaccedilo delimitado por dois muros semicirculares Como hei-de contar-te agora

aquilo que eu proacuteprio a custo tive dificuldade em examinar nos seus pormenores a tal ponto me entusiasmou o esplendor circundante Estava eu de peacute imoacutevel e boquiaberto admirando toda esta maravilha no seu conjunto [] quando um velho que por acaso estava agrave minha esquerda disse lsquoPor que estaacutes tatildeo admirado oacute campocircnio ao contemplares toda esta magnificecircncia tu que ignoras o ouro e apenas conheces casas

humildes choccedilas e cabanas solitaacuteriasrsquo Cintilam agrave porfia os parapeitos revestidos de pedras preciosas e os poacuterticos cobertos de ouro No ponto onde o limite da arena proporciona o espetaacuteculo junto ao muro de maacutermore corre uma fieira de fustes ligados uns aos outros de esplecircndido marfim [] Entretecidas de fios de ouro brilham tambeacutem umas redes pendentes sobre a arena de dentes inteiros de elefantes []rdquo419

Taacutecito e Suetocircnio indicam que tal anfiteatro foi erigido no Campo de

Marte em 57 estendendo-se do Capitoacutelio onde ficava o cume Tarpeio ateacute o rio

Tibre420

Pela descriccedilatildeo de Coacuteridon verificamos o luxo e a grandeza da

construccedilatildeo traves entrelaccediladas que se dobravam entre montes sem fim parapeitos

revestidos de pedras preciosas um poacutertico recoberto de ouro muros marmoacutereos

com vigas de marfim e redes de ouro pendentes sobre o edifiacutecio Natildeo foi agrave toa

entatildeo que o campesino ficou ldquoboquiabertordquo com o que os seus olhos

testemunharam acostumado a viver proacuteximo agrave natureza de modo simples e

ruacutestico Coacuteridon natildeo conseguia assimilar a riqueza do monumento citadino

Juntamente ao vislumbre arquitetocircnico ele tambeacutem exibiu admiraccedilatildeo pelos

419

[Corydon] ldquouidimus in caelum trabibus spectacula tecircxtis surgere Tarpeium prope

despectantia culmen emensique gradus et cliuos lene iacentes uenimus ad sedes [] Qualiter

haec patulum concedit uallis in orbem et sinuata latus resupinis undique siluis inter continuos

curuatur concaua montes sic ibi planitiem curuae sinus ambit harenae et geminis medium se

molibus alligat ouum quid tibi nunc referam quae uix suffecimus ipsi per partes spectare suas

sic undique fulgor percussit Stabam defixus et ore patenti cunctaque mirabar necdum bona

singula noram [] Balteus en gemmis en illita porticus auro certatim radiant nec non ubi

finis harenae proxima marmoreo praebet spectacula muro sternitur adiunctis ebur admirabile

truncis et coit in rotulum tereti qui lubricus axe impositos subita uertigine falleret uacutengues

excuteretque feras Auro quoque torta refulgente retia quae totis in harenam dentibus exstant

dentibus aequatis []rdquo (Cal Ecl 723-56) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 99-100) 420

Tac Ann 13311 Suet Nero 121

121

animais selvagens que adentraram a arena421

lebres brancas javalis de chifres

alces raros touros422

bezerros do mar423

ursos424

e cavalos do rio425

Fear comenta que as construccedilotildees luxuosas eram uma caracteriacutestica tiacutepica

da Roma imperial sobretudo do periacuteodo neroniano O autor relata que algumas

inscriccedilotildees evergeacuteticas citadas por Suetocircnio e Marcial revelam a enorme quantia de

dinheiro gasta pelos principes em jogos e adornos para os edifiacutecios Decerto os

soberanos deviam julgar importante investir na esteacutetica dos preacutedios para

demonstrarem poder e conquistarem apoio puacuteblico Em especiacutefico as obras e os

jogos patrocinados por Nero eram muito populares a ponto da sua fama tornar-se

a do ldquomaior showman de todos os temposrdquo426

Calpuacuternio foi um dos que

vivenciaram essa fama A descriccedilatildeo detalhada que faz do anfiteatro a qual ocupa

57 versos em um poema de 84 reflete a seriedade com que Nero lidava com o

entretenimento bem como retrata os investimentos despendidos por ele na

execuccedilatildeo dos espetaacuteculos Nesse sentido entendemos que a seacutetima Eacutecloga eacute um

instrumento de divulgaccedilatildeo da accedilatildeo imperial como algo beneacutefico porque pinta um

liacuteder comprometido com a inovaccedilatildeo cultural e com um Principado materializador

da Era de Ouro427

Em concordacircncia com Dominik Garthwaite e Roche

concluiacutemos que a descriccedilatildeo minuciosa dos esplendores arquitetocircnicos e culturais

de Roma sob o patrociacutenio do novo Ceacutesar caracteriza positivamente o princeps428

421

Calp Ecl 759-68 422

Possiacutevel referecircncia a bisontes europeus (BEATO 1996 p 137) 423

Menccedilatildeo provaacutevel a focas (Plin Nat 8110) 424

Segundo Jennison (1922 p 73) trata-se de ursos brancos ou polares 425

Hipopoacutetamo (BEATO 1996 p 137) 426

FEAR 1994 p 272-273 427

Na contramatildeo dessa visatildeo Leach (1973 p 84-87) argumenta que a seacutetima Eacutecloga traz uma

criacutetica impliacutecita a Nero Para a autora a surpresa de Coacuteridon com o anfiteatro carrega a

insatisfaccedilatildeo do poeta com a tentativa imperial de controlar a natureza Ao vasculhar o mundo em

busca de maravilhas o princeps criou um novo cosmos dentro da estrutura do edifiacutecio Sua accedilatildeo foi uma amostra ldquo[] exagerada do poder do homem de dominar a natureza e domesticar o

selvagem []rdquo No lugar de um paraiacuteso Nero acabou criando uma perversatildeo da natureza um

universo de artifiacutecios que excluiu a flora e a fauna italianas Logo soacute restava a Coacuteridon ficar

ldquoboquiabertordquo pois discordava dessa nova disposiccedilatildeo do mundo Leach portanto lecirc a seacutetima

Eacutecloga natildeo como um louvor e sim como uma crocircnica de decepccedilatildeo No entanto eacute fundamental

frisar que a proacutepria autora alega a fragilidade da sua leitura o poema natildeo conteacutem nenhuma palavra

de repugnacircncia e nem versos diretamente ofensivos a Nero Ao contraacuterio tudo eacute disfarccedilado por

elogios O imperador caso se preocupasse em ler esse poema poderia muito bem se prender agrave

aparente lisonja impenetraacutevel agraves implicaccedilotildees irocircnicas ldquoO significado mais sombrio eacute reservado

aos leitores capazes de compartilhar a insatisfaccedilatildeo do poeta e ainda [ansiar] pela integridade do

ideal pastoral romanordquo Diante dessa afirmaccedilatildeo natildeo consideraremos a hipoacutetese de Leach na

anaacutelise das Eclogae pois acreditamos que Calpuacuternio longe de reprovar o esplendor do anfiteatro

utilizou-o como siacutembolo da prosperidade trazida pelo governo de Nero 428

DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 312

122

Prossigamos para o final das aventuras de Coacuteridon em Roma o momento

em que ele vecirc o imperador na arena

[Coacuteridon] ldquoOh Oxalaacute eu natildeo tivesse ido com roupa de campocircnio Teria contemplado mais de perto as minhas divindades Mas a minha roupa escura e coccedilada e a minha fiacutebula de fecho arqueado impediram-me de estar mais proacuteximo De qualquer modo consegui observaacute-lo em pessoa mesmo

longe e se a vista me natildeo enganou estou em crer que num soacute rosto se associam as feiccedilotildees de Marte429 e de Apolordquo430

Eacute bastante niacutetida aiacute a postura humilde de Coacuteridon ao se referir a Nero

mostrando tristeza por natildeo ter conseguido se aproximar deste uacuteltimo O

campesino que uma vez sonhara em ver de perto o imperador teve que se

contentar com o vislumbre de uma figura distante ndash distacircncia poreacutem que natildeo o

impediu de observar a beleza do princeps comparada agraves feiccedilotildees de Apolo e de

Marte A assimilaccedilatildeo a Apolo como vimos natildeo eacute nova dado o entusiasmo de

Nero pelas artes no entanto a associaccedilatildeo a Marte deus da guerra eacute nova Haacute uma

alusatildeo aqui segundo Fear e Verdiegravere agraves honras recebidas por Nero apoacutes a retirada

dos partos da Armecircnia em 55 Nessa ocasiatildeo o Senado emitiu votos de suacuteplicas

ao princeps concedeu-lhe o manto triunfal ofereceu-lhe ovaccedilotildees puacuteblicas e

mandou erigir uma estaacutetua sua no templo de Marte Vltor431

Vale destacar que os

dois deuses eram apreciados por Augusto com especial atenccedilatildeo A escolha das

divindades por Calpuacuternio entatildeo natildeo apenas sublinha as virtudes pessoais de

Nero como tambeacutem conecta o jovem governante ao melhor dos imperadores A

opccedilatildeo por Marte na visatildeo de Verdiegravere provavelmente agradou muito a Nero

tanto por causa do papel tutelar do deus quanto pela forccedila militar que evocava foi

uma escolha feliz432

Em siacutentese a leitura das Eclogae mostra que Calpuacuternio Siacuteculo apesar de

ser um poeta bucoacutelico era muito interessado nos aspectos poliacuteticos dos seus dias

429

Marte era o deus romano da guerra Era tambeacutem o guardiatildeo da agricultura e o deus da

juventude haja vista que a guerra constituiacutea uma atividade destinada aos jovens (GRIMAL 2005

p 291-292) 430

[Corydon] ldquoo utinam nobis non rustica uestis inesset uidissem propius mea numina sed mihi

sordes pullaque paupertas et adunco fibula morsu obfuerunt utcumque tamen conspeximus

ipsum longius ac nisi me uisus decepit in uno et Martis uultus et Apollinis esse putauirdquo (Cal

Ecl 779-85) Traduccedilatildeo de Braren (1996 p 101) 431

Para mais informaccedilotildees acerca do templo de Marte Vltor cf COARELLI 2007 p 111-113 432

FEAR 1994 p 276 VERDIEgraveRE 1992 p 37-38

123

escrevendo sobre eles em trecircs dos seus sete poemas433

Tais composiccedilotildees

anunciaram atraveacutes do miacutetico Fauno a chegada da nova Idade de Ouro ao

Impeacuterio acompanhada por paz justiccedila e ordem Divulgaram tambeacutem que um deus

melior regeria o populus romanus em consonacircncia com os tempos do rei Numa

Pompiacutelio e do princeps Augusto E noticiaram ainda que o luxo e a prosperidade

seriam as marcas principais da nova era as quais aumentariam o esplendor

arquitetocircnico e cultural da capital Os versos do poeta desse modo concebem a

ascensatildeo de Nero como um momento altamente promissor refletindo os

acontecimentos do passado enquanto sonham com o futuro Em outras palavras

as Eclogae comeccedilam e terminam propagando os benefiacutecios da nova lideranccedila

poliacutetica a chegada do Nero prodigioso e do Nero construtor Os elogios satildeo

irrestritos e copiosos o panegiacuterico eacute expliacutecito o laus Neronis eacute sincero

A anaacutelise das Eclogae revela ademais o modo imitativo como Calpuacuternio

Siacuteculo utilizou a dimensatildeo retoacuterica da inuentio para compor sua estruturaccedilatildeo

discursiva Conforme mencionamos as fontes analisadas nesta tese pertencem ao

gecircnero epidiacutetico no qual o orador usa o passado para refletir sobre o presente

Rezende e Sullivan explicam que para desenvolver esse processo o orador exalta

e intensifica valores culturais a fim de por exemplo preservar a estabilidade

poliacutetica Tal preservaccedilatildeo estava nos tempos antigos vinculada tambeacutem agrave forma

como o orador representava determinado indiviacuteduo (no caso o imperador) que

seria celebrado por suas virtudes ou censurado por seus viacutecios Resumindo os

oradores epidiacuteticos caracterizavam personalidades a partir de qualidades morais

Caso as qualidades fossem admiraacuteveis o indiviacuteduo seria fonte de inspiraccedilatildeo e

motivo de emulaccedilatildeo pois seu governo traria estabilidade434

Eacute exatamente isso

que Calpuacuternio faz nas Eclogae Ele resgata valores culturais do passado e celebra

os feitos do princeps-modelo (Augusto) de quem o imperador Nero eacute mais do que

imitaccedilatildeo ele o supera e se torna o proacuteprio soberano a ser imitado Secircneca segue a

mesma linha como vimos O seu Nero da Apocolocyntosis tambeacutem possuiacutea as

qualidades de Augusto mas as superava como fica ainda mais claro com o seu

Nero do De Clementia

Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca assim fazem uso de uma mesma toacutepica

apresentam o novo governante que sucede um periacuteodo de trevas e desorganizaccedilatildeo

433

SANTOS 2003 p 94 434

REZENDE 2010 p 113-114 SULLIVAN 1989 p 5-21

124

isto eacute um favor dos deuses que instaura uma nova ordem retomada dos tempos

antigos uma nova era de justiccedila e prosperidade Contudo natildeo devemos

simplificar a utilizaccedilatildeo dessa toacutepica como mera repeticcedilatildeo e muito menos como

falso elogio A proacutepria estrutura da toacutepica gera um entrelaccedilamento de

temporalidades e uma especificidade da toacutepica aplicada a Nero passado elevado

ruptura com guerras civis ordem retomada com Augusto e instauraccedilatildeo de um

grande Impeacuterio pela forccedila militar ruptura com maus imperadores e instauraccedilatildeo

de um Impeacuterio ainda maior pela paz e pela arte Em outros termos o uso da toacutepica

por Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca deixa claro que ela eacute por definiccedilatildeo lugar-comum

mas natildeo eacute uma repeticcedilatildeo vazia ela produz elementos proacuteprios que entram em

disputa para estabelecer a especificidade de Nero e a sua inserccedilatildeo em uma

tradiccedilatildeo comum que ganha novo sentido com sua presenccedila ndash no caso desses

autores uma presenccedila fortemente positiva

Um elemento especiacutefico de tal construccedilatildeo surge de modo destacado em

Calpuacuternio Siacuteculo a arte como parte de um projeto poliacutetico de afirmaccedilatildeo da

pacificaccedilatildeo e da unificaccedilatildeo do Impeacuterio Esse dado valorizado pela Historiografia

recente como vimos parte de uma leitura das fontes do seacuteculo II mas jaacute havia

sido colocado em disputa desde o comeccedilo do Principado de Nero como atestam

as Eclogae ndash sobretudo a seacutetima Se em um poeta da eacutepoca neroniana esse traccedilo

eacute visto como algo positivo e libertador em autores posteriores como Suetocircnio e

Taacutecito seraacute visto como algo desmedido e como fonte de opressatildeo As construccedilotildees

do princeps em Calpuacuternio Siacuteculo satildeo a grandeza de Roma e em Suetocircnio e

Taacutecito satildeo mostras de exagero e ruiacutena Todavia nosso objetivo natildeo eacute determinar

que fonte seguir e qual eacute a verdade oculta sobre Nero e sim perceber como a

constituiccedilatildeo de toacutepicas eacute apropriada pelos autores antigos que inserem nelas

modificaccedilotildees mas sem romper com o passado Essa allelopoiesis faz com que

cada autor compreenda seu proacuteprio tempo a partir do entendimento que constroacutei

do(s) passado(s) e este(s) por sua vez reorganiza(m) o entendimento do seu

proacuteprio tempo Presente e passado(s) se constroem mutuamente e de forma

indissociaacutevel Nesse sentido Nero daacute um novo sentido ao passado romano

especialmente a Augusto e gera um novo entendimento de Nero

125

Lucano Pharsalia

A partir daqui comeccedilaremos o exame da uacuteltima fonte contemporacircnea ao

princeps a Pharsalia composta por Marco Aneu Lucano Os poucos fatos

conhecidos da vida desse poeta derivam de duas biografias antigas uma de

autoria suetoniana denominada De Viris Illustribus e outra atribuiacuteda a um

gramaacutetico chamado Vacca conhecida como Expositor Lucani Aleacutem de tais

testemunhos existem tambeacutem informaccedilotildees disponiacuteveis nas obras de quatro

autores latinos Estaacutecio Marcial Taacutecito e Diatildeo Caacutessio

Com base nas fontes sabemos que Lucano era natural da cidade de

Coacuterdoba proviacutencia romana da Beacutetica localizada no sul da atual Espanha435

Nasceu no dia trecircs de novembro de 39 em uma das famiacutelias mais ilustres e ricas

da regiatildeo seu pai Marco Aneu Mela um rico equestre era filho do renomado

orador Secircneca o Velho e irmatildeo do filoacutesofo Secircneca o Jovem ndash jaacute discutido neste

capiacutetulo ndash que como destacamos anteriormente tambeacutem era nascido em

Coacuterdoba Beacutetica436

Quando Lucano era crianccedila seus pais decidiram se mudar

para Roma o que lhe possibilitou estudar latim grego retoacuterica e filosofia estoica

sendo as duas uacuteltimas ensinadas por Aneu Cornuto escravo liberto do seu tio

Secircneca437

Os relatos antigos comentam que ele rapidamente revelou enorme

destreza mostrando-se superior a todos seus colegas e instrutores438

Ao

completar 19 anos por volta do ano 58 viajou para Atenas no intuito de finalizar

sua formaccedilatildeo e laacute permaneceu pouco tempo pois Nero receacutem-entronado

solicitou o seu retorno439

De volta a Roma recebeu trecircs grandes favores

imperiais foi designado questor440

foi nomeado membro do Coleacutegio dos

Aacuteugures441

e foi escolhido como integrante do grupo literaacuterio do princeps442

Esse

grupo foi formado pelo soberano com os propoacutesitos de conhecer os talentos

435

Mart Ep 1619 Stat Silv 2729 Para mais dados biograacuteficos de Lucano cf AHL 1976 p

35-46 FANTHAM 2011 p 3-20 436

Vac 3 Vac 2 Vac 1 437

Vac 4-5 438

Stat Silv 2755-61 439

DUFF 1962 p x VIEIRA 2011 p 15 440

Vac 9-10 441

AHL 1976 p 37 Os aacuteugures eram os sacerdotes responsaacuteveis pela interpretaccedilatildeo do

comportamento dos animais na busca de pressaacutegios a exemplo do voo dos paacutessaros (ABBOTT

1901 p 159) 442

VIEIRA 2011 p 15

126

poeacuteticos da eacutepoca e de divulgar os seus proacuteprios443

Natildeo demorou para Lucano

demonstrar a sua genialidade e atrair a atenccedilatildeo do imperador o qual logo se

interessou em estabelecer um viacutenculo amigaacutevel com o poeta Vale destacar que os

dois tinham uma diferenccedila de idade de apenas dois anos (Nero era o mais velho)

e ambos nutriam uma paixatildeo aacutevida por literatura444

A amizade entre eles assegurou conquistas importantes a Lucano como o

precircmio de melhor poesia nos jogos Neronia do ano 60 devido agrave declamaccedilatildeo de

versos elogiosos ao soberano (Laudes Neronis)445 e a redaccedilatildeo de inuacutemeros

trabalhos entre 60 e 63 todos infelizmente perdidos Iliacon (Poema sobre a

Guerra de Troia) Catachtonion (Poema sobre a Descida aos Infernos) De

Incendio Vrbis (Sobre o Incecircndio da Cidade) Medea (Medeia) Saturnalia Silvae

(Silvas) epigramas libretos para pantomimas e os dez cantos da Pharsalia446

Todas as obras estavam em total sintonia com as predileccedilotildees culturais de Nero

que era apaixonado por mateacuteria de leve entretenimento447

As relaccedilotildees entre Lucano e o soberano mantiveram-se cordiais ateacute o ano de

63 Contudo em algum momento no final de 63 ou no iniacutecio de 64 a amizade

entre eles comeccedilou a deteriorar As razotildees para tanto natildeo satildeo esclarecidas pelas

fontes que nos fornecem somente dados escassos e confusos Ahl defende a

hipoacutetese de que a publicaccedilatildeo do trabalho De Incendio Vrbis no qual Lucano

supostamente descreveu o incecircndio de Roma e atribuiu a culpa a Nero foi o que

motivou o desentendimento448

Seja como for Nero impocircs ao poeta a proibiccedilatildeo de

recitar versos em puacuteblico fato que marcou o fim da sua carreira449

Por causa

disso ele se juntou agrave conspiraccedilatildeo pisoniana na tentativa de destronar o

imperador A trama foi descoberta e vaacuterios dos envolvidos cometeram suiciacutedio

como forma de natildeo sofrerem penas mais duras que recaiacutessem inclusive sobre

seus familiares e amigos Assim em 15 de abril de 65 Lucano cometeu suiciacutedio

natildeo tendo completado ainda 26 anos450

443

Tac Ann 1416 444

JOYCE 1993 p x 445

Vac 13 446

PLESSIS 1909 p 550-552 447

VIEIRA 2018 p 5 448

No apecircndice de Lucan An Introduction Ahl (1976 p 333-354) explica melhor essa hipoacutetese e

apresenta o suposto conteuacutedo do livro 449

Tac Ann 1549 Vac 14 450

Tac Ann 1570

127

Foi no meio desse contexto turbulento que o poeta publicou os trecircs

primeiros cantos da Pharsalia451

um poema de dez cantos com 7386 versos452

Nele relata as vicissitudes da guerra civil ocorrida entre Juacutelio Ceacutesar e Pompeu

durante 49 e 48 aC descrevendo desde a travessia de Ceacutesar do Rubicatildeo ateacute a

fuga e o assassinato de Pompeu no Egito O ponto alto da histoacuteria eacute a batalha de

Farsaacutelia e a obra possui as caracteriacutesticas tradicionais de um eacutepico como o uso de

hexacircmetros do tom elevado e da narrativa longa e contiacutenua453

Eacute repleta tambeacutem

de belas descriccedilotildees figuras retoacutericas prodiacutegios sonhos e preciosismos O

intrigante eacute que esses elementos claacutessicos satildeo empregados por Lucano com base

em uma loacutegica subversiva Os estudiosos comentam que ele desafia os aspectos da

eacutepica claacutessica ao fugir da textura mitoloacutegica e acrescentar tensotildees poliacuteticas

morais e filosoacuteficas agrave sua narrativa454

adiccedilatildeo que conforme Hardie insere a

Pharsalia em uma complexa relaccedilatildeo entre a fantasia poeacutetica e a realidade

histoacuterica Por exemplo as accedilotildees descritas na obra satildeo todas movidas por agentes

humanos e natildeo por entidades divinas e os deuses aparecem apenas para

contemporizar as ambiccedilotildees humanas455

ndash ou seja natildeo haacute lugar de destaque na

Pharsalia para os deuses romanos como os responsaacuteveis pelo desenrolar das

accedilotildees eles estatildeo ausentes e imoacuteveis ignorando as calamidades da guerra civil

Enfim o importante eacute entender que o objetivo do poeta ao elaborar o eacutepico foi

dar centralidade agraves accedilotildees humanas e aos seus resultados grandiosos tanto positiva

quanto negativamente sem que isso estivesse conectado agrave agecircncia divina Lucano

entra constantemente no seu texto para nos lembrar de quem o estaacute criando

estrateacutegia que aponta a sua posiccedilatildeo subjetiva456

Ao lermos a Pharsalia notamos de imediato a contestaccedilatildeo por parte do

poeta de certos aspectos positivos do passado recente de Roma e dos

protagonistas nos eventos decisivos desse tempo Nos versos ele apresenta a

Roma humana a cidade lotada de cidadatildeos que sofrem com as consequecircncias da

guerra civil O ambiente eacute o de uma luta que derrubou a res publica e provocou o

451

Originalmente o tiacutetulo dado ao poema por Lucano foi Bellum Ciuile (Guerra Civil) O nome

Pharsalia aparece apenas no nono canto em que o poeta utiliza as palavras Pharsalia nostra

(ldquonossa Farsaacuteliardquo) Todavia a partir do seacuteculo XVII essa expressatildeo foi adotada pelos tradutores

como o tiacutetulo da obra uso que persiste ateacute hoje e que adotaremos (VIEIRA 2011 p 20-21) 452

Os outros sete cantos foram divulgados apoacutes a morte do poeta (AHL 1976 p 41-42) 453

CARDOSO 2011 p 6-22 Sobre o gecircnero eacutepico em Lucano cf DINTER 2013 p 9-49 454

BRAMBLE 1982 p 536-537 WILLIAMS 2017 p 97 455

HARDIE 2013 p 225 456

HENDERSON 1987 p 149

128

fim da liberdade colocando os romanos sob o controle de tiranos os Juacutelio-

Claacuteudios Segundo Bartsch a Pharsalia nada mais eacute do que um ataque ao

cesarismo e agrave ficccedilatildeo de que o governo criado por Augusto restauraria a liberdade

Eacute um poema que retrata o colapso do mundo em que a libertas tivera uma chance

proclamando a desesperanccedila no futuro457

Eacute precisamente dentro de tal conjuntura

ampla com caraacuteter predominantemente negativo ou ateacute mesmo caoacutetico que

aparecem as menccedilotildees a Nero O princeps eacute citado somente no proecircmio da obra

em cinco momentos e os trechos satildeo interpretados pelos estudiosos de modos

conflitantes Diante dessa situaccedilatildeo adotaremos duas atitudes a priori

discutiremos as referecircncias considerando-as como ilustraccedilotildees da ascensatildeo de

Nero e como exemplares da categoria Nero prodigioso a posteriori

explanaremos as interpretaccedilotildees existentes justificando o nosso posicionamento ndash

como disse Bartsch a Pharsalia eacute um poema ldquodifiacutecil de lerrdquo458

Na primeira referecircncia Lucano divulga a ideia de que os sofrimentos da

guerra civil prepararam a vinda de Nero Vejamos

Pois se agrave vinda de Nero natildeo diversa o Fado459

via encontrou se caro se compram dos deuses reinos eternos e servir ao seu Tonante natildeo pocircde o ceacuteu sem guerrear antes Titatildes jaacute nada deuses lamentamos com tal precircmio infacircmia e crime agradam460

Os danos e os campos manchados de sangue dos conflitos satildeo tratados de

forma valiosa porque prepararam o caminho para o governo de Nero461

Em

concordacircncia com Griffin o que Lucano expressou no excerto foi basicamente a

visatildeo comum da aristocracia romana de que a Repuacuteblica e as libertas eram

preferiacuteveis mas que o Principado era uma necessidade praacutetica para a estabilidade

e a paz O poeta parece sugerir que embora a ruiacutena da Repuacuteblica fosse algo

457

BARTSCH 1997 p 5-6 458

BARTSCH 1997 p 4 459

Fados satildeo as divindades do destino como por exemplo as Parcas (GRIMAL 2005 p 164) 460

quod si non aliam uenturo fata Neroni inuenere uiam magnoque aeterna parantur regna deis

caelumque suo seruire Tonanti non nisi saeuorum potuit post bella gigantum iam nihil o

superi querimur scelera ipsa nefasque hac mercede placent (Luc 132-37) Traduccedilatildeo de Vieira

(2011 p 79) 461

HOLMES 1999 p 77

129

negativo valeu a pena porque nos deu Nero462

Infelizmente o destino natildeo

conseguiu encontrar outro caminho para a chegada do princeps senatildeo o penoso

Mas na visatildeo do poeta isso natildeo representava um problema pois a recompensa foi

grande Nero traria paz ao Impeacuterio Essa noccedilatildeo compensatoacuteria continua nos versos

seguintes nos quais Lucano canta

Que Farsaacutelia atulhe

os vis campos de sangue e sacie almas Puacutenicas que funesta na extrema Munda a luta ocorra a isso a fome de Peruacutesia463 e o preacutelio em Muacutetina464 se somem Ceacutesar e os navios que a dura Lecircucade465 feriu e as servis guerras no Etna ardente466 muito Roma afinal deve agraves lutas civis feitas prrsquoa ti467

Notemos que a fome sofrida pelos aliados de Marco Antocircnio em Peruacutesia o

assassinato de Bruto em Moacutedena os navios abatidos nas rochas de Lecircucade e os

embates proacuteximos ao Etna justificam-se pela ascensatildeo de Nero Roma deve agraves

guerras civis a daacutediva do novo imperador Foi preciso haver periacuteodos de

dificuldades e de perdiccedilatildeo para que o princeps salvador instaurasse uma nova

era468

ndash aquela que de fato trouxe a liberdade e o fim das contendas Para Rudich

esse elogio foi pensado por Lucano como um estratagema poliacutetico cujo intento

era afastar Nero do resto dos odiados Ceacutesares mostrando o quatildeo melhor ele

era469

Sobre o trecho ainda eacute importante comentar que as alusotildees agraves guerras civis

natildeo apenas se limitam agraves batalhas entre Ceacutesar e Pompeu posicionadas no centro

do poema mas tambeacutem envolvem conflitos posteriores que datildeo um tom negativo

aos que se proclamavam tiranicidas e aos que se afirmavam herdeiros de Ceacutesar

462

GRIFFIN 2001 p 159 463

Peruacutesia cidade italiana onde no ano 40 aC Otaviano sitiou Luacutecio Antocircnio e Fuacutelvia aliados

de Marco Antocircnio ateacute fazecirc-los se entregarem por fome (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 17) 464

Moacutedena (ou Muacutetina) cidade ao norte da Peniacutensula itaacutelica onde em 43 aC Marco Antocircnio

matou Bruto o assassino de Juacutelio Ceacutesar (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 15) 465

Lecircucade grupo de ilhas rochosas situado no Mar Jocircnico onde aconteceu a batalha naval de

Aacutecio na qual Otaviano venceu Marco Antocircnio (VIEIRA 2018 p 27) 466

Guerras sucedidas no mar da Siciacutelia em 36 aC entre Otaviano e Pompeu onde o uacuteltimo foi

derrotado As batalhas transcorreram sob as chamas do vulcatildeo Etna (RICHARDSON 2012 p 57) 467

Diros Pharsalia campos inpleat et Poeni saturentur sanguine manes ultima funesta

concurrant proelia Munda his Caesar Perusina fames Mutinaeque labores accedant fatis et

quas premit aspera classes Leucas et ardenti seruilia bella sub Aetna multum Roma tamen

debet ciuilibus armis quod tibi res acta est (Luc 138-45) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 79-80) 468

CASALI 2011 p 86 469

RUDICH 1997 p 115

130

No caso de Augusto haacute uma criacutetica impliacutecita agraves suas accedilotildees sobretudo no conflito

contra Marco Antocircnio pois a vitoacuteria em Aacutecio trouxe o fim da liberdade

Nos versos subsequentes o poeta anuncia a futura apoteose do soberano

Ao perfazeres tua estada

velho aos astros iraacutes e o paccedilo eteacutereo eleito te acolheraacute com ceacuteu festivo quer te agrade tomar o cetro ou conduzir de Febo a biga flamiacutegera e luzir com chama errante a terra sem medo do mudado sol Ceder-te-aacute o paccedilo todo nume e teraacutes por direito ser qualquer deus e pocircr teu reino onde quiseres470

A passagem expressa claramente o desejo lucaniano de que Nero buscasse

seu lugar no ceacuteu o mais tardar possiacutevel apoacutes eliminar as pragas beacutelicas da terra

Ao adentrar os reinos celestes elevar-se-ia do status humano para o divino sendo

recebido com imensa alegria Laacute os deuses o deixariam escolher qual papel

desempenharia as prerrogativas de Juacutepiter regendo o panteatildeo e o clima com o

seu cetro ou as de Febo conduzindo a sua biga e iluminando a terra471

Todas as

possibilidades estariam agrave disposiccedilatildeo do princeps ele poderia escolher o que

desejasse ateacute mesmo o local onde instalaria a sede do seu poder divino

Uma anaacutelise mais detalhada do trecho nos permite observar o

aprofundamento do elogio de Lucano Na mitologia romana Juacutepiter tambeacutem era

conhecido como a divindade que venceu os monstros Gigantes encerrando o ciclo

das forccedilas destrutivas e trazendo o reinado da paz eterna472

Febo (ou Apolo) por

sua vez era conhecido como o deus da justiccedila da lei e da ordem Esses

esclarecimentos deslindam o pensamento do poeta Juacutepiter e Febo foram

erradicadores de iacutempetos desordenadores em seu tempo limpando o mundo das

oposiccedilotildees Da mesma forma o princeps extirparia os conflitos civis instituindo a

paz O elogio a Nero na visatildeo de Thompson vai ainda aleacutem Por traacutes dele haacute

uma associaccedilatildeo com Augusto este soberano eliminou os monstruosos elementos

conflituosos do Impeacuterio e instaurou a pax Augusta que Nero agora presidia Nero

470

te cum statione peracta astra petes serus praelati regia caeli excipiet gaudente polo seu

sceptra tenere seu te flammigeros Phoebi conscendere currus telluremque nihil mutato sole

timentem igne uago lustrare iuuet tibi numine ab omni cedetur iurisque tui natura relinquet

quis deus esse uelis ubi regnum ponere mundi (Luc 145-52) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 471

NOCK 1926 p 18 472

Filhos de Gaia (a Terra) seres monstruosos na aparecircncia na forccedila e na estatura (GRIMAL

2005 p 184-185)

131

assim eacute uma espeacutecie de Augusto por excelecircncia mas um Augusto livre da maacute

fama de Augusto advinda da sua participaccedilatildeo na discoacuterdia civil473

Com o soberano jaacute acolhido no ceacuteu a humanidade enfim poderia viver

tranquila ldquoEntatildeo depondo as armas que os homens se cuidem e todos se amem

mutuamente e a paz geral trave de Jano belicoso as feacuterreas portasrdquo474

O Templo de Jano era um pequeno edifiacutecio no canto nordeste do Foacuterum

Romano cujo fechamento simbolizava paz eou cessaccedilatildeo de conflitos475

A ideia

de mencionaacute-lo eacute retirada pelo poeta da Eneida na qual Virgiacutelio afirma que

Augusto depocircs as guerras ao vencer em Aacutecio cerrando as portas do Templo

Entatildeo deposta a guerra

Se amolgue a feacuterrea idade a encanecida Feacute mais Vesta os irmatildeos Quirino e Remo Ditem leis Jano feche as diraacutes portas

Com trancas e aldrabotildees []476

De acordo com a Res Gestae Augusto fechou o Templo em trecircs ocasiotildees

trazendo para Roma a nova Idade de Ouro477

Jaacute no governo de Nero as portas

foram cerradas em duas oportunidades para comemorar o fim da guerra Parta e

para celebrar a paz da Armecircnia conquistada em 66 apoacutes a morte de Lucano478

Mesmo natildeo tendo presenciado os eventos Lucano evoca o simbolismo do

fechamento dos portotildees para sugerir que o princeps retomaria o periacuteodo aacuteureo do

passado e afastaria seu governo das contendas Trata-se portanto de uma

tentativa de representar Nero como um ldquosegundo Augustordquo o melhor exemplo da

famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia e tambeacutem uma tentativa de mostraacute-lo como superior a ele

pois a paz que Nero traria natildeo seria fruto de guerras sangrentas479

Eacute essencial

demarcar contudo que esse elogio a nosso ver natildeo deve ser associado apenas ao

fato de Nero evitar as guerras afinal houve sim guerra durante o Principado de

473

THOMPSON 1964 p 148-151 474

tum genus humanum positis sibi consulat armis inque uicem gens omnis amet pax missa per

orbem ferrea belligeri conpescat limina Iani (Luc 160-62) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 475

COARELLI 2007 p 51 476

Aspera tum positis mitescent saecula bellis cana Fides et Vesta Remo cum fratre Quirinus

iura dabunt dirae ferro et compagibus artis claudentur Belli portae [] (Verg A 1291-294)

Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 34) 477

Aug RG 13 478

A fim de celebrar essas conquistas Nero mandou cunhar diversas moedas Para uma breve nota

sobre as cunhagens cf BARENGHI 19992016 479

MARTINDALE 1984 p 72

132

Nero cuja paz foi celebrada depois da morte de Lucano A guerra que o poeta

criacutetica ndash e que deve ser evitada ndash eacute aquela desmedida movida internamente e que

tem por motivaccedilatildeo a gloacuteria pessoal Esta na concepccedilatildeo de Lucano natildeo era a

guerra que Nero buscava

Ao concluir o proecircmio da Pharsalia Lucano elogia Nero uma uacuteltima vez

Mas jaacute me eacutes nume E se te encarno nem quisera

Eu vate que o inquieto deus sondasse arcanos Cirreus480 nem mesmo deslocar Baco481 de Nisa482 Prsquora dar arroubo a carmes Romanos tu basta483

O princeps eacute a inspiraccedilatildeo de que o poeta necessita para escrever o restante

da Pharsalia Apolo e Baco deuses conhecidos por seus poderes criativos satildeo

dispensados Nero eacute o ldquomusordquo do poema aquele que concede a Lucano as forccedilas

para compor cantos romanos484

Esse elogio agrave primeira vista pode parecer

simplista mas se olharmos com atenccedilatildeo veremos uma subversatildeo do gecircnero eacutepico

O poeta adota como inspiraccedilatildeo uma figura humana e natildeo uma figura divina eou

mitoloacutegica ndash isto eacute ele troca o divino pelo humano dando a Nero as atribuiccedilotildees

divinas Para Ahl essa deificaccedilatildeo do imperador ocorrida dentro de uma obra na

qual os deuses natildeo exercem poder mostra que Lucano queria oferecer uma honra

simboacutelica muito elevada ao soberano485

Sobre o trecho cabe mencionar ainda

que nos poemas eacutepicos a comeccedilar pelos homeacutericos as divindades atuam ao lado

dos homens buscando favorececirc-los na guerra Em Lucano poreacutem os deuses natildeo

atuam na guerra sangrenta ndash que por sua vez eacute condenada pelo poeta Eacute Nero

quem tem sua apoteose antecipada e que vai agir em favor dos homens dando fim

agrave guerra civil No final das contas Ceacutesar e Augusto ateacute podem ter recebido gloacuterias

por terem vencido as guerras civis mas Nero tem uma gloacuteria ainda maior proacutepria

de um deus que eacute a de dar fim agraves contendas

480

Cirreus se refere a Cirra localidade proacutexima ao Oraacuteculo de Delfos dedicado a Apolo (VIEIRA

2011 p 83) 481

Tambeacutem denominado Dioniso era identificado como o deus do vinho do teatro e do ecircxtase

miacutestico (GRIMAL 2005 p 121-122) 482

Cidade localizada no extremo oeste da Traacutecia onde Baco teria nascido (JOYCE 1993 p 314) 483

sed mihi iam numen nec si te pectore uates accipio Cirrhaea uelim secreta mouentem

sollicitare deum Bacchumque auertere Nysa tu satis ad uires Romana in carmina dandas (Luc

163-66) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81-82) 484

HOLMES 1999 p 75 485

AHL 1976 p 48

133

Todos esses elogios a Nero contidos no proecircmio da Pharsalia satildeo objetos

de um feacutervido e longo debate no qual os classicistas tentam desvendar as reais

intenccedilotildees do poeta ao escrevecirc-los De modo geral as opiniotildees podem ser

organizadas em dois grupos De um lado estatildeo aqueles que leem o panegiacuterico

como irocircnico ou artificioso sob o argumento de que ele eacute muito exagerado para

ser veriacutedico Como ilustraccedilatildeo temos os trabalhos de Marti Griset Conte Ahl

Croisille Morford e Vieira486

De outro lado estatildeo aqueles que confiam na

sinceridade do proacutelogo sustentando uma composiccedilatildeo bipartite da Pharsalia

sendo os trecircs primeiros cantos elaborados antes da ruptura entre Nero e Lucano e

os cantos restantes redigidos elaborados apoacutes a ruptura ndash o que explicaria a

existecircncia nestes uacuteltimos de criacuteticas ao cesarismo Aiacute incluem-se as produccedilotildees

de Levi Brisset Dilke Grimal Thompson Jenkinson Williams Dewar e

Cardoso487

Semelhantemente a esses autores tambeacutem acreditamos que o proecircmio

foi pensado e divulgado por Lucano como um elogio sincero Por mais

extravagante que ele pareccedila devemos nos lembrar de que ao concebecirc-lo o poeta

utilizou a linguagem convencional da eacutepoca empregando noccedilotildees bastante

difundidas488

Em outras palavras o elogio com os seus elementos literaacuterios

estava integrado aos modos de expressatildeo padrotildees do Principado489

Lucano entatildeo

conhecia a ldquomoda literaacuteriardquo do periacuteodo neroniano e precisamente por conhececirc-la

podia se recusar a usaacute-la Ele podia por exemplo ter escrito uma elegia amorosa

ao inveacutes de um eacutepico490

Como bem notou Masters ldquoLucano tinha uma escolha

ele natildeo precisava escrever este poemardquo491

Isso nos leva a crer que o poeta de

alguma forma considerava Nero um governante pacificador e divino Enfim natildeo

haacute razatildeo convincente para supor que o proecircmio da Pharsalia seja desfavoraacutevel ao

princeps ldquodenunciar o imperador no livro de abertura de um eacutepico seria

desaconselhaacutevel possivelmente ateacute fatal para o poeta e o poemardquo492

486

MARTI 1945 p 352-376 GRISET 1955 p 56-61 p 134-138 p 203-238 CONTE 1966 p

42-53 AHL 1976 p 41 CROISILLE 1982 p 75-82 MORFORD 1985 p 2003-2031

VIEIRA 2011 p 36 487

LEVI 1949b p 71-78 BRISSET 1964 DILKE 1972 p 62-82 GRIMAL 1960 p 296-305

THOMPSON 1964 p 147-153 JENKINSON 1974 p 8-9 WILLIAMS 1978 p 163-165

DEWAR 1994 p 199-211 CARDOSO 2011 p 20 488

NOCK 1926 p 18 489

DEWAR 1994 p 209 490

RUDICH 1997 p 117 491

MASTERS 1992 p 7 492

AHL 1976 p 54

134

Portanto entendemos que Lucano construiu uma obra na qual expressa

uma visatildeo otimista sobre Nero e seu governo ndash perspectiva erigida por meio do

uso ldquorevolucionaacuteriordquo da eacutepica reconstituiacuteda agrave luz da sua proacutepria inuentio493

De

acordo com Leite o poeta abandonou a posiccedilatildeo padratildeo do narrador eacutepico

desinteressado expressando claramente suas preferecircncias opiniotildees e sofrimentos

Sua voz eacute apaixonada e interessada em oposiccedilatildeo agrave voz descolorida de Virgiacutelio

Lucano tambeacutem natildeo seguiu a textura mitoloacutegica usual afirma Leite Como jaacute

dissemos ele natildeo elegeu uma Musa como inspiraccedilatildeo para seus versos e sim um

homem o imperador ndash destinado agrave apoteose A Farsaacutelia eacute o canto de um homem

inspirado por outro homem494

Por uacuteltimo ao substituir as deidades pelo princeps

o poeta tornou a Pharsalia mais proacutexima da historia do que da fabula no sentido

de que coube aos humanos o protagonismo nos eventos Sua obra assim

aproximou-se do carmen togatum de cunho factual que resgata acontecimentos

do passado para justificar o presente Nesse sentido o Nero prodigioso de Lucano

tornou-se bem diferente dos Neros prodigiosos de Secircneca e Calpuacuternio Siacuteculo O

soberano representado pelo filoacutesofo e pelo poeta bucoacutelico era prodigioso no

presente porque de alguma forma era esperado algo dele no futuro ndash ou seja era

esperado que ele se comportasse de igual modo a Augusto ou que o superasse Jaacute

em Lucano Nero eacute representado como prodigioso no presente porque ele eacute o

resultado do passado Em outras palavras foram as nefastas guerras civis que

propiciaram a ascensatildeo de Nero Natildeo haacute preocupaccedilatildeo com o futuro Nero eacute uma

consequecircncia do passado e natildeo uma expectativa

Destacamos tambeacutem que para Lucano a paz e o natildeo envolvimento do

princeps com as guerras que marcaram duramente a histoacuteria romana colocam

Nero em uma posiccedilatildeo de destaque muito positiva a qual lhe asseguraria gloacuterias jaacute

alcanccediladas por seus antecessores Ceacutesar e Augusto ambos diui Todavia na visatildeo

do poeta alcanccedilar essa gloacuteria pela paz eacute algo uacutenico e isso coloca Nero em uma

posiccedilatildeo ainda mais elevada Assim o tema do afastamento de Nero dos conflitos

entra para o repertoacuterio de construccedilatildeo dos retratos do princeps gerando ao mesmo

tempo uma imagem positiva de Nero e uma negativa de Ceacutesar e Augusto

Por fim depois de analisarmos as fontes textuais deste capiacutetulo quatro

consideraccedilotildees se impotildeem Em primeiro lugar as composiccedilotildees de Secircneca

493

VIEIRA 2011 p 52 494

LEITE 2019 p 65

135

Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano possuem cinco temas proeminentes e recorrentes 1) a

aboliccedilatildeo de Nero dos abusos ocorridos no governo de Claacuteudio 2) a associaccedilatildeo do

princeps com Augusto 3) a associaccedilatildeo do imperador com Apolo e com outras

divindades 4) a manutenccedilatildeo da paz e 5) o retorno da Idade de Ouro Trata-se de

temas que a nosso ver estatildeo diretamente relacionados com o conceito de

allelopoiesis Relembremo-lo

[A] estreita conexatildeo entre modificaccedilatildeo e construccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica essencial dos processos de transformaccedilatildeo que podem ocorrer tanto diacrocircnica quanto sincronicamente Tais processos portanto levam a algo ldquonovordquo em dois sentidos ou seja a novas configuraccedilotildees mutuamente dependentes tanto na

cultura de referecircncia quanto naquela de recepccedilatildeo Essa relaccedilatildeo de interdependecircncia de reciprocidade seraacute denotada [] pelo termo allelopoiesis um neologismo formado a partir das raiacutezes gregas allelon (ldquomuacutetuordquo ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriaccedilatildeordquo ldquogeraccedilatildeordquo)495

Juntando essa definiccedilatildeo de Bergemann com a releitura do conceito feita

por Faversani e Joly interpretamos que Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano ao

falarem do passado de alguma maneira falaram do seu proacuteprio tempo E ao

refletirem sobre seu proacuteprio tempo projetaram problemas e perguntas que

emolduraram e redefiniram o que teria sido o passado ndash no caso os Principados de

Augusto e de Claacuteudio Por allelopoiesis entatildeo transformaram o passado ao

lanccedilarem novas questotildees sobre o tempo antecedente mas tambeacutem transformaram

o presente ao vecirc-lo com referecircncia nesse passado Allelopoiesis se revela assim

ldquo[] como uma alternativa para se pensar o passado como um legado e ao mesmo

tempo para se tomar esse passado como mateacuteria de uso pelo presente []rdquo que o

modificou496

Passado e presente se construiacuteram mutuamente Secircneca Calpuacuternio

Siacuteculo e Lucano ao representarem Nero alteraram a forma como o passado

poderia ser visto modificando simultaneamente a forma como viam seu

presente Por esse processo edificaram o retrato de um princeps que recompocircs

aspectos do passado ndash as lembranccedilas positivas e negativas dos governos

augustano e claudiano ndash e gerou elementos para a compreensatildeo do presente por

seus contemporacircneos ndash Nero seria o melhor pois tinha o bom caraacuteter de Augusto

495

BERGEMANN et al 2019 p 9 496

FAVERSANI JOLY no prelo 2021 Agradecemos aos professores pelo envio do artigo

Alexandre em Quinto Cuacutercio e o Principado Romano antes da publicaccedilatildeo

136

e abandonava o caraacuteter ruim de Claacuteudio Isso gerou um pequeno repertoacuterio a ser

transmitido ndash ou natildeo ndash daiacute em diante o do Nero prodigioso

Em segundo lugar os trabalhos dos trecircs autores ainda que tenham

enfoques diferentes centram-se majoritariamente em episoacutedios concernentes agrave

ascensatildeo do soberano representando-o como um jovem imperador com um

Principado deveras promissor o qual poderia vir a ser melhor do que o de

Augusto Secircneca por exemplo aponta no sentido de uma monarquia solar e

Lucano toma os tempos felizes iniciais como um sinal claro do governo de um

diuus Em terceiro a uacutenica obra que foge da temaacutetica da ascensatildeo satildeo as Eclogae

apresentando de forma positiva a figura do Nero construtor cujos

empreendimentos artiacutesticos ndash o anfiteatro e os espetaacuteculos com animais selvagens

ndash levariam Roma ao esplendor cultural Em quarto Secircneca e Lucano estiveram

em constante interaccedilatildeo com o princeps com suas ambiccedilotildees artiacutesticas e com sua

corte literaacuteria o que acreditamos ter fornecido inspiraccedilatildeo positiva para a produccedilatildeo

dos seus textos Sendo assim julgamos que na contemporaneidade do princeps

os elogios satildeo predominantes e evidentes As poucas criacuteticas existentes ndash se eacute que

existiram ndash satildeo frutos de interpretaccedilotildees posteriores feitas pelos classicistas atuais

e satildeo duacutebias e especulativas Logo entendemos o Nero criado por Secircneca

Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano como um soberano preponderantemente prodigioso

Natildeo existem aqui traccedilos de uma tradiccedilatildeo negativa e nem mesmo indiacutecios de que

Nero foi um mau imperador A literatura estaacute focada na comemoraccedilatildeo da vinda do

seu Principado Vejamos no proacuteximo capiacutetulo se tal visatildeo permaneceraacute

137

Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96)

Este capiacutetulo buscaraacute estudar a forma Nero transformado que se situaraacute no

contexto imediato apoacutes o fim do seu governo qual seja o da instauraccedilatildeo da

dinastia Flaviana no poder (69-96) Nosso objetivo eacute analisar como a imagem do

Nero prodigioso foi modificada ndash ou natildeo ndash com a consolidaccedilatildeo do novo cenaacuterio

poliacutetico surgido logo depois do seu suiciacutedio em 68 e apoacutes as guerras civis de 69

Nero permaneceu no comando do Impeacuterio Romano por longos 14 anos

(54-68) sendo o uacuteltimo soberano da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia A revolta liderada por

Vindex na Gaacutelia a perda de apoio dos exeacutercitos e dos pretorianos e a declaraccedilatildeo

do Senado que o transformou em inimigo puacuteblico fizeram-no se suicidar no dia 9

de junho quando somava 32 anos de idade497

A notiacutecia do seu falecimento de

acordo com Taacutecito despertou uma mistura de sentimentos entre a populaccedilatildeo os

senadores e os equestres regozijaram-se uma parcela da plebe os clientes e os

libertos daqueles que tinham sido condenados alegraram-se e as categorias

sociais mais baixas entristeceram-se498

Suetocircnio comenta que esta uacuteltima por

muito tempo enfeitou seu tuacutemulo com flores da primavera e do veratildeo499

Apoacutes a sua morte Roma teve um periacuteodo de guerra civil que se estendeu

por 18 meses de junho de 68 a dezembro de 69 Nesse iacutenterim tivemos a

ascensatildeo de quatro principes500

Houve Galba homem com uma carreira de

conquistas militares cujo governo de 7 meses estabeleceu uma poliacutetica austera

voltada agrave reorganizaccedilatildeo das financcedilas501

Otatildeo ex-governador da proviacutencia da

Lusitacircnia que por 3 meses natildeo deixou escapar nenhuma oportunidade de prestar

serviccedilos ou de ganhar popularidade dando por exemplo moedas de ouro a

homens da guarda pretoriana502

Viteacutelio ex-governador da proviacutencia da Germacircnia

inferior que ao longo de 5 meses demonstrou enorme crueldade assassinando

pessoas por quaisquer motivos503

e por fim Vespasiano comandante militar de

renome que conseguiu manter-se no trono e encerrar o periacuteodo de guerra civil

497

Dio 63293 498

Tac Hist 141 499

Suet Nero 571 500

Tac Hist 121 501

Suet Gal 7-8 15 502

Suet Otho 3-4 503

Suet Vit 14

138

dando iniacutecio a uma eacutepoca de estabilidade poliacutetica504

Sua ascensatildeo em dezembro

de 69 marcou o fim do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo e o comeccedilo da segunda

dinastia romana a Flaviana a qual geriu o Impeacuterio de 69 a 96 sob trecircs liacutederes

Vespasiano (69-79) e seus filhos Tito (79-81) e Domiciano (81-96)

Eacute essencial destacar que a turbulecircncia dos anos de 68 e 69 trouxe disputas

natildeo soacute pelo controle do Impeacuterio como tambeacutem pela manipulaccedilatildeo da memoacuteria de

Nero A imagem do falecido soberano foi apropriada pelos novos governantes de

modos diversos e contrastantes segundo os seus proacuteprios interesses poliacuteticos Por

exemplo Galba edificou sua imagem puacuteblica em contraposiccedilatildeo agrave imagem de

Nero no intuito de justificar a deposiccedilatildeo do predecessor e posicionar-se como

salvador Desse modo ordenou a cunhagem de moedas com a legenda Libertas

Restituta (Liberdade Restituiacuteda) insinuando que a tirania neroniana havia

terminado505

Em contrapartida Otatildeo e Viteacutelio exploraram positivamente a

memoacuteria de Nero pois acreditavam que ela os ajudaria a alcanccedilar popularidade

entre a plebe Otatildeo por exemplo mandou erguer estaacutetuas do ex-imperador

adotou o cognomen Nero e promoveu a conclusatildeo da Domus Aurea ao passo que

Viteacutelio fez sacrifiacutecios ao espiacuterito do finado e permitiu que suas canccedilotildees fossem

executadas em puacuteblico506

Vemos portanto que em um curto espaccedilo de tempo a

imagem do antigo princeps foi bastante utilizada para fomentar apoio aos novos

governos seja apoio por oacutedio seja apoio por amor ao antepassado Tal questatildeo

apesar de relevante para a nossa tese natildeo seraacute abordada neste capiacutetulo pois o uso

das representaccedilotildees de Nero por Galba Otatildeo e Viteacutelio aparece de forma jaacute

consolidada nas fontes literaacuterias escritas sob os Flaacutevios e Antoninos Ademais

natildeo temos fontes literaacuterias que possam ser seguramente datadas em cada um

desses breviacutessimos Principados do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo Os documentos

que tratam dessa temaacutetica foram elaborados em mais detalhes apenas na dinastia

Antonina e na dos Severos e seratildeo discutidos no proacuteximo capiacutetulo

504

Tito Flaacutevio Vespasiano nascido no dia 17 de novembro do ano 9 foi o primeiro imperador

romano da dinastia flaviana Descendia de uma famiacutelia da ordem equestre a qual atingiu a

categoria senatorial durante os governos dos imperadores da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Ao longo da

sua vida Vespasiano ganhou renome como general militar colocando sob o domiacutenio romano mais

de 20 cidades e duas tribos britacircnicas poderosas Ele foi tambeacutem o responsaacutevel pela vitoacuteria romana

na guerra contra os rebeldes judeus na Judeia iniciada em 66 ndash guerra inclusive que ele chefiou a

mando de Nero Foi essa campanha bem-sucedida que tornou possiacutevel sua ascensatildeo ao trono

sendo aclamado imperator pelas tropas em Alexandria pelo exeacutercito da Judeia por todos os

legionaacuterios das forccedilas auxiliares e pelas proviacutencias do leste (Tac Hist 279-81 Suet Vesp 1-6) 505

ROLLER 2001 p 261 506

Tac Hist 178 Suet Otho 7 Tac Hist 295 1

139

Falemos entatildeo do uso da imagem neroniana pelos Flauii As fontes

epigraacuteficas sobreviventes revelam uma forte condenaccedilatildeo da memoacuteria do princeps

por tal dinastia desenvolvida devido agrave necessidade do fortalecimento da

legitimidade do seu proacuteprio poder Os novos soberanos natildeo detinham

descendecircncia direta ou indireta nem de Augusto (um Juacutelio) nem de Liacutevia (uma

Claacuteudia) por isso a construccedilatildeo da legitimidade era algo de extrema

importacircncia507

E nada melhor para erigir a legitimidade do que deslegitimar o

governante anterior mostrando-se diferente dele508

Nessa perspectiva uma das

estrateacutegias utilizadas pelos Flaacutevios foi a obliteraccedilatildeo da memoacuteria neroniana ou

seja a transformaccedilatildeo da identidade ideoloacutegica e cultural da capital do Impeacuterio por

meio da destruiccedilatildeo da reconfiguraccedilatildeo eou da remoccedilatildeo dos retratos e das

construccedilotildees de Nero da esfera puacuteblica do apagamento do seu nome de algumas

inscriccedilotildees da contramarcaccedilatildeo de moedas e da construccedilatildeo ou reforma de edifiacutecios

para o benefiacutecio comum509

Ramage comenta sobre algumas accedilotildees adotadas especificamente por

Vespasiano Uma delas foi o uso da legenda Roma Ressurgens nas cunhagens

simbolizando a recuperaccedilatildeo moral e material da Vrbs ldquoRoma Ressurgens tinha

uma forte conotaccedilatildeo com a restauraccedilatildeo fiacutesica da cidade apoacutes a influecircncia tiracircnica

de Nerordquo Outra accedilatildeo foi o retorno da legenda Libertas Restituta jaacute usada por

Galba significando o restabelecimento da liberdade apoacutes a morte de Nero

Vespasiano tambeacutem cunhou moedas com as legendas Felicitas Publica

(Felicidade Puacuteblica) Fides Publica (Feacute Puacuteblica) e Securitas Populi Romani

(Seguranccedila do Povo Romano) no intuito de fortalecer a diferenccedila do seu governo

em relaccedilatildeo ao de Nero Tivemos ainda a construccedilatildeo do Templo da Paz a

reapropriaccedilatildeo do terreno da Domus Aurea para a estruturaccedilatildeo do Anfiteatro

Flaviano510

a substituiccedilatildeo da cabeccedila de Nero no Colosso pela cabeccedila do deus-sol

e a reconstruccedilatildeo do Templo de Claacuteudio Deificado realizada como uma rejeiccedilatildeo da

poliacutetica de Nero segundo a qual a adoraccedilatildeo de Claacuteudio foi ignorada e seu templo

507

RODRIGUES 2020 p 112 508

A depreciaccedilatildeo do antecessor como dispositivo de propaganda tem uma longa histoacuteria

remontando pelo menos aos tempos de Ciacutecero 509

DARWALL-SMITH 1996 p 253 ROSSO 2008 p 43 RIPOLL 1999 p 148 ZISSOS

2016 p 7 VARNER 2017 p 238 510

Cabe destacar que o Anfiteatro comeccedilou a ser construiacutedo por Vespasiano por volta do ano 70

e foi finalizado por Tito em torno de 80

140

desmontado511

No final das contas entatildeo Vespasiano ndash e os Flaacutevios ndash acreditava

que se apagasse os traccedilos de Nero apagaria sua memoacuteria

Outra estrateacutegia muito usada pelos Flaacutevios foi o patrociacutenio de obras

literaacuterias que endossavam a visatildeo de que Nero desonrara Augusto e o resto da

famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia Em outras palavras Vespasiano Tito e Domiciano

encorajaram a divulgaccedilatildeo de trabalhos que davam ao falecido soberano uma

coloraccedilatildeo tiracircnica512

De fato no periacuteodo foram produzidos vaacuterios trabalhos que

atribuiacuteam a ele atitudes negativas transformando-o em uma espeacutecie de monstro a

ser rejeitado513

Nessa perspectiva inserem-se Octauia composta por Pseudo-

Secircneca Naturalis Historia redigida por Pliacutenio o Velho Bellum Judaicum e

Antiquitates Judaicae elaborados por Flaacutevio Josefo Liber Spectaculorum e

Epigrammata produzidos por Marcial e as Siluae concebidas por Estaacutecio Cabe

destacar que a obra Institutio Oratoria (Educaccedilatildeo Oratoacuteria) escrita por

Quintiliano embora seja contemporacircnea agraves citadas natildeo menciona os episoacutedios da

vida de Nero que nos interessam

A anaacutelise dessas fontes nos permitiraacute observar que o tratamento dado agrave

imagem neroniana pelos Flaacutevios foi uma estrateacutegia voltada agrave propagaccedilatildeo de novos

ideais poliacuteticos e de uma memoacuteria transformada Nero serviu como uma peliacutecula

conveniente contra a qual a nova dinastia pretendia se definir positivamente514

Eacute

sob tal ponto que nos deteremos a seguir organizando nossa anaacutelise pelo estudo

das obras selecionadas que permitem uma percepccedilatildeo clara dos contrastes

produzidos com essa produccedilatildeo dos Neros transformados

Pseudo-Secircneca Octauia

A primeira composiccedilatildeo publicada nessa nova era poliacutetica foi a trageacutedia

Octauia uacutenico drama ndash cuja trama se daacute em uma ambientaccedilatildeo romana ndash que nos

chegou completo515

Trata-se de uma obra na qual satildeo relatados os uacuteltimos

instantes da vida de Otaacutevia filha do imperador Claacuteudio com sua terceira esposa

511

RAMAGE 1983 p 209-214 512

GRIFFIN 2001 p 15 513

LEFEBVRE 2017 p 26-27 514

TUCK 2016 p 110 515

GRIFFIN 2001 p 100

141

Messalina516

Nascida no ano 40 essa primeira foi irmatilde de Britacircnico meia-irmatilde

de Antocircnia e primeira esposa de Nero O enlace ocorreu em junho de 53 graccedilas

aos arranjos de Agripina517

Agrave eacutepoca ela tinha 13 anos ele 15 e ambos

mantinham uma relaccedilatildeo pouco afetuosa518

Por consequecircncia Nero se direcionou

agraves amantes apaixonando-se por Popeia esposa do seu amigo Otatildeo

519 A fim de

casar-se com ela divorciou-se de Otaacutevia em um processo complicado acusando-a

falsamente de adulteacuterio enviando-a para o exiacutelio e assassinando-a Toda essa

trama eacute narrada na Octauia em uma sequecircncia cronoloacutegica de trecircs dias situados

em junho de 62520

Eacute importante destacar que a autoria e a dataccedilatildeo da obra satildeo questotildees

problemaacuteticas ateacute os dias atuais No tocante agrave autoria a inclusatildeo do texto nos

manuscritos das Trageacutedias de Secircneca durante a Idade Meacutedia fez com que ele

fosse atribuiacutedo ao filoacutesofo Poreacutem eacute um consenso entre os estudiosos que Octauia

natildeo foi produzido por Secircneca e sim por um admirador eou seguidor dele521

Para Herington o escritor da obra deve ter sido algueacutem que estimava o trabalho

do tutor de Nero e conhecia os seus versos de cor empenhando-se em reproduzir

o seu estilo522

Ferri adiciona que os versos da Octauia satildeo demasiadamente

pobres e repetitivos bem diferentes dos elaborados versos senequianos523

O

marcante no texto eacute a ausecircncia de variaccedilatildeo as mesmas expressotildees idiomaacuteticas satildeo

repetidas duas ou mais vezes o que daacute uma ideia da gama limitada de soluccedilotildees

literaacuterias disponiacuteveis para o tragedioacutegrafo524

A recusa em conferir a paternidade

do texto a Secircneca fez com que a comunidade cientiacutefica atual chamasse o autor

desconhecido de Pseudo-Secircneca denominaccedilatildeo que tambeacutem adotaremos

Em relaccedilatildeo agrave dataccedilatildeo a maior parte dos estudiosos costuma situaacute-la apoacutes a

morte de Nero e sob o governo de Vespasiano entre 69 e 70525

Considera-se que

516

Tac Ann 1134 517

Suet Cl 27 Tac Ann 1258 Suet Nero 72 518

CHAMPLIN 2005 p 162 519

Tac Hist 113 Popeia eacute retratada na Octauia como uma mulher bela prendada pelos deuses e

de linhagem nobre ([Sen] Oct 544-545 551-552) 520

O periacuteodo de trecircs dias eacute obviamente uma convenccedilatildeo dramaacutetica os eventos reais

desenvolveram-se por um periacuteodo mais longo (FERRI 2014 p 522) 521

POE 1989 p 436 522

HERINGTON 1961 p 28 523

FERRI 2003 p 32 524

FERRI 2003 p 36 525

Lucarini (2005 p 263-284) ao contraacuterio tentou provar que a peccedila foi escrita depois do terceiro

ou quarto seacuteculos As provas apresentadas pelo autor satildeo fracas e resumem-se essencialmente a

algumas passagens em que Octauia eacute mais alusiva ou obscura do que Taacutecito

142

ela foi produzida nessa eacutepoca por trecircs motivos i) a imitaccedilatildeo do estilo senequiano

indica que ela foi escrita dentro de uma proximidade razoaacutevel da morte do

filoacutesofo526

ii) o seu forte tom antineroniano sugere que ela natildeo deve ter sido

elaborada durante a vida do finado princeps527

e iii) as suas referecircncias claras agrave

tirania de Nero ajustam-se com perfeiccedilatildeo agrave apropriaccedilatildeo flaviana negativa da

memoacuteria do soberano528

De acordo com Liberman essa dataccedilatildeo entre todas as

possiacuteveis eacute a mais adequada pois o modo como Pseudo-Secircneca narra os fatos eacute

bastante vivo e detalhista algo que soacute poderia ocorrer se ele tivesse testemunhado

os eventos Decerto foi algum membro da corte proacuteximo aos personagens

histoacutericos citados cujo nome infelizmente natildeo alcanccedilou a posteridade529

No que tange ao gecircnero a Octauia carrega as caracteriacutesticas de uma

praetexta imperial drama antigo do qual sabemos pouco530

O nome praetexta

adveacutem do traje usado pelos personagens no momento da atuaccedilatildeo do drama uma

praetexta toga (toga com bordas roxas) vestimenta destinada aos membros

pertencentes agrave categoria senatorial O uso da roupa era feito no intuito de

representar magistrados e outras figuras puacuteblicas que protagonizavam episoacutedios

poliacuteticos importantes em Roma As praetextae imperiais traziam criacuteticas a

aristocratas por meio da encenaccedilatildeo de uma peccedila sobre uma figura contemporacircnea

que possuiacutea um comportamento autocraacutetico531

Em outras palavras eram

produccedilotildees relacionadas agrave histoacuteria recente da capital do Impeacuterio a acontecimentos

ainda presentes na memoacuteria da populaccedilatildeo Agrave vista disso natildeo eram encenadas por

muito tempo depois de escritas eram apresentadas uma uacutenica vez em um evento

especiacutefico e para um puacuteblico restrito ou mesmo circuladas apenas sob a forma de

texto sem chegarem a ir para o palco Isso explicaria no entender de Pita a pouca

necessidade de preservaccedilatildeo dos textos e o consequente desaparecimento de todo

um gecircnero literaacuterio532

Fundamentados nesses aspectos de autoria dataccedilatildeo e gecircnero os criacuteticos

modernos leem a Octauia como uma obra de denuacutencia agrave opressatildeo exercida por

526

Para Boyle (2008 p xvi) uma imitaccedilatildeo muito posterior agrave morte de Secircneca natildeo faria sentido 527

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p xix 528

ROYO 1983 p 200 529

LIBERMAN 1998 p vii-viii 530

Uma das discussotildees modernas mais extensas e completas sobre o gecircnero praetexta eacute a de

Kragelund (2002 p 5-51) 531

GOacuteMEZ 1997 p 573-574 532

PITA 2006 p 56 Aleacutem da Octauia haacute apenas uma menccedilatildeo a outra praetexta encenada no

periacuteodo imperial a qual eacute feita por Taacutecito no Dialogus de Oratoribus (Tac Dial 3)

143

Nero sobre o Impeacuterio uma composiccedilatildeo que condena os desvarios do soberano e

demonstra atraveacutes de um exemplo da histoacuteria recente os perigos que a

concentraccedilatildeo de poderes pode trazer Tal concepccedilatildeo eacute claramente perceptiacutevel no

texto Das linhas de abertura ateacute os versos finais Pseudo-Secircneca coloca Otaacutevia

expondo os assassinatos a repulsa emocional e os traumas vivenciados pelos seus

familiares e pelo povo de Roma533

Como afirmam Marti e Sullivan a Octauia eacute

uma ldquodiatribe contra Nerordquo um ldquodocumento poliacuteticordquo que expotildee as queixas das

suas viacutetimas534

Para entendermos com clareza a representaccedilatildeo de Nero construiacuteda por

Pseudo-Secircneca precisamos examinar a obra em detalhes Ela possui cinco atos e

nove personagens (aleacutem do coro) 1) Otaacutevia a protagonista 2) a escrava de

Otaacutevia 3) Secircneca 4) Nero 5) Agripina 6) Popeia 7) a escrava de Popeia 8) um

centuriatildeo e 9) um mensageiro535

Nesse cenaacuterio satildeo relatados episoacutedios da vida

de Otaacutevia dos quais o princeps participou Noacutes avaliaremos nove 1) a adoccedilatildeo de

Nero 2) o casamento dele com Otaacutevia 3) sua ascensatildeo 4) o assassinato de

Britacircnico 5) o assassinato de Agripina 6) o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia 7) o

casamento do imperador com Popeia 8) o incecircndio de Roma e 9) a construccedilatildeo da

Domus Aurea Com exceccedilatildeo da ascensatildeo neroniana essa eacute a primeira vez que

esses eventos aparecem no nosso corpus textual

Sem mais delongas tratemos do episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero536

Ele eacute

retratado como uma maquinaccedilatildeo de Agripina que estava disposta a qualquer coisa

para garantir o trono ao filho A matildee do futuro imperador eacute descrita pelo autor de

forma bem hostil ela aparece como uma mulher odiosa uma madrasta cruel e de

olhares ferozes537

Ela fez o marido Claacuteudio preferir538

533

SMITH 2003 p 397-425 534

MARTI 1952 p 28 SULLIVAN 1985 p 71 535

Os cinco atos satildeo bem desproporcionais o primeiro tem 376 versos o segundo tem 215 o

terceiro tem apenas 96 o quarto ato tem 129 e o quinto tem 162 536

Em Roma a adoccedilatildeo era o meacutetodo mais comum e eficaz de garantir a continuidade de um nome

da heranccedila e da memoacuteria (CROOK 1967 p 111) 537

[Sen] Oct 20-23 538

Agripina casou-se com Claacuteudio em 48 ou 49 O enlace eacute representado na Octauia de forma

muito negativa uma mulher selvagem ldquo[] com peacutes imortais entrou no templo vazio desonrou

com tocha infernal seu coraccedilatildeo sagrado rompeu as leis da natureza e tudo que eacute divinordquo

uacuamque Erinys saeua funesto pede intrauit aulam polluit Stygia face sacros penates iura

naturae furens ([Sen] Oct 161-163) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 19)

144

um nascido de outro sangue a seu filho

e dominado pelo amor tomou como esposa a filha de seu irmatildeo em uniatildeo amaldiccediloada a partir disso gerou uma seacuterie de crimes assassinato traiccedilatildeo ambiccedilatildeo por poder sede de sangue O genro tornou-se viacutetima do sogro para que por meio de teu casamento natildeo se tornasse poderoso

Que crime monstruoso Silano539 foi um presente dado a mulher para cobrir de sangue sua famiacutelia ancestral culpado de crime fictiacutecio O inimigo entrou ai de mim Tomou a casa por meio da astuacutecia da madrasta feito genro e filho do imperador jovem de gecircnio abominaacutevel e capaz de crimes cuja matildee maligna acendeu a tocha e por medo casou-te agrave forccedila540

Agripina preparou bem o caminho para assegurar a ascensatildeo do filho

Convenceu Claacuteudio a preferir Nero a Britacircnico seu filho legiacutetimo e eliminou

Silano casando Otaacutevia com Nero em uma ldquouniatildeo amaldiccediloadardquo A adoccedilatildeo eacute vista

de maneira ldquocatastroacuteficardquo pois com ela a casa dos Claacuteudios foi tomada por uma

mulher manipuladora e um jovem de gecircnio abominaacutevel541

Pseudo-Secircneca coloca

o futuro imperador em contraste com Britacircnico indicando que a adoccedilatildeo foi o

ldquoenterrordquo da famiacutelia Juacutelio-Claudiana Nero eacute figurado como um usurpador que

retirou uma posiccedilatildeo pertencente por direito a outro Por meio da astuacutecia da

madrasta o inimigo Nero infausto tomou a casa e trouxe consigo assassinato

traiccedilatildeo ambiccedilatildeo e sede de sangue

Aleacutem de articular a adoccedilatildeo Agripina tambeacutem agilizou o casamento do

filho com Otaacutevia A filha de Claacuteudio lamenta o infortuacutenio

539

Taacutecito conta que uma vez certa do seu enlace com Claacuteudio Agripina passou a arquitetar as bodas entre Nero e Otaacutevia O problema eacute que o imperador jaacute havia prometido Otaacutevia a Luacutecio

Silano bisneto de Augusto Entatildeo Agripina se uniu ao censor Viteacutelio (futuro imperador) para

articular acusaccedilotildees contra Silano dizendo que ele mantinha relaccedilotildees incestuosas com a irmatilde

Silano desinformado do complocirc e pretor naquele ano foi afastado da ordem senatorial por um

decreto de Viteacutelio Ao mesmo tempo Claacuteudio rompeu o noivado e Silano foi forccedilado a renunciar

agrave magistratura No dia do casamento de Otaacutevia Silano suicidou-se (Tac Ann 123-4 1281) 540

qui nato suo praeferre potuit sanguine alieno satum genitamque fratris coniugem captus sibi

toris nefandis flebili iunxit face hinc orta series facinorum caedes doli regni cupido

sanguinis diri sitis mactata soceri concidit thalamis gener uictima tuis ne fieret hymenaeis

potens pro facinus ingens feminae est munus datus Silanus et cruore foedauit suo patrios

penates criminis ficti reus intrauit hostis ei mihi captam domum dolis nouercae principis

factus gener idemque natus iuuenis infandi ingeni capaxque scelerum dira cui genetrix facem

accendit et te iunxit inuitam metu ([Sen] Oct 139-154) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 18-19) 541

KRAGELUND 2016 p 204 p 352

145

suportei de uma madrasta cruel as ordens

os olhares ferozes e a alma hostil ela ela como a terriacutevel Eriacutenia ao meu leito nupcial trouxe chamas infernais e te assassinou pai miseraacutevel quem haacute pouco o mundo todo obedeceu aleacutem do oceano

e do qual os bretotildees fugiram e antes desconhecidos por nossos comandantes viviam libertos Ai de mim pai pelas perfiacutedias de uma esposa estaacutes morto tua casa e tua filha servem como cativas a um tirano542

Aqui a matrona eacute identificada com Eriacutenia personagem mitoloacutegica que

aterrorizava eou amaldiccediloava os indiviacuteduos e vingava mortes543

Para Gozo ao

inserir um mito na histoacuteria o autor fortalece o retrato de Agripina como uma

mulher maligna cujas accedilotildees simultaneamente colocam Otaacutevia em uma posiccedilatildeo

de enorme infelicidade por casaacute-la com Nero e dificultam a vida da princesa por

a levarem a dominar Claacuteudio e a mataacute-lo544

A Otaacutevia entatildeo cabia apenas se

conformar com o seu destino ser cativa de um Nero tirano Mas segundo

Pseudo-Secircneca era difiacutecil esconder o luto insuportaacutevel uma vez que ela vivia sob

o jugo de um marido cruel e de uma madrasta selvagem545

Cega por sucesso Agripina ousa ameaccedilar o sagrado governo do mundo

afirma o autor Ela articula um crime na esperanccedila nefanda de tomar o poder

preparando venenos selvagens para o marido Com a morte de Claacuteudio o bastardo

Nero filho de Domiacutecio assume o controle e ldquomancha o nome de Augustordquo546

Agrave

frente do Impeacuterio toma suas primeiras decisotildees

542

tulimus saeuae iussa nouercae hostilem animum uultusque truces illa illa meis tristis

Erinys thalamis Stygios praetulit ignes teque extinxit miserande pater modo cui totus paruit

orbis ultra Oceanum cuique Britanni terga dedere ducibus nostris ante ignoti iurisque sui

coniugis heu me pater insidiis oppresse iaces seruitque domus cum prole tua capta tyranno

([Sen] Oct 21-33) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 13) 543

As Eriacutenias eram trecircs Megera Tisiacutefone e Alecto (GRIMAL 2005 p 146-147) 544

GOZO 2016 p 84 545

[Sen] Oct 46-48 170 546

[Sen] Oct 155-159 249-251

146

[Nero] ldquoCumpra minhas ordens Envie algueacutem que traga ateacute mim a cabeccedila decepada de Plauto e Sulardquo [Centuriatildeo] ldquoCumprirei sem demora Vou-me para o acampamento imediatamenterdquo [Secircneca] ldquoConveacutem que nada seja decidido precipitadamente contra parentesrdquo [Nero] ldquoEacute mais faacutecil ser justo quando o coraccedilatildeo estaacute livre de

medordquo [Secircneca] ldquoA clemecircncia eacute um grande remeacutedio para o temorrdquo [Nero] ldquoA maior virtude de um comandante eacute aniquilar o inimigordquo [Secircneca] ldquoPara um pai da paacutetria maior virtude eacute proteger seus cidadatildeosrdquo [Nero] ldquoPara um velho brando seria conveniente dar liccedilotildees agraves

crianccedilas [] A Fortuna me permite tudordquo547 [] [Secircneca] ldquoA gloacuteria consiste em fazer o que se deve natildeo o que eacute permitidordquo [Nero] ldquoO povo pisa no liacuteder indecisordquo [Secircneca] ldquoEsmaga o detestaacutevelrdquo [Nero] ldquo[] Conveacutem que um Ceacutesar seja temidordquo548

Na passagem Nero entra em cena solicitando as cabeccedilas de Plauto e Sula

homens considerados por ele como potenciais rivais na ocupaccedilatildeo do trono549

Ao

ouvir a ordem do soberano Secircneca550

passa a admoestaacute-lo criticando a forma

como tem exercido o poder e recomendando o uso da clemecircncia Nesse ponto

verificamos uma diferenccedila de tom entre os discursos do filoacutesofo No capiacutetulo

passado quando analisamos o De Clementia verificamos o tom prodigioso de

Secircneca ao falar da ascensatildeo de Nero Ele teceu diversos elogios ao imperador

exaltou a sua benignidade inocecircncia e mansidatildeo bem como destacou a

547

Fortuna era considerada a deusa romana do acaso da sorte do destino e da esperanccedila

Correspondia agrave divindade grega Tique Era representada com o corno da abundacircncia ndash com um

lema (porque eacute ela quem ldquopilotavardquo a vida dos homens) ndash ora sentada ora de peacute quase sempre

cega distribuindo seus desiacutegnios aleatoriamente (GRIMAL 2005 p 178) 548

[Nero] Perage imperata mitte qui Plauti mihi Sullaeque caesi referat abscisum caput

[Praefectus] Iussa haud morabor castra confestim petam [Seneca] Nihil in propinquos temere constitui decet [Nero] Iusto esse facile est cui uacat pectus metu [Seneca] Magnum timoris

remedium clementia est [Nero] Extinguere hostem maxima est uirtus ducis [Seneca] Seruare

ciues maior est patriae patri [Nero] Praecipere mitem conuenit pueris senem [] Fortuna

nostra cuncta permittit mihi [Seneca] Crede obsequenti parcius leuis est dea [Nero] Inertis

est nescire quid liceat sibi [Seneca] Id facere laus est quod decet non quod licet [Nero]

Calcat iacentem uulgus [Seneca] Inuisum opprimit [Nero] Ferrum tuetur principem []

[Nero] Decet timeri Caesarem ([Sen] Oct 436-458) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 31-32) 549

O primeiro por ser bisneto do ex-imperador Tibeacuterio e descendente consanguiacuteneo de Augusto e

o segundo por deter ligaccedilotildees estreitas com a famiacutelia imperial devido ao seu enlace com Antocircnia

filha de Claacuteudio Os dois foram inicialmente exilados e depois assassinados em 62 (Tac Ann

14591-2 13471-2) 550

O Secircneca da Octauia eacute apresentado como um bom velhinho abstecircmio e temperado que natildeo se

esquece de falar a verdade mesmo diante do perigo que tenta advertir seu aluno de ir longe

demais em seu desrespeito agrave humanidade (FERRI 2003 p 71)

147

tranquilidade com a qual o povo romano poderia viver pois Nero jaacute era um liacuteder

virtuoso Secircneca tambeacutem se posicionou como um homem que buscava a

sabedoria algueacutem que detinha a verdadeira receita da arte de governar cujo passo

a passo Nero adotaria O tom prodigioso usado para se referir a Nero nos textos do

proacuteprio autor poreacutem transformou-se aqui em um tom repreensivo na voz do

personagem Secircneca551

O filoacutesofo reprova veementemente a ordem do princeps

afirmando que ldquonada deve ser decidido contra parentesrdquo e que a maior virtude de

um pater patriae552 eacute ldquoproteger seus cidadatildeosrdquo Ao longo de todo o diaacutelogo

Secircneca natildeo tece nenhum elogio ao imperador apenas o censura e o relembra da

importacircncia da clemecircncia para o governo553

Nero ouve os conselhos e responde

com escaacuternio nomeando o filoacutesofo de ldquovelho brandordquo e declarando que seria

demecircncia natildeo usar a forccedila que possuiacutea Inclusive declara ndash em outro ponto do

diaacutelogo ndash que ateacute o proacuteprio Augusto usou da forccedila para erigir o seu Principado554

Como alega Erasmo a precipitaccedilatildeo de Nero aiacute eacute contrastada com a experiecircncia de

Secircneca por meio de ataques em termos poliacuteticos555

Em resumo ndash e aqui

concordamos com Buckley e Star ndash o princeps representado na Octauia natildeo eacute

mais um liacuteder virtuoso e sim uma figura que ascendeu ao trono e governaraacute

segundo seu proacuteprio plano de governo Eacute um soberano que faz parte de uma

linhagem de tiranos romanos que testam os limites do seu poder e cujo modo de

comando pode ser resumido pela maacutexima ldquoque odeiem desde que temam ndash ou

seja trata-se de um Nero infausto556

Eacute importante marcar que essa eacute a primeira vez que o episoacutedio da ascensatildeo

de Nero eacute apresentado de modo negativo O Nero prodigioso do capiacutetulo anterior

que traria um seacuteculo de ouro para o Impeacuterio e instauraria a paz comeccedilou a se

transformar A ascensatildeo do liacuteder clemente justo iacutentegro e divino deu lugar agrave

ascensatildeo de um soberano que defende a autocracia o uso das armas e o

extermiacutenio dos inimigos Como afirma Buckley o Nero da Octauia rejeita a

551

POE 1989 p 451 552

O tiacutetulo de pater patriae com que Augusto foi aclamado em 5 aC representa o apogeu do

movimento simboacutelico que o elevou agrave posiccedilatildeo de responsaacutevel pelos destinos da naccedilatildeo romana Com

isso ele atingiu a posiccedilatildeo de segundo fundador de Roma um sucessor de Rocircmulo (ESTEVES

2010 p 29) 553

STAR 2015 p 256 554

[Sen] Oct 504-513 555

ERASMO 2004 p 114 556

BUCKLEY 2013 p 135 STAR 2015 p 256-257

148

versatildeo da Era de Ouro augustana e reativa o passado da guerra civil tatildeo

abertamente deplorado no De Clementia e na Pharsalia557

Seguindo adiante temos o episoacutedio do assassinato de Britacircnico ocorrido

em 55558

Otaacutevia chora a morte do irmatildeo em uma conversa com sua escrava

[Otaacutevia] ldquo[] Ai de mim desse tirano beijar meu inimigo de quem ateacute mesmo as cariacutecias eu natildeo poderia tolerar apoacutes a terriacutevel morte de meu irmatildeo []rdquo [Escrava] ldquoTu tambeacutem jaz morto jovem infeliz sempre motivo de choro para noacutes

a uacuteltima estrela do mundo pilar da casa de Augusto oacute Britacircnico ai de mim agora soacute cinzas [] e triste sombra []rdquo [Otaacutevia] ldquoEle restituiraacute o irmatildeo tomado de mim por assassinatordquo [Escrava] ldquoQue tu permaneccedilas viva para restituir a casa decadente do teu pai um dia com filhos teusrdquo [Otaacutevia] ldquoSe ao menos o comandante dos ceacuteus pusesse em

chamas a cabeccedila vil do priacutencipe nefando [] Essa pestilecircncia eacute pior esse inimigo dos deuses [] tomou a vida do irmatildeo []rdquo559

Eacute possiacutevel notar que a descriccedilatildeo do assassinato natildeo eacute feita em detalhes A

imperatriz e a sua escrava natildeo nos datildeo informaccedilotildees sobre a forma como aconteceu

o incidente e nem sobre a repercussatildeo poliacutetica decorrente dele As duas apenas

sofrem e se enfurecem com Nero sem revelarem o enredo por traacutes do ocorrido A

nosso ver tal caracteriacutestica pode ser explicada com base no proacuteprio gecircnero da

obra Conforme Erasmo estamos lidando com uma praetexta imperial que

objetivava denunciar as atitudes crueacuteis de Nero sobretudo as que afetaram a vida

de Otaacutevia560

O foco eacute na tristeza da viacutetima na dramatizaccedilatildeo da sua trageacutedia561

Eacute

557

BUCKLEY 2013 p 141 558

Nascido no ano 41 Britacircnico era o uacutenico filho bioloacutegico de Claacuteudio e o herdeiro legiacutetimo do

trono imperial Em 50 tornou-se irmatildeo de Nero por adoccedilatildeo haja vista que Agripina apoacutes casar-se

com Claacuteudio fecirc-lo adotar Nero Depois de adotado ele teve o nome alterado para Nero Claacuteudio Ceacutesar Druso Germacircnico transformando-se em herdeiro de Claacuteudio As fontes relatam que antes

de falecer Claacuteudio arrependeu-se dessa decisatildeo e passou a preparar Britacircnico para o trono Ao

sentir a ameaccedila Nero supostamente ordenou o envenenamento de Britacircnico antes de ele

completar 14 anos (Tac Ann 1225-26 Suet Nero 71 Suet Cl 43 Dio 60341 Dio 6174) 559

[Octauia] [] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula timere nutus cuius

obsequium meus haud ferre posset fata post fratris dolor [] [Nutrix] Tu quoque extinctus

iaces deflende nobis semper infelix puer modo sidus orbis columen augustae domus

Britannice heu me nunc leuis tantum cinis et tristis umbra [] [Octauia] Ut fratrem ademptum

scelere restituat mihi [Nutrix] Incolumis ut sis ipsa labentem ut domum genitoris olim subole

restituas tua [Octauia] utinam nefandi principis dirum caput obruere flammis caelitum rector

paret [] haec grauior illo pestis hic hostis deum hominumque templis expulit superos suis

ciuesque patria spiritum fratri abstulit [] ([Sen] Oct 109-242) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p

17-24) 560

ERASMO 2004 p 67

149

importante lembrar que a estrateacutegia narrativa eacute concentrar as accedilotildees em trecircs dias

periacuteodo no qual os episoacutedios anteriores satildeo lembrados e tudo que aconteceu ao

longo de anos eacute apresentado de forma sinteacutetica intensa e conectada para gerar o

efeito dramaacutetico desejado O importante para Pseudo-Secircneca eacute falar da dor e da

raiva sentidas por Otaacutevia com a morte de Britacircnico e natildeo da morte em si E eacute

exatamente esses sentimentos que fazem o autor descrever Nero de maneira

negativa no excerto denominando-o de ldquotiranordquo ldquopriacutencipe nefandordquo ldquopestilecircnciardquo

e ldquoinimigo dos deusesrdquo tiacutetulos que nos possibilitam enquadrar o assassinato na

categoria Nero fratricida

Sobre o trecho cabe comentar ainda que Ferri e Kragelund defendem que

nele haacute uma representaccedilatildeo de Nero como usurpador haja vista que o trono por

nascimento pertencia a Britacircnico Enquanto Otaacutevia chora sua escrava reconhece

amargamente que o uacuteltimo descendente da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia o ldquouacuteltimo pilar

da casa de Augustordquo partiu para sempre A uacuteltima esperanccedila que a imperatriz

tinha de se vingar e de se livrar do marido tirano perecera Nero eacute figurado por

Pseudo-Secircneca entatildeo como um princeps ilegiacutetimo cujo governo possui fortes

traccedilos autocraacuteticos ndash muito diferentes aliaacutes dos traccedilos libertaacuterios mostrados no

capiacutetulo anterior562

Eis que os lamentos de Otaacutevia e da sua escrava chegam aos ouvidos do

coro romano que natildeo se mostra surpreso com o delito afinal este era soacute mais um

dos crimes perpetrados pelo imperador capaz de coisas piores Para ilustrar o

coro descreve outra atrocidade o assassinato de Agripina sucedido em 59563

561

HERINGTON 1961 p 30 562

FERRI 2003 p 159 KRAGELUND 2016 p 194-196 p 406 563

Nascida no ano 15 Agripina era a quarta filha de Germacircnico Ceacutesar com Agripina Maior Em

28 casou-se com Cneu Domiacutecio Aenobarbo por determinaccedilatildeo do imperador Tibeacuterio Em 37 no ano do falecimento de Tibeacuterio e da ascensatildeo de Caliacutegula deu agrave luz Nero Dois anos depois em 39

ela e sua irmatilde Juacutelia Livila foram exiladas por ordem de Caliacutegula Enquanto esteve longe de

Roma deixou Nero sob os cuidados de Domiacutecia Leacutepida tia paterna da crianccedila Em 41 Caliacutegula

foi assassinado e Claacuteudio tio de Agripina tornou-se imperador O novo soberano retirou as penas

de exiacutelio de Agripina e Juacutelia permitindo-lhes regressarem a Roma Foi provavelmente por esta

altura que Agripina casou-se pela segunda vez com Caio Passieno Crispo um rico e influente

orador Tal enlace parece natildeo ter durado muito tempo pois por volta de 49 Agripina estava viuacuteva

outra vez Seu terceiro e uacuteltimo casamento foi com Claacuteudio em 49 matrimocircnio que lhe rendeu a

adoccedilatildeo de Nero Apoacutes a uniatildeo ela tratou de colocar o seu filho cada vez mais proacuteximo da sucessatildeo

imperial Em 54 Claacuteudio supostamente foi envenenado por Agripina com cogumelos dando

espaccedilo para a ascensatildeo de Nero Nos meses iniciais do governo foram concedidos favores em

excesso a Agripina poreacutem com o tempo Nero desentendeu-se com a matildee passando a planejar o

seu assassinato ocorrido em 59 ([Sen] Oct 164-165 Tac Ann 4751 1223 Suet Cl 263

442 Dio 6041 60316 60323 6034)

150

[Coro romano] ldquoOs romanos antepassados tinham a virtude neles havia a verdadeira linhagem e sangue de Marte Expulsaram da cidade reis soberbos [] Esta era [] contemplou o crime odioso de um filho quando nosso priacutencipe traiu sua proacutepria matildee e a fez navegar pelo mar Tirreno em uma embarcaccedilatildeo mortal Comandados por ele os nautas partiram []

[] o navio alcanccedila o mar aberto quando se divide abre seu casco e se adentra no mar denso [] A morte suga muitos no mar profundo Augusta [Agripina] chora sobre suas vestes [] Quando natildeo haacute esperanccedila de seguranccedila ardendo a ira com a dor assolando lsquoessarsquo exclama lsquoeacute a recompensa

que me paga por meu grande presente filhorsquo Eu admito que mereccedilo esse barco te gerei dei a ti a luz o poder e o nome de Ceacutesar []rsquo [] A aacutegua afoga sua boca ela afunda no oceano e emerge [] Muitos [] corajosamente ajudam sua senhora [] Do que te foi uacutetil fugir do mar selvagem Tu estaacutes prestes a morrer pela matildeo do teu filho

cujo crime a posteridade natildeo esqueceraacute Nero se enfurece pelo resgate [] Ele apressa o destino de sua matildee [] Um capanga obedece agraves ordens abre seu peito com ferro Morrendo a infeliz pede a seu carrasco para que afunde a espada cruel em seu uacutetero dizendo lsquoafunde aqui sua espada aqui

onde essa monstruosidade nasceursquordquo564

564

[Chorus] Vera priorum uirtus quondam Romana fuit uerumque genus Martis in illis

sanguisque uiris Illi reges hac expulerunt urbe superbos [] Haec quoque nati uidere nefas

saecula magnum cum Tyrrhenum rate ferali princeps captam fraude parentem misit in

aequor Properant placidos linquere portus iussi nautae resonant remis pulsata freta fertur

in altum prouecta ratis quae resoluto robore labens pressa dehiscit sorbetque mare Tollitur

ingens clamor ad astra cum femineo mixtus planctu mors ante oculos dira uagatur quaerit

leti sibi quisque fugam alii lacerae puppis tabulis haerent nudi fluctusque secant repetunt alii

litora nantes multos mergunt fata profundo Scindit uestes Augusta suas laceratque comas

rigat et maestis fletibus ora postquam spes est nulla salutis ardens ira iam uicta malis lsquohaecrsquo exclamat lsquomihi pro tanto munere reddis praemia nate hac sum fateor digna carina

quae te genui quae tibi lucem atque imperium nomenque dedi Caesaris amens Exere uultus

Acheronte tuos poenisque meis pascere coniunx ego causa tuae miserande necis natoque

tuo funeris auctor en ut merui ferar ad manes inhumata tuos obruta saeuis aequoris undisrsquo

Feriunt fluctus ora loquentis ruit in pelagus rursumque salo pressa resurgit pellit palmis

cogente metu freta sed cedit fessa labori Mansit tacitis in pectoribus spreta tristi iam morte

fides multi dominae ferre auxilium pelago fractis uiribus audent bracchia quamuis lenta

trahentem uoce hortantur manibusque leuant Quid tibi saeui fugisse maris profuit undas

ferro es nati moritura tui cuius facinus uix posteritas tarde semper saecula credent Furit

ereptam pelagoque dolet uiuere matrem impius ingens geminatque nefas ruit in miserae fata

parentis patiturque moram sceleris nullam missus peragit iussa satelles reserat dominae

pectora ferro Caedis moriens illa ministrum rogat infelix utero dirum condat ut ensem lsquohic

est hic est fodiendusrsquo ait lsquoferro monstrum qui tale tulitrsquo ([Sen] Oct 291-372) Traduccedilatildeo de

Gozo (2016 p 26-29)

151

O matriciacutedio eacute cantado pelo coro em pormenores o filho lanccedila a matildee no

mar Tirreno em um navio mortal a morte a suga e ela quase se afoga no oceano

profundo ela magoa-se com a ldquorecompensardquo do filho pois deu a ele um Impeacuterio e

o nome de Ceacutesar e salva-se do naufraacutegio mas eacute assassinada friamente por um

ldquocapangardquo enviado a mando de Nero A nosso ver uma boa maneira de ler essa

descriccedilatildeo eacute a partir das interpretaccedilotildees poliacuteticas propostas por Coradini e

Lefebvre565

No iniacutecio do trecho o coro deixa claro que os soberanos

antepassados detinham a virtude uma vez que neles havia a verdadeira linhagem e

o sangue de Marte Como ilustraccedilatildeo cita Luacutecio Juacutenio Bruto liacuteder que expulsou o

monarca Tarquiacutenio o soberbo de Roma em 509 aC e ajudou a fundar a

Repuacuteblica Ou seja o coro defende que os tempos preteacuteritos eram bons porque

havia uma boa aristocracia indiviacuteduos que combatiam injusticcedilas e evitavam que

tiranias se afirmassem Em contrapartida os tempos presentes satildeo apontados

como ruins porque possuem Nero agrave frente do Impeacuterio soberano que cometeu o

ldquocrime odiosordquo de assassinar a matildee e natildeo foi punido566

Ele eacute o princeps que

ofende a uirtus dos antepassados colocando Roma sob uma eacutepoca de medo Para

as autoras entatildeo Pseudo-Secircneca estaacute dizendo que o pior momento da histoacuteria do

Impeacuterio foi aquele sob a administraccedilatildeo de Nero porquanto ele natildeo conhecia

limites para concretizar seus desejos extinguindo tudo quanto fosse obstaacuteculo

inclusive a matildee Tal reflexatildeo associada a outros elementos da trageacutedia como o

diaacutelogo anterior com Secircneca sugere uma visatildeo pessimista da histoacuteria por parte do

autor567

O mito tradicional da degenerescecircncia do mundo junta-se na Octavia a

um lugar-comum caro aos romanos aquele que elogia os antepassados e critica os

contemporacircneos Eacute portanto dentro desse contexto que o autor constroacutei a

representaccedilatildeo do Nero matricida sujeito que subjugou Roma a um scelus

nefarium (seacuteculo nefasto)

Apoacutes a morte de Agripina temos os episoacutedios do divoacutercio do exiacutelio e do

assassinato de Otaacutevia ocorridos em 62 Ao planejar o casamento com Popeia

Nero ordena ao centuriatildeo que coloque a imperatriz em um barco leve-a para a

Ilha da Pandataria e a elimine568

Quando ouve a notiacutecia Otaacutevia exclama

565

CORADINI 1997 p 83-84 LEFEBVRE 2017 p 34 566

Para contrapor o fato de Nero natildeo ter sido punido Pseudo-Secircneca cita histoacuterias romanas antigas

em que atos nefandos eram rigorosamente punidos ([Sen] Oct 294-299) 567

MOURA 1998 p 188 568

[Sen] Oct 874-876

152

[Otaacutevia] ldquoPara onde me levais Que lugar de exiacutelio o tirano

ou a rainha [Popeia] me ordenam Assim condoiacuteda ela me concede a vida jaacute vencida por meus numerosos males mas se com a minha morte pretende completar meus infortuacutenios por que tambeacutem me impede cruel de morrer em minha paacutetria

[] Vejo o barco do meu irmatildeo Este eacute o barco que um dia carregou sua matildee e agora carregaraacute a irmatilde expulsa do leito ai de mim [] Eis que o perverso tirano me envia tambeacutem ao mundo das tristes sombras e dos manesrdquo569

Otaacutevia eacute representada por Pseudo-Secircneca como uma viacutetima inocente do

soberano uma mulher negligenciada pelo marido trocada por uma ldquorainhardquo e

ainda enviada para a proacutepria morte Tudo isso em consequecircncia das accedilotildees

passionais de um ldquoperverso tiranordquo570

Aqui eacute essencial assinalar a escrita

tendenciosa do autor pois ele natildeo tece nenhum comentaacuterio acerca dos possiacuteveis

interesses poliacuteticos envolvidos na eliminaccedilatildeo da imperatriz Como relembra

Segurado e Campos Otaacutevia era filha legiacutetima de Claacuteudio e uacuteltima descendente

consanguiacutenea da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Apoacutes os assassinatos de Britacircnico

Agripina Plauto e Sula ela era a uacuteltima oposiccedilatildeo dentro da famiacutelia imperial isto

eacute o uacuteltimo obstaacuteculo para o princeps conquistar o poder por completo571

Sua

execuccedilatildeo entatildeo poderia ser muito mais poliacutetica do que passional Na percepccedilatildeo

de Garson e Pita o fato de Otaacutevia ainda estar viva era uma lembranccedila constante

para Nero de que ele natildeo detinha um nascimento tatildeo nobre quando o dela e o de

Britacircnico Nesse sentido o assassinato estaria atrelado agrave consciecircncia do princeps

de que sua ascensatildeo ao poder era questionaacutevel572

Segundo Griffin Nero deve ter

planejado o homiciacutedio visando a fortalecer o seu poder e a exterminar de vez

qualquer possiacutevel rival da linhagem Juacutelio-Claacuteudia ndash o que ele queria era

569

[Octauia] Quo me trahitis quodue tyrannus aut exilium regina iubet sic mihi uitam fracta

remittit tot iam nostris euicta malis sin caede mea cumulare parat luctus nostros inuidet

etiam cur in patria mihi saeua mori [] fratris cerno miseranda ratem hac est cuius uecta

carina quondam genetrix nunc et thalamis expulsa soror miseranda uehar [] Me quoque

tristes mittit ad umbras ferus et manes ecce tyrannus ([Sen] Oct 899-959) Traduccedilatildeo de Gozo

(2016 p 54-56) 570

BAUMAN 1994 p 207-208 571

SEGURADO E CAMPOS 1972 p 651-652 572

GARSON 1975 p 755 PITA 2006 p 64

153

consolidar sua posiccedilatildeo573

E para tanto natildeo poderia apenas se divorciar de

Otaacutevia pois uma princesa divorciada de nascimento real e viva era uma tentaccedilatildeo

grande demais para qualquer um que pretendesse remover Nero Essas questotildees

poreacutem natildeo satildeo mencionadas pelo poeta o qual prefere atribuir o crime soacute agrave

frivolidade do soberano qualificando-o como Nero uxoricida e Nero cruel574

As queixas de Otaacutevia intercalam-se com os lamentos do coro romano que

cita os pesados fados da domus Juacutelio-Claacuteudia Exiacutelios accediloites grilhotildees funerais

lutos torturas e mortes satildeo alguns dos exemplos dos infortuacutenios citados que

proporcionaram dias terriacuteveis e instaacuteveis para a dinastia fazendo-a perder

membros importantes575

O intrigante eacute que em nenhum momento Pseudo-Secircneca

associa o fim da dinastia a esses eventos traacutegicos preteacuteritos Ao contraacuterio coloca

Nero como o culpado por tal fim Essa culpabilidade aliaacutes jaacute eacute apontada desde o

episoacutedio do assassinato de Britacircnico em que Otaacutevia disse agrave sua escrava que seu

irmatildeo era o uacuteltimo ldquopilar da casa de Augustordquo e sua serva respondeu desejando

que sua domina permanecesse viva ldquopara restituir a casa decadenterdquo do pai com

filhos576

Dessa forma Nero jaacute vinha eliminando os descendentes da famiacutelia

imperial haacute algum tempo chegando ateacute a excluir a possibilidade de ter filhos

pertencentes a essa genealogia Isso nos permite interpretar o homiciacutedio de Otaacutevia

como a concretizaccedilatildeo de um plano usurpador do princeps de fundar sua proacutepria

dinastia Aenobarba independente e com fortes tendecircncias tiracircnicas

Depois do assassinato da imperatriz o princeps finalmente casa-se com

Popeia No dia do enlace o fantasma de Agripina retorna do inferno para

relembrar a trageacutedia da sua morte

[Agripina] ldquoRompi a terra e saiacute do Taacutertaro minha matildeo ensanguentada carrega uma tocha infernal

para o funesto casamento sob essas chamas Popeia se case com meu filho as quais matildeo vingativa e a dor de matildee transformaratildeo em tristes piras fuacutenebres Permanece em meio agraves sombras sempre a lembranccedila de minha morte iacutempia [] como pagamento para meus serviccedilos recebi um navio mortal [] [] Uma Eriacutenia vingativa prepara uma morte digna para o iacutempio tirano []rdquo577

573

GRIFFIN 2001 p 99 574

FERRI 2003 p 4 575

[Sen] Oct 924-957 576

[Sen] Oct 109-242 577

[Agrippina] Tellure rupta Tartaro gressum extuli Stygiam cruenta praeferens dextra facem

thalamis scelestis nubat his flammis meo Poppaea nato iuncta quas uindex manus dolorque

154

Na passagem Pseudo-Secircneca apresenta Agripina amaldiccediloando as novas

bodas de Nero com as matildeos ensanguentadas portando uma tocha infernal Ela

estaacute visivelmente ressentida com a traiccedilatildeo do filho e deseja revidar a sua morte

pois a lembranccedila do seu assassinato a acompanha em meio agraves sombras A maacutegoa eacute

grande porque para ela foi ela quem dera o trono ao filho e ele ingrato natildeo

reconheceu os seus meacuteritos578

Assim profetiza o falecimento do princeps

dizendo que uma Eriacutenia vingativa prepararia uma ldquomorte dignardquo para o ldquoiacutempio

tiranordquo579

Eacute no meio dessa ldquosede de vinganccedilardquo que estaacute o episoacutedio do casamento

do imperador com Popeia sendo o evento tambeacutem amaldiccediloado por Agripina A

finada matrona afirma que Popeia ateacute poderia desposar Nero mas as chamas da

sua ldquotocha infernalrdquo transformariam a uniatildeo em ldquotristes piras fuacutenebresrdquo A tocha

aqui eacute o elemento-chave para a interpretaccedilatildeo do trecho De acordo com Ferri nas

cerimocircnias nupciais gregas e romanas era costume a matildee do noivo carregar

tochas haja vista que as chamas atraiacuteam fertilidade e longevidade para a uniatildeo580

A fuacuteria de Agripina entretanto metamorfoseou as tochas nupciais e seus

pressaacutegios positivos em tochas fuacutenebres as quais eram costumeiramente

utilizadas segundo Carvalho e Omena para iluminar o cortejo fuacutenebre e queimar

o corpo do defunto581

ndash ou seja ela empregou as tochas de forma invertida usou

as chamas de bons pressaacutegios para trazer o mau agouro do assassinato de Nero

As bodas resultariam em oacutebitos eram um ldquofunesto casamentordquo O soberano

morreria e pagaria por todas as suas maldades afinal era um Nero cruel que

matou a matildee assassinou a esposa e estava se casando com a amante582

Para

Kragelund a junccedilatildeo dos elementos do fantasma com a vinganccedila e a do crime com

matris uertet ad tristes rogos manet inter umbras impiae caedis mihi semper memoria manibus nostris grauis adhuc inultis reddita et meritis meis funesta merces puppis et pretium imperi

nox illa qua naufragia defleui mea iam parce dabitur tempus haud longum peto ultrix Erinys

impio dignum parat letum tyranno [] ([Sen] Oct 593-620) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 41-

42) 578

[Sen] Oct 609-613 579

HARRISON 2015 p 120 580

O uso da tocha era feito para evocar a presenccedila dos deuses Eros e Himeneu A primeira deidade

era responsaacutevel grosso modo por acender a chama do amor nos coraccedilotildees dos noivos e sua

apariccedilatildeo trazia fecundidade Eros era frequentemente retratado como um garotinho alado de

cabelos loiros e portando um arco e flecha ou uma tocha acesa A segunda deidade era responsaacutevel

por conduzir o cortejo nupcial e sua vinda trazia durabilidade para o enlace Seus distintivos eram

a tocha uma coroa de flores e por vezes uma flauta (GRIMAL 2005 p 149 p 229) 581

CARVALHO E OMENA 2014 p 234 582

FERRI 2003 p 296

155

a puniccedilatildeo ilustram muito bem como Pseudo-Secircneca sabia se agarrar a questotildees e a

discursos que reforccedilariam a imagem negativa de Nero583

Eacute no contexto de tal casamento que Pseudo-Secircneca retrata o episoacutedio do

incecircndio de Roma sucedido em 64 O autor representa o princeps furioso com a

plebe da Vrbs porquanto ela repudiara publicamente o seu divoacutercio de Otaacutevia e o

seu enlace com Popeia O repuacutedio eacute manifestado atraveacutes da derrubada das estaacutetuas

de Popeia por toda a cidade cujo maacutermore claro eacute coberto com ldquolama ascosa e

pisadardquo584

Ao tomar conhecimento desse feito Nero proclama

[Nero] ldquoMas jaacute eacute pouco punir os crimes com a morte O iacutempio crime da plebe merece puniccedilatildeo mais grave Ela que o furor dos cidadatildeos lanccedila contra mim [] deve [] extinguir minha ira com seu sangue Que em breve o teto da cidade caia pelas minhas chamas

o fogo e a ruiacutena oprimam esse povo perverso e uma torpe miseacuteria e a fome e ainda o luto [] Essa turba corrupta e ingrata nem percebe minha clemecircncia [] Deve ser dominada com sofrimentos e oprimida por pesado jugo [] Fragilizada pelos castigos e com medo aprenderaacute a obedecer conforme o desejo do seu priacutenciperdquo585

Eacute niacutetida no excerto a coacutelera de Nero com a populaccedilatildeo de Roma taxada

por ele de ldquoingratardquo e ldquocorruptardquo Para puni-la ele pensa em condenar todos os

indiviacuteduos agrave morte mas logo percebe que o castigo natildeo seria perverso o

suficiente Assim planeja incendiar a cidade no intuito de oprimir o povo

extinguir a sua ira e instaurar a miseacuteria586

As fontes posteriores nos revelam que o

incecircndio foi grande em escala e feroz em velocidade durando nove dias

Comeccedilou na regiatildeo sul da Vrbs na parte do Circus Maximus adjacente agraves colinas

do Palatino e foi interrompido na regiatildeo norte ao peacute do Esquilino Dos 14

distritos em que a cidade estava dividida quatro permaneceram intactos trecircs

583

KRAGELUND 2016 p 243 p 262 584

[Sen] Oct 794-799 585

[Nero] Admissa sed iam morte puniri parum est grauiora meruit impium plebis scelus en

illa cui me ciuium subicit furor suspecta coniunx et soror semper mihi tandem dolori spiritum

reddat meo iramque nostram sanguine extinguat suo mox tecta flammis concidant urbis meis

ignes ruinae noxium populum premant turpisque egestas saeua cum luctu fames Exultat ingens

saeculi nostri bonis corrupta turba nec capit clementiam ingrata nostram ferre nec pacem

potest sed inquieta rapitur hinc audacia hinc temeritate fertur in praeceps sua malis

domanda est et graui semper iugo premenda ne quid simile temptare audeat contraque sanctos

coniugis uultus meae attollere oculos fracta per poenas metu parere discet principis nutu sui

([Sen] Oct 825-844) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 50-51) 586

PITA 2006 p 72-73 PRADO TEIXEIRA 2005 p 68

156

ficaram totalmente arrasados e sete subsistiram com edifiacutecios em ruiacutenas e

carbonizados587

Templos casas particulares lojas e corticcedilos tudo sucumbiu agraves

chamas588

Esse incecircndio todavia natildeo foi o primeiro sofrido pela capital

Segundo os estudiosos modernos Roma jaacute enfrentava incecircndios frequentes desde

o saque dos gauleses em 390 aC A grande populaccedilatildeo da Vrbs somada aos seus

preacutedios construiacutedos com material inflamaacutevel tornava essas ocorrecircncias

inevitaacuteveis589

O intrigante eacute que independentemente das causas provaacuteveis

Pseudo-Secircneca automaticamente atribui a culpa do incecircndio a Nero E o pior

associa o fogo ao desejo do soberano de retaliar a plebe pelos tumultos favoraacuteveis

a Otaacutevia pois ele queria casar-se com Popeia Essa postura do autor eacute refletida por

Closs com perspicaacutecia Octauia eacute uma ldquotrageacutedia de vinganccedilardquo na qual Nero

esboccedila a destruiccedilatildeo da cidade O princeps eacute desenhado como um Nero incendiaacuterio

e um Nero cruel incapaz de dominar tanto a populaccedilatildeo romana quanto suas

proacuteprias paixotildees planejando sitiar sua proacutepria Vrbs em represaacutelia pelo levante

civil montado contra ele590

Acerca da passagem eacute importante destacar ainda que

a acusaccedilatildeo de Nero como incendiaacuterio seraacute praticamente uma constante nos seacuteculos

seguintes e nessa trageacutedia as razotildees e as circunstacircncias do incecircndio estatildeo bem

distantes das que iratildeo predominar depois Notemos que natildeo haacute por exemplo

menccedilatildeo aos cristatildeos os quais passaratildeo a ter centralidade nos relatos sobre o

incecircndio especialmente em sociedades que tinham no Cristianismo uma doutrina

relevante Por oacutebvio natildeo eacute o caso da sociedade em que vivia Pseudo-Secircneca

Portanto resta claro que as apropriaccedilotildees dos eventos relativos agrave vida de Nero vatildeo

se alterando conforme mudam as sociedades que os relatam

Para finalizar vejamos o uacuteltimo episoacutedio o da construccedilatildeo da Domus

Aurea iniciada a partir do ano 65 Tal evento eacute mencionado ironicamente por

Agripina no mesmo excerto em que ela amaldiccediloa o novo casamento do filho

587

No ano 7 Augusto dividiu a cidade de Roma em 14 distritos e tomou providecircncias para que

alguns fossem tutelados por magistrados escolhidos por sorteio a cada ano e outros por ldquomestresrdquo

escolhidos entre a plebe de cada distrito (Suet Aug 301) 588

Tac Ann 1538-41 Suet Nero 38 Dio 62162-6 589

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 149 590

CLOSS 2013 p 203-204

157

[Agripina] ldquoAinda que esse soberbo construa um palaacutecio de

maacutermore e o cubra de ouro [] viraacute o dia e o tempo em que ele entregaraacute a alma culpado por seus crimes e a garganta para seus inimigos sozinho destruiacutedo e privado de tudordquo591

A Domus Aurea integrava um complexo de edifiacutecios de diferentes

tamanhos espalhados entre os montes Palatino e Esquilino todos dentro de um

enorme parque com jardins lagos bosques vinhas zonas agriacutecolas e pastorais O

terreno do Palaacutecio dourado propriamente dito incluiacutea um enorme vestiacutebulo um

grande lago retangular cercado por elaborados terraccedilos e colunatas uma fonte

ldquoartificialmente naturalrdquo e uma aacuterea aberta com construccedilotildees menores a exemplo

do Templo da Fortuna No interior da residecircncia havia duas salas de jantar

flanqueadas por um paacutetio octogonal sendo este coroado por uma cuacutepula com um

gigante oacuteculo central para permitir a entrada de luz592

Tamanha suntuosidade

ficava agrave disposiccedilatildeo somente de Nero e dos seus ldquoamigosrdquo convidados para

banquetes leituras de poemas danccedilas entre outros divertimentos Tudo isso na

visatildeo de Agripina eacute apontado como algo inuacutetil pois mesmo ostentando riqueza e

oferecendo agrados para os ldquoamigosrdquo o Nero construtor terminaria seus dias

sozinho destruiacutedo e privado de tudo Ele morreria e ningueacutem viria a seu favor

Ela entatildeo menospreza a Domus Aurea frisando a superficialidade de cobrir um

palaacutecio de ouro A nosso ver essa profecia de Agripina deve ter soado aos

ouvintes da eacutepoca em que a trageacutedia foi escrita como algo muito vivo pois Nero

como veremos suicidou-se em escassa companhia e fora dos recintos da Domus

Aurea em uma instalaccedilatildeo humilde nos arredores de Roma593

Ademais sob

Vespasiano boa parte da Domus Aurea ndash construccedilatildeo monumental erigida para

durar ndash jaacute tinha deixado de existir dando lugar a obras construiacutedas por aqueles

que acusavam Nero de ter edificado monumentos exageradamente Uma dessas

obras inclusive foi o Anfiteatro Flaacutevio conhecido hoje como Coliseu edificado

no local onde estavam uma parte dos jardins e o lago da Domus Aurea Assim

591

[Agrippina] licet extruat marmoribus atque auro tegat superbus aulam limen armatae ducis

seruent cohortes mittat immensas opes exhaustus orbis supplices dextram petant Parthi

cruentam regna diuitias ferant ueniet dies tempusque quo reddat suis animam nocentem

sceleribus iugulum hostibus desertus ac destructus et cunctis egens ([Sen] Oct 624-631)

Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 42-43) 592

COARELLI 2007 p 180-181 593

Suet Nero 491-4

158

Octavia produz um efeito de verossimilhanccedila profeacutetica proacutepria daqueles que

falam desde o reino dos mortos toacutepica eacutepica bem conhecida por figurar na

Odisseia e na Eneida Com esse efeito as previsotildees e tambeacutem as avaliaccedilotildees de

Agripina se apresentaram como verdades aos ouvintes Nero morreraacute

iniquamente sua casa natildeo perduraraacute e ele era um tirano

Em siacutentese no decorrer da leitura da Octauia identificamos 11 das nossas

categorias de anaacutelise 1) Nero infausto conectada ao episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero

2) Nero tirano atrelada ao episoacutedio do casamento com Otaacutevia 3 ) Nero infausto

vinculada ao episoacutedio da ascensatildeo de Nero 4) Nero fratricida relacionadas ao

episoacutedio do assassinato de Britacircnico 5) Nero matricida ligada ao assassinato de

Agripina 6 e 7) Nero uxoricida e Nero cruel articuladas ao exiacutelio e ao

assassinato de Otaacutevia 8) Nero cruel concatenada ao casamento com Popeia 9 e

10) Nero incendiaacuterio e Nero cruel associadas ao incecircndio de Roma 11) Nero

construtor relativa agrave construccedilatildeo da Domus Aurea Vimos tambeacutem que a tirania

foi um fenocircmeno recorrente sendo Nero representado como um liacuteder petulante

vingativo e totalmente passional594

O cenaacuterio por traacutes da obra esteve recheado de

atrocidades tivemos adoccedilatildeo e ascensatildeo infausta fratriciacutedio matriciacutedio uxoriciacutedio

e incecircndio accedilotildees que ofereceram um potencial tiracircnico perfeitamente explorado

por Pseudo-Secircneca Natildeo agrave toa ele denominou o princeps de tirano 13 vezes ao

longo da trageacutedia sendo nove delas de modo expliacutecito e quatro de modo

impliacutecito595

A seu ver ndash e aqui citamos Prado e Teixeira ndash Nero usou de suas

prerrogativas como imperador para fazer valer sua vontade a todos e ordenou uma

seacuterie de execuccedilotildees poliacuteticas e o incecircndio da cidade596

Sem duacutevida entatildeo a

literatura prodigiosa neroniana iniciou o seu processo de metamorfose aqui O

soberano tatildeo elogiado na Apocolocyntosis no De Clementia nas Eclogae e na

Pharsalia natildeo existe mais suas qualidades desapareceram e seus defeitos

passaram a ser apontados597

A visatildeo negativa sobre Nero estaacute tomando forma e

suas histoacuterias de crueldade estatildeo surgindo598

O projeto dos Flavianos de

legitimaccedilatildeo poliacutetica comeccedilou perspicazmente A Octauia deu os primeiros passos

594

BILLOT 2003 p 130 595

Denominaccedilotildees expliacutecitas [Sen] Oct 33 87 110 250 303 610 620 899 958) Impliacutecitas

[Sen] Oct 65-69 443 453 470-471 596

PRADO TEIXEIRA 2005 p 68 597

GARSON 1975 p 756 598

WILLIAMS 1994 p 191

159

rumo agrave difamaccedilatildeo de Nero599

ndash natildeo randomicamente portanto Griffin diz a obra

estabeleceu Nero como ldquoo proverbial tirano [] uma mera encarnaccedilatildeo da vontade

para o mal natildeo afetado por conselhos ou influecircnciardquo600

Aleacutem disso se olharmos com atenccedilatildeo para alguns detalhes da trageacutedia

veremos uma estreita conexatildeo entre inuentio e allelopoiesis Por certo para

representar Nero Pseudo-Secircneca leu as narrativas de Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e

Lucano e construiu seus proacuteprios argumentos com base nos dos trecircs organizando-

os segundo seus interesses Tal organizaccedilatildeo a nosso ver foi feita a partir da

inversatildeo dos argumentos positivos dos trecircs autores a qual criou um novo Nero

com base no Nero do passado (um novo Nero anti-Nero) Vejamos como isso se

deu na praacutetica

Em relaccedilatildeo a Secircneca o tragedioacutegrafo utilizou as ideias contidas na

Apocolocyntosis para modificar a associaccedilatildeo entre Claacuteudio e Nero Na saacutetira

menipeia o governo neroniano foi apresentado como a superaccedilatildeo da autocracia

claudiana Agora na Octauia eacute exibido como a decadecircncia da casa de Claacuteudio

Ainda falando do filoacutesofo estoico Pseudo-Secircneca aproveitou as premissas

contidas no De Clementia para alterar a imagem do Nero clemente No tratado o

princeps foi descrito como o modelo virtuoso de governante aquele que superou

Augusto e soube preservar os interesses dos seus suacuteditos Na trageacutedia ele eacute

figurado como algueacutem que natildeo deseja superar Augusto mas igualar-se a ele por

usar a forccedila e natildeo mais a clemecircncia O emprego da forccedila se volta para o

tratamento dos seus suacuteditos ndash inclusive para puni-los indistintamente a exemplo

do episoacutedio do incecircndio

No tocante a Calpuacuternio Siacuteculo este pautou-se nas estrofes das Eclogae

para transfigurar o retrato de Nero como um novo Augusto Na poesia pastoril o

Principado neroniano foi louvado como o retorno do seacuteculo aacuteureo augustano

Aqui seu governo eacute representado como um seacuteculo nefasto

Por uacuteltimo Lucano se embasou nos versos da Pharsalia para mudar o

sentido positivo da ascensatildeo de Nero Na eacutepica a vinda do soberano foi vista

como o resultado de um processo ascendente que comeccedilou nas guerras civis e

terminou com a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de paz e prosperidade Nesse

momento eacute figurada como fruto de um longo processo decadente que iniciou

599

LEFEBVRE 2017 p 32 600

GRIFFIN 2001 p 100

160

com os anos virtuosos dos antepassados romanos e finalizou com o

estabelecimento de um periacuteodo do medo

Enfim foi assim que Pseudo-Secircneca montou o seu novovelho Nero

ressignificando elementos do passado enquanto ressignificava elementos do

presente Isso o fez modificar natildeo soacute a forma como via Nero mas tambeacutem como

achava que os outros deveriam tecirc-lo visto ou passarem a vecirc-lo Dessa forma a

obra procura mudar tanto a forma como se deveria entender o passado neroniano

quanto o modo como esse mesmo passado poderia ser visto aludindo a uma

maneira nova de perspectiva e nesse caso positiva com a instauraccedilatildeo da nova

dinastia no poder Por allelopoiesis o passado e o presente se construiacuteram

mutuamente o passado fez sentido pelo presente e vice-versa Essa ligaccedilatildeo natildeo

se fez livremente ou a partir do nada mas se pautou em uma tradiccedilatildeo que

estabeleceu ao mesmo tempo por um lado esses elementos centrais a serem

utilizados por meio da inuentio e por outro as possibilidades de criaccedilatildeo que

deram um patamar comum reconheciacutevel pelo autor e tambeacutem por seus ouvintes

Pliacutenio o Velho Naturalis Historia

A difamaccedilatildeo de Nero torna-se ainda mais acentuada na obra Naturalis

Historia escrita por Pliacutenio o Velho entre 77 e 78601

Caio Pliacutenio Segundo nasceu

em Novo Como na proviacutencia Cisalpina no norte da Peniacutensula Itaacutelica por volta

do ano 23 no decurso do Principado de Tibeacuterio Membro de uma abastada famiacutelia

equestre os Plinii viveu o iniacutecio da infacircncia na sua regiatildeo natal migrando para

Roma quando tinha sete anos onde realizou estudos retoacutericos com o grammaticus

Apiatildeo entre 31 a 34 e assumiu a toga virilis602 na idade usual em 39 Ao atingir

a juventude dedicou-se agrave carreira militar tornando-se de 47 a 57 praefectus

alae603 nas proviacutencias das Germacircnias superior e inferior posiccedilatildeo que exerceu

juntamente a Domiacutecio Corbulatildeo Pompocircnio Segundo e o futuro imperador Tito

601

As fontes antigas que tratam da vida de Pliacutenio o Velho satildeo trecircs Cartas do seu sobrinho Pliacutenio

o Jovem uma breve nota biograacutefica geralmente atribuiacuteda a Suetocircnio e passagens retiradas da sua

Naturalis Historia Usaremos principalmente as Cartas 602

Segundo Harrill (2002 p 255) assumir a toga virilis significava passar por uma seacuterie de rituais

que marcavam a maioridade (ou a puberdade) de um menino na sociedade romana O rito era

frequentemente celebrado entre os 14 e os 16 anos e tinha uma procissatildeo puacuteblica ateacute o Foacuterum O

menino deixava de lado seu amuleto apotropaico (bulla) e sua toga praetexta da infacircncia para

vestir a ldquotoga da masculinidaderdquo (toga virilis) 603

Comandante de alguma legiatildeo eou destacamento de legiatildeo militar (OCD 2012 p 1202)

161

(filho de Vespasiano) Enquanto esteve laacute escreveu De Iaculatione Equestri

(Sobre o Uso do Dardo como Arma da Cavalaria) Bella Germaniae (Histoacuteria da

Guerra de Roma contra os Germacircnicos) e De Vita Pomponi Secundi (Sobre a

Vida de Pompocircnio Segundo)604

Em 59 retornou a Roma com a intenccedilatildeo de

exercer a advocacia mas por motivos desconhecidos pelos estudiosos natildeo o fez e

permaneceu afastado da vida puacuteblica Esse afastamento na visatildeo de Syme pode

ser explicado pelo ciuacuteme de Nero em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos com reconhecimento

puacuteblico eou eminecircncia de nascimento O ciuacuteme estaacute na origem de muita

perseguiccedilatildeo atribuiacuteda a Nero embora isso pareccedila contraditoacuterio haja vista que ele

estimulava as artes605

Essa eacute a razatildeo apontada para que Pliacutenio tenha se afastado

da vida puacuteblica mantendo-se discreto e devotando seus talentos ao trabalho

seguro de redigir livros sobre gramaacutetica a exemplo de Studiosus (Tratado sobre a

Educaccedilatildeo do Orador) e Dubius Sermo (Tratado sobre a Liacutengua Latina) Apoacutes a

morte de Nero reinseriu-se na esfera puacuteblica posicionando-se favoravelmente agrave

nova dinastia Como recompensa foi nomeado entre 70 e 77 procurador de

quatro proviacutencias (Gaacutelia Narbonense Aacutefrica Hispacircnia Tarraconense e Gaacutelia

Beacutelgica) e prefeito da frota de Miseno na baiacutea de Naacutepoles606

Nessa eacutepoca

compocircs A Fine Aufidi Bassi (uma histoacuteria que dava continuidade agravequela escrita

por Aufiacutedio Basso possivelmente da morte de Claacuteudio em diante) e Naturalis

Historia Tempos depois voltou agrave capital do Impeacuterio e atuou como membro do

conselho de Vespasiano e de Tito Pliacutenio morreu no dia 24 de agosto de 79

durante a erupccedilatildeo do Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano Seu sobrinho

Pliacutenio o Jovem conta-nos que ele faleceu ao se aproximar para ver a erupccedilatildeo

sendo asfixiado por gases toacutexicos607

De todas as obras produzidas por ele somente a Naturalis Historia e o

Dubius Sermo sobreviveram ao processo de transmissatildeo As demais perderam-se

Organizada em 37 livros constitui um estudo metoacutedico da natureza o qual

envolve o cosmos (livro II) a geografia mundial (livros III-VI) criaturas vivas

(livros VII-XI) plantas (livro XII) medicamentos (livros XX-XXXII) metais e

604

Plin Ep 35 616 620 CHILVER 1941 p 106-107 MAXWELL-STUART 1995 p 1 605

SYME 1969 p 210 606

Plin Ep 35 616-20 Para dados sobre a carreira militar de Pliacutenio cf SYME 1969 p 201-

236 607

Plin Ep 35 616 620

162

minerais (livros XXXIII-XXXVII)608

Todos os livros satildeo precedidos por um

prefaacutecio elogioso dirigido a Tito princeps ldquodigniacutessimordquo609

No decorrer da

coletacircnea Pliacutenio expotildee os fenocircmenos do universo e mostra aos leitores como

deveriam relacionar-se com o mundo natural revelando o senso de respeito

apropriado Ao fazer isso tambeacutem conduz os leitores pelas tradiccedilotildees pelas

fantasias e pelos preconceitos por meio dos quais os romanos observavam o

mundo isto eacute os sistemas culturais com os quais entendiam a realidade610

Por se tratar de uma composiccedilatildeo que aborda assuntos tatildeo diversos a

Naturalis Historia eacute classificada na contemporaneidade como uma enciclopeacutedia

Todavia Murphy afirma que essa classificaccedilatildeo precisa ser vista com cuidado

caso contraacuterio associaremos os pressupostos das enciclopeacutedias modernas a um

artefato da cultura claacutessica sem as devidas ressalvas A definiccedilatildeo atual de

enciclopeacutedia segundo Arnar eacute livro que encapsula um corpo total ou universal

de conhecimento organizado de forma a preservaacute-lo e tornaacute-lo acessiacutevel a um

grande puacuteblico611

Com base nessa definiccedilatildeo Murphy afirma que a obra de Pliacutenio

simultaneamente eacute e natildeo eacute uma enciclopeacutedia Ela eacute porque exibe algumas

caracteriacutesticas do gecircnero tais como a preservaccedilatildeo do conhecimento amplo e a

imposiccedilatildeo de um sistema ao conhecimento dividido em campos de investigaccedilatildeo

E natildeo eacute porque o conceito de enciclopeacutedia natildeo existia na Antiguidade sendo

cunhado por Franccedilois Rabelais soacute em 1532 a partir de uma assimilaccedilatildeo errocircnea

do conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία612

Assim Pliacutenio natildeo concebeu a Naturalis

Historia como uma enciclopeacutedia no maacuteximo redigiu-a como um tratado um

material de consulta613

Mesmo assim os estudiosos assim a denominam devido agrave

tradiccedilatildeo literaacuteria construiacuteda em torno dela ou seja agrave forma como foi lida e

consultada ao longo do tempo Ignorar esse uso para Murphy significa descartar

608

BOSTOCK RILEY 1855 p xvi-xvii Para uma ilustraccedilatildeo conveniente de como a Naturalis

Historia eacute organizada cf ISAGER 2006 p 48 609

Plin Nat Pr 1 610

BEAGON 1992 p 26-54 611

ARNAR 1990 p xi 612

O conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία diz respeito a uma junccedilatildeo de ἐγκύκλιος (enkykliosldquomover-

se em ciacuterculosrdquo) com παιδεία (paideialdquoeducaccedilatildeordquo) cujo sentido era ldquotreinamento geralrdquo ou

ldquoeducaccedilatildeo diaacuteria geral recebida por todosrdquo Logo a noccedilatildeo de enciclopeacutedia ndash como a entendemos

hoje ndash natildeo existia para os antigos gregos (OCD 2002 p 95-209) Foi Rabelais quem fantasiou e

inventou a Enciclopeacutedia do grego ἐγκύκλιος παιδεία Ele estava preso entre as palavras e as coisas

ao redigir o seu livro Pantagruel (JACOB 1996 p 44) 613

Para Conte (1999 p 500-501) eacute bem provaacutevel que Pliacutenio tenha elaborado a Naturalis Historia

como um tratado haja vista que essa era uma tendecircncia cultural comum entre os romanos Como

exemplos de tratados temos os trabalhos de Varratildeo Vitruacutevio Columela e Quintiliano

163

os processos pelos quais passamos a lecirc-la614

Abandonar a ideia de que ela eacute uma

enciclopeacutedia soacute por ser anacrocircnico ldquo[] levaria ao subsolo as premissas e

suposiccedilotildees que colorem nossas leituras atuaisrdquo615

Portanto manteremos a

classificaccedilatildeo adotada nos dias de hoje

O importante eacute que a Naturalis Historia eacute uma obra fascinante e peculiar

tanto pelas informaccedilotildees que destaca quanto pela maneira como categoriza os

fenocircmenos em hierarquias de conhecimento Eacute tambeacutem uma obra ambiciosa

englobando informaccedilotildees sobre todos os aspectos do mundo natural em 37

volumes O proacuteprio Pliacutenio no prefaacutecio descreve seu enorme projeto em termos

quantitativos dizendo que leu cerca de dois mil trabalhos para escrever seu

texto616

um amontoado de dados que revela natildeo soacute a diligecircncia do autor mas

tambeacutem as suas opiniotildees Por exemplo Pliacutenio acredita que os romanos da sua

eacutepoca perderam o respeito pela natureza ignorando as suas daacutedivas e abusando

delas Eles eram ingratos e estavam mais preocupados em usufruir de uma vida

luxuosa do que em preservar as maravilhas disponiacuteveis para si Nesse sentido

mostra-se indignado com as despesas dos romanos em peacuterolas roupas de seda

perfumes e outras extravagacircncias617

O luxo para Pliacutenio desviava os indiviacuteduos

de uma compreensatildeo plena do mundo natural e das possibilidades positivas que

ele poderia apresentar618

Tal visatildeo reverbera na forma como o autor representou

Nero pois este eacute pintado como o monstro da extravagacircncia e da loucura algueacutem

que atacava a natureza sem hesitar construindo um canal que destruiacutea uma vinha

inteira ou queimando um ano de produccedilatildeo de incenso para enterrar a esposa619

As

referecircncias hostis satildeo tantas que eacute ateacute difiacutecil selecionaacute-las e isso chama muita

atenccedilatildeo porque como dissemos o objeto principal da obra natildeo eacute Nero

Possivelmente Pliacutenio usou na Naturalis Historia o material que serviu para a

composiccedilatildeo da obra A Fine Aufidi Bassi perdida no processo de transmissatildeo

Outra explicaccedilatildeo para tal ecircnfase pode ser atribuiacuteda agrave dedicaccedilatildeo elogiosa desses

livros a Tito demandando a desqualificaccedilatildeo do antecessor para colocar em mais

614

MURPHY 2004 p 11-16 615

DOODY 2010 p 6 Para uma discussatildeo da leitura da Naturalis Historia como enciclopeacutedia

cf DOODY 2010 p 1-10 616

Plin Nat Pr 17 617

Plin Nat 956 1126-27 134 618

O problema estava no uso que os humanos faziam da sua criatividade O luxo inspirava

inventividade mas essa invenccedilatildeo podia rivalizar com a criatividade da natureza e pervertecirc-la

(CITRONIMARCHETTI 1991 p 200-201) 619

Plin Nat 148 1241

164

relevo os meacuteritos do governante atual Essas poreacutem satildeo apenas hipoacuteteses de

leitura Manteremos o foco nas referecircncias a Nero e comentaremos apenas as que

condizem com nossa seleccedilatildeo de episoacutedios quais sejam as que abordam o

nascimento de Nero o matriciacutedio o incecircndio de Roma a visita de Tiridates agrave

Vrbs e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea

A imagem pliniana de Nero estaacute inteiramente articulada agrave ideia de

princeps antinatural aquele que desrespeitava a ordem orgacircnica das coisas um

comportamento que segundo o enciclopedista jaacute integrava a iacutendole imperial

desde o nascimento sucedido em 37

Natildeo eacute natural que uma crianccedila nasccedila com os peacutes primeiramente

e por esse motivo as pessoas chamam esses casos de ldquoAgripasrdquo sendo o nascimento ldquodifiacutecilrdquo [] Tambeacutem Nero que foi imperador haacute pouco tempo e que em todo o seu Principado foi inimigo do gecircnero humano nasceu com os peacutes primeiramente registra sua matildee Agripina Eacute devido agrave ordem da natureza que o homem entre no mundo primeiramente com a cabeccedila e seja levado para o tuacutemulo de maneira contraacuteria620

Na passagem eacute enfatizada a chegada anocircmala do soberano ao mundo Os

partos considerados normais na Roma Antiga ndash e ainda hoje ndash eram entendidos

como aqueles nos quais o bebecirc nascia primeiramente pela cabeccedila e depois pelos

peacutes sendo esta a melhor forma de dar agrave luz uma crianccedila pois natildeo acarretava

consequecircncias nem para a sauacutede da matildee nem para a do bebecirc Os partos destoantes

dessa normalidade esperada ndash os denominados partos peacutelvicos ndash traziam consigo

grandes riscos de complicaccedilotildees causando sofrimentos para ambos621

Esses riscos

satildeo marcados por Pliacutenio a partir do uso do vocaacutebulo ldquoAgripasrdquo derivado da frase

aegre partus (ldquonascido com dificuldaderdquo) encontrada tambeacutem em Aulo Geacutelio622

Os riscos e os possiacuteveis sofrimentos que causariam o parto a Nero e a Agripina

entretanto natildeo satildeo referidos por Pliacutenio Ele natildeo cita por exemplo a dor sentida

por Agripina ao passar pelo processo de dar agrave luz ou as complicaccedilotildees trazidas pelo

620

In pedes procidere nascentem contra naturam est quo argumento eos appellavere Agrippas ut

aegri partus [] Neronem quoque paulo ante principem et toto principatu suo hostem generis

humani pedibus genitum scribit parens eius Agrippina ritus naturae hominem capite gigni mos

est pedibus efferri (Plin Nat 78) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 535-537) 621

Alguns detalhes do processo do trabalho de parto na Roma do seacuteculo I satildeo fornecidos por

Celso nos livros II e VII da sua obra De Medicina 622

Gel 16161

165

parto para Nero Isso eacute muito curioso porque conforme alega Todman ldquoo parto

na sociedade romana era associado a um alto risco para o feto e para a matildee com

taxas substanciais de mortalidade []rdquo623

Pliacutenio era um enciclopedista mas no

excerto ele soacute divulga o sofrimento da humanidade com o nascimento antinatural

do soberano destacando que nada de positivo aconteceria ao mundo apoacutes aquele

evento Em outras palavras o autor traz uma espeacutecie de pressaacutegio negativo o

princeps nasceu como um problema e para ser um problema E tal pressaacutegio

aparentemente foi cumprido porquanto eacute salientado que durante todo o seu

Principado o imperador foi a maldiccedilatildeo do mundo624

Ele fora lanccedilado ao planeta

como um veneno era um Nero infausto desde o princiacutepio

Essa ideia nociva de Nero estaacute presente tambeacutem na maneira como Pliacutenio

narra o episoacutedio do assassinato de Agripina O naturalista declara

Entre os vegetais [] que satildeo consumidos com risco devo com boa razatildeo incluir os cogumelos uma comida muito saborosa eacute verdade mas merecidamente desprezada pelo notoacuterio crime cometido por Agripina que por intermeacutedio deles envenenou seu marido o imperador Claacuteudio e ao mesmo tempo infligiu

outra maldiccedilatildeo venenosa sobre o mundo inteiro e sobre ela mesma em particular o seu filho Nero625

Podemos observar que o autor concede uma atenccedilatildeo terciaacuteria ao

matriciacutedio A atenccedilatildeo primaacuteria repousa no uso dos elementos naturais ndash no caso

aqui dos cogumelos cuja finalidade eacute dupla de alimentaccedilatildeo e de envenenamento

A secundaacuteria baseia-se na criacutetica ao uso dado por Agripina aos cogumelos

(assassinar Claacuteudio) feito que transformou uma ldquocomida muito saborosardquo em

algo ldquodesprezadordquo E a terciaacuteria pauta-se na censura a Agripina acusada de trazer

uma ldquomaldiccedilatildeo venenosardquo sobre o mundo seu filho Nero quem mais tarde lhe

faria mal Eacute somente aiacute que o matriciacutedio emerge Mas vejam ele surge como um

tipo de castigo a Agripina mulher capaz de parir um filho infausto e envenenar o

marido para dar o poder ao filho que a matou Para Barrett Pliacutenio faz uma

623

TODMAN 2007 p 82 Gallivan e Wilkins (1999 p 239-255) desenvolvem uma boa

discussatildeo sobre as altas taxas de mortalidade infantil nas famiacutelias italianas dos seacuteculos I aC e I 624

Plin Nat 2246 625

Inter ea quae temere manduntur et boletos merito posuerim opimi quidem hos cibi sed

inmenso exemplo in crimen adductos veneno Tiberio Claudio principi per hanc occasionem ab

coniuge Agrippina data quo facto illa terris venenum alterum sibique ante omnes Neronem suum

dedit (Plin Nat 2246) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Rackham (1938-1962 p 359)

166

representaccedilatildeo hostil da matrona sugerindo que ela merecia morrer626

uma visatildeo

bem diferente das duas veiculadas na Octauia isto eacute a de Agripina como viacutetima

inocente e a de Nero vicioso O enciclopedista constroacutei um Nero matricida que eacute

consequecircncia dos maus atos da matildee um Nero infausto que cumpre o mau

pressaacutegio jaacute anunciado em seu parto Aliaacutes essa visatildeo dialoga bastante com a

perspectiva de um dos grupos apresentados no debate historiograacutefico do primeiro

capiacutetulo qual seja a de que Nero trazia consigo um pesado fardo geneacutetico o qual

era responsaacutevel por moldar negativamente sua personalidade e justificar o seu

modo de agir Nessa loacutegica seria a proacutepria Agripina a culpada pelo seu

assassinato pois transmitira ao filho seus piores defeitos sobretudo a rivalidade e

a ambiccedilatildeo627

Cabe frisar ainda que o uso da imagem do princeps natildeo eacute algo

fixo Sua reutilizaccedilatildeo pressupotildee permanecircncias que nos permitam identificar o

caraacuteter geral das accedilotildees e dos personagens mas cada autor e cada contexto vatildeo se

apropriando dessa imagem de forma nova Aqui Nero permanece como um

monstro poreacutem a culpa do matriciacutedio natildeo recai fundamentalmente sobre ele e

sim sobre quem o gerou Por esse mecanismo a viacutetima eacute a culpada Agripina

merecia seu destino mas a humanidade natildeo merecia Nero Pliacutenio indica que caso

natildeo queiramos sofrer com os Neros devemos evitar as Agripinas O Principado

para ser bom ou ruim dependia da casa que o originava

Os episoacutedios subsequentes continuam abordando essa nocividade do

princeps sobre o mundo e a humanidade Eacute o caso por exemplo do incecircndio da

Vrbs Leiamos a descriccedilatildeo

626

BARRETT 1996 p 237 Segundo Jones (1984 p 581-583) e Barrett (1996 p 237) a

concepccedilatildeo negativa de Pliacutenio sobre Agripina pode estar relacionada com um evento ocorrido em

39 Nesse ano Agripina juntamente agrave sua irmatilde Livila e a seu amante Marco Emiacutelio Leacutepido

(tambeacutem viuacutevo de Drusila) articulou uma trama para assassinar o imperador Caliacutegula e colocar Leacutepido no poder A trama foi logo descoberta pelo imperador que natildeo tardou em castigar os

envolvidos Agripina e Livila foram condenadas ao exiacutelio na ilha de Pandataacuteria e Leacutepido teve sua

garganta cortada por um pretoriano Mas isso natildeo foi tudo Antes de enviar Agripina para o exiacutelio

Caliacutegula a fez passar por uma humilhaccedilatildeo puacuteblica carregar as cinzas de Leacutepido por toda cidade de

Roma Foi aiacute que Vespasiano agrave eacutepoca pretor envolveu-se na situaccedilatildeo Quando Agripina entrou no

Senado com as cinzas Vespasiano moveu uma moccedilatildeo pedindo que elas fossem espalhadas ao

vento e permanecessem sem sepultura Desse ponto em diante comeccedilou uma enorme hostilidade

entre os dois Agripina nunca esqueceu esse insulto e durante o futuro governo de Nero fez de

tudo para dificultar a carreira poliacutetica de Vespasiano Portanto tendo em vista o apoio de Pliacutenio agrave

nova dinastia ldquo[] eacute improvaacutevel que sua representaccedilatildeo de Agripina [] fosse simpaacutetica

Certamente em sua [] Histoacuteria Natural [] as informaccedilotildees incidentais sobre Agripina satildeo quase

uniformemente hostisrdquo (BARRETT 1996 p 237) 627

BEATO 2000b p 13 Inclusive em Nat 3558 Pliacutenio afirma que durante o Principado de

Claacuteudio tal ambiccedilatildeo a fazia comandar o Senado

167

Essas aacutervores eram do tipo urtiga e pela exuberacircncia dos seus

galhos proporcionavam uma sombra deliciosa Caecina Largos um dos homens notaacuteveis de Roma [] costumava mostraacute-las para mim na minha juventude e como eu jaacute mencionei acerca da notaacutevel longevidade das aacutervores acrescentaria aqui que elas existiram ateacute o periacuteodo em que o imperador Nero ateou fogo agrave cidade cento e oitenta anos depois da eacutepoca de Crasso estando

elas ainda verdes e com todo o frescor se aquele priacutencipe tambeacutem natildeo tivesse achado adequado apressar a morte das proacuteprias aacutervores628

Pliacutenio diz que as aacutervores duraram ateacute o governo de Nero periacuteodo em que

ele incendiou a cidade Elas teriam permanecido verdes e jovens se o princeps

tambeacutem natildeo tivesse acelerado a morte delas Para Barrett esse ldquotambeacutemrdquo (etiam)

pode significar que o soberano aleacutem de matar aacutervores no incecircndio matou

pessoas Isso parece bastante condenatoacuterio todavia natildeo temos como afirmar com

certeza629

Ateacute porque Pliacutenio natildeo menciona o incecircndio nem os motivos que

levaram Nero a atear fogo na capital do Impeacuterio Ele natildeo comenta nada apenas

refere-se ao ocorrido e agraves consequecircncias acarretadas agrave natureza ndash no caso a

queima de aacutervores antigas e frondosas Essa ausecircncia de razotildees percorre os 37

livros da Naturalis Historia fato que nos intriga bastante pois a atribuiccedilatildeo de um

motivo para o incecircndio eacute um dos eixos fundamentais da tradiccedilatildeo negativa

neroniana estando em quase todas as fontes literaacuterias Afinal sabemos que

quanto mais friacutevola for a motivaccedilatildeo do crime mais monstruoso o princeps se

torna Inclusive vimos haacute pouco na Octauia a indicaccedilatildeo dessa frivolidade para

justificar o incecircndio Pliacutenio levou tatildeo a seacuterio as regras de composiccedilatildeo da sua

Enciclopeacutedia que aparentemente soacute citou o incecircndio devido agrave destruiccedilatildeo da

natureza Como afirma Champlin ldquoPliacutenio que estava em Roma durante o

incecircndio e detestava Nero tinha certeza de que ele era culpadordquo de que ele era

um Nero incendiaacuterio mas sua culpa estava muito mais ligada agrave queima das

aacutervores do que a outros fatores630

Percebam que aqui temos uma ampliaccedilatildeo do

repertoacuterio do uso da imagem de Nero Agrave eacutepoca que Pliacutenio escreveu a Naturalis

628

haec fuere lotoe patula ramorum opacitate lascivae caecina largo [] iuventa nostra eas in

domo sua ostentante duraveruntque ndash quoniam et de longissimo aevo arborum diximus ndash ad

neronis principis incendia cultu virides iuvenesque ni princeps ille adcelerasset etiam arborum

mortem ac ne quis vilem de cetero Crassi domum nihilque in ea iurganti domitio fuisse licendum

praeter arbores iudicet (Plin Nat 171) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 5) 629

BARRETT 2020 p 123 630

CHAMPLIN 2005 p 182

168

Historia jaacute era muito difundida a acusaccedilatildeo contra Nero quanto ao incecircndio

Coube ao enciclopedista entatildeo natildeo soacute repetir o que lhe trazia a tradiccedilatildeo ainda

recente mas ele tambeacutem adicionou ao retrato do Nero incendiaacuterio um novo

elemento ndash este destruiacutera tanto a cidade que nem as aacutervores escaparam

De qualquer forma depois do incecircndio a cidade de Roma precisou ser

reconstruiacuteda Wiedemann sustenta que o empreendimento foi muito custoso

fazendo com que o soberano procurasse fontes de recursos variadas para financiar

as obras631

Uma das encontradas por exemplo foi o confisco de riquezas

religiosas e privadas como tesouros de templos ou bens das elites provinciais

Sobre os uacuteltimos Pliacutenio alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras

detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a

mando de Nero para o confisco dos seus recursos632

As riquezas usurpadas daiacute ndash

e de outras regiotildees ndash foram empregadas na melhoria da infraestrutura da Vrbs a

saber no alargamento das ruas na edificaccedilatildeo de poacuterticos na implantaccedilatildeo de

paacutetios internos dentro das insulae entre outras accedilotildees De acordo com Rudich elas

tambeacutem foram utilizadas na construccedilatildeo da Domus Aurea a partir de 65 a opulenta

residecircncia imperial633

Sua edificaccedilatildeo financiada por recursos adquiridos de modo

violento gerou fortes criacuteticas a Nero suscitando rumores de que ele teria

propositalmente instigado o fogo no intuito de erigir o seu palaacutecio dourado e de

dar agrave cidade reconstruiacuteda o nome de Neroacutepolis Tais rumores aliaacutes foram

propagados pelas fontes literaacuterias posteriores as quais defendem uma relaccedilatildeo de

intencionalidade entre o incecircndio os confiscos e a Domus Aurea634

O autor natildeo se preocupa com o incecircndio tampouco com os possiacuteveis

interesses do soberano por detraacutes dele Vejamos

Nero cobriu o Teatro de Pompeu com ouro para usaacute-lo por um

uacutenico dia o dia em que se propocircs a mostraacute-lo ao rei Tiridates da Armecircnia E no entanto quatildeo pequeno era este teatro em comparaccedilatildeo com aquele seu Palaacutecio Dourado com o qual ele rodeava a nossa cidade635

631

WIEDEMANN 1996 p 251 632

Plin Nat 187 633

RUDICH 2005 p 80 634

Suet Nero 38 635

huius deinde successor Nero Pompei theatrum operuit auro in unum diem quo Tiridati

Armeniae regi ostenderet et quota pars ea fuit aureae domus ambientis urbem (Plin Nat 3316)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham

(1938-1962 p 45)

169

[] Duas vezes vimos toda a cidade rodeada pelos palaacutecios dos imperadores Caliacutegula e Nero o do uacuteltimo para que nada falhe em sua magnificecircncia sendo revestido de ouro636

O que verificamos aiacute eacute um vitupeacuterio ao tamanho do palaacutecio e agrave

personalidade excessiva do Nero construtor aspectos diretamente relacionados

aos objetivos da Naturalis Historia de repreender os abusos da natureza

perpetrados pelos romanos Os meios que levaram o princeps a erigir a Domus

Aurea natildeo satildeo significativos para Pliacutenio assim como natildeo o eacute a possibilidade de

ter havido uma relaccedilatildeo de intencionalidade com o incecircndio O cerne estaacute no uso

desmedido de um material mineral o ouro A propoacutesito nem mesmo o episoacutedio

da ida de Tiridates a Roma para realizar sua coroaccedilatildeo eacute minuciado637

O evento

soacute aparece para recriminar Nero acerca da utilizaccedilatildeo exagerada de ouro na

decoraccedilatildeo do Teatro de Pompeu a qual segundo o autor foi aproveitada soacute por

um dia Na percepccedilatildeo de Wallace-Hadrill qualquer tipo de uso desmedido dos

bens naturais eacute considerado por Pliacutenio como antinatural e luxuoso

Os produtos da natureza satildeo absolutos e perfeitos em si

mesmos Reuni-los e misturaacute-los por ostentaccedilatildeo natildeo eacute questatildeo de engenhosidade humana eacute impudentia A ideia do natural estaacute [] intimamente ligada agrave simplicidade baixo custo e acessibilidade O luxo [] eacute caracterizado pelo supeacuterfluo Eacute sempre um excesso de exigecircncias Eacute um desperdiacutecio e eacute destrutivo638

636

Sed omnes eas duae domus vicerunt bis vidimus urbem totam cingi domibus principum Gai et

Neronis huius quidem ne quid deesset aurea (Plin Nat 3624) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 87) 637

Tiridates foi o rei da Armecircnia por um periacuteodo de quase 20 anos entre 53 e 72 Tornou-se rei por aclamaccedilatildeo do seu irmatildeo Vologeso rei do Impeacuterio Parta Esse Impeacuterio foi palco de diversas

guerras contra o Impeacuterio Romano as quais levaram devastaccedilatildeo e opressatildeo agrave regiatildeo Por exemplo

entre os anos de 58 a 63 o Impeacuterio Parta vivenciou um confronto contra as forccedilas romanas pelo

controle das suas proacuteprias terras E por quecirc O Impeacuterio Parta era um reino submisso a Roma desde

a eacutepoca de Augusto mas em 53 conseguiu instalar Tiridates no trono um aristocrata nascido e

criado ali de linhagem arsaacutecida Tal evento coincidiu com a ascensatildeo de Nero ao poder que lutou

vigorosamente contra essa possiacutevel independecircncia dos partas O conflito perdurou por cinco anos e

envolveu um nuacutemero consideraacutevel de legionaacuterios terminando apoacutes um acordo diplomaacutetico

firmado entre Nero e Tiridates o priacutencipe parta seria reconhecido como o novo rei da Armecircnia

mas deveria ser coroado pelo imperador de Roma Ou seja Tiridates deveria ir ateacute a Vrbs colocar

seu diadema diante de Nero e ser coroado pelas matildeos dele A coroaccedilatildeo ocorreu no final do ano 66

e teve como cenaacuterio o Teatro de Pompeu cuja decoraccedilatildeo foi toda trabalhada em ouro

(CHAMPLIN 2005 p 221-224) 638

WALLACE-HADRILL 1990 p 86-88

170

A luxuacuteria traz consigo apenas uma seacuterie de fraquezas juntamente com

ambiccedilatildeo avareza supersticcedilatildeo e medos O luxo do homem eacute portanto uma falha

E nesse caso a falha de Nero estaacute ligada ao seu descontrole e agrave sua falta de

princiacutepios morais para lidar com a natureza Eacute uma criacutetica conforme Lefebvre ao

fato de o soberano se importar demasiadamente com a sua gloacuteria pessoal e com a

grandeza do Impeacuterio distanciando-se dos grandes generais do passado romano

republicano639

Continuando as recriminaccedilotildees Pliacutenio acusa o princeps de ter enclausurado

uma infinidade de obras de arte para enfeitar a Domus Aurea ldquoa Domus Aurea de

Nero foi a prisatildeo das produccedilotildees deste artista [Facircmulo] e por isso satildeo poucas as

que podem ser vistas em qualquer lugarrdquo640

Os mais ceacutelebres de todos os trabalhos [] foram dedicados []

pelo imperador Vespasiano no Templo da Paz e em outros preacutedios puacuteblicos construiacutedos por ele Eles haviam sido anteriormente carregados agrave forccedila por Nero e trazidos a Roma e arranjados por ele nas salas de recepccedilatildeo do seu palaacutecio dourado641

Ao frisar a atitude do novo princeps Pliacutenio contrapotildee a uoluptas de Nero agrave

utilitas de Vespasiano Ele dispotildee os liacutederes lado a lado no intuito de salientar

suas diferenccedilas de caraacuteter sendo um atento agrave virtude da simplicitas e outro atento

ao viacutecio da luxuria642

A Domus Aurea eacute fruto da vontade e do capricho do

priacutencipe da futilidade e dos sonhos neronianos de realizaccedilotildees fantaacutesticas trata-se

de uma construccedilatildeo inuacutetil que revela a superficialidade e a vaidade do

imperador643

Nero eacute um soberbo que soacute se preocupa consigo mesmo a exemplo

de Caliacutegula em contraste com Vespasiano o optimus princeps que sabe

639

LEFEBVRE 2017 p 137 640

carcer eius artis domus aurea fuit et ideo non extant exempla alia magnopere (Plin Nat

3537) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Rackham (1938-1962 p 349) 641

atque ex omnibus quae rettuli clarissima quaeque in urbe iam sunt dicata a vespasiano

principe in templo pacis aliisque eius operibus violentia neronis in urbem convecta et in sellariis

domus aureae disposita (Plin Nat 3419) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 189-191) 642

Viacutecio que vale acrescentar fez o primeiro flaviano encontrar o Impeacuterio com as financcedilas

esgotadas (Plin Nat 25) 643

LEFEBVRE 2017 p 129-131

171

demonstrar liberalitas publica assim como Augusto644

A realizaccedilatildeo de tal

condenaccedilatildeo pelo enciclopedista deve ser entendida como uma tentativa de

legitimar a nova dinastia que pretendia apagar os vestiacutegios do Principado

anterior destruindo suas construccedilotildees ndash em particular as que integravam o

complexo da Domus Aurea Natildeo nos esqueccedilamos de que a Naturalis Historia foi

dedicada a Tito logo eacute uma obra que reflete fortemente os valores flavianos

Como sustenta Baldwin o elogio de Pliacutenio agraves poliacuteticas artiacutesticas dos Flavianos

natildeo eacute meramente uacutetil mas uma expressatildeo genuiacutena da sua crenccedila na nova dinastia

como restauradora dos valores republicanos de Augusto645

Vespasiano eacute frequentemente apresentado em termos calculados

para fazer a audiecircncia romana lembrar de Augusto Ele eacute por exemplo geralmente referido como imperator Augustus grande tiacutetulo negado ao longo da Histoacuteria Natural a outros imperadores de Tibeacuterio em diante [hellip] Vespasiano [hellip] eacute simplesmente ldquoo imperadorrdquo o grande homem646

Dessa forma Pliacutenio se aproveita da tradiccedilatildeo criacutetica que se instaurava sobre

Nero e a recompotildee e a amplia Esse uacuteltimo episoacutedio deixa clara uma criacutetica bem

riacutegida Nero eacute aquele que acaba com os recursos do Impeacuterio para locupletar seus

desejos pessoais ou para embelezar a cidade de maneira efecircmera sem que

houvesse nenhum ganho puacuteblico com isso O que poderia ser uma caracteriacutestica

positiva do princeps como seu desejo de melhorar a Vrbs eacute transformado em

exagero despropositado e inuacutetil Os paracircmetros para a avaliaccedilatildeo aqui satildeo dois o

tempo presente e a atividade ediliacutecia de Vespasiano em contraposiccedilatildeo agrave de Nero

A maior obra de Nero seria a sua casa dourada privada e a maior obra de

Vespasiano e Tito seria um novo anfiteatro conhecido pelo nome da sua dinastia

Flaacutevia A nosso ver o julgamento de Nero por Pliacutenio ganha significacircncia para os

ouvintes atraveacutes da allelopoiesis que daacute novo sentido para o passado neroniano a

partir do presente flaviano e vice-versa Assim o anfiteatro Flaacutevio soacute faz sentido

como uma construccedilatildeo natildeo exagerada e excessiva quando colocada em paralelo

com a memoacuteria a ser destruiacuteda de uma Domus Aurea e de um teatro de Pompeu de

ouro usado em um soacute dia O anfiteatro eacute uma obra puacuteblica para a grandeza de

644

LEFEBVRE 2017 p 127-132 Em toda Naturalis Historia Pliacutenio descreve Caliacutegula como um

imperador vaidoso e extravagante tal como no trecho a seguir (Plin Nat 3322) 645

BALDWIN 1995 p 59 646

BALDWIN 1995 p 59

172

Roma e para o uso continuado por seacuteculos A Domus Aurea eacute uma construccedilatildeo

privada para a ganacircncia do imperador que logo desapareceu da paisagem Eacute desse

modo que o Nero construtor deixa de ser um soberano positivo para ser um

homem reprovaacutevel em seu despropoacutesito

Apoacutes realizarmos a anaacutelise da Naturalis Historia verificamos quatro das

nossas categorias de anaacutelise 1) Nero infausto relativa ao episoacutedio do nascimento

de Nero 2) Nero matricida referente ao episoacutedio do assassinato de Agripina 3)

Nero incendiaacuterio vinculada ao incecircndio de Roma e 4) Nero construtor

conectada agrave visita de Tiridates agrave Vrbs e agrave edificaccedilatildeo da Domus Aurea Por meio

delas entendemos que Pliacutenio estava totalmente empenhado em revelar o lado

antinatural de Nero As atitudes do soberano foram divulgadas a partir das lentes

de um enciclopedista dedicado em manter a natureza sagrada eterna e infinita647

Tudo o que atrapalhou tal manutenccedilatildeo foi motivo de condenaccedilatildeo como por

exemplo a construccedilatildeo da Domus Aurea Nesse ponto concordamos com o

argumento de Laehn ldquopara Pliacutenio a integraccedilatildeo completa do mundo da natureza

com a vida humana exigia o alinhamento dos limites da ordem poliacutetica com os

limites do mundo naturalrdquo648

ndash um alinhamento que ele acreditava ter sido Nero

incapaz de criar Foi assim que o autor contribuiu para a tradiccedilatildeo negativa

mostrando que o soberano natildeo possuiacutea o senso da importacircncia de viver em acordo

com a natureza

Antes de finalizarmos cabe frisar que essa contribuiccedilatildeo de Pliacutenio natildeo deve

ser desconectada dos seus intentos enciclopedistas Isto significa que seu objetivo

primordial nunca foi falar de Nero e do seu governo Ele apenas os inseriu na

narrativa quando assim julgou vaacutelido ou necessaacuterio agrave elaboraccedilatildeo dos seus

argumentos dividindo a abordagem entre de um lado criacuteticas agraves agressotildees agrave

natureza cometidas por Nero e de outro oposiccedilatildeo da imagem deste agrave dos Flaacutevios

Foi por meio dessa divisatildeo que ele utilizou a inuentio para em poucas e parcas

passagens mostrar seu pensamento negativo acerca do soberano Estamos falando

de um pensamento que a nosso ver esteve muito mais ligado agrave sua experiecircncia

pessoal eou proximidade poliacutetica com os Flaacutevios do que com um embasamento

na tradiccedilatildeo literaacuteria anterior ndash algo por exemplo feito por Pseudo-Secircneca A

647

Plin Nat 21 648

LAEHN 2010 p 25

173

uacutenica exceccedilatildeo foi o uso dos registros de Agripina mencionados por ele no evento

do nascimento do princeps649

O surpreendente eacute que mesmo natildeo se apoiando na tradiccedilatildeo literaacuteria

precedente Pliacutenio criou um Nero que eacute mutuamente novo e dependente do Nero

do passado ndash ou seja ele fez allelopoiesis Como ilustraccedilatildeo o seu Nero continuou

sendo infausto mas agora eacute infausto desde o ventre materno e natildeo mais desde o

iniacutecio do seu Principado Tambeacutem permaneceu sendo matricida poreacutem aqui eacute

acusado de matar uma matildee que merecera morrer natildeo uma viacutetima inocente

Manteve-se como incendiaacuterio mas neste momento sem crueldade com a plebe e

sem motivos para queimar Roma E prosseguiu sendo um construtor que

despendeu ouro em demasia para erguer a Domus Aurea e adornar o teatro de

Pompeu Sem duacutevidas a vivecircncia sob os governos de Nero e de Vespasiano deu a

Pliacutenio a oportunidade de selecionar classificar e interrogar realidades diversas as

quais por sua vez permitiram-lhe criar allelopoieticamente novos Neros mais

adequados ao presente que foram incorporados ao repertoacuterio que seraacute utilizado

posteriormente Por esse processo a possibilidade de criar novos retratos de Nero

vai se ampliando com o tempo e novas possibilidades vatildeo surgindo e se ligando

agraves antigas recompondo o entendimento do presente e do passado

Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae

Tratemos agora da representaccedilatildeo de Nero feita por Tito Flaacutevio Josefo650

O historiador judeu nasceu em Jerusaleacutem no ano 37 data da ascensatildeo de Caliacutegula

no interior de uma famiacutelia aristocraacutetica sacerdotal651

Cresceu em sua cidade natal

e recebeu uma soacutelida educaccedilatildeo judaica voltada agrave tradiccedilatildeo oral ao exerciacutecio da

memoacuteria e ao estudo da Toraacute e do grego No desenvolver da sua formaccedilatildeo

demonstrou inteligecircncia e anamnese excepcionais as quais o fizeram ser

649

Plin Nat 76 650

Eacute importante destacar que ao nascer ele foi batizado com o nome hebraico Yosef ben

Mattityahu ha-Cohen (מתתיהו בן יוסף) O nome Flaacutevio Josefo sob o qual eacute conhecido na

contemporaneidade natildeo aparece em suas obras O designativo surgiu em 69 quando lhe foi

concedida a cidadania romana por Vespasiano Com a concessatildeo Josefo recebeu os tria nomina

aquele que se chamava Yosef filho de Mattityahu adotou os praenomina Titus e Flavius em

homenagem a seu libertador (Titus Flavius Vespasianus) Assim Yosef ben Mattityahu ha-Cohen

passou a chamar-se Titus Flavius Josephus (Tito Flaacutevio Josefo) denominaccedilatildeo que adotaremos em

nosso texto (BARTLETT 1985 p 72-76 LAMOUR 2006 p 29) 651

Jos Vit 1 Jos BJ 1Pr1 As informaccedilotildees sobre a vida de Josefo estatildeo contidas em sua

autobiografia Vita (Vida) e em declaraccedilotildees esparsas no Bellum Judaicum

174

procurado por rabinos eruditos para esclarecimentos acerca das leis judaicas652

Em 53 ao completar 16 anos decidiu vivenciar os princiacutepios das ramificaccedilotildees do

judaiacutesmo (Fariseus Saduceus e Essecircnios) no intuito de eleger uma para seguir

Apoacutes conhececirc-las profundamente optou por seguir a dos Fariseus a mais

numerosa e de maior influecircncia sobre a populaccedilatildeo da Judeia653

A relaccedilatildeo com os

Fariseus deve tecirc-lo tornado influente tambeacutem pois no ano 62 foi incumbido de

viajar ateacute Roma para apresentar-se diante de Nero e implorar a libertaccedilatildeo de

alguns sacerdotes que tinham sido levados para laacute como prisioneiros654

Ao chegar

agrave Vrbs conheceu Popeia e reuniu-se com ele que intercedeu em prol dos

sacerdotes juntamente ao princeps ganhando a soltura de todos655

Com a missatildeo

bem-sucedida retornou a Jerusaleacutem em 66 onde haacute pouco havia eclodido a

revolta da Judeia contra Roma Tal rebeliatildeo conforme Goodman ocorreu em

funccedilatildeo da atitude de Nero em confiscar parte do ouro do Templo de Jerusaleacutem

siacutembolo maacuteximo da cultura judaica656

A revolta estendeu-se ateacute o ano 70 quando

Jerusaleacutem foi dominada pelas tropas do general Tito filho de Vespasiano que a

essa altura jaacute era imperador Do iniacutecio ao fim da insurreiccedilatildeo Josefo assumiu

papeacuteis diferentes estando a priori na condiccedilatildeo de comandante das tropas

rebeldes e a posteriori reduzido a prisioneiro de Vespasiano Enquanto ficou

como refeacutem Josefo afirma que o soberano o tratou com distinccedilatildeo e respeito

agradando-lhe de vaacuterias maneiras657

Sua liberdade foi concedida um ano e meio

652

Jos Vit 2 653

Jos Vit 2 654

Jos Vit 3 655

Jos Vit 3 Nas Antiquitates Judaicae Josefo denomina Popeia como ldquomulher temente a Deusrdquo

(Jos Ant 20811) Lamour (2006 p 21) acredita que essa expressatildeo relaciona-se a uma possiacutevel

origem judaica da imperatriz ou simplesmente agrave sua ldquosimpatiardquo pelos judeus 656

GOODMAN 1994 p 158 Wiedemann (1996 p 251) esclarece que os altos custos da

reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o incecircndio debilitaram as financcedilas fazendo Nero apropriar-se de metais preciosos nas proviacutencias do leste e do oeste sendo a Judeia o local onde foi desencadeado o

conflito mais duradouro 657

Jos Vit 75 Do inverno de 66 ao veratildeo de 67 Josefo comandou o exeacutercito defensor da Galileia

contra as forccedilas romanas lideradas por Vespasiano Esse uacuteltimo sitiou a cidade fortificada de

Jotapata e a capturou apoacutes um cerco de 47 dias Com a captura Josefo escondeu-se em uma

caverna juntamente com outros sobreviventes mas eles logo foram descobertos por soldados

romanos Ao ser levado perante Vespasiano e seu filho Tito Josefo profetizou que Vespasiano

tornar-se-ia imperador A princiacutepio o soberano ficou ceacutetico no entanto ao saber que uma seacuterie de

profecias anteriores de Josefo haviam se tornado realidade melhorou as condiccedilotildees do seu cativo

concedendo-lhe roupas e outros presentes Dois anos depois em julho de 69 Vespasiano foi

aclamado imperador pelas legiotildees estacionadas em Alexandria no Egito Aiacute lembrou-se da

profecia de Josefo e o libertou do cativeiro ordenando que suas correntes fossem cortadas com um

machado (Jos BJ 3736-389) Desse ponto em diante a vida de Josefo seria irrevogavelmente

ligada agrave sorte da casa Flaviana

175

depois em 72 momento em que preferiu seguir para a capital do Impeacuterio ao lado

do princeps e de Tito ao inveacutes de voltar agrave sua terra natal Em Roma foi

autorizado a residir na antiga uilla de Vespasiano tornou-se cidadatildeo e recebeu

uma pensatildeo com a qual viveu sem problemas financeiros Josefo morou na Vrbs

ateacute falecer na passagem do seacuteculo I para o II658

Foi sob essas circunstacircncias que ele iniciou e completou a escrita das suas

obras Durante os anos 70 redigiu seu primeiro e mais conhecido trabalho o

Bellum Judaicum em sete volumes cuja narrativa descreve toda a histoacuteria da

Revolta Judaica a eclosatildeo o curso e a conclusatildeo dos eventos bem como os fatos

a eles posteriores659

Nos anos 80 a 90 elaborou seu segundo trabalho as

Antiquitates Judaicae em 20 volumes no qual relata a histoacuteria do povo judeu

desde seus primoacuterdios ateacute a revolta de 66660

Entre 93 e 94 divulgou sua

autobiografia em apenas um volume Vita em que fala sobre o periacuteodo em que

foi comandante das tropas rebeldes Pouco tempo depois veio sua uacuteltima obra

Contra Apionem (Contra Apiatildeo) contendo dois volumes nos quais defende o

judaiacutesmo e o povo judeu contra os ataques feitos pelos antissemitas do mundo

greco-romano sobretudo aqueles vindos do autor alexandrino Apiatildeo Os escritos

de Josefo segundo Degan oferecem uma excelente oportunidade para refletirmos

acerca dos desafios enfrentados pelos judeus do seacuteculo I das relaccedilotildees entre o

centro do poder poliacutetico (Roma) e as suas periferias e do refazer da memoacuteria de

um autor particular661

Suas duas primeiras composiccedilotildees Bellum Judaicum e Antiquitates

Judaicae ndash a serem analisadas neste capiacutetulo ndash constituem trabalhos de

historiografia enquanto os demais satildeo classificados pelos estudiosos como relatos

pessoais que embora natildeo sejam desprovidos de conteuacutedo histoacuterico natildeo podem

ser considerados historiograacuteficos Essas duas obras manifestam a ambiccedilatildeo de

Josefo em ser um historiador em termos de meacutetodos seguidor de Tuciacutedides o

renomado historiador grego do seacuteculo V aC662

Na visatildeo de Wiseman Tuciacutedides

foi o responsaacutevel por reformular a operaccedilatildeo historiograacutefica de Heroacutedoto e por

658

THACKERAY 1967 p 15 Para detalhes da biografia de Josefo cf RAJAK 2002 p 11-45 659

Para uma descriccedilatildeo dos livros do Bellum Judaicum cf MASON 2016 p 19-20 660

Sobre a divisatildeo das Antiquitates Judaicae cf SCHWARTZ 2016 p 37 661

DEGAN 2010 p 30-31 EDMONDSON 2005 p 7 662

RAJAK 2002 p 9 DEGAN 2013 p 226

176

estabelecer padrotildees de objetividade para a escrita da historia663

Ou seja foi ele

quem instituiu a ideia de que a historia deveria ser contemporacircnea buscar as

causas ldquoverdadeirasrdquo por traacutes da superficialidade dos eventos e basear-se na

anaacutelise criacutetica do depoimento de testemunhas oculares664

Era a ele quem Josefo

queria se assemelhar para conceber a histoacuteria do povo judeu Ele desejava ldquo[]

aparecer e ser avaliado como um historiador heleniacutestico da mais estrita escolardquo665

Para escrever a historia Tuciacutedides seguia em geral trecircs princiacutepios

metodoloacutegicos O primeiro dizia respeito agrave abordagem de temas contemporacircneos

ou quase contemporacircneos comumente entendidos como grandiosos Momigliano

argumenta que os leitores tendiam a dar mais creacutedito agraves narrativas de cujos

eventos os historiadores haviam sido testemunhas in loco ou agravequelas cujas fontes

eram recentes666

Josefo atendeu a esse princiacutepio na medida em que vivenciou os

fatos da Guerra Judaica delineando uma histoacuteria em que discutiu o passado

poliacutetico da Judeia para interpretar a chegada dos Flavianos ao poder O segundo

concernia agrave utilizaccedilatildeo de discursos para a construccedilatildeo das narrativas Dito de outro

modo trata-se da exibiccedilatildeo da habilidade retoacuterica do autor para recuperar as

palavras dos personagens envolvidos no ocorrido e edificar sua histoacuteria ndash

habilidade inclusive aliada agrave inuentio De acordo com Thackeray os discursos

usados por Josefo satildeo de trecircs tipos os minoritaacuterios formados por palavras

realmente proferidas pelos personagens os intermediaacuterios compostos pela

proximidade real das palavras proferidas (proximidade condizente com o caraacuteter

do personagem) e os majoritaacuterios constituiacutedos por elementos puramente

imaginaacuterios667

Nas palavras do proacuteprio Tuciacutedides

663

WISEMAN 1979 p 41 Para Heroacutedoto o historiador era o encarregado de expor e investigar

(historiacutee) os acontecimentos provocados pelos homens Ao fazer isso assumia a funccedilatildeo de hiacutestor

isto eacute a funccedilatildeo de juiz cabendo a ele julgar quais acontecimentos seriam dignos de memoacuteria

Portanto sua noccedilatildeo de histoacuteria ndash ou sua metodologia ndash compreendia a investigaccedilatildeo (historiacutee) feita

pelo hiacutestor juntamente agrave sua exposiccedilatildeo em forma de narrativa Dessa maneira havia uma

preocupaccedilatildeo em separar o estilo literaacuterio da exposiccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (HARTOG 2001 p 51-52) 664

MOMIGLIANO 1987 p 14-15 Eacute essencial destacar contudo que quando falamos de

histoacuteria na Antiguidade natildeo estamos nos referindo a uma categoria particular de profissionais que

detinha um local especiacutefico de produccedilatildeo Ao contraacuterio no mundo greco-romano como ressaltou

Hartog (2001 p 19) a historiografia foi assumida por uma instituiccedilatildeo que codificava suas regras 665

BILDE 1988 p 203 666

MOMIGLIANO 1984 p 49 667

THACKERAY 1967 p 42-43

177

De quanto foi dito em discursos por cada um a ponto de entrar

em guerra ou jaacute estando nela era difiacutecil recordar com exatidatildeo cada palavra tanto para mim quando eu proacuteprio as escutei quanto para os que me informavam a partir de alguma outra fonte Como me parecia que cada um teria falado o que devia sobre a situaccedilatildeo do momento atendo-me o mais proacuteximo possiacutevel ao sentido geral do que foi verdadeiramente dito eacute assim que tudo se diraacute668

Os dois primeiros tipos de discursos foram retirados por Josefo de uma

variedade de fontes a exemplo da Toraacute dos Comentarii de Vespasiano sobre a

conduccedilatildeo da campanha judaica e de a Histoacuteria Universal de Nicolau de Damasco

historiador da corte de Herodes669

O terceiro e uacuteltimo princiacutepio metodoloacutegico tucidideano relacionava-se agrave

criacutetica aos relatos anteriores e agrave preocupaccedilatildeo em instituir uma histoacuteria que

desacreditasse os relatos jaacute existentes sobre os fatos no intuito de desvelar a

ldquoverdaderdquo por traacutes deles Para Tuciacutedides isso significava escrever natildeo recolhendo

informaccedilotildees de qualquer um mas as que ele mesmo tinha presenciado e checado

com a maior exatidatildeo possiacutevel670

Dito de outra forma significava ser imparcial e

construir relatos verossiacutemeis

Josefo prosseguiu com essa preocupaccedilatildeo ao compor suas obras porquanto

acusou seus predecessores de ignorarem ldquoa verdade exata dos fatosrdquo e elaborarem

histoacuterias pautadas em boatos contendo lisonjas eou oacutedios671

Seu intento foi

escrever para o bem dos que amam a verdade e natildeo para o bem dos que se

agradam com histoacuterias fictiacutecias672

Planejando alcanccedilar essa verdade dedicou-se agrave

averiguaccedilatildeo das fontes disponiacuteveis a fim de comparaacute-las avaliaacute-las e classificaacute-

las como veriacutedicas ou falsas Eacute precisamente em tal ponto que entra sua

representaccedilatildeo de Nero Ao consultar as evidecircncias Josefo tentou identificar quais

eram as narrativas confiaacuteveis e duvidosas acerca do imperador E eis que no meio

do processo ele observou uma falsificaccedilatildeo deliberada dos fatos

668

καὶ ὅσα μὲν λόγῳ εἶπον ἕκαστοι ἢ μέλλοντες πολεμήσειν ἢ ἐν αὐτῷ ἤδη ὄντες χαλεπὸν τὴν

ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι ἦν ἐμοί τε ὧν αὐτὸς ἤκουσα καὶ τοῖς ἄλλοθέν

ποθεν ἐμοὶ ἀπαγγέλλουσιν ὡς δ᾽ ἂν ἐδόκουν ἐμοὶ ἕκαστοι περὶ τῶν αἰεὶ παρόντων τὰ δέοντα

μάλιστ᾽ εἰπεῖν ἐχομένῳ ὅτι ἐγγύτατα τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων οὕτως εἴρηται

(Thuc 1221) (HARTOG 2001 p 81 traduccedilatildeo de Brandatildeo) 669

MASON 2016 p 25 670

Thuc 1222 671

Jos BJ 11 672

Jos BJ 1Pr12

178

[] Muitos foram os que compuseram a histoacuteria de Nero

Alguns se afastaram da verdade dos fatos devido a benefiacutecios recebidos dele Outros por oacutedio e antipatia a ele retrataram-no com tanta hostilidade que o cobriram imprudentemente com mentiras e estes merecem ser condenados [] Mas eu natildeo me surpreendo com os que contaram mentiras sobre Nero visto que natildeo preservaram em seus escritos a verdade da histoacuteria quanto aos fatos anteriores agrave sua eacutepoca []673

O historiador judeu entatildeo percebeu que os registros sobre Nero e seu

governo foram manipulados conforme os interesses daqueles que floresceram ou

sofreram sob o comando do princeps Houve um descuido com a verdade tanto

para o bem quanto para o mal Essa percepccedilatildeo eacute bastante significativa para a nossa

tese pois nos revela a existecircncia de uma dupla tradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave memoacuteria de

Nero Ou seja agrave eacutepoca da escrita das Antiquitates Judaicae subsistiam ao mesmo

tempo narrativas vituperiosas e laudatoacuterias As primeiras como sabemos

chegaram ateacute noacutes em grande quantidade Mas as segundas alcanccedilaram a

posteridade em nuacutemeros iacutenfimos E por quecirc Natildeo sabemos exatamente o porquecirc

poreacutem essa exiguidade evidencia um desinteresse na sua preservaccedilatildeo e tambeacutem

nos mostra que ela eacute viva e dinacircmica Claramente Josefo jaacute natildeo estava tratando

apenas dos Neros da proacutepria eacutepoca em que esse imperador viveu (cujas imagens

eram falsas por serem produto de adulaccedilatildeo) nem soacute dos Neros produzidos sob os

Flaacutevios (igualmente falsos pois eram fruto da antipatia ao princeps) Isso nos

mostra que Josefo deliberadamente decidiu produzir um novo Nero com base

nesses a que ele conseguia ter acesso por uma dupla tradiccedilatildeo ambas falsas Ele

natildeo criaraacute seu novo Nero a partir de elementos novos que eram desconhecidos por

essas duas tradiccedilotildees o que ele faz eacute recombinar elementos previamente existentes

dando mais peso para uns novos significados para outros e descartando alguns

Ao agir assim Josefo natildeo soacute se aproveita da tradiccedilatildeo como tambeacutem a transforma

ndash atitude inclusive adotada por outros autores analisados nesta tese Por fim

cumpre destacar que ao compor retratos os autores natildeo somente recuperam

673

Ἀλλὰ περὶ μὲν τούτων ἐῶ πλείω γράφειν πολλοὶ γὰρ τὴν περὶ Νέρωνα συντετάχασιν ἱστορίαν ὧν

οἱ μὲν διὰ χάριν εὖ πεπονθότες ὑπ᾽ αὐτοῦ τῆς ἀληθείας ἠμέλησαν οἱ δὲ διὰ μῖσος καὶ τὴν πρὸς αὐτὸν

ἀπέχθειαν οὕτως ἀναιδῶς ἐνεπαρῴνησαν τοῖς ψεύσμασιν ὡς ἀξίους αὐτοὺς εἶναι καταγνώσεως καὶ

θαυμάζειν οὐκ ἔπεισί μοι τοὺς περὶ Νέρωνος ψευσαμένους ὅπου μηδὲ τῶν πρὸ αὐτοῦ γενομένων

γράφοντες τὴν ἀλήθειαν τῆς ἱστορίας τετηρήκασιν καίτοι πρὸς ἐκείνους αὐτοῖς οὐδὲν μῖσος ἦν ἅτε

μετ᾽ αὐτοὺς πολλῷ χρόνῳ γενομένοις (Jos AJ 2083) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800- 180- p 261-262)

179

destacam e ressignificam determinados elementos mas tambeacutem os apagam No

caso de Josefo o desinteresse pelos elementos ligados agrave tradiccedilatildeo positiva

desqualificada como adulatoacuteria segundo Rajak estaria ligado ao projeto flaviano

de legitimaccedilatildeo do poder o qual priorizou as obras que marcaram os viacutecios do

antecessor674

Tal procedimento foi levado bem a seacuterio por Josefo que reconhece

a existecircncia das narrativas positivas mas natildeo as explora ndash talvez por medo de

perder os benefiacutecios conferidos por Vespasiano ou talvez por acreditar

sinceramente no Principado desse frente ao do seu antecessor

De qualquer forma o importante eacute que o historiador se contradiz

porquanto a busca pela verdade Tucidideana pautava-se na exploraccedilatildeo de ambas

as versotildees da histoacuteria e natildeo soacute de uma Assim a nosso ver Josefo constroacutei uma

imparcialidade aparente a qual se manifesta no seu comedimento ao citar os

episoacutedios da vida Nero675

a comeccedilar pela adoccedilatildeo

[] O proacuteprio Claacuteudio [] morreu e deixou Nero para ser seu

sucessor no Impeacuterio a quem ele havia adotado pelos deliacuterios da sua esposa Agripina a fim de ser seu sucessor embora tivesse um filho seu cujo nome era Britacircnico de Messalina sua ex-esposa e uma filha cujo nome era Otaacutevia que ele casou com

Nero []676

De igual modo a Pseudo-Secircneca Josefo representa a adoccedilatildeo como uma

manobra de Agripina Devido aos ldquodeliacuteriosrdquo da esposa provavelmente ligados agrave

sua ambiccedilatildeo pelo poder Claacuteudio elegeu Nero como sucessor ignorando a

legitimidade de Britacircnico Poreacutem ao contraacuterio do tragedioacutegrafo Josefo natildeo cita os

futuros assassinatos advindos da adoccedilatildeo e nem foca no caraacuteter negativo da matildee de

Nero ele apenas se restringe a reproduzir uma versatildeo jaacute conhecida da adoccedilatildeo

desde a Octauia a de que a matrona era a responsaacutevel pelo feito E o faz sem

atribuir criteacuterios de julgamento a Nero o que nos impossibilita de categorizar o

episoacutedio Por isso analisemos outros

674

RAJAK 2002 p 204 675

MAIER 2013 p 386 676

ὃν ταῖς Ἀγριππίνης τῆς γυναικὸς ἀπάταις ἐπὶ κληρονομίᾳ τῆς ἀρχῆς εἰσεποιήσατο καίπερ υἱὸν

ἔχων γνήσιον Βρεττανικὸν ἐκ Μεσσαλίνης τῆς προτέρας γυναικὸς καὶ Ὀκταουίαν θυγατέρα τὴν ὑπ᾽

αὐτοῦ ζευχθεῖσαν Νέρωνι γεγόνει δ᾽ αὐτῷ καὶ ἐκ Παιτίνης Ἀντωνία (Jos BJ 2249) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928

p 421)

180

Agora [falarei] em relaccedilatildeo aos diversos momentos em que

Nero agiu como louco transtornado pelo seu excesso de poder e riqueza [] assassinou o seu irmatildeo sua esposa sua matildee e depois voltou sua crueldade contra as pessoas proacuteximas a ele e por uacuteltimo ele estava tatildeo distraiacutedo que se tornou ator nos palcos do teatro Eu omito dizer qualquer coisa a mais sobre ele porque existem escritores suficientes em todo lugar para tratar

desses assuntos entatildeo me dedicarei agraves accedilotildees ocorridas em seu governo que envolveram os judeus677

No fragmento Josefo se recusa a fornecer mais detalhes sobre a vida do

soberano mencionando os assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina de

maneira raacutepida e sucinta Como argumenta Schubert ele natildeo utiliza as

oportunidades que tem para criticar Nero dando-nos representaccedilotildees visivelmente

contidas pela mera referecircncia aos casos jaacute bem conhecidos por sua audiecircncia678

Essa relativa indulgecircncia segundo Lefebvre e Mason pode ser explicada a partir

do fato de que o princeps estava ldquofora do campo de interesse de Josefordquo O

historiador afirma que ldquoomitiraacute dizer qualquer coisa a mais sobre o imperadorrdquo

porque desejava concentrar suas observaccedilotildees nos judeus Em outras palavras o

foco do Bellum Judaicum ndash e tambeacutem das Antiquitates Judaicae ndash era contar a

histoacuteria do povo judeu e natildeo a histoacuteria de Nero Eacute por isso que o autor daacute essa

visatildeo raacutepida dos assuntos romanos de 54 aos anos seguintes679

Mesmo assim

Josefo tem o cuidado de referenciar os crimes tradicionalmente atribuiacutedos ao

soberano agrave sua eacutepoca representando-o como Nero fraticida Nero uxoricida e

Nero matricida Eacute provaacutevel que esses trecircs delitos fossem bem conhecidos nos

meios literaacuterios quando ele publicou suas narrativas Gruen adiciona Josefo

seguiu o consenso dos retratos que prevaleciam no periacuteodo dos Flavianos680

De acordo com Barrett Fantham e Yardley o comentaacuterio do historiador

sobre o assassinato de Britacircnico eacute do seu especial interesse devido agrave sua amizade

677

Ὅσα μὲν οὖν Νέρων δι᾽ ὑπερβολὴν εὐδαιμονίας τε καὶ πλούτου παραφρονήσας ἐξύβρισεν εἰς τὴν

τύχην ἢ τίνα τρόπον τόν τε ἀδελφὸν καὶ τὴν γυναῖκα καὶ τὴν μητέρα διεξῆλθεν ἀφ᾽ ὧν ἐπὶ τοὺς

εὐγενεστάτους μετήνεγκεν τὴν ὠμότητα καὶ ὡς τελευταῖον ὑπὸ φρενοβλαβείας ἐξώκειλεν εἰς σκηνὴν

καὶ θέατρον ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν παραλείψω τρέψομαι δὲ ἐπὶ τὰ Ἰουδαίοις κατ᾽ αὐτὸν

γενόμενα (Jos BJ 2250) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego

para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 421) 678

SCHUBERT apud LEFEBVRE 2017 p 29 Isso se estende a outros imperadores Juacutelio-

Claudianos Josefo descreve rapidamente o caraacuteter sombrio e suspeito de Tibeacuterio e a

megalomania assassina de Caliacutegula (Tibeacuterio ndash Jos AJ 1865 18610 Caliacutegula ndash Jos AJ 1881

1911 1925) 679

LEFEBVRE 2017 p 29 MASON 2016 p 25 680

GRUEN 2011 p 156-157

181

com o futuro imperador Tito que foi criado com Britacircnico e supostamente

estava no banquete onde ocorreu o envenenamento681

Nesse caso Josefo deve ter

repetido a versatildeo do evento que circulava na corte no iniacutecio dos anos 90 graccedilas

aos testemunhos do proacuteprio Tito Essa sua atitude de retransmitir algo negativo da

vida de Nero prossegue no texto

Eu omiti dar um relato exato deles porque satildeo bem conhecidos

por todos e satildeo descritos por um grande nuacutemero de autores gregos e romanos ainda assim por causa da conexatildeo dos assuntos e para que minha histoacuteria natildeo seja incoerente acabei de falar rapidamente sobre tudo682

Seus comentaacuterios acerca do imperador entatildeo soacute reforccedilam aquilo que jaacute

circulava uma espeacutecie de vulgata oficial A propoacutesito eacute por meio de tal

perspectiva que ele evoca com brevidade os episoacutedios da revolta de Vindex e o

suiciacutedio de Nero sucedidos em 68683

Nesse iacutenterim soube-se que havia comoccedilotildees na Gaacutelia e que

Vindex juntamente com os homens no poder daquele paiacutes havia se rebelado contra Nero [] Esse relato assim relacionado a Vespasiano animou-o a prosseguir vigorosamente com a guerra []684

681

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 50 682

πάντα ταῦτα διεξιέναι μὲν ἐπ᾽ ἀκριβὲς παρῃτησάμην ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν καὶ πολλοῖς

Ἑλλήνων τε καὶ Ῥωμαίων ἀναγέγραπται συναφείας δὲ ἕνεκεν τῶν πραγμάτων καὶ τοῦ μὴ

διηρτῆσθαι τὴν ἱστορίαν κεφαλαιωδῶς ἕκαστον ἐπισημαίνομαι (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 149) 683

O suiciacutedio de Nero foi o resultado de um longo processo de enfraquecimento poliacutetico que

comeccedilou em 64 com o incecircndio na Vrbs Tal processo se intensificou em 65 com a Conspiraccedilatildeo

de Pisatildeo cujos envolvidos tentaram colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo homem de famiacutelia

nobre Ao descobrir a insurreiccedilatildeo Nero realizou uma dura repressatildeo mandando assassinar

cavaleiros e senadores Sua posiccedilatildeo jaacute bastante fragilizada aiacute tornou-se ainda mais instaacutevel

quando ele rumou agrave Greacutecia em 66 para participar de concursos artiacutesticos deixando seu liberto

Heacutelio na capital como informante do estado das coisas Enquanto estava laacute Juacutelio Vindex governador da Gaacutelia Lugdunense sublevou-se contra ele promovendo uma revolta na Gaacutelia Para

fortalecer sua rebeliatildeo Vindex convidou Galba governador da Hispacircnia para se aliar agrave revolta

Galba ndash o futuro imperador ndash natildeo hesitou e aceitou o convite Sua entrada no movimento na

concepccedilatildeo de Brandatildeo (2020 p 98) tornou tudo mais seacuterio pois o general ldquo[] era oriundo de

uma linhagem de distintos poliacuteticos do passado tinha sido proacuteximo da casa de Augusto atraveacutes do

favor de Liacutevia prestara grandes serviccedilos e acumulara honras nos Principados de Caliacutegula e

Claacuteudio dera provas de possuir excepcionais dons administrativos e rigor no governo das

proviacutencias []rdquo Ao ouvir as notiacutecias da sublevaccedilatildeo de Vindex e do apoio de Galba Nero retornou

a Roma em 68 Percebendo que o princeps estava isolado Ninfiacutedio Sabino prefeito do Pretoacuterio

juntou-se a Galba com os pretorianos Pouco tempo depois em 8 de junho de 68 o Senado

declarou Nero inimigo puacuteblico Um dia depois fora de Roma ele cometeu suiciacutedio auxiliado por

um de seus libertos (FAVERSANI JOLY 2020 p 92-93) 684

Ἐν δὲ τούτῳ τὸ περὶ τὴν Γαλατίαν ἀγγέλλεται κίνημα καὶ Οὐίνδιξ ἅμα τοῖς δυνατοῖς τῶν

ἐπιχωρίων ἀφεστὼς Νέρωνος περὶ ὧν ἐν ἀκριβεστέροις ἀναγέγραπται Οὐεσπασιανὸν δ᾽ ἐπήγειρεν

182

Agora que Vespasiano retornou agrave Cesareia e estava se preparando com o seu exeacutercito para marchar diretamente para Jerusaleacutem ele foi informado de que Nero estava morto depois de ter reinado treze anos e oito dias Ele abusou de seu poder no seu governo e comprometeu a gestatildeo dos negoacutecios []685

A contenccedilatildeo nos detalhes nos leva a acreditar que os eventos as suas

consequecircncias e os seus personagens eram muito conhecidos por todos686

Isso

tanto pela proximidade temporal dos envolvidos quanto pela produccedilatildeo literaacuteria

acerca dos fatos e pela crescente predominacircncia de uma visatildeo negativa sobre

Nero O proacuteprio Josefo aliaacutes reconhece que existiam assuntos tatildeo conhecidos que

ele nem precisava mais falar sobre eles Isso significa como alega Mason que ele

sabia mais do que estava dizendo687

natildeo obstante preocupa-se outra vez em

citar negativamente o soberano destacando a grande revolta contra ele e o seu

abuso de poder concebendo-o como um Nero antiprinceps No final das contas a

narrativa comedida somada agrave menccedilatildeo aos delitos mais famosos reflete sua

agenda apologeacutetica Flaviana escondida por traz de uma aparente imparcialidade

Eacute essencial demarcarmos ainda outra atitude de Josefo a esquematizaccedilatildeo

Conforme vimos ele constroacutei uma lista sinteacutetica dos crimes de Nero cuja

divulgaccedilatildeo deve ter facilitado a perpetuaccedilatildeo da memoacuteria negativa deste No

estado atual das nossas fontes essa eacute a primeira vez que eacute implementada a

esquematizaccedilatildeo um tipo de organizaccedilatildeo usada pelo historiador em mais de uma

oportunidade como no exemplo a seguir

εἰς τὴν ὁρμὴν τοῦ πολέμου τὰ ἠγγελμένα (Jos BJ 4481) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 129) 685

Οὐεσπασιανῷ δ᾽ εἰς Καισάρειαν ἐπιστρέψαντι καὶ παρασκευαζομένῳ μετὰ πάσης τῆς δυνάμεως

ἐπ᾽ αὐτῶν τῶν Ἱεροσολύμων ἐξελαύνειν ἀγγέλλεται Νέρων ἀνῃρημένος τρία καὶ δέκα βασιλεύσας

ἔτη καὶ ἡμέρας ὀκτώ περὶ οὗ λέγειν ὃν τρόπον εἰς τὴν ἀρχὴν ἐξύβρισεν πιστεύσας τὰ πράγματα τοῖς

πονηροτάτοις [] (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 147) 686

BRIGHTON 2009 p 54 687

MASON 2016 p 24

183

Claacuteudio Ceacutesar morreu depois de governar por treze anos oito

meses e vinte dias e circulou a notiacutecia de que ele foi envenenado por sua esposa Agripina [] Ela trouxe consigo um filho Domiacutecio [Nero] [] Antes disso [Claacuteudio] por ciuacutemes jaacute havia matado sua esposa Messalina com quem teve seus filhos Britacircnico e Otaacutevia [] Ele tambeacutem casou Otaacutevia com Nero [] adotando-o como seu filho Mas agora

Agripina com medo de que Britacircnico viesse a ser um homem de Estado e sucedesse seu pai no governo desejava apoderar-se do Principado de antematildeo para seu proacuteprio filho [Nero] em vista disso circulou um boato de que ela tinha planejado a morte de Claacuteudio Por conseguinte ela enviou Burro [] imediatamente e com ele os tribunos e tambeacutem os libertos de maior autoridade para trazer Nero ateacute o acampamento e saudaacute-

lo como imperador Quando Nero assumiu o governo ele conseguiu que Britacircnico fosse envenenado de forma que as pessoas natildeo percebessem embora ele tivesse matado a sua matildee publicamente natildeo muito tempo depois [] Ele tambeacutem matou Otaacutevia sua proacutepria esposa e muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra ele [Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo]688

Em poucas palavras uma parte da trajetoacuteria do princeps nos eacute narrada

Todavia tanto aiacute quanto em outros momentos os eventos da sua vida satildeo

comentados de forma breve pela simples menccedilatildeo aos episoacutedios Por exemplo os

assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina satildeo referenciados com as

sinteacuteticas expressotildees ldquoenvenenadordquo ldquomatado a sua matildee publicamenterdquo e ldquomatou

Otaacuteviardquo E a Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo689

eacute apresentada com a pequena frase ldquomatou

muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra elerdquo As

menccedilotildees concisas poreacutem satildeo suficientes para o enquadramento dos episoacutedios nas

688

Δεδοικυῖα δ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα μὴ ὁ Βρεττανικὸς ἀνδρωθεὶς αὐτὸς παρὰ τοῦ πατρὸς τὴν ἀρχὴν

παραλάβοι τῷ δὲ αὐτῆς παιδὶ προαρπάσαι βουλομένη τὴν ἡγεμονίαν τά τε περὶ τὸν θάνατον τοῦ

Κλαυδίου καθάπερ ἦν λόγος διεπράξατο καὶ παραχρῆμα πέμπει τὸν τῶν στρατευμάτων ἔπαρχον

Βοῦρρον καὶ σὺν αὐτῷ τοὺς χιλιάρχους τῶν τε ἀπελευθέρων τοὺς πλεῖστον δυναμένους ἀπάξοντας

εἰς τὴν παρεμβολὴν τὸν Νέρωνα καὶ προσαγορεύσοντας αὐτὸν αὐτοκράτορα Νέρων δὲ τὴν ἀρχὴν οὕτως παραλαβὼν Βρεττανικὸν μὲν ἀδήλως τοῖς πολλοῖς ἀναιρεῖ διὰ φαρμάκων φανερῶς δ᾽ οὐκ εἰς

μακρὰν τὴν μητέρα τὴν ἑαυτοῦ φονεύει ταύτην ἀμοιβὴν ἀποτίσας αὐτῇ οὐ μόνον τῆς γενέσεως ἀλλὰ

καὶ τοῦ ταῖς ἐκείνης μηχαναῖς τὴν Ῥωμαίων ἡγεμονίαν παραλαβεῖν κτείνει δὲ καὶ τὴν Ὀκταουίαν ᾗ

συνῴκει πολλούς τε ἐπιφανεῖς ἄνδρας ὡς ἐπ᾽ αὐτὸν ἐπιβουλὰς συντιθέντας (Jos AJ 2081-3) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800-

180- p 260-262) 689

A Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo foi uma conjura de senadores romanos ocorrida em 65 que tentou

assassinar Nero e colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo descendente da nobreza republicana

que gozava de ampla popularidade A ideia dos senadores era matar o imperador quando ele

estivesse participando de corridas de bigas no Circus Maximus O esquema todavia natildeo deu certo

pois o liberto do senador Flaacutevio Escavino relatou ao princeps os preparativos suspeitos do seu

patrono Descoberta a conjuraccedilatildeo houve uma dura repressatildeo alguns participantes foram

decapitados outros forccedilados a cometer suiciacutedio como Secircneca e Lucano alguns foram exilados e

a minoria foi perdoada eou absolvida (Tac Ann 15 48-74)

184

categorias Nero fratricida Nero uxoricida e Nero matricida Cabe apontar ainda

em concordacircncia com Ehrenkrook que os episoacutedios citados estatildeo vinculados ao

discurso moralizante romano Desde o iniacutecio a maacutequina de legitimaccedilatildeo Flaviana

foi especialmente diligente em promover a impressatildeo de um renascimento da

romanitas tradicional Os valores morais tipicamente associados agrave Repuacuteblica ndash

por exemplo temperanccedila integridade e prudecircncia ndash foram anexados pela nova

famiacutelia imperial ao passo que uma constelaccedilatildeo potente de viacutecios ndash como tirania

luxuacuteria e avareza ndash passou a ser ligada a esse notoacuterio ldquovilatildeordquo dos Juacutelio-

Claudianos Nero Se ele realmente merecia essa reputaccedilatildeo natildeo podemos dizer

mas logo ele se tornou o emblema de tudo que potencialmente minaria e destruiria

a estabilidade do Impeacuterio690

A discussatildeo desenvolvida ateacute aqui mostrou que ao lermos o Bellum

Judaicum e as Antiquitates Judaicae deparamo-nos com cinco categorias de

anaacutelise 1) Nero fraticida referente ao assassinato de Britacircnico 2) Nero

uxoricida relativa ao assassinato de Otaacutevia 3) Nero matricida ligada ao

assassinato de Agripina 4) Nero cruel conectada agrave Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo e 5)

Nero antiprinceps vinculada agrave Revolta de Vindex e ao suiciacutedio de Nero Como

vimos ao relatar tais episoacutedios Josefo pretende seguir o modelo de Tuciacutedides

Esse historiador nos termos de Degan quis ser e foi reconhecido como o pai da

Histoacuteria verdadeira instituindo uma narrativa pautada no desvelar da verdade dos

acontecimentos a qual rejeitava os cacircnones narrativos poeacuteticos691

Ou seja ele

isentava-se de proferir julgamentos natildeo engradecendo ou embelezando a

realidade e nem seduzindo os ouvidos alheios com fabulaccedilotildees conforme o

paradigma de Tuciacutedides692

Josefo tenta seguir ao maacuteximo esses fundamentos

mas soacute os cumpre em parte dando-nos uma narrativa de aparente imparcialidade

Embora natildeo tenha emitido julgamentos extensos a respeito de Nero e de seu

governo ele soacute seleciona os episoacutedios negativos apresentando-os de forma

esquematizada e colocando adjetivos pontuais que evidenciavam o caraacuteter

negativo das ocorrecircncias referenciadas Onde foram parar os eventos positivos

Por que natildeo foram citados mesmo ele tendo reconhecido sua existecircncia Josefo

natildeo leva em consideraccedilatildeo nenhuma composiccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria positiva

690

EHRENKROOK 2011 p 177-178 691

DEGAN 2010 p 26 692

Thuc 1222-4

185

precedente Talvez ele ateacute tenha lido Secircneca e Lucano mas natildeo julga seus elogios

veriacutedicos o suficiente Seus argumentos satildeo todos elaborados a partir de obras

hostis a Nero como os Comentarii de Vespasiano aos quais teve acesso direto

Portanto ele faz uma inuentio orientada tentando persuadir o puacuteblico a aceitar o

seu ponto de vista693

Ele aponta uma versatildeo amplamente aceita que estava sendo

produzida e circulando no tempo em que viveu em Roma ndash lembremo-nos de que

Josefo escreveu o Bellum Judaicum e as Antiquitates Judaicae entre os anos 70 e

90 A versatildeo aceita sobre Nero aiacute jaacute era negativa e por isso eacute apresentada como

verdadeira Qualquer narrativa longe de tal perspectiva eacute descartada

Essa sua atitude relaciona-se perfeitamente com o conceito de retrato Ao

ignorar as representaccedilotildees positivas anteriores do princeps Josefo reforccedila a

tradiccedilatildeo negativa do presente Como um historiador que ambicionava dizer a

verdade ele natildeo soacute daacute autoridade agrave tradiccedilatildeo negativa como tambeacutem a faz parecer

mais verossiacutemil do que a positiva Poreacutem ele natildeo usa a tradiccedilatildeo negativa de modo

extenso mas apenas expotildee os traccedilos que permitiam aos leitores trazerem agrave cena

outros retratos de Nero mais detalhados e guardados na memoacuteria Se Josefo

tivesse se dedicado a ressaltar os traccedilos positivos deveria tecirc-los divulgado mais

minuciosamente para que fizessem sentido em um ambiente onde predominavam

as visotildees negativas Desse modo ele prioriza certos elementos episoacutedios e

tradiccedilotildees interpretativas escolha que gera duas consequecircncias a elevaccedilatildeo de

determinados eventos que a partir daqui seratildeo sempre dignos de memoacuteria a

exemplo dos trecircs assassinatos familiares e a desvalorizaccedilatildeo de outros que eram

muito rememorados e agora passaram despercebidos Como ilustraccedilatildeo o episoacutedio

da ascensatildeo de Nero ndash tatildeo prodigioso no passado e infausto no presente ndash eacute

aludido atraveacutes da exiacutegua indicaccedilatildeo de que Agripina matara Claacuteudio para dar o

trono ao filho

Outro aspecto marcante nas obras de Josefo ndash e que nos permite

compreender melhor essa mecacircnica de produccedilatildeo dos retratos literaacuterios de Nero ndash eacute

que ele dialoga com dois puacuteblicos distintos necessitando para tanto de tornar seu

Nero compreensiacutevel para ambos ao mesmo tempo Natildeo satildeo os romanos que estatildeo

discutindo sua histoacuteria domeacutestica e sim um judeu que estaacute apresentando como a

histoacuteria de seu povo conectou-se agrave de Roma O contraponto eacute produzido de uma

693

KENNEDY 1994 p 4

186

outra oacutetica a qual gerou uma nova perspectiva para o retrato de Nero Josefo

entendia a revolta dos judeus natildeo como uma recusa ao poder romano mas como

uma contraposiccedilatildeo agrave tirania de Nero que saqueou o templo de Jerusaleacutem Logo

natildeo coube a ele debater se Nero era tirano ou natildeo pois isso jaacute estava dado Seu

ponto foi contrapor o poderio romano que gerou a revolta com o poderio romano

atual representado pelos dignos soberanos Vespasiano e Tito Ele daacute ecircnfase

entatildeo ao retrato do Nero tirano que levou os judeus agrave revolta Por outro lado

tambeacutem utiliza esse retrato da tirania para mostrar aos judeus que o poderio

romano natildeo era Nero Usando o contraste dominante em seu tempo ele projeta

esse Nero tirano como o motor de desobediecircncia que natildeo existia mais Agora no

novo contexto a revolta perde o sentido e natildeo deve mais existir Nesse ponto o

mecanismo de allelopoiesis eacute claro Josefo mescla as temporalidades e projeta no

presente uma conjunccedilatildeo que daacute sentido simultaneamente ao presente e ao

Principado de Nero ndash ela daacute sentido tanto para a revolta dos judeus quanto para a

derrota tanto para a tirania do princeps quanto para a legitimidade dos Flaacutevios

Por uacuteltimo consideramos que as escolhas metodoloacutegicas de Josefo natildeo

devem ser separadas da sua posiccedilatildeo sociopoliacutetica Natildeo deixemos de lado o fato de

que o historiador pagava um tributo de gratidatildeo a dois imperadores sucessivos

Vespasiano e Tito o que inseriu o seu texto em um processo complexo de

redaccedilatildeo tornando os Flaacutevios seus patrocinadores e seus leitores ao mesmo

tempo694

A relaccedilatildeo com os principes significava que a ldquoverdaderdquo histoacuterica de

qualquer narrativa seria escrita visando ao bem da nova dinastia e natildeo ao bem dos

que amavam a verdade695

E nada melhor para produzir o ldquobemrdquo dos novos

governantes do que produzir o ldquomalrdquo do falecido soberano

Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae

Essa fabricaccedilatildeo da imagem negativa neroniana tambeacutem se faz presente nas

obras de Marcial e Estaacutecio uacuteltimos autores a serem analisados neste capiacutetulo O

Liber Spectaculorum os Epigrammata e as Siluae condenam o princeps por

quatro feitos o conflito contra os partas o assassinato de Agripina o incecircndio de

Roma e a construccedilatildeo da Domus Aurea Poreacutem antes de detalharmos essas

694

HADAS-LEBEL 1991 p 45 695

Jos BJ 1Pr12

187

condenaccedilotildees eacute importante apresentarmos os dados biograacuteficos dos autores A

opccedilatildeo por analisaacute-los em conjunto adveacutem do fato de que foram contemporacircneos e

podem ter tido os mesmos patronos696

Marcos Valeacuterio Marcial nasceu em Biacutelbilis na Hispacircnia Tarraconense

entre os anos 38 e 41697

Desde muito jovem recebeu uma excelente educaccedilatildeo

devido agraves preocupaccedilotildees dos seus pais Fronto e Flacila que o colocaram sob a

tutoria de um gramaacutetico e de um retoacuterico698

Em 64 por volta dos 24 anos de

idade foi enviado agrave capital do Impeacuterio para completar sua educaccedilatildeo699

Ao chegar

laacute foi acolhido pela famiacutelia espanhola mais conspiacutecua de Roma a de Secircneca que

o introduziu nos ciacuterculos literaacuterios de Nero A relaccedilatildeo com os Aneus somada agrave

inserccedilatildeo na corte imperial facilitou a divulgaccedilatildeo dos seus talentos poeacuteticos

fazendo com que ele conquistasse o auxiacutelio de patronos importantes700

Todavia a

descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo por Nero atingiu o filoacutesofo e outros artistas da

corte levando Marcial a perder seus principais suportes financeiros O golpe de

maacute sorte fecirc-lo comeccedilar a redigir poemas curtos para os patronos que conseguiu

reunir isto eacute ele retribuiacutea o apoio com versos elogiosos701

Tempos depois no

ano 80 publicou 30 epigramas intitulados Liber Spectaculorum nos quais

descreveu os espetaacuteculos ofertados pelo imperador Tito no receacutem-concluiacutedo

Anfiteatro Flaviano702

Segundo Conte tal publicaccedilatildeo deve ter lhe dado

notoriedade pois seus escritos seguintes foram todos patrocinados por Tito e

mais tarde por Domiciano703

Com a ajuda imperial elaborou 12 livros de

epigramas os Epigrammata escritos e gradualmente divulgados de 86 a 102 bem

como compocircs os epigramas Xenia e Apophoreta que hoje integram os livros 13 e

696

DOMINIK 2016 p 412 MOZLEY 1967 p viii 697

Mart 10103 Esse e os demais dados biograacuteficos chegaram ateacute noacutes atraveacutes de seus proacuteprios

versos Para detalhes acerca da vida e das publicaccedilotildees de Marcial cf SULLIVAN 1991 p 1-55 698

Mart 973 699

Mart 10103 700

De acordo com Saller (1989 p 49) trecircs aspectos caracterizavam uma relaccedilatildeo de patrocinium

deveria existir uma troca reciacuteproca de bens e serviccedilos entre patrono e cliente deveria haver uma

relaccedilatildeo pessoal entre ambos e tal relaccedilatildeo deveria ser assimeacutetrica ou seja patrono e cliente

deveriam ser membros de categorias sociais distintas 701

Mart 1117-118 702

Esses epigramas foram compostos de forma independente mas hoje integram o livro dos

Epigrammata Cabe adicionar tambeacutem que o nome Liber Spectaculorum foi dado agrave coleccedilatildeo de

epigramas posteriormente (SHACKLETON BAILEY 1993 p 2) 703

CONTE 1999 p 505

188

14 dos Epigrammata704

O favor dos Flavianos tambeacutem rendeu a Marcial trecircs

outras conquistas significativas i) as nomeaccedilotildees para o tribunatus semestris

(Tribunato de Seis Meses)705

e para um provaacutevel tribunato militar ii) a elevaccedilatildeo

ao status de equestre e iii) a dispensa do ius trium liberorum (Direito dos Trecircs

Filhos)706

No ano 100 Marcial decidiu deixar Roma e retornar a Biacutelbilis no

desejo de viver seus uacuteltimos dias sossegado Na proviacutencia encontrou a paz que

buscava mas isso natildeo o impediu de sentir nostalgia da vida turbulenta da Vrbs

Saudoso ele faleceu por volta de 104 deixando-nos uma quantidade expressiva

de versos707

Por sua vez Puacuteblio Papiacutenio Estaacutecio nasceu em Naacutepoles na Campacircnia

entre os anos 40 e 50708

Filho de um prestigiado grammaticus e professor de

poesia foi instruiacutedo nos mais altos padrotildees da composiccedilatildeo poeacutetica heleniacutestica

709

ganhando precircmios quando ainda era bem jovem710

Apoacutes a morte do pai em 69

mudou-se para Roma e assumiu a poesia como profissatildeo sobrevivendo de forma

modesta e ignota como poeta-cliente Felizmente em 83 sua vida sofreu uma

reviravolta a escrita da obra Agave um necroloacutegio para a morte de Paacuteris ndash amante

da imperatriz Domiacutecia ndash proporcionou-lhe renome gerando convites para recitar

seus versos em jantares ilustres711

A partir daiacute recebeu a proteccedilatildeo de Domiciano

e publicou os cinco livros das Siluae de 92 em diante os 12 cantos da Thebais

(Tebaida) em 93 e a Achilleis (Aquileida) em 95 poema eacutepico inacabado do

704

LEITE 2003 p 39 O arranjo atual das obras completas de Marcial possivelmente eacute o de uma

ediccedilatildeo antiga feita apoacutes a morte do autor (RIMELL 2009 p 5) 705

De acordo com Marquardt (apud ALLEN JR et al 1970 p 346) os tribuni semestres

provavelmente serviam por um ano mas ldquosoacute no papelrdquo pois na verdade o seu desempenho real

durava seis meses embora recebessem um ano inteiro de salaacuterio Essa magistratura era conferida

pelo imperador agravequeles que natildeo pretendiam seguir uma carreira militar 706

ALLEN JR et al 1970 p 345-348 Em 18 aC Augusto promulgou a lei de casamento Lex Iulia de Maritandis Ordinibus cujo propoacutesito era regular o matrimocircnio e o divoacutercio na sociedade

romana Entre as vaacuterias sanccedilotildees da lei estava o ius trium liberorum que conferia aos chefes de

famiacutelia com trecircs filhos ou mais incentivos fiscais e prioridade na obtenccedilatildeo de magistraturas

(EDWARDS 2002 p 39) Os indiviacuteduos que natildeo os tivessem por quaisquer motivos poderiam

pedir diretamente ao imperador a dispensa do ius trium liberorum (STEINWENTER 1919 p

1281-1285) No caso de poetas a dispensa era concedida caso eles redigissem uma obra que o

princeps julgasse ter alguma importacircncia esteacutetica eou poliacutetica como aconteceu com Marcial 707

SHACKLETON BAILEY 1993 p 4 708

Stat Silv 3512-13 As informaccedilotildees biograacuteficas sobretudo as relacionadas agrave sua famiacutelia e agrave

sua infacircncia satildeo deduzidas de relatos feitos pelo proacuteprio autor ao longo das Siluae Para mais

informaccedilotildees sobre a vida de Estaacutecio cf NAUTA 2002 p 195-203 709

Stat Silv 53209-213 710

Stat Silv 53225-230 711

JUNIOR 2016 p 80

189

qual temos apenas o primeiro e o segundo livros712 Estaacutecio provavelmente

faleceu na capital do Impeacuterio no ano 96 pouco antes de Domiciano713

Com base nas biografias podemos ver que ambos os poetas nasceram

viveram e morreram no mesmo periacuteodo Dominik inclusive defende a

possibilidade de eles terem participado da mesma rede de relaccedilotildees intelectuais e

clientelistas da dinastia Flaviana714

Natildeo eacute agrave toa que os dois divulgaram reflexotildees

similares acerca das praacuteticas sociais e culturais durante o governo dos Flavii ndash

opiniotildees que embora sejam semelhantes satildeo apresentadas atraveacutes de gecircneros

literaacuterios distintos Por exemplo no Liber Spectaculorum e nos Epigrammata

Marcial relata cenas da Roma imperial utilizando o gecircnero poeacutetico

epigramaacutetico715

isto eacute poemas de circunstacircncias com versos curtos716

cujo

objetivo era perpetuar a memoacuteria de um acontecimento importante Segundo

Agnolon e Leite um epigrama poderia incluir mateacuterias vaacuterias em discurso

obsceno e agudo e nele eram garantidas sempre a brevidade e a condensaccedilatildeo

Marcial procurava explorar as possibilidades do epigrama em todos os aspectos

ou seja preocupava-se em explorar sua ampla gama temaacutetica e estendecirc-la ainda

mais acrescentando uma tonalidade satiacuterica e jocosa717

Em outras palavras

Marcial descreve Roma e os vaacuterios indiviacuteduos que ocupavam os seus espaccedilos com

olhar malicioso desvelando os piores viacutecios da natureza humana (vaidade

avareza petulacircncia entre outros)718

Ele

712

MOZLEY 1967 p viii 713

GIBSON 2006 p xvii 714

DOMINIK 2016 p 412 Eacute intrigante que apesar dos perfis literaacuterios parecidos e do fato de

suas vidas terem se entrecruzado nenhum menciona o outro Esse silecircncio levou alguns criacuteticos

como Martin (1939 p 461-462) a suspeitarem de uma hostilidade entre eles 715

Originalmente epigrama em grego (ἐπί-γραφὼ) significava ldquoqualquer palavra ou marca inscrita em artefatos oferendas votivas sepulturas monumentos ou edifiacutecios representando o proprietaacuterio

o criador o doador o dedicataacuterio ou apenas a proacutepria mensagemrdquo (OCGD 2002 p 126) Na

Greacutecia arcaica entatildeo o epigrama era uma composiccedilatildeo de tom formal que tratava de temas seacuterios

Poreacutem durante o periacuteodo alexandrino ganhou os temas amorosos e neles se expandiu ateacute que

mais tarde jaacute em Roma teve em Marcial o mais alto grau de apuro na teacutecnica e na arte do

epigrama satiacuterico e jocoso razatildeo dessa fama que acompanha a forma epigrama desde entatildeo

(LEITE 2013 p 63-66 AGNOLON 2010 p 74-75) Para uma discussatildeo mais longa sobre a

histoacuteria do epigrama antigo e o lugar de Marcial nele cf LAURENS 1965 p 315-341 716

Mart 9502-3 717

AGNOLON 2010 p 75-76 p 26 LEITE 2013 p 79 Leite (2013 p 19) inclusive comenta

que a escolha de Marcial pelo epigrama pelas invectivas satiacutericas e pela linguagem obscena

tornou-o alvo de incompreensatildeo e de acusaccedilotildees diversas incoerente friacutevolo preconceituoso

oportunista inoacutecuo inferior 718

CONTE 1999 p 508

190

observa o espetaacuteculo da realidade e aqueles que ocupam seu

palco com um olhar distorcido Acentua seus traccedilos grotescos e os reduz a tipos recorrentes (parasitas vaidosos [] etc) Eacute uma saacutetira social sem aspereza e ele prefere o riso agrave indignaccedilatildeo com [] o absurdo do mundo em que se encontra719

Sua poesia eacute mordaz divertida e irreverente muito diferente da poesia de

Estaacutecio que se concentra nos aspectos mais dignos e edificantes da cultura

romana Nas Siluae720

o autor discorre acerca da vida na Vrbs usando poemas

curtos de ocasiatildeo compostos por encomenda para eventos especiacuteficos a exemplo

de aniversaacuterios casamentos despedidas e viagens721

Em vista disso seus versos

sempre trazem um destinataacuterio em geral membros da elite como nobres patronos

e o princeps os quais satildeo louvados por suas riquezas e realizaccedilotildees Sua obra

entatildeo possui um tom elogioso marcante fugindo dos relatos sobre os viacutecios da

sociedade romana Como um poeta que descreve a sociedade de seu tempo

Estaacutecio se distancia de Marcial ao evitar a grosseria e sua poesia reflete a

sensibilidade de seu caraacuteter722

Resumindo estamos lidando com leituras de mundo bem distintas a de

Marcial viacutevida satiacuterica e preocupada com a falibilidade da existecircncia humana e a

de Estaacutecio reverente em relaccedilatildeo a seus personagens e ao universo social da

elite723

Isso natildeo quer dizer que essas leituras natildeo tenham um ponto de

convergecircncia ambas satildeo produtos da era Flaviana O epigrama e a poesia

ocasional transmitem os valores romanos atraveacutes dos vislumbres eou dos

julgamentos dos autores que avaliam os gostos esteacuteticos o status o caraacuteter e as

virtudes tradicionais presentes nos agentes sociais de sua eacutepoca Ambas tambeacutem

culpabilizam Nero por determinadas atrocidades expondo julgamentos muito

negativos Ele eacute visto de modo bastante tiracircnico como o exemplo de mau

imperador Vejamos primeiramente os episoacutedios mencionados por Marcial a

719

CONTE 1999 p 508 720

A palavra Siluae significa literalmente ldquobosquerdquo ldquovegetaccedilatildeo rasteira ou terra natildeo cultivadardquo

Metaforicamente denota uma variedade profusa ou mateacuteria-prima incluindo um esboccedilo (OCD

2012 p 1367) Para Wray (2007 p 128) este uacuteltimo significado eacute o que mais se relaciona com a

obra por se aproximar do gecircnero de poemas de encomenda 721

NAGLE 2004 p 3-4 Em sua tese de Doutorado Carvalho (2018 p 24-53) localiza as Siluae

como subgecircnero literaacuterio pertencente agrave liacuterica 722

GIBSON 2006 p xiv 723

DOMINIK 2016 p 431

191

saber o assassinato de Agripina e a construccedilatildeo da Domus Aurea Comecemos

pelo assassinato

Enquanto Ceriacutelia uma matildee navegava de Baulos para Baias encontrou a morte afogada pelo crime de um mar agitado Aacuteguas que gloacuteria vocecircs perderam Uma vez embora ordenado vocecircs recusaram a Nero essa coisa monstruosa724

A referecircncia ao delito feita por Marcial nos leva a refletir sobre duas

questotildees Em primeiro lugar ele natildeo revela detalhes sobre a forma como o

homiciacutedio de fato ocorreu ele somente alude ao assassinato de Agripina

planejado por meio de um naufraacutegio a partir da menccedilatildeo ao afogamento de Ceriacutelia

Vale lembrar que ateacute o momento o naufraacutegio de Agripina soacute apareceu na

Octauia o que talvez indique a leitura da trageacutedia por Marcial ou que ele e

Pseudo-Secircneca conheciam fontes em comum que divulgaram o episoacutedio Essa eacute a

hipoacutetese mais provaacutevel pois tal elemento da narrativa (o afogamento) seraacute

apresentado tambeacutem em fontes posteriores como veremos Se tal hipoacutetese estiver

correta observamos o mesmo mecanismo de simples alusatildeo aos malfeitos de Nero

em Josefo Nesse sentido Marcial ao se apoiar em uma tradiccedilatildeo criacutetica

consolidada sob os Flaacutevios natildeo tem que divulgar detalhes sobre a fracassada

tentativa de matar Agripina com um barco destinado a naufragar A mera menccedilatildeo

ao barco e ao naufraacutegio jaacute bastavam para compor a imagem do Nero matricida

Em segundo lugar em concordacircncia com Ginsberg e Lefebvre o poeta critica

tanto Nero quanto sua matildee dado que recrimina o princeps por ter realizado uma

ldquocoisa monstruosardquo (o matriciacutedio) e censura o mar por ter perdido a gloacuteria de

matar Agripina Ou seja Marcial ao mesmo tempo condena o Nero matricida e

sugere que Agripina merecia morrer725

Tal imagem negativa de Agripina emergiu

tambeacutem na Naturalis Historia quando Pliacutenio o Velho retratou o homiciacutedio como

algo merecido pois a matrona trouxera Nero ao mundo726

Isso nos fornece

subsiacutedios para cogitarmos o iniacutecio da construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo negativa acerca

de Agripina embora natildeo seja esse o foco da tese

724

Dum petit a Baulis mater Caerellia Baias occidit insani crimine mersa freti gloria quanta

perit vobis haec monstra Neroni nec iussae quondam praestiteratis aquae (Mart 463) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (1993 p 331) 725

GINSBERG 2019 p 37-38 LEFEBVRE 2017 p 176 726

Plin Nat 2246

192

Outro episoacutedio referenciado por Marcial eacute a construccedilatildeo da Domus Aurea

No Liber Spectaculorum ele recrimina o soberano pela apropriaccedilatildeo indevida dos

espaccedilos puacuteblicos citadinos para a edificaccedilatildeo do Palaacutecio privado

Onde o colosso estrelado vecirc as constelaccedilotildees de perto []

uma vez brilhavam os odiosos corredores de um monarca cruel e em toda Roma havia uma uacutenica casa Onde se ergue diante dos nossos olhos o [] Anfiteatro foi outrora o lago de Nero Onde admiramos os banhos quentes [] uma altiva extensatildeo de terra roubou dos pobres suas moradias Onde a colunata claudiana se desdobra em sua sombra ampla ficava a parte mais externa do palaacutecio727

A Domus Aurea eacute visivelmente caracterizada como um empreendimento

odioso erigido por um ldquomonarca cruelrdquo que roubou dos pobres miseraacuteveis suas

casas uma construccedilatildeo tatildeo grande que tomou conta da capital dando a impressatildeo

de que em toda Roma soacute existia uma uacutenica casa visto que a Vrbs havia se

transformado em uma cidade-palaacutecio728

Aqui temos uma criacutetica vigorosa agrave

vaidade de Nero e ao seu individualismo pois o seu complexo residencial nos

termos de Sullivan alojava ldquoum no lugar de muitosrdquo729

Para Lefebvre ao frisar a

ocupaccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico para a construccedilatildeo de uma residecircncia privada Marcial

sublinha fortemente o escacircndalo do projeto eacute um sinal claro de tirania A Domus

Aurea eacute representada como o siacutembolo por excelecircncia de um poder tiracircnico que

subordina egoisticamente o espaccedilo da cidade aos desejos de um soacute homem730

Lembremo-nos de que anteriormente Pliacutenio o Velho jaacute havia reclamado ldquoo

Palaacutecio Dourado de Nero rodeava a nossa cidaderdquo731

A criacutetica entatildeo eacute reforccedilada

por Marcial que aponta o caraacuteter autoritaacuterio do soberano enquanto ridiculariza os

ldquoodiosos corredoresrdquo da sua casa Cabe frisar que esse eacute um dos poucos trechos no

qual o epigramista se delonga na tratativa do assunto fato que revela sua real

insatisfaccedilatildeo com a habitaccedilatildeo imperial

727

Hic ubi sidereus propius videt astra colossus et crescunt media pegmata celsa via invidiosa

feri radiabant atria regis unaque iam tota stabat in urbe domus hic ubi conspicui venerabilis

Amphitheatri erigitur moles stagna Neronis erant hic ubi miramur velocia munera thermas

abstulerat miseris tecta superbus ager Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras ultima

pars aulae deficientis erat (Mart Sp 21-10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 13-15) 728

RIMELL 2009 p 117-118 729

SULLIVAN 1991 p 8-9 730

LEFEBVRE 2017 p 126 731

Plin Nat 3316

193

Ainda na mesma passagem o poeta tece elogios a Tito princeps

munificente que desmantelou a Domus Aurea e abriu seu espaccedilo ao usufruto

comum ldquoRoma foi restaurada a si mesma e sob seu governo Ceacutesar os prazeres

que pertenciam a um mestre senhor agora pertencem ao povordquo732

Notamos que o

local antes reservado a divertimentos privados agora traz termas quentes e o

Anfiteatro Flaviano tudo aberto ao populus733

Como alega Gunderson esse passa

a ser o lugar onde as velhas e as maacutes maravilhas da casa de Nero que todos viam

e odiavam foram transformadas em novos espetaacuteculos puacuteblicos oferecidos e

apreciados por todos734

Tito eacute o liacuteder magnacircnimo que substituiu o edifiacutecio do ldquoum

no lugar de muitosrdquo pelo edifiacutecio dos ldquomuitos no lugar de umrdquo735

Essa

contraposiccedilatildeo entre os imperadores na visatildeo de Rosso eacute na verdade uma

antiacutetese aparente criada por Marcial O fato de Nero ter transformado a cidade em

seu palaacutecio pessoal eacute que faz a restauraccedilatildeo desse espaccedilo feita pelos Flavianos se

tornar algo excepcional Ou seja como os Flavianos queriam fortalecer a ideia de

que seu programa de urbanismo era uma restitutio da Domus Aurea neroniana

eles passaram a retratar o projeto de Nero como algo ruim Dessa maneira a

antiacutetese que eacute sistemaacutetica e perfeita eacute tambeacutem complementar o Tito munificente

soacute existiria se o Nero egoiacutesta existisse Um precisava do outro Nesse caso Rosso

afirma ndash e aqui concordamos com ele ndash que seria aconselhaacutevel ldquo[] inverter a

grade de leitura e considerar que o ponto de vista flaviano estaacute em primeiro lugar

O Nero desta tradiccedilatildeo eacute uma criaccedilatildeo ad hoc forjada no negativo e de acordo com

as intenccedilotildees da nova dinastiardquo736

Eacute importante adicionar que o Anfiteatro Flaviano foi e ainda eacute uma

conquista arquitetocircnica colossal De acordo com Jones e Zanker a construccedilatildeo

tinha cerca de 50 metros de altura com dois andares de colunas doacutericas e jocircnicas e

um terceiro andar com arcadas coriacutentias Possuiacutea capacidade para 50 mil

espectadores os quais ficavam dispostos nas arquibancadas segundo suas

categorias sociais O piso da arena era de madeira cobrindo um labirinto de tocas

732

reddita Roma sibi est et sunt te praeside Caesar deliciae populi quae fuerant domini (Mart

Sp 211-12) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Shackleton Bailey (1993 p 15) 733

Para uma discussatildeo detalhada sobre os conceitos de publicus e priuatus no periacuteodo imperial cf

WINTERLING 2009 p 58-76 734

GUNDERSON 2003 p 652 735

SULLIVAN 1991 p 8-9 736

ROSSO 2008 p 56-57

194

de animais elevadores e ralos de drenagem737

Para a inauguraccedilatildeo Tito ofereceu

diversas atraccedilotildees por 100 dias houve lutas de gladiadores uma batalha naval em

um lago artificial e a exposiccedilatildeo de milhares de animais de procedecircncia exoacutetica738

A descriccedilatildeo desses espetaacuteculos eacute feita por Marcial em detalhes no Liber

Spectaculorum no qual ele intitula o monumento de ldquomaravilha do Mundo

Antigordquo739

denominaccedilatildeo a nosso ver conferida natildeo soacute pelo fato de o complexo

ser majestoso e puacuteblico como tambeacutem por contrastar o Principado de Nero com o

de Tito O Anfiteatro representa ali a fronteira entre o passado vicioso e o presente

virtuoso entre o dominus Nero e o praeses Tito E ao mesmo tempo significa a

ligaccedilatildeo entre eles pois as obras dos Flaacutevios ganham sentido por sua comparaccedilatildeo

com o projeto ediliacutecio de Nero e vice-versa A Domus Aurea e seu

desaparecimento natildeo satildeo a mera destruiccedilatildeo de uma monstruosidade e sim a

necessidade de colocar em seu lugar algo que natildeo servisse a um tirano mas ao

populus algo que justamente por servir a muitos seria ainda mais grandioso A

grandiosidade das obras dos Flaacutevios deve superar as de Nero assim como suas

virtudes devem superar os viacutecios do tirano tudo imponente e memoraacutevel

constituiacutedo um em razatildeo do outro em simultaneidade como jaacute argumentou

Rosso740

Marcial coloca o Nero construtor e o Nero vaidoso preocupados soacute com

a sua cidade-palaacutecio em oposiccedilatildeo ao benevolente Tito interessado em erigir uma

Roma para todos741

Percebemos assim que a atividade arquitetocircnica dos

imperadores eacute usada pelo poeta como mecanismo de manipulaccedilatildeo da memoacuteria

cujo intento eacute projetar os Flavii como benfeitores puacuteblicos notaacuteveis em oposiccedilatildeo

ao autoindulgente Nero742

Natildeo eacute agrave toa que em outra passagem o epigramista

designa o ano da morte de Nero como o ldquogrande ano sagrado em que o mundo foi

737

JONES 1992 p 93 ZANKER 2010 p 70 Juntamente ao Anfiteatro existiam ainda outras

estruturas a norte havia as Termas de Tito inauguradas com o Anfiteatro em 80 a leste estava o

Ludus Magnus construiacutedo por Domiciano para oferecer aos gladiadores acesso subterracircneo agrave

arena principal e entre o final da Via Sacra e a entrada leste do Foacuterum Romano ficava o Arco de

Tito uma das rotas de acesso ao proacuteprio Anfiteatro Todas as edificaccedilotildees ligadas ao Anfiteatro

preenchiam uma aacuterea consideraacutevel do centro de Roma (MILLAR 2005 p 119-120) Para dados

detalhados cf DIMACCO 1971 738

Mart Sp 8-13 739

Mart Sp 18 740 ROSSO 2008 p 56-57 741

ROMAN 2010 p 96 DIAS 2019 p 122-123 742

ldquoO caraacuteter propagandista do Liber Spectaculorum eacute inegaacutevel []rdquo (SULLIVAN 1991 p 8)

195

libertadordquo haja vista que no seu governo os espaccedilos puacuteblicos eram destruiacutedos e

sob o Principado de Tito eram construiacutedos743

O curioso eacute que a ferocidade utilizada por Marcial para criticar o egoiacutesmo

de Nero e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea natildeo eacute usada para mencionar as termas

erigidas pelo falecido soberano em 62 Ao contraacuterio o poeta elogia os banhos

puacuteblicos ldquoO que eacute pior do que Nero O que eacute melhor do que as termas de

Nerordquo744

comenta que as pessoas relaxavam laacute ldquo[Ele] [] relaxa nos banhos

quentes de Nerordquo745

aconselha os indiviacuteduos a conservarem tais locais ldquo[]

Cuide dos banhos de Nerordquo746

e tece mais outros elogios aos banhos quentes do

princeps747

Ateacute mesmo Estaacutecio elogia o local ldquo[] Algueacutem que se banhou

ultimamente nos banhos de Nero se recusaria a se banhar aqui outra vezrdquo748

As

thermae Neronianae foram os segundos balneares puacuteblicos de Roma

Localizavam-se no Campus Martius natildeo muito longe do Panteatildeo e das antigas

termas de Agripa ocupando uma aacuterea retangular de cerca de 190 metros por

120749

Segundo Ashby e Platner escavaccedilotildees diversas trouxeram agrave luz vestiacutegios

arquitetocircnicos da grande beleza desses locais entre eles quatro colunas de granito

vermelho capiteacuteis de maacutermore branco fragmentos de colunas de poacuterfiro granito

cinzento e uma enorme bacia para fonte de 67 metros de diacircmetro recortada de

um uacutenico bloco de granito vermelho750

Estamos falando entatildeo de um espaccedilo

extremamente luxuoso e custoso que agradava agrave populaccedilatildeo da Vrbs ndash tatildeo luxuoso

e custoso quanto a proacutepria Domus Aurea E por que Marcial condena somente o

743

postquam bis senis ingentem faseibus annum rexerat asserto qui saeer orbe fuit (Mart 7639-

10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Shackleton Bailey (1993 p 129) 744

quid Nerone peius quid thermis melius Neronianis (Mart 7344-5) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p

105) Yeguumll (1942 p 30) esclarece que os banhos puacuteblicos eram parte integrante de um dia de

muitos que viviam na Roma antiga Aleacutem de suas funccedilotildees higiecircnicas normais eles forneciam instalaccedilotildees para esportes e recreaccedilatildeo Sua natureza puacuteblica criava o ambiente adequado ndash muito

parecido com um clube da cidade ou um centro comunitaacuterio ndash para relaccedilotildees sociais variando de

fofocas de bairro a discussotildees de negoacutecios Ademais os banhos incorporavam bibliotecas salas de

aula colunatas e passeios assumindo um caraacuteter como o ginaacutesio grego 745

Neronianas is refrigerat thermas (Mart 3254) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base

na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 219) 746

et thermas tibi have Neronianas (Mart 2488) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base

na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 169) 747

Mart 10483-4 12835 748

Neronea nee qui modo lotus in unda hie iterum sudare neget (Stat Silv 1562-63) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (2015 p 63) 749

COARELLI 2007 p 293-296 750

ASHBY PLATNER 1929 p 531-532

196

Palaacutecio e natildeo as termas A nosso ver porque o Palaacutecio proporcionava um

usufruto privado as termas um usufruto comum O problema natildeo era o luxo ou o

gasto despendido na construccedilatildeo dos edifiacutecios mas a quantidade de pessoas que

atendiam e agradavam Fagaacuten e Graccedila inclusive afirmam que os banhos do

princeps caracterizados por seu requinte e excelente niacutevel de aquecimento

interno eram os preferidos da populaccedilatildeo de Roma Menos frequentados eram os

banhos receacutem-construiacutedos por Tito situados nas proximidades do anfiteatro

Flaacutevio751

Dyson e Prior esclarecem que a preferecircncia estava vinculada natildeo apenas

ao luxo mas tambeacutem ao fato de as termas serem maiores e mais antigas o que

significava que jaacute faziam parte do cotidiano diaacuterio das pessoas haacute tempos752

Cabe

rememorar que Calpuacuternio Siacuteculo na seacutetima Eacutecloga teceu louvores ao Anfiteatro

erigido pelo soberano e aos espetaacuteculos ofertados laacute753

Isso nos leva a perceber

que as criacuteticas ao Nero construtor soacute emergiam quando ele agradava a si mesmo e

se esquecia dos demais habitantes da cidade

Por outro lado tais elogios embora pontuais permitem-nos compreender

uma questatildeo sobre a qual sempre chamamos atenccedilatildeo a inuentio era criada a partir

do material disponiacutevel que de algum modo jaacute era conhecido pelos ouvintes O

repertoacuterio negativo sobre Nero durante o governo dos Flaacutevios vai estar cada vez

mais dominado por referecircncias negativas sobretudo quando se aproximava do

ciacuterculo imperial Em outros ciacuterculos poreacutem como nos populares as visotildees

positivas continuaram circulando E a permanecircncia de algumas das construccedilotildees

neronianas na Vrbs a exemplo das termas e das vaacuterias melhorias feitas na cidade

apoacutes o incecircndio ajudava na manutenccedilatildeo dessas visotildees era muito difiacutecil relegar ao

esquecimento os monumentos que permeavam a vida e a memoacuteria das pessoas

Logo o que o trabalho de Marcial nos mostra eacute que a criaccedilatildeo do retrato do

princeps natildeo foi feita livremente no presente ela foi feita com base no passado o

qual natildeo podia ser modificado sem limites Isso significa dizer que o presente

interferia no modo como se via o passado no entanto ndash e esse eacute outro ponto que

buscamos evidenciar ndash por allelopoiesis o passado tambeacutem dava elementos para

se pensar o presente

751

FAGAN 2002 p 14-21 GRACcedilA 2004 p 120-121 752

DYSON PRIOR 1995 p 251-252 753

Cal Ecl 723-56

197

Ainda sobre as termas de Nero haacute outro ponto que precisa ser discutido

No terceiro livro dos Epigrammata Marcial afirma ldquoDiga-me Musa o que meu

amigo Cano Rufo anda fazendo [] Ele estaacute se banhando nas aacuteguas mornas de

Tito754

ou [] nos banhos do libertino Tigelinordquo755

Como jaacute dissemos Ofocircnio

Tigelino era o prefeito da Guarda Pretoriana desde o ano 62 quando Burro

faleceu e Secircneca pediu afastamento da corte imperial756

Agrave eacutepoca ele era visto

como um indiviacuteduo cruel devasso e sem nenhum princiacutepio moral ou poliacutetico757

Flaacutevio Josefo inclusive alega no Bellum Judaicum que Nero confiou a

administraccedilatildeo dos assuntos puacuteblicos ao infeliz e vil Tigelino758

Em adiccedilatildeo como

comentamos no primeiro capiacutetulo da tese uma parte da Historiografia moderna ndash

situada no grupo Nero fantoche ndash acredita que Nero era comandado por tal sujeito

e que o periacuteodo ruim do seu Principado comeccedilou quando ele colocou Tigelino agrave

frente dos negoacutecios Desse modo sua personalidade infame influenciava

negativamente o princeps direcionando-o aos piores viacutecios da natureza

humana759

Em vista disso a fala de Marcial torna-se bastante sintomaacutetica Seu

objetivo parece ser expropriar algo positivo construiacutedo pelo soberano e atribuir a

ideia a Tigelino ou seja representar Nero como algueacutem incapaz ateacute mesmo de

melhorar a proacutepria cidade O propoacutesito eacute esvaziar qualquer meacuterito do imperador

figurando-o como um governante incapaz de ter boas iniciativas As coisas bem-

feitas por ele natildeo foram planejadas por ele mas por seu auxiliar que por

conseguinte controlava a ele e ao seu Impeacuterio Portanto aqui haacute um vigoroso

ataque poliacutetico ao princeps juntamente a uma tentativa de desmerecer o seu

programa arquitetocircnico ndash como bem resume Darwall-Smith760

a loacutegica foi voltar

o seu projeto contra ele mesmo761

754

De acordo com Ashby Platner (1929 p 533-534) e Coarelli (2007 p 186-187) as Thermae Titi foram inauguradas por Tito no ano 80 juntamente com o Anfiteatro Flaacutevio Elas ficavam bem

proacuteximas ao Anfiteatro e dentro do recinto da Domus Aurea de Nero ocupando uma aacuterea quase

retangular de cerca de 105 metros por 120 755

Die Musa quid agat Canius meus Rufus [] Titine thermis an lavatur Agrippae an impudici

balneo Tigillini (Mart 3201 15-16) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 215) 756

GRIFFIN 2001 p 81 757

Tac Ann 1451 15 371 758

Jos BJ 4491 759

MORDINE 2017 p 113 760 DARWALL-SMITH 1996 p 38 761

Cabe destacar aqui um evento referenciado por Marcial nos Epigrammata mesmo ele

pertencendo agrave nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ldquoDesde a morte de Nero os verdes frequentemente

vencem a corrida e ganham muitos precircmios Vaacute agora morrendo de inveja e diga que vocecirc cedeu

198

Passemos agora agrave anaacutelise dos episoacutedios contidos nas Siluae quais sejam o

conflito contra os partas o incecircndio de Roma e o assassinato de Agripina A

princiacutepio falemos do conflito Ele estaacute inserido em um encocircmio a Crispino por

ocasiatildeo de sua nomeaccedilatildeo como tribuno militar na idade precoce de 16 anos dois

anos antes do tempo esperado O poeta elogia a juventude e a ancestralidade do

jovem representada na figura do pai Veacutecio Bolano renomado general militar que

atuou como prococircnsul na Aacutesia ao lado de Domiacutecio Corbulatildeo durante o governo de

Nero Entre os objetivos da ode o que mais nos interessa eacute a apresentaccedilatildeo de

Bolano como um exemplum a ser seguido por Crispino762

Estaacutecio faz diversos

elogios ao general no intento de que seu filho siga seus passos

Pois no limiar da idade adulta seu pai abriu grandes precedentes para tua fama Ele ao entrar na juventude [] atacou Araxes com suas aljavas trazendo a guerra e a Armecircnia que natildeo podia ser ensinada a servir ao feroz Nero Corbulatildeo assumiu o papel principal na guerra rigorosa mas ele admirava

demais Bolano seu camarada na guerra e parceiro de seus trabalhos durante batalhas distintas [] Bolano [] buscava cumes que fossem adequados para acampamentos seguros avaliava o terreno abria caminhos nos bosques hostis [] cumpria todo o plano de seu reverenciado comandante e sozinho estava agrave altura de seus grandes comandos763

a Nero com certeza natildeo foi Nero que venceu mas os verdesrdquo Saepius ad palmarn prasinus post

fata Neronis pervenit et victor praemia plura refert i nunc livor edax dic te cessisse Neroni

vicit nirnirum non Nero sed prasinus (Mart 1133) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 33) De modo sucinto os

verdes os azuis os vermelhos e os brancos eram os ldquotimesrdquo que compunham as corridas de bigas

no Circus Maximus em Roma durante a Repuacuteblica e o Impeacuterio Em especial a rivalidade entre os

verdes e os azuis era intensa e mais tarde no seacuteculo VI eles se tornaram os times proeminentes

Os azuis representavam as categorias sociais mais altas e os verdes as baixas Os cocheiros que

em geral eram escravos ou libertos inscreviam-se nas competiccedilotildees porque o precircmio costumava

ser bastante atrativo Por exemplo em uma uacutenica corrida podiam ganhar diversos sacos de ouro

vindos tanto de apostas do puacuteblico quanto do apoio imperial Nero assim como Caliacutegula torcia

para os verdes e sempre demonstrava publicamente o seu apoio (CAMERON 1976 p 5-104) Apesar de tal apoio vemos no excerto a defesa de que natildeo era o princeps quem dava vitoacuterias aos

verdes mas os verdes quem as conquistavam Haacute uma clara sugestatildeo para natildeo se considerar tudo o

que era vinculado ao soberano como algo negativo pois algumas coisas poderiam natildeo estar

relacionadas a ele e nem dependerem do seu apoio ou financiamento Em suma Marcial estaacute

dizendo que uma coisa para ser muito boa natildeo precisava nem de Nero (nem de Tigelino) 762

BERNSTEIN 2007 p 183-185 763

sed enim tibi magna parabat ad titulos exempla pater quippe ille iuventam protinus

ingrediens pharetratum invasit Araxen belliger indocilemque fero servire Neroni Armeniam

rigidi summam Mavortis agebat Corbulo sed comitem belli sociumque laborum ille quoque

egregiis multum miratus in armis Bolanum atque illi curarum asperrima suetus credere

partirique metus quod tempus amicum fraudibus exserto quaenam bona tempora bello quae

suspecta fides aut quae fuga vera ferocis Armenii Bolanus iter praenosse timendum Bolanus

tutis iuga quaerere commoda castris metiri Bolanus agros aperire malignas torrentum

nemorumque moras tantamque verendi mentem implere ducis iussisque ingentibus unus

199

Em 61 Bolano foi enviado para a Armecircnia com a missatildeo de fazer com que

os partos se retirassem do territoacuterio romano cuja fronteira haviam cruzado

violando o acordo de paz entre ambas as potecircncias No trecho vemos que Estaacutecio

o retrata tanto como amigo de Corbulatildeo quanto como parceiro de trabalhos

durante os momentos difiacuteceis da guerra764

isto eacute como um general que sabia

desempenhar muito bem o seu papel evitando as rotas perigosas procurando

locais seguros para acampamentos e abrindo caminhos Segundo Vervaet a

exaltaccedilatildeo de Bolano feita pelo poeta apesar de exagerada revela que Corbulatildeo

de fato confiava no general e que este provavelmente ajudou-o a conquistar a

vitoacuteria na Armecircnia765

Cabe esclarecer que o conflito contra os partas eclodiu em

54 poucos meses apoacutes a ascensatildeo de Nero Na ocasiatildeo o princeps designou

Corbulatildeo para liderar a campanha contra os inimigos pois ele jaacute era um militar

bastante respeitado766

Depois de 12 anos de disputas Roma prevaleceu e o rei

estabelecido na Armecircnia Tiridates foi coroado pelas matildeos de Nero na Vrbs em

66 Para Barrett Fantham e Yardley isso significa que a Armecircnia foi ldquo[] o

grande sucesso da lsquopoliacutetica externarsquo do Principado de Nero []rdquo a qual lhe rendeu

a saudaccedilatildeo de Imperator pelos pretorianos767

Contudo tal vitoacuteria natildeo parece ter

sido conquistada de forma faacutecil porquanto Estaacutecio afirma que a Armecircnia ldquonatildeo

podia ser ensinada a servir ao feroz Nerordquo ndash ou seja era um oponente indoacutecil e

irredutiacutevel ateacute mesmo para o selvagem soberano A ecircnfase na ferocidade do

imperador pode ser entendida como um elogio ao seu modo agressivo de lidar

com os assuntos externos um elogio agrave sua boa administraccedilatildeo inicial e ao seu

comando eficiente das proviacutencias que mantinha o Impeacuterio fortalecido Ao mesmo

tempo acreditamos que o poeta atribui essa boa administraccedilatildeo natildeo a Nero mas a

seus auxiliares Bolano e Corbulatildeo768

Inclusive Estaacutecio diz que Corbulatildeo

assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo Nesse sentido o jovem princeps soacute

prevaleceu sob os partas porque escolheu sabiamente seus generais Eacute uma

desvalorizaccedilatildeo clara da sua capacidade de ter iniciativa algo jaacute feito por Marcial

sufficere (Stat Silv 5230-46) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 291) 764

VERVAET 2003 p 448 765

VERVAET 2003 p 439 766

Para uma biografia de Corbulatildeo cf SYME 1970 p 27-39 767

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 81 Imperator era um termo usado para se

referir ao princeps ou a um comandante militar indicando seu triunfo (GRIFFIN 2001 p 222-

231) 768

GIBSON 2006 p 197

200

em relaccedilatildeo agraves termas Vale recordar que essa toacutepica da fraca atuaccedilatildeo militar eacute

muito aceita nos debates historiograacuteficos modernos sendo utilizada para construir

a imagem de Nero como um mau imperador Assim aqui compreendemos que o

poeta constroacutei um Nero antiprinceps que natildeo tem interesse e nem experiecircncia nas

lides beacutelicas Sua vitoacuteria ao final nunca foi propriamente sua

No tocante aos episoacutedios do incecircndio de Roma e do assassinato de

Agripina Estaacutecio os referencia dentro de uma ode a Polla Argentaacuteria viuacuteva de

Lucano No poema eacute feita uma extensa homenagem ao falecido poeta naquele

que seria o dia do seu aniversaacuterio Leiamos

Venham para a festa de aniversaacuterio de Lucano [] Fluam mais

abundantemente os riachos poeacuteticos e sejam mais verdes brilhantes oacute bosques de Aoacutenia e se em algum lugar sua sombra se abriu e recebeu a luz do sol deixe guirlandas suaves preencherem a sala [] Sobre Lucano noacutes cantamos mantenha silecircncio sagrado este eacute o vosso dia Musas guardai silecircncio enquanto aquele que vos tornou gloriosas nas duas artes [] eacute honrado como o sumo sacerdote do coro romano [] Ainda como um bebecirc receacutem-nascido ele engatinhou e com as

primeiras palavras docemente choramingou e Caliacuteope769 o levou para seu seio amoroso Entatildeo ela [] disse ldquo[] na tenra juventude deves praticar tua pena em Heitor e nas carruagens da Tessaacutelia e no ouro suplicante do rei Priacuteamo e desbloquearaacutes as moradas do inferno o ingrato Nero e o proacuteprio Orfeu770 seratildeo vistos por ti nos teatros Deves contar como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Roma Oacute crime oacute

crime mais hediondordquo [] Ela falou isso enquanto afastava as laacutegrimas Mas tu [] olha para a terra e ri dos sepulcros [] tu visita o Taacutertaro e ouve de longe as chicotadas do culpado e vecirc Nero paacutelido agrave vista da tocha de sua matildee esteja presente em esplendor brilhante e uma vez que Polla te chama ganhe um dia eu imploro aos deuses do mundo silencioso estaacute aberta aquela porta para os maridos voltarem para suas noivas771

769

ldquoUma das Musas [] A partir da eacutepoca alexandrina eacute-lhe atribuiacutedo como seu domiacutenio a poesia

liacutericardquo (GRIMAL 2005 p 71) 770

Orfeu era filho de Caliacuteope e do deus Apolo Ele era o cantor por excelecircncia o muacutesico e o poeta

Tocava lira e ciacutetara instrumento cuja invenccedilatildeo lhe eacute atribuiacuteda ldquo[] Sabia cantar melodias tatildeo

suaves que ateacute as feras o seguiam as aacutervores e as plantas se inclinavam na sua direccedilatildeo e os

homens mais rudes se acalmavamrdquo (GRIMAL 2005 p 340-341) 771

Lucani proprium diem frequentet [] docti largius evagentur amnes et plus Aoniae virete

silvae et si qua patet aut diem recepit sertis mollibus expleatur umbra [] Lucanum

canimus favete linguis vestra est ista dies favete Musae dum qui vos geminas tulit per artes

et vinctae pede vocis et solutae Romani colitur chori sacerdos [] Natum protinus atque

humum per ipsam primo murmure dulce vagientem blando Calliope sinu recepit turn primum

posito remissa luctu longos Orplieos exuit dolores et dixit ldquo[] ac primum teneris adhuc in

annis ludes Hectora Thessalosque currus et supplex Priami potentis aurum et sedes reserabis

inferorum ingratus Nero dulcibus theatris et noster tibi proferetur Orpheus dices culminibus

Remi vagantis infandos domini nocentis ignes mdash o dirum scelus o scelus mdash tacebisrdquo sic fata

est leviterque decidentes abrasit lacrimas nitente plectro At tu seu rapidum poli per axem

201

Estaacutecio evoca a memoacuteria de Lucano ao mesmo tempo em que condena

Nero A ocasiatildeo do aniversaacuterio do falecido poeta eacute acompanhada pelo lamento do

seu fim prematuro e consequentemente pela condenaccedilatildeo daquele que privou a

Terra dos talentos do jovem prodiacutegio Estaacutecio retrata Caliacuteope carregando o receacutem-

nascido Lucano nos braccedilos e prevendo o futuro brilhante do poeta A Musa entatildeo

chora a morte iminente do seu protegido o silenciamento da sua voz poeacutetica

qualificando-o como ldquocrime hediondordquo772

Tal expressatildeo a nosso ver atribui ao

princeps as caracteriacutesticas de um tirano representando-o como cruel feroz e

impiedoso Inclusive eacute sob esse retrato de tirano cruel que o imperador aparece

nos versos de Marcial ldquoAh cruel Nero natildeo poderia haver morte mais odiada

[]rdquo773

O uso do vocaacutebulo crudelis pelo epigramista tambeacutem marca a coloraccedilatildeo

tiracircnica de Nero Notemos que no intento de glorificar a memoacuteria de Lucano

Estaacutecio e Marcial mantiveram silecircncio sobre a causa da sua morte (no caso seu

envolvimento na Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo) Ao fazer isto Lefebvre defende que eles

privaram o ato do princeps de qualquer possiacutevel justificativa dando ao soberano a

imagem perturbadora de um tirano cruel774

Embora a morte de Lucano natildeo componha nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ela

eacute importante porque eacute dentro do cenaacuterio do Nero cruel que satildeo citados o incecircndio

da Vrbs e o assassinato de Agripina No caso do primeiro a passagem mostra

Caliacuteope profetizando a Lucano que durante sua trajetoacuteria poeacutetica ele ldquocontaria

como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Romardquo Aiacute

temos uma alusatildeo ao poema lucaniano perdido De Incendio Vrbis no qual

supostamente o incecircndio foi descrito Para Champlin as palavras domini nocentis

constituem uma acusaccedilatildeo clara contra Nero e eacute bem provaacutevel que o De Incendio

Vrbis jaacute trouxesse essa acusaccedilatildeo Estaacutecio nesse sentido estaria apenas

parafraseando Lucano775

Esse argumento tambeacutem eacute sustentado por Ahl que

acredita fortemente que Estaacutecio estaria se referindo ao poema Claro eacute possiacutevel

Famae cuiribus arduis levatus qua surgunt aniniae potentiores terras despicis et sepulcra

rides [] noscis Tartaron et procul nocentum audis verbera pallidumque visa matris lampade

respicis Neronem adsis lucidus et vocante Polla unum quaeso diem deos silentum exores

solet hoc patere limen ad nuptas redeuntibus maritis (Stat Silv 271-123) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 129-137) 772

MALAMUDE 2014 p 12-14 NEWLANDS 2002 p 44 773

Nero crudelis nullaque invisior umbra debuit hoc saltem non licuisse tibi (Mart 721) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (1993 p 93) 774

LEFEBVRE 2017 p 67-68 775

CHAMPLIN 2005 p 320

202

que Lucano tenha descrito o fogo em termos muito mais neutros e que Estaacutecio

tenha incluiacutedo as opiniotildees poliacuteticas de sua proacutepria eacutepoca Isso poreacutem natildeo diminui

a importacircncia do trecho tanto Lucano quanto Estaacutecio acreditavam na

responsabilidade do princeps pelo fogo Afinal como alega Ahl se Estaacutecio natildeo

concordasse com Lucano ele natildeo teria citado o incecircndio ou a obra perdida776

A

crenccedila em comum mostra que jaacute circulava a ideia no final do primeiro seacuteculo da

responsabilidade do Nero incendiaacuterio no incidente E claramente essa crenccedila

estava sendo transmitida por aqueles que buscavam obter favores do regime atual

Deve ser enfatizado lembra Barrett que estamos falando de uma crenccedila na culpa

informal de Nero ao inveacutes de uma culpa real Apesar de toda a difamaccedilatildeo os

imperadores Flavianos nunca o culparam oficialmente pelo incecircndio777

Dando continuidade no excerto Estaacutecio diz que o falecido Lucano desce

do ceacuteu e visita o Taacutertaro (mundo dos mortos) Laacute encontra o culpado Nero que

paacutelido contempla a matildee com uma tocha nas matildeos Vejamos que o poeta coloca

Agripina jaacute morta e assombrando o filho sem nos dar detalhes sobre como o

assassinato aconteceu e sem sequer mencionar o naufraacutegio Ainda assim um

aspecto valoroso dessa descriccedilatildeo eacute a alusatildeo a alguns elementos da Octauia Na

trageacutedia Pseudo-Secircneca conta que no dia do casamento de Nero com Popeia o

fantasma de Agripina retornou do Taacutertaro portando uma tocha e profetizou a

morte do filho778

Nas Siluae Estaacutecio apresenta Nero jaacute morto e vendo a matildee ou

seja a profecia de Agripina cumprira-se Ademais na Octauia a matrona pede a

uma das Eriacutenias vingativas que prepare uma ldquomorte digna para o iacutempio tiranordquo779

Lembremo-nos de que as Eriacutenias ou Fuacuterias ldquo[] eram espiacuteritos do inferno que

vingavam mortes aterrorizavam eou amaldiccediloavam os indiviacuteduosrdquo780

Nesse

sentido entendemos que Marcial estaacute associando Agripina a uma Eriacutenia pois ela

persegue o filho no inferno ela ficara tatildeo ressentida com a crueldade de Nero e

com seu assassinato que viera atraacutes dele para aterrorizaacute-lo781

No final das contas

ela estaacute castigando-o pelos males promovidos em vida pelo fato de ele ter sido

um Nero matricida Esse tipo de visatildeo do universo dos mortos conecta-se muito

776

AHL 1976 p 341-342 777

BARRETT 2020 p 122-124 778

[Sen] Oct 593-620 779

[Sen] Oct 619-620 780

GRIMAL 2005 p 146-147 781

CHAMPLIN 2005 p 294

203

bem com a Apocolocyntosis de Secircneca em especial com a pena recebida por

Claacuteudio de ser escravo de Caliacutegula e jogar dados com uma caixa de dados furada

por toda a eternidade782

A correspondecircncia entre as Siluae e a Octauia nos leva a refletir ainda

sobre trecircs questotildees A primeira Estaacutecio de igual modo a Marcial foi leitor de

Pseudo-Secircneca o que mostra que a Octauia natildeo soacute iniciou o processo de

difamaccedilatildeo de Nero como tambeacutem se transformou em uma referecircncia literaacuteria da

tradiccedilatildeo negativa Dietrich defende a influecircncia da Octauia na redaccedilatildeo de

Estaacutecio783

A segunda o registro sutil da tocha indica um conhecimento profundo

da Octauia ou de outras fontes comuns por parte de Estaacutecio e da sua audiecircncia o

que fazia com que o poeta esperasse do seu puacuteblico o entendimento da alusatildeo

Natildeo nos esqueccedilamos de que os versos de Estaacutecio sempre possuiacuteam um

destinataacuterio logo a menccedilatildeo era reservada a um grupo especiacutefico E por fim a

terceira questatildeo se o poeta esperava que o grupo entendesse a alusatildeo eacute porque o

grupo jaacute conhecia a histoacuteria do matriciacutedio por isso o delito natildeo precisava ser

minuciado Em outras palavras Nero jaacute era conhecido por muitos como um Nero

matricida Tal informaccedilatildeo fica evidente tambeacutem nos escritos de Josefo em que a

omissatildeo de detalhes eacute justificada com a afirmaccedilatildeo de que os crimes jaacute eram ldquobem

conhecidos por todosrdquo e ldquodescritos por um grande nuacutemero de autoresrdquo784

Chegamos a um ponto portanto em que o Nero matricida se consolidou como

um elemento primordial da memoacuteria imperial

Em suma no decorrer da investigaccedilatildeo do Liber Spectaculorum dos

Epigrammata e das Siluae constatamos cinco das nossas categorias de anaacutelise 1)

Nero antiprinceps referente ao conflito com os partas 2) Nero matricida

vinculada ao assassinato de Agripina 3) Nero incendiaacuterio ligada ao incecircndio de

Roma 4 e 5) Nero construtor e Nero vaidoso atreladas agrave construccedilatildeo da Domus

Aurea Das cinco a do Nero matricida foi a mais presente aparecendo nos

escritos de Marcial e Estaacutecio Nos do primeiro surgiu de forma ambiacutegua pois ao

mesmo tempo em que houve a condenaccedilatildeo do imperador pelo homiciacutedio houve a

sugestatildeo de que Agripina merecia morrer nos do segundo por outro lado

emergiu inserida em um castigo haja vista que o princeps foi representado morto

782

Sen Apoc 145 151-2 783

DIETRICH 2015 p 310 784

Jos BJ 492

204

no Taacutertaro contemplando a matildee com uma tocha nas matildeos Por sua vez a

categoria Nero antiprinceps apareceu pela primeira vez estando associada agrave falta

de iniciativa do soberano nos conflitos contra a Armecircnia Por uacuteltimo a categoria

Nero construtor despontou juntamente agrave do Nero vaidoso sendo avaliadas a partir

da ambivalecircncia puacuteblico x privado Marcial enfatizou a diferenccedila do Principado

de Nero em relaccedilatildeo ao de Tito mostrando que este uacuteltimo se preocupava em

edificar espaccedilos para o usufruto comum ao passo que o primeiro soacute pensava no

seu Palaacutecio privado

Vimos tambeacutem que para elaborarem seus argumentos ambos os autores

utilizaram elementos da Octauia Marcial usou o naufraacutegio e Estaacutecio usou o

fantasma de Agripina portando a tocha o que nos leva a propor duas questotildees 1)

o Nero matricida eacute o Nero da Octauia e 2) o Nero matricida consolidou-se dentro

da tradiccedilatildeo negativa Observamos ainda que as categorias Nero antiprinceps e

Nero incendiaacuterio foram referenciadas somente por Estaacutecio estando esta uacuteltima

pautada em possiacuteveis criacuteticas a Nero contidas em uma obra lucaniana perdida o

De Incendio Vrbis Nesse ponto houve uma alusatildeo agrave Apocolocyntosis e ao castigo

de Claacuteudio Ao seu turno as categorias Nero construtor e Nero vaidoso foram

mencionadas apenas por Marcial por meio das suas experiecircncias cotidianas na

Roma de Nero x na Roma dos Flaacutevios Portanto a inuentio feita por Marcial e

Estaacutecio perpassou a seleccedilatildeo de obras e de argumentos muito mais hostis ao

soberano do que elogiosos Apesar de terem lido relatos positivos ndash a exemplo da

leitura da Apocolocyntosis por Estaacutecio ndash e vivido coisas positivas ndash como as

termas frequentadas por Marcial ndash preferiram fortalecer a grade negativa de

leitura sobre o imperador priorizando o ponto de vista flaviano Nas palavras de

Faversani cada autor se apegou a uma forma de desenhar Nero ldquo[] que melhor

se ajustasse a suas convicccedilotildees poliacuteticas para atacar seu adversaacuteriordquo785

A representaccedilatildeo de Nero entatildeo dependeu do interesse dos autores que

transportaram as informaccedilotildees sobre ele e que estavam disponiacuteveis naquele

momento histoacuterico Eacute assim que uma representaccedilatildeo se constitui como algo

verossiacutemil atraveacutes de um longo processo allelopoieacutetico de apropriaccedilatildeo e

reapropriaccedilatildeo Trata-se de um processo que segundo Hausteiner Huhnholz e

Walter gera uma transformaccedilatildeo histoacuterica e uma ecircnfase em determinados

785

FAVERSANI 2020 p 382

205

elementos em prol de outros786

Como ilustraccedilatildeo a ascensatildeo do princeps agora

seja prodigiosa seja infausta jaacute natildeo eacute mais lembrada A culpa de Nero no

matriciacutedio vincula-se agrave personalidade detestaacutevel de Agripina agrave construccedilatildeo da

Domus Aurea a seus iacutempetos egoiacutestas

Como destacamos o uso dos diversos episoacutedios envolvendo Nero e a

valecircncia positiva ou negativa que se daacute a eles vatildeo se alterando com o passar do

tempo A retomada de tais episoacutedios permite a eles que sejam cada vez mais

conhecidos e atraiam a atenccedilatildeo dos autores para seu uso pois se tornam

proverbiais A mera menccedilatildeo a Nero e a uma ou duas palavras que admitam a

raacutepida identificaccedilatildeo do episoacutedio especiacutefico a que se faz menccedilatildeo eacute o que passa a

ocorrer Isso tem um poder retoacuterico enorme por ser sinteacutetico e carregar uma

enargeia uma vivacidade para o discurso E ademais gera um ciclo interessante

quanto mais se fala do princeps mais conhecido ele se torna mais reconheciacuteveis

se tornam os episoacutedios ligados a ele e mais ricos se tornam o repertoacuterio e a sua

possibilidade de novos usos

Aleacutem disso cremos ser possiacutevel jaacute perceber a partir da anaacutelise desse

corpus textual que Nero progressivamente vai deixando de ser relevante por

aquilo que foi no passado para se tornar um personagem da tradiccedilatildeo construiacutedo

em muacuteltiplas temporalidades (que se constroem mutuamente por allelopoiesis)

Por esse mecanismo ele faz parte do seu tempo assim como de alguma maneira

eacute contemporacircneo de outras temporalidades podendo ressurgir a qualquer

momento como elemento a ser usado para compreender o que eacute um mau

imperador um tirano um construtor megalomaniacuteaco um destruidor incendiaacuterio

um familiar violento um artista mediacuteocre e ciumento ou qualquer outra faceta

construiacuteda para Nero nessa tradiccedilatildeo Tal processo como vimos inicia-se sob os

Flaacutevios e embora supere os limites desta tese parece-nos seguir acontecendo ateacute

os dias atuais sem pistas de interrupccedilatildeo

Em conclusatildeo faz-se necessaacuterio ainda o apontamento de algumas

consideraccedilotildees Em primeiro lugar os episoacutedios da vida de Nero apareceram nas

obras de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o Velho Flaacutevio Josefo Marcial e Estaacutecio sob as

seguintes ocorrecircncias i) assassinato de Agripina (seis vezes ndash em todas as obras)

ii) incecircndio de Roma (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e nas Siluae)

786

HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 14

206

iii) construccedilatildeo da Domus Aurea (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e

no Liber Spectaculorum) iv) assassinato de Britacircnico (trecircs vezes ndash na Octauia no

Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) v) assassinato de Otaacutevia (trecircs

vezes ndash na Octauia no Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) vi)

ascensatildeo de Nero (duas vezes ndash na Octauia e nas Antiquitates Judaicae) vii)

suiciacutedio de Nero (duas vezes ndash no Bellum Judaicum e nas Silvae) viii) casamento

com Popeia (uma vez ndash na Octauia) ix) nascimento de Nero (uma vez ndash na

Naturalis Historia) x) conflito com os partas (uma vez ndash nas Siluae) xi) visita de

Tiridates agrave Urbs (uma vez ndash na Naturalis Historia) xii) revolta de Vindex (uma

vez ndash no Bellum Judaicum) xiii) conspiraccedilatildeo de Pisatildeo (uma vez ndash no Bellum

Judaicum) Em segundo lugar as ocorrecircncias mais frequentes nos revelam que

durante o governo dos Flaacutevios alguns episoacutedios passaram a constituir a tradiccedilatildeo

negativa compondo a imagem negativa do Nero matricida do Nero incendiaacuterio

do Nero construtor do Nero fratricida e do Nero uxoricida Em terceiro as

ocorrecircncias menos frequentes sinalizam que momentos nunca antes valorizados

da vida do soberano como o conflito com os partas a revolta de Vindex e a

conspiraccedilatildeo de Pisatildeo comeccedilaram a surgir nas fontes embora natildeo sejam ainda

referecircncias fortes para a tradiccedilatildeo negativa Em quarto e uacuteltimo lugar se

colocarmos todas as ocorrecircncias daqui em comparaccedilatildeo com as do capiacutetulo

anterior verificaremos que os Neros satildeo demasiadamente distintos Laacute tiacutenhamos

praticamente soacute Neros prodigiosos agora praticamente soacute temos Neros infaustos

Como sabemos isso tem relaccedilatildeo direta com os contextos sob os quais os Neros

foram produzidos No seu governo existiam sujeitos interessados em elogiaacute-lo e

em bajulaacute-lo aleacutem tambeacutem de haver o perigo de criticaacute-lo publicamente No

governo dos Flavianos existe o projeto de poder pautado no ataque agrave sua

memoacuteria cuja finalidade eacute a legitimaccedilatildeo dinaacutestica Nessa transiccedilatildeo poliacutetica houve

uma mudanccedila na seleccedilatildeo dos episoacutedios por parte dos autores das fontes no

capiacutetulo anterior eles abordaram sobretudo a ascensatildeo do soberano e a

realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro dispostos nas categorias Nero prodigioso e Nero

construtor aqui abordaram 12 episoacutedios enquadrados em 24 categorias O que

isso significa Que o Nero negativo estaacute se tornando mais complexo e elaborado

do que o positivo restando deste uacuteltimo apenas o louvor agraves suas construccedilotildees

puacuteblicas Eacute portanto um Nero totalmente novo transformado com um pequeno

207

resquiacutecio do velho Mas seraacute que ele permaneceraacute assim Vejamos as fontes do

proacuteximo capiacutetulo

208

Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235)

Este capiacutetulo examinaraacute a forma Nero consolidado que englobaraacute o final

da dinastia Flaviana ateacute o governo dos Severos (97-235) Nosso propoacutesito eacute

analisar os episoacutedios da vida do soberano contidos nos Annales no De Vita

Caesarum e na Historia Romana a fim de compreendermos de que maneira esse

novo contexto poliacutetico influenciou na consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa

sobre Nero e seu governo Hoje essas trecircs fontes satildeo as que nos oferecem a

descriccedilatildeo mais completa detalhada e conhecida de boa parte do Principado de

Nero Isso significa que a maior parcela das representaccedilotildees existentes sobre o

soberano proveacutem dos relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio como mostramos

no primeiro capiacutetulo da tese Assim qualquer pessoa que queira estudar os

retratos de Nero precisa necessariamente ler (e analisar) os textos desses autores

Eacute o que faremos a partir de agora

No capiacutetulo anterior vimos que a segunda dinastia imperial romana

assumiu o poder no ano 69 com a ascensatildeo de Vespasiano e o deixou em 96

com o assassinato de Domiciano Entre ambos Tito governou por um periacuteodo

curto de dois anos (79-81) ainda que tenha atuado como co-regente de seu pai por

um periacuteodo mais longo787

Um dos elementos centrais da legitimaccedilatildeo desses

governantes foi a difamaccedilatildeo da imagem de Nero Paralelamente operou-se uma

obliteraccedilatildeo da sua memoacuteria no espaccedilo fiacutesico da cidade de Roma realizada a partir

da reconfiguraccedilatildeo de alguns edifiacutecios puacuteblicos e da publicaccedilatildeo de obras literaacuterias

que o representavam por exemplo como tirano cruel matricida e incendiaacuterio788

Com o assassinato de Domiciano Roma passou para as matildeos da dinastia

Antonina composta por sete imperadores Nerva (96-98) Trajano (98-117)

Adriano (117-138) Antonino Pio (138-161) e Marco Aureacutelio (161-180) que

governou juntamente com Luacutecio Vero (161-169) e Cocircmodo (180-192)789

Durante

esses reinados isto eacute no seacuteculo II o Impeacuterio viveu um periacuteodo de relativa paz e

liberdade

As guerras foram reduzidas as proviacutencias desfrutaram de uma

consideraacutevel prosperidade o equiliacutebrio entre o poder civil e o militar foi

787

RODRIGUES 2020 p 111 788

TUCK 2016 p 110 ZISSOS 2016 p 7 789

Para mais informaccedilotildees a respeito dos imperadores Antoninos cf GRIFFIN 2000 p 84-194

209

garantido e uma poliacutetica interna de deferecircncia ao Senado foi empreendida790

Resumindo a vasta extensatildeo do Impeacuterio foi comandada por liacutederes prudentes

fato que contribuiu para a criaccedilatildeo da denominaccedilatildeo ldquoseacuteculo de ourordquo791

Em

especial o respeito ao Senado foi demasiadamente importante porque influenciou

no modo como os imperadores da eacutepoca ndash e tambeacutem os precedentes ndash foram

representados nas produccedilotildees literaacuterias As obras elaboradas nesse contexto como

a de Taacutecito e a de Suetocircnio utilizaram as criacuteticas aos liacutederes preteacuteritos ndash Tibeacuterio

Caliacutegula Nero e Domiciano ndash para louvar as gloacuterias da sua eacutepoca marcada pela

deferecircncia ao Senado Nesse sentido os amigos do Senado foram bem retratados

e os inimigos natildeo792

Eacute claro que cada obra trazia consigo os interesses dos seus

autores mas em geral a criacutetica se mantinha Por exemplo Taacutecito com sua

retoacuterica politicamente carregada criticou a consolidaccedilatildeo do poder imperial

ocorrida durante os Principados Juacutelio-Claacuteudianos vista por ele como a destruidora

da liberdade de expressatildeo e da autonomia do Senado793

Por sua vez Suetocircnio

com seu gosto pelos detalhes condenou os abusos de poder cometidos pelos

imperadores e os seus defeitos de caraacuteter794

Aos Antoninos sucederam os seis imperadores da dinastia Severa que

governaram o Impeacuterio de 193 a 235 Septiacutemio Severo (193-211) Geta (211)

Caracala (211-217) Macrino (217-218) Heliogaacutebalo (218-222) e Severo

Alexandre (222-235)795

Segundo Frighetto esse novo periacuteodo deve ser entendido

sob uma dupla oacutetica por um lado a da continuidade da era paciacutefica promovida

pelos Antoninos e por outro a do agravamento dos problemas militares que

marcavam o mundo romano haacute tempos Dentre os problemas o autor destaca a

ampliaccedilatildeo significativa do territoacuterio imperial a qual resultou no aumento das

invasotildees e no crescimento dos gastos com o exeacutercito Para resolvecirc-los os Severos

790

Durante muito tempo os estudiosos identificaram a dinastia dos Antoninos como a idade de

aacutepice do sistema poliacutetico imperial a idade de paz total Mas no ano 2000 Purcell (2000 p 421)

apresentou um argumento contraacuterio a tal consenso vigente Ele afimou que a paz total eacute uma ideia

enganosa pois a violecircncia permaneceu tanto no campo quanto na cidade Mesmo em Roma onde

os horrores da guerra eram teoricamente distantes o imperador e as pessoas envolviam-se com a

guerra Os espetaacuteculos aludiam agrave guerra ateacute mesmo os jogos nas tabernas eram simulacros de

conflitos Por fim o autor defende tambeacutem que a loacutegica da centralidade do poder dependia do

direito de conquista 791

GIBBON 1989 p 87 GRIMAL 2008 p 103 MENDES 2006 p 46-47 792

GAIA 2020 p 178 GUNDERSON 2017 p 335 793

BENARIO 2012 p 113 MORFORD 1990 p 1599 794

RIVES 2007 p 15-16 795

Sobre a dinastia Severa cf CAMPBELL 2005 p 1-27

210

nomearam mais de um Augusto na tentativa de manter uma presenccedila vigilante no

Impeacuterio aumentaram a concessatildeo da cidadania romana no intuito de

maximizarem a arrecadaccedilatildeo de impostos e a manutenccedilatildeo do exeacutercito e

fortaleceram a aceitaccedilatildeo do princeps pelos soldados oferecendo a eles

determinados benefiacutecios796

Ou seja realizaram muitos gastos militares os quais

consequentemente diminuiacuteram agrave atenccedilatildeo voltada agrave publicaccedilatildeo de obras literaacuterias

ndash situaccedilatildeo que hoje aliaacutes limita nosso conhecimento acerca desse periacuteodo

histoacuterico As fontes comeccedilaram a rarear e a se tornar cada vez mais escassas e as

poucas sobreviventes a exemplo da Historia Romana de Diatildeo Caacutessio tornaram-

se porta-vozes dos interesses senatoriais Dessa forma Diatildeo Caacutessio assim como

Taacutecito e Suetocircnio projetou seu retrato de Nero sob a oacutetica das esferas superiores

da sociedade romana sustentando a concepccedilatildeo de optimus princeps ndash a ideia de

que o soberano deveria ser a encarnaccedilatildeo de virtudes como clementia e iustitia797

Explicaremos melhor as concepccedilotildees de cada um dos autores agrave medida que

adentrarmos no capiacutetulo O importante agora eacute apenas apontar que eles estiveram

inseridos em contextos especiacuteficos que interferiram diretamente na forma como

representaram Nero Tambeacutem eacute essencial evidenciar outra vez que Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio satildeo as figuras que nos oferecem os relatos mais completos

e famosos sobre Nero As histoacuterias inconcebiacuteveis de que o princeps matou a sua

matildee e a sua esposa incendiou Roma e cantou enquanto a cidade queimava satildeo

todas contadas por eles Essas histoacuterias foram transmitidas a noacutes de modo tatildeo

consistente que nunca nos permitiram pensar algo diferente e positivo sobre Nero

Natildeo eacute agrave toa que ele com frequecircncia eacute evocado negativamente na miacutedia Portanto

consideramos que se faz urgente compreender as muitas maneiras pelas quais

Nero foi recebido interpretado e reapropriado pois ao comprendecirc-las

enxergaremos os objetivos dos autores e tambeacutem os elementos das histoacuterias do

796

FRIGHETTO 2012 p 56-91 Muitos autores defenderam que os primeiros Severos foram os

responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de uma monarquia militar por buscarem apoio entre os elementos

militares para ascenderem e permanecerem no poder Essa noccedilatildeo poreacutem tem sido questionada por

autores modernos a exemplo de Gonccedilalves (2006 p 183) e Carrieacute e Rouselle (1999 p 72-75)

que acreditam que Septiacutemio Severo natildeo se baseou unicamente no militarismo De igual modo a

outros imperadores ele pautou sua posiccedilatildeo em um suporte militar mas tambeacutem reconheceu a

necessidade de acomodar os desejos das aristocracias romanas e provinciais 797

GOWING 1997 p 2564-2586

211

princeps que foram suprimidos eou mantidos forjando a imagem nefasta que

temos dele hoje798

Taacutecito Annales

Taacutecito eacute o primeiro autor a ser discutido Sobre sua vida possuiacutemos apenas

algumas informaccedilotildees advindas de suas proacuteprias obras e das cartas do seu amigo

Pliacutenio o Jovem Nem a data e nem o local do seu nascimento satildeo conhecidos e haacute

incertezas ateacute mesmo sobre o seu praenomen ndash se era Caio ou Puacuteblio799

De

qualquer forma predominam entre os estudiosos contemporacircneos as opiniotildees de

que seu nascimento ocorreu em 56 ou 57 na proviacutencia da Gaacutelia Narbonensis e de

que seu pai tenha sido o equestre Corneacutelio Taacutecito procurador da Gaacutelia Beacutelgica800

Eacute provaacutevel que Taacutecito em algum momento da sua juventude tenha ido para

Roma finalizar sua educaccedilatildeo combinando o estudo da retoacuterica com o atendimento

aos tribunais801

Suas primeiras magistraturas vieram durante o Principado de

Vespasiano no qual serviu aos vigintiviri e ao tribunato militar802

Em 77 casou

com a filha de Cneu Juacutelio Agriacutecola renomado cocircnsul fato que para Joly

impulsionou sua carreira puacuteblica803

Entre 79 e 81 no governo de Tito foi

nomeado questor804

e em 88 agrave eacutepoca do Principado de Domiciano tornou-se

pretor e membro do coleacutegio sacerdotal dos xv viri sacris faciundis805

Depois

disso assumiu algum cargo provincial pois ficou afastado de Roma de 89 a 93806

Taacutecito retornou agrave Vrbs apoacutes 97 ocupando o consulado nessa mesma data807

Nos

798

LEVI 1995 p 17-18 799

Essa duacutevida eacute fomentada pelas fontes recopiladas na posteridade Por exemplo Sidocircnio

Apolinaacuterio um bispo do seacuteculo V atribui a ele o praenomen Caio (Sid Ep 4141 222) Em

contrapartida o Coacutedice Mediceus I datado do seacuteculo IX concede a ele o praenomen Puacuteblio

Corneacutelio (SYME 1967 p 59) 800

MARTIN 1989 p 26 GRANT 1956 p 7 801

PAGAacuteN 2012 p 3 Walker (1960 p 162) aponta a possibilidade de Taacutecito ter sido aluno de

Quintiliano com quem aprendeu as artes da oratoacuteria e da eloquecircncia 802

BARRETT 2008 p x Entre os 18 e 20 anos de idade ldquo[] um senador comeccedilava sua carreira

como um dos vinte vigintiviri (literalmente lsquovinte varotildeesrsquo coleacutegio de magistrados responsaacuteveis por

funccedilotildees como manutenccedilatildeo das ruas e estradas policiamento cunhagem e litiacutegios judiciais) Em

seguida ele era designado para uma proviacutencia como comandante militar auxiliar de uma ou

tribuno de uma legiatildeordquo (CAMPOS 2013 p 64-65) 803

Tac Agric 97 JOLY 2004 p 38 804

Eacute a esse acontecimento que ele provavelmente alude quando afirma que sua dignitas foi

ldquoaumentada pelo imperador Titordquo (Tac Hist 11) 805

Tac Ann 11111 Os xv viri sacris faciundis eram um coleacutegio sacerdotal encarregado da

supervisatildeo da religiatildeo romana (MELLOR 2010 p 59) 806

Tac Agric 455 MARTIN 1989 p 28 807

Plin Ep 216

212

anos seguintes representou a proviacutencia da Aacutefrica em uma acusaccedilatildeo de extorsatildeo

contra seu ex-governador Maacuterio Prisco e foi prococircnsul na Aacutesia808

Natildeo sabemos

ao certo quando faleceu Eacute possiacutevel que tenha vivido ateacute os primeiros anos do

reinado de Adriano mas natildeo temos uma data precisa809

Em toda a sua vida Taacutecito escreveu cinco obras A primeira delas De Vita

Iulii Agricolae (Vida de Agriacutecola) foi publicada em 98 e narra a vida de seu sogro

Juacutelio Agriacutecola810

A segunda De Origine et Situm Germanorum (Germacircnia) foi

divulgada tambeacutem em 98 e descreve a geografia da Germacircnia assim como os

costumes as instituiccedilotildees e a cultura dos seus povos A terceira Dialogus de

Oratoribus (Diaacutelogo dos Oradores) sem data precisa de publicaccedilatildeo (102-107)

versa sobre o decliacutenio da eloquecircncia romana811

A quarta Historiae foi lanccedilada

entre 104 e 109 e aborda desde as guerras civis de 68-69 ateacute a morte de

Domiciano em 96812

Por fim a uacuteltima obra Annales dentre as que nos chegaram

foi redigida entre 115 e 120 e descreve os governos dos Juacutelio-Claudianos que

sucederam Augusto Infelizmente os Annales natildeo foram preservados em sua

totalidade sobrevivendo apenas os livros 1 a 4 o iniacutecio do livro 5 todo o 6

metade do 11 e do livro 12 ateacute a metade do 16 Ou seja temos o Principado de

Tibeacuterio os uacuteltimos anos do de Claacuteudio e parte do de Nero813

Tanto os Annales quanto as Historiae definiram Taacutecito como historiador

Haacute que se apresentar entatildeo o modo por meio do qual foi elaborada sua narrativa

Potter e Walker argumentam que ele utilizou uma gama variada de fontes desde

documentos puacuteblicos e privados (acta senatus acta diurna inscriccedilotildees diaacuterios e

biografias)814

ateacute testemunhos orais e obras de autores antigos a exemplo de

Saluacutestio Tito Liacutevio Secircneca Faacutebio Ruacutestico Cluacutevio Rufo entre outros815

Segundo

808

Plin Ep 211 A realizaccedilatildeo do proconsulado estaacute gravada em uma inscriccedilatildeo em Mylasa na Aacutesia Cf DOUBLET 1890 p 603-630 809

MARQUES 2012 p 90 Sobre a biografia de Taacutecito cf BIRLEY 2000 p 230-247 810

HUTTON PETERSON 1914 p 151-152 811

LUCE 1993 p 12 REZENDE 2014 p 17 Para uma discussatildeo acerca da decadecircncia da

eloquecircncia na passagem da Repuacuteblica para o Impeacuterio cf WALLACE-HADRILL 1996 p 284

VARELLA 2008 p 73-75 812

MOORE 1925 p x 813

MARQUES 2010 p 45-46 Para um comentaacuterio detalhado dos livros dos Annales cf

BENARIO 2012 p 104-116 814

ldquoActa significa lsquoas coisas que foram feitasrsquo e tem dois sentidos especializados e sobrepostos na

Histoacuteria romana um eacute diaacuterio o outro satildeo atos oficiais especialmente de um imperadorrdquo (OCD

2012 p 10) 815

POTTER 2012 p 128 WALKER 1960 p 143 Durante muito tempo foi aceito que Taacutecito

teria usado apenas uma fonte para redigir as Historiae e os Annales O principal proponente dessa

213

Woodman a anaacutelise feita por Taacutecito desses escritos foi bem diferente daquela

documental realizada pelos historiadores modernos816

Por exemplo em alguns

momentos ele usou expressotildees como ldquoeacute dito querdquo ldquomuitos autores relataramrdquo e

ldquofoi frequentemente relatadordquo sem se importar em verificar a autenticidade e a

procedecircncia das informaccedilotildees817

Tal atitude nos mostra que sua preocupaccedilatildeo natildeo

foi de construir um relato verdadeiramente criacutetico com a confrontaccedilatildeo de fontes

mas sim de expor o consenso acerca de determinado tema818

Aliaacutes eacute o que ele

mesmo afirma ldquovou seguir o consenso das fontes poreacutem no caso de darem

relatos divergentes os transmitirei sob os nomes dos proacuteprios escritoresrdquo819

Isso demonstra que Taacutecito lidou com o seu material e redigiu a sua

narrativa histoacuterica de acordo com a mentalidade do Mundo Antigo Woodman

sustenta que os gregos e os romanos definiam a escrita histoacuterica em termos de

oratoacuteria e poesia O termo grego historia na Antiguidade natildeo significava o que

hoje entendemos por uma disciplina acadecircmica820

Na Greacutecia antiga Aristoacuteteles

defendeu que a histoacuteria tinha ldquocerta afinidade com a poesiardquo podendo ser

considerada ldquouma espeacutecie de poema em prosardquo821

Tempos depois na Repuacuteblica

romana Ciacutecero alegou que a historia era ldquouma tarefa essencialmente oratoacuteriardquo e

no Impeacuterio Quintiliano declarou que era ldquomais como um poema em prosardquo822

Essas definiccedilotildees nos indicam que na Greacutecia e em Roma a oratoacuteria a poesia e a

histoacuteria eram consideradas atividades retoacutericas cada qual com um tipo de discurso

persuasivo823

Assim a narrativa construiacuteda por Taacutecito passa a fazer sentido seu

uso das fontes nada tinha a ver com a elaboraccedilatildeo de uma narrativa histoacuterica

precisa e sim com a composiccedilatildeo de um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo

literaacuteria dominante Griffin aponta que a verdadeira utilidade da histoacuteria para os

premissa era Philippe Fabia (1893) Hoje a teoria eacute refutada por diversos pesquisadores como

Boissier (1934 p 74-79) 816

WOODMAN 1988 p 176-177 817

Tac Ann 2402 1294 11341 675 1661 818

WOODMAN 2004 p xvii 819

nos consensum auctorum secuturi quae diversa prodiderint sub nominibus ipsorum trademus

(Tac Ann 13202) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 280) 820

Woodman (1988 p 78-116) eacute o principal estudioso a aprofundar a discussatildeo das relaccedilotildees entre

histoacuteria e retoacuterica nas obras taciteanas Adotaremos os seus argumentos por considerarmos que

servem bem ao estudo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero 821

Arist Poet 1451a936 822

Cic de Orat 21562-64 Quint Inst 10131 823

WOODMAN 2004 p xviii

214

historiadores gregos e romanos natildeo era fornecer um arquivo completo mas criar

um relato com ldquomais estilordquo que deleitasse os leitores824

O que de fato concernia agrave histoacuteria era ser magistra vitae (ldquomestra da

vidardquo) como escreveu Ciacutecero em De Oratore ldquo[] Que testemunha o passar dos

tempos lanccedila luz sobre a realidade daacute vida agrave lembranccedila e orientaccedilatildeo agrave existecircncia

humana e traz notiacutecias de tempos antigos []rdquo825

Agrave histoacuteria cabia ensinar por

exemplos de modo que um exemplo anterior agrave vida do leitor pudesse ser usado

como referecircncia para a conduta moral e ciacutevica Em suma a histoacuteria narraria o

passado ao mesmo tempo em que ensinaria o leitor a evitar os erros cometidos

pelos grandes homens

Foi com base em tal loacutegica que Taacutecito compocircs os Annales826

Ao relatar as

accedilotildees dos imperadores Juacutelio-Claudianos preocupou-se em apontar exemplos para

seus leitores827

Eacute assim aliaacutes que o governo e a vida de Nero satildeo descritos

atraveacutes da menccedilatildeo de acontecimentos ora positivos ora negativos Sem mais

delongas vejamos como ele fez isso na praacutetica Tratemos do nascimento de Nero

[] Nero teve uma filha com Popeia [] [e] chamou a crianccedila

de Augusta [] O parto foi em Acircncio onde o proacuteprio soberano havia nascido828

Quando ela [Agripina] consultou os caldeus sobre Nero eles responderam que ele seria o imperador e mataria sua matildee ldquoDeixe que me materdquo respondeu ela ldquocontanto que governerdquo829

Taacutecito nos daacute duas notiacutecias i) o nascimento de Nero ocorreu em Acircncio e

ii) Agripina consultou os astroacutelogos e eles lhe disseram que seu filho governaria e

a mataria Falemos da primeira notiacutecia Com ela o autor reporta um dado

824

GRIFFIN 2009 p 174-175 825

Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra vitae nuntia vetustatis

qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur (Cic de Orat 2936) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Sutton (1942 p 224) 826

MELLOR 2002 p 95 827

RYBERG 1942 p 397 828

Memmio Regulo et Verginio Rufo consulibus natam sibi ex Poppaea filiam Nero ultra mortale

gaudium accepit appelavitque Augustam dato et Poppaea eodem cognomento locus puerperio

colonia Antium fuit ubi ipse generatus erat (Tac Ann 15231) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 349) 829

nam consulenti super Nerone responderunt Chaldaei fore ut imperaret matremque occideret

atque illa ldquooccidatrdquo inquit ldquodum imperetrdquo (Tac Ann 1493) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308)

215

histoacuterico sem atribuir criteacuterio de julgamento O mesmo poreacutem natildeo acontece com

a segunda notiacutecia marcada pelo costume romano da pesquisa astroloacutegica

Segundo Maacutervaacutenyos a partir da consulta ao horoacutescopo de uma pessoa os

astroacutelogos tiravam conclusotildees a respeito de eventos posteriores agrave vida de um

indiviacuteduo e sobre seu caraacuteter830

Foi assim que Agripina descobriu o seu fado e o

de Nero ser assassinada e ter um filho matricida ndash ambos os destinos traacutegicos831

Relembremos que essa relaccedilatildeo entre o matriciacutedio e o nascimento do princeps jaacute

fora construiacuteda por Pliacutenio o Velho o qual disse que Agripina havia infligido ao

mundo e a si mesma uma maldiccedilatildeo venenosa (Nero)832

Taacutecito entatildeo ao

reutilizar a ideia e inserir o novo elemento astroloacutegico fortalece a visatildeo negativa

sobre a matrona e consolida a concepccedilatildeo de que uma mulher ruim soacute geraria um

Nero infausto Em outras palavras o novo item daacute ao historiador um poderoso

argumento para captar a atenccedilatildeo do seu leitor um matricida estava por vir833

Notemos ainda que Nero justifica o assassinato atribuindo a Agripina um

apetite descontrolado pelo poder Esse elemento que seraacute apontado em outros

trechos por Taacutecito eacute aqui recombinado com a desmedida de Nero Isso cria um

retrato que combina dois traccedilos gerados em momentos diferentes um no proacuteprio

principado de Nero e outro no posterior a sua morte Tal combinaccedilatildeo forma um

novo retrato de Nero o qual estaraacute presente em outras fontes dessa eacutepoca como

veremos adiante Contudo queremos desde jaacute destacar esse mecanismo que

coloca em um mesmo tempo a composiccedilatildeo de traccedilos originados em momentos e

em contextos diferentes um retrato natildeo uma descriccedilatildeo de um acontecimento

Depois do nascimento Taacutecito nos fornece poucas informaccedilotildees sobre a

infacircncia de Nero Sabemos que ele direcionou seu ldquoespiacuterito inquietordquo para

interesses variados esculpiu pintou cantou conduziu bigas e compocircs versos834

Percebemos tambeacutem que ele teve Secircneca como tutor835

presenciou o casamento

da matildee com o imperador Claacuteudio836

e foi adotado por este837

Sobre a adoccedilatildeo em

830

MAacuteRVAacuteNYO 2014 p 64-65 831

MARTIN 1983 p 71 832

Plin Nat 2246 833

KENNEDY 1994 p 4 834

Tac Ann 1331 835

Agripina convenceu Claacuteudio a trazer Secircneca de volta do exiacutelio (Tac Ann 1282) 836

Agrave eacutepoca o matrimocircnio foi considerado incesto por alguns senadores pois Claacuteudio e Agripina

eram tio e sobrinha (Tac Ann 122-7) Ginsburg (2006 p 116-120) explica que para os romanos

o incesto constituiacutea um ato imoral e violador da harmonia das relaccedilotildees humanas e divinas Apesar

216

especial o historiador nos diz que foi articulada por Agripina e por Pallas liberto

imperial de Claacuteudio e amante da matrona

[] Pallas [] insistia com Claacuteudio para este pensar no bem do Estado e fornecer proteccedilatildeo para Britacircnico em seus primeiros anos Ele citou o paralelo do deificado Augusto em cuja famiacutelia [] os enteados tiveram um papel proeminente e o caso de Tibeacuterio que teve seus proacuteprios filhos mas tambeacutem adotou

Germacircnico Ele disse a Claacuteudio que ele tambeacutem deveria se munir de um jovem que assumisse algumas de suas responsabilidades Convencido disso Claacuteudio colocou Domiacutecio [] agrave frente do proacuteprio filho fazendo um discurso no Senado [] Os eruditos observaram que aquela era a primeira adoccedilatildeo entre os patriacutecios da famiacutelia Claudiana [] Mesmo assim o imperador foi agradecido e a bajulaccedilatildeo de Domiacutecio foi

particularmente bem construiacuteda sendo aprovada uma lei que previa sua adoccedilatildeo pela famiacutelia Claudiana com o nome Nero838

Aqui eacute necessaacuterio comentar sobre duas questotildees A primeira a adoccedilatildeo eacute

descrita por Taacutecito como fruto sobretudo das ambiccedilotildees de um liberto e de

Agripina e natildeo como um desejo do proacuteprio Claacuteudio839

A atitude manipuladora de

ambos subjugou o imperador e o transformou em um liacuteder sem autoridade

Conforme Faversani e Mancini essa imagem do liacuteder submisso que concedia

liberdade exagerada aos subalternos jaacute circulava nas fontes contemporacircneas ao

governo de Claacuteudio840

Taacutecito entatildeo soacute reforccedilou algo que todos pareciam saber

Eacute essencial contudo esmiuccedilar a concepccedilatildeo negativa sobre Agripina ndash e

neste ponto entramos na segunda questatildeo Azevedo sustenta que o historiador

membro da elite senatorial considerava-a uma mulher transgressora do ideal de

da aprovaccedilatildeo do casamento pelo Senado o enlace deve ter contribuiacutedo para a edificaccedilatildeo do retrato

de Agripina como mulher incestuosa 837

A adoccedilatildeo exigiu uma dispensa teacutecnica da lei porque Claacuteudio jaacute tinha um filho Britacircnico

(BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 2) 838

C Antistio M Suillio consulibus adoptio in Domitium auctoritate Pallantis festinatur qui

obstrictus Agrippinae ut conciliator nuptiarum et mox stupro eius inligatus stimulabat Claudium

consuleret rei publicae Britannici pueritiam robore circumdaret sic apud divum Augustum

quamquam nepotibus subnixum viguisse privignos a Tiberio super propriam stirpem

Germanicum adsumptum se quoque accingeret iuvene partem curarum capessituro his evictus

triennio maiorem natu Domitium filio anteponit habita apud senatum oratione eundem in quem a

liberto acceperat modum adnotabant periti nullam antehac adoptionem inter patricios Claudios

reperiri eosque ab Atto Clauso continuos duravisse Ceterum actae principi grates quaesitiore in

Domitium adulatione rogataque lex qua in familiam Claudiam et nomen Neronis transiret (Tac

Ann 1225 261) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 246-247) 839

MELLOR 2010 p 134 SYME 1967 p 412 840

FAVERSANI MANCINI 2010 p 38 Por exemplo Secircneca na Apocolocyntosis debocha da

subserviecircncia claudiana aos libertos aos secretaacuterios e agraves mulheres (Sen Apoc 62)

217

matrona romana e usurpadora do poder masculino o que o fez representaacute-la a

partir do estereoacutetipo retoacuterico pejorativo da dux femina (ldquomulher comandanterdquo)

usado para caracterizar mulheres que ambicionavam exercer poder como homens

apropriando-se de uma autoridade que natildeo deveriam possuir Por oacutebvio tal

estereoacutetipo acabava recaindo sobre Claacuteudio que por natildeo conseguir controlar a

esposa era fraco e conivente com suas accedilotildees841

Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito recrimina

a ldquofalta de limitesrdquo e a ldquoambiccedilatildeo exageradardquo de Agripina842

ndash criacuteticas tambeacutem

divulgadas na Octauia e no Bellum Judaicum843

Apoacutes a adoccedilatildeo Taacutecito narra que Agripina demitiu centuriotildees e tribunos da

Guarda Pretoriana que pensava favorecer Britacircnico e persuadiu Claacuteudio a

substituiacute-los por Burro comandante do ldquomais alto caraacuteterrdquo e que saberia

reconhecer a quem devia sua posiccedilatildeo844

Em seguida ela fez Claacuteudio agilizar o

casamento de Nero e Otaacutevia ocorrido em 53845

O dia do enlace segundo o

historiador foi infeliz desde o iniacutecio equivalente a um funeral ldquoOtaacutevia [] foi

escoltada ateacute uma casa na qual soacute encontraria tristeza com seu pai sendo retirado

dela por envenenamento e seu irmatildeo [] imediatamente depoisrdquo846

Notemos que

o matrimocircnio eacute retratado de duas formas i) como uma manobra de Agripina e ii)

como um infortuacutenio para Otaacutevia Quanto agrave primeira consideramos que o interesse

da matrona residia no fato de a uniatildeo legitimar a adoccedilatildeo de Nero uma vez que

Otaacutevia pertencia agrave gens Juacutelia e Claacuteudia847

Mordine explica que as mulheres

imperiais sempre foram instrumentos de legitimidade estabelecendo e reforccedilando

o direito do princeps de governar Tal papel feminino de agente legitimador eacute

especialmente importante no caso de Nero pois Otaacutevia lhe asseguraria o lugar na

sucessatildeo de uma famiacutelia que ainda natildeo havia adotado ningueacutem848

Agripina dessa

forma soacute estava garantindo que seu filho ndash e natildeo Britacircnico ndash estivesse pronto

841

AZEVEDO 2012 p 86-87 p 133 Sobre a visatildeo taciteana de Agripina cf GINSBURG 2006

p 106-132 E sobre a visatildeo das mulheres em geral cf WALLACE 1991 p 3556-3574 842

Tac Ann 12572 843

[Sen] Oct 93 Jos BJ 2249 844

Tac Ann 12412 421 Taacutecito afirma que depois da adoccedilatildeo Britacircnico provocava Nero

chamando-o de Domiacutecio (Tac Ann 12413) 845

Tac Ann 12581 846

huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum

haberet erepto per venenum patre et statim fratre tum ancilla domina validior et Poppaea non

nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni exitio gravius (Tac Ann 14633) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 336) 847

GINSBURG 2006 p 30 FAVERSANI 2018 p 3 848

MORDINE 2013 p 107

218

quando a hora chegasse Em relaccedilatildeo ao casamento como um infortuacutenio Taacutecito

delineia um destino de anguacutestias para Otaacutevia ndash anguacutestias a propoacutesito jaacute citadas na

trageacutedia de Pseudo-Secircneca na qual a jovem lamentou ldquo[] Ai de mim desse

tirano beijar meu inimigordquo849

Portanto o historiador usou a narrativa do passado

para construir a imagem de uma Otaacutevia que eacute viacutetima dos intentos da madrasta

louca para botar as matildeos no poder e esposa infeliz do Nero infausto produto da

avidez materna

Eacute essencial comentar ainda que Taacutecito ao descrever os episoacutedios da

adoccedilatildeo e do casamento realizou allelopoiesis e inuentio Nesse sentido fortaleceu

o retrato de Agripina da mulher manipuladora e cruel (presente na Octauia) e ao

mesmo tempo erigiu um novo o da matrona que parecia ter interesses em

comandar o filho e o seu Principado A nosso ver esse novo retrato baseou-se na

visatildeo senatorial negativa do envolvimento de mulheres e de libertos nos assuntos

poliacuteticos Por serem considerados sujeitos desprovidos de legitimidade natildeo lhes

era permitido interferir nas demandas do Estado pois isso entre outras questotildees

evidenciava a desarmonia das relaccedilotildees existentes dentro e fora da domus e a

incapacidade imperial de manter a ordem850

Eacute por essa razatildeo que Taacutecito os

critica851

Em outros termos recrimina a influecircncia de Agripina e por

conseguinte o reflexo dela no caraacuteter e no governo de Nero

Tal influecircncia se torna muito mais notoacuteria quando a matrona comeccedila a

articular a ascensatildeo do filho Taacutecito relata que em 54 Agripina aproveitou a

peacutessima condiccedilatildeo de sauacutede de Claacuteudio para envenenaacute-lo com cogumelos Quando

o imperador estava prestes a morrer ela impediu Britacircnico e suas irmatildes Antocircnia e

Otaacutevia de tomarem uma atitude impedindo-os de saiacuterem dos seus quartos852

849

[] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula ([Sen] Oct 109-110) Traduccedilatildeo

de Gozo (2016 p 17) 850

AZEVEDO 2012 p 143 851

FUNARI GARRAFFONI 2016 p 125 852

Tac Ann 1266-68 Sobre o assassinato de Claacuteudio cf LEVICK 1990 p 69-80

219

Entatildeo ao meio dia do dia 13 de outubro as portas do palaacutecio

de repente se abriram Nero com Burro o acompanhando se dirigiu agrave coorte que [] estava em serviccedilo de guarda A mando do comandante ele foi aplaudido e colocado em uma liteira Dizem que alguns soldados hesitaram olhando em volta e perguntando onde estava Britacircnico mas natildeo havendo oposiccedilatildeo aceitaram aquele que lhes estava sendo oferecido Nero foi

carregado para o acampamento e apoacutes algumas palavras preliminares adequadas agrave ocasiatildeo prometeu donativos iguais aos que o seu pai Claacuteudio em outros tempos lhes dera e foi saudado como imperador A decisatildeo das tropas foi acatada pelo Senado e pelas proviacutencias A Claacuteudio foram votadas honras divinas e sua cerimocircnia fuacutenebre correspondeu agrave do deificado Augusto []853

Na narrativa percebemos que foram Agripina e Burro os grandes

planejadores da ascensatildeo Como vimos a matrona jaacute vinha preparando o caminho

haacute tempos casando o filho demitindo homens que favoreciam Britacircnico e

escolhendo Burro como Prefeito uacutenico da guarda pretoriana854

De acordo com

Mordine essa escolha demonstra claramente que ela tinha consciecircncia da

centralidade dos pretorianos na aclamaccedilatildeo imperial e que por isso precisava

controlaacute-los Poreacutem o autor acredita que ao dominaacute-los e colocar Burro agrave frente

do comando Agripina gera um problema para si mesma pois se mostra exemplo

do exagero feminino Isso significa que o feiticcedilo volta-se contra o feiticeiro O seu

sucesso inicial passaraacute a ser visto como uma busca desmedida pelo poder a qual

inclusive seraacute utilizada por Nero para justificar o matriciacutedio855

Nas palavras de

OrsquoGorman ldquoo sucesso da imperatriz em viver o suficiente para ver esta

culminaccedilatildeo tambeacutem eacute sua maior fraquezardquo856

Resumindo ela desenvolveu um

excelente esquema para dar o trono ao filho Nero agora era princeps soacute restava

saber se ele a suportaria

853

Tunc medio diei tertium ante Idus Octobris fortibus palatii repente diductis comitante Burro

Nero egreditur ad cohortem quae more militiae excubiis adest ibi monente praefecto faustis

vocibus exceptus inditur lecticae dubitavisse quosdam ferunt respectantis rogitantisque ubi

Britannicus esset mox nullo in diversum auctore quae offerebantur secuti sunt inlatusque castris

Nero et congruentia tempori praefatus promisso donativo ad exemplum paternae largitionis

imperator consalutatur sententiam militum secuta patrum consulta nec dubitatum est apud

provincias caelestesque honores Claudio decernuntur et funeris sollemne perinde ac divo Augusto

celebratur aemulante Agrippina proaviae Liviae magnificentiam (Tac Ann 1269) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008

p 268-269) 854

Tac Ann 12412 855

MORDINE 2013 p 110 Tac Ann 14111 856

OrsquoGORMAN 2006 p 132-133

220

Taacutecito prossegue seu relato dizendo que o jovem iniciou seu governo

demonstrando piedade filial e sobriedade Ele ofereceu um funeral magniacutefico a

Claacuteudio tecendo-lhe elogios a partir de um sofisticado discurso previamente

elaborado por Secircneca857

Na ocasiatildeo os idosos observaram que Nero era o

primeiro soberano a precisar da retoacuterica de outro homem pois Ceacutesar trazia

consigo grandes talentos e Augusto tinha a oratoacuteria apropriada a um imperador858

Encerrada a cerimocircnia fuacutenebre Nero entrou no Senado e delineou os contornos do

Principado vindouro natildeo haveria suborno sob o seu comando o Senado manteria

suas prerrogativas antigas as proviacutencias se dirigiriam aos tribunais dos cocircnsules

ele cuidaria do exeacutercito e conservaria os negoacutecios da sua domus separados dos

interesses da res publica859

O historiador afirma que por algum tempo Nero

cumpriu sua palavra e que Agripina o controlou em vaacuterias oportunidades860

O formato de Principado traccedilado por Nero com a cuidadosa divisatildeo de

competecircncias e de responsabilidades eacute proacuteximo do prescrito por Augusto Como

sabemos este soberano foi considerado o melhor dos imperadores detentor de

proeminentes virtudes romanas como pietas iustitia (justiccedila) e clementia Seu

governo era entendido como um paradigma de accedilotildees e condutas a serem imitadas

reverenciadas e aceitas A associaccedilatildeo com ele portanto ajudaria a criar consensos

acerca do novo imperador os quais por sua vez tornariam aceitaacutevel o

estabelecimento do novo Principado861

A ideia era reavivar o passado para tornaacute-

lo presente ou nos termos de Martins ldquotrazer agrave mente para trazer de voltardquo862

Eacute importante frisar que embora exista um tom elogioso aqui o historiador

critica sutilmente a falta de eloquentia do princeps863

A nosso ver ele insinua que

tanto os bons discursos quanto as boas iniciativas do Principado de Nero seriam

realizados por Secircneca e Burro864

Relembremos duas informaccedilotildees i) a leitura do

discurso no Senado aconteceu em 54 e o De Clementia foi elaborado na

passagem de 55 para 56 ndash ou seja agrave eacutepoca da ascensatildeo Secircneca jaacute trabalhava na

857

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 25 858

Tac Ann 133 859

Tac Ann 134 Taacutecito alega que Nero tambeacutem considerou fazer uma Reforma Fiscal e abolir a

vectigalia (impostos indiretos que incidiam sobre as mercadorias importadas e exportadas) mas

acabou sendo dissuadido por seus conselheiros (Tac Ann 13502-3) 860

Tac Ann 135 861

PRADO 2011 p 15-16 862

MARTINS 2011 p 151-152 863

O papel de Secircneca como compositor dos discursos de Nero aparece duas vezes nos Annales

(Tac Ann 13112 14113) 864

JONES 2000 p 455

221

obra em que delineou um programa de governo para Nero e ii) Taacutecito enxergava

Burro como um general detentor do ldquomais alto caraacuteterrdquo865

Isso indica que para

esse primeiro Nero estava sob o auxiacutelio de dois excelentes conselheiros e cada

um exerceria uma influecircncia positiva Burro traria austeridade Secircneca eloquecircncia

ndash e os dois juntos assegurar-se-iam de que as tentaccedilotildees do soberano

permaneceriam dentro dos ldquolimites da indulgecircncia permissiacutevelrdquo866

Essa eacute uma

ideia corrente diriacuteamos ateacute dominante na historiografia moderna a de que Nero

durante os anos iniciais do seu governo foi controlado por Secircneca e Burro Por

ser muito jovem entende-se que neste primeiro momento havia uma parceria

entre ambos para orientaacute-lo com Secircneca representando os interesses do Senado e

Burro os dos equestres867

Em uacuteltima anaacutelise cabe apontarmos as mudanccedilas e as permanecircncias

observadas nas representaccedilotildees da ascensatildeo neroniana Em primeiro lugar a ideia

da ascensatildeo positiva advinda das fontes contemporacircneas ao princeps manteve-se

Taacutecito reforccedilou os retratos contidos em Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano (ao

que tudo indicava) o imperador traria seacuteculos felizes868

Isso mostra que ele

provavelmente teve contato com as obras desses autores e concordou com elas

Mas sua concordacircncia foi parcial pois o bom governo natildeo se pautava no fato de

Nero ser um Nero prodigioso por si mesmo mas no fato de Nero ser um Nero

prodigioso por ter bons conselheiros Em segundo a noccedilatildeo do controle de

Agripina mencionada apenas por Pseudo-Secircneca foi fortalecida Taacutecito reutilizou

certos elementos presentes na Octauia ndash os de que Agripina persuadiu Claacuteudio a

adotar Nero e a priorizaacute-lo na sucessatildeo ndash e os lapidou construindo a nova imagem

do Nero antiprinceps869

Pouco tempo apoacutes a ascensatildeo o princeps precisou lidar com o seu

primeiro inimigo nas fronteiras do Impeacuterio os partas Conforme Taacutecito o jovem

demorou a resolver o conflito tendo dificuldades em estabelecer uma poliacutetica

militar coerente No final de 54 os partas invadiram o territoacuterio da Armecircnia cujo

domiacutenio era romano atraveacutes de um rei-cliente

865

Tac Ann 12421 866

Tac Ann 1321 867

Essa concepccedilatildeo eacute criticada por FAVERSANI 2012 p 136 868

Sen Apoc 41 Calp Ecl 133-44 Luc 160-62 869

[Sen] Oct 139-154

222

Como resultado [] perguntas estavam sendo feitas ldquocomo um

imperador com apenas dezessete anos podia arcar com esse fardo ou evitar a crise Que apoio poderia se esperar de um

homem governado por uma mulherrdquo870

Enquanto essas e outras observaccedilotildees eram feitas Nero enviou para a

Armecircnia alguns reis-clientes e Corbulatildeo ndash general ldquointeligenterdquo e ldquorespeitadordquo ndash

esperando que eles recuperassem o controle da regiatildeo A nomeaccedilatildeo deste uacuteltimo eacute

retratada por Taacutecito como um ato imperial muito positivo por meio da afirmaccedilatildeo

de que as virtudes estavam retornando Entre 55 e 57 Corbulatildeo organizou suas

tropas e atacou o adversaacuterio Em 58 conquistou a rendiccedilatildeo de vaacuterias localidades

incluindo Artaxata capital da Armecircnia Por causa disso871

Nero foi saudado como Imperator [] e apoacutes um decreto

senatorial oraccedilotildees de agradecimento foram realizadas Estaacutetuas arcos triunfais e contiacutenuos consulados foram votados para o soberano []872

Em 61 o confronto irrompeu novamente e sua conduccedilatildeo foi entregue

outra vez a Corbulatildeo que preparou suas legiotildees e invadiu a Armecircnia Em 63

depois de inuacutemeros combates ele convenceu os irmatildeos Tiridates rei da Armecircnia

e Vologeso rei do Impeacuterio Parta a aceitarem um acordo os trecircs com os seus

respectivos exeacutercitos deveriam se encontrar em um local especiacutefico e Tiridates

reverenciaria as estaacutetuas de Nero fingindo ser coroado rei da Armecircnia pelo

princeps depois ele deveria ir pessoalmente ateacute agrave Vrbs jurar lealdade ao

soberano Em resposta a essas accedilotildees Corbulatildeo retiraria suas tropas da Armecircnia

Passados alguns dias os exeacutercitos se encontraram873

870

igitur in urbe sermonum avida quem ad modum princeps vix septem decem annos egressus

suscipere eam molem aut propulsare posset quod subsidium in eo qui a femina regeretur (Tac

Ann 1367) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 272-273) 871

Tac Ann 138-39 872

Ob haec consal[ut]atus imperator Nero et senatus consulto supplicationes habitae statuaeque

et arcus et continui consulatus principi utque inter festos referretur dies quo patrata victoria

(Tac Ann 13414) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 292) 873

Tac Ann 151-25

223

[] De um lado estava a cavalaria parta com os seus esquadrotildees e as suas insiacutegnias tribais do outro estavam as legiotildees romanas organizadas em colunas com aacuteguias brilhantes estandartes e representaccedilotildees dos deuses como em um templo No meio deles havia um tribunal que tinha uma cadeira curul e a cadeira tinha uma estaacutetua de Nero Tiridates foi adiante [] tirou o diadema da sua cabeccedila e colocou-o aos peacutes da imagem

feito que despertou emoccedilotildees profundas em todos os presentes []874

A narrativa de Taacutecito se encerra neste ponto devido agrave perda dos livros

finais dos Annales no processo de transmissatildeo Mas o relato que sobreviveu nos

permite realizar algumas reflexotildees Inicialmente o historiador constroacutei uma

relaccedilatildeo entre a pouca idade e a inexperiecircncia do princeps forjando a ideia de que

ele seria incapaz de resolver o conflito exitosamente De acordo com Johansson

esse eacute um retrato comum nos documentos redigidos pela elite romana e aqui haacute

tambeacutem o agravante do controle materno875

Depois o historiador demarca o

papel de Corbulatildeo na finalizaccedilatildeo dos embates Ao longo da narrativa as accedilotildees

deste satildeo detalhadas e acompanhadas por muitos elogios sendo a paz na Armecircnia

atribuiacuteda totalmente ao seu trabalho Assim Taacutecito ignora outros indiviacuteduos

essenciais no encerramento da guerra a exemplo dos reis-clientes Aristoacutebulo

Antiacuteoco Agripa e Soemo Gowing explica que os reis-clientes eram monarcas natildeo

romanos que em geral estabeleciam relaccedilotildees de amizade com Roma Sua funccedilatildeo

era atender agraves necessidades do Impeacuterio quando solicitados e em troca tinham

seu poder local assegurado Nas fronteiras eram eles muitas vezes que lidavam

com as invasotildees representando o poder pessoal do princeps876

Tais homens satildeo

citados por Taacutecito uma uacutenica vez algo intrigante haja vista que os reinos de

Aristoacutebulo e Antiacuteoco ficavam a poucas milhas da fronteira parta877

ndash ou seja eacute

pouco provaacutevel que eles natildeo tivessem participado das batalhas Nesse sentido

Barrett defende que a omissatildeo foi realizada natildeo porque o historiador natildeo soubesse

874

tum placuit Tiridaten ponere apud effigiem Caesaris insigne regium nec nisi manu Neronis

resumere et conloquium osculo finitum dein paucis diebus interiectis magna utrimque specie inde

eques compositus per turmas et insignibus patriis hinc agmina legionum stetere fulgentibus

aquilis signisque et simulacris deum in modum templi medio tribunal sedem curulem et sedes

effigiem Neronis sustinebat ad quam progressus Tiridates caesis ex more victimis (Tac Ann

15292-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 352-353) 875

JOHANSSON 2016 p 28 876

GOWING 1990 p 316 877

BARRETT 1979 p 469

224

dos fatos mas sim porque ele queria conceder meacuterito completo a Corbulatildeo A

seu ver o general era um homem virtuoso um modelo de comportamento a ser

seguido E a sua maior virtude para aleacutem da destreza militar era a moderatio

imprescindiacutevel a qualquer sujeito que quisesse sobreviver sob o Principado

Notemos que na passagem a gloacuteria da vitoacuteria eacute toda concedida a Nero mesmo o

comandante tendo sido o responsaacutevel por sua conquista Como sabemos durante

o Principado ningueacutem podia se sobressair em meacuteritos ao soberano se outro

homem alcanccedilasse notoriedade poderia ser visto como substituto do imperador e

correr risco de vida Corbulatildeo parecia estar ciente disso pois transferiu o

reconhecimento a Nero o qual foi saudado como imperator878

Resumindo para

Taacutecito a honra natildeo foi dada a quem de fato mereceu-a Nero eacute o mau governante

que aleacutem de natildeo se interessar pelos assuntos militares ignorava as virtudes dos

seus generais e se apossava das suas vitoacuterias879

Ainda sobre esse assunto Aguiar traz um apontamento importante

Decerto Corbulatildeo foi muito competente no comando do seu exeacutercito Poreacutem se

houve uma guerra vencida foi porque Nero tomou as decisotildees poliacuteticas

necessaacuterias para a resoluccedilatildeo dos conflitos Entatildeo de certa forma este uacuteltimo

tambeacutem foi o responsaacutevel pela vitoacuteria Natildeo queremos com isso desmerecer o

trabalho de Corbulatildeo mas mostrar que o soberano natildeo foi um Nero (tatildeo)

antiprinceps assim Precisamos estar atentos ao fato de que a escrita de Taacutecito foi

produzida por um historiador que manipulou a narrativa para alcanccedilar uma

finalidade criar a imagem negativa de Nero880

Os paralelos entre Nero e Corbulatildeo satildeo claros Taacutecito estaacute construindo dois

retratos que mais ou menos se repetem e reforccedilam-se tornando-se familiares para

sua audiecircncia Notemos que as fontes que analisaremos a seguir Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio daratildeo um tratamento muito diferente a Corbulatildeo Suetocircnio sequer o

mencionaraacute e Diatildeo Caacutessio natildeo daraacute ao general a centralidade e o tratamento

detalhado dispensado por Taacutecito Sendo assim o caso de Corbulatildeo torna evidente

de que natildeo eacute apenas cada eacutepoca que produz um novo Nero mas que eles satildeo

diversos e se comunicam de forma sincrocircnica e diacrocircnica

878

AGUIAR 2013 p 75-77 879

AGUIAR 2013 p 79 880

AGUIAR 2013 p 79 Para uma reflexatildeo a respeito da discussatildeo historiograacutefica atual relativa agrave

poliacutetica neroniana no Oriente cf AGUIAR 2014 p 75-80

225

Cabe falar ademais que depois de Estaacutecio essa foi a segunda vez que o

confronto com os partas aparece nas fontes Nas Silvae o poeta diz que Corbulatildeo

assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo sugerindo que Roma soacute prevaleceu porque

Nero sabiamente escolheu o general881

Taacutecito reforccedila tal concepccedilatildeo nos

Annales erigindo o retrato de um princeps que natildeo sentia necessidade de estar agrave

frente das suas legiotildees As mudanccedilas de enquadramento e de composiccedilatildeo que vatildeo

sendo operadas para a construccedilatildeo dos retratos de Nero e dependem ndash como

esperamos estar ficando claro ndash do aproveitamento de todo o material jaacute

disponiacutevel anteriormente e conhecido por parte das audiecircncias

Depois de representar Nero como um governante desinteressado pelos

assuntos militares o historiador inicia a construccedilatildeo do retrato do Nero fratricida

Para tanto relata que Agripina viu sua influecircncia sobre o filho enfraquecer pois

ele se apaixonara por Acte uma liberta a quem passa a dedicar muito da sua

atenccedilatildeo A paixatildeo fora despertada porque o princeps abominava a sua esposa

Otaacutevia natildeo obstante a nobreza e a honra dela882

A priori a matrona ignora a

afeiccedilatildeo esperando que o filho se canse da relaccedilatildeo883

Mas a posteriori quando

nota que Acte cada vez mais ganhava autoridade sobre Nero passa a admoestaacute-

lo O problema alega Taacutecito eacute que quanto mais ela o recriminava mais acendia

nele a paixatildeo Entatildeo resolve mudar sua estrateacutegia comeccedila a dizer que Britacircnico

jaacute estava crescido e que o poder estava sendo exercido por um intruso adotado

graccedilas agraves manobras de Agripina Ela tambeacutem ameaccedila levar Britacircnico Secircneca e

Burro ateacute as coortes pretorianas e reclamar o ldquogoverno do mundordquo884

Preocupado

Nero trama um modo de retirar Britacircnico do seu caminho envenenando-o Assim

durante um banquete em 55

881

Stat Silv 535 882

Tac Ann 1312-15 883

Taacutecito fala que Agripina tentou chamar a atenccedilatildeo do filho convidando-o para a intimidade do

seu quarto Poreacutem o jovem natildeo se deixou enganar e seus mais iacutentimos amigos o advertiam para

ter cautela com os ardis de uma mulher atroz e falsa (Tac Ann 13132) 884

Tac Ann 13143

226

Britacircnico recebe uma bebida inoacutecua e tambeacutem muito quente

[] Entatildeo quando ele a recusa por causa da sua temperatura o veneno eacute adicionado em um pouco de aacutegua fria [e misturado agrave bebida] e espalha-se de forma tatildeo eficaz por todo o corpo do menino que ele perde a capacidade de falar e respirar Aqueles que estatildeo sentados ao seu redor alarmam-se e os imprudentes fogem mas os mais espertos permanecem em seus assentos

olhando para Nero Ele [] fingindo natildeo saber de nada observa que se trata de algo relacionado agrave epilepsia de Britacircnico sofrida por ele desde a infacircncia e que sua visatildeo e sentidos voltariam gradualmente Mas de Agripina [] vem um olhar fugaz de pacircnico e confusatildeo dando a entender que ela e [] Otaacutevia sabiam do ocorrido Ela estava comeccedilando a perceber [] que seu uacuteltimo apoio havia sido removido e que

um precedente tinha sido aberto para o assassinato de um membro da famiacutelia Otaacutevia tambeacutem apesar da tenra idade aprendera a esconder a dor o afeto e todas as suas emoccedilotildees E assim apoacutes um breve silecircncio a folia do banquete recomeccedila885

O corpo de Britacircnico eacute enterrado na mesma noite no Campus Martius sob

uma chuva torrencial que eacute interpretada pela plebe como um sinal de raiva divina

Nero conduz o funeral apressadamente argumentando que agora os senadores e

o povo deveriam apoiaacute-lo mais pois ele era o uacutenico sobrevivente de uma famiacutelia

nascida no poder886

Em geral no episoacutedio do fratriciacutedio percebemos que o

historiador desenha um princeps amedrontado pela ameaccedila materna da sua

ilegitimidade887

Esse aspecto bastante evidente na narrativa torna-se ainda mais

claro quando Taacutecito i) alega que Nero se irrita ao ver Britacircnico cantar nas

Saturnaacutelias sobre o roubo do seu direito de primogenitura e ii) quando diz que

885

Mos habebatur principum liberos cum ceteris idem aetatis nobilibus sedentes vesci in adspectu

propinquorum propria et parciore mensa illic epulante Britannico quia cibos potusque eius

delectus ex ministris gustu explorabat ne omitteretur institutum aut utriusque morte proderetur

scelus talis dolus repertus est innoxia adhuc ac praecalida et libata gustu potio traditur Britannico dein postquam fervore aspernabatur frigida in aqua adfunditur venenum quod ita

cunctos eius artus pervasit ut vox pariter et spiritus [eius] raperentur trepidatur a

circumsedentibus diffugiunt imprudentes at quibus altior intellectus resistunt defixi et Neronem

intuentes ille ut erat reclinis et nescio similis solitum ita ait per comitialem morbum quo prima

ab infantia adflictaretur Britannicus et redituros paulatim visus sensusque at Agrippina[e] is

pavor ea consternatio mentis quamvis vultu premeretur emicuit ut perinde ignaram fuisse

[quam] Octaviam sororem Britannici constiterit quippe sibi supremum auxilium ereptum et

parricidii exemplum intellegebat Octavia quoque quamvis rudibus annis dolorem caritatem

omnes adfectus abscondere didicerat ita post breve silentium repetita convivii laetitia (Tac Ann

1316) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 278) 886

Tac Ann 13173 Sobre a plausibilidade do envenenamento descrito por Taacutecito cf MARTIN

1999 p 75-85 887

SHOTTER 2008 p 12

227

Britacircnico era o ldquouacuteltimo vestiacutegio do sangue claudianordquo888

Portanto o historiador

representa Nero como um usurpador como o herdeiro indigno sublinhando sua

ascensatildeo irregular889

Vale lembrar contudo que esse tema do princeps ilegiacutetimo

natildeo eacute exclusivo dos Annales jaacute tendo sido referenciado na Octauia e no Bellum

Judaicum Tanto Pseudo-Secircneca quanto Flaacutevio Josefo citaram o caraacuteter usurpador

da adoccedilatildeo e da ascensatildeo de Nero890

Cientes disso eacute faacutecil compreender o retrato

taciteano Nero foi um liacuteder que alcanccedilou o poder de modo fraudulento ndash devido

agraves artimanhas de sua matildee ndash e Roma teria ficado melhor sem ele(s)

Precisamos tambeacutem discutir outro aspecto do fratriciacutedio Quando o

historiador descreve o banquete ele expotildee as reaccedilotildees dos presentes Por exemplo

anuncia que algumas pessoas se apavoraram e fugiram e que Agripina e Otaacutevia se

horrorizaram e esconderam esse sentimento A referecircncia a tais reaccedilotildees tem

ligaccedilatildeo direta com a dissimulatio Segundo Rudich o Principado trouxe consigo

uma dinacircmica cultural e social amplamente ilusoacuteria A natureza dicotocircmica do

regime ndash uma autocracia com uma aparecircncia republicana ndash criou uma seacuterie de

problemas de comunicaccedilatildeo poliacutetica pautada na ficccedilatildeo da parceria entre o Senado

e o imperador891

Isso resultou em termos de atitude e de comportamento na

criaccedilatildeo da dissimulatio meio dissidente de acomodaccedilatildeo agrave realidade Ou seja os

senadores fingiam viver sob uma Repuacuteblica na qual o poder do soberano natildeo era

superior ao deles e na qual eles possuiacuteam liberdade de iniciativa e o imperador

fingia natildeo ter um poder autocraacutetico Caso os senadores quisessem sobreviver

nunca poderiam mostrar publicamente seu descontentamento com essa situaccedilatildeo O

grande problema de acordo com Rudich eacute que tal fingimento deslocou-se da

esfera puacuteblica para a privada trazendo ambiguidades para todos os niacuteveis de

interaccedilatildeo pessoal com o princeps Inclusive trouxe ambiguidades ateacute para a

produccedilatildeo literaacuteria impossibilitando os escritores de se expressarem livremente892

Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito proclama no prefaacutecio dos Annales

888

illum supremum Claudiorum sanguinem (Tac Ann 13172) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 278) 889

SCHUBERT 1998 p 287-440 890

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 891

WINTERLING 2009 p 1-5 892

RUDICH 1997 p 4

228

[] Natildeo faltaram mentes excelentes para registrar o periacuteodo

augustano ateacute que a onda de subserviecircncia os espantou As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes893

Logo a alusatildeo ao comportamento de Agripina e de Otaacutevia revela que

Taacutecito enxergava Nero como um tirano cujas atitudes despertavam medo O fato

de as duas terem permanecido em silecircncio indica que elas sabiam dissimular para

sobreviver a um Nero fraticida e a um Nero cruel capaz de tratar um assassinato

com normalidade Desse modo concluiacutemos que na concepccedilatildeo de Taacutecito durante

o Principado o que se vecirc natildeo eacute real pois todos fingiam para sobreviver

A [] descriccedilatildeo [taciteana] eacute uma sobreposiccedilatildeo de visotildees possiacuteveis e incertas Cabe ao ouvinte treinar sua capacidade de ver muitas cenas onde existe uma Entre a cena que se vecirc e as muitas que se ocultam cabe a quem vecirc natildeo simplesmente ver

mas tambeacutem compor a cena O Principado natildeo admite testemunhas inocentes de seus acontecimentos [] Cabe ao leitor a indiscriccedilatildeo de ver o que a narrativa natildeo pode colocar diante dos olhos894

Em uacuteltima anaacutelise consideramos que o historiador ao descrever o

assassinato de Britacircnico retoma acusaccedilotildees feitas contra Nero pelas fontes

flavianas ndash como o caraacuteter usurpador da adoccedilatildeo e da ascensatildeo895

ndash e as divulga de

uma forma nova criando um Nero consciente da sua ilegitimidade e disposto a

tudo para assegurar a sua posiccedilatildeo896

Melhor dizendo Taacutecito elabora um novo

Nero com base em elementos comuns do passado erigindo um exemplum de liacuteder

autocrata que melhor se ajustava agrave sua compreensatildeo do Principado Isso nos leva a

perceber que os aspectos positivos de Nero vatildeo perdendo espaccedilo nos relatos e que

os negativos vatildeo se tornando cada vez mais destacados

893

sed veteris populi Romani prospera vel adversa claris scriptoribus memorata sunt

temporibusque Augusti dicendis non defuere decora ingenia donec gliscente adulatione

deterrerentur Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae

postquam occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 112) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 894

FAVERSANI 2015 p 52 895

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 896

Para uma discussatildeo complementar sobre o assassinato de Britacircnico cf MURGATROYD

2006 p 97-100

229

Dois anos depois em 57 Nero oferece os primeiros espetaacuteculos puacuteblicos

em Roma Sobre o feito Taacutecito escreve

No segundo consulado de Nero e Luacutecio Pisatildeo poucos eventos sucederam dignos de registro a menos que se deseje preencher paacuteginas com elogios aos alicerces e agraves traves que o imperador usou para erguer seu gigantesco anfiteatro no Campus Martius []897

Analisaremos esse episoacutedio em conjunto com os Juvenalia ocorridos em

59 apoacutes o assassinato de Agripina Acreditamos que a leitura contiacutegua

proporcionaraacute um entendimento mais completo do modo como Taacutecito elabora sua

representaccedilatildeo do Nero artista Falemos entatildeo do matriciacutedio898

O historiador

comenta que Nero em meio ao seu poder e ao seu novo amor por Popeia cria

coragem para articular o assassinato da matildee A grande instigadora do crime era

Popeia pois desejosa de se casar com o princeps e fazecirc-lo se divorciar de Otaacutevia

queria se livrar da matrona alegando que ela controlava o filho899

Conforme

Taacutecito a ideia para a execuccedilatildeo do homiciacutedio veio do liberto Aniceto que sugeriu

a construccedilatildeo de um navio desmontaacutevel do qual uma parte se abriria e lanccedilaria

Agripina ao mar Essa ideia logo agradou Nero porque ele sabia que ningueacutem

atribuiria a morte a algueacutem mas agrave conhecida inconstacircncia do mar900

Assim o

princeps chama a sua matildee para se juntar a ele em Baiacuteas Naacutepoles e oferece a ela

um enorme jantar Quando Agripina resolve partir de Baiacuteas Nero a acompanha e

despede-se dela com ternura901

Mas seu navio natildeo vai longe

897

Nerone iterum L Pisone consulibus pauca memoria digna evenere nisi cui libeat laudandis

fundamentis et trabibus quis molem amphitheatri apud campum Martis Caesar exstruxerat

volumina implere cum ex dignitate populi Romani repertum sit res inlustres annalibus talia diurnis urbis actis mandare (Tac Ann 13311) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 285-286) 898

Depois do fratriciacutedio a matrona desaparece da narrativa dos Annales voltando a surgir soacute

agora no iniacutecio do livro 14 Para Barrett Fantham e Yardley (2016 p 55) essa ausecircncia sugere

duas coisas i) que ela teve pouco contato com Nero apoacutes o assassinato de Britacircnico e ii) que

nesse intervalo ela natildeo desempenhou nenhum papel relevante na vida poliacutetica de Roma 899

Tac Ann 141 Taacutecito nos conta que Agripina vendo o amor de Nero por Popeia fica com

medo de ter a sua influecircncia diminuiacuteda Por isso ela tenta manter relaccedilotildees incestuosas com o filho

Essa afirmaccedilatildeo eacute feita pelo historiador com base nos relatos de dois autores Faacutebio Ruacutestico e

Cluacutevio Rufo O primeiro atribui os desejos incestuosos a Nero e o segundo a Agripina Taacutecito

obviamente concorda com o uacuteltimo sustentando que o passado da imperatriz era lascivo (Tac

Ann 1422) 900

Tac Ann 1433 901

Tac Ann 1444

230

Dois escravos domeacutesticos estavam com Agripina Crepereio

Galo [] e Acerrocircnia [] Entatildeo um sinal eacute dado o teto que cobre o local desaba [] e Crepereio eacute imediatamente esmagado Agripina e Acerrocircnia salvam-se debaixo das laterais da cama que se projetava acima delas [] [] A desintegraccedilatildeo do navio natildeo acontece [] Desse modo os marinheiros acham melhor jogar o peso para um lado e virar o navio mas natildeo

conseguem chegar a um consenso [] fazendo com que as viacutetimas caiam no mar A imprudente Acerrocircnia grita que era Agripina e que a matildee do imperador deveria ser socorrida e eacute espancada ateacute a morte com [] quaisquer instrumentos mariacutetimos que estivessem agrave matildeo [dos marinheiros] Agripina permanecendo em silecircncio diminui a chance de reconhecimento [] Nadando ela encontra alguns esquifes que

a levam ao lago Lucrino e de laacute eacute transportada para sua proacutepria vila902

Agripina ao chegar em casa entende o ocorrido e julga prudente fingir

natildeo saber de nada Ao ouvir sobre o salvamento Nero se preocupa declarando

que sua matildee a qualquer momento prepararia uma vinganccedila Entatildeo ele convoca

Secircneca e Burro para ajudaacute-lo e este uacuteltimo afirma que os pretorianos tinham

jurado lealdade agrave casa dos Ceacutesares e por isso natildeo matariam a matrona Aniceto

deveria terminar o que comeccedilou903

Assim

Aniceto isola a vila e arromba a porta Ele se livra dos escravos

encontrados em seu caminho ateacute chegar agrave porta do quarto [de Agripina] [] Ela diz logo que se ele vinha visitaacute-la anunciasse ao princeps que estava recuperada [] Os assassinos se colocam ao redor da cama e Aniceto assume a lideranccedila golpeando-a na cabeccedila com uma clava O centuriatildeo entatildeo desembainha sua espada para desferir o golpe mortal

ldquoGolpeia-me no ventrerdquo ela grita mostrando seu uacutetero E assim morre por feridas de espada904

902

nec multum erat progressa navis duobus e numero familiarium Agrippinam comitantibus ex

quis Crepereius Gallus haud procul gubernaculis adstabat Acerronia super pedes cubitantis reclinis paenitentiam filii et recuperatam matris gratiam per gaudium memorabat cum dato signo

ruere tectum loci multo plumbo grave pressusque Crepereius et statim exanimatus est Agrippina

et Acerronia eminentibus lecti parietibus ac forte validioribus quam ut oneri cederent protectae

sunt nec dissolutio navigii sequebatur turbatis omnibus et quod plerique ignari etiam conscios

impediebant visum dehinc remigibus unum in latus inclinare atque ita navem submergere sed

neque ipsis promptus in rem subitam consensus et alii contra nitentes dedere facultatem lenioris

in mare iactus verum Acerronia imprudentia dum se Agrippinam esse utque subveniretur matri

principis clamitat contis et remis et quae fors obtulerat navalibus telis conficitur Agrippina silens

eoque minus agnita (unum tamen vulnus umero excepit) nando deinde occursu lenunculorum

Lucrinum in lacum vecta villae suae infertur (Tac Ann 145) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 305-306) 903

Tac Ann 1461-71-2 904

Anicetus villam statione circumdat refractaque ianua obvios servorum abripit donec ad fores

cubiculi veniret cui pauci adstabant ceteris terrore inrumpentium exterritis cubiculo modicum

231

Agripina eacute cremada na mesma noite em um funeral insignificante anuncia

Taacutecito905

Os centuriotildees parabenizam Nero por escapar dos perigos da matildee e os

senadores decretam accedilotildees de graccedilas em todos os templos906

Daiacute em diante o

imperador se entrega agraves torpezas estendendo ldquoseus crimes por muitos anosrdquo907

Como pudemos ver Taacutecito representa Nero como um indiviacuteduo aacutevido por

eliminar a matildee devido ao seu controle exacerbado exercido por ela sobre si ndash

efetivado ateacute no acircmbito amoroso contra suas relaccedilotildees com Acte e Popeia Ou

seja o matriciacutedio eacute algo justificaacutevel pois o princeps natildeo a suportava mais Aliaacutes

parece que ningueacutem mais a suportava haja vista que o historiador pontua as

congratulaccedilotildees dadas pelos senadores e centuriotildees Agripina entatildeo ndash e natildeo apenas

o soberano ndash eacute alvo de criacutetica ela natildeo se conformava com o seu papel social

Barrett argumenta que ela provavelmente foi muito influente na poliacutetica romana

da sua eacutepoca sendo sua morte uma forma de os senadores revelarem aquilo que

natildeo estavam dispostos a tolerar Natildeo eacute agrave toa que nenhuma outra mulher teve

espaccedilo no meio poliacutetico por um seacuteculo e meio depois908

Mas apesar da

insatisfaccedilatildeo suscitada pelo controle de Agripina provavelmente ningueacutem pensou

que Nero seria tatildeo desumano a ponto de mandar assassinaacute-la Mesmo com a

justificativa apresentada o crime chocou a todos marcando negativamente ndash e

para sempre ndash a reputaccedilatildeo do imperador como um Nero matricida Desse modo

no final das contas a profecia dos caldeus se cumpriu ele reinou mas a matou909

Ainda sobre esse assunto Mellor nos chama a atenccedilatildeo para uma questatildeo

importante natildeo devemos nos esquecer de que o retrato de Agripina divulgado

nos Annales ndash e em outras fontes ndash estaacute cheio de poderosos estereoacutetipos retoacutericos

lumen inerat et ancillarum una magis ac magis anxia Agrippina quod nemo a filio ac ne Agermus

quidem aliam fore laetae rei faciem nunc solitudinem ac repentinos strepitus et extremi mali

indicia abeunte dehinc ancilla ldquotu quoque me deserisrdquo prolocuta respicit Anicetum trierarcho

Herculeio et Obarito centurione classiario comitatum ac si ad visendum venisset refotam nuntiaret sin facinus patraturus nihil se de filio credere non imperatum parricidium

circumsistunt lectum percussores et prior trierarchus fusti caput eius adflixit iam [in] morte[m]

centurioni ferrum destringenti protendens uterum ldquoventrem ferirdquo exclamavit multisque vulneribus

confecta est (Tac Ann 1482-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 307-308) 905

Taacutecito outra vez recorre a alguns autores (desta vez sem especificaacute-los) e escreve Nero ldquo[]

viu sua matildee depois de morta e louvou as belas formas do seu corpo haacute quem o afirme e quem o

neguerdquo Haec consensu produntur aspexeritne matrem exanimem Nero et formam corporis eius

laudaverit sunt qui tradiderint sunt qui abnuant (Tac Ann 1491) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308) 906

Tac Ann 14101-2 907

Tac Ann 14132 908

BARRETT 2001 p 195 909

Tac Ann 1493

232

os quais precisam ser questionados Eacute possiacutevel que a competecircncia dela fosse real

afinal ela era temida por muitos indiviacuteduos inclusive por Claacuteudio e Nero A

aristocracia romana ateacute pode ldquo[] ter odiado as matriarcas imperiais mas o

Impeacuterio como um todo encontrou mais paz sob os Juacutelio-Claudianos [] com suas

mulheres extraordinariamente fortes []rdquo do que em qualquer outro momento910

Para aleacutem do retrato do Nero matricida consideramos que Taacutecito tambeacutem

constroacutei aqui o retrato do Nero artista Notemos que o delito eacute descrito de

maneira bem dramaacutetica o navio desmontaacutevel o desabamento do teto a morte da

escrava o nado de Agripina ateacute a praia e o golpe mortal no ventre Esses

elementos nos colocam em um universo artiacutestico sugerindo que o princeps

adorava viver a sua vida em um grande palco O objetivo de Taacutecito em

concordacircncia com Dominik foi criar uma apresentaccedilatildeo convincente das accedilotildees de

Nero Isso quer dizer que ele queria usar todos os argumentos possiacuteveis para

conferir ao imperador um peacutessimo (e provaacutevel) caraacuteter911

fato que se torna mais

notaacutevel quando nos lembramos de que os Annales foram escritos sob uma

sociedade na qual Taacutecito

[] desempenhava um papel significativo e natildeo precisava ser lembrado dos perigos que ameaccedilavam qualquer um que ofendesse [] o imperador Enquanto a tradiccedilatildeo romana [parecia] permitir que um satirista em verso [adotasse] uma persona para expressar as opiniotildees poliacuteticas um pouco

perigosas ou difamatoacuterias sem grandes medos de processo ou retaliaccedilatildeo a posiccedilatildeo de Taacutecito como um historiador era potencialmente menos segura [] [Logo] uma das suas estrateacutegias retoacutericas para expressar seus pontos de vista sem se comprometer com qualquer perspectiva eacute o uso da ecircnfase narrativa o arranjo das causas dos eventos histoacutericos e da motivaccedilatildeo possiacutevel por traacutes das accedilotildees dos vaacuterios personagens912

Para finalizarmos a discussatildeo sobre assassinato de Agripina julgamos

vaacutelido destacar mais duas questotildees A primeira eacute provaacutevel que apoacutes o matriciacutedio

a relaccedilatildeo entre Nero Secircneca e Burro tenha se enfraquecido pois os conselheiros

natildeo quiseram ajudar o jovem a finalizar o crime A segunda para redigir o

episoacutedio o historiador usa elementos da Octauia da Naturalis Historia e dos

910

MELLOR 2010 p 140 911

DOMINIK 2016 p 174 912

DOMINIK 2016 p 181

233

Epigrammata No caso da primeira fonte utiliza a noccedilatildeo de Nero como um liacuteder

que subjugou Roma a uma era decadente uma vez que eacute afirmado que Nero

estendeu seu reinado e crimes por muitos anos depois913

Das duas outras fontes

emprega a concepccedilatildeo de que Agripina mereceu o seu destino porquanto trouxe ao

mundo um governante ruim914

O empreacutestimo desses elementos mostra que os

traccedilos negativos do princeps estatildeo se tornando cada vez mais conectados entre as

narrativas e tambeacutem mais fortes As criacuteticas estatildeo se sucedendo no decorrer do

tempo consolidando a figura do matricida Natildeo podemos dizer se esse era o

objetivo central dos Annales mas com certeza Taacutecito reforccedila a constataccedilatildeo que

se construiu apoacutes o reinado de Nero a de que ele assassinou a matildee e o fez por

seus viacutecios de caraacuteter e natildeo para salvar o Estado (ainda que a criacutetica aos excessos

de Agripina se mantenha) Em outros termos ele por allelopoiesis pegou as

tradiccedilotildees interpretativas que o alcanccedilaram e concedeu a elas tons artiacutesticos

almejando que isso mudasse a forma como as pessoas se propunham a ver Nero

Depois da morte materna Nero comeccedila a dar mais expressatildeo puacuteblica a seu

entusiasmo pelas artes915

Secircneca e Burro inclusive deixam-no promover corridas

de bigas diante de um puacuteblico seleto916

Empolgado ele institui em 59 os jogos

Juvenalia celebrados provavelmente nos jardins da sua casa para os quais houve

inscriccedilotildees generalizadas

Nem o nascimento nobre nem as magistraturas do passado impediram algueacutem de representar um ator grego ou romano e

ateacute de imitar seus movimentos corporais pouco masculinos e sua muacutesica As matronas tambeacutem planejavam realizar desempenhos obscenos [] [] O resultado foi um aumento do comportamento degenerado e escandaloso e nunca nem nos tempos antigos de maior corrupccedilatildeo se viu maior depravaccedilatildeo do que aquela [] Finalmente o proacuteprio homem entrou no palco afinando cuidadosamente sua lira e se preparando [] Uma

coorte de soldados tambeacutem compareceu agrave apresentaccedilatildeo juntamente com centuriotildees tribunos e Burro que chorou e aplaudiu917

913

Tac Ann 132 914

Plin Nat 2246 Mart 463 915

Entusiasmo que jaacute vinha desde a sua infacircncia (Tac Ann 1331) 916

Tac Ann 14145 917

Ne tamen adhuc publico theatro dehonestaretur instituit ludos Iuvenalium vocabulo in quos

passim nomina data non nobilitas cuiquam non aetas aut acti honores impedimento quo minus

Graeci Latinive histrionis artem exercerent usque ad gestus modosque haud viriles quin et

feminae inlustres deformia meditari exstructaque apud nemus quod navali stagno circumposuit

Augustus conventicula et cauponae et posita veno inritamenta luxui dabantur stipes quas boni

234

A descriccedilatildeo dos Juvenalia e da construccedilatildeo do anfiteatro eacute formulada a

partir de dois argumentos centrais i) a corrupccedilatildeo dos costumes e da hierarquia

social e ii) a infacircmia de Nero Na passagem referente ao anfiteatro Taacutecito

assevera que a construccedilatildeo natildeo era digna de registro pois natildeo estava de acordo

com a ldquodignidade do povo romanordquo918

Ou seja para ele o edifiacutecio corrompera a

sociedade Entretanto Schulz comenta que em Roma a edificaccedilatildeo de preacutedios

puacuteblicos era esperada de um imperador uma vez que eles o ajudavam a promover

positivamente a sua imagem e a ganhar apoio sobretudo da plebe A construccedilatildeo

ligava-se agrave ideia de evergetismo praacutetica de conceder presentes agrave comunidade por

meio da constituiccedilatildeo de edifiacutecios da doaccedilatildeo de dinheiro do patrociacutenio de

espetaacuteculos entre outras atividades919

Nero levou tal praacutetica muito a seacuterio

embora Taacutecito natildeo reconheccedila isso Por exemplo Calpuacuternio Siacuteculo menciona o

luxo do anfiteatro erguido no Campus Martius920

E por que Taacutecito natildeo reconhece

a grandeza do edifiacutecio A nosso ver por causa da transgressatildeo social realizada por

Nero no local Sear explica que quando um evento ocorria em um anfiteatro toda

uma hierarquia social precisava ser mantida Como ilustraccedilatildeo para cada grupo

social era designado um assento especiacutefico e as apresentaccedilotildees eram restritas para

os atores e os cantores os quais em geral eram escravos ou libertos921

Eacute aiacute que

entra a criacutetica de Taacutecito O historiador anuncia que nos Juvenalia ndash sucedidos

dois anos depois da edificaccedilatildeo do anfiteatro ndash membros da elite e o proacuteprio

princeps se apresentaram Isso significa que apesar de ter planejado um preacutedio

magniacutefico Nero o usou para promover espetaacuteculos que desrespeitaram os status

sociais O resultado um ldquoaumento do comportamento degenerado e escandalosordquo

como defende Taacutecito Portanto os jogos satildeo representados como uma afronta agrave

honra da aristocracia e agrave dececircncia dos costumes922

A estrateacutegia usada pelo autor

foi se apropriar da imagem de um soberano generoso e propositor de preacutedios

necessitate intemperantes gloria consumerent inde gliscere flagitia et infamia nec ulla moribus

olim corruptis plus libidinum circumdedit quam illa conluvies vix artibus honestis pudor

retinetur nedum inter certamina vitiorum pudicitia aut modestia aut quicquam probi moris

reservaretur postremus ipse scaenam incedit multa cura temptans citharam et praemeditans

adsistentibus ph[on]ascis accesserat cohors militum centuriones tribunique et maerens Burrus ac

laudans (Tac Ann 14151-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 311) 918

Tac Ann 13311 919

SCHULZ 2019 p 70-138 920

Cal Ecl 723-56 921

SEAR 2006 p 2 922

Tac Ann 14152

235

luxuosos ndash exposta nas Eclogae ndash e transformaacute-la na imagem de um soberano

devasso e construtor de edifiacutecios imorais Em siacutentese Nero deixa de ser um

homem comprometido com a inovaccedilatildeo cultural (Nero prodigioso) para se tornar

um liacuteder comprometido com a licenciosidade (Nero antiprinceps e Nero artista)

Outro ponto precisa ser comentado aqui a ausecircncia de uma oposiccedilatildeo

expliacutecita por parte de Secircneca e Burro durante a realizaccedilatildeo da performance

neroniana Conforme Belchior e Devillers essa ausecircncia esteve vinculada ao

fenocircmeno da bajulaccedilatildeo atitude sintomaacutetica de uma sociedade em que o poder

centrava-se em um uacutenico indiviacuteduo923

Isso indica o fato de que os dois tutores ndash

de igual modo aos outros membros da elite romana ndash estavam inseridos em um

jogo de poder no qual muitas vezes ficar calado era essencial agrave sobrevivecircncia

Natildeo nos esqueccedilamos tambeacutem de que era a partir da bajulaccedilatildeo que os senadores e

os equestres adquiriam proeminecircncia magistraturas e honrarias Isso implica que

Secircneca e Burro se desejassem manter suas posiccedilotildees poliacuteticas e sociais natildeo

podiam dizer explicitamente aquilo que pensavam o que explica o aplauso

choroso de Burro

No ano seguinte em 60 o soberano continuou se dedicando aos seus

desejos artiacutesticos instituindo em Roma a primeira ediccedilatildeo dos Neronia festas

quinquenais aos moldes gregos

[] O resultado foi que qualquer coisa capaz de ser corrompida ou de causar corrupccedilatildeo estava agrave vista na cidade e os jovens

estavam se tornando decadentes com os modismos do exterior ndash visitando os ginaacutesios vagabundeando e entregando-se a casos de amor degradantes E o imperador e o Senado eram os responsaacuteveis natildeo apenas aprovavam tais viacutecios mas tambeacutem pressionavam os nobres romanos a se apresentarem no palco sob o pretexto de fazer discursos e poesia [] Os precircmios propostos para os oradores e para os poetas seriam um incentivo

ao talento e nenhum juiz acharia ofensivo emprestar seu ouvido a atividades intelectuais honradas e diversotildees legiacutetimas [] Ningueacutem levou o precircmio de oratoacuteria mas Nero foi declarado o vencedor924

923

BELCHIOR 2016 p 146-147 DEVILLERS 2012 p 174 924

[hellip] nulla cuiquam civium necessitate certandi ceterum abolitos paulatim patrios mores

funditus everti per accitam lasciviam ut quod usquam corrumpi et corrumpere queat in urbe

visatur degeneretque studiis externis iuventus gymnasia et otia et turpes amores exercendo

principe et senatu auctoribus qui non modo licentiam vitiis permiserint sed vim adhibeant [ut]

proceres Romani specie orationum et carminum scaena polluantur quid superesse nisi ut corpora

quoque nudent et caestus adsumant easque pugnas pro militia et armis meditentur an iustitiam

auctum iri et decurias equitum egregium iudicandi munus [melius] expleturos si fractos sonos et

236

Os espetaacuteculos foram uma inovaccedilatildeo em Roma com competiccedilotildees musicais

e de ginaacutestica925

Taacutecito atesta que a populaccedilatildeo manifestou-se positiva e

sobretudo negativamente com alguns afirmando que os gastos foram custeados

pelo princeps e outros falando que os paacutetrios costumes estavam decaiacutedos926

Em

relaccedilatildeo a esta uacuteltima declaraccedilatildeo vemos que eacute fortalecida a ideia da corrupccedilatildeo dos

costumes jaacute apresentada nos Juvenalia Nesse sentido o historiador assevera que

a devassidatildeo podia ser vista por toda a cidade e que o imperador juntamente com

os senadores pressionava os nobres a se apresentarem Tal imposiccedilatildeo eacute muito

demarcada por Taacutecito no excerto o que nos leva a considerar que a seu ver Nero

estava saindo do controle pois aqueles que o regulavam estavam mortos

(Agripina) ou com medo (Secircneca e Burro)

Mais um aspecto a ser destacado na passagem eacute a paixatildeo do soberano

pelas coisas gregas advinda tambeacutem desde os Juvenalia Griffin fornece algumas

explicaccedilotildees para tal sentimento i) as maiores influecircncias familiares sobre Nero o

seu avocirc Germacircnico e o seu tio Caliacutegula viveram na Greacutecia por certo tempo e em

aacutereas de forte influecircncia grega ii) o princeps era um visitante frequente de

Naacutepoles cidade de colonizaccedilatildeo grega que tradicionalmente proporcionava

relaxamento e entretenimento para os romanos e iii) ele encontrou na atitude

helecircnica frente agraves artes e espetaacuteculos um modelo de Principado que trazia uma

noccedilatildeo de monarquia divina927

Notemos que Taacutecito natildeo atribui um tom tatildeo nocivo

a essa paixatildeo mas apenas a aponta Mas Mratschek acredita que a pequena

menccedilatildeo revela seu intento de criticar a atitude imperial de diminuir a importacircncia

da cultura romana e aumentar a da grega ndash isto eacute Taacutecito estaacute insinuando que o

soberano prioriza os festivais e as celebraccedilotildees gregas ao inveacutes das romanas928

dulcedinem vocum perite audissent noctes quoque dedecori adiectas ne quod tempus pudori

relinquatur sed coetu promisco quod perditissimus quisque per diem concupiverit per tenebras

audeat [] oratorum ac vatum victorias incitamentum ingeniis adlaturas nec cuiquam iudici

grave aures studiis honestis et voluptatibus concessis impertire laetitiae magis quam lasciviae

dari paucas totius quinquennii noctes quibus tanta luce ignium nihil inlicitum occultari queat

sane nullo insigni dehonestamento id spectaculum transi[i]t ac ne modica quidem studia plebis

exarsere quid redditi quamquam scaenae pantomimi certaminibus sacris prohibebantur

eloquentiae primas nemo tulit sed victorem esse Caesarem pronuntiatum (Tac Ann 1520-21) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 313-314) 925

CHAMPLIN 2005 p 72 LEIGH 2017 p 24 926

Tac Ann 1520-21 927

GRIFFIN 2001 p 209-215 928

MRATSCHEK 2013 p 45-64

237

Cabe salientar igualmente que Nero natildeo se apresentou nos Neronia nem

mesmo para um puacuteblico seleto como fez nos Juvenalia ao que parece ele soacute

assistiu agraves performances Poreacutem Champlin defende que um resultado infeliz desse

natildeo envolvimento foi o surgimento da praacutetica de lhe conceder precircmios sob

qualquer pretexto Daiacute em diante todas as coroas por tocar lira de todas as

competiccedilotildees seratildeo ofereciadas a ele atitude que para o autor colocaraacute o Nero

artista no caminho de escolhas perigosas929

Um uacuteltimo aspecto eacute o crescente

domiacutenio do jovem imperador sobre as pessoas que realizavam performances no

palco controlando as apresentaccedilotildees de cidadatildeos respeitaacuteveis por meio de

ldquoconvitesrdquo Esse desejo manter-se-aacute na esfera do controle ateacute 64 quando passaraacute a

compor e a cantar suas proacuteprias composiccedilotildees publicamente

Encerrados os jogos o princeps teve que direcionar sua atenccedilatildeo para a

fronteira noroeste do Impeacuterio a fim de resolver os problemas na Britacircnia

Segundo Taacutecito essa rebeliatildeo trouxe uma peacutessima imagem puacuteblica para o

imperador As contendas comeccedilaram no ano 60 quando Prasutago rei iceniano

famoso por sua riqueza nomeia Nero e suas duas filhas como herdeiros pensando

que esse ato de subserviecircncia manteria o seu reino e a sua famiacutelia fora de perigo

Contudo o resultado foi o contraacuterio seu reino eacute saqueado por centuriotildees

romanos sua esposa Boudica eacute accediloitada e suas filhas estupradas Impelido por

esse ultraje Prasutago incita os bretotildees agrave revolta930

Entatildeo Nero solicita a

Suetocircnio Paulino governador da Britacircnia que organize as suas tropas e marche

sobre os inimigos em Londres Ao ver isso Boudica monta em uma carruagem e

profere um discurso para os seus soldados dizendo que vingaria a tortura do seu

corpo e a honra manchada das suas filhas Poreacutem os romanos prevalecem

eliminando quase 80 mil bretotildees Ao final do conflito em 61 Boudica se suicida

e Nero envia o liberto Policlito agrave Britacircnia no intuito de que ele pacifique de vez

a regiatildeo Ao chegar laacute Policlito vira motivo de piada pois os bretotildees natildeo estavam

familiarizados com o poder dos libertos Conforme Taacutecito eles tambeacutem ficaram

surpresos com o fato de que Paulino o general que havia vencido a guerra tivesse

que dar ouvidos a um ex-escravo931

929

CHAMPLIN 2005 p 73 930

Tac Ann 1431-37 931

Tac Ann 14391-3 Para os confrontos na Britacircnia cf DU TOIT 1977 149-158 ROBERTS

1988 p 118-132

238

Nesse relato destacaremos o envio de Policlito agrave Britacircnia O julgamento

de Taacutecito eacute muito claro aiacute a confianccedila imperial em um liberto para pacificar a

situaccedilatildeo expocircs os romanos e um comandante bem-sucedido agrave humilhaccedilatildeo

puacuteblica932

Ao colocar Policlito na cena o historiador critica a distorccedilatildeo da

hierarquia social realizada por Nero haja vista que aqueles que deveriam estar na

base da piracircmide estavam no topo933

Mellor argumenta que Taacutecito desprezava os

soberanos que colocavam os libertos acima dos senadores enxergando-os como

liacutederes fracos e viciosos Assim Nero eacute caracterizado como um antiprinceps

altamente controlado por aqueles que ele deveria controlar934

Apoacutes a resoluccedilatildeo de tais conflitos Taacutecito nos conta que as tribulaccedilotildees do

Estado ficavam a cada dia mais seacuterias tornando-se piores com a morte de Burro

no iniacutecio de 62935

Nas palavras do autor foi grande a saudade que dele teve

Roma tanto pela sua integridade quanto pela infacircmia do comandante que o

substituiu Tigelino um forte instigador dos viacutecios imperiais936

Sem Burro e

incapaz de contar com a guarda pretoriana Secircneca solicita um afastamento Ao ter

o pedido negado muda sua rotina fugindo das comitivas e das visitas e evitando

sair de casa sob o pretexto de problemas de sauacutede ou estudos937

Assim os

homens que aconselharam Nero desde o iniacutecio do seu governo isto eacute por mais de

oito anos afastam-se dando espaccedilo para o poder de Tigelino e as suas maacutes

qualidades crescerem diariamente938

Popeia aproveita desse novo clima para

convencer Nero a se divorciar de Otaacutevia (com a qual ele jaacute estava casado haacute mais

de nove anos) e a casar-se com ela que de acordo com Taacutecito vivia em Roma e

932

GRIFFIN 2001 p 230 933

SAILOR 2008 p 80 934

MELLOR 2010 p 100 935

Taacutecito comenta natildeo saber se a morte foi por doenccedila ou veneno ldquo[] que se tratava de doenccedila

foi deduzido pelo fato de que ele parou de respirar quando havia um inchaccedilo grande em sua garganta e sua traqueia estava fechada Algumas pessoas alegaram que seguindo as instruccedilotildees de

Nero aplicaram um veneno em sua garganta com o pretexto de ser um remeacutedio Burro disseram

percebeu o crime e quando o imperador veio visitaacute-lo desviou o olhar e em resposta agraves perguntas

de Nero disse apenas lsquoestou bemrsquordquo Sed gravescentibus in dies publicis malis subsidia

minuebantur concessitque vita Burrus incertum valetudine an veneno valetudo ex eo

coniectabatur quod in se tumescentibus paulatim faucibus et impedito meatu spiritum finiebat

plures iussu Neronis quasi remedium adhiberetur inlitum palatum eius noxio medicamine

adseverabant et Burrum intellecto scelere cum ad visendum eum princeps venisset adspectum

eius aversatum sciscitanti hactenus respondisse ldquoego me bene habeordquo (Tac Ann 14511) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 328-329) 936

Tac Ann 14512-3 937

Tac Ann 1453-56 938

Tac Ann 14571

239

era bonita lasciva e inteligente sempre direcionando seus afetos a homens muito

ricos Foi assim que se casou com o senador Otatildeo Ele por sua vez seduziu-a

pelo seu estilo de vida luxuoso e pelo fato de ser um amigo proacuteximo de Nero939

O

historiador fala que Otatildeo ficou tatildeo empolgado com a uniatildeo que passou a elogiar

demasiadamente a esposa na frente do imperador Logo natildeo demorou para ele

querer conhececirc-la Ao se encontrar com o princeps Popeia com uma fala doce e

ardilosa finge estar apaixonada mostrando que natildeo podia resistir-lhe Ao

conquistar Nero dizia que era casada e natildeo podia abandonar o marido Natildeo tardou

para o soberano se livrar de Otatildeo nomeando-o governador da proviacutencia da

Lusitacircnia940

Tempos depois Popeia persuade Nero a se casar com ela Para tanto

ela articula um plano induzir um dos familiares de Otaacutevia a acusaacute-la de adulteacuterio

com um escravo As escravas da imperatriz satildeo chamadas e todas defendem a

inocecircncia da ama941

Fracassado o plano Nero separa-se com as aparecircncias de um

divoacutercio legal dando agrave ex-esposa vaacuterios donativos e propriedades942

Sob

influecircncia de Popeia ele alega publicamente que Otaacutevia era esteacuteril e que ele

estava preocupado com o futuro do trono Tal seria a razatildeo da separaccedilatildeo Ao saber

do divoacutercio a plebe derruba as estaacutetuas de Popeia e enfeita as de Otaacutevia com

flores943

Popeia com medo de que a violecircncia puacuteblica provocasse uma mudanccedila

de atitude no amante chama Nero e lhe fala que se fosse do seu interesse deveria

trazer para casa a mulher que o controlava mas por sua proacutepria vontade e natildeo por

coaccedilatildeo Essa fala afirma Taacutecito apavora e irrita Nero que entatildeo decide que a

acusaccedilatildeo de adulteacuterio deveria ser mais bem planejada e feita por algueacutem a quem a

subversatildeo tambeacutem pudesse ser atribuiacuteda E para isso Aniceto parece uma boa

escolha Convocando-o Nero lhe diz que ele precisa admitir um adulteacuterio com

Otaacutevia pelo que caso o fizesse seria recompensado com grandes presentes

Aniceto faz a confissatildeo diante de amigos reunidos pelo imperador e eacute banido para

a Sardenha Em seguida o princeps envia Otaacutevia para a ilha de Pandataacuteria944

939

Popeia deixou Rufo Crispino um equestre para casar-se com Otatildeo (Tac Ann 13454) 940

Tac Ann 13463 941

Taacutecito alega que a pureza de Otaacutevia era tatildeo grande que nem sob tortura as criadas contaram

algo que pudesse prejudicaacute-la (Tac Ann 14601-2) 942

Tac Ann 14604 943

A destruiccedilatildeo das estaacutetuas de Popeia pela plebe eacute apontada na Octavia ([Sen] Oct 794-799) 944

Tac Ann 1460-62

240

[] Depois de alguns dias a ordem de morte eacute dada Ela eacute

acorrentada e suas veias satildeo abertas [] e porque o sangue [] fluiacutea muito devagar sua morte eacute apressada pelo vapor de um banho quente Segue-se um ato de selvageria ainda mais atroz sua cabeccedila eacute cortada e levada a Roma para que Popeia a visse945

Iniciaremos a anaacutelise dos episoacutedios a partir de um ponto defendido por

Barrett a submissatildeo de Nero a mulheres com personalidade forte A primeira foi

sua matildee Agripina que dominou avidamente o iniacutecio da sua vida e do seu governo

E a segunda foi Popeia sua amante e futura esposa Flaacutevio Josefo jaacute havia

apontado que ela era bela e detentora de poderes muito reais a exemplo da

determinaccedilatildeo da soltura de prisioneiros judeus946

Nos Annales sua influecircncia eacute

apresentada por meio da sugestatildeo de que ela instigou tanto o matriciacutedio947

quanto

o divoacutercio de Nero em relaccedilatildeo a Otaacutevia conseguindo despertar a paixatildeo no

soberano e garantir o envio de Otatildeo agrave Lusitacircnia Como jaacute dissemos a ambiccedilatildeo

dessas mulheres era vista pela elite romana como um problema grave pois

revelava que um imperador natildeo conseguia controlar sua domus ndash entidade maior

sobre a qual ele presidia948

E para Taacutecito Nero deixava a ambiccedilatildeo delas desafiar

as restriccedilotildees constitucionais dando espaccedilo para que produzissem intrigas Tal

visatildeo adveacutem da sua concepccedilatildeo de corrupccedilatildeo moral do Principado a qual fazia

com que as mulheres articulassem manobras infinitas visando a preservaccedilatildeo da

sua influecircncia sobre os soberanos Em outros termos Taacutecito acreditava que elas

eram capazes de mandar assassinar rivais apenas pelo medo de perderem suas

posiccedilotildees Tudo valia para assegurar a proximidade e a influecircncia sobre o princeps

Barrett argumenta que precisamos considerar o fato de que agraves vezes Nero se

sujeitava a elas natildeo porque era fraco mas sim porque achava que eram

945

At Nero praefectum in spem sociandae classis corruptum et incusatae paulo ante sterilitatis

oblitus abactos partus conscientia libidinum eaque sibi comperta edicto memorat insulaque

Pandateria Octaviam claudit non alia exul visentium oculos maiore misericordia adfecit

meminerant adhuc quidam Agrippinae a Tiberio recentior Iuliae memoria obversabatur a

Claudio pulsae sed illis robur aetatis adfuerat laeta aliqua viderant et praesentem saevitiam

melioris olim fortunae recordatione adlevabant huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit

deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum haberet erepto per venenum patre et statim fratre

tum ancilla domina validior et Poppaea non nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni

exitio gravius (Tac Ann 14641-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 334-337) 946

Jos Vit 3 947

Tac Ann 141 948

BARRETT 2017 p 63-76

241

inteligentes e tinham boas ideias949

O problema eacute que em algum momento ele

parecia se cansar das intromissotildees Natildeo agrave toa Taacutecito desenha o relacionamento

imperial com elas de modo ldquopsicologicamente complexordquo passando de um

estaacutegio inicial de subserviecircncia para antipatia e violecircncia brutal Havia um padratildeo

de comportamento a submissatildeo sempre desembocava em assassinato Logo o

destino de Popeia mais tarde seraacute o mesmo de Agripina950

Contudo o

assassinato de Otaacutevia natildeo pode ser inserido nessa loacutegica Desde o iniacutecio da sua

narrativa Taacutecito frisa que para ela o matrimocircnio com Nero foi algo funesto e que

o princeps a abominava apesar da (ou ateacute mesmo por) nobreza e honra dela951

Ou seja o historiador mostra que Nero nunca se subordinou agrave filha de Claacuteudio e

sim agrave ambiccedilatildeo de sua matildee que casou os dois com objetivos dinaacutesticos e agrave de

Popeia capaz de fazecirc-lo seguir adiante com acusaccedilotildees falsas

Outro ponto a ser destacado eacute que o princeps soacute se divorciou porque

aqueles que poderiam se opor estavam mortos (Burro e Agripina) ou afastados

(Secircneca) Essa oposiccedilatildeo estaria ligada ao fato de eles saberem que o casamento

com Otaacutevia era o elemento garantidor do trono a Nero o ldquoelo vital com

Claacuteudiordquo952

O divoacutercio entatildeo aumentaria o espectro de rivais e teria sua

legitimidade reduzida Para evitar ambos os cenaacuterios ele precisaria fazer duas

coisas i) eliminar os possiacuteveis rivais e ii) desonrar a imagem de Otaacutevia E ele

assim os fez revela Taacutecito No primeiro caso sancionou os assassinatos de

Rubeacutelio Plauto e Fausto Sula descendentes de Augusto953

E no segundo alegou

que Otaacutevia era esteacuteril e o havia traiacutedo inicialmente com um escravo e depois

com Aniceto Griffin sustenta que Nero sempre temeu a repercussatildeo puacuteblica da

sua separaccedilatildeo o que explicaria o generoso divoacutercio inicial E seus receios

materializaram-se haja vista que a plebe se mostrou bastante insatisfeita com a

decisatildeo Foi por isso que ele sob influecircncia de Popeia fortaleceu a acusaccedilatildeo de

adulteacuterio e envolveu Aniceto ele natildeo podia perder a legitimidade do seu governo

e nem o apoio da turba Na percepccedilatildeo de Griffin Popeia e Nero ficaram

alarmados e as consequecircncias de tais temores foram duras o banimento e a morte

949

BARRETT 2017 p 63-76 950

BARRETT 2017 p 63-76 951

Tac Ann 14633 952

GRIFFIN 2001 p 98-112 953

Tac Ann 1457-59

242

de Otaacutevia954

Como registra Scullard a liberdade de que o Senado gozara graccedilas a

Secircneca e Burro no iniacutecio do reinado estava agora perdida e Nero estava sendo

corrompido pelo poder desenfreado Ao oacutedio do Senado foi adicionado o do povo

de Roma955

Eacute curioso notar ainda que a descriccedilatildeo taciteana de Nero e da filha de

Claacuteudio eacute muito semelhante agrave de Pseudo-Secircneca o princeps eacute um tirano perverso

e movido pelas paixotildees e Otaacutevia eacute uma jovem impassiacutevel que lamenta seu

destino Isso indica que o historiador teve a Octavia como sua fonte primordial de

informaccedilotildees baseando-se no seu enredo traacutegico para montar os Annales A grande

diferenccedila eacute que na Octavia a personagem de Popeia natildeo eacute ardilosa e natildeo tem

todo esse poder sobre Nero ndash laacute o princeps casou-se com ela porque se

apaixonara e natildeo porque ela o dominara Assim vecirc-se que Taacutecito acrescentou

mais drama ao drama adicionando detalhes mais soacuterdidos a uma histoacuteria que jaacute

era soacuterdida956

Consoante Murgatroyd mais um aspecto a ser ressaltado eacute a maneira

eficaz como Taacutecito destaca trecircs protagonistas entrelaccedilados em sua narrativa Em

primeiro lugar existe a ferramenta Nero O insensiacutevel imperador eacute um dos vilotildees

da histoacuteria mas embora tome a decisatildeo de se divorciar de Otaacutevia e ordene a

Aniceto que confesse um adulteacuterio falso ele eacute na verdade um grande fantoche de

Popeia Em segundo existe o motor principal a ardilosa Popeia que estaacute

determinada a eliminar Otaacutevia Ela sugere a acusaccedilatildeo letal de adulteacuterio com

Aniceto e perversamente segura a cabeccedila amputada da ex-esposa Nos Annales

ela eacute oposta a Otaacutevia e sua perversidade contrastante aumenta a simpatia pela

filha de Claacuteudio Em terceiro existe a viacutetima Otaacutevia Ela estaacute quase totalmente

sozinha contra dois oponentes malignos e poderosos e os seus ajudantes e parece

ainda mais pura ao lado de tantas pessoas maacutes957

Sua morte apesar de compor a

menor parte da narrativa eacute motivo de revolta para Taacutecito o qual afirma

954

GRIFFIN 2001 p 98-112 955

SCULLARD 2010 p 260 956

HURLEY 2013 p 36-37 Para mais semelhanccedilas entre os Annales e a Octavia cf BILLOT

2003 p 126-141 957

MURGATROYD 2008 p 264

243

[] Qualquer um que saiba sobre as tribulaccedilotildees daqueles

tempos por mim [] pode dar como certo que sempre que o imperador autorizava o exiacutelio ou o assassinato oraccedilotildees eram feitas aos deuses de modo que aquilo que antigamente era o sinal de puacuteblicas fortunas agora se tornou siacutembolo de desastre puacuteblico E no entanto natildeo devo me calar sobre nenhum decreto senatorial que marcou novos estaacutegios de subserviecircncia ou servilismo958

A localizaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo ao final do episoacutedio aumenta seu efeito

sobre os leitores Nero eacute condenado natildeo soacute por suas palavras e accedilotildees como

tambeacutem pelo servilismo impingido ao Senado Para Varella o historiador estaacute

insinuando aiacute que a pouca autonomia senatorial existente antes teria desaparecido

completamente O casamento com Popeia eacute o divisor de aacuteguas entre por um lado

um governo que ainda tinha algum aspecto moderado e por outro um governo

dominado pelo medo e pela luxuacuteria O Principado prodigioso de 59 estaacute se

tornando vicioso e exterminador da liberdade e das virtudes De 60 a 62 haacute um

novo arranjo poliacutetico negativo encabeccedilado por Popeia e Tigelino959

Para encerrar entendemos que Taacutecito retrata esses eventos como feitos

criminosos empregando para tanto uma ampla gama de detalhes a fim de

estimular seus leitores a visualizaacute-los sob a mesma luz que ele Por inuentio ele

opera acreacutescimos no seu texto como o domiacutenio de Popeia e a acusaccedilatildeo de

adulteacuterio de modo a possibilitar que os fatos (ou pelo menos sua versatildeo deles) se

tornem tatildeo emotivos a ponto de falarem por si mesmos E por allelopoiesis

transforma o Nero do passado ndash uxoricida e cruel ndash presente na Octavia e lanccedila

uma nova questatildeo sobre ele o controle feminino Dito de outro modo ele usa o

Nero do passado como um legado e ao mesmo tempo toma esse Nero como

mateacuteria de uso pelo presente modificando-o e tornando-o mais rico e complexo

aos nossos olhos No final das contas o princeps continua sendo um Nero cruel

mas deixa de ser um simples Nero uxoricida para se tornar um Nero antiprinceps

958

dona ob haec templis decreta que[m] ad finem memorabimus quicumque casus temporum

illorum nobis vel aliis auctoribus noscent praesumptum habeant quotiens fugas et caedes iussit

princeps totiens grates deis actas quaeque rerum secundarum olim tum publicae cladis insignia

fuisse neque tamen silebimus si quod senatus consultum adulatione novum aut paenitentia

postremum fuit (Tac Ann 14643) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 337) 959

VARELLA 2006 p 1-10

244

Passados dois anos no iniacutecio de 64 Taacutecito relata que Nero realiza os seus

desejos de se apresentar publicamente nos teatros

[] Ateacute aquele ponto ele havia confinado seu canto agrave sua casa ou ao seu jardim durante os jogos da Juvenalia mas agora estava comeccedilando a desdenhar deles pois [] eram muito limitados para ostentarem sua voz Todavia natildeo arriscaria uma estreia em Roma e escolhe Naacutepoles por ser uma cidade grega

Esse seria o seu ponto de partida ele pensa [] Assim reuacutene uma multidatildeo de habitantes da cidade e a eles se juntam aqueles de [] colocircnias e municiacutepios proacuteximos [] Tudo isso lota o teatro de Naacutepoles No teatro ocorre um incidente que a maioria pensa ser um pressaacutegio sinistro mas Nero acha providencial e um sinal de favor divino Depois que o puacuteblico vai embora o teatro vazio desaba sem causar ferimentos Por

conseguinte ele compotildee hinos agradecendo aos deuses e celebrando a boa sorte que acompanhou o colapso recente []960

Na passagem Taacutecito deixa muito claro que Nero escolhe se apresentar

publicamente em uma cidade de colonizaccedilatildeo grega ao inveacutes de uma cidade

romana Mas por quecirc A nosso ver por um uacutenico motivo precauccedilatildeo Fantham

esclarece que as apariccedilotildees de Nero no palco eram em certo sentido vistas pela

elite romana como algo inapropriado Isso significa que o imperador natildeo deveria

gastar quantias extraordinaacuterias de dinheiro em espetaacuteculos ndash que instigavam

devassidatildeo ndash e muito menos assumir o papel de um cantor no palco destinado a

escravos ou libertos Ao contraacuterio ele deveria ser um indiviacuteduo virtuoso em

maior grau do que todos os outros homens apresentando as qualidades de

gravitas dignitas e fides Nesse sentido ao se exibir no teatro de Naacutepoles Nero

assume um papel muito distante daquele reservado a um princeps (pelo menos o

princeps como entendido pelos senadores) Ele deixava de ser o mais nobre dos

960

C Laecanio M Licinio consulibus acriore in dies cupidine adigebatur Nero promiscas scaenas

frequentandi nam adhuc per domum aut hortos cecinerat Iuvenalibus ludis quos ut parum

celebres et tantae voci angustos spernebat non tamen Romae incipere ausus Neapolim quasi

Graecam urbem delegit inde initium fore ut transgressus in Achaiam insignesque et antiquitus

sacras coronas adeptus maiore fama studia civium eliceret ergo contractum oppidanorum vulgus

et quos e proximis coloniis et municipiis eius rei fama civerat quique Caesarem per honorem aut

varios usus sectantur etiam militum manipuli theatrum Neapolitanorum complent Illic plerique

ut arbitra[ba]ntur triste ut ipse providum potius et secundis numinibus evenit nam egresso qui

adfuerat populo vacuum et sine ullius noxa theatrum collapsum est ergo per compositos cantus

grates dis atque ipsam recentis casus fortunam celebrans petiturusque maris Hadriae traiectus

apud Beneventum interim consedit ubi gladiatorium munus a Vatinio celebre edebatur (Tac Ann

1533-34) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 353-354)

245

homens para se tornar o mais ignoacutebil fato que revelava agrave elite sua subordinaccedilatildeo a

um sujeito infame961

E Nero aparentemente tinha consciecircncia do que tal

subordinaccedilatildeo poderia gerar por isso natildeo arrisca estrear em Roma Eacute em uma

cidade de colonizaccedilatildeo grega que ele daacute o passo final e se apresenta diante de um

grande puacuteblico pela primeira vez Cabe salientar em concordacircncia com Lefebvre

que a progressatildeo instaurada por Taacutecito ndash a qual nos leva de um espetaacuteculo privado

perante um pequeno puacuteblico nos Juvenalia para um espetaacuteculo enorme perante

uma multidatildeo ndash objetiva demarcar um escacircndalo a degradaccedilatildeo neroniana que

expotildee uma paixatildeo artiacutestica indevida em vez de escondecirc-la semeando o caos Sua

atuaccedilatildeo portanto eacute lida pelo historiador como uma ofensa um perigo962

Ainda analisando o excerto Mordine ressalta outro ponto A apresentaccedilatildeo

puacuteblica neroniana embora lasciva fazia parte de um caacutelculo poliacutetico racional o

cultivo da plebe como contrapeso a uma elite senatorial cada vez mais hostil Na

verdade como princiacutepio geral as benfeitorias imperiais eram extensotildees do

funcionamento tradicional do sistema patrono-cliente pautado na estrutura social

de lealdade e dependecircncia Assim como os patronos forneciam comida e dinheiro

para seus dependentes tambeacutem os imperadores espalhavam sua generosidade para

todo o puacuteblico romano como se fossem todos seus clientes E Nero amava a

pompa proporcionando entretenimentos extravagantes para o povo e

compartilhando com ele seu prazer ndash a plebe a quem nossos antigos historiadores

de elite consideravam uma raleacute soacuterdida adoradora de comportamentos

permissivos963

Natildeo agrave toa Taacutecito afirma que ela sempre estava pronta para

acreditar no pior964

Antes de encerrarmos esse episoacutedio eacute imprescindiacutevel comentar que a ida

de Nero a Naacutepoles demonstra que um princeps mesmo sendo a maior autoridade

do Impeacuterio natildeo tinha liberdade de fazer o que quisesse ndash ou pelo menos natildeo

quando envolvia desafiar a honra da elite romana Caso a desafiasse as paacuteginas

contendo a sua histoacuteria seriam dominadas por retratos hostis965

Para sintetizar vemos que ateacute aqui Taacutecito delineia quatro contornos

negativos para o retrato do Nero artista i) Nero tinha ambiccedilotildees de tornar puacuteblico

961

FANTHAM 1994 p 83-85 962

LEFEBVRE 2017 p 116 963

MORDINE 2013 p 114-115 964

Tac Ann 15642 965

FANTHAM 1994 p 87-88

246

o seu lado artiacutestico ii) desde os primeiros jogos os membros das altas categorias

sociais apareceram com ele no palco ndash por obrigaccedilatildeo ou por vontade proacutepria

devido a uma provaacutevel recompensa iii) ele via suas atividades artiacutesticas em um

contexto grego e iv) sua paixatildeo inicialmente controlada aos poucos foi

adquirindo reacutedeas mais livres966 Esses contornos negativos satildeo produtos como

bem dissemos das insatisfaccedilotildees de um senador ou seja de um indiviacuteduo que se

utilizou das fontes agrave sua disposiccedilatildeo para erigir o estereoacutetipo retoacuterico de um mau

imperador Afinal o que ele apresenta na sua narrativa e como o faz dependem

diretamente dos seus propoacutesitos literaacuterios

Apoacutes Naacutepoles Taacutecito menciona que no final de 64 e no iniacutecio de 65

aconteceram dois grandes desastres na capital do Impeacuterio o incecircndio e a

construccedilatildeo da Domus Aurea967

Acerca do fogo o historiador anuncia natildeo saber se

foi acidental ou planejado por Nero pois suas fontes traziam ambas as versotildees

Contudo defende que foi a cataacutestrofe mais calamitosa jaacute vivida pelos habitantes

da Vrbs O fogo iniciado nas colinas do Palatino espalhou-se depressa indo das

planiacutecies ateacute os montes O pacircnico instalou-se na cidade e a populaccedilatildeo tentou

combater o fogo poreacutem algumas pessoas atrapalhavam os esforccedilos Estas assim o

fizeram porque segundo Taacutecito estavam sob ordens de Nero968

966

WINTERLING 2012 p 16 967

Eacute importante destacar que antes desse episoacutedio Taacutecito desenvolve uma sequecircncia narrativa

para fortalecer sua construccedilatildeo posterior da imagem negativa de Nero no incecircndio A narrativa

concerne ao torpe banquete ofertado por Tigelino e do casamento do princeps com Pitaacutegoras De

acordo com o historiador Nero ldquocontaminado por atos liacutecitos e iliacutecitos natildeo deixou nenhuma

enormidade inexplorada que pudesse aprofundar sua depravaccedilatildeo []rdquo ipse per licita atque

inlicita foedatus nihil flagitii reliquerat (Tac Ann 15374) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 356) 968

Tac Ann 15387

247

Na eacutepoca Nero estava em Acircncio e natildeo voltou para a cidade ateacute

que o fogo se aproximasse do preacutedio que ele havia feito construir para conectar o palaacutecio com os jardins de Mecenas [Domus Transitoria]969 Entretanto impedir que o fogo consumisse o palaacutecio e tudo na vizinhanccedila provou ser impossiacutevel Contudo para socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitiva Nero abriu o Campo de Marte os monumentos de

Agripa e ateacute seus proacuteprios jardins e ergueu edifiacutecios improvisados para abrigar as multidotildees desamparadas Suprimentos vitais foram enviados de Oacutestia e de municiacutepios vizinhos e o preccedilo dos gratildeos caiu [] Essas medidas [] se revelaram um fracasso terriacutevel pois se espalhou o boato de que no mesmo momento em que a cidade estava em chamas Nero subiu no seu palco privado e cantou sobre a destruiccedilatildeo de Troia

fazendo uma comparaccedilatildeo entre as tristezas do presente e os desastres do passado970

Como pudemos perceber logo no iniacutecio Taacutecito afirma suas incertezas

sobre o incecircndio declarando que suas fontes natildeo esclarecem se o desastre ocorreu

por acidente ou por um esquema de Nero Ele entatildeo ignora as incertezas e

prossegue com a descriccedilatildeo da violecircncia do fogo sem apontar para uma ou outra

direccedilatildeo Mas ele natildeo demora a escolher uma versatildeo dos fatos e faz sua primeira

insinuaccedilatildeo acerca da culpabilidade imperial ningueacutem ousou combater o incecircndio

porque alguns indiviacuteduos ameaccedilavam quem o fizesse dizendo que estavam sob

ordens971

A partir daiacute a narrativa muda de tom Taacutecito diz que o soberano

ausente de Roma soacute retornou quando ouviu que seu novo palaacutecio corria perigo

Trata-se de um comentaacuterio bastante ardiloso argumenta Barrett pois Taacutecito

apresenta os eventos de modo a criar a impressatildeo de que Nero era indiferente aos

sofrimentos dos cidadatildeos e soacute agiu quando seus interesses foram ameaccedilados ndash isto

eacute o motivo do retorno foi pessoal e egoiacutesta Barrett tambeacutem defende que Taacutecito

969

ldquo[] Durante os primeiros anos do seu Principado (entre 54 e 64) Nero supervisionou a construccedilatildeo da Domus Transitoria (Casa de Passagem) cujo nome refletia sua funccedilatildeo de unir as

possessotildees imperiais no Palatino com os Jardins de Mecenas no Esquilinordquo (COARELLI 2007 p

180) 970

Eo in tempore Nero Anti agens non ante in urbem regressus est quam domui eius qua

Palantium et Maecenatis hortos continuaverat ignis propinquaret neque tamen sisti potuit quin

et Palatium et domus et cuncta circum haurirentur sed solacium populo exturbato ac profugo

campum Martis ac monumenta Agrippae hortos quin etiam suos patefacit et subitaria aedificia

exstruxit quae multitudinem inopem acciperent subvectaque utensilia ab Ostia et propinquis

municipiis pretiumque frumenti minutum usque ad ternos nummos quae quamquam popularia in

inritum cadebant quia pervaserat rumor ipso tempore flagrantis urbis inisse eum domesticam

scaenam et cecinisse Troianum excidium praesentia mala vetustis cladibus adsimulantem (Tac

Ann 1539) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 357) 971

SCHULZ 2019 p 144

248

omite a explicaccedilatildeo mais oacutebvia pela demora no regresso a de que Nero

provavelmente deixou a resoluccedilatildeo da situaccedilatildeo para seus conselheiros voltando soacute

quando percebeu que o incecircndio era de fato grave972

Ao regressar viu que salvar

o seu palaacutecio era impossiacutevel o que natildeo o impediu de tomar medidas ldquopara

socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitivardquo973

Eacute intrigante que Taacutecito natildeo se

delongue nessas medidas positivas alegando que elas foram consideradas vatildes pela

populaccedilatildeo pois circulou o boato de que enquanto a cidade queimava Nero subiu

em seu palco privado e cantou a destruiccedilatildeo de Troia Na visatildeo de Barrett o

historiador inseriu tais boatos nesse ponto do texto com o intuito de fortalecer a

imagem negativa artiacutestica do princeps Lembremo-nos de que em 59 Nero

realizou performances para um puacuteblico restrito nos Juvenalia e em 64

apresentou-se pela primeira vez para um puacuteblico grande em Naacutepoles De acordo

com o autor ambas as apresentaccedilotildees sobretudo a uacuteltima foram as que deram

base para os boatos gerando especulaccedilotildees hostis a respeito do soberano974

Cabe

frisar que Taacutecito natildeo problematiza os boatos apenas os cita ndash atitude ratificadora

de uma afirmaccedilatildeo feita na introduccedilatildeo do capiacutetulo ele utilizava informaccedilotildees de

autores anteriores a ele para compor um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo

literaacuteria dominante Como certifica Woodman Taacutecito eacute retoacuterico e daacute um

tratamento literaacuterio a uma verdade factual para fins de dar vivacidade ao relato

natildeo pretendendo reconstituir uma verdade histoacuterica no sentido almejado por certas

abordagens modernas Isso significa que ele natildeo estava interessado em relatar o

que ldquorealmente aconteceurdquo mas o que ldquopoderia ter acontecidordquo975

Resumindo a

seu ver um imperador que jaacute tinha demonstrado interesses inapropriados em

coisas artiacutesticas obrigando os membros da elite a participarem dos espetaacuteculos e

invertendo a ordem social podia facilmente incendiar uma cidade e se apresentar

enquanto a via queimando

Taacutecito nos informa de que passados seis dias o fogo diminuiu poreacutem

natildeo tardou para ele voltar com toda intensidade nos lugares abertos da Vrbs a

972

BARRETT 2020 p 73 973

Gaia (2010 p 87-88) adiciona que o princeps diminuiu o peso dos aacuteureos (moedas de ouro) e

dos denaacuterios (moedas de prata) reduzindo o teortiacutetulo do metal precioso delas Depois de

Augusto Nero foi o uacutenico soberano a modificar o sistema monetaacuterio do Impeacuterio 974

BARRETT 2020 p 126 975

WOODMAN 1988 p 199

249

exemplo dos poacuterticos976

Daiacute emergiu um novo rumor popular o de que Nero

desejava erigir uma nova Roma dando-lhe o seu nome A esse rumor sucedeu

outro o soberano ordenou o incecircndio para adquirir terrenos para a construccedilatildeo da

sua Domus Aurea um novo palaacutecio que inspiraria

[] admiraccedilatildeo natildeo tanto com pedras preciosas e ouro [] mas com seus campos lagos e bosques [] O arquiteto e o engenheiro responsaacuteveis foram Severo e Ceacuteler que tiveram a genialidade e a audaacutecia de tentar imitar artificialmente a natureza e para tanto abusaram dos recursos do imperador []

Nero sempre buscou o incriacutevel Ele tentou cavar as alturas ao lado do Averno e os vestiacutegios de suas esperanccedilas fuacuteteis permanecem ateacute hoje []977

Vecirc-se que o complexo palaciano eacute figurado como a representaccedilatildeo da

ostentaccedilatildeo e do desperdiacutecio de dinheiro Conforme Beste e Hesberg natildeo haacute razatildeo

para acreditarmos que o imperador tenha induzido o incecircndio no afatilde de

desenvolver seu novo projeto pessoal Todavia independentemente de qualquer

coisa precisamos referenciar o enorme gasto de dinheiro puacuteblico dispendido na

situaccedilatildeo978

Taacutecito inclusive critica veementemente tal atitude falando que a

Itaacutelia foi devastada para aumentar os recursos de Nero e que templos foram

saqueados e proviacutencias foram arruinadas979

Ao inveacutes de seguir um caminho

moderado apoacutes um desastre que arruinou a cidade o princeps seguiu o da

dissipaccedilatildeo e o da extravagacircncia Segundo Kragelund esses excessos ndash que jaacute eram

considerados ruins pela elite romana na esfera privada ndash tornavam-se uma ameaccedila

na esfera puacuteblica gerando uma espiral cada vez mais viciosa de gastos e

976

Com o segundo incecircndio Taacutecito diz que dos 14 distritos em que Roma estava dividida quatro

permaneceram intactos trecircs foram totalmente destruiacutedos e sete ficaram em ruiacutenas (Tac Ann

15411) 977

Ceterum Nero usus est patriae ruinis exstruxitque domum in qua haud proinde gemmae et aurum miraculo essent solita pridem et luxu vulgata quam arva et stagna et in modum

solitudinem hinc silvae inde aperta spatia et prospetus magistris et machinatoribus Severo et

Celere quibus ingenium et audacia erat etiam quae natura denegavisset per artem temptare et

viribus principis inludere namque ab lacu Averno navigabilem fossam usque ad ostia Tibernia

depressuros promiserant squalenti litore aut per montes adversos neque enim aliud umidum

gignendis aquis occirrit quam Pomptinae paludes cetera abrupta aut arentia ac si perrumpi

possent intolerandus labor nec satis causae Nero tamen ut erat incredibilium cupitor effodere

proxima Averno iuga conisus est manentque vestigia inritae spei (Tac Ann 1542) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008

p 358) 978

BESTE HESBERG 2013 p 324 979

Tac Ann 15451 Pliacutenio o Velho alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras

detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a mando de Nero para

o confisco dos seus recursos (Plin Nat 187)

250

extorsotildees Ou seja quanto mais dinheiro Nero desembolsasse mais necessidade

sentiria de desembolsar E isso era muito perigoso980

Aleacutem de desaprovar o uso de recursos do Estado para a construccedilatildeo de algo

privado Taacutecito tambeacutem censura Nero por ter edificado a Domus Aurea sob ldquoas

ruiacutenas da paacutetriardquo981

Em outros termos ele o condena por ter usurpado

propriedades privadas e monumentos puacuteblicos para transformaacute-los no seu novo

complexo palaciano982

Essa criacutetica torna-se mais clara se voltarmos ao episoacutedio

da ascensatildeo quando o jovem no discurso inaugural do seu governo disse que os

negoacutecios da sua domus se manteriam independentes dos interesses da res

publica983

Seu projeto portanto contradiz claramente sua promessa anterior

Milnor explica que Taacutecito acreditava que a vida domeacutestica de um imperador

deveria ser separada da sua vida ciacutevica e militar Ele tambeacutem entendia que as

ldquoboas praacuteticas domeacutesticas virtuosasrdquo dos ancestrais romanos foram corrompidas

pela imoralidade trazida agrave esfera puacuteblica com o advento do Principado

Resumindo ele julgava que Nero ndash e outros soberanos ndash foi incapaz de manter

uma distinccedilatildeo adequada entre os negoacutecios puacuteblicos e os privados Natildeo eacute mera

coincidecircncia que nos Annales um dos escacircndalos do seu governo seja a Domus

Aurea O autor quis mostrar que Nero materializou um problema trazido haacute muito

pela dinastia Juacutelio-Claudiana a corrupccedilatildeo da sociedade fruto da ostentaccedilatildeo

realizada por liacutederes que davam agrave vida domeacutestica uma presenccedila exagerada no

palco puacuteblico984

Barrett chama a atenccedilatildeo para outro ponto importante na Roma imperial

os edifiacutecios grandiosos transmitiam uma mensagem ambiacutegua Eles podiam tanto

simbolizar excentricidade ou megalomania do governante quanto representar um

desejo altruiacutesta de fornecer amenidades para a populaccedilatildeo A primeira visatildeo jaacute foi

detectada na narrativa taciteana mas e a segunda O historiador trata pouco sobre

isso anunciando que o espaccedilo remanescente da cidade apoacutes a construccedilatildeo da

Domus Aurea foi ocupado por preacutedios e casas edificados de modo planejado e

regulado985

As novas medidas agradaram ao povo por sua praticidade e pelo

980

KRAGELUND 2000 p 497 981

Tac Ann 15421 982

WARDEN 1991 p 271 983

Tac Ann 1342 984

MILNOR 2012 p 465-473 985

Tac Ann 15431-4

251

embelezamento trazido agrave Vrbs986

No entanto Taacutecito salienta que algumas pessoas

julgaram a antiga configuraccedilatildeo mais saudaacutevel pois a estreiteza das ruas e a altura

dos edifiacutecios tornavam menos penetrantes os raios de sol e por conseguinte o

calor987

Percebe-se entatildeo que embora divulgue os feitos positivos do soberano

o historiador organiza seus argumentos de forma que o leitor fique com a

impressatildeo de que a conduta neroniana sempre foi ultrajante e repreensiacutevel Os

Annales nesse sentido formam um brilhante texto partidaacuterio deixando-nos com a

sensaccedilatildeo de que agraves coisas boas sempre sucediam a peacutessima iacutendole de Nero

Cuidadosamente o historiador posiciona os fatos juntamente com o uso astuto de

rumores criando um retrato cruel de Nero988

Nas palavras de Develin ldquoTaacutecito

acredita nos rumores quando eles se adequam agrave sua causardquo989

Em uacuteltima anaacutelise consideramos que Taacutecito se apropria de algumas ideias

contidas nas narrativas do passado para redigir sobre o incecircndio e a Domus Aurea

No caso do incecircndio reutiliza concepccedilotildees presentes nas obras de Pliacutenio o Velho

Estaacutecio e Pseudo-Secircneca Por exemplo ao descrever as enormes destruiccedilotildees

acarretadas agrave Vrbs embasa-se na Naturalis Historia e nas Siluae as quais nos

informam acerca da queima de aacutervores antigas e do fogo que alcanccedilou os montes

de Roma990

Por sua vez ao indicar o interesse particular de Nero no desastre

pauta-se na sugestatildeo trazida pela Octavia o incecircndio foi usado como ferramenta

pessoal para punir a populaccedilatildeo contraacuteria ao enlace com Popeia991

Por fim retira

das trecircs fontes a culpabilidade do princeps no evento pois todas satildeo muito claras

ao atribuiacuterem a transgressatildeo a Nero independentemente da causa Por oacutebvio a

tais visotildees adiciona as suas proacuteprias como as de que o imperador subiu no palco e

cantou a destruiccedilatildeo de Troia e de queimou Roma para erigir a Domus Aurea Dito

isso eacute possiacutevel entender sua composiccedilatildeo dos retratos do princeps ao Nero

incendiaacuterio do passado une o Nero incendiaacuterio do presente e ambos datildeo origem a

um novo Nero (incendiaacuterio) artista criado a partir da mescla das duas

temporalidades O que jaacute era familiar a todos no passado (o fato de Nero ter

ateado fogo em Roma) se junta ao que era conhecido por todos no presente (o

986

Essas accedilotildees natildeo apenas melhoraram Roma como tambeacutem forneceram o modelo para

planejamentos urbanos posteriores Cf BALLAND 1965 p 349-393 987

Tac Ann 15435 988

BARRETT 2020 p 127 989

DEVELIN 1983 p 78 990

Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 991

[Sen] Oct 825-844

252

amor de Nero pelo mundo artiacutestico) e as duas coisas em simultaneidade

estabelecem um novo retrato para o princeps

No tocante agrave Domus Aurea observamos a reutilizaccedilatildeo taciteana de noccedilotildees

existentes nos textos de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o Velho e Marcial Dos dois

primeiros autores aproveita a criacutetica agrave ostentaccedilatildeo de riqueza do complexo

palaciano De Pliacutenio em especiacutefico recupera a percepccedilatildeo dos abusos perpetrados

agrave natureza pelos romanos porquanto menciona que Nero para efetivar seu

projeto tentou cavar as alturas ao lado do Averno992

Ao seu turno de Marcial

restaura a ideia de usurpaccedilatildeo das propriedades privadas e puacuteblicas realizada para a

construccedilatildeo da Domus Aurea993

Destacamos que nos Annales todas essas

acusaccedilotildees formuladas no passado se mantecircm mas a elas foi adicionada uma

acusaccedilatildeo nova a de que o soberano incendiou Roma porque queria construir sua

casa Isso implica que o historiador usa o retrato do Nero construtor do passado

como um legado e ao mesmo tempo toma esse Nero como mateacuteria de uso pelo

presente mudando e transformando-o no Nero (construtor) incendiaacuterio passado e

presente constroem mutuamente o retrato do soberano por allelopoiesis

Apoacutes narrar sobre o grande incecircndio e insinuar que ele havia sido

provocado por Nero Taacutecito escreve

Para dissipar a fofoca Nero encontrou culpados aos quais infligiu as puniccedilotildees mais exoacuteticas Esses eram pessoas odiadas por suas ofensas vergonhosas a quem a populaccedilatildeo chamava de Cristatildeos [] No iniacutecio [] um grande nuacutemero foi considerado culpado ndash mais por serem inimigos da humanidade do que por

serem incendiaacuterios [] Eles morreram sendo despedaccedilados por catildees [] presos a cruzes e [] queimados [] Nero ofereceu seus jardins como palco para o show e tambeacutem organizou espetaacuteculos circenses misturando-se com a plebe em sua roupa de cocheiro ou de peacute em sua carruagem Dessa forma embora essas pessoas fossem culpadas e merecedoras da puniccedilatildeo exemplar a compaixatildeo para com elas comeccedilou a crescer porque perceberam que elas estavam sendo exterminadas natildeo para o

bem puacuteblico mas para agradar a crueldade de um homem994

992

[Sen] Oct 624-631 Plin Nat 3624 993

Mart Sp 21-10 994

ergo abolendo rumori Nero subdidit reos et quaesitissimis poenis adfecit quos per flagitia

invisos vulgus Chrestianos appellabat auctor nominis eius Christus Tibero imperitante per

procuratorem Pontium Pilatum supplicio adfectus erat repressaque in praesens exitiablilis

superstitio rursum erumpebat non modo per Iudaeam originem eius mali sed per urbem etiam

quo cuncta undique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque igitur primum correpti qui

fatebantur deinde indicio eorum multitudo ingens haud proinde in crimine incendii quam odio

humani generis convicti sunt et pereuntibus addita ludibria ut ferarum tergis contecti laniatu

canum interirent aut crucibus adfixi [aut flammandi atque] ubi defecisset dies in usu[m] nocturni

253

Alguns aspectos deste trecho nos chamam a atenccedilatildeo Em primeiro lugar

Silva e Rezende observam que Taacutecito acusa Nero de ter forjado culpados para o

incecircndio Ora uma posiccedilatildeo consensual na Historiografia moderna hoje eacute a de que

Roma agrave eacutepoca do desastre era uma cidade superpovoada com vaacuterias habitaccedilotildees

muitas de madeira amontoadas as quais constituiacuteam combustiacutevel para as chamas

Assim eacute bem provaacutevel que o fogo tenha comeccedilado acidentalmente995

Poreacutem a

culpa precisava recair em algueacutem pois como esclarece Taacutecito

nem a desenvoltura humana nem a generosidade do imperador

nem as oraccedilotildees e os sacrifiacutecios aos deuses dissipavam a crenccedila no boato difamatoacuterio de que uma ordem para o incecircndio havia sido dada996

Entatildeo a fim de se esquivar dos rumores crescentes Nero escolheu os

Cristatildeos jaacute malvistos pela populaccedilatildeo para serem o bode expiatoacuterio Mas por que

eram malvistos Sherwin-White e Veyne nos concedem duas razotildees i) a

obstinaccedilatildeo deles em natildeo cometerem apostasia e nem sacrificarem agraves divindades

greco-romanas postura vista como contestatoacuteria e ii) sua aversatildeo aos costumes

tradicionais como festas e espetaacuteculos997

Agraves duas razotildees Taacutecito adiciona uma

terceira eram ldquopessoas odiadas por suas ofensas vergonhosasrdquo Segundo

Hamman tais ofensas se relacionavam ao rito cristatildeo da celebraccedilatildeo eucariacutestica

tido pelos romanos como canibalismo998

Contudo De Boni defende que os trecircs

motivos natildeo justificam o despertar de uma animosidade tatildeo grande na populaccedilatildeo

da Vrbs Isso porque em 64 e 65 a comunidade cristatilde ainda era pequena e pouco

conhecida Ateacute mesmo a designaccedilatildeo ldquoCristatildeosrdquo ndash quando mencionada por Taacutecito

ndash parece deslocada dando a entender que no governo de Nero os seguidores de

Cristo ainda natildeo possuiacuteam uma alcunha especiacutefica999

luminis urerentur hortos suos ei spectaculo Nero obtulerat et circense ludicrum edebat habitu

aurigae permixtus plebi vel curriculo insistens unde quamquam adversus sontes et novissima

exempla meritos miseratio oriebatur tamquam non utilitate publica sed in saevitiam unius

absumerentur (Tac Ann 15442-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 359-360) 995

REZENDE SILVA 2011 p 165 996

Sed non ope humana non largitionibus principis aut deum placamentis decedebat infamia

quin iussum incendium crederetur (Tac Ann 15442) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 359) 997

SHERWIN-WHITE 1964 p 25 VEYNE 2009 p 245-246 998

HAMMAN 1997 p 94-95 999

DE BONI 2014 p 144-145

254

Por conseguinte Silva e Rezende sustentam que a antipatia taciteana para

com esse grupo religioso advinha de preocupaccedilotildees com o futuro de Roma cidade

onde a seu ver tudo estava se tornando ldquoabominaacutevelrdquo e ldquovergonhosordquo por conta

da adoccedilatildeo de costumes diversos dos tradicionais Taacutecito ao narrar as perseguiccedilotildees

perpetradas por Nero alega que ldquoum grande nuacutemero de pessoas foi acusadordquo1000

Tal afirmaccedilatildeo nos permite ver o poder de penetraccedilatildeo do cristianismo na cidade

ldquo[] jaacute que apenas cerca de trinta e cinco anos apoacutes a morte de Jesus a nova feacute

havia arrebanhado um grande nuacutemero de pessoas []rdquo1001

O curioso eacute que o historiador mesmo com aversatildeo aos Cristatildeos e julgando

serem merecedores de ldquopuniccedilatildeo exemplarrdquo condena o princeps pela violecircncia nos

castigos aplicados dizendo que esses foram efetivados natildeo para o bem puacuteblico e

sim para agradar a crueldade do soberano A crueldade parecia ser tatildeo grande que

ele chega a falar que Nero ldquoofereceu seus jardins como palco para o showrdquo e

ldquoorganizou espetaacuteculos circensesrdquo1002

Ou seja na sua visatildeo Nero natildeo soacute criou

culpados para livrar-se dos boatos como ainda os matou cruelmente e

transformou o crime num espetaacuteculo artiacutestico Percebe-se portanto que o

historiador une as informaccedilotildees para tornar a imagem de Nero pior do que ateacute

aquele ponto jaacute era Como bem resume Keresztes ao pintar os Cristatildeos como os

sujeitos mais abominaacuteveis da sociedade e ao retratar a puniccedilatildeo deles como algo

satisfatoacuterio para Nero Taacutecito cumpre seu dever de registrar o mal existente nos

homens e suas maacutes accedilotildees1003

Renan complementa o raciociacutenio sustentando que

Taacutecito para construir uma imagem monstruosa de Nero no poacutes-incecircndio elabora

uma histoacuteria atribuidora de carateriacutesticas muito particulares violecircncia

descaramento hipocrisia e crueldade Sua retoacuterica torna-se cada vez mais hostil a

Nero e sua lista de criteacuterios para o que formava um imperador muito cruel eacute

deliberadamente adaptada a Nero (Nero cruel) Taacutecito natildeo deixa espaccedilo para

duacutevidas Nero natildeo media esforccedilos para manter-se no poder e castigar aqueles que

ameaccedilavam sua autoridade1004

1000 Tac Ann 15444 1001

REZENDE SILVA 2011 p 168 1002

Tac Ann 15445 1003

KERESZTES 1984 p 408-409 1004

RENAN 1899 p 89 Para mais anaacutelises sobre a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos cf

CHEVITARESE 2016 p 161-173 MALIK 2020 p 79-126

255

Juntamente agrave perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tambeacutem no ano de 65 teve iniacutecio a

perseguiccedilatildeo aos que foram envolvidos na Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo Conforme Taacutecito

indiviacuteduos de vaacuterios estratos sociais (senadores equestres pretorianos e ateacute

mulheres) rapidamente aderiram a ela tanto por oacutedio a Nero quanto pela

popularidade de Pisatildeo homem virtuoso e de uma reputaccedilatildeo impecaacutevel1005

A

conspiraccedilatildeo comeccedilou devido aos desejos das pessoas de retirarem Nero do poder

cujas maldades eles acreditavam traziam decadecircncia para o Impeacuterio1006

Tais

pessoas comeccedilaram a dizer entre si que o Principado dele estava chegando ao

fim e que era preciso eleger algueacutem para socorrer o Estado enfermo1007

Ao

conquistarem o apoio de Fecircnio Rufo ndash prefeito da guarda pretoriana que

trabalhava para Nero ao lado de Tigelino ndash passaram a articular o lugar e o

momento em que assassinariam o imperador Decidiram mataacute-lo na vila de Pisatildeo

em Baiacuteas durante a celebraccedilatildeo da festa de Ceres1008

Segundo Taacutecito toda a trama

foi mantida em segredo por bastante tempo Mas na veacutespera do golpe o senador

Cevino um dos participantes apresentou atitudes suspeitas que fizeram com que

seu liberto Milicho procurasse Nero Frente a ele contou que Cevino o havia

mandado afiar uma adaga enferrujada tinha selado seu testamento e oferecido

presentes a seus escravos1009

Imediatamente o senador foi chamado a prestar

esclarecimentos e logo seguiram outros indiviacuteduos Natildeo tardou para Nero

descobrir a conjuraccedilatildeo prendendo pessoas por toda a cidade e mantendo os muros

escoltados por unidades militares

E assim colunas interminaacuteveis de prisioneiros algemados eram arrastadas para fora e deixadas esperando perto dos portotildees dos

jardins Entatildeo o simples fato de terem mostrado algum apoio aos conspiradores uma simples conversa ou o comparecimento no mesmo jantar ou espetaacuteculo eram motivos suficientes para inscrevecirc-los na lista de culpados []1010

1005

Tac Ann 15481-2 1006

Principais partidaacuterios Suacutebrio Flaacutevio (tribuno de uma coorte pretoriana ndash sem causa especiacutefica

atribuiacuteda por Taacutecito) Sulpiacutecio Aspro (centuriatildeo ndash sem causa especiacutefica) Plaacuteucio Laterano (cocircnsul

ndash patriotismo ardente) Lucano (poeta ndash Nero o proibiu de recitar seus versos em puacuteblico) Flaacutevio

Cevino (senador ndash sem causa especiacutefica) Afracircnio Quinciano (senador ndash vingar uma saacutetira

difamatoacuteria declamada por Nero) (Tac Ann 1549) 1007

Tac Ann 15501 1008

Tac Ann 15531 1009

Tac Ann 1554 1010

volitabantque per fora per domos rura quoque et proxima municipiorum pedites equitesque

permixti Germanis quibus fidebat princeps quasi externis continua hinc et vincta agmina trahi ac

foribus hortorum adiacere atque ubi dicendam ad causam introissent [non stud]ia tantum erga

coniuratos sed fortuitus sermo et subiti occursus si convivium si spectaculum simul inissent pro

256

Depois que a trama foi descoberta Pisatildeo se suicidou Os partidaacuterios

restantes foram perseguidos exilados eou instados a tambeacutem se suicidarem1011

A

nosso ver esse relato da conspiraccedilatildeo levanta trecircs questotildees importantes A

primeira delas ndash e a mais oacutebvia ndash eacute a construccedilatildeo de uma insatisfaccedilatildeo por Taacutecito

sobretudo dos altos estratos sociais com o governo de Nero Tal insatisfaccedilatildeo eacute

apresentada em diversos pontos da narrativa e de diversas maneiras Por exemplo

ele sugere que as pessoas julgavam Nero desonroso e queriam substituiacute-lo por

algueacutem virtuoso indica que todos viam suas maldades como criadoras de

decadecircncia moral e propotildee que o detestavam por ele ser matricida uxoricida

cocheiro histriatildeo e incendiaacuterio1012

Ateacute mesmo o prefeito da Guarda Pretoriana

sujeito que supostamente deveria apoiar as decisotildees de Nero eacute figurado como

insatisfeito Em suma a conspiraccedilatildeo eacute representada como a grande consequecircncia

das atitudes negativas do Nero princeps no decorrer do seu governo um

desencantamento geral seja pelo comportamento artiacutestico imperial inapropriado

seja pelos crimes ou pelo tratamento autoritaacuterio concedido agraves pessoas1013

A segunda questatildeo se relaciona agrave subordinaccedilatildeo da elite ao imperador

Taacutecito usa a conspiraccedilatildeo para explorar esse assunto em profundidade ndash natildeo agrave toa eacute

o episoacutedio mais longo dos Annales ocupando 27 capiacutetulos do livro 151014

Ao

analisar a estrutura da narrativa Woodman defende que o historiador fundiu o real

e o dramaacutetico dando agrave trama uma coerecircncia que ela natildeo possuiacutea Tal coerecircncia

sustenta-se pelas metaacuteforas da atuaccedilatildeo dispostas no texto sendo os conspiradores

apresentados como atores de um drama Por exemplo Cevino pede a Milicho que

afie sua adaga enferrujada e oferece presentes a seus escravos Em seguida o

liberto traiccediloeiramente conta esses feitos para Nero e o covarde Cevino se

justifica dizendo que a adaga era apenas uma reliacutequia da famiacutelia Taacutecito entatildeo

elogia a ldquofirmeza das palavras de Cevinordquo que teriam persuadido o princeps natildeo

fosse pela confissatildeo de Natalis outro conspirador1015

A partir daiacute o historiador

coloca os conspiradores como rivais cada qual tentando se defender ndash e

sobreviver ndash por meio de estrateacutegias e argumentos especiacuteficos Mas o que esse

crimine accipi [] (Tac Ann 15582-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 367-368) 1011

Tac Ann 15591-5 15601-4 611-4 621-2 631-3 641-4 65 661-2 671-4 681 1012

Tac Ann 15672-3 1013

SHOTTER 2008 p 120-122 1014

HURLEY 2013 p 37 1015

Tac Ann 15554-56 WOODMAN 1993 p 104-120

257

enredo todo significa Segundo Woodman que Taacutecito apresenta a vida puacuteblica

poliacutetica romana sob Nero como uma performance teatral Em outros termos ele

usa a metaacutefora teatral para revelar (e criticar) o mundo louco dos aplausos de Nero

e a submissatildeo resultante dele Ao se inspirar nas faccedilanhas artiacutesticas do princeps

ele constroacutei uma histoacuteria na qual os conspiradores viviam fora da realidade numa

trageacutedia grega Seu intento eacute desmascarar a existecircncia pateacutetica das pessoas sob o

comando de imperadores afinal todos sobretudo os membros da elite tinham

que viver uma vida teatral cotidiana assumindo papeacuteis diariamente1016

A terceira questatildeo repousa na censura agraves represaacutelias efetivadas por Nero

Taacutecito informa que existiam colunas interminaacuteveis de prisioneiros e que motivos

insignificantes eram suficientes para inscrever as pessoas na lista de culpados Ou

seja ele edifica a imagem de Nero cruel como um governante tiracircnico E vai

aleacutem constroacutei o retrato de um liacuteder paranoico que passa a suspeitar de todos

aqueles ao seu redor e a exterminar qualquer possiacutevel ameaccedila Silva e Rezende

explicam bem os propoacutesitos taciteanos devemos nos lembrar de que o historiador

possuiacutea ideais republicanos e que para ele os imperadores sempre buscavam se

manter no poder independentemente de qualquer valor moral o que a seu ver

era despreziacutevel Nero portanto natildeo estava fugindo agrave regra1017

Tambeacutem em 65 ocorreu a segunda ediccedilatildeo dos Neronia Taacutecito nos diz que

o Senado ofereceu ao imperador dois precircmios um de muacutesica e um de eloquecircncia

a fim de evitar uma performance de palco escandalosa

Nero poreacutem ficava dizendo que natildeo precisava da influecircncia ou da autoridade do Senado era tatildeo bom quanto seus concorrentes

e conquistaria os precircmios atraveacutes da decisatildeo imparcial dos juiacutezes Ele comeccedila recitando um poema no palco Em seguida a multidatildeo insiste para que ele ldquoexiba todo o seu repertoacuteriordquo [] e ele volta a entrar no teatro Desta vez ele segue todas as regras prescritas aos tocadores de lira [] Finalmente dobrando o joelho e com um aceno respeitoso para a multidatildeo ele aguarda o veredicto dos juiacutezes com ansiedade E a plebe da cidade [] troveja seu aplauso []1018

1016

WOODMAN 1993 p 104-120 1017

SILVA REZENDE 2011 p 166 1018

Interea senatus propinquo iam lustrali certamine ut dedecus averteret offert imperatori

victoriam cantus adicitque facundiae coronam qua ludicra deformitas velaretur sed Nero nihil

ambitu nec potestate senatus opus esse dictitans se aequum adversum aemulos et religione

indicum meritam laudem adsecuturum primo carmen in scaena recitat mox flagitante vulgo ut

omnia studia sua publicaret (haec enim verba dixere) ingreditur theatrum cunctis citharae

legibus obtemperans ne fessus resideret ne sudorem nisi ea quam indutui gerebat veste

258

Contudo Taacutecito alega que habitantes de cidades distantes ndash onde ainda se

conservava a velha moralidade ndash que estavam por acaso em Roma natildeo

conseguiram tolerar o espetaacuteculo e tambeacutem natildeo puderam dar os vergonhosos

aplausos1019

O relato do historiador evidencia a seriedade com a qual Nero no

final do seu governo tratava os assuntos artiacutesticos No excerto vecirc-se que o

princeps durante sua performance ldquosegue todas as regras prescritas aos tocadores

de lirardquo natildeo se sentou quando se cansou natildeo enxugou o suor com nada aleacutem da

roupa que trajava natildeo assoou o nariz saudou a assembleia e aguardou o veredicto

dos juiacutezes1020

Dito em outros termos ele tratou com absoluta seriedade sua

apresentaccedilatildeo puacuteblica fato que revela segundo Champlin o quanto ele de fato

amava as coisas artiacutesticas e acreditava em seu proacuteprio talento chegando a se ver

enquanto atuava como um general em campanha A segunda ediccedilatildeo dos Neronia

entatildeo marca o uacuteltimo passo na evoluccedilatildeo de Nero como artista ele agora eacute um

competidor profissional e puacuteblico1021

Contudo essa seriedade o fazia assumir

comportamentos tiracircnicos pois ao que Taacutecito sugere ele controlava a todos

durante suas exibiccedilotildees O historiador fala que os soldados espancavam aqueles

que natildeo aplaudiam com entusiasmo suficiente e que vaacuterios equestres morreram

esmagados por tentarem sair do teatro no meio da turba1022

Em siacutentese se ele

tinha tanta devoccedilatildeo agrave sua arte queria que os outros tambeacutem tivessem apreciando-

a do jeito que ele entendia ser o correto e o melhor Em outras palavras o amor

pela arte se faz tirania ao se impor ao conjunto da populaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise cabe afirmar que a visatildeo taciteana negativa sobre o

empenho do princeps nas artes demonstra aquilo que a elite romana natildeo estava

disposta a tolerar um liacuteder que competisse ou exercesse pressatildeo nos nobres para

participarem de espetaacuteculos puacuteblicos Nero rompeu com o esperado tornando-se

um competidor nos teatros Essa sua atitude demonstra vigorosamente por que os

tradicionalistas o odiavam Eles o enxergavam como o liacuteder que violou a res

publica diminuindo o prestiacutegio imperial e o da aristocracia e aumentando em

detergeret ut nulla oris aut narium excrementa viserentur postremo flexus genu et coetum illum

manu veneratus sententias indicum opperiebatur ficto pavore et plebs quidem urbis histrionum

quoque gestus iuvare solita personabat certis modis plausuque composito crederes laetari ac

fortasse laetabantur per incuriam publici flagitii (Tac Ann 1642-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs

eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 378) 1019

Tac Ann 1651 1020

Tac Ann 1644 1021

CHAMPLIN 2005 p 51-75 1022

Tac Ann 1652-3

259

contrapartida o dos atores Eles achavam que tinham perdido poder e influecircncia

sob o seu governo Para Mouratidis pode ateacute ser que tenham perdido mesmo mas

natildeo devemos nos esquecer de que Nero tambeacutem saiu perdendo afinal os

historiadores romanos posteriores tentaram arduamente tornaacute-lo o imperador mais

infame de todos os tempos ndash e conseguiram Em consequecircncia ele depois de

mais de 20 seacuteculos tem sua imagem para a humanidade quase que integralmente

negativa e ligada a sua incapacidade de se afirmar simultaneamente como artista e

governante Eacute sob tal pano de fundo que devemos compreender o Nero artista1023

Apoacutes o teacutermino da segunda ediccedilatildeo dos Neronia ainda em 65 Taacutecito

noticia que Popeia foi assassinada

[] viacutetima de uma explosatildeo fortuita de raiva do seu marido de quem recebeu um chute durante a gravidez1024 Embora algumas autoridades registrem isso ndash mais por animosidade do que por crenccedila ndash eu natildeo daria creacutedito a histoacuteria de envenenamento Nero queria filhos e tinha uma enorme paixatildeo pela esposa Seu corpo

natildeo foi cremado segundo a praacutetica romana usual Foi embalsamado agrave moda da realeza estrangeira sendo preenchido com especiarias aromaacuteticas e entatildeo levado para o Mausoleacuteu dos Juacutelios Houve no entanto um funeral oficial e o proacuteprio Nero na rostra elogiou Popeia por sua beleza []1025

Taacutecito eacute muito categoacuterico ao afirmar que Nero chutou Popeia e ao rejeitar

os boatos de envenenamento Contudo o proacuteprio autor nos diz que o soberano a

amava muito e desejava ter filhos Natildeo haacute razatildeo tambeacutem para duvidarmos de que

o luto imperial foi intenso sobretudo se olharmos o funeral extravagante

concedido a ela1026

Seu corpo foi embalsamado ao inveacutes de cremado e colocado

intacto no Mausoleacuteu de Augusto no Campo de Marte tratamento bem destoante

do concedido ao corpo de Agripina por exemplo O ritual exoacutetico remetia agrave

realeza heleniacutestica As praacuteticas religiosas estrangeiras parecem ter ofendido os

1023

MOURATIDIS 1985 p 89-90 1024

Taacutecito fala que Popeia e Nero tiveram em 63 uma filha cujo nome era Claacuteudia Augusta mas

ela morreu com quatro meses (Tac Ann 15231-3) Em 65 ela estava graacutevida novamente 1025

Post finem ludicri Poppaea mortem obiit fortuita mariti iracundia a quo gravida ictu calcis

adflicta est neque enim venenum crediderim quamvis quidam scriptores tradant odio magis quam

ex fide quippe liberorum copiens et amori uxoris obnoxius erat corpus non igni abolitum ut

Romanus mos sed regum externorum consuetudine differtum odoribus conditur tumuloque

Iuliormn infertur ductae tamen publicae exequiae laudavitque ipse apud rostra formam eius et

quod divinae infantis parens fuisset aliaque fortunae munera pro virtutibus (Tac Ann 166) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 379) 1026

GRIFFIN 2001 p 269

260

tradicionalistas romanos pois Nero outra vez prioriza a cultura grega em

detrimento da romana1027

Eacute curioso que o historiador tenha comentado tanto

sobre a personalidade nociva de Popeia e tatildeo pouco sobre seus uacuteltimos momentos

Ateacute mesmo na morte dela ele cita a alegria sentida por aqueles que a viam como

promiacutescua e cruel1028

Nesse sentido concordamos com Wood quando alega que

Taacutecito omitiu informaccedilotildees para propositalmente construir o retrato do Nero

uxoricida e do Nero cruel mantendo o padratildeo negativo da sua narrativa1029

Segundo Champlin o autor quis tornar a histoacuteria mais interessante mas acabou

legando algo ldquobom demais para ser verdaderdquo1030

Ademais tal relato de explosatildeo

de brutalidade contra uma esposa graacutevida natildeo eacute o primeiro da histoacuteria da tirania

sustenta Lefebvre De Heroacutedoto aprendemos que o rei persa Cambises tomado de

fuacuteria atingiu sua esposa graacutevida no estocircmago a qual deu agrave luz um bebecirc prematuro

e faleceu A narrativa da morte de Popeia transmitida a noacutes por Taacutecito portanto

parece ser um evento emprestado do repertoacuterio de crimes tradicionalmente

atribuiacutedos a deacutespotas e um meio de equiparar Nero a um tiacutepico tirano1031

Como sabemos ela natildeo foi a primeira viacutetima feminina de Nero Com

Agripina e Otaacutevia jaacute mortas o assassinato de Popeia para Beacutedoyegravere deixou o

princeps exposto Ao eliminar essas mulheres Nero estava aniquilando qualquer

chance de sua dinastia sobreviver a ele Ele evidentemente falhou em observar que

a uacutenica razatildeo pela qual havia uma dinastia era uma notaacutevel sucessatildeo de mulheres

que forneceram as uacutenicas linhas de descendecircncia duraacuteveis1032

A morte de Popeia lamentavelmente eacute o uacuteltimo episoacutedio da vida de Nero

narrado por Taacutecito Devido agrave perda dos livros finais dos Annales no processo de

transmissatildeo natildeo temos acesso aos restantes como o casamento com Messalina a

visita de Tiridates a Roma a turnecirc pela Greacutecia a revolta de Vindex e o suiciacutedio A

ausecircncia dos livros finais contudo natildeo nos impossibilita de perceber que para o

historiador em geral o governo neroniano comeccedilou bem e terminou mal No

iniacutecio o aconselhamento de Secircneca e Burro trouxe um momento de bem-estar

1027

Pliacutenio o Velho afirma que mais especiarias foram queimadas no funeral de Popeia do que a

Araacutebia produzira em um ano (Plin Nat 1241) 1028

Tac Ann 1671 1029

WOOD 2000 p 8-9 1030

CHAMPLIN 2005 p 111 1031

LEFEBVRE 2017 p 185 Uma boa discussatildeo sobre o destino de Popeia eacute realizada por

HOLZTRATTNER 1995 1032

BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 265

261

social para o Impeacuterio com um Principado aos moldes augustanos Houve

melhorias na gestatildeo do tesouro na ordem puacuteblica uma deferecircncia em relaccedilatildeo ao

Senado e uma promessa de separaccedilatildeo entre os interesses da res publica e os

pessoais Esse bom momento refletiu-se inclusive na resoluccedilatildeo do primeiro

conflito externo com os partas o qual embora natildeo tenha contado com a presenccedila

de Nero nos campos de batalha foi um grande sucesso Conforme Taacutecito a

situaccedilatildeo desandou com o assassinato de Britacircnico que expocircs os desejos

exagerados de Agripina de dominar o filho Descontente com o controle materno

e com suas ameaccedilas o princeps eliminou o irmatildeo e mais tarde a matildee a fim de se

emancipar daqueles que o impediam de ser livre Com o matriciacutedio em 59 a

influecircncia negativa de Agripina se esvaiu mas com ela tambeacutem se dissiparam as

influecircncias positivas de Secircneca e Burro sobretudo quando este uacuteltimo faleceu e o

filoacutesofo solicitou afastamento A partir daiacute ascenderam Tigelino e Popeia que

passaram a encorajar os piores viacutecios no soberano Eacute sob o vieacutes da influecircncia de

ambos que Taacutecito desenha o Nero antiprinceps cujos traccedilos foram o artiacutestico o

uxoricida o incendiaacuterio e o cruel Em suma o historiador nos mostra que Nero ao

ver seu caminho livre de controle afasta-se das linhas tradicionais delineadas por

Augusto direcionando-se para o caminho dos prazeres opccedilotildees que despertaram

insatisfaccedilotildees na elite romana nessa visatildeo geral apontada por Taacutecito

Cabe lembrar que ao compor seus retratos imperiais negativos Taacutecito

segue a ideia do caraacuteter exemplar da historia magistra uitae Em outros termos

adota a concepccedilatildeo da utilidade da Histoacuteria a qual deveria instruir por meio do

fornecimento de exemplos baseados na narrativa de acontecimentos em situaccedilotildees

e em descriccedilotildees de personagens Nos Annales Taacutecito retoma diversos exemplos

ceacutelebres do passado no intuito de exaltar as virtudes e criticar os viacutecios dos

cidadatildeos numa tentativa de transmitir uma doutrina moral de preservaccedilatildeo da

sociedade Sob essa perspectiva descreve a seus leitores as condutas malignas e

prejudiciais de um personagem histoacuterico (Nero) e de seus contemporacircneos

esperando que seu puacuteblico adote condutas contraacuterias inseridas na esfera da

virtude1033

O historiador acredita que o imperador deveria ser o primeiro entre os

melhores o chefe leal ao Senado e o comandante firme dos exeacutercitos O princeps

deveria ter um comportamento exemplar melhor do que o de todos os demais

1033

JOLY 2001 p 39

262

indiviacuteduos da sociedade romana E para ele Nero passou longe disso Ao

construir exempla em torno da dissoluccedilatildeo crescente aprofundada por um

Imperador que se tornou progressivamente pior do que a realidade que o cerca

Taacutecito nos mostra como o princeps foi i) um modelo de governante fraco pois

foi controlado por mulheres e libertos ii) um modelo de governante cruel uma

vez que cometeu vaacuterios assassinatos fugindo dos preceitos clementes

senequianos iii) um modelo de governante covarde e preguiccediloso haja vista que

natildeo resolveu os compromissos militares pessoalmente mas os designou a outros

e iv) um modelo de governante infame dado que se dedicou em excesso a

atividades e eventos artiacutesticos Em siacutentese Nero eacute um modelo de mau governante

e todas as boas accedilotildees e iniciativas que tomou se perdem como ele com o tempo

tanto com o passar de seu governo quanto com as geraccedilotildees que se lembram dele

mais por seus viacutecios dominantes no final e ocultos no iniacutecio

Eacute imprescindiacutevel observarmos como tal concepccedilatildeo se difere dos retratos

neronianos dos capiacutetulos anteriores e como haacute uma consolidaccedilatildeo da imagem

negativa Por exemplo no capiacutetulo 2 o das fontes contemporacircneas ao soberano

todos os autores foram unacircnimes em relatar a ascensatildeo prodigiosa de Nero

representando-o como um jovem com um Principado deveras promissor Nesse

momento natildeo houve criacuteticas agrave pessoa do governante ou ao seu reinado Por sua

vez no capiacutetulo 3 o das fontes flavianas o Nero extremamente positivo deu lugar

a um Nero fortemente negativo deixando de ser soacute prodigioso para se tornar

tambeacutem infausto matricida fratricida uxoricida tirano incendiaacuterio e cruel E

aqui nos Annales os negativos continuaram sendo majoritaacuterios mas os motivos e

as accedilotildees do imperador tornaram-se mais detalhados com a inclusatildeo de elementos

que ainda natildeo haviam surgido Eacute curioso ainda que para Taacutecito o retrato do Nero

prodigioso se manteve por algum tempo poreacutem soacute se sustentou enquanto o

princeps teve bons conselheiros e foi controlado Isso significa que o Nero

negativo estaacute se tornando cada vez mais complexo restando do positivo soacute um

resquiacutecio pequenino

Para encerrar natildeo podemos nos esquecer de que a constituiccedilatildeo desses

novos retratos do princeps teve relaccedilatildeo direta com a concepccedilatildeo moralista da

histoacuteria de Taacutecito De acordo com Marques e Joly o historiador acreditava em um

263

processo gradual de deterioraccedilatildeo moral do Principado1034

Herdeiro dos

pressupostos gregos de escrita da Histoacuteria ele tinha uma preocupaccedilatildeo com o

desenvolvimento do Estado romano focado na comparaccedilatildeo dos valores morais do

presente com as virtudes idealizadas do passado Nesse acircmbito elabora os

Annales a partir de uma estrutura narrativa que constroacutei uma progressiva

decadecircncia poliacutetica e moral do Principado indo de Augusto o melhor dos

soberanos a Nero o pior deles ldquoNero seria o ponto maacuteximo da degradaccedilatildeo dos

imperadores Juacutelios-Claacuteudiordquo1035

Portanto haacute uma caracterizaccedilatildeo dos personagens

como uma forma de evidenciar uma determinada sucessatildeo decadente Por

exemplo o esquema Tibeacuterio-Claacuteudio-Nero traz claros indiacutecios da evoluccedilatildeo

degradante do Principado para Taacutecito ldquoTibeacuterio eacute cruel poreacutem ainda eficiente

Claacuteudio natildeo eacute essencialmente cruel [] mas eacute inepto jaacute Nero natildeo soacute eacute cruel

como tambeacutem eacute incapaz de governar absorto em sua devassidatildeordquo1036

Em conclusatildeo nos Annales tivemos as seguintes categorias i) Nero

infausto (nascimento de Nero e casamento com Otaacutevia) ii) Nero prodigioso

(ascensatildeo) iii) Nero fratricida (assassinato de Britacircnico) iv) Nero artista (jogos

no anfiteatro assassinato de Agripina Juvenalia primeira ediccedilatildeo dos Neronia

Naacutepoles incecircndio de Roma e segunda ediccedilatildeo dos Neronia) v) Nero matricida

(nascimento de Nero e assassinato de Agripina) vi) Nero antiprinceps (ascensatildeo

conflito com os partas jogos no anfiteatro Juvenalia conflito na Britacircnia

casamento com Popeia divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia e conspiraccedilatildeo de

Pisatildeo) vii) Nero cruel (assassinato de Britacircnico casamento com Popeia divoacutercio

exiacutelio e assassinato de Otaacutevia perseguiccedilatildeo aos Cristatildeos conspiraccedilatildeo de Pisatildeo e

assassinato de Popeia) viii) Nero tirano (assassinato de Britacircnico) ix) Nero

incendiaacuterio (incecircndio de Roma e construccedilatildeo da Domus Aurea) x) Nero

construtor (construccedilatildeo da Domus Aurea) e xi) Nero uxoricida (assassinato de

Otaacutevia e assassinato de Popeia) Cabe-nos agora analisar as representaccedilotildees de

Nero construiacutedas por Suetocircnio

1034

Vaacuterios historiadores antigos tambeacutem tinham essa visatildeo pessimista a exemplo de Saluacutestio

grande influecircncia de Taacutecito Cf OAKLEY p 195-211 1035

MARQUES 2010 p 54 1036

JOLY 2004 p 112-123

264

Suetocircnio De Vita Caesarum

Sabemos um pouco mais sobre Caio Suetocircnio Tranquilo do que sobre

Taacutecito1037

Algumas cartas de Pliacutenio o Jovem e certos escritos do proacuteprio

Suetocircnio nos trazem informaccedilotildees concisas da sua vida1038

Ele nasceu por volta do

ano 70 na cidade de Hippo Reacutegio no norte da Aacutefrica em uma rica famiacutelia

equestre1039

Seu pai Suetocircnio Laeto serviu como tribuno militar ao lado do

imperador Otatildeo na 13a legiatildeo durante os conflitos civis de 69 nos quais

testemunhou a derrota desse soberano A decepccedilatildeo paterna com as guerras fez

Suetocircnio desinteressar-se pelo ofiacutecio militar e se dedicar aos estudos da gramaacutetica

e da retoacuterica em Roma1040

Ao finalizar os estudos assumiu trecircs postos de

prestiacutegio no serviccedilo imperial a studiis a bibliotechis e ab epistulis1041

O

primeiro lhe foi concedido pelo imperador Trajano (98-117) por volta de 114 e

1151042

e lhe gerou trecircs possiacuteveis funccedilotildees i) pesquisar fatos que dessem a Trajano

um embasamento para tomar decisotildees juriacutedicas ii) selecionar dentre todas as

obras redigidas e dedicadas ao soberano as que realmente lhe interessassem e iii)

elaborar os discursos proferidos pelo princeps1043

O segundo posto tambeacutem lhe

foi conferido por Trajano em 116 ou 117 e se assemelhava ao que entendemos

hoje por um bibliotecaacuterio1044

Para celebrar sua conquista da Daacutecia em 107 o

imperador construiu um novo foacuterum flanqueado por duas bibliotecas (bibliothecae

Ulpiae) cujos arquivos ficaram ao encargo de Suetocircnio O uacuteltimo posto ab

epistulis foi-lhe oferecido por Adriano (117-138) entre 119 e 1221045

Aiacute ficaram

sob sua responsabilidade a redaccedilatildeo de cartas em nome do princeps aos

governadores provinciais a administraccedilatildeo das correspondecircncias militares e o

recolhimento e a organizaccedilatildeo das informaccedilotildees do Impeacuterio a serem transmitidas a

1037

ESTEVES 2015 p 1 1038

Em 1950 foram realizadas escavaccedilotildees na antiga cidade de Hippo Reacutegio atual Argeacutelia Na

ocasiatildeo foi encontrada uma inscriccedilatildeo em maacutermore com todas as magistraturas ocupadas por

Suetocircnio Cf MAREC PFLAUM 1952 p 76-85 1039

ROLFE 1913 p 210 1040

Suet Otho 10 WALLACE-HADRILL 1995 p 3-5 1041

Suetocircnio sempre contou com os favores de Pliacutenio o Jovem Por exemplo ele intermediou a

compra de uma propriedade para Suetocircnio e pediu a Trajano que estendesse o ius trium liberorum

do bioacutegrafo (Plin Ep 124 1094) 1042

TOWNEND 1961 p 103 1043

DACK 1963 p 177-184 MILLAR 1977 p 205 1044

TOWNEND 1961 p 103 1045

BENNETT 2005 p 158 LINDSAY 1994 p 459

265

Adriano1046

Segundo a Historia Augusta Suetocircnio foi demitido dessa uacuteltima

posiccedilatildeo por manter ldquorelaccedilotildees informaisrdquo com Sabina esposa de Adriano1047

Apesar da desonra Edwards afirma que devemos reconhecer a ldquodistinccedilatildeo

literaacuteriardquo do bioacutegrafo pois ele assumiu trecircs postos influentes e importantes

politicamente1048

Apoacutes a demissatildeo natildeo temos mais notiacutecias de Suetocircnio nem em

obras posteriores nem em suas proacuteprias Ateacute mesmo a data da sua morte eacute

desconhecida1049

Foram esses postos que forneceram a Suetocircnio o grosso das informaccedilotildees

necessaacuterias para a composiccedilatildeo do De Vita Caesarum e que o diferenciavam de

outros autores contemporacircneos os quais natildeo tiveram o mesmo acesso a toda essa

documentaccedilatildeo com a qual ele trabalhou no seu dia a dia1050

A obra escrita entre

119 e 122 traz diversos relatos que versam sobre vida dos imperadores e que satildeo

organizados em oito livros de forma temaacutetica1051

A opccedilatildeo por tal abordagem eacute

justificada pelo proacuteprio Suetocircnio que defende que soacute assim o leitor perceberia e

avaliaria os relatos claramente1052

Os seis primeiros livros englobam de Juacutelio

Ceacutesar a Nero sendo cada um destinado a um liacuteder O seacutetimo aborda os trecircs

imperadores de 68-69 (Galba Otatildeo e Viteacutelio) e o oitavo engloba os trecircs Flavianos

(Vespasiano Tito e Domiciano) Em geral os relatos comeccedilam com uma

descriccedilatildeo da famiacutelia e do nascimento do princeps passam para a exposiccedilatildeo do seu

cursus honorum da sua ascensatildeo e do seu governo comentam sobre os seus

aspectos fiacutesicos e comportamentais e terminam com a sua morte1053

O texto do

De Vita Caesarum felizmente foi preservado praticamente em sua totalidade o

que natildeo aconteceu com outras obras de Suetocircnio Apenas parte do De Viris

Illustribus (Sobre Homens Ilustres) foi conservada e outros trabalhos como

tratados sobre festivais romanos e biografias sobre cortesatildes famosas foram

perdidos por completo1054

Cabe comentar ainda que o De Vita Caesarum estaacute inserido no gecircnero

biograacutefico estilo literaacuterio complexo e difiacutecil de definir Essa dificuldade jaacute vem

1046

CROOK 1956-1957 p 18-22 1047

VH 113 1048

EDWARDS 2000 p viii 1049

Sobre a vida de Suetocircnio cf BALDWIN 1975 p 61-70 1050

OSGOOD 2020 p viii 1051

Sobre a dataccedilatildeo do De Vita Caesarum cf GOacuteES 2015 p 24-31 1052

Suet Aug 9 1053

RIVES 2007 p 15-16 HURLEY 2001 p 4-5 1054

EDWARDS 2000 p ix

266

desde os autores claacutessicos e segue com os comentadores modernos que natildeo

entram em consenso sobre determinados aspectos do gecircnero Inicialmente

vejamos o que disseram os claacutessicos Entre os textos antigos que abordaram o

vocaacutebulo biografia o de Plutarco eacute um dos que nos trazem a melhor definiccedilatildeo

Este menciona

Estou escrevendo neste livro as vidas do rei Alexandre e de Ceacutesar [] e a multidatildeo das accedilotildees a serem narradas eacute tatildeo grande que natildeo diremos nada como prefaacutecio [] caso eu natildeo conte todas as accedilotildees famosas desses homens [] peccedilo ao leitor que

natildeo reclame Natildeo estou escrevendo histoacuterias mas vidas e nos feitos mais ilustres nem sempre haacute uma manifestaccedilatildeo de virtude ou viacutecio pois uma coisa ligeira como uma frase ou uma brincadeira muitas vezes faz uma revelaccedilatildeo maior do caraacuteter do que batalhas [] [] Assim como os pintores obtecircm as semelhanccedilas em seus retratos a partir do rosto e da expressatildeo dos olhos [] mas datildeo pouca importacircncia agraves outras partes do

corpo entatildeo se deve permitir que eu dedique-me mais aos sinais da alma dos homens e por meio deles retrate a vida de cada um deixando a outros a descriccedilatildeo de suas grandes lutas1055

Plutarco diz a seu leitor que pretende discutir sobretudo os viacutecios e as

virtudes dos seus biografados (Alexandre e Ceacutesar) Por causa disso alega que natildeo

comentaraacute sobre as batalhas e os demais eventos histoacutericos nos quais as

personagens estiveram envolvidas Isso cabia aos historiadores e natildeo a ele um

bioacutegrafo afinal estava escrevendo vidas natildeo histoacuterias Por estar interessado no

caraacuteter do biografado preocupou-se com fatos aparentemente insignificantes mas

que a seu ver satildeo importantes para revelar o perfil do indiviacuteduo Assim um

ponto se torna evidente aqui a separaccedilatildeo entre biografia (ldquonarrar uma vidardquo ou

ldquoexpor um caraacuteterrdquo) e histoacuteria (ldquoexplicar accedilotildeesrdquo) Mas o que isso significa Que

os dois gecircneros embora sejam epidiacuteticos satildeo distintos estando a biografia

centrada na narrativa do caraacuteter e a histoacuteria no relato das accedilotildees Para Costrino haacute

um ponto evidente aqui a biografia estaacute vinculada ao gecircnero epidiacutetico da retoacuterica

1055

τὸν Ἀλεξάνδρου τοῦ βασιλέως βίον καὶ τοῦ Καίσαρος ὑφ᾽ οὗ κατελύθη Πομπήϊος ἐν τούτῳ τῷ

βιβλίῳ γράφοντες διὰ τὸ πλῆθος τῶν ὑποκειμένων πράξεων οὐδὲν ἄλλο προεροῦμεν ἢ

παραιτησόμεθα τοὺς ἀναγινώσκοντας ἐὰν μὴ πάντα μηδὲ καθ᾽ ἕκαστον ἐξειργασμένως τι τῶν

περιβοήτων ἀπαγγέλλωμεν ἀλλὰ ἐπιτέμνοντες τὰ πλεῖστα μὴ συκοφαντεῖν οὔτε γὰρ ἱστορίας

γράφομεν ἀλλὰ βίους οὔτε ταῖς ἐπιφανεστάταις πράξεσι πάντως ἔνεστι δήλωσις ἀρετῆς ἢ κακίας

ἀλλὰ πρᾶγμα βραχὺ πολλάκις καὶ ῥῆμα καὶ παιδιά τις ἔμφασιν ἤθους ἐποίησε μᾶλλον ἢ μάχαι

μυριόνεκροι καὶ παρατάξεις αἱ μέγισται καὶ πολιορκίαι πόλεων [] (Plut Alex 1) A traduccedilatildeo para

o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Perrin (1919 p 225)

267

no sentido de que ela eacute apontada como um discurso feito para demonstrar os

viacutecios e as virtudes do biografado1056

Outra questatildeo relevante para noacutes nessa apresentaccedilatildeo da biografia por

Plutarco eacute a sua aproximaccedilatildeo com a pintura Ele deixa claro que natildeo trataraacute de

todos os elementos relativos agraves vidas dos biografados mas faraacute uma seleccedilatildeo que

permita uma composiccedilatildeo com o objetivo de estabelecer mais claramente o seu

caraacuteter Com esse propoacutesito procede agrave inuentio e seleciona dentre alguns dos

muitos elementos de um repertoacuterio amplo e jaacute conhecido aqueles que serviriam

para compor o que chamamos de retrato composiccedilatildeo feita pelo autor para um fim

determinado Aqui provavelmente o leitor vai lembrar da ceacutelebre locuccedilatildeo

horaciana ldquocomo a pintura eacute a poesia []rdquo1057

Vale ressaltar contudo que a

expressatildeo de Horaacutecio estaacute associada ao papel fundamental do observador da

narrativa ao contraacuterio do que Plutarco sugere O que Horaacutecio quer dizer eacute que a

mesma poesia poderaacute agradar ou natildeo conforme o acircngulo de observaccedilatildeo do

leitorouvinte A leitura dos versos 361-362 de Horaacutecio deixa essa distinccedilatildeo com o

seu uso vulgar bem clara A preocupaccedilatildeo aqui se move da composiccedilatildeo para a

observaccedilatildeo para a criacutetica Os autores sabiam que as suas obras seriam avaliadas

como pinturas tanto de perto quanto de longe e isso afetaria o efeito que teriam

Daiacute adveacutem o esforccedilo por orientar o olhar do leitorouvinte e tentar obter uma

avaliaccedilatildeo favoraacutevel da posteridade que era fundamental para o destino que teriam

essas obras (como no sentido bem expresso por Tuciacutedides em sua ceacutelebre foacutermula

κτῆμα ἐς αἰεί ndash ldquouma aquisiccedilatildeo para semprerdquo) As biografias deveriam revelar

algo que natildeo fosse obscuro mas que dissesse respeito ao homem de diversas

temporalidades portanto para aleacutem de um tempo especiacutefico (de origem de escrita

e ateacute mesmo de leituraescuta) Caso agradassem a uma soacute possibilidade de ver ou

a de distacircncia perder-se-iam Esse ponto eacute dado quando Horaacutecio afirma ldquoesta [a

poesia] quer ser vista na obscuridade e aquela [a pintura] agrave viva luz por natildeo

recear o olhar penetrante dos seus criacuteticos esta soacute uma vez agradou aquela 10

vezes vista sempre agradaraacuterdquo1058

Como temos insistido e os antigos jaacute

1056

COSTRINO 2014 p 259-260 1057

Vt pictura poesis erit quae si proprius stes te capiat magis et uqaedam si longius abstes

(Hor Ars P 361) Traduccedilatildeo de Fernandes (2012 p 151) 1058

Haec amat obscurum uolet haec sub luce uideri iuducus argutum quae non formidat

acumen haec placuit semel haec deciens repetita placebit (Hor Ars P 363-365) Traduccedilatildeo de

Fernandes (2012 p 151)

268

apontavam para isso a escrita das obras e os puacuteblicos a que se voltavam natildeo

podem ser entendidos como uma categoria geneacuterica e uniforme de ldquofontes

antigasrdquo (como se fossem todas contemporacircneas) tampouco o puacuteblico pode ser

visto de forma simples e uniforme Essa combinaccedilatildeo e integraccedilatildeo de

temporalidades e olhares que constroem os retratos podem ser melhor entendidas

como viemos defendendo em nossa Tese pelo conceito de allelopoiesis

Dito isso passemos aos debates modernos Rolfe argumenta que o texto

suetoniano natildeo eacute nem uma biografia nem uma histoacuteria Natildeo eacute biografia porque a

concepccedilatildeo de biografia como a entendemos hoje ndash construccedilatildeo do retrato fiel de

um indiviacuteduo ao longo da sua vida ndash natildeo existia na Antiguidade1059

E natildeo eacute

histoacuteria porque os grandes acontecimentos satildeo descartados e a cronologia dos

fatos eacute negligenciada exceto para as datas de nascimento e de morte dos

imperadores Por isso Rolfe sustenta que devemos ler Suetocircnio dentro das suas

particularidades quais sejam as de um escritor com acesso a vaacuterios documentos

que ao contraacuterio de um historiador antigo ou de um investigador moderno soacute

desejava entreter seus ouvintes com anedotas1060

Momigliano e Silva tambeacutem contribuem com esse debate Para eles a

histoacuteria e a biografia no mundo antigo natildeo possuiacuteam regras formais e

consolidadas de produccedilatildeo constituindo muito mais estilos de escrita Quando

havia uma separaccedilatildeo entre as duas ela residia em quatro aspectos i) nas formas

de estruturaccedilatildeo do discurso (narrativo-cronoloacutegico ou descritivo-temaacutetico) ii) no

maior ou menor usos de anedotas iii) na explicitaccedilatildeo (ou natildeo) de julgamentos por

parte do bioacutegrafo acerca do caraacuteter do biografado e iv) na maior ou menor

aproximaccedilotildees da narrativa dos toacutepicos discursivos caracteriacutesticos da

historiografia1061

Portanto a diferenccedila entre histoacuteria e biografia natildeo se dava no

plano da oposiccedilatildeo entre a veracidade (do relato historiograacutefico) e a natildeo veracidade

(do relato biograacutefico) mas na forma de se construir o texto1062

Nessa perspectiva Joly sustenta que Suetocircnio elaborou uma estruturaccedilatildeo

especiacutefica para o seu texto a temaacutetica Isso quer dizer que ele reuniu as narrativas

dos Juacutelio-Claacuteudios em temas e em grupos e natildeo em ordem cronoloacutegica Tal

1059

Silva (2008 p 69) esclarece ldquoa palavra lsquobiografiarsquo soacute foi utilizada pela primeira vez no seacuteculo

V d C e lsquoautobiografiarsquo apenas no final do seacuteculo XVIIIrdquo 1060

ROLFE 1913 p 214-221 1061

MOMIGLIANO 1993 p 90-99 SILVA 2008 p 77 1062

SILVA 2008 p 76

269

estruturaccedilatildeo contudo natildeo torna o De Vita Caesarum menos valoroso afirma o

autor Ao contraacuterio a natildeo adoccedilatildeo das balizas cronoloacutegicas leva o historiador

moderno a repensar ldquo[] a posiccedilatildeo hegemocircnica que foi conferida a determinadas

obras histoacutericas a ponto de tornaacute-las como as uacutenicas chaves para se interpretar o

Principado de Nerordquo1063

Ou seja o texto do bioacutegrafo nos ajuda a romper com o

ciacuterculo vicioso historiograacutefico de enxergar os Annales e a Historia Romana como

as uacutenicas fontes fidedignas para se compreender o governo neroniano

Apresentada a organizaccedilatildeo interna da obra e discutidos alguns aspectos do

seu gecircnero literaacuterio passemos agrave investigaccedilatildeo do primeiro episoacutedio da vida de

Nero contido no De Vita Caesarum o seu nascimento descrito no contexto da

genealogia familiar imperial O intento do bioacutegrafo eacute ldquo[] relatar sobre os vaacuterios

membros da famiacutelia para deixar mais claro de que modo Nero desviou-se das

virtudes dos seus ancestrais e reproduziu o legado dos viacutecios de cada umrdquo1064

Assim o bisavocirc de Nero Cneu Domiacutecio Aenobarbo eacute apresentado como um

homem de temperamento selvagem e covarde o avocirc Luacutecio Domiacutecio Aenobarbo

eacute retratado como um sujeito de virtudes e superior ao resto da famiacutelia o pai Cneu

Domiacutecio Aenobarbo eacute exposto como um indiviacuteduo arrogante aduacuteltero cruel e

afeito agraves corridas de bigas e agraves lutas gladitoriais1065

e a matildee Agripina eacute

caracterizada como siacutembolo da falta de moderaccedilatildeo1066

Foi dessa linhagem que

surgiu Nero Ele

[] nasceu em Acircncio [] no dia 15 de dezembro ao amanhecer de modo que foi tocado pelos raios de sol quase antes de ser tocado pela terra Com relaccedilatildeo ao seu horoacutescopo havia muitas prediccedilotildees temerosas feitas por muita gente as quais se juntaram agrave afirmaccedilatildeo nefasta do pai Domiacutecio

proferida entre as felicitaccedilotildees dos amigos de que nada poderia ter nascido dele e de Agripina que natildeo fosse odioso eou um flagelo para o Estado1067

1063

JOLY 2005 p 124-125 A respeito das diferenccedilas entre histoacuteria e biografia cf STADTER

2007 p 540 Sobre a cronologia da vida de Nero em Suetocircnio cf GALLIVAN 1974 p 385-396 1064

Pluris e familia cognosci referre arbitror quo facilius appareat ita degenerasse a suorum

virtutibus Nero ut tamen vitia cuiusque quasi tradita et ingenita rettulerit (Suet Nero 12) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000

p 195) 1065

Suet Nero 2-4 1066

Suet Cl 263 1067

Nero natus est Anti post VIIII mensem quam Tiberius excessit XVIII Kal Ian tantum quod

exoriente sole paene ut radiis prius quam terra contingeretur De genitura eius statim multa et

formidulosa multis coniectantibus praesagio fuit etiam Domiti patris vox inter gratulationes

amicorum negantis quicquam ex se et Agrippina nisi detestabile et malo publico nasci potuisse

270

Como verificamos o bioacutegrafo representa o nascimento do princeps como

um pressaacutegio de maacute sorte Apresenta os astroacutelogos fazendo prediccedilotildees temerosas ndash

a partir do horoacutescopo da crianccedila ndash e o proacuteprio pai de Nero afirmando que nada de

bom viria dele e de Agripina1068

Melhor dizendo ele usa a ancestralidade do

jovem como base para a construccedilatildeo da narrativa de modo que os defeitos de

caraacuteter dos antepassados se transformam em justificativas para os futuros defeitos

de Nero1069

Barrett Fantham e Yardley elucidam que os romanos davam muita

importacircncia para os traccedilos familiares herdados fato que explica por que Suetocircnio

focou tanto nas falhas dos Aenobarbos e de Agripina1070

O que tambeacutem explica

tal foco segundo Rolfe eacute o proacuteprio gecircnero biograacutefico que envolvia um resumo

da vida do sujeito e da histoacuteria da sua famiacutelia Assim um bioacutegrafo destacava as

virtudes e os viacutecios dos ancestrais para legitimar as virtudes e os viacutecios do

governante descrito1071

Resumindo para Suetocircnio Nero eacute ndash e seraacute ndash um liacuteder

infausto porque possuiacutea um pesado fardo geneacutetico natildeo havia como escapar a isso

Esse excerto tambeacutem nos faz pensar que o bioacutegrafo ao contraacuterio de Taacutecito

valoriza as informaccedilotildees pessoais (para a criacutetica moderna em excesso) Ele faz

descriccedilotildees pessoais e muito especiacuteficas isto eacute por uma amplificaccedilatildeo retoacuterica

conduz a uma abordagem bastante visual dos fenocircmenos quase

cinematograacutefica1072

Eacute importante mencionar ainda que essa ideia suetoniana do princeps

como ldquoflagelo para o Estadordquo natildeo eacute nova tendo jaacute sido construiacuteda por Pliacutenio o

Velho Na Naturalis Historia o enciclopedista comenta sobre o peacutessimo caraacuteter

(Suet Nero 61) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 197) 1068

Suetocircnio nos daacute as caracteriacutesticas fiacutesicas de Nero ldquo[] era de estatura mediana corpo

manchado e malcheiroso cabelo quase loiro rosto mais agradaacutevel do que atraente olhos

acinzentados um tanto fracos pescoccedilo grosso barriga saliente pernas finas e sauacutede robusta Na

verdade apesar de sua vida de luxo decadente ele adoeceu apenas 3 vezes durante seu reinado de 14 anos e mesmo assim natildeo seriamente o suficiente para deixar de beber ou manter os seus outros

haacutebitos Em sua aparecircncia e vestimenta ele era tatildeo ultrajante a ponto de ter o cabelo sempre em

camadas []rdquo Statura fuit prope iusta corpore maculoso et fetido subflavo capillo vultu pulchro

magis quam venusto oculis caesis et hebetioribus cervice obesa ventre proiecto gracillimis

cruribus valitudine prospera nam qui luxuriae immoderatissimae esset ter omnino per

quattuordecim annos languit atque ita ut neque vino neque consuetudine reliqua abstineret circa

cultum habitumque adeo pudendus ut comam semper in gradus formatam peregrinatione Achaica

etiam pone verticem summiserit ac plerumque synthesinam indutus ligato circum collum sudario

in publicum sine cinctu et discalciatus (Suet Nero 51) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 225) 1069

GEER 1931 p 57-58 1070

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 3 1071

ROLFE 1913 p 215-224 1072

BOTELHO 2016 p 1939-1949

271

de Agripina citando o nascimento antinatural de Nero e pintando-o como um

futuro ldquoinimigo do gecircnero humanordquo1073

A repeticcedilatildeo de tal ideia pelo bioacutegrafo

mostra-nos que a imagem do Nero infausto natildeo soacute se manteve na virada do seacuteculo

I para o II como tambeacutem se reforccedilou e se tornou mais elaborada passando a

envolver elementos astroloacutegicos e a famiacutelia paterna do imperador para aleacutem da

materna Por allelopoiesis Suetocircnio utiliza algo jaacute existente ndash o caraacuteter negativo

de Nero advindo de Agripina ndash e constroacutei uma configuraccedilatildeo nova e mutuamente

dependente da configuraccedilatildeo do passado ndash o caraacuteter negativo de Nero advindo de

Agripina de Domiacutecio e dos astroacutelogos

Os proacuteximos anos da vida do princeps satildeo bastante conturbados Por

exemplo Suetocircnio comenta que Agripina foi enviada para o exiacutelio e que Nero

fica desse modo sob os cuidados da sua tia Leacutepida a qual o coloca sob a tutoria

de um danccedilarino e de um barbeiro1074

No entanto Claacuteudio ao se tornar

imperador chama-a de volta a Roma e a restabelece em sua posiccedilatildeo social1075

Natildeo demora entatildeo para Agripina se aproveitar dos favores de Claacuteudio e seduzi-

lo convencendo-o a se casar com ela e a adotar Nero1076

Assim

no deacutecimo primeiro ano de vida eacute adotado por Claacuteudio e entregue para ser educado por Aneu Secircneca que jaacute era senador [] Quando apoacutes a sua adoccedilatildeo seu irmatildeo Britacircnico por haacutebito continua a chamaacute-lo de Aenobarbo ele tenta convencer seu pai de que Britacircnico natildeo era realmente seu filho mas um substituto

[] Como se natildeo bastasse [] adotar seu enteado ele repetidamente anuncia que ningueacutem jamais havia sido incluiacutedo na famiacutelia dos Claudii atraveacutes de adoccedilatildeo1077

Notemos que o bioacutegrafo ao contraacuterio de Taacutecito natildeo realccedila tanto o caraacuteter

manipulador de Agripina e de Pallas na adoccedilatildeo ele soacute narra que Claacuteudio priorizou

1073

Plin Nat 78 1074

Suetocircnio tambeacutem afirma que o princeps perdeu o pai aos trecircs anos de idade sendo privado de

um terccedilo da sua propriedade (Suet Nero 63) 1075

Suet Nero 63-4 1076

Suet Cl 26 1077

Undecimo aetatis anno a Claudio adoptatus est Annaeoque Senecae iam tunc senatori in

disciplinam traditus Ferunt Senecam proxima nocte visum sibi per quietem C Caesari

praecipere et fidem somnio Nero brevi fecit prodita immanitate naturae quibus primum potuit

experimentis Namque Britannicum fratrem quod se post adoptionem Ahenobarbum ex

consuetudine salutasset [] Adsciturus in nomen Neronem quasi parum reprehenderetur quod

adulto iam filio priuignum adoptaret identidem divulgavit neminem umquam per adoptionem

familiae Claudiae insertum (Suet Nero 7 Cl 392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 198)

272

Nero em relaccedilatildeo a Britacircnico1078

Ao fazer isso consideramos que ele indica seu

descontentamento com o procedimento legal1079

Segundo Lindsay e Frighetto a

adoccedilatildeo em Roma integrava um sistema que garantia a continuidade da memoacuteria

do nome do poder e da riqueza da famiacutelia1080

A prerrogativa para a adoccedilatildeo

pautava-se ldquoteoricamente no princiacutepio estoico do virtuosismo moral e na

capacidade poliacutetica do adotado revelando dessa forma a escolha daquele que

fosse o mais capacitado para governar []rdquo1081

Assim se a loacutegica era perpetuar a

memoacuteria de uma famiacutelia e selecionar o mais capacitado como um indiviacuteduo

proveniente de uma linhagem tatildeo defeituosa seria uma boa escolha Como Nero

fruto de pai e matildee desonrosos sucederia Claacuteudio digna e virtuosamente Eacute o que

Suetocircnio estaacute sugerindo A sua insatisfaccedilatildeo eacute clara Claacuteudio trouxe indignidade agrave

proacutepria casa ao eleger um Nero infausto como sucessor1082

Depois da adoccedilatildeo Suetocircnio nos conta que o soberano realiza sua primeira

apariccedilatildeo puacuteblica no Foacuterum para receber a toga virilis prometendo presentes para

a plebe e dinheiro para os pretorianos Em seguida o jovem fala no Senado

expressando gratidatildeo ao pai ldquoNatildeo muito apoacutes isso toma Otaacutevia como esposa e

oferece jogos no Circo e espetaacuteculos com animais como oferendas pela sauacutede1083

de Claacuteudiordquo1084

Nero logo se cansa ldquo[] da companhia de Otaacutevia e quando seus

amigos criticam seu comportamento ele responde que ela deveria se contentar

com a insiacutegnia de esposardquo1085

Percebemos aiacute a representaccedilatildeo do liacuteder como um sujeito desmedido e

debochado Cleland et al explicam que as insiacutegnias eram siacutembolos marcadores de

status social entre os romanos podendo variar entre joias broches vestimentas e

ateacute mesmo cores de roupas (clavus e praetexta)1086

Cientes disso entendemos

1078

Palas originalmente um escravo de Antocircnia filha de Claacuteudio se tornou influente sobre Claacuteudio como encarregado das contas (Suet Cl 28) 1079

GOacuteES 2015 p 102 1080

LINDSAY 2009 p 190 1081

FRIGHETTO 2012 p 37 1082

GOacuteES 2015 p 98 1083

Claacuteudio tinha ataques constantes de azia (Suet Cl 31) 1084

Nec multo post duxit uxorem Octaviam ediditque pro Claudi salute circenses et venationem

(Suet Nero 72) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 199) Nas referecircncias Cl 272 e Cl 291 Suetocircnio narra o noivado

entre Otaacutevia e Silano e a morte deste 1085

Octaviae consuetudinem cito aspernatus corripientibus amicis sufficere illi debere respondit

uxoria ornamenta (Suet Nero 351) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215) 1086

CLELAND et al 2007 p 96

273

que Suetocircnio demarca a atitude despreziacutevel do jovem em relaccedilatildeo agrave esposa a qual

soacute receberia uma simples insiacutegnia e natildeo amor Isso eacute intrigante porque

transforma Otaacutevia em uma mulher totalmente passiva agrave espera dos sentimentos

do marido bem diferente da personagem figurada na Octavia e nos Annales Por

exemplo Pseudo-Secircneca comenta sobre a repulsa que ela sentia ao pensar em

beijar o esposo haja vista que ele havia matado o seu pai e Taacutecito declara que ela

viveu triste desde o primeiro dia do casamento pois foi usada como instrumento

de legitimaccedilatildeo dinaacutestica1087

Cada autor desse modo mostra um motivo para a

aversatildeo de Otaacutevia a Nero Aqui nem a primeira nem a segunda razotildees satildeo citadas

Suetocircnio como um bom bioacutegrafo foca soacute no caraacuteter de Nero desenhando-o como

um Nero cruel insensiacutevel

Poreacutem consideramos que embora natildeo tenha citado os porquecircs elaborados

por Pseudo-Secircneca e por Taacutecito Suetocircnio de certa forma apropria-se dos retratos

neronianos desses autores Por exemplo ao construir a imagem do Nero infausto e

do Nero cruel embasa-se em tais narrativas preteacuteritas e daacute a elas um novo valor

eacutetico ligado aos traccedilos pessoais da famiacutelia do jovem e aos do proacuteprio jovem

Assim erige um retrato mais fidegino de Nero correspondente agrave leitura que ele

sabia que os romanos jaacute faziam da pessoa do Ceacutesar1088

Tratemos agora do episoacutedio da ascensatildeo de Nero ocorrida em 54

Suetocircnio alega que tanto o casamento com Agripina quanto a adoccedilatildeo de Nero e o

matrimocircnio do jovem com Otaacutevia foram lamentados por Claacuteudio no fim da sua

proacutepria vida1089

Para reparar os erros cometidos o imperador adianta a concessatildeo

da toga virilis a Britacircnico argumentando que finalmente o povo romano teria um

Ceacutesar verdadeiro Ao perceber esse arrependimento Agripina comeccedila a planejar o

assassinato do marido que eacute executado por meio do uso de cogumelos

envenenados um tipo de comida muito apreciada por Claacuteudio1090

Ele falece em

seu 64deg ano de vida e Agripina faz de tudo para ocultar a sua morte ateacute que os

1087

[Sen] Oct 110 Tac Ann 14633 1088

BRANDAtildeO 2009a p 76 1089

Dorey (1966 p 144-155) discute esse arrependimento no artigo Claudius und seine Ratgeber 1090

Suetocircnio eacute bem enfaacutetico ao afirmar ldquonatildeo haacute algueacutem que duvide do fato de ele ter morrido

envenenado []rdquo Et veneno quidem occisum convenit (Suet Cl 442) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 193)

274

arranjos necessaacuterios para a sucessatildeo sejam feitos1091

E entatildeo Nero que tinha 16

anos aproxima-se dos guardas entre a sexta e a seacutetima hora

Diante da escadaria do Palatino eacute saudado como imperador e

levado de liteira ao acampamento pretoriano onde se dirige aos soldados brevemente antes de ir para o Senado [] De todas as grandes honras que lhe foram conferidas ele recusa apenas uma o tiacutetulo de ldquoPai da Paacutetriardquo que considera inadequado para algueacutem da sua idade1092

Nero proporciona a Claacuteudio um funeral admiraacutevel no qual o declara um

deus1093

Tambeacutem presta grandes homenagens agrave memoacuteria do seu pai Domiacutecio e

permite que sua matildee tenha enorme influecircncia sobre os assuntos puacuteblicos e

privados1094

Para sublinhar a aparecircncia de seu bom caraacuteter afirma que seu

governo seguiria os princiacutepios de Augusto natildeo deixando escapar nenhuma

oportunidade de mostrar sua generosidade amabilidade e clemecircncia Nesse

sentido Suetocircnio declara que ele abole eou reduz alguns impostos indiretos

(vectigalia) distribui 400 sesteacutercios para cada homem da plebe e para cada

senador de alta estirpe que estava na miseacuteria daacute um subsiacutedio mensal de gratildeos aos

pretorianos entre outras medidas O bioacutegrafo ainda conta que Nero quando foi

chamado para assinar o mandado de execuccedilatildeo de um condenado agrave morte diz

ldquocomo gostaria de nunca ter aprendido a ler e a escreverrdquo1095

Por fim Suetocircnio

confessa que sob o governo do princeps muitas praacuteticas condenaacuteveis em

governos anteriores foram reprovadas eou controladas1096

Essa narrativa nos faz refletir sobre cinco questotildees A primeira eacute a

manutenccedilatildeo do papel de Agripina como a principal responsaacutevel pelo assassinato

do marido e pela ascensatildeo do filho O estereoacutetipo da mulher imperial

manipuladora e ambiciosa jaacute erigido por Pseudo-Secircneca e por Taacutecito

1091

Suet Cl 43-45 1092

proque Palati gradibus imperator consalutatus lectica in castra et inde raptim appellatis

militibus in curiam delatus est discessitque iam vesperi ex immensis quibus cumulabatur

honoribus tantum patris patriae nomine recusato propter aetatem (Suet Nero 8) A traduccedilatildeo para

o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 199) 1093

Suetocircnio informa que essa honra depois foi cancelada por Nero e mais tarde restaurada por

Vespasiano (Suet Cl 45) 1094

Suetocircnio comenta que no primeiro dia do seu governo Nero deu ao tribuno da guarda

pretoriana a seguinte contra-senha ldquoa melhor das matildeesrdquo (Suet Nero 9) 1095

ldquoquam vellemrdquo inquit ldquonescire litterasrdquo (Suet Nero 10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 200) 1096

Suet Nero 15

275

continuou1097

Suetocircnio entatildeo fortalece a imagem negativa da matrona

indicando ao mesmo tempo a fraqueza do reinado de Claacuteudio e a futura fraqueza

do governo de Nero1098

A segunda questatildeo eacute a cumplicidade do jovem no envenenamento de

Claacuteudio Para o bioacutegrafo ele ateacute podia natildeo ter sido o responsaacutevel pelo feito mas

com certeza sabia do ocorrido haja vista que depois passou a elogiar os

cogumelos como a ldquocomida dos deusesrdquo1099

Essa eacute a primeira vez que tal

cumplicidade eacute mencionada nas nossas fontes o que evidencia a visatildeo suetoniana

da falta de pietas de Nero em relaccedilatildeo ao pai1100

A terceira eacute a citaccedilatildeo de uma frase contida no De Clementia Suetocircnio

repete a informaccedilatildeo dada por Secircneca a de que Nero ao assinar uma execuccedilatildeo

fala que gostaria de nunca ter aprendido a ler e a escrever A nosso ver essa

repeticcedilatildeo aleacutem de evidenciar o conhecimento da obra do filoacutesofo pelo bioacutegrafo

indica que ele julgava que Nero tinha um bom conselheiro ao seu lado algueacutem

que lhe ajudaria a seguir o caminho virtuoso da clemecircncia Poreacutem eacute importante

pontuar que Suetocircnio no De Vita Caesarum natildeo desenha o princeps como um

sujeito controlado por Secircneca (como Taacutecito fez) mas sim aconselhado O papel

de Secircneca eacute bastante apagado nesse retrato de Suetocircnio quando comparado com

aquele composto por Taacutecito

A quarta vincula-se agraves medidas adotadas por Nero no iniacutecio do seu

Principado O bioacutegrafo tem uma interpretaccedilatildeo positiva e esperanccedilosa da

administraccedilatildeo de Nero muito semelhante agraves interpretaccedilotildees de Secircneca Calpuacuternio

Siacuteculo e Lucano que divulgaram o retorno da era de ouro e equipararam Nero a

um novo Augusto1101

De igual modo aos trecircs autores Suetocircnio projeta o passado

auspicioso no presente reforccedilando a legitimidade do novo princeps Conforme

Leme tal projeccedilatildeo tem conexatildeo direta com a proacutepria vida de Suetocircnio pois ele

vivenciou a conturbada transiccedilatildeo de poder de Trajano para Adriano O autor

explica que Adriano para se tornar imperador precisou lidar com um forte

movimento de oposiccedilatildeo senatorial o qual fecirc-lo assassinar diversos

1097

[Sen] Oct 139-154 Tac Ann 1266-69 WOOD 2000 p 261 1098

GOacuteES 2015 p 101 1099

Suet Nero 33 1100

GOacuteES 2015 p 119 1101

Sen Apoc 41 Calp Ecl 133-44 Luc 160-62

276

magistrados1102

Esse momento tenso influenciou Suetocircnio na composiccedilatildeo do De

Vita Caesarum que lhe serviu para expor as atitudes imperiais e julgaacute-las de um

ponto de vista moral Assim todos os liacutederes que respeitaram as estruturas

republicanas ndash como por exemplo Augusto ndash foram representados de forma

positiva Em contrapartida todos os que desrespeitaram foram retratados de forma

negativa1103

Nero nesse primeiro momento aproximou-se de Augusto logo foi

figurado positivamente Ou seja Suetocircnio projeta no jovem os ideais praacuteticos do

[] Principado augustano especialmente o princiacutepio de uma

boa relaccedilatildeo com a sociedade poliacutetica ou melhor com os senadores ndash respeitados sempre na ldquoliberdaderdquo caracteriacutestica deles nunca ameaccedilados ou agredidos1104

A quinta e uacuteltima questatildeo se relaciona aos usos das tradiccedilotildees

interpretativas do passado Para descrever a ascensatildeo de Nero Suetocircnio ao

mesmo tempo concede maior peso a um retrato preteacuterito do princeps ndash o de Nero

como um novo Augusto e como algueacutem controlado pela matildee ndash e menor peso a

outro ndash o do Nero dominado por seus conselheiros Nesse retrato entatildeo torna a

imagem do soberano mais rica e complexa aos nossos olhos e aos dos seus

leitores transformando o jovem em um Nero prodigioso porque seguiria Augusto

muito embora tivesse Agripina como matildee1105

Logo apoacutes a ascensatildeo o soberano precisou lidar com dois problemas nas

fronteiras do Impeacuterio afirma Suetocircnio O primeiro foi o conflito com os partas

iniciado em 54 e encerrado em 63 e o segundo foi o confronto na Britacircnia

sucedido em 60 Suetocircnio os aborda em conjunto no De Vita Caesarum dizendo

Aleacutem dos terriacuteveis males causados pelo imperador houve

outros males que atingiram o Impeacuterio por acaso em um outono houve uma praga que acrescentou 30 mil viacutetimas agrave Libitina na Britacircnia um grande desastre aconteceu quando duas das principais cidades sofreram um massacre de cidadatildeos e de aliados e no Oriente houve uma humilhaccedilatildeo quando um exeacutercito foi enviado para proteger a Armecircnia e natildeo conseguiu manter a proviacutencia da Siacuteria1106

1102

LEME 2015 p 133 p 241 1103

LEME 2015 p 133 p 241 1104

LEME 2015 p 210 1105

JOLY 2005 p 116 1106

Accesserunt tantis ex principe malis probrisque quaedam et fortuita pestilentia unius autumni

quo triginta funerum milia in rationem Libitinae venerunt clades Britannica qua duo praecipua

277

Nero nunca foi movido pelo menor desejo ou esperanccedila de estender ou de aumentar o Impeacuterio e ele ateacute considerou a retirada do exeacutercito da Britacircnia mas foi dissuadido pela vergonha em que teria incorrido ao parecer diminuir a gloacuteria conquistada por seu proacuteprio pai []1107

Como notamos a descriccedilatildeo de Suetocircnio eacute bem sinteacutetica Mas isso natildeo nos

impede de perceber sua avaliaccedilatildeo sobre o princeps Por exemplo ele minimiza as

atividades militares desenvolvidas por Nero indicando que ele natildeo se interessava

em expandir o territoacuterio do Impeacuterio Tambeacutem desvaloriza as conquistas militares

sob o governo do soberano sugerindo que todos os confrontos existentes durante

o seu Principado terminaram em derrota o que noacutes sabemos natildeo ser verdade pois

houve vitoacuterias na Armecircnia e na Britacircnia1108

Dito de outra forma Suetocircnio

constroacutei o retrato de um Nero antiprinceps totalmente indiferente aos assuntos

militares Tal retrato eacute muito distinto do retrato neroniano elaborado por Taacutecito e

ao mesmo tempo semelhante a ele Eacute diferente porque Suetocircnio natildeo menciona i)

a pouca idade de Nero e sua inexperiecircncia na eacutepoca em que os problemas com os

partas eclodiram ii) o meacuterito de Corbulatildeo na resoluccedilatildeo dos embates na Armecircnia

iii) o envio de Policlito agrave Britacircnia e iv) o controle dos libertos sobre o imperador

E eacute semelhante porque os dois autores em geral edificam a representaccedilatildeo de um

liacuteder passivo que demandava a gerecircncia da poliacutetica externa a outros Natildeo nos

esqueccedilamos de que essa mesma passividade emergiu de forma geneacuterica nas

Siluae em que foi sugerido que Nero soacute prevaleceu na guerra contra os partas

pois escolheu um excelente general1109

Portanto vemos que o retrato originaacuterio

do Nero antiprinceps consolidou-se Suetocircnio se apossa das narrativas do passado

e omite certos elementos presentes nelas produzindo um retrato neroniano

cristalizado e sinteacutetico Em outros termos em seu retrato reverencia um dado

elemento (a passividade) e atribui maior peso a ele fortalecendo-o Assim cria

oppida magna civium sociorumque caede direpta sunt ignominia ad Orientem legionibus in

Armenia sub iugum missis aegreque Syria retenta (Suet Nero 391) A traduccedilatildeo para o portuguecircs

eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 218) 1107

Augendi propagandique imperii neque voluntate ulla neque spe motus umquam etiam ex

Britannia deducere exercitum cogitavit nec nisi verecundia ne obtrectare parentis gloriae

videretur destitit Ponti modo regnum concedente Polemone item Alpium defuncto Cottio in

provinciae formam redegit (Suet Nero 18) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 203) 1108

LEFEBVRE 2017 p 98-100 1109

Stat Silv 5230-46

278

uma potencialidade de Nero ldquouma remodelagem ativardquo do passado o seu lado

antiprinceps1110

Em 55 um ano apoacutes o iniacutecio do conflito com os partas Nero assassina o

seu irmatildeo Britacircnico1111

De acordo com Suetocircnio o princeps decidiu mataacute-lo por

duas razotildees i) medo de que algum dia ele despertasse compaixatildeo no povo por

causa da memoacuteria do seu falecido pai e ii) ciuacuteme da sua voz pois ela era mais

agradaacutevel do que a sua Por isso Nero chama Locusta e encomenda um

veneno1112

Quando ele fica pronto daacute ordens

[] para que a substacircncia seja levada para a sala de jantar e dada a Britacircnico enquanto janta com ele Quando Britacircnico cai apoacutes a primeira garfada Nero alega para os convidados que ele estava sofrendo de um dos seus ataques epileacutepticos habituais No dia seguinte em meio a fortes tempestades Britacircnico tem um funeral pequeno1113

No excerto vemos que Suetocircnio natildeo associa o fratriciacutedio agraves ameaccedilas de

Agripina a Nero como Taacutecito fez1114

Ele nem cita a intimidaccedilatildeo materna em sua

narrativa explicando o crime a partir das duas razotildees supracitadas Outra atitude

adotada por ele e que natildeo foi adotada por Taacutecito eacute a descriccedilatildeo minuciosa da

fabricaccedilatildeo do veneno No texto o bioacutegrafo menciona todas as etapas de

preparaccedilatildeo do toacutexico indo desde as coaccedilotildees imperiais feitas a Locusta ateacute os

testes aplicados em animais1115

Ao notarmos isso entendemos que o autor

elabora uma histoacuteria seguindo as regras do gecircnero biograacutefico isto eacute redige um

relato voltado agrave caracterizaccedilatildeo do seu biografado (Nero) explorando sobretudo

os traccedilos da sua personalidade Eacute oacutebvio que como destaca Leme para descrever

os comportamentos do princeps ele contextualiza os ambientes poliacutetico social e

cultural nos quais o soberano viveu mas natildeo entra em detalhes Os

1110

DE TOFFOLI 2019 p 169 1111

Suet Nero 354 1112

Suet Nero 331 Suetocircnio tambeacutem alega que Britacircnico chamava Nero pelo nome Aenobarbo

o que irritava o jovem profundamente (Suet Nero 71) 1113

Deinde in haedo expertus postquam is quinque horas protraxit iterum ac saepius recoctum

porcello obiecit quo statim exanimato inferri in triclinium darique cenanti secum Britannico

imperavit Et cum ille ad primum gustum concidisset comitiali morbo ex consuetudine correptum

apud convivas ementitus postero die raptim inter maximos imbres tralaticio extulit funere (Suet

Nero 333) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 213) 1114

Tac Ann 1316 1115

Suet Nero 332-3

279

acontecimentos nesse sentido permeiam a vida em anaacutelise tornando-se

importantes apenas para a criacutetica das accedilotildees de Nero1116

Eacute essencial pontuar esse

aspecto porque eacute isso o que diferencia o seu relato do de Taacutecito Suetocircnio natildeo estaacute

preocupado em comentar sobre as causas dinaacutesticas do fratriciacutedio ou sobre as

influecircncias nocivas de Agripina ao contraacuterio o que ele deseja eacute evidenciar o

caraacuteter cruel do princeps ndash ou melhor dizendo usar o assassinato de Britacircnico

como artifiacutecio para construir a imagem do Nero tirano que utiliza

indiscriminadamente a crudelitas e abandona a clementia1117

Segundo Brandatildeo uma das formas usadas pelos autores antigos para

salientarem a crueldade de um tirano era destacar a sua dedicaccedilatildeo agraves torturas

Nessa loacutegica Suetocircnio evidencia o empenho de Nero na preparaccedilatildeo do veneno

sua indiferenccedila com o sofrimento do irmatildeo e o seu cuidado iacutenfimo com o

funeral1118

Ao ressaltar tais accedilotildees traccedila uma nova representaccedilatildeo do soberano a

do liacuteder tiracircnico em sua essecircncia Isto eacute as explicaccedilotildees para o assassinato tornam-

se totalmente torpes medo e ciuacuteme natildeo havia motivos dinaacutesticos nem controle

materno exacerbado Nero transforma-se no tiacutepico tirano insensiacutevel Para Dunkle

a imagem do tirano na Antiguidade era psicologicamente eficaz em despertar a

indignaccedilatildeo do puacuteblico e por isso o bioacutegrafo a empregou afinal ela o ajudaria a

criar um ldquoarquivilatildeordquo na imaginaccedilatildeo das pessoas1119

Em 57 dois anos depois do fratriciacutedio Nero promove seus primeiros jogos

em um anfiteatro1120

Neles

[] exibe-se como lutador e induz 400 senadores e 600 cavaleiros a lutarem ndash alguns dos quais tinham posiccedilatildeo e

reputaccedilatildeo honrosas Ateacute mesmo aqueles que lutaram contra as feras e serviram como assistentes na arena foram selecionados das ordens senatoriais e equestres1121

1116

LEME 2011 p 8 1117

GOacuteES 2015 p 120 1118

BRANDAtildeO 2008a p 115-137 1119

DUNKLE 1967 p 170 1120

Suetocircnio afirma que esse anfiteatro foi construiacutedo no Campus Martius no periacuteodo de um ano

(Suet Nero 121) 1121

Munere quod in amphitheatro ligneo regione Martii campi intra anni spatium fabricato dedit

neminem occidit ne noxiorum quidem Exhibuit autem ad ferrum etiam quadringentos senatores

sescentosque equites Romanos et quosdam fortunae atque existimationis integrae ex isdem

ordinibus confectores quoque ferarum et varia harenae ministeria (Suet Nero 121) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 200-

201)

280

Suetocircnio diz que o jovem ldquoconvidourdquo senadores e cavaleiros a lutarem Tal

atitude provavelmente causou grande indignaccedilatildeo pois como explica Brandatildeo

uma das obrigaccedilotildees do imperador era defender a ordem moral e social o que

implicava por exemplo preservar a dignidade tradicional das categorias elevadas

E preservar tal dignidade passava longe de colocar esses indiviacuteduos no centro da

arena puacuteblica espaccedilo dedicado aos infames1122

Todavia o foco de Suetocircnio ao

descrever os jogos no De Vita Caesarum natildeo eacute a questatildeo moral mas sim a

quantidade de presentes e de espetaacuteculos ofertados por Nero agrave populaccedilatildeo O

bioacutegrafo alega que o soberano ofereceu alimentos roupas joias escravos e feras

domesticadas bem como promoveu a simulaccedilatildeo de uma batalha naval1123

Ou

seja sua preocupaccedilatildeo eacute narrar a generosidade neroniana e os eventos

proporcionados ao puacuteblico Isso poreacutem natildeo significa que ele tenha aprovado

declaradamente a imposiccedilatildeo imperial sobre a aristocracia significa apenas que ele

natildeo se indignou tanto com os jogos quanto Taacutecito ndash pelo menos natildeo nesse

momento inicial defende Brandatildeo1124

Joly acrescenta que a ausecircncia de uma criacutetica mais severa por parte do

bioacutegrafo pode estar vinculada tambeacutem ao fato de a aristocracia ter concordado

com essas poliacuteticas artiacutesticas do soberano jaacute que foi ele mesmo quem arcou com

os gastos natildeo retirando dinheiro do eraacuterio puacuteblico Tal argumento de Joly nos

leva a refletir sobre outra questatildeo a divisatildeo interna do De Vita Caesarum

Suetocircnio separa a vida e o governo de Nero em duas partes i) um primeiro

momento prodigioso em que predominou a regecircncia de Roma (livros seis a 19) e

ii) um segundo momento infausto no qual prevaleceram os viacutecios imperais (livros

um a cinco e 20 a 38)1125

Seu objetivo com isso eacute construir a progressatildeo da

degradaccedilatildeo moral do princeps O problema eacute que os jogos no anfiteatro estatildeo

inseridos na primeira parte da narrativa ou seja na fase positiva do governo

Logo consideramos que para Suetocircnio o Nero artista ainda eacute contido pois

estava no iniacutecio da sua degradaccedilatildeo moral Natildeo foi agrave toa que ele enfatizou que o

imperador natildeo tomou parte pessoalmente nos espetaacuteculos1126

1122

BRANDAtildeO 2009a p 171 1123

Suet Nero 112-121 1124

BRANDAtildeO 2009a p 161 1125

JOLY 2005 p 115-116 1126

Suet Nero 122

281

Encerrrados os jogos Nero volta sua atenccedilatildeo para o assassinato de

Agripina Segundo Suetocircnio o jovem desde sua ascensatildeo estava bastante irritado

com a matildee que o criticava em tudo que fazia Assim primeiramente tenta

diminuir seu poder priva-a de honras retira-lhe a guarda de soldados e a expulsa

do palaacutecio Mas depois quando ela o ameaccedila decide exterminaacute-la atentando trecircs

vezes contra sua vida por meio de veneno1127

Percebendo que ela havia se

protegido com antiacutedotos ele manda construir um navio especial que desabasse e a

matasse Entatildeo Nero envia-lhe uma carta e a convida para ir a Baiacuteas celebrar a

festa de Minerva com ele1128

Ele a recebe com um enorme banquete que dura ateacute

tarde da noite Quando Agripina decide ir embora de Baiacuteas

[] ele oferece-lhe no lugar da sua embarcaccedilatildeo [] o barco especialmente concebido acompanhando-a alegremente e ateacute beijando seus seios em despedida O resto daquela noite ele fica acordado esperando ansiosamente o cumprimento dos seus planos Mas chegam notiacutecias de que as coisas haviam saiacutedo de

outra forma ndash ela escapara e nadara para um lugar seguro Sem saber o que fazer ele [] ordena [] que sua matildee deveria ser morta para parecer que ela havia tirado a proacutepria vida quando sua trama criminosa fosse descoberta [] No entanto depois disso ele natildeo suporta as dores da consciecircncia ndash embora os soldados o Senado e o povo tentem animaacute-lo com suas felicitaccedilotildees ndash pois ele frequentemente admitia que era

perseguido pelo fantasma da sua matildee e pelos chicotes e pelas tochas ardentes das Fuacuterias1129

A nosso ver a narrativa suetoniana da morte de Agripina eacute espetacular por

trecircs motivos i) pela justificativa dada ao matriciacutedio ii) pelos meios artiacutesticos

usados por Nero e iii) pela imagem criminosa do soberano criada por Suetocircnio

Falemos da justificativa Para o bioacutegrafo ela eacute muito simples o princeps se

defendeu uma vez que Agripina o criticava com frequecircncia Nero ateacute tenta usar

1127

Suet Nero 341 1128

Suet Nero 341-2 1129

[] datoque negotio trierarchis qui liburnicam qua advecta erat velut fortuito concursu

confringerent protraxit convivium repetentique Baulos in locum corrupti navigii machinosum

illud optulit hilare prosecutus atque in digressu papillas quoque exosculatus Reliquum temporis

cum magna trepidatione vigilavit opperiens coeptorum exitum Sed ut diversa omnia nandoque

evasisse eam comperit inops consilii L Agermum libertum eius salvam et incolumem cum gaudio

nuntiantem abiecto clam iuxta pugione ut percussorem sibi subornatum arripi constringique

iussit matrem occidi quasi deprehensum crimen voluntaria morte vitasse [] Neque tamen

conscientiam sceleris quanquam et militum et senatus populique gratulashytionibus confirmaretur

aut statim aut umquam postea ferre potuit saepe confessus exagitari se materna specie

verberibusque Furiarum ac taedis ardentibus (Suet Nero 342-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 213-215)

282

outros meios antes de chegar ao matriciacutedio mas quando sua matildee comeccedila a lhe

ameaccedilar ele acha melhor tirar sua vida pois natildeo estava disposto a aturar esse tipo

de comportamento Ou seja o soberano assassina sua matildee porque natildeo suportava

mais o seu controle Como sabemos essa justificativa jaacute havia sido utilizada por

Taacutecito e sua repeticcedilatildeo acentua ainda mais a imagem negativa da matrona1130

Contudo a principal diferenccedila entre o historiador e o bioacutegrafo pauta-se no foco

dado ao caraacuteter do Nero matricida Em Taacutecito Nero mata sua matildee porque aleacutem

de natildeo suportar mais sua influecircncia foi manipulado por Popeia Aqui o soberano

a mata porque quis por ser um liacuteder vaidoso que soacute desejava ouvir lisonjas ldquo[E]

Agripina era muito proacutexima dele para se entregar a esse tipo de adulaccedilatildeo

nauseante sendo uma matildee que o lembrava sempre do quatildeo imaturo ele era e do

quanto [ele] precisava seguir suas orientaccedilotildeesrdquo1131

Tratemos agora dos meios artiacutesticos Em concordacircncia com Brandatildeo e

Dawson a paixatildeo artiacutestica neroniana eacute empregada por Suetocircnio para construir a

imagem do liacuteder que transpocircs a licentia dos atores usada no palco para a vida

civil Por exemplo algumas accedilotildees relatadas no episoacutedio como o fingimento e o

arrependimento de Nero evidenciam a dramaticidade conferida ao crime ldquo[] Eacute

uma peccedila de teatro perfeitardquo1132

A transmissatildeo da histoacuteria produz uma noccedilatildeo de

progressatildeo indicando que o drama atingiria um fim determinado a morte de

Agripina1133

Eacute curioso observar ainda como tal dramatizaccedilatildeo jaacute vinha sendo

erigida desde a Octavia e dos Annales1134

Dito de outro modo temos mais de um

seacuteculo de difusatildeo de uma narrativa que cada vez mais reforccedila o Nero artista

Poreacutem Suetocircnio ao contraacuterio de Pseudo-Secircneca e de Taacutecito natildeo se alonga

exageradamente na descriccedilatildeo do matriciacutedio mas apenas repete certos detalhes da

Octavia e dos Annales e acentua as accedilotildees de Nero Natildeo nos esqueccedilamos de que

seu propoacutesito foi compor uma biografia e que para tanto precisava focar no

biografado e nos traccedilos do seu caraacuteter Portanto o protagonista foi o biografado e

natildeo o enredo por traacutes da histoacuteria1135

1130

Tac Ann 141 135 1131

BARRETT 2001 p 156 1132

DAWSON 1969 p 261 1133

BRANDAtildeO 2009b p 39 1134

[Sen] Oct 291-372 Tac Ann 148 1135

Sobre a teatralizaccedilatildeo no De Vita Caesarum cf CIZEK 1975 p 480-485

283

Em terceiro lugar temos a imagem criminosa de Nero Suetocircnio declara

que apoacutes o matriciacutedio o princeps foi aterrorizado pelo fantasma da matildee e pelas

tochas ardentes das Fuacuterias A nosso ver a inserccedilatildeo desse assombramento teve por

objetivo confirmar a culpa de Nero e atestar o desfavor divino sobre ele

Lembremo-nos de que Pseudo-Secircneca e Estaacutecio fizeram a mesma referecircncia o

primeiro diz que o fantasma de Agripina trazia as tochas fuacutenebres para o

casamento de Nero e Popeia e o segundo afirma que o imperador viu a matildee no

Taacutertaro com uma tocha nas matildeos1136

Kragelund explica que o elemento das

tochas das deusas vingativas era associado a matriciacutedios mitoloacutegicos e que seu

uso pelos autores antigos visava insinuar que o culpado estava sendo

atormentado pelos democircnios internos da sua consciecircncia1137

Em suma as fuacuterias

simbolizavam a culpa o remorso Natildeo eacute randocircmico o fato de que Suetocircnio afirma

que versos foram pichados nas paredes de Roma associando Nero a Orestes e a

Alcmeatildeo matricidas perseguidos pelas Fuacuterias

[] Nero Orestes Alcmeatildeo mataram suas matildees Um novo caacutelculo Nero assassinou a proacutepria matildee Quem discorda de que Nero seja da grande linhagem de Eneacuteias Um levou embora sua matildee o outro seu pai []1138

Segundo o bioacutegrafo Nero natildeo se deu ao trabalho de procurar os autores

dessas pichaccedilotildees e mesmo quando os encontrou garantiu que natildeo fossem

punidos com severidade1139

Tal atitude indica que ele aceitou natildeo soacute os boatos

espalhados como tambeacutem a associaccedilatildeo da sua imagem com as lendas mitoloacutegicas

Inclusive essa associaccedilatildeo parece ter sido muito apreciada por ele pois como

veremos mais tarde ela seraacute representada no palco1140

Nesse ponto Suetocircnio natildeo

traz o elemento da clemecircncia para o retrato mas o da ineacutepcia para governar

Em uacuteltima anaacutelise a narrativa do assassinato de Agripina contida no De

Vita Caesarum faz-nos refletir sobre como os retratos do Nero matricida satildeo

1136

[Sen] Oct 593-597 Stat Silv 27118-119 1137

KRAGELUND 2016 p 238 1138

[] Νέρων Ὀρέστης Ἀλκμέων μητροκτόνος Νεόψηφον Νέρων ἰδίαν μητέρα ἀπέκτεινε Quis

negat Aeneae magna de stirpe Neronem Sustulit hic matrem sustulit ille patrem [] (Suet

Nero 392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 218) 1139

Suet Nero 392 1140

Suetocircnio atesta que para aplacar o espiacuterito de Agripina Nero faz sacrifiacutecios expiatoacuterios (Suet

Nero 344)

284

mutaacuteveis Desde o final do seacuteculo I eles vecircm sendo construiacutedos remodelados

reconstituiacutedos em cada apropriaccedilatildeo posterior e transmitidos a noacutes por meio de

representaccedilotildees variadas E como bem sabemos cada apropriaccedilatildeo serviu agraves

necessidades do seu autor que integrava elementos jaacute conhecidos em diferentes

combinaccedilotildees e ecircnfases Nesse sentido Suetocircnio retrata um Nero matricida que ao

mesmo tempo foi um Nero artista e um Nero vaidoso No final das contas todo

mundo retira de Nero o que precisa ou deseja1141

Apoacutes o matriciacutedio no final de 59 e no iniacutecio do ano 60 o princeps

proporciona agrave populaccedilatildeo da Vrbs dois eventos os Juvenalia e os Neronia No

primeiro convida homens e mulheres das ordens senatorial e equestre a se

apresentarem1142

No segundo jogos aos moldes gregos institui trecircs modalidades

(muacutesica ginaacutestica e hipismo) e concede a supervisatildeo delas a ex-cocircnsules

escolhidos por sorteio

Depois desce para a orchestra onde os senadores se sentavam

e aceita as coroas da oratoacuteria e da poesia latina que lhes satildeo oferecidas Todos os homens mais ilustres haviam competido mas todos concordam que [as coroas] eram dele Poreacutem quando os juiacutezes lhe oferecem a coroa da lira ele presta reverecircncia e daacute ordens para que ela seja levada como oferenda agrave estaacutetua de Augusto1143

Nero desde os jogos no anfiteatro sucedidos em 57 seguiu

ldquoincentivandordquo os desempenhos ldquovoluntaacuteriosrdquo de cidadatildeos respeitaacuteveis nos

espetaacuteculos1144

Tal atitude poreacutem natildeo pareceu ser um problema para Suetocircnio

pois o imperador ainda natildeo participava de modo ativo nos jogos deixando a

organizaccedilatildeo ao encargo de ex-cocircnsules e sentando-se no teatro ao lado dos

senadores Ademais o bioacutegrafo insinua que os Juvenalia tiveram um caraacuteter mais

1141

HELMRATH 2019 p 141-142 1142

Suet Nero 111 Durante os Juvenalia Nero raspou sua barba pela primeira vez e a depositou

em uma caixa ornada de peacuterolas a qual foi consagrada a Juacutepiter Capitolino (Suet Nero 124) 1143

Instituit et quinquennale certamen primus omnium Romae more Graeco triplex musicum

gymnicum equestre quod appellavit Neronia dedicatisque thermis atque gymnasio senatui

quoque et equiti oleum praebuit Magistros toto certamini praeposuit consulares sorte sede

praetorum Deinde in orchestram senatumque descendit et orationis quidem carminisque Latini

coronam de qua honestissimus quisque contenderat ipsorum consensu concessam sibi recepit

citharae autem a iudicibus ad se delatam adoravit ferrique ad Augusti statuam iussit (Suet Nero

123) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 201) 1144

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 239

285

privado ocorrendo nos jardins de Nero1145

Tambeacutem sugere que o princeps natildeo se

apresentou nos Neronia ganhando coroas sem ter performado Portanto sua

conduta natildeo foi tatildeo repreensiacutevel aqui suas accedilotildees natildeo geraram como para Taacutecito

um aumento do comportamento degenerado e escandaloso1146

O poder imperial

ainda controlava o teatro sendo este utilizado como forma de propaganda e como

um meio eficaz de satisfazer a plebe

Brandatildeo esclarece que os espetaacuteculos constituiacuteam meios de os soberanos

se relacionarem com a plebe e mostrarem sua liberalidade1147

Um dos primeiros

liacutederes a utilizaacute-los sob essa perspectiva foi Augusto que promoveu eventos de

diversos tipos no circo e no anfiteatro com encenaccedilotildees e lutas de gladiadores1148

Augusto levava tatildeo a seacuterio os espetaacuteculos que se associou publicamente agrave figura

de Apolo mandando erigir uma estaacutetua de si mesmo no templo do deus com as

roupas e os atributos da divindade Inclusive quando comemorou os Jogos

Seculares ndash os quais simbolizavam o iniacutecio de uma nova era ndash inseriu Apolo no

centro das cerimocircnias solenes No final do seu governo a imagem apoliacutenica tinha

se tornado tatildeo conhecida que os siacutembolos da divindade como a lira eram

facilmente identificados por todos Eacute aiacute que entra a oferenda neroniana da coroa

liacuterica agrave estaacutetua de Augusto Nero desejava filiar a sua imagem e a do seu

Principado ao seu predecessor e a Apolo e para tanto fez algo que todos

entenderiam1149 Eacute curioso que essa filiaccedilatildeo com Augusto jaacute havia sido citada pelo

bioacutegrafo no episoacutedio da ascensatildeo de Nero no qual lembrou o princeps afirmando

que seguiria os princiacutepios augustanos Agora poreacutem a associaccedilatildeo com o

antecessor sai do acircmbito poliacutetico mais estrito e entra no acircmbito artiacutestico contando

com Apolo Como sabemos a associaccedilatildeo com a divindade natildeo eacute novidade pois jaacute

fora realizada por Calpuacuternio Siacuteculo que compara a beleza do deus agrave de Nero e

exalta os espetaacuteculos ofertados pelo soberano no anfiteatro1150

Suetocircnio revigora

tal concepccedilatildeo ao traccedilar o perfil de um liacuteder fomentador da arte Resumindo o

bioacutegrafo utiliza Augusto natildeo soacute para elogiar o iniacutecio prodigioso do governo de

Nero como tambeacutem para enaltecer seus projetos artiacutesticos adequados ndash os de

1145

Suet Nero 222 1146

Tac Ann 14151 1147

BRANDAtildeO 2009a p 159 1148

Suetocircnio comenta que Augusto tambeacutem empregou cavaleiros romanos em peccedilas teatrais (Suet

Aug 43) 1149

CHAMPLIN 2005 p 142 1150

Cal Ecl 723-72

286

ofertar espetaacuteculos puacuteblicos variados mas sem participar deles Contanto que o

Nero artista se assemelhasse a Augusto ele seria bom

Encerrados esses eventos positivos Suetocircnio comeccedila a delinear o retrato

do princeps tiracircnico Assim narra que em 62 o imperador forccedila Secircneca a

cometer suiciacutedio e envenena Burro e os libertos que tinham o apoiado em sua

adoccedilatildeo e em sua ascensatildeo1151

Tambeacutem fala que Nero passa a planejar o

casamento com Popeia e o divoacutercio de Otaacutevia pois estava cansado desta uacuteltima Eacute

importante frisar que sua descriccedilatildeo do novo matrimocircnio eacute muito diferente da

realizada por Taacutecito pois aqui foi o princeps quem teve papel ativo na uniatildeo e

natildeo Popeia O bioacutegrafo nos conta que Nero depois de se tornar amante de Popeia

indu-la a abandonar o marido Ruacutefrio Crispino e a coloca sob os cuidados de

Otatildeo Este poreacutem apaixona-se tanto que natildeo quer mais dividi-la com o princeps

Furioso o jovem imperador nomeia Otatildeo governador provincial da Lusitacircnia e o

retira do seu caminho1152

Em seguida busca se livrar de Otaacutevia tentando

estrangulaacute-la vaacuterias vezes Mas ao ver suas tentativas frustradas separa-se dela

legalmente alegando sua esterilidade O problema segundo Suetocircnio foi que as

manifestaccedilotildees de desaprovaccedilatildeo da plebe foram tatildeo intensas que ele precisou

retiraacute-la de Roma e enviaacute-la para Pandataacuteria1153

Depois a mata sob uma acusaccedilatildeo de adulteacuterio que era tatildeo obviamente falsa que todos a negam durante o julgamento e Nero tem que subornar [] Aniceto para fazer uma pretensa confissatildeo de que a havia estuprado [] Nero tinha uma grande paixatildeo por Popeia com quem se casou no deacutecimo segundo dia apoacutes o divoacutercio de Otaacutevia []1154

Inicialmente eacute necessaacuterio comentar que esse relato sucinto foi

apresentado no De Vita Caesarum juntamente com outros crimes cometidos por

Nero a exemplo do matriciacutedio do suiciacutedio de Secircneca do envenenamento de

Burro e dos assassinatos decorrentes da conspiraccedilatildeo pisoniana Ou seja Suetocircnio

1151

Suet Nero 355 1152

Suet Otho 31-2 1153

Suet Nero 351-2 1154

Eandem mox saepe frustra strangulare meditatus dimisit ut sterilem sed improbante divortium

populo nec parcente conviciis etiam relegavit denique occidit sub crimine adulteriorum adeo

inpudenti falsoque ut in quaestione pernegantibus cunctis Anicetum paedagogum suum indicem

subiecerit qui fingeret et dolo stupratam a se fateretur Poppaeam duodecimo die post divortium

Octaviae in matrimonium acceptam dilexit unice [] (Suet Nero 352-3) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215)

287

intencionalmente posiciona sua descriccedilatildeo em uma paisagem que lhe permite

fortalecer os retratos do Nero tirano do Nero cruel e do Nero uxoricida os quais

abandonaram por completo a clemecircncia1155

Depois eacute imprescindiacutevel dizer que a

narrativa eacute elaborada de modo a supervalorizar o anseio imperial de casar com

Popeia e a minimizar os possiacuteveis motivos dinaacutesticos que envolveram o uxoriciacutedio

de Otaacutevia Melhor dizendo Suetocircnio nos daacute um governante caprichoso que

reinava conforme os seus iacutempetos sexuais e natildeo de acordo com os princiacutepios da

res publica Dunkle explica que para os romanos sobretudo para a elite

senatorial a libido simbolizava tudo aquilo que se opunha agrave lex conjunto

impessoal de regras aos quais todo cidadatildeo poderia apelar em questotildees de

injusticcedila No entanto se o cidadatildeo estivesse submetido aos caprichos de um

autocrata sob o qual o Estado deixava de ser uma preocupaccedilatildeo puacuteblica natildeo

conseguia recorrer agraves leis e por conseguinte permanecia em uma situaccedilatildeo de

injusticcedila1156

Tal foi o caso de Otaacutevia acusada impiamente de adulteacuterio foi

enviada para o exiacutelio e executada

Por fim consideramos que Suetocircnio para compor os retratos dos Neros

tirano cruel e uxoricida reforccedila e reformula informaccedilotildees contidas nas esferas de

referecircncia (Annales e Octavia) Por um lado reforccedila-as na medida em que repete

os elementos da passionalidade e da crueldade do princeps1157

por outro

reformula-as no sentido de que cria um Nero autocircnomo e libidinoso Em siacutentese

as imagens neronianas erigidas pelo bioacutegrafo evidenciam o seu cuidado de

transmitir as histoacuterias jaacute aceitas pela tradiccedilatildeo fato que para Barrett eacute um enorme

desperdiacutecio pois Suetocircnio como secretaacuterio de Adriano tinha acesso a inuacutemeros

materiais incluindo registros puacuteblicos Ele poderia por exemplo ter usado tais

materiais para problematizar os retratos legados pelas fontes mas preferiu pegar

algumas informaccedilotildees acerca de Nero e repassaacute-las sob a mesma luz negativa1158

Firmado o enlace com Popeia Nero estreia sua voz nos palcos puacuteblicos de

Naacutepoles em 64 De acordo com o bioacutegrafo a decisatildeo de fazer tal estreia adveio

1155

DUNKLE 1967 p 169 1156

DUNKLE 1967 p 168-169 1157

([Sen] Oct 899-959 1158

BARRETT 2020 p 14

288

da declamaccedilatildeo de um proveacuterbio grego feita pelo proacuteprio soberano ldquo[] de nada

vale muacutesica agraves escondidasrdquo1159

Ao chegar laacute

[] canta com frequecircncia e durante muitos dias E mesmo

depois de fazer uma pequena pausa para descansar a sua voz natildeo suporta ficar separado do puacuteblico Apoacutes banhar-se volta ao teatro onde janta no meio da orchestra com uma grande multidatildeo presente Falando em grego promete que assim que bebesse um pouco daraacute a eles algumas cantigas animadas1160

Aqui Suetocircnio claramente demonstra que os intentos artiacutesticos neronianos

se intensificaram1161

Contudo eacute importante destacar que a decisatildeo imperial de ir

ateacute Naacutepoles natildeo foi instantacircnea mas sim fruto de um longo processo de

dedicaccedilatildeo Por exemplo o bioacutegrafo afirma que depois de assumir o poder o

princeps designou Terpno um tocador de lira como seu professor seguindo todos

os seus conselhos a fim de melhorar a sua voz deitava-se de costas e colocava

um prato de chumbo sobre o peito usava uma seringa para injetar aacutegua no seu

corpo e vomitar e evitava ingerir frutas e alimentos prejudiciais agrave voz1162

Ou

seja Nero ao ir ateacute Naacutepoles desejava mostrar agraves pessoas os resultados do seu

empenho Mas por que ele escolheu Naacutepoles Por duas razotildees defendem Schulz e

Wallace-Hadrill i) por ser uma localidade com tradiccedilatildeo de competiccedilotildees musicais

e de poesia e ii) pelo fato de o soberano saber que a aristocracia da capital natildeo

aceitaria um priacutencipe musical1163

Essa uacuteltima razatildeo para Suetocircnio acabou se

justificando pois Nero violou os papeacuteis adequados a um imperador afinal ao

subir no palco ele abandonou a ciuilitas augustana e assumiu o ofiacutecio dos atores

os quais eram frequentemente associados a crimes como perturbaccedilatildeo da ordem

puacuteblica e devassidatildeo1164

Eacute assim que o bioacutegrafo erige a degradaccedilatildeo moral do

princeps desenhando o seu caraacuteter exibicionista e acentuando sua busca cada vez

1159

[] occultae musicae nullum esse respectum (Suet Nero 201) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1160

Et prodit Neapoli primum ac ne concusso quidem repente motu terrae theatro ante cantare

destitit quam incohatum absolveret nomon Ibidem saepius et per complures cantavit dies sumpto

etiam ad reficiendam vocem brevi tempore impatiens secreti a balineis in theatrum transiit

mediaque in orchestra frequente populo epulatus si paulum subbibisset aliquid se sufferti

tinniturum Graeco sermone promisit (Suet Nero 202) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1161

BRANDAtildeO 2009a p 163 1162

Suet Nero 201 1163

SCHULZ 2019 p 284-285 WALLACE-HADRILL 1995 p 182 1164

Como argumenta Gyles (1962 p 197) Nero se comportou como uma pessoa privada natildeo

como um imperador

289

maior por reconhecimento artiacutestico1165

Natildeo eacute agrave toa que ele nos diz que o Nero

artista selecionou jovens para ensinaacute-los ldquo[] diferentes meacutetodos de aplausos []

que deveriam ser empregados vigorosamente quando ele cantasse []rdquo1166

Ainda nesse acircmbito natildeo podemos deixar de comparar a representaccedilatildeo do

Nero artista de Suetocircnio com a do Nero artista de Taacutecito Fica niacutetida a repeticcedilatildeo

de algumas concepccedilotildees dos Annales aqui no De Vita Caesarum a exemplo da

ambiccedilatildeo imperial de tornar puacuteblica a sua muacutesica a participaccedilatildeo ldquovoluntaacuteriardquo de

membros das altas categorias sociais nos espetaacuteculos e a valorizaccedilatildeo da cultura

grega Ficam evidentes tambeacutem a omissatildeo de uma ideia contida nos Annales ndash as

censuras de Agripina agrave dedicaccedilatildeo neroniana agraves artes ndash e a criaccedilatildeo de uma nova

concepccedilatildeo ndash a associaccedilatildeo entre NeroApoloAugusto Tais seleccedilotildees feitas por

Suetocircnio indicam que o autor ao compor o seu texto natildeo distingue a vida puacuteblica

da privada mas sim o bem do mal Para ele o princeps era um todo indivisiacutevel e

natildeo apenas uma figura poliacutetica1167

Suetocircnio em contrapartida a Taacutecito natildeo se

preocupa em narrar as relaccedilotildees entre o imperador e o Senado ou a tensatildeo entre

liberdade (libertas) e escravidatildeo (seruitus)1168

seu propoacutesito foi de relatar de que

modo Nero abandonou as virtudes dos seus ancestrais e reproduziu os viacutecios de

cada um1169

E para tanto usa os retratos taciteanos como potencialidades

incitadoras relendo-os e reconstruindo-os agrave sua maneira ndash assim elabora um Nero

exibicionista tiracircnico helenista e citaredo sob um vieacutes eacutetico moralizador

No final do mesmo ano o comportamento neroniano jaacute considerado

inadequado passa a ser ainda mais malvisto devido ao incecircndio de Roma e agrave

construccedilatildeo da Domus Aurea Suetocircnio defende que o princeps ateou fogo na

cidade sob o pretexto de que queria reconstruiacute-la e de que suas ruas eram estreitas

e tortuosas1170

Nas palavras do bioacutegrafo ele incendiou a Vrbs tatildeo

escancaradamente que alguns ex-cocircnsules viram seus proacuteprios servos em suas

1165

BRANDAtildeO 2009a p 159-173 1166

Neque eo segnius adulescentulos equestris ordinis et quinque amplius milia e plebe

robustissimae iuventutis undique elegit qui divisi in factiones plausuum genera condiscerent ndash

bombos et imbrices et testas vocabant ndash operamque navarent cantanti sibi insignes pinguissima

coma et excellentshyissimo cultu puris ac sine anulo laevis quorum duces quadringena milia

sestertia merebant (Suet Nero 203) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1167

BRANDAtildeO 2009a p 357 1168

JOLY 2005 p 114 1169

Suet Nero 12 1170

Suet Nero 381

290

propriedades com tochas nas matildeos Por seis dias e sete noites a destruiccedilatildeo

alastrou-se levando as pessoas a se abrigarem em monumentos e em tuacutemulos1171

Nero assistiu ao incecircndio da torre de Mecenas encantado com o que chamou de ldquoa beleza das chamasrdquo e cantou com seu traje de teatro ldquoA queda de Troiardquo E para que natildeo perdesse qualquer oportunidade de obter espoacutelios ele se comprometeu a limpar os cadaacuteveres e as ruiacutenas agraves suas proacuteprias custas []1172

A descriccedilatildeo de Suetocircnio eacute bastante resumida Em comparaccedilatildeo com Taacutecito

que despende vaacuterios capiacutetulos do Annales ele explana o episoacutedio em poucas

linhas Em concordacircncia com Barrett isso demonstra que ele estava menos

preocupado em tratar do desastre como um fenocircmeno em si mesmo do que em

apontar a responsabilidade de Nero1173

Para frisar esta responsabilidade insere

trecircs elementos na sua narrativa i) a inquestionabilidade da culpa imperial ii) a

apresentaccedilatildeo musical do soberano e iii) o interesse neroniano nos espoacutelios e em

construir a Domus Aurea O primeiro fica bastante evidente logo no iniacutecio ele

afirma acintosamente que o princeps ldquoateou fogo em Romardquo eliminando qualquer

possibilidade de duacutevida Tal atitude difere da adotada por Taacutecito que apesar de

natildeo simpatizar com Nero pelo menos duvidou da sua responsabilidade atraveacutes da

menccedilatildeo dos rumores do seu envolvimento1174

Nesse sentido o bioacutegrafo natildeo

constroacutei um relato amplo do desastre mas apenas fixa a culpa de Nero alegando

que ele incendiou a Vrbs porque estava cansado da sua arquitetura1175

Em outros

termos o que ele faz eacute elaborar um relato hostil para exibir o caraacuteter insensiacutevel do

Nero incendiaacuterio Como resumiu Champlin a acusaccedilatildeo de Suetocircnio eacute

contundente parece que o soberano de fato foi o responsaacutevel desde o iniacutecio1176

1171

Suet Nero 381-2 1172

Hoc incendium e turre Maecenatiana prospectans laetusque ldquoflammaerdquo ut aiebat

ldquopulchritudinerdquo Halosin Ilii in illo suo scaenico habitu decantavit Ac ne non hinc quoque

quantum posset praedae et manubiarium invaderet pollicitus cadaverum et ruderum gratuitam

egestionem nemini ad reliquias rerum suarum adire permisit conlashytionibusque non receptis

modo verum et efflagitatis provincias privatorumque census prope exhausit (Suet Nero 382-3)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards

(2000 p 217) 1173

BARRETT 2020 p 96 1174

Tac Ann 1538 1175

A Historiografia moderna tende a rejeitar essa visatildeo do Nero incendiaacuterio Cf

WARMINGTON 1969 p 123-124 BESTE VON HESBERG 2013 p 324 DRINKWATER

2019 p 235-236 1176

CHAMPLIN 2005 p 185

291

Fixada a culpa imperial a crenccedila de que Nero cantou ldquoA queda de Troiardquo

enquanto a cidade ardia seguiu quase como uma coisa natural Como o princeps

tinha acabado de voltar de Naacutepoles e todos em Roma jaacute sabiam da sua paixatildeo

pela muacutesica a performance tornou-se plausiacutevel1177

Aqui outra vez deparamo-

nos com uma discrepacircncia em relaccedilatildeo aos Annales Taacutecito demonstra duacutevidas

acerca da apresentaccedilatildeo de Nero durante o incecircndio citando a existecircncia de boatos

ndash embora natildeo os tenha problematizado1178

Por sua vez Suetocircnio ignora

totalmente tais rumores tratando a performance como um feito Ou seja ele natildeo

daacute ao soberano qualquer benefiacutecio da duacutevida Longe disso assevera sua

culpabilidade dizendo em apenas uma frase que ele cantou enquanto Roma

pegava fogo Logo o terriacutevel fato de Nero ser um incendiaacuterio torna-se ainda pior

ele eacute um incendiaacuterio artista1179

O crime foi agravado pela crueldade de um

imperador que cantou enquanto via a destruiccedilatildeo do que ele proacuteprio havia causado

portanto Suetocircnio concedeu a Nero um cenaacuterio realista e terriacutevel O espetaacuteculo do

incecircndio inspirou um horror real e foi esse o objetivo do bioacutegrafo1180

Soma-se a isso o interesse imperial nos espoacutelios e na construccedilatildeo da Domus

Aurea O bioacutegrafo afirma que como Roma jaacute estava destruiacuteda soacute restava a Nero

aproveitar a situaccedilatildeo para realizar saques Suetocircnio natildeo concede que Nero

estivesse querendo ajudar as viacutetimas do incecircndio mas se concentra apenas no

socorro e na reconstruccedilatildeo como roubo e desmando Atraveacutes dos saques aliaacutes o

imperador parece ter obtido recursos para a edificaccedilatildeo da sua nova moradia a

Domus Aurea a qual possuiacutea uma estaacutetua sua de 120 peacutes de altura e paredes

[] cobertas de ouro e incrustadas de joias e madrepeacuterola []

A principal cacircmara de banquetes tinha uma cuacutepula que girava continuamente de dia e de noite como a proacutepria Terra [] Quando a casa foi concluiacuteda [] ele se contentou em expressar sua aprovaccedilatildeo declarando que finalmente havia comeccedilado a viver como um ser humano1181

1177

FRAZER JR 1966 p 17 1178

Tac Ann 1539 1179

FRAZER JR 1966 p 17 1180

BRANDAtildeO 2009a p 192 1181

In ceteris partibus cuncta auro lita distincta gemmis unionumque conchis erant cenationes

laqueatae tabulis eburneis versatilibus ut flores fistulatis ut unguenta desuper spargerentur

praecipua cenationum rotunda quae perpetuo diebus ac noctibus vice mundi circumageretur

balineae marinis et albulis fluentes aquis Eius modi domum cum absolutam dedicaret hactenus

comprobavit ut se diceret quasi hominem tandem habitare coepisse (Suet Nero 312) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 211)

292

Para Suetocircnio o incecircndio de 64 ofereceu uma excelente oportunidade para

Nero desenvolver seu projeto arquitetocircnico dissipador1182

Seu palaacutecio foi

visivelmente divulgado como o cuacutemulo da extravagacircncia1183

A ecircnfase na

profusatildeo de ouro nas peacuterolas e no tamanho dos aposentos confirma isso

sobretudo se considerarmos a brevidade do seu relato1184

Outros elementos que

tambeacutem confirmam o exagero do edifiacutecio satildeo a declaraccedilatildeo neroniana ldquode

finalmente viver como um homemrdquo e a sugestatildeo de que a Domus Aurea estava

dominando a cidade ldquoRoma estaacute se tornando uma casa fujam para Veios

cidadatildeos A menos que essa casa tome conta de Veios tambeacutemrdquo1185

Em

especiacutefico este uacuteltimo elemento ilustra a tirania do soberano o qual deixa de

considerar a cidade como um espaccedilo puacuteblico1186

Eacute importante demarcar esse

ponto porque ele eacute particularmente realccedilado por Suetocircnio na medida em que ele

desvaloriza as mudanccedilas positivas desenvolvidas por Nero em Roma apoacutes o

incecircndio Nesse sentido o fato de o princeps ter delimitado novos formatos para

os preacutedios da cidade e erguido galerias na frente dos edifiacutecios a fim de evitar

futuros incecircndios eacute referenciado em poucas linhas e em outro momento do De

Vita Caesarum isto eacute fora do contexto do desastre1187

Assim o que Suetocircnio

quis foi deixar para a sua audiecircncia a impressatildeo negativa do Nero construtor que

provavelmente jaacute natildeo causava mais espanto uma vez que a cidade estava bem

transformada pela atividade ediliacutecia tanto dos Flaacutevios (Coliseu) quanto de Trajano

(novo Foacuterum)1188

Em uacuteltima anaacutelise natildeo podemos nos esquecer de que o bioacutegrafo ldquofabricardquo

o seu princeps em consonacircncia com suas leituras das fontes do passado realizadas

a partir de seus proacuteprios interesses Por ser um bioacutegrafo ele se interessou

sobretudo pelas questotildees relativas agrave personalidade de Nero Dessa forma ao

descrever o incecircndio ignora alguns elementos do passado ndash como a ideia do

incecircndio como ferramenta para punir a plebe contraacuteria ao casamento com Popeia

1182

Suet Nero 381 1183

MORFORD 1968 p 158-179 1184

Blaison (1998 p 621-624) argumenta que a descriccedilatildeo de Suetocircnio pertence ao gecircnero literaacuterio

da eacutecfrase de uma residecircncia luxuosa 1185

Roma domus fiet Veios migrate Quirites Si non et Veios occupat ista domus (Suet Nero

392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 218) 1186

BRANDAtildeO 2009a p 216 1187

Suet Nero 161 1188

BLAISON 1998 p 619

293

presente na Octavia a notiacutecia da queima das aacutervores contida na Naturalis

Historia e a informaccedilatildeo de que o fogo atingiu os montes de Roma existente nas

Siluae ndash e repete outros ndash como a performance de Nero durante o incecircndio

tomada como fato inquestionaacutevel mas abordada nos Annales como rumor1189

Ao

seu turno ao relatar sobre a Domus Aurea omite certos itens ndash a exemplo dos

abusos perpetrados contra a natureza expostos na Naturalis Historia ndash e reforccedila

outros ndash como a ostentaccedilatildeo de riqueza inclusa na Octavia a usurpaccedilatildeo das

propriedades apresentada nos Liber Spectaculorum e a queima da cidade para a

construccedilatildeo do novo palaacutecio citada nos Annales1190

Resumindo Suetocircnio tenta

legar para os seus leitores uma imagem de Nero que ele mesmo tinha a de um

liacuteder que teve momentos positivos que soacute serviam para mascarar uma natureza

tiracircnica dada pela geneacutetica e uma falta de interesse em exercer o poder que ele

aliaacutes jamais buscou sendo obra das ambiccedilotildees maternas Suetocircnio eacute um bioacutegrafo

e portanto seu relato busca fixar um caraacuteter (negativo bem claro) que eacute

analisado por meio de episoacutedios cuidadosamente selecionados e apresentados

Eacute intrigante que apesar de Suetocircnio ter denunciado a culpabilidade de

Nero no incecircndio ele manteacutem o silecircncio sobre a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

efetivada no contexto imediato Aliaacutes ele nem insere essa accedilatildeo no cenaacuterio do

desastre mas sim entre vaacuterias decisotildees imperiais estabelecidas para a

manutenccedilatildeo da ordem puacuteblica Por exemplo menciona a criaccedilatildeo de um limite

para as despesas a expulsatildeo dos atores de pantomimos de Roma e a imposiccedilatildeo de

puniccedilotildees aos Cristatildeos ndash ldquoadeptos de uma nova e perigosa supersticcedilatildeordquo1191

A

nosso ver essa sua atitude eacute muito significativa Diferentemente de Taacutecito que

afirma que Nero usou os cristatildeos como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo para dissipar as

fofocas a seu respeito o bioacutegrafo natildeo cita a provaacutevel culpa desses indiviacuteduos1192

ndash

e ao fazer isso elimina a possibilidade de os Cristatildeos estarem implicados no

incecircndio criminoso fixando inequivocamente a responsabilidade de Nero1193

1189

[Sen] Oct 825-844 Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 Tac Ann 1539 1190

Plin Nat 3624 [Sen] Oct 624-631 Mart Sp 21-10 Tac Ann 1542 1191

Suet Nero 162 1192

Tac Ann 1544 1193

BARRETT 2020 p 163

294

Mas de acordo com Suetocircnio Nero acaba encontrando uma forma de

exteriorizar sua crueldade O pretexto a conspiraccedilatildeo de Pisatildeo ocorrida em 651194

Ao ouvir sobre o complocirc ele manda assassinar muitos homens de uma vez soacute

Depois disso ele natildeo mostra discriminaccedilatildeo nem moderaccedilatildeo em condenar agrave morte quem quisesse sob qualquer alegaccedilatildeo [] E muitas vezes ele dava indiacutecios inconfundiacuteveis de que natildeo pouparia nem mesmo os senadores restantes mas eliminaria toda a ordem enviando cavaleiros romanos e libertos para governarem as proviacutencias e comandarem os exeacutercitos1195

Eacute interessante notar que Suetocircnio natildeo fornece um relato detalhadiacutessimo e

extenso da Conspiraccedilatildeo como Taacutecito faz O episoacutedio eacute apenas referido de

passagem em breves linhas Para Baldwin essa atitude explica-se pelo gecircnero

biograacutefico centrado na figura imperial Em outros termos Suetocircnio natildeo se

interessava por questotildees poliacuteticas seacuterias ndash a menos que elas lanccedilassem luz sobre a

personalidade do biografado ndash nem era motivado pelo tipo de hostilidade

profunda que envolveu Taacutecito1196

ndash o que natildeo significa que sua descriccedilatildeo natildeo

possua um propoacutesito Ao contraacuterio como argumentam Wallace-Hadrill Schulz e

Griffin a sua narrativa da conspiraccedilatildeo demarca a crueldade de Nero assinalando

que ele se aproveitou da trama para exterminar todos os seus possiacuteveis rivais1197

Se esse era o plano neroniano nunca saberemos1198

ele natildeo chegou a ser

implementado Mas natildeo podemos negar que aqui o bioacutegrafo foi criativo na

construccedilatildeo do retrato do Nero cruel

Depois da conspiraccedilatildeo o soberano promove a segunda ediccedilatildeo dos

Neronia alega Suetocircnio Ele os promoveu porque a plebe suplicou por sua ldquovoz

divinardquo e ele queria agradaacute-la Assim exibiu-se cantando Niobe

ininterruptamente ateacute a deacutecima hora Tambeacutem cantou trageacutedias usando maacutescaras

1194

Suet Nero 361-2 1195

Nullus posthac adhibitus dilectus aut modus interimendi quoscumque libuisset quacumque de

causa [] Elatus inflatusque tantis velut successibus negavit quemquam principum scisse quid

sibi liceret multasque nec dubias significationes saepe iecit ne reliquis quidem se parsurum

senatoribus eumque ordinem sublaturum quandoque e re p ac provincias et exercitus equiti R ac

libertis permissurum (Suet Nero 362-37) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 216-217) 1196

BALDWIN 1983 p 178-179 1197

WALLACE-HADRILL 1995 p 17 SCHULZ 2019 p 284-315 GRIFFIN 2001 p 179 1198

Julgamos importante destacar um comentaacuterio de Winterling (2012 p 15) o verdadeiro eacute que

ldquo[] sob Nero a organizaccedilatildeo poliacutetica da antiga res publica perdia crescentemente importacircncia

frente agraves novas estruturas de organizaccedilatildeo que haviam surgido na corte imperial e na administraccedilatildeo

das financcedilas imperiais e que consistia principalmente de libertos e cavaleirosrdquo

295

de deuses e de heroacuteis gregos feitas agrave sua semelhanccedila eou agrave semelhanccedila das

mulheres por quem ele havia se apaixonado Dentre as vaacuterias trageacutedias existentes

escolheu ldquoCanace em trabalho de partordquo ldquoOrestes o matricidardquo ldquoA cegueira de

Eacutedipordquo e o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo1199

Segundo Champlin essa descriccedilatildeo do bioacutegrafo deve ser analisada levando

em consideraccedilatildeo duas questotildees i) as histoacuterias por traacutes das trageacutedias selecionadas

e ii) a justificativa imperial para cada escolha Expliquemos entatildeo as histoacuterias

Niobe se casa com Anfiacuteon filho de Zeus e tem 14 filhos com ele Um dia

orgulhosa da sua prole gaba-se de ser melhor do que a deusa Leto pois essa soacute

havia gerado dois filhos Apolo e Aacutertemis Insultados os filhos de Leto se vingam

terrivelmente de Niobe matando todos os filhos dela diante dos seus olhos1200

Conforme Champlin a escolha de tal mito por Nero natildeo foi mero acaso ldquocantar

as desgraccedilas de Niobe era cantar o temiacutevel poder de Apolordquo1201

E ao mostrar o

poder de Apolo o princeps automaticamente mostrava o seu isto eacute uma

autoridade forte o suficiente para eliminar aqueles que o afrontassem

Por sua vez a histoacuteria de Canace eacute a seguinte ela era filha de Eacuteolo rei dos

ventos e irmatilde de Camareu de quem engravida Eacuteolo furioso e envergonhado

com a situaccedilatildeo acompanha o parto de Canace e promete mataacute-la quando ela

terminasse de dar agrave luz Finalizado o processo ele ordena que o bebecirc seja lanccedilado

aos animais selvagens e que entregassem uma espada para Canace Ao receber o

objeto ela despede-se de Macareu e pede-lhe que coloque os seus restos e os do

seu filho em uma urna1202

Entre todas as trageacutedias essa talvez seja a mais

tocante A ideia de cantar sobre uma matildee que deu agrave luz e depois perdeu o seu filho

esteve vinculada agrave morte de Claacuteudia Augusta filha do princeps e de Popeia Para

acentuar o drama de tal situaccedilatildeo Suetocircnio comenta que o imperador usou uma

maacutescara com as feiccedilotildees da esposa enquanto cantava Isso mostra a relevacircncia

pessoal da canccedilatildeo para Nero1203

O problema eacute que a elite romana provavelmente

natildeo via o governante do Impeacuterio Romano atuando e cantando uma trageacutedia sobre

uma mulher em parto como algo proacuteprio a algueacutem de posiccedilatildeo elevada Isso com

1199

Suet Nero 21 1200

GRIMAL 2005 p 331-332 1201

CHAMPLIN 2005 p 116 1202

GRIMAL 2005 p 73 1203

CHAMPLIN 2005 p 106

296

certeza foi visto como uma atitude inadequada e que tornava ilegiacutetima a sua

condiccedilatildeo de Imperador1204

Sobre Orestes a histoacuteria se resume assim Agamenon rei de Micenas eacute

morto por Clitemnestra sua esposa e Egisto amante dela Ao saber do crime

Orestes filho de Agamenon e Clitemnestra assassina Egisto e sua matildee Ao ver o

filho prestes a mataacute-la ela desnuda o seio que o nutrira1205

Eacute faacutecil entender a

opccedilatildeo neroniana por Orestes ele era um matricida justificado Orestes mata sua

matildee natildeo soacute porque a morte do seu pai clamava por vinganccedila mas porque o povo

de Micenas sofria sob a tirania de Clitemnestra Ou seja Nero assassinara

Agripina para preservar o Impeacuterio de uma mulher que havia ultrapassado seu

papel feminino e aspirava ao poder supremo1206

A histoacuteria da ldquocegueira de Eacutedipordquo deve ser examinada juntamente com a

de Orestes Um dia Eacutedipo filho do rei de Tebas consulta o oraacuteculo de Delfos e

descobre que havia sido amaldiccediloado pelos deuses casar-se-ia com a sua matildee

Jocasta teria quatro filhos com ela e mataria o seu pai Laio Apavorado com a

notiacutecia Eacutedipo tenta contornar a maldiccedilatildeo mas no final acaba cumprindo a

profecia do oraacuteculo Ao perceber o ocorrido ele fica envergonhado e perfura seus

proacuteprios olhos passando a vagar pelo mundo guiado por sua filha Antiacutegona1207

Para entendermos a escolha imperial de tal lenda precisamos evocar uma citaccedilatildeo

de Suetocircnio na qual ele menciona que Nero andava na liteira com Agripina e

satisfazia seus desejos sexuais com ela1208

Dito isso notemos que o bioacutegrafo

afirma que eacute Nero quem escolhe cantar sobre Eacutedipo ou seja eacute ele quem decide

publicizar os boatos acerca do seu incesto com a sua matildee Como defende

Champlin ele proacuteprio convida o puacuteblico a ver os aspectos mais escandalosos da

sua vida privada Ao mitificar a si mesmo ele tenta justificar o matriciacutedio

mostrando que natildeo era culpado mas amaldiccediloado1209

A uacuteltima trageacutedia o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo possui o seguinte enredo

Heacutercules levado agrave loucura pela deusa Hera mata seus filhos sua matildee e sua

esposa Megara filha de Creonte rei de Tebas O oraacuteculo de Delfos entatildeo o

1204

FRAZER JR 1971 p 215 1205

GRIMAL 2005 p 338-340 1206

CHAMPLIN 2005 p 97-98 1207

GRIMAL 2005 p 127-129 1208

Suet Nero 282 1209

CHAMPLIN 1998 p 101-102

297

castiga ordenando que ele sirva a Euristeu rei de Micenas o qual o manda

realizar 12 trabalhos Ao retomar a sanidade o heroacutei se vecirc amarrado a uma coluna

e cercado pelos cadaacuteveres da sua famiacutelia percebendo para seu horror que ele era

o assassino1210

Para Champlin a histoacuteria de Heacutercules eacute o artifiacutecio usado por Nero

para explicar os seus delitos ele matara o seu irmatildeo e a sua matildee porque estava

enlouquecido Semelhantemente a Heacutercules ele agredira sua famiacutelia porque

estava sofrendo de loucura divina Nas palavras do autor o soberano pretendeu

mostrar ao seu puacuteblico que as histoacuterias do matriciacutedio e do fratriciacutedio ateacute poderiam

ser verdadeiras mas que ele era inocente1211

Apoacutes abordarmos as histoacuterias por traacutes das trageacutedias selecionadas por Nero

eacute essencial comentarmos sobre os objetivos de Suetocircnio ao descrever o soberano

escolhendo-as A nosso ver eles satildeo quatro Em primeiro lugar o bioacutegrafo quis

insinuar que Nero nessa altura do seu governo jaacute tinha assumido o seu lado

artiacutestico mostrando-se publicamente como um ator independentemente das

possiacuteveis insatisfaccedilotildees Em segundo desejou indicar que Nero confundia a

realidade com o teatro1212

Em terceiro almejou sinalizar que Nero era um artista-

criminoso1213

E em quarto tentou sugerir que tais mitos poderiam estar na base

dos comportamentos reais de Nero1214

Resumindo Suetocircnio utilizou o Nero

artista de Taacutecito ndash um competidor profissional ndash e o transformou no Nero artista

em vida1215

Encerrados os Neronia Nero assassina outra mulher da sua vida Popeia

Conforme Suetocircnio ele a chuta ldquo[] quando ela estava graacutevida e doente porque

ela o repreendeu quando ele voltou tarde das corridas de bigasrdquo1216

Como

sabemos a informaccedilatildeo do chute natildeo eacute nova tendo jaacute sido mencionada nos

Annales Outra notiacutecia tambeacutem referenciada por Taacutecito eacute o funeral extravagante e

luxuoso concedido a ela o que indica certo luto por parte do princeps1217

Contudo esse uacuteltimo dado foi ignorado pelo bioacutegrafo fato que revela a sua

1210

GRIMAL 2005 p 222-223 Para detalhes cf MARCHIORI 2008 p 8-55 1211

CHAMPLIN 2005 p 107 1212

CURRY 2014 p 197 EDWARDS 1994 p 92-93 1213

FRAZER JR 1966 p 20 1214

BRANDAtildeO 2009a p 163 1215

BARTON 1994 p 58 Sobre a atuaccedilatildeo de Nero de modo geral cf BARTSCH 1994 p 36-

50 SLATER 1996 p 33-40 1216

[] et tamen ipsam quoque ictu calcis occidit quod se ex aurigatione sero reversum gravida et

aegra conviciis incesserat (Suet Nero 353) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215) 1217

Tac Ann 166

298

intenccedilatildeo de reforccedilar o lado cruel de Nero Ateacute agora o De Vita Caesarum eacute a

uacutenica fonte a sugerir que Popeia com suas reclamaccedilotildees instigou os atos violentos

do soberano Poreacutem sua atitude ndash isso se acreditarmos que ela realmente a

realizou ndash natildeo justifica a desproporccedilatildeo da ldquorespostardquo imperial Nesse sentido

vemos que Suetocircnio tenta erigir a imagem de um imperador cada vez mais

instaacutevel e insensiacutevel Isso se torna ainda mais evidente quando ele relata que logo

apoacutes o uxoriciacutedio Nero manda assassinar a filha de Claacuteudio Antocircnia pois queria

se casar com ela e ela natildeo aceita1218

e tambeacutem manda assassinar o filho de

Popeia Ruacutefrio Crispino porque ele gostava de brincar de governar1219

Depois de narrar o chute Suetocircnio nos lembra de que o princeps jaacute havia

tido uma filha com Popeia Claacuteudia Augusta cujo falecimento foi repentino1220

De acordo com Griffin a espera dessa crianccedila eacute vista por Nero como uma chance

de dar continuidade legiacutetima agrave dinastia Juacutelio-Claacuteudia uma vez que Otaacutevia natildeo

tinha lhe dado filhos1221

Desse modo a morte da crianccedila representa a interrupccedilatildeo

desse projeto Mas a segunda gestaccedilatildeo de Popeia ndash citada na passagem ndash reacende

tal possibilidade O problema eacute que a personalidade do princeps construiacuteda pelo

bioacutegrafo o faz eliminar a sua uacuteltima chance de ter um herdeiro legiacutetimo ndash ou seja

eacute o proacuteprio soberano que aniquila a sua famiacutelia E por famiacutelia entendemos natildeo soacute

aquelas que lhe dariam filhos a exemplo de Otaacutevia e Popeia como tambeacutem

aqueles que o sucederiam ou lhe dariam apoio como Britacircnico e Agripina Em

suma Nero leva a dinastia para o tuacutemulo com diferentes accedilotildees tomadas ao longo

do seu governo1222

Com a morte de Popeia Nero tenta encontrar outra esposa de linhagem

nobre para conseguir um herdeiro Desse modo contrai matrimocircnio com Estatiacutelia

Messalina agrave eacutepoca jaacute casada com o cocircnsul Aacutetico Vestino Para se unir a ela

precisa cometer outra crueldade mandar matar o seu marido1223

Percebemos

entatildeo que tanto o assassinato de Popeia quanto o enlace com Messalina foram

1218

De acordo com o bioacutegrafo ele a condenou agrave morte alegando seu envolvimento na conspiraccedilatildeo

Pisoniana (Suet Nero 354) Bradley (1977 p 79-82) e Bauman (1994 p 206) explicam que

devido ao fato de Antocircnia ser a uacutenica sobrevivente da famiacutelia imperial era a candidata preferida de

Nero a forma de reparar a brecha que havia sido criada com o seu divoacutercio de Otaacutevia 1219

Suet Nero 354-5 1220

Suet Nero 353 O nascimento da crianccedila eacute comentado por Taacutecito (Tac Ann 15231-3) 1221

GRIFFIN 2001 p 165 1222

BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 2 1223

Suet Nero 351 Ao contraacuterio de Suetocircnio Taacutecito diz que Nero natildeo se casou com Messalina

mas era amante dela Ele tambeacutem informa que Vestino se suicidou (Tac Ann 1568-69)

299

descritos sob a mesma oacutetica a tirania e a desmedida de Nero ndash perspectiva

inclusive seguida por Taacutecito nos Annales Suetocircnio reafirma elementos presentes

no Nero construiacutedo pelo historiador e o transforma em um soberano mais

desumano e impiedoso ao dar um novo tratamento a esses traccedilos comuns1224

Aleacutem disso como temos destacado Suetocircnio elimina alguns traccedilos presentes em

outras obras e acrescenta outros Ao adicionar os elementos da admoestaccedilatildeo de

Popeia e do ataque de fuacuteria imperial por exemplo torna a histoacuteria mais real

aumentando as chances de o seu leitor fixar o Nero uxoricida e do Nero cruel

No ano seguinte em 66 Nero proporciona um enorme espetaacuteculo em

Roma para receber Tiridates rei da Armecircnia e confirmar o acordo com os partas

Suetocircnio afirma que o imperador havia fixado uma data especiacutefica para a chegada

do rei mas em funccedilatildeo do tempo nublado reagenda-a para um dia ensolarado Ao

chegar agrave cidade Tiridates vecirc o princeps sentado proacuteximo aos rostra vestindo

roupas triunfais e cercado por estandartes e bandeiras militares Quando se

aproxima de Nero cai a seus peacutes e faz um discurso suplicante1225

Entatildeo

[] Nero tira o turbante de sua cabeccedila e o substitui por um

diadema Depois o rei eacute conduzido do Foacuterum para o teatro [de Pompeu] onde outra vez suplica e Nero o coloca em um assento agrave sua direita Aclamado imperator por isso Nero oferece louros no Capitoacutelio e fecha os portotildees do templo de Jano [] no intuito de mostrar natildeo haver mais guerras []1226

O episoacutedio da recepccedilatildeo de Tiridates na Vrbs eacute registrado pelo bioacutegrafo

entre os espetaacuteculos de Nero1227

Desse modo eacute descrito de maneira bem

dramaacutetica por meio da transformaccedilatildeo de um evento militar em uma peccedila teatral

Ou seja Suetocircnio sublinha o caraacuteter militar do evento enquanto insinua que a

gloacuteria militar foi substituiacuteda por valores artiacutesticos1228

A criacutetica a tal inversatildeo eacute

acentuada quando ele anuncia que o soberano ldquo[] gastou oitocentos mil

1224

GRASSI 1972 p 153 1225

Suet Nero 131-2 1226

Et primo per devexum pulpitum subeuntem admisit ad genua adlevatumque dextra exosculatus

est dein precanti tiara deducta diadema inposuit verba supplicis interpretata praetorio viro

multitudini pronuntiante perductum inde in theatrum ac rursus supplicantem iuxta se latere

dextro conlocavit Ob quae imperator consalutatus laurea in Capitolium lata Ianum geminum

clausit tamquam nullo residuo bello (Suet Nero 132) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 201-202) 1227

Suet Nero 131 1228

CHAMPLIN 2005 p 228-229 DEVILLERS 2009 p 67

300

sesteacutercios por dia com Tiridates e em sua partida presenteou-o com mais de cem

milhotildeesrdquo1229

Nero assim o fez porque pensava natildeo haver ldquo[] outra maneira de

desfrutar de riquezas e de dinheiro do que por extravagacircncia desenfreada []rdquo1230

Cabe pontuar que esses gastos desenfreados jaacute haviam sido condenados por

Pliacutenio o Velho que censurou o uso desmedido de ouro feito por Nero no Teatro

de Pompeu para receber Tiridates1231

Percebemos entatildeo que Suetocircnio aleacutem de

recriminar o caraacuteter artiacutestico da recepccedilatildeo do rei da Armecircnia tambeacutem censura a

utilizaccedilatildeo excessiva de dinheiro a liberalidade deixara de ser uma preocupaccedilatildeo

com o bem puacuteblico e se transformara em puro narcisismo1232

A menccedilatildeo ao

elemento teatral e agraves despesas financeiras eacute realizada para fortalecer um elemento

do retrato jaacute conhecido como vimos anteriormente elaborado por Pliacutenio que eacute

recombinado e transformado no novo Nero artista e tirano1233

Apoacutes a visita de Tiridates Nero se entrega de vez aos espetaacuteculos declara

Suetocircnio Por exemplo viaja a Oliacutempia na Greacutecia para participar de competiccedilotildees

artiacutesticas sendo a maior parte delas musicais1234

O bioacutegrafo alega que enquanto

o soberano cantava ningueacutem podia sair do teatro nem mesmo por razotildees

urgentes Ele levava as apresentaccedilotildees muito a seacuterio exibindo-se em concordacircncia

com todas as regras temendo o veredicto dos juiacutezes e caluniando e subornando

seus rivais1235

Ao final das competiccedilotildees musicais era ele mesmo quem

proclamava sua vitoacuteria e para que a memoacuteria de outros vencedores natildeo

permanecesse ordenava que suas estaacutetuas e bustos fossem derrubados e lanccedilados

em latrinas1236

Suetocircnio tambeacutem comenta que Nero participou de corridas de

bigas e que ganhou a coroa da vitoacuteria dos juiacutezes Quando deixou a Greacutecia o

princeps presenteava toda proviacutencia com a liberdade e os juiacutezes com a cidadania

1229

In Tiridatem quod vix credibile videatur octingena nummum milia diurna erogavit

abeuntique super sestertium milies contulit (Suet Nero 302) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 210) 1230

Divitiarum et pecuniae fructum non alium putabat quam profusionem [] (Suet Nero 301)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards

(2000 p 210) 1231

Plin Nat 3316 1232

BRANDAtildeO 2009a p 371 Baldwin (1983 p 273) defende que a recepccedilatildeo de Tiridates

arruinou o eraacuterio puacuteblico 1233

DE TOFFOLI 2019 p 175 1234

Nero fez os festivais acontecerem em um uacutenico ano (Suet Nero 231) 1235

Suet Nero 231-3 1236

Suet Nero 241

301

romana e uma grande soma de dinheiro1237

Ao entrar em Roma usou a mesma

carruagem que Augusto tinha usado para comemorar seus triunfos militares

[] vestindo uma tuacutenica puacuterpura e um manto grego adornado

com estrelas de ouro trazendo na cabeccedila a coroa oliacutempica e na matildeo direita o Piacutetio sendo precedido por uma procissatildeo que exibia suas outras coroas [] Em seguida entrou no Circus Maximus onde um arco foi derrubado atravessou o Velabro e o Foacuterum ateacute [] o Templo de Apolo Ao longo de todo o percurso [] as ruas foram borrifadas com perfume [] Ele colocou as coroas sagradas em seus aposentos ao redor dos sofaacutes [] Depois disso longe de restringir sua paixatildeo ansioso

para preservar sua voz nunca se dirigiu aos soldados exceto por carta ou por discursos proferidos por outros []1238

A narrativa suetoniana da viagem de Nero agrave Greacutecia nos leva a refletir

sobre trecircs questotildees Em primeiro lugar sobre a seriedade artiacutestica do princeps O

bioacutegrafo insinua que o imperador ficava tatildeo preocupado com o resultado das suas

apresentaccedilotildees que temia a decisatildeo dos juiacutezes e subornava seus rivais aleacutem de

derrubar as estaacutetuas de outros vencedores e natildeo deixar ningueacutem sair do teatro

enquanto cantava1239

Em segundo ponderamos a extravagacircncia atribuiacuteda ao

soberano A menccedilatildeo da concessatildeo da liberdade a toda a Greacutecia ndash natildeo referenciada

em nenhuma outra fonte ateacute aqui ndash indica a idolatria imperial pela cultura

helecircnica que apesar de compartilhada pelos liacutederes anteriores eacute apontada como

tendo ultrapassado os limites do aceitaacutevel1240

Griffin explica que ao oferecer tal

liberdade Nero isenta a proviacutencia de seus pagamentos tributaacuterios diminuindo por

1237

Suet Nero 242 1238

Reversus e Graecia Neapolim quod in ea primum artem protulerat albis equis introiit

disiecta parte muri ut mos hieronicarum est simili modo Antium inde Albanum inde Romam sed

et Romam eo curru quo Augustus olim triumphaverat et in veste purpurea distinctaque stellis

aureis chlamyde coronamque capite gerens Olympiacam dextra manu Pythiam praeeunte pompa

ceterarum cum titulis ubi et quos quo cantionum quove fabularum argumento vicisset sequentibus currum ovantium ritu plausoribus Augustianos militesque se triumphi eius

clamitantibus Dehinc diruto Circi Maximi arcu per Velabrum Forumque Palatium et Apollinem

petit Incedenti passim victimae caesae sparso per vias identidem croco ingestaeque aves ac

lemnisci et bellaria Sacras coronas in cubiculis circum lectos posuit item statuas suas

citharoedico habitu qua nota etiam nummum percussit Ac post haec tantum afuit a remittendo

laxandoque studio ut conservandae vocis gratia neque milites umquam nisi absens aut alio verba

pronuntiante appellaret neque quicquam serio iocove egerit [] (Suet Nero 251-3) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 207-

208) 1239

Mulheres deram agrave luz durante as apresentaccedilotildees e algumas pessoas tiveram que pular os muros

e fingirem-se de mortas para serem levadas para o enterro (Suet Nero 232) 1240

WALLACE-HADRILL 1995 p 188 O discurso proferido por Nero no qual concedeu a

liberdade sobrevive hoje numa inscriccedilatildeo de maacutermore fixada na parede da Igreja de Satildeo Jorge na

Beoacutecia Cf Inscriptiones Latinae Selectae (ILS) 8794

302

consequecircncia a arrecadaccedilatildeo fiscal do Impeacuterio Isso revela para todos sobretudo

para a elite romana que ele havia perdido qualquer traccedilo do senso financeiro que

outrora possuiacutea1241

E em terceiro lugar destacamos a construccedilatildeo por Nero de

uma paroacutedia do triunfo militar O bioacutegrafo alega que o princeps entra em Roma

subvertendo o triunfo em um desfile de atletas vitoriosos Ou seja ele propotildee que

a cerimocircnia natildeo contou com um general retornando agrave Itaacutelia cujo trajeto se

encerraria no Templo de Juacutepiter Capitolino e sim com um artista seguindo o

costume dos gregos vitoriosos cujo caminho terminaria no Templo de Apolo1242

Ainda sobre esse assunto Suetocircnio afirma que o soberano entra em Roma

utilizando a carruagem de Augusto Conforme Lefebvre tal afirmaccedilatildeo foi

realizada com dois propoacutesitos i) aproximar Nero de Augusto mostrando que este

respeitava aquele e queria imitaacute-lo e ii) distanciar os dois liacutederes denotando que

Nero ao contraacuterio de Augusto natildeo respeitava os ritos romanos Como argumenta

Lefebvre o bioacutegrafo um adorador do binaacuterio bom versus mau junta Nero e

Augusto em uma uniatildeo antiteacutetica a qual encarna as duas faces do poder o

governo ideal versus o mais terriacutevel1243

Natildeo eacute agrave toa que apoacutes relatar a viagem agrave

Greacutecia passa a exemplificar as deficiecircncias de caraacuteter neronianas a saber

petulacircncia libertinagem luxuacuteria avareza e crueldade defeitos que se

contrapunham agraves virtudes de Augusto1244

Por uacuteltimo eacute imprescindiacutevel mencionar a anaacutelise de Joly a respeito desse

episoacutedio Para o autor o bioacutegrafo centra-se excessivamente na personalidade de

Nero como se ele agisse de forma autocircnoma independentemente dos grupos que

lhe davam sustentaccedilatildeo poliacutetica em Roma Ao fazer isso ele ndash embora natildeo de

modo expliacutecito ndash segue a mesma oacutetica de Taacutecito na avaliaccedilatildeo de Nero a de que o

governo de um princeps soacute seria legiacutetimo se ele legislasse considerando todos os

grupos poliacuteticos sobretudo o Senado Em outras palavras Suetocircnio ao apresentar

Nero agindo a fim de satisfazer os seus proacuteprios interesses artiacutesticos compartilha

um pressuposto da historiografia taciteana o da imagem imperial desvinculada da

ideologia senatorial do senatus populusque romanus1245

Ao ponderarmos tal

1241

GRIFFIN 2001 p 206 1242

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 243 CIZEK 1982a p 21 CHARLES-

PICARD 1962 p 230-232 1243

LEFEBVRE 2017 p 262 1244

JOLY 2005 p 122 1245

JOLY 2005 p 122

303

raciociacutenio vemos que o soberano deixa de ser um Nero artista que exagera em

seu amor pela arte para se transformar em um Nero antiprinceps que perde o

equiliacutebrio entre a carreira musical e o governo

Os uacuteltimos episoacutedios da vida de Nero narrados por Suetocircnio satildeo a revolta

de Vindex e o suiciacutedio A descriccedilatildeo dos dois se inicia da seguinte maneira ldquotendo

suportado um governante deste tipo por pouco menos de 14 anos o mundo

finalmente o expulsa e os gauleses datildeo o primeiro passo sob a lideranccedila de Juacutelio

Vindex []rdquo1246

Conforme o bioacutegrafo o princeps estava em Naacutepoles quando

soube da revolta nas proviacutencias gaulesas Por oito dias trata o caso com

indiferenccedila sem mandar uma comissatildeo ou decidir algo Seu liberto Heacutelio deixado

no controle de Roma durante sua ausecircncia envia-lhe vaacuterias cartas solicitando seu

retorno e ele as ignora por completo1247

Ele soacute volta agrave Vrbs quando ouve

proclamaccedilotildees insultuosas de Vindex as quais o intitulam de Aenobarbo e peacutessimo

tocador de lira E mesmo de volta natildeo se dirige pessoalmente ao Senado e nem

ao povo reunindo apenas um conselho dos principais cidadatildeos1248

Agraves notiacutecias da rebeliatildeo Suetocircnio adiciona alguns ldquoplanos crueacuteisrdquo de Nero

assassinar os comandantes dos exeacutercitos e das proviacutencias degolar os gauleses e os

exilados presentes em Roma entregar as Gaacutelias ao saque dos exeacutercitos envenenar

o Senado inteiro entre outros Contudo alega que ele absteve-se dos planos mais

pela impossibilidade de executaacute-los e menos por arrependimento1249

Em seguida

o bioacutegrafo comenta que Nero decide organizar uma expediccedilatildeo contra os

revoltosos e para custeaacute-la impotildee com arrogacircncia novas taxas a todas as

categorias sociais aumentando o oacutedio contra si1250

Tal expediccedilatildeo natildeo sai

vitoriosa pois os exeacutercitos se juntam aos legionaacuterios revoltosos intensificando o

movimento Diante dessa notiacutecia Nero comeccedila a articular a fuga do seu liberto

Faonte para a uilla localizada a cerca de seis quilocircmetros da cidade

1246

Talem principem paulo minus quattuordecim annos perpessus terrarum orbis tandem destituit

initium facientibus Gallis duce Iulio Vindice qui tum eam provinciam pro praetore optinebat

(Suet Nero 401) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 218) 1247

Em resposta agraves cartas de Heacutelio o imperador escreveu ldquo[] antes de aconselhar e desejar meu

retorno raacutepido vocecirc deveria aconselhar e desejar que eu volte digno de Nerordquo ldquo[] Quamvis

nunc tuum consilium sit et votum celeriter reverti me tamen suadere et optare potius debes ut

Nerone dignus revertarrdquo (Suet Nero 231) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 206) 1248

Suet Nero 404-41 1249

Suet Nero 431 1250

Suet Nero 442 451

304

[] Exatamente como estava descalccedilo e com sua tuacutenica coloca um manto desbotado cobre a cabeccedila e [] monta em um cavalo na companhia de quatro criados [] [] Quando chegam a um atalho que conduzia agrave uilla soltam os cavalos que caminham por [] um matagal de junco ateacute a parede dos fundos da casa [] [] E depois de esperar um pouco ateacute que uma entrada secreta para a uilla pudesse ser feita pega na matildeo um pouco de

aacutegua para beber de um lamaccedilal proacuteximo dizendo ldquoeis a aacutegua fervida de Nerordquo Em seguida [] rasteja por uma passagem estreita que eles cavaram ateacute que esteja dentro da uilla [] Entatildeo como cada um dos seus companheiros o incita a salvar-se [] das indignidades que o ameaccedilavam ordena a eles que cavem uma cova [] proporcional ao tamanho de sua proacutepria pessoa e ao mesmo tempo tragam aacutegua e lenha para se

livrarem do seu cadaacutever Enquanto cada uma dessas coisas eacute feita ele chora e diz repetidas vezes ldquoque artista morre comigordquo Nesse momento uma carta eacute trazida a Faonte por um dos seus mensageiros Nero arrancando-a de sua matildeo lecirc que havia sido declarado inimigo puacuteblico pelo Senado e que o procuravam para puni-lo [] Naquele instante alguns cavaleiros se aproximam com a ordem de capturaacute-lo vivo Ao ouvi-los [] crava a adaga em sua garganta com a ajuda do seu secretaacuterio Epafrodito1251

Nero morreu com 32 anos de idade sendo enterrado em um funeral que

custou 200 mil sesteacutercios afirma Suetocircnio Suas cinzas colocadas em uma urna

de maacutermore e poacuterfiro foram depositadas na tumba da famiacutelia Domitii no topo da

Colina dos Jardins1252

No relato de Suetocircnio temos reaccedilotildees diacutespares agrave notiacutecia da

1251

[] ut erat nudo pede atque tunicatus paenulam obsoleti coloris superinduit adopertoque

capite et ante faciem optento sudario equum inscendit quattuor solis comitantibus inter quos et

Sporus erat [] Ut ad deverticulum ventum est dimissis equis inter fruticeta ac vepres per

harundineti semitam aegre nec nisi strata sub pedibus veste ad aversum villae parietem evasit Ibi

hortante eodem Phaonte ut interim in specum egestae harenae concederet negavit se vivum sub

terram iturum ac parumper commoratus dum clandestinus ad villam introitus pararetur aquam

ex subiecta lacuna poturus manu hausit et ldquoHaec estrdquo inquit ldquoNeronis decoctardquo Dein divolsa

sentibus paenula traiectos surculos rasit atque ita quadripes per angustias effossae cavernae

receptus in proximam cellam decubuit super lectum modica culcita vetere pallio strato

instructum fameque et iterum siti interpellante panem quidem sordidum oblatum aspernatus est aquae autem tepidae aliquantum bibit Tunc uno quoque hinc inde instante ut quam primum se

impendentibus contumeliis eriperet scrobem coram fieri imperavit dimensus ad corporis sui

modulum componique simul si qua invenirentur frusta marmoris et aquam simul ac ligna

conferri curando mox cadaveri flens ad singula atque identidem dictitans ldquoQualis artifex

pereordquo Inter moras perlatos a cursore Phaonti codicillos praeripuit legitque se hostem a senatu

iudicatum et quaeri ut puniatur more maiorum interrogavitque quale id genus esset poenae et

cum comperisset nudi hominis cervicem inseri furcae corpus virgis ad necem caedi conterritus

duos pugiones quos secum extulerat arripuit temptataque utriusque acie rursus condidit

causatus nondum adesse fatalem horam [] Iamque equites appropinquabant quibus praeceptum

erat ut vivum eum adtraherent Quod ut sensit trepidanter effatus ldquoππων μrsquo ὠκυπόδων ἀμφὶ

κτύπος οὔατα βάλλειrdquo ferrum iugulo adegit iuvante Epaphrodito a libellis (Suet Nero 481 483-

4 491-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 223-225) 1252

Suet Nero 501

305

morte de Nero Para alguns tamanha foi a alegria com sua morte que vestiram

pileus da liberdade e correram por toda a cidade Outros ao contraacuterio decoraram

seu tuacutemulo com flores e agraves vezes postaram seus decretos como se ele ainda

estivesse vivo e logo fosse voltar para se vingar dos seus inimigos1253

O relato de Suetocircnio dos uacuteltimos eventos da vida de Nero eacute ateacute hoje

admirado por sua vivacidade e legibilidade Townend caracteriza a narrativa como

a histoacuteria de ldquomaior sucessordquo do De Vita Caesarum e outros estudiosos a

exemplo de Baldwin concordam com ele1254

Townend observa que o sucesso do

relato estaacute vinculado ao que ele intitula de ldquolei da relevacircncia biograacuteficardquo segundo

a qual os detalhes do enredo foram apresentados com o intuito de reforccedilar os

retratos neronianos jaacute erigidos ao longo do texto1255

A nosso ver o primeiro retrato reforccedilado foi o do Nero antiprinceps O

bioacutegrafo ao mencionar a negligecircncia do soberano com a revolta nas Gaacutelias

retoma a ideia veiculada nos episoacutedios dos conflitos na Armecircnia e na Britacircnia de

que o liacuteder natildeo se interessava pelos assuntos militares A tal ideia acrescenta outro

retrato o do Nero artista cujo amor pelas artes era tatildeo intenso a ponto de fazecirc-lo

retornar a Roma haja vista que se sentiu ofendido por Vindex Dito isso o

bioacutegrafo afirma que Nero mesmo de volta agrave Vrbs natildeo se reuniu com o Senado e

nem com suas tropas convocando apenas um conselho privado de cidadatildeos

Mais um retrato fortalecido pelo bioacutegrafo foi o do Nero cruel Notemos

que juntamente agrave exposiccedilatildeo dos episoacutedios ele insere ldquoplanosrdquo que evidenciam o

desejo imperial de exterminar os revoltosos Na visatildeo de Brandatildeo o apontamento

de tal vontade indica natildeo soacute o peacutessimo caraacuteter de Nero como tambeacutem a

degradaccedilatildeo da sua impiedade Os crimes cometidos dentro do ciacuterculo familiar

palaciano como os assassinatos de Britacircnico Agripina Otaacutevia e Popeia

alargaram-se para pessoas de fora da casa imperial gerando um leque arbitraacuterio de

viacutetimas e de pretextos Ou seja se a personalidade de Nero jaacute era desumana ndash e

despertava horror e indignaccedilatildeo nos leitores ndash aqui se tornou mais ainda No final

das contas entatildeo o De Vita Caesarum nos lega a imagem de um ser

desmesuradamente insensiacutevel que representava perigo para a vida de todos1256

1253

Suet Nero 571 1254

TOWNEND 1967 p 93 BALDWIN 1983 p 174-175 1255

TOWNEND 1967 p 95 1256

BRANDAtildeO 2008a p 118

306

Outro retrato revigorado foi o do Nero tirano Suetocircnio alega que o

princeps para custear a campanha militar contra os gauleses fixa impostos de

modo arrogante sem se importar se os indiviacuteduos poderiam pagaacute-los Por oacutebvio

essa accedilatildeo gerou insatisfaccedilatildeo e o bioacutegrafo insiste em comentar sobre os modos

como as pessoas a demonstraram publicamente durante a noite depredaram suas

estaacutetuas e ldquo[] escreveram nas colunas que ele havia incitado ateacute os gauleses com

seu cantordquo1257

Em outros termos sua atitude autoritaacuteria fez com que aqueles que

o amavam retirassem seu apoio deixando-o sozinho na gerecircncia do Impeacuterio E

seria assim que viveria seus uacuteltimos dias afinal precisava sofrer as consequecircncias

dos seus atos tiracircnicos

O uacuteltimo retrato consolidado foi outra vez o do Nero artista Nas palavras

de Brandatildeo as aspiraccedilotildees artiacutesticas de Nero influenciaram muito Suetocircnio na

redaccedilatildeo dessa parte do De Vita Caesarum Nesse ponto o bioacutegrafo narra

milimetricamente cada passo do soberano acentuando o aspecto teatral de cada

momento Ao colocar Nero dizendo que morria como artifex Suetocircnio criou um

liacuteder que desempenhou sua proacutepria trama real isto eacute que finalmente conseguiu

unir a vida real agrave arte

Antes de finalizar precisamos discutir acerca do dispendioso funeral do

princeps e das emoccedilotildees variadas que sua morte despertou No tocante ao enterro

Suetocircnio parece utilizaacute-lo como instrumento para concretizar a luxuacuteria desmedida

de Nero E quanto agraves emoccedilotildees mostra que nem todos ficaram felizes Esse fato a

nosso ver indica ainda haver uma disputa em torno da imagem de Nero que

predominaria Apesar de toda a desmoralizaccedilatildeo sofrida pelo soberano ateacute ali sua

imagem negativa ainda natildeo imperava sozinha Suetocircnio apresenta alguns

indiviacuteduos inclusive que vatildeo seguir acreditando que ele natildeo havia morrido De

fato 20 anos apoacutes o seu falecimento em 88 surge um aventureiro dizendo ser

Nero1258

Suetocircnio natildeo silencia sobre isso mostrando que era necessaacuterio mostrar a

apreciaccedilatildeo positiva que seguia existindo ainda no seu tempo

Finalmente apoacutes investigarmos os retratos de Nero contidos no De Vita

Caesarum tivemos as seguintes categorias i) Nero infausto (nascimento e

1257

Ascriptum et columnis etiam Gallos eum cantando excitasse (Suet Nero 452) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 221-

222) 1258

Suet Nero 572

307

adoccedilatildeo de Nero) ii) Nero cruel (casamento com Otaacutevia casamento com Popeia

divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia conspiraccedilatildeo de Pisatildeo assassinato de

Popeia casamento com Messalina e revolta de Vindex) iii) Nero prodigioso

(ascensatildeo) iv) Nero antiprinceps (conflito com os partas jogos no anfiteatro

Juvenalia conflito na Britacircnia turnecirc artiacutestica pela Greacutecia e revolta de Vindex)

v) Nero fratricida (assassinato de Britacircnico) vi) Nero tirano (assassinato de

Britacircnico casamento com Popeia divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia ida de

Tiridates a Roma e revolta de Vindex) vii) Nero artista (jogos no anfiteatro

assassinato de Agripina Juvenalia primeira e segunda ediccedilotildees dos Neronia

Naacutepoles ida de Tiridates a Roma turnecirc artiacutestica pela Greacutecia revolta de Vindex e

suiciacutedio) viii) Nero matricida e Nero vaidoso (assassinato de Agripina) ix) Nero

incendiaacuterio (incecircndio de Roma) x) Nero construtor (construccedilatildeo da Domus

Aurea) e xi) Nero uxoricida (assassinatos de Otaacutevia e de Popeia)

Por intermeacutedio delas pudemos ver que a maneira de Suetocircnio representar

o soberano foi diferente da utilizada por autores anteriores a ele ainda que

preservasse muitos dos traccedilos jaacute observados em novos arranjos Sua biografia foi

elaborada por meio de uma organizaccedilatildeo temaacutetica construiacuteda a partir da seleccedilatildeo

daquilo que mais lhe interessou mostrar para seu leitor que Nero natildeo tardou em

revelar o seu verdadeiro e pior lado Como vimos o bioacutegrafo comeccedilou seu texto

abordando o peacutessimo caraacuteter imperial herdado dos Domiacutecios e de Agripina Tal

caraacuteter figurado no Nero infausto foi brevemente neutralizado pelo Nero

prodigioso cuja ascensatildeo trouxe o despertar das antigas virtudes augustanas

(clemecircncia generosidade amabilidade entre outras) Estas constituiacuteram as

melhores qualidades de Nero senatildeo as uacutenicas Juntamente ao Nero prodigioso

Suetocircnio delineou o Nero artista que no iniacutecio promoveu espetaacuteculos incriacuteveis

mas depois perdeu o senso da realidade Ao Nero artista ele tambeacutem acrescentou

os Neros tirano cruel matricida uxoricida incendiaacuterio e construtor os quais

concretizaram a degradaccedilatildeo moral que ele acreditava ter o imperador vivido

Nesse cenaacuterio emergiu uma lista de viacutecios cuja extensatildeo foi bem maior do que a

da lista das virtudes petulacircncia libido luxuacuteria extravagacircncia

insensibilidade1259

1259

HURLEY 2013 p 19

308

Enfim Suetocircnio colocou sua proacutepria marca na histoacuteria de Nero julgando o

que achou certo ou errado Isso significa que sua escrita deve ser entendida como

uma manifestaccedilatildeo consciente das suas concepccedilotildees morais e poliacuteticas que em

geral seguiram o eixo da criacutetica ao poder absoluto Natildeo foi agrave toa que ele

demonstrou um claro sentimento de aversatildeo em relaccedilatildeo aos comportamentos

autoritaacuterios de Nero

Por fim cabe dizer que o argumento de Joly se sustentou a narrativa do

bioacutegrafo natildeo se afastou tanto assim da dos Annales1260

Ficou claro que os traccedilos

constituintes fundamentais do Nero de Suetocircnio satildeo novos e simultaneamente

velhos Ou seja de formas direta e indireta o bioacutegrafo reforccedilou a criacutetica taciteana

preteacuterita de um governo autoritaacuterio e deu a ela seus tons proacuteprios Tal

compreensatildeo soacute foi possiacutevel em funccedilatildeo do conceito de allelopoiesis o qual nos

permitiu avaliar o repertoacuterio dos vaacuterios Neros criados pelas fontes que se

transforma em um indiviacuteduo presente em diversas temporalidades e ao mesmo

tempo modifica as formas como as entendemos As novas formas construiacutedas

motivadas por novos contextos levavam a se pensarem ou a se recomporem

novos traccedilos para o desenho de Nero mas os traccedilos eram fundamentalmente de

mateacuteria jaacute conhecida Simultaneamente esses novos retratos de Nero geravam a

compreensatildeo da sua proacutepria eacutepoca de um modo novo pela exemplaridade que

trazia e pela capacidade de interferecircncia em uma realidade na qual

paradoxalmente o imperador natildeo vivia mas se fazia presente como

exemplaridade multifacetada e disputada O exame de Nero nos retratos muacuteltiplos

de Suetocircnio e de Taacutecito entatildeo mostra como eacute simplificadora a noccedilatildeo de que cada

eacutepoca produz o seu proacuteprio Nero no final os Neros satildeo sempre muitos ndash e

prometem ainda serem muitos1261

Diatildeo Caacutessio Historia Romana

E como podem ser muitos vejamos os (re)tratados por Diatildeo Caacutessio

Cocceiano Ele nasceu em uma famiacutelia de senadores na cidade de Niceia

1260

JOLY 2005 p 125 1261

FAVERSANI 2020 p 390

309

proviacutencia da Bitiacutenia entre os anos de 155 a 1641262

Tal proviacutencia localizava-se no

noroeste da Aacutesia Menor na parte oriental do Impeacuterio Romano ou seja era uma

regiatildeo de cultura predominantemente grega1263

Seu pai Caacutessio Aproniano

assumiu postos poliacuteticos importantes em vida tanto no consulado quanto no

Senado1264

Apoacutes a morte do progenitor Diatildeo Caacutessio resolve ir para Roma em

torno do ano 180 para finalizar sua formaccedilatildeo retoacuterica jaacute iniciada em Niceia1265

Terminados os estudos comeccedila o cursus honorum servindo em magistraturas

mais baixas ateacute alcanccedilar o Senado De acordo com as obras do proacuteprio autor soacute

podemos precisar com certeza os seguintes cargos a pretura (sem data

precisa)1266

dois consulados a curatoria em Peacutergamo e em Esmirna

possivelmente durante o governo de Macrino e por fim o governo provincial da

Aacutefrica da Dalmaacutecia e da Panocircnia superior sendo esse provavelmente sob

Severo Alexandre1267

Apoacutes o governo de tal imperador natildeo temos mais

informaccedilotildees sobre Diatildeo Caacutessio o que nos leva a conjeturar que ele deve ter

falecido pouco depois1268

Em sua vida Diatildeo Caacutessio compocircs duas obras A primeira foi o livro Sobre

sonhos e pressaacutegios dedicado e enviado ao imperador Septiacutemio Severo em

1931269

E a segunda foi a Historia Romana um ambicioso projeto de 80 livros

elaborado entre 211 e 235 em que relata a histoacuteria de Roma dos seus primoacuterdios

ateacute o governo de Alexandre Severo Das composiccedilotildees resta-nos hoje apenas a

segunda e mesmo assim de forma fragmentaacuteria dos 80 livros temos soacute 25

preservados graccedilas aos epiacutetomes elaborados pelos monges bizantinos Xifilino e

Zonara1270

De acordo com Harrington para produzir a sua Historia Romana Diatildeo

Caacutessio leu e reuniu diversos materiais por um periacuteodo de quase 10 anos A

1262

CARY 1914-1927 p ix ldquoApesar de ser nativo de uma regiatildeo na porccedilatildeo oriental do Impeacuterio e

de ter o grego e natildeo o latim como idioma nativo Diatildeo Caacutessio se encontrava identificado com a

aristocracia senatorial romana considerando-se a si proacuteprio romanordquo (CORREcircA 2019 p 28) 1263

AALDERS 1986 p 302 1264

Dio 7272-4 RICH 1990 p 1 1265

MILLAR 1964 p 14-15 1266

De acordo com Coneglian (2012 p22) os pretores eram os responsaacuteveis pela aplicaccedilatildeo da

justiccedila e podiam ser divididos em pretores urbanus (cuidavam dos processos entre os cidadatildeos) e

pretores peregrinus (cuidavam dos litiacutegios civis ou criminais que envolvessem estrangeiros) Eram

eleitos anualmente 1267

Dio 73122 7621 7813-5 7974 8052 1268

CARY 1914-1927 p xii Sobre a biografia de Diatildeo Caacutessio cf MILLAR 1964 p 5-27 1269

GONCcedilALVES 2013 p143 1270

DE BLOIS FUNKE HAHN 2006 p 270

310

redaccedilatildeo da obra foi norteada pelo seu interesse de enaltecer o governo de Septiacutemio

Severo o que o levou a interpretar as fontes a partir de uma oacutetica pessoal e

enviesada por seus interesses especiacuteficos de honrar o governante de seu tempo

Harrington indica que Diatildeo Caacutessio se aproximou da perspectiva histoacuterica

moralizante de Ciacutecero e de Plutarco mas tambeacutem da perspectiva de

instrumentalizaccedilatildeo das fontes Tucidideanas1271

Ademais Diatildeo Caacutessio por ter

vivido em um periacuteodo de guerras civis e trocas de imperadores privilegiou os

eventos militares fazendo descriccedilotildees bem detalhadas de combates e de taacuteticas de

guerra Nesse sentido elogiou os generais e os soberanos que se preocupavam

com os assuntos militares e condenou aqueles que os ignoravam1272

Para aleacutem dessa visatildeo militar ele tambeacutem tinha uma visatildeo poliacutetica dos

fatos haja vista que na maior parte do tempo testemunhou o caos aflorar

enquanto sentado na cadeira de senador Assim apresentou o sistema poliacutetico do

Impeacuterio como algo em crise com os senadores perdendo suas posiccedilotildees

privilegiadas de que gozavam haacute seacuteculos e com suas responsabilidades sendo

transferidas gradualmente para os equestres1273

A seu ver a ordem das coisas soacute

seria restabelecida ndash isto eacute os privileacutegios do Senado soacute seriam assegurados ndash com

o estabelecimento de uma monarquia estaacutevel E para tanto era imprescindiacutevel

que o monarca possuiacutesse um rol de virtudes especiacuteficas como liberalitas

prudentia e clementia caso contraacuterio se o governo caiacutesse nas matildeos de um

monarca inadequado a paz e a estabilidade nunca seriam alcanccediladas Resumindo

Diatildeo Caacutessio considerava que o equiliacutebrio advindo de um governo absoluto era

maior e mais importante do que a liberdade poliacutetica dos senadores poreacutem o

imperador jamais poderia almejar o poder individual exclusivo e ignorar por

completo a autoridade dos senadores1274

Eacute aiacute que entra a sua representaccedilatildeo de

Nero O seu princeps foi descrito dentro dessa loacutegica do que um liacuteder deveria ou

natildeo fazer para garantir a harmonia no Impeacuterio Em outros termos Nero foi lido

como um bom ou como mau exemplum conforme suas atitudes em relaccedilatildeo agraves

instituiccedilotildees poliacuteticas e conforme se aproximasse ou se afastasse do ideal de

princeps que Diatildeo Caacutessio imaginou para sua proacutepria eacutepoca

1271

HARRINGTON 1977 p 160-162 1272

HARRINGTON 1977 p 160-162 1273

MADSEN 2020 p 2 1274

MADSEN 2020 p 117

311

Dada essa introduccedilatildeo tratemos entatildeo do primeiro episoacutedio descrito por

Diatildeo Caacutessio o nascimento do soberano O historiador conta a chegada do

imperador ao mundo com as seguintes palavras

O que se segue foram pressaacutegios do futuro governo de Nero

Quando ele nasceu raios de luz o cercaram pouco antes do amanhecer embora natildeo viessem de nenhuma luz solar observaacutevel Com base nisso e pelo movimento das estrelas daquela eacutepoca [] um astroacutelogo fez duas profecias sobre ele ele governaria e mataria sua matildee Quando Agripina ouviu isso ficou [] tatildeo perturbada que gritou [] ldquodeixe que ele me mate contanto que governerdquo embora mais tarde ela lamente

amargamente essa fala [] No entanto no que diz respeito agrave imoralidade e agrave lasciacutevia de Nero seu pai Domiacutecio viu-as chegando e natildeo por profecia mas por seu proacuteprio caraacuteter e pelo de Agripina ldquoEacute impossiacutevelrdquo disse ele ldquoque qualquer homem bom nasccedila de mim e desta mulherrdquo1275

Eacute possiacutevel perceber que Diatildeo Caacutessio elabora seu relato com base nas obras

de Taacutecito e Suetocircnio No caso dos Annales ele repete a personagem do astroacutelogo

e as profecias do futuro governo e do matriciacutedio E no caso do De Vita Caesarum

reutiliza a consulta ao astroacutelogo o lamento de Domiacutecio e as falhas do caraacuteter

deste de Agripina e por conseguinte de Nero Mas Diatildeo Caacutessio ao contraacuterio dos

dois autores eacute mais hostil natildeo se contentando em dizer que Nero assassinaria a

matildee ou seria um imperador infausto Ele vai aleacutem especifica a imoralidade e a

lasciacutevia do jovem Ou seja eacute menos hesitante em expressar sua hostilidade

demarcando e singularizando desde o princiacutepio o peacutessimo caraacuteter do

soberano1276

Segundo Kemezis esse destaque dado aos viacutecios relaciona-se com a

forma como Diatildeo Caacutessio redigiu sua narrativa histoacuterica a saber a partir de um

modelo de imperador e de Principado Para ele o liacuteder ideal deveria ser algueacutem

orientado pelas virtudes e natildeo pelas paixotildees O Principado demandava regras de

1275

σημεῖα δ᾽ αὐτῷ τῆς αὐταρχίας τάδε ἐγένετο ἀκτῖνες γὰρ τικτόμενον αὐτὸν ὑπὸ τὴν ἕω ἐξ

οὐδεμιᾶς τοῦ ἡλίου φανερᾶς προσβολῆς περιέσχον καί τις ἀστρολόγος ἔκ τε τούτων καὶ ἐκ τῆς τῶν

ἀστέρων φορᾶς τῆς ἐν ἐκείνῳ τῷ χρόνῳ καὶ πρὸς ἀλλήλους ὁμιλίας δύο ἅμα περὶ αὐτοῦ

ἐμαντεύσατο ὅτι τε βασιλεύσει καὶ ὅτι τὴν μητέρα φονεύσει ἀκούσασα δὲ ταῦθ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα

παραυτίκα μὲν οὕτως ἐξεφρόνησεν ὡς καὶ αὐτὸ τοῦτο ἀναβοῆσαι lsquoἀποκτεινάτω με μόνον

βασιλευσάτωrsquo ὕστερον δὲ καὶ πάνυ μετανοήσειν ἐπὶ τῇ εὐχῇ ἔμελλεν ἐς γὰρ τοῦτο μωρίας

ἀφικνοῦνταί τινες ὥστε ἄν τι προσδοκήσωσιν ἀγαθὸν κακῷ μεμιγμένον λήψεσθαι εὐθὺς μὲν

ἐπιθυμίᾳ τοῦ κρείττονος καταφρονεῖν τοῦ χείρονος ἐπειδὰν δὲ καὶ ἐκείνου ὁ καιρὸς ἔλθῃ

δυσκολαίνειν καὶ μὴ ἂν μηδὲ τὸ βέλτιστον (Dio 61b21-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 37) 1276

HURLEY 2013 p 32

312

comportamento para seus liacutederes e bons imperadores deveriam conter seus viacutecios

se quisessem viver em harmonia com a sociedade sobretudo com a elite

senatorial1277

Em siacutentese um bom Principado dependia do bom caraacuteter do

governante o que nos leva a concluir que para Diatildeo Caacutessio do Nero infausto soacute

viria um governo infausto Cabe frisar que o controle do imperador por terceiros

que governassem externamente agrave Casa Imperial no seacuteculo III jaacute parecia algo

menos tangiacutevel por parte de membros da elite senatorial A visatildeo de um governo

mais fechado na Casa Imperial predomina em Diatildeo Caacutessio como uma visatildeo de seu

tempo aplicada ao seacuteculo I A partir dessa visatildeo constroacutei um Nero que serviraacute de

exemplo para entender seu tempo por allelopoiesis

Eacute vaacutelido dizer tambeacutem que a Historia Romana foi escrita mais de um

seacuteculo depois dos Annales e do De Vita Caesarum A distacircncia temporal entre as

composiccedilotildees adicionada agrave permanecircncia de alguns elementos evidencia a tradiccedilatildeo

negativa sobre o nascimento de Nero Isso significa que no seacuteculo III as

narrativas jaacute natildeo eram mais tatildeo independentes umas das outras e que certos temas

seguiam um padratildeo esperado tanto para a escolha quanto para a avaliaccedilatildeo dos

episoacutedios Diatildeo Caacutessio seleciona julgamentos acerca de Nero que eram anteriores

a ele e que tinham sido construiacutedos a partir de um ponto de vista especiacutefico ndash

tratava-se de um repertoacuterio jaacute estabelecido atraveacutes de geraccedilotildees Tal accedilatildeo o faz

ignorar determinados aspectos e se concentrar em outros mais conhecidos

produzindo um Nero que ganha forccedila entre um puacuteblico amplo o Nero ruim desde

o nascimento1278

13 anos depois Agripina casa-se com Claacuteudio e o faz adotar Nero

Os libertos zelosamente ajudam a realizar esse casamento pois Agripina tinha um filho Domiacutecio que jaacute se aproximava da idade de ingressar na carreira puacuteblica e ela queria criaacute-lo como sucessor de Claacuteudio [] Assim que Agripina vai morar no palaacutecio ela assume o controle total sobre Claacuteudio Na verdade ela era muito inteligente em aproveitar ao maacuteximo as

oportunidades [] [Ela] faz com que seu filho Britacircnico seja criado como se fosse um mero ningueacutem [] Ela faz com que Claacuteudio [] adote Domiacutecio Enquanto Nero eacute promovido Britacircnico natildeo recebe honra e nem atenccedilatildeo Ao contraacuterio Agripina remove [] aqueles que lhe eram devotados []1279

1277

KEMEZIS 2014 p 90-149 1278

MANUWALD 1979 p 45-56 FAVERSANI 2020 p 391 1279

ἐκείνης δ᾽ οὕτω διαφθαρείσης τὴν Ἀγριππῖναν τὴν ἀδελφιδῆν ἔγημε σπουδῇ τῶν ἀπελευθέρων

ὅτι τὸν Δομίτιον ἐς προσήβους ἤδη τελοῦντα εἶχεν υἱόν ὅπως ἔφεδρον αὐτὸν τῇ ἀρχῇ ὡς δ᾽ ἅπαξ ἐν

313

Aqui Diatildeo Caacutessio enfatiza o controle de Agripina sobre Claacuteudio

pintando-a como uma mulher manipuladora que forccedilou o imperador a adotar

Nero Essa representaccedilatildeo evoca elementos presentes no texto de Taacutecito Nos

Annales a adoccedilatildeo tambeacutem eacute retratada como um objetivo pessoal da matrona e

natildeo como uma poliacutetica dinaacutestica adotada pelo proacuteprio Claacuteudio Contudo na

Historia Romana de modo diverso dos Annales o foco reside apenas em

Agripina natildeo havendo outros agentes (como Pallas) Ela eacute a uacutenica responsaacutevel

por preparar o caminho para Nero Somemos a isso o fato de que os romanos em

geral natildeo adotavam quando jaacute havia uma linha clara de sucessatildeo As exceccedilotildees

notaacuteveis foram Tibeacuterio que adotou Germacircnico quando jaacute tinha o filho Druso e

Claacuteudio que adotou Nero contra os interesses de Britacircnico Isso se explica porque

as adoccedilotildees fora da linha de sucessatildeo costumavam provocar insatisfaccedilatildeo na elite

senatorial1280

Poreacutem a astuacutecia de Agripina era tatildeo grande que ela faz seu marido

ignorar os possiacuteveis descontentamentos e escolher Nero pois sua sede pelo poder

era enorme Portanto entendemos que a adoccedilatildeo eacute figurada por Diatildeo Caacutessio como

uma trama de Agripina natildeo havendo participaccedilatildeo do princeps o que resulta na

impossibilidade de categorizar o episoacutedio

Mais tarde Claacuteudio adoece afirma Diatildeo Caacutessio Nero dominado pela

matildee entra no Senado e promete uma corrida de bigas caso ele melhore Enquanto

isso Agripina convence Claacuteudio a escrever uma carta agrave Cuacuteria informando que se

ele morresse Nero poderia administrar os negoacutecios do Estado Em consequecircncia

seu nome circula na boca de todos e o de Britacircnico fica esquecido com muitos o

chamando de louco e epileacuteptico pois Agripina assim dizia Quando Claacuteudio se

τῷ βασιλείῳ ἡ Ἀγριππῖνα ἐγένετο τόν τε Κλαύδιον ἐσφετερίσατο δεινοτάτη που οὖσα πράγμασι

χρῆσθαι καὶ τούς τινα αὐτοῦ εὔνοιαν ἔχοντας τὰ μὲν φόβῳ τὰ δὲ εὐεργεσίαις ᾠκειώσατο καὶ τέλος

τὸν Βρεττανικὸν τὸν παῖδα αὐτοῦ ὡς καὶ τῶν τυχόντων τινὰ τρέφεσθαι ἐποίει ὁ γὰρ ἕτερος ὁ καὶ τὴν τοῦ Σεϊανοῦ θυγατέρα ἐγγυησάμενος ἐτεθνήκει τόν τε Δομίτιον τότε μὲν γαμβρὸν τῷ Κλαυδίῳ

ἀπέδειξεν ὕστερον δὲ καὶ ἐσεποίησεν ἔπραξεν δὲ ταῦτα τὸ μέν τι διὰ τῶν ἀπελευθέρων ἀναπείσασα

τὸν Κλαύδιον τὸ δὲ καὶ τὴν γερουσίαν καὶ τὸν δῆμον τούς τε στρατιώτας ἐπιτήδειόν τι ἀεί ποτε ἐς

αὐτὰ συμβοᾶν ὅτι ἡ Ἀγριππῖνα τὸν υἱὸν ἐς τὸ κράτος ἐξήσκει καὶ παρὰ τῷ Σενέκᾳ ἐξεπαίδευε

πλοῦτόν τε ἀμύθητον αὐτῷ συνέλεγεν οὐδὲν οὔτε τῶν σμικροτάτων οὔτε τῶν ἀτιμοτάτων ἐπ᾽

ἀργυρισμῷ παραλείπουσα ἀλλὰ πάντα μὲν καὶ τὸν ὁπωσοῦν εὐποροῦντα θεραπεύουσα πολλοὺς δὲ

καὶ δι᾽ αὐτὸ ὁπότε δὲ ὁ Κλαύδιος τὸν Νέρωνα τὸν υἱὸν αὐτῆς ἐσεποιήσατό τε καὶ γαμβρὸν

ἐποιήσατο τὴν θυγατέρα ἐς ἕτερόν τι γένος ἐκποιήσας ἵνα μὴ ἀδελφοὺς συνοικίζειν δοκῇ τέρας οὐ

μικρὸν ἐγένετο καίεσθαι γὰρ ὁ οὐρανὸς τὴν ἡμέραν ἐκείνην ἔδοξεν ὅτι ὁ μὲν Νέρων ηὔξετο

Βρεττανικὸς δὲ οὔτε τινὰ τιμὴν οὔτε ἐπιμέλειαν εἶχεν ἀλλ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα τούς τε ἄλλους τοὺς

περιέποντας αὐτὸν τοὺς μὲν ἐξέβαλε τοὺς δὲ καὶ ἀπέκτεινε καὶ τὸν Σωσίβιον [] (Dio 60318

321-3 3322 325) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 17-21) 1280

LINDSAY 2009 p 145

314

recupera Nero conduz a corrida de bigas e casa-se com Otaacutevia1281

No dia do

enlace ldquo[] ocorre um poderoso pressaacutegio O ceacuteu parecia estar em chamas

naquele diardquo1282

Notemos que o casamento tambeacutem eacute divulgado com ecircnfase na habilidade

de Agripina em manipular tanto os que estavam em torno de Claacuteudio quanto as

circunstacircncias necessaacuterias para o avanccedilo de Nero Vagarosamente ela vai

construindo a imagem do futuro soberano na mente da populaccedilatildeo de modo que

seu filho eacute visto como o uacutenico sucessor possiacutevel1283

Para Schulz a atitude de

Diatildeo Caacutessio em relaccedilatildeo a ela natildeo eacute nada benevolente pois ele entendia que o

domiacutenio excessivo dela representava uma ameaccedila agrave ordem do Estado 1284 Fischler

Beacutelo e Funari explicam que a elite senatorial romana acreditava que os bons

principes deveriam ter mulheres e matildees controlaacuteveis e conscientes dos seus

limites Nesse sentido Agripina ao dominar Claacuteudio evidenciava que o poder

natildeo residia no imperador mas nela1285

e por conseguinte mostrava tambeacutem que o

poder natildeo residiria em Nero quando ele assumisse o trono Portanto temos uma

clara insinuaccedilatildeo de que natildeo havia a possibilidade de existir um bom governo

enquanto a transgressora dos papeacuteis sociais estivesse por perto Natildeo agrave toa Diatildeo

Caacutessio afirma que no dia do matrimocircnio o ldquoceacuteu parecia estar em chamasrdquo eacute um

poderoso pressaacutegio negativo do Nero infausto e de tudo o que estava por vir

Ainda sobre esse episoacutedio consideramos que o autor atraveacutes da inuentio

que privilegiava o interior da Casa Imperial e suas intrigas natildeo soacute fortalece a

imagem negativa de Agripina ndash jaacute existente nos textos de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o

Velho Taacutecito e Suetocircnio ndash como acrescenta a ela um elemento novo o de uma

mulher capaz de dar ordens diretas ao marido A nosso ver Diatildeo Caacutessio incorpora

um aspecto da esfera de referecircncia do passado ndash o retrato ambicioso da matrona ndash

1281

Dio 60339 Em 60337-8 Diatildeo Caacutessio relata que quando foi decidido o casamento

Agripina e Viteacutelio convenceram Claacuteudio a matar Silano jaacute noivo de Otaacutevia alegando que este

estava conspirando contra aquele 1282

τὴν θυγατέρα ἐς ἕτερόν τι γένος ἐκποιήσας ἵνα μὴ ἀδελφοὺς συνοικίζειν δοκῇ τέρας οὐ μικρὸν

ἐγένετο καίεσθαι γὰρ ὁ οὐρανὸς τὴν ἡμέραν ἐκείνην ἔδοξεν (Dio 613322) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 31) 1283

GINSBURG 2006 p 34-35 1284

SCHULZ 2019 p 205 1285

FISCHLER 1994 p 127-128 BEacuteLO FUNARI 2017 p 82 Treggiari (1996 p 125)

argumenta que as mulheres imperiais comeccedilaram a ganhar mais independecircncia na transiccedilatildeo do

final da Repuacuteblica para o iniacutecio do Impeacuterio tomando a frente em assuntos do Estado O problema

era quando elas violavam o que era visto como funccedilotildees primaacuterias do imperador provocando uma

mudanccedila na natureza de governar (FISCHLER 1994 p 125-127)

315

e modifica a esfera de recepccedilatildeo criando o retrato de uma matrona com uma

ambiccedilatildeo puacuteblica que se construiacutea no ambiente da domus Tal processo culmina na

elaboraccedilatildeo da imagem de um Nero muito mais fraco e controlado do que os Neros

preteacuteritos cujo casamento consequentemente tambeacutem se tornou mais

infausto1286

O proacuteximo episoacutedio eacute a ascensatildeo de Nero Diatildeo Caacutessio afirma que nada

mais satisfazia Agripina Embora privileacutegios e honras tivessem sido dados a ela a

ponto de ela exercer quase que o mesmo poder que Claacuteudio ela seguia desejando

o tiacutetulo imperial1287

Assim este comeccedila a se enfurecer com a esposa observando

todas as suas manipulaccedilotildees sobretudo as relacionadas a Britacircnico Agrave vista disso

ele aumenta os afetos para com o filho e inicia os preparativos para tornaacute-lo

herdeiro do trono1288

Vendo tal atitude Agripina fica alarmada e resolve

assassinar Claacuteudio colocando um veneno em um cogumelo1289

O imperador logo

sente os efeitos falecendo durante a noite1290

[] E assim Nero tendo primeiramente destruiacutedo o testamento de Claacuteudio e tendo-o sucedido como mestre de todo o Impeacuterio

coloca Britacircnico e suas irmatildes fora do caminho [] [] Ele

tinha dezessete anos quando comeccedilou a governar Entra primeiramente no acampamento e depois de ler para os soldados o discurso que Secircneca havia escrito para ele promete a eles tudo o que Claacuteudio havia lhes dado Diante do Senado lecirc um discurso semelhante tambeacutem redigido por Secircneca []1291 Os senadores portanto preparam-se para desfrutar de um bom reinado []1292

1286

BERGEMANN 2019 p 9 1287

Dio 603312 1288

Dio 60341 1289

Dio 60342 1290

Dio 60343 Nesta ocasiatildeo Diatildeo Caacutessio comenta que Secircneca escreveu a Apocolocyntosis

ridicularizando Claacuteudio seu governo e sua deificaccedilatildeo (Dio 60353) 1291

Diatildeo Caacutessio (Dio 6131) registra que esse discurso foi tatildeo aclamado que o Senado ordenou

que fosse inscrito em uma coluna de prata e lido anualmente 1292

ἀποθανόντος δὲ τοῦ Κλαυδίου κατὰ μὲν τὸ δικαιότατον ἡ ἡγεμονία τοῦ Βρεττανικοῦ ἦν ῾γνήσιος

γὰρ τοῦ Κλαυδίου παῖς ἐπεφύκει καὶ τῇ τοῦ σώματος ἀκμῇ καὶ ὑπὲρ τὸν τῶν ἐτῶν ἀριθμὸν ἤνθεἰ ἐκ

δὲ δὴ τοῦ νόμου καὶ τῷ Νέρωνι διὰ τὴν ποίησιν ἐπέβαλλεν ἀλλ᾽ οὐδὲν γὰρ [] ἑπτὰ δὲ καὶ δέκα ἔτη

ἦγεν ὅτ᾽ ἦρξεν ἔς τε τὸ στρατόπεδον ἐσῆλθε καὶ ἀναγνοὺς ὅσα ὁ Σενέκας ἐγεγράφει ὑπέσχετο

αὐτοῖς ὅσα ὁ Κλαύδιος ἐδεδώκει τοσαῦτα δὲ καὶ πρὸς τὴν βουλήν πρὸς τοῦ Σενέκου καὶ αὐτὰ

γραφέντα ἀνέγνω ὥστε καὶ ἐς ἀργυρᾶν στήλην ἐγγραφῆναι καὶ ἐν ταῖς νέαις τῶν ἀεὶ ὑπάτων ἀρχαῖς

ἀναγινώσκεσθαι ψηφισθῆναι καὶ οἱ μὲν ἐκ τούτων ὡς καὶ κατὰ συγγραφήν τινα καλῶς

ἀρχθησόμενοι παρεσκευάζοντο (Dio 6111 6131) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 35-39)

316

Primordialmente Secircneca e Burro satildeo descritos por Diatildeo Caacutessio como

homens sensatos e justos que regeram o Estado Nero segundo o historiador natildeo

se interessava pelo governo preferindo viver ocioso e se dedicar aos prazeres1293

Os dois conselheiros entatildeo tomam a frente dos assuntos puacuteblicos criando novas

leis e abolindo alguns impostos o que permite ao princeps se entregar aos desejos

por completo1294

Como os negoacutecios seguiam bem Nero passa a oferecer jantares

e festividades de forma moderada e privada bebendo e divertindo-se com

amores1295

Mas Diatildeo Caacutessio alega que os banquetes logo passaram para o cenaacuterio

puacuteblico fato que foi visto como um grande infortuacutenio pelo povo romano1296

Assim na concepccedilatildeo do historiador o Principado neroniano comeccedilou bem e

rapidamente decaiu estando esse bom periacuteodo vinculado agraves influecircncias de Secircneca

e Burro Quando as iniciativas pessoais de Nero satildeo apresentadas por Diatildeo Caacutessio

eacute difiacutecil saber se esse primeiro estava seguindo os conselhos dos tutores ou se

estava de fato governando De qualquer modo o importante eacute que a prioridade

do governo foram o bem-estar e a prosperidade econocircmica do Impeacuterio1297

Resta

determinar por quanto tempo o domiacutenio dos ldquoparceiros no poderrdquo continuaria1298

Aqui Nero eacute representado como um sujeito mais inclinado agrave libertinagem do que

aos assuntos poliacuteticos o que indica que Diatildeo Caacutessio acreditava numa duraccedilatildeo

efecircmera do bom governo Nesse sentido julgamos que ele consolida o retrato do

Nero infausto e reforccedila o do Nero antiprinceps Desse modo corrobora a tradiccedilatildeo

interpretativa taciteana ndash a do Nero prodigioso que soacute era prodigioso porque tinha

bons conselheiros ndash e enfraquece a tradiccedilatildeo interpretativa suetoniana e a dos

autores contemporacircneos ao princeps ndash a do Nero prodigioso que seguiu Augusto

Ao fazer isso daacute novo sentido agrave imagem de Nero erigindo o retrato de um liacuteder

vicioso que abandonou o Principado nas matildeos de pessoas capacitadas Nesse

sentido Secircneca e Burro natildeo governavam por meio de Nero mas dirigiam porque

o Imperador tinha abandonado a esfera puacuteblica para tratar dos seus interesses e

das suas vontades privadas

1293

Dio 6141 1294

Dio 6142 1295

Dio 6143 1296

Dio 6151-2 1297

SCULLARD 2010 p 258 1298

GRIFFIN 2001 p 67

317

Apoacutes a ascensatildeo Nero recebe notiacutecias de conflitos irrompidos na Armecircnia

Sem demora envia Corbulatildeo para lidar com a situaccedilatildeo confiando que ele

subjugaria os ldquobaacuterbarosrdquo Diatildeo Caacutessio noticia que o general natildeo foge agraves

expectativas toma Artaxata e arrasa a cidade muito embora tenha entristecido a

todos com sua lealdade ao princeps pois queriam colocaacute-lo no lugar de Nero1299

Corbulatildeo tambeacutem realiza outro ato glorioso alega o historiador estabelece um

acordo com Vologeso e Tiridates no qual o primeiro retiraria suas tropas da

Armecircnia e o segundo seria coroado rei contanto que os partas retornassem ao

domiacutenio romano1300

O general fixa ainda que Tiridates deveria prestar

homenagens agraves estaacutetuas de Nero e depois ir ateacute a Vrbs para ser coroado pelas

matildeos do imperador Dessa forma no dia acertado os exeacutercitos se encontram e

Tiridates cumpre sua palavra1301

Uma plataforma eacute erguida e nela satildeo colocadas

as estaacutetuas do princeps Tiridates se aproxima e presta reverecircncia tirando o

diadema da sua cabeccedila e colocando-o aos peacutes das estaacutetuas Em honra a tal evento

Nero eacute saudado como imperator e conquista um triunfo1302

Ao descrever o conflito Diatildeo Caacutessio parece mais entusiasmado com

Corbulatildeo do que Taacutecito1303

Nos Annales vimos que a vitoacuteria na Armecircnia foi

atribuiacuteda agraves accedilotildees do general sendo Nero retratado como um imperador

indiferente aos assuntos externos1304

Aqui tais accedilotildees segundo Schulz satildeo

reforccediladas por uma razatildeo devido ao interesse particular de Diatildeo Caacutessio de

confrontar bons e maus liacutederes1305

A autora explica que o historiador

indiretamente contrapotildee Corbulatildeo com o princeps no intuito de ldquoiluminarrdquo as

deficiecircncias militares deste uacuteltimo1306

A ideia eacute mostrar que Corbulatildeo tem as

qualidades ausentes em Nero isto eacute revelar ao leitor o papel que o imperador

deveria desempenhar e desconsiderava Eacute por isso que Diatildeo Caacutessio elogia a

ldquointeligecircnciardquo a ldquobravurardquo o ldquosenso de justiccedilardquo e a ldquoprudecircnciardquo do general1307

Eacute

tambeacutem pelo mesmo motivo que critica a ausecircncia fiacutesica do soberano na resoluccedilatildeo

1299

Dio 6219 1300

Dio 62201-212 1301

Dio 62221-3 1302

Dio 6223 1303

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 91-92 1304

Tac Ann 1367 1341 1305

SCHULZ 2019 p 202-244 1306

O poder de Corbulatildeo eacute citado por Diatildeo Caacutessio jaacute nos livros relativos ao governo de Claacuteudio

nos quais ele afirma que esse imperador chamou o general de volta pois temia sabendo do seu

valor e da disciplina do seu exeacutercito que ele se tornasse muito poderoso (Dio 60304) 1307

Dio 62192 236

318

dos conflitos insinuando que Tiridates precisou reverenciar estaacutetuas de Nero

porque este natildeo foi ao campo de batalha Em suma o historiador representa o

jovem como um governante inapto militarmente que conquistava vitoacuterias agrave custa

dos trabalhos dos outros1308

Natildeo fortuitamente diz que todos detestavam Nero

por completo e queriam tornar Corbulatildeo imperador1309

Eacute intrigante como esse retrato do Nero antiprinceps erigido por Diatildeo

Caacutessio reforccedila os elaborados pelas fontes do passado Tanto as Siluae quanto os

Annales e o De Vita Caesarum explicitam a gestatildeo militar incompetente do

imperador O historiador entatildeo apossa-se de uma tradiccedilatildeo que jaacute vinha sendo

construiacuteda desde o final do seacuteculo I e a consolida delineando um Nero que a

partir desse ponto seraacute transmitido como o princeps que natildeo se preocupou com o

comando dos exeacutercitos Esse Nero passivo inclusive tornar-se-aacute conhecido por

todos alcanccedilando a contemporaneidade ndash independentemente dos elementos

acrescentados eou omitidos na narrativa No caso da narrativa de Diatildeo Caacutessio a

centralidade se manteacutem mais uma vez na Casa Imperial Toda a gloacuteria alcanccedilada

por Corbulatildeo eacute usurpada por Nero pela Casa Imperial agrave qual Corbulatildeo de igual

modo a Secircneca e Burro natildeo pertenciam mas serviam

Terminada a descriccedilatildeo desse conflito Diatildeo Caacutessio passa para o assassinato

de Britacircnico narrando-o em poucas linhas Ele noticia que Agripina angustia-se

com sua perda de poder sobre Nero devido ao amor do filho por Acte De acordo

com o historiador esta era muito mais amada pelo soberano do que Otaacutevia sua

nobre esposa1310

Agripina entatildeo indignada com a nova relaccedilatildeo e com a perda da

sua influecircncia recrimina filho mas natildeo vendo resultados diz a ele lsquoldquofui eu quem

te fiz imperadorrsquo ndash como se tivesse o poder de tirar a soberania dele []rdquo1311

1308

SCHULZ 2019 p 202-244 1309

Dio 62235 Sobre a figura de Corbulatildeo em Diatildeo Caacutessio cf TOWNEND 1961 p 227-248 1310

Dio 6171-2 1311

lsquoαὐτῷ ὅτι lsquoἐγώ σε αὐτοκράτορα ἀπέδειξαrsquo ὥσπερ ἀφελέσθαι τὴν μοναρχίαν αὐτοῦ δυναμένη

(Dio 6173) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 49)

319

Nero assassina Britacircnico de maneira traiccediloeira por

envenenamento e entatildeo quando a plebe fica chocada pela accedilatildeo do veneno ele unta o corpo com gesso Mas agrave medida que o funeral vai sendo realizado no Foacuterum uma forte chuva que cai enquanto o gesso ainda estaacute uacutemido lava tudo de forma que o crime fica conhecido natildeo soacute pelo que as pessoas ouviram mas tambeacutem pelo que viram1312

O assassinato de Britacircnico eacute o primeiro cliacutemax da Historia Romana isto eacute

o primeiro ato nefasto de Nero Diatildeo Caacutessio de maneira similar a Taacutecito e a

Suetocircnio manteacutem a ideia do fratriciacutedio por envenenamento Todavia ao contraacuterio

dos dois ele natildeo despende muito tempo nas ameaccedilas de Agripina e nem na

preparaccedilatildeo do veneno Seu foco reside no fato de Nero ter untado o corpo de

Britacircnico com gesso e no de as pessoas terem percebido isso Em concordacircncia

com Schulz essa preocupaccedilatildeo do historiador revela que quando ele escreveu o

seu relato a tradiccedilatildeo negativa de Nero jaacute era tatildeo forte que para ele o princeps

natildeo precisava mais esconder os seus crimes o seu peacutessimo caraacuteter jaacute era tatildeo

conhecido que todos assumiriam que ele era o culpado pelo fratriciacutedio logo natildeo

necessitava omiti-lo Ademais Diatildeo Caacutessio enfatiza que embora Nero tenha

tentado ocultar o crime cobrindo o corpo de Britacircnico com gesso a fim de

camuflar a descoloraccedilatildeo produzida pelo veneno tal tentativa foi frustrada haja

vista que a chuva lava tudo Depois disso o soberano natildeo receava mais ser punido

pelos seus atos se o ultraje viria agrave tona natildeo lhe importava1313

Portanto vemos

que Diatildeo Caacutessio estaacute bastante interessado em evidenciar o comportamento

violento de Nero Isso porque como porta voz dos interesses senatoriais ele

possuiacutea certa concepccedilatildeo de optimus princeps baseada naquilo que um bom

imperador deveria ser Nessa perspectiva demonstra que o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano

era totalmente incapaz de governar Roma devido ao seu caraacuteter ndash e tambeacutem ao

seu gosto pelo teatro e agrave sua falta de virilidade1314

Natildeo nos esqueccedilamos de que

Diatildeo Caacutessio tal qual Taacutecito e Suetocircnio descreve os feitos de Nero atraveacutes do

filtro das proacuteprias experiecircncias vividas ndash no seu caso as tiranias de Cocircmodo e de

1312

τὸν δὲ Βρεττανικὸν φαρμάκῳ δολοφονήσας ὁ Νέρων ἐπειδὴ πελιδνὸς ὑπὸ τοῦ φαρμάκου

ἐγενήθη γύψῳ ἔχρισεν ὑετὸς δὲ διὰ τῆς ἀγορᾶς αὐτοῦ διαγομένου πολύς ὑγρᾶς ἔτι οὔσης τῆς

γύψου ἐπιπεσὼν πᾶσαν αὐτὴν ἀπέκλυσεν ὥστε τὸ δεινὸν μὴ μόνον ἀκούεσθαι ἀλλὰ καὶ ὁρᾶσθαι

(Dio 6174) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 49) 1313

SCHULZ 2019 p 193 1314

GOWING 1997 p 2561-2577

320

Heliogaacutebalo Assim ao denunciar os abusos cometidos pelos liacutederes do seu

tempo utiliza Nero como exemplum transformando-o no predecessor de todos os

tiranos1315

Dessa maneira constroacutei uma leitura sua do Nero fratricida pautada na

leitura do Nero fratricida de Suetocircnio1316

a qual enrobustece ainda mais a

personalidade feroz do princeps reduzindo o peso das visotildees que trazem um

soberano amedrontado de perder o trono1317

Dois anos apoacutes o fratriciacutedio Nero homenageia a sua matildee ao celebrar um

extravagante festival no anfiteatro Diatildeo Caacutessio nos fala que as festas duraram

vaacuterios dias e contaram com a exibiccedilatildeo de animais exoacuteticos1318

Mas o acontecimento mais vergonhoso e terriacutevel foi quando

homens e mulheres tanto da ordem equestre quanto da senatorial apresentaram-se [] como se fossem de categorias sociais baixas e desonradas Alguns tocavam flauta e danccedilavam pantomimas ou atuavam em trageacutedias e comeacutedias ou cantavam com a lira [] alguns de boa vontade e outros de maacute Assim os homens daquela eacutepoca viram as grandes famiacutelias [] paradas laacute embaixo e fazendo coisas a que eles anteriormente nem mesmo assistiam quando eram realizadas por outros1319

Em seu relato Diatildeo Caacutessio enfatiza a pressatildeo coercitiva de Nero sobre a

elite romana Para Newbold assim o faz porque via os jogos mais como uma

instituiccedilatildeo poliacutetica do que como um fenocircmeno social Por ser um senador Diatildeo

Caacutessio preocupava-se com o crescimento do comportamento autocraacutetico imperial

Nesse sentido considerava importante que o princeps mantivesse e confirmasse o

alto status social de certos indiviacuteduos atraveacutes da concessatildeo de honrarias e

privileacutegios Por consequecircncia julgava essencial tambeacutem que o soberano natildeo

desvalorizasse os seus pares O poder do imperador deveria servir para preservar a

honra da aristocracia nunca para rebaixaacute-la Resumindo para ele o imperador

1315

GOWING 1997 p 2561-2577 1316

Suet Nero 331-3 1317

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 Tac Ann 1316 1318

Dio 61172 1319

ἐκεῖνο δὲ δὴ καὶ αἴσχιστον καὶ δεινότατον ἅμα ἐγένετο ὅτι καὶ ἄνδρες καὶ γυναῖκες οὐχ ὅπως

τοῦ ἱππικοῦ ἀλλὰ καὶ τοῦ βουλευτικοῦ ἀξιώματος ἐς τὴν ὀρχήστραν καὶ ἐς τὸν ἱππόδρομον τό τε

θέατρον τὸ κυνηγετικὸν ἐσῆλθον ὥσπερ οἱ ἀτιμότατοι καὶ ηὔλησάν τινες αὐτῶν καὶ ὠρχήσαντο

τραγῳδίας τε καὶ κωμῳδίας ὑπεκρίναντο καὶ ἐκιθαρῴδησαν ἵππους τε ἤλασαν καὶ θηρία ἀπέκτειναν

καὶ ἐμονομάχησαν οἱ μὲν ἐθελονταὶ οἱ δὲ καὶ πάνυ ἄκοντες καὶ εἶδον οἱ τότε ἄνθρωποι τὰ γένη τὰ

μεγάλα τοὺς Φουρίους τοὺς Ὀρατίους τοὺς Φαβίους τοὺς Πορκίους τοὺς Οὐαλερίους τἆλλα πάντα

ὧν τὰ τρόπαια ὧν οἱ ναοὶ ἑωρῶντο κάτω τε ἑστηκότας καὶ τοιαῦτα δρῶντας ὧν ἔνια οὐδ᾽ ὑπ

ἄλλων (Dio 61173-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para

o inglecircs de Cary (1914-1927 p 75)

321

sempre deveria tratar os membros dos altos extratos sociais com deferecircncia pois

essa atitude o relembraria de que ele era o primeiro entre os iguais Caso os

desrespeitasse deveria fazecirc-lo no acircmbito privado jamais na esfera puacuteblica como

Nero fez afinal a afronta privada natildeo fazia a humilhaccedilatildeo ser ldquotestemunhada pelo

mundo em geralrdquo ao passo que a puacuteblica a exemplo da ocorrida nos jogos

claramente fazia1320

Portanto Nero ao colocar os senadores e equestres na arena

puacuteblica natildeo soacute os depreciou como tambeacutem revelou agrave plebe que aquilo que

sustentava a alta posiccedilatildeo social deles podia ser questionado e ignorado Nas

palavras de Newbold a conduta tiracircnica e arrogante de Nero e de outros

soberanos desperta indignaccedilatildeo em Diatildeo Caacutessio ele esperava decoro e natildeo

desrespeito intencional da dignidade da elite1321

Em outros termos ele ansiava

por um liacuteder que realizasse o seu papel mas acabou tendo um Nero tirano

Aqui como em outros momentos eacute imprescindiacutevel comentar sobre o uso

dos documentos do passado Entendemos que a seleccedilatildeo de materiais feita pelo

historiador esteve focada por completo no registro das condutas neronianas

inaceitaacuteveis o que o leva a negligenciar certos itens Por exemplo das trecircs

narrativas jaacute elaboradas acerca dos jogos no anfiteatro Diatildeo Caacutessio se concentra

naquelas que citavam o ataque agrave honra da elite (Annales e De Vita Caesarum)

marginalizando a que elogiou o luxo do anfiteatro (Eclogae)1322

Ou seja ele

concede um tratamento estreito mas ao mesmo tempo intensificado dos aspectos

destacados do objeto de referecircncia (o Nero tirano) Ao agir assim gera um novo

retrato do princeps ofuscando outros possiacuteveis e cria uma nova interpretaccedilatildeo do

Nero antigo que se tornaraacute base para os autores posteriores

Terminados os jogos Nero passa a se dedicar a um novo amor Popeia a

esposa do futuro imperador Otatildeo Agripina entatildeo preocupada com a

possibilidade de o filho se casar com tal mulher elabora um plano lisonjear Nero

e dar-lhe beijos imodestos para reconquistaacute-lo1323

Cientes de tal plano Popeia e

Secircneca persuadem o princeps a se livrar da matrona alegando que ela conspirava

1320

NEWBOLD 1985 p 589-604 1321

NEWBOLD 1985 p 589-604 Gastar somas enormes de dinheiro tambeacutem natildeo era admirado

por Diatildeo Caacutessio Nero aliaacutes eacute condenado por isso (Dio 61181) 1322

Tac Ann 14152 Suet Nero 121 Cal Ecl 723-56 1323

Diatildeo Caacutessio declara natildeo saber se o incesto de fato ocorreu ou se foi inventado para se ajustar

ao caraacuteter de Nero e Agripina Ele apenas repete tal informaccedilatildeo argumentando que ela era do

conhecimento de todos (Dio 61114)

322

contra ele1324

Incapazes de eliminaacute-la por envenenamento ndash haja vista que ela

tomava precauccedilotildees extremas contra isso ndash escolhem um navio desmontaacutevel1325

Quando este fica pronto Nero convida a matildee para ir a Baiacuteas com ele pois natildeo

queria assassinaacute-la em Roma por medo de que o crime se tornasse conhecido Ao

chegar laacute o soberano oferece enormes banquetes para a matildee entretendo-a com

muito afeto Quando ela resolve partir ele beija-lhe os olhos e as matildeos e a leva

para o navio projetado1326

Mas o mar natildeo suportaria a trageacutedia que estava para acontecer

[] e assim embora o navio tenha se partido em pedaccedilos e Agripina tenha caiacutedo na aacutegua ela natildeo morre Apesar de estar escuro e de ela estar embriagada e os marinheiros usarem os remos contra ela a ponto de matarem Acerrocircnia Pola sua companheira de viagem ela consegue atingir a praia em seguranccedila Quando chega em casa finge natildeo perceber que aquilo era uma conspiraccedilatildeo e fica quieta [] enviando para o seu filho um relatoacuterio da ocorrecircncia chamando-a de acidente e

transmite a ele as boas novas [] de que estava segura Ao ouvir isso Nero natildeo se conteacutem [] e logo despacha Aniceto com os marinheiros contra sua matildee pois ele natildeo confiava nos pretorianos para mataacute-la Quando ela os vecirc sabe a que tinham vindo e pulando da sua cama rasga suas roupas expondo seu ventre e grita ldquogolpeie-me aqui Aniceto golpeie-me aqui pois daqui nasceu Nerordquo1327

Eacute assim que Agripina morre pelas matildeos do filho a quem ela havia dado a

soberania atesta Diatildeo Caacutessio O historiador comenta que em seguida Nero deu

dinheiro para os pretorianos e enviou uma carta ao Senado na qual dizia que sua

matildee era culpada por diversos delitos e que conspirava contra ele Ao saber da

morte a plebe se alegra pensando que finalmente a destruiccedilatildeo de Agripina

estava assegurada Quanto aos senadores fingiram regozijar-se com o evento

votando medidas pelas quais pensariam ganhar o favor imperial1328

Segundo Diatildeo

Caacutessio quando Nero entra em Roma apoacutes o assassinato as pessoas o

1324

Diatildeo Caacutessio diz que Secircneca convenceu o soberano por dois motivos i) por desejo de silenciar

os rumores contra seu proacuteprio nome e ii) por desejo de fazer Nero destruir sua imagem como

princeps (Dio 61121) 1325

Segundo o historiador a ideia do navio adveio de um dia em que eles estavam no teatro e

viram um navio se desmontar soltar alguns animais e depois se recompor para navegar (Dio

61122) 1326

Dio 61131-2 1327

Dio 61133-5 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 65) 1328

Dio 61151-2

323

reverenciavam em puacuteblico e o condenavam em particular1329

A plebe derruba

todas as estaacutetuas de Agripina deixando apenas uma em peacute sobre a qual escreve

ldquolsquoestou envergonhado e vocecirc natildeo se envergonharsquo Em muitos lugares [tambeacutem]

podia-se ler a inscriccedilatildeo lsquoOrestes Nero Alcmeatildeo todos matricidasrsquordquo1330

Diatildeo Caacutessio fornece praticamente o mesmo relato do matriciacutedio de Taacutecito

e de Suetocircnio Mas ao mesmo tempo em que repete os traccedilos principais tambeacutem

adiciona as suas proacuteprias pinceladas Por exemplo ele aponta que Popeia foi a

maior instigadora do assassinato Poreacutem tal instigaccedilatildeo natildeo proveacutem do seu

interesse de apressar o casamento com Nero ou de se livrar do controle de

Agripina como sugerido nos Annales e no De Vita Caesarum1331

ela proveacutem da

acusaccedilatildeo de que Agripina estava tramando contra o filho Aqui outra vez a

tradiccedilatildeo literaacuteria representa um evento com importantes implicaccedilotildees poliacuteticas

como uma competiccedilatildeo entre mulheres em certo sentido a rivalidade entre

Agripina e Popeia eacute uma repeticcedilatildeo daquela ocorrida anteriormente entre Agripina

e Acte1332

Simultamente a tradiccedilatildeo tambeacutem repete a figura de Nero como um

liacuteder fraco e imerso nessa competiccedilatildeo incapaz de controlar sua amante e sua matildee

Outra pincelada conferida por Diatildeo Caacutessio ao episoacutedio eacute a participaccedilatildeo de

Secircneca Na visatildeo do historiador o filoacutesofo ndash visto por vaacuterios autores precedentes

como um homem respeitaacutevel ndash juntamente com Popeia acusa Agripina de

conspiraccedilatildeo A nosso ver essa inserccedilatildeo de Secircneca pode estar relacionada com

uma informaccedilatildeo transmitida por Diatildeo Caacutessio logo apoacutes o assassinato de Britacircnico

a de que o filoacutesofo estava sendo acusado de ter relaccedilotildees improacuteprias com

Agripina1333

Portanto para Secircneca eliminaacute-la seria uma forma de eliminar

tambeacutem os boatos Contudo de igual modo a Ginsburg consideramos a

motivaccedilatildeo pouco convincente suspeitando de que talvez ela tenha sido

forjada1334

Diatildeo Caacutessio tem uma visatildeo muito hostil de Secircneca e sempre o julga

chamando-o de incoerente bajulador e mentiroso1335

1329

Dio 61161 1330

(Dio 61162) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 73) 1331

Tac Ann 141 Suet Nero 342-4 1332

GINSBURG 2006 p 52 1333

Dio 61101 1334

GINSBURG 2006 p 53 1335

Dio 61102

324

Mais uma pincelada de Diatildeo Caacutessio eacute o foco no desdobramento na esfera

puacuteblica do assassinato O historiador ao contraacuterio de Taacutecito e de Suetocircnio que

estatildeo preocupados em mostrar um Nero que teatraliza a vida estaacute interessado em

evidenciar as atitudes do soberano apoacutes o crime Por exemplo Diatildeo Caacutessio

descreve como os senadores fingiram estar felizes e como algumas pessoas

condenavam o princeps no acircmbito privado e o elogiavam no espaccedilo puacuteblico

Segundo Bartsch essas informaccedilotildees mostram que o historiador representa um

Nero totalmente consciente dos sentimentos dos seus subordinados Isto eacute ele

sabia que a plebe o Senado e os pretorianos viviam sob medo e sob dissimulaccedilatildeo

Logo o soberano sabia que ningueacutem teria a coragem de lhe dizer a ldquoverdaderdquo ou

de acusaacute-lo de um crime e por isso tratou o matriciacutedio com normalidade natildeo se

esforccedilando para escondecirc-lo ou fazecirc-lo passar despercebido1336

Parece que o

assassinato natildeo passou despercebido mesmo uma vez que foram inscritas nos

muros de Roma pichaccedilotildees associando Nero a Orestes e a Alcmeatildeo ndash as quais

inclusive jaacute haviam sido mencionadas por Suetocircnio1337

Em concordacircncia com

Bartsch a repeticcedilatildeo de tal referecircncia indica que as pessoas acabaram encontrando

uma forma de dizer o ldquoindiziacutevelrdquo O matriciacutedio aparentemente colocara o

princeps na imaginaccedilatildeo popular em peacute de igualdade com os famosos matricidas

do mito grego Mas Diatildeo Caacutessio e Suetocircnio fazem mais do que apenas apontar

essa semelhanccedila entre o crime imperial e os homiciacutedios cometidos pelas

personagens mitoloacutegicas eles convidam os seus leitores a expandirem a

associaccedilatildeo para a realidade na medida em que sugerem que Nero performava as

trageacutedias no teatro Melhor dizendo convidam seus leitores a entender que Nero

era um ator a todo o momento tanto nos bastidores da sua vida ao realizar os

feitos dos matricidas mais famosos quanto no palco puacuteblico ao representar as

personagens agraves quais a imaginaccedilatildeo popular jaacute o havia comparado1338

Desse

modo Diatildeo Caacutessio ao reiterar a comparaccedilatildeo insinua que Nero finalmente

transporta o drama real da sua vida para a estrutura do teatro ldquoDepois de uma

vida toda se exibindo no palco o local da atuaccedilatildeo foi de fato transferido para a

vidardquo Nero fez a passagem do teatro para a vida1339

1336

BARTSCH 1994 p 26 1337

Suet Nero 392 1338

BARTSCH 1994 p 38-44 1339

BARTSCH 1994 p 38-44

325

Por fim consideramos que Diatildeo Caacutessio ao relatar o assassinato de

Agripina constroacutei novos retratos do Nero matricida e do Nero artista Ao

construiacute-los se embasa nas famosas descriccedilotildees dos seus antecessores Taacutecito e

Suetocircnio e as enriquece com suas pinceladas forjando imagens ainda mais

deploraacuteveis de Nero as de um liacuteder completamente controlado por sua amante

ciacutenico e dramatizador Mas por mais que ele tenha erigido o seu retrato de Nero

vemos que o princeps continua preservando alguns traccedilos jaacute bem conhecidos Dito

de outro modo ele adquire uma espeacutecie de atemporalidade sendo evocado de

maneira recorrente e privilegiada quando necessaacuterio e recombinado com

elementos do momento Os autores passam a usaacute-lo como ferramenta para

transmitir seus proacuteprios medos seus ressentimentos e suas desilusotildees colocando-

o assim no comando de suas preocupaccedilotildees contemporacircneas Em suma como

afirma Lefebvre Nero se torna uma figura ajustaacutevel1340

Na nossa perspectiva

contudo ganha destaque a combinaccedilatildeo dos elementos novos com aqueles jaacute

tradicionais Nero se faz pois tanto uma figura que pertence ao passado quanto

ao momento de sua apropriaccedilatildeo Por allelopoiesis o novo olhar de Diatildeo Caacutessio

permite fazer novas reflexotildees sobre o passado (nesse caso dando ecircnfase para o

papel de uma aristocracia impotente frente ao Imperador) e tambeacutem sobre o

presente se a passividade da aristocracia eacute escalada para a tirania do Imperador

abre-se uma crise com graves consequecircncias para o proacuteprio princeps e tambeacutem

para os aristocratas aviltados em sua dignidade e mesmo atacados em sua

integridade fiacutesica Diatildeo entatildeo opera a allelopoiesis nesse caso para produzir

uma nova forma de pensar o passado e fazendo-o permite ver seu presente de

uma forma diversa e lanccedilar uma advertecircncia a seus contemporacircneos Esse

mecanismo se faz pelo uso de Nero como exemplum A exemplaridade estaacute

construiacuteda a partir de uma tradiccedilatildeo e um Nero inteiramente novo e adequado de

forma muito direta e imediata aos conflitos do seacuteculo III natildeo faria qualquer

sentido para os leitores do historiador Cada momento natildeo constroacutei um novo Nero

de forma completa mas o produz recuperando e reorganizando os traccedilos e as

ecircnfases dados no repertoacuterio jaacute reconhecido na tradiccedilatildeo

Depois do matriciacutedio em 59 e 60 Nero como sabemos promove dois

festivais em Roma O primeiro foi os Juvenalia instituiacutedo para celebrar a

1340

LEFEBVRE 2017 p 266-269

326

raspagem da barba do princeps1341

Diatildeo Caacutessio relata que todos os membros das

famiacutelias mais nobres foram obrigados a participar apresentando algum tipo de

talento1342

Durante as performances Nero natildeo os deixou usarem maacutescaras pois

queria que fossem reconhecidos pela populaccedilatildeo O cliacutemax do evento foi a

exibiccedilatildeo do princeps na qual usou o traje de tocador de lira e cantou uma peccedila

chamada ldquoAs Bacantesrdquo1343

ldquoAo lado dele estavam Burro e Secircneca []

instigando-o e eles agitavam seus braccedilos e togas a cada pronunciaccedilatildeo dele e

levavam os outros a fazerem o mesmordquo1344

No ano seguinte Nero oferece o

segundo festival os Neronia1345

Nele tomou para si a coroa das competiccedilotildees

com a lira eliminando os adversaacuterios sob o pretexto de serem indignos de vitoacuteria

Apoacutes esse feito Diatildeo Caacutessio afirma que todas as outras coroas concedidas como

precircmios por tocar lira em todos os concursos foram enviadas a ele como o uacutenico

artista digno de vitoacuteria1346

Notemos que o historiador fortalece o retrato do Nero tirano ndash jaacute exposto

no relato dos jogos no anfiteatro ndash e fornece os primeiros traccedilos do Nero artista

No caso do Nero tirano reforccedila-o a partir de duas accedilotildees i) ao mencionar que o

soberano natildeo deixava a elite utilizar maacutescaras no decorrer das apresentaccedilotildees e ii)

ao dizer que Secircneca e Burro aplaudiram (e instigaram os aplausos) A nosso ver

tais menccedilotildees natildeo soacute enrobustecem a imagem do liacuteder que desrespeitava os

cidadatildeos proeminentes como tambeacutem rememoram a figura taciteana do princeps

que os aterrorizava Nos Annales vimos que o assassinato de inimigos reais ou

imaginaacuterios era uma realidade poliacutetica do governo de Nero fato que levava

muitos indiviacuteduos a dissimularem suas opiniotildees e a se submeterem agrave vontade

1341

Diatildeo Caacutessio adiciona que os pelos da barba foram colocados em um pequeno globo dourado e

oferecidos a Juacutepiter Capitolino (Dio 61191) 1342

Por exemplo Diatildeo Caacutessio diz que Eacutelia Catella uma mulher proeminente natildeo apenas por causa

da sua famiacutelia e riqueza mas tambeacutem por sua idade avanccedilada (ela era uma octogenaacuteria) danccedilou

uma pantomima (Dio 61191-2) 1343

Dio 61193-201 Diatildeo Caacutessio comenta que Nero tinha uma voz suave e rouca (Dio 61202) 1344

καὶ αὐτῷ καὶ ὁ Βοῦρρος καὶ ὁ Σενέκας καθάπερ τινὲς διδάσκαλοι ὑποβάλλοντές τι

παρειστήκεσαν καὶ αὐτοὶ τάς τε χεῖρας καὶ τὰ ἱμάτια ὁπότε φθέγξαιτό τι ἀνέσειον καὶ τοὺς ἄλλους

προσεπεσπῶντο ἦν μὲν γάρ τι καὶ ἴδιον αὐτῷ σύστημα ἐς πεντακισχιλίους στρατιώτας

παρεσκευασμένον (Dio 61203) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 81) 1345

Diatildeo Caacutessio alega que em honra a tal festival Nero mandou erigir no ano 60 o Gymnasium

Neronis isto eacute uma ldquoescola de muacutesicardquo Taacutecito e Suetocircnio em contrapartida postulam a data da

construccedilatildeo em 62 (Tac Ann 1447 Suet Nero 123) Para detalhes cf ASHBY PLATNER

1929 p 249 1346

Dio 61212

327

imperial1347

Aqui a situaccedilatildeo se repete o liacuteder coloca a elite em uma posiccedilatildeo na

qual ela eacute obrigada a dissimular Assim consideramos que Diatildeo Caacutessio constroacutei

uma narrativa proacutexima agrave de Taacutecito na medida em que recrimina a atitude de Nero

em relaccedilatildeo agrave aristocracia Seu discurso mostra que o imperador ultrapassou o

limite quebrando as regras bem estabelecidas de deferecircncia ao Senado Cabe

frisar poreacutem que sua concordacircncia com Taacutecito natildeo se aplica ao sistema poliacutetico

do Principado como um todo Diatildeo Caacutessio natildeo possui um pensamento pessimista

sobre o governo de um liacuteder soacute e nem acredita que o Senado deveria desempenhar

um papel ativo no governo Ao contraacuterio por ter vivido em uma eacutepoca marcada

por muitas trocas de liacutederes ele acredita que a paz soacute existiria se o princeps

reinasse sozinho pois a divisatildeo de poder com o Senado aumentaria a instabilidade

poliacutetica Contudo o soberano sempre deveria pedir conselhos aos magistrados

tornando a troca de ideias de fato uma realidade Aleacutem disso cabia ao imperador

distribuir dignidades e as posiccedilotildees de governo para aqueles aristocratas que

fossem merecedores O proacuteprio Diatildeo Caacutessio como vimos foi agraciado com

vaacuterias dessas dignidades e magistraturas Resumindo Diatildeo Caacutessio aceitava a

monarquia contanto que o imperador fosse um sujeito justo e modesto no seu

trato com a elite algo que Nero natildeo teria sido1348

Falemos agora do retrato do Nero artista Para aleacutem da referecircncia agrave

apresentaccedilatildeo musical e agrave obtenccedilatildeo das coroas o historiador cita a performance

imperial das ldquoBacantesrdquo De maneira sucinta a histoacuteria dessa trageacutedia euripidiana

eacute a seguinte o deus Dioniso retorna agrave cidade de Tebas para ser reconhecido como

uma divindade por seus parentes que governam o local Diante da resistecircncia do

rei Penteu ele manifesta seu poder maacutegico punindo as pessoas e colocando-as em

uma espeacutecie de frenesi extaacutetico que envolve a danccedila e o comportamento

imprevisiacutevel No final Penteu aceita o poder de Dioniso e eacute morto pelas matildeos de

sua proacutepria matildee Agave1349

Para Baldwin e Brandatildeo a conexatildeo entre a trageacutedia e

Nero eacute muito sutil e denota os gostos histriocircnicos do princeps Mas em Diatildeo

Caacutessio o enredo eacute invertido natildeo eacute a matildee (Agave) que sem saber mata o filho

(Penteu) eacute o filho (Nero) que conscientemente elimina a matildee (Agripina)1350

1347

Tac Ann 14152 1348

MADSEN 2020 p 49-52 1349

JUacuteNIOR 2016 p 8 1350

BALDWIN 1979 p 380-381 BRANDAtildeO 2005 p 173

328

Dessa forma a menccedilatildeo de tal apresentaccedilatildeo nos parece natildeo soacute intencional ndash

visando erigir a imagem do Nero artista ndash como tambeacutem demonstrativa da crenccedila

no retrato do Nero matricida Lembremo-nos de que Diatildeo Caacutessio escreveu a

Historia Romana na primeira metade do seacuteculo III Ou seja nessa eacutepoca a certeza

de que Nero tinha exterminado a matildee jaacute era tatildeo grande que natildeo havia mais a

necessidade de se detalhar os fatos A simples alusatildeo agraves ldquoBacantesrdquo jaacute faria todos

entenderem Eacute essa eliminaccedilatildeo dos detalhes ndash e por conseguinte da

contextualizaccedilatildeo ndash que gera a cristalizaccedilatildeo de Nero como um assassino afirma

Lefebvre O imperador sofreu sob a pena dos autores posteriores a ele o

esvaziamento de pormenores da sua vida o converteu na encarnaccedilatildeo da crueldade

Em outras palavras Nero tornou-se o matricida ldquosempre provaacutevel de

aparecerrdquo1351

Enquanto esses ldquojogos infantisrdquo aconteciam em Roma um terriacutevel desastre

ocorre na Britacircnia anuncia Diatildeo Caacutessio Duas cidades satildeo saqueadas 80 mil

romanos e seus aliados perecem e a ilha eacute perdida Segundo o autor toda essa

ruiacutena fora trazida aos romanos por Boudica uma mulher possuidora de ldquogrande

inteligecircnciardquo fato que causou ldquoa maior vergonhardquo Ela havido reunido um

exeacutercito de cerca de 120 mil homens e proferido o seguinte discurso1352

ldquoVocecircs aprenderam por experiecircncia real como a liberdade eacute diferente da escravidatildeo [] Vocecircs aprenderam o grande erro que cometeram ao preferir um despotismo importado a seu modo de vida ancestral [] [] Eu natildeo governo como [] Nero (que embora seja um homem eacute na verdade uma mulher

como demonstram o seu canto a sua lira e o embelezamento de sua pessoa) eu governo como os bretotildees homens que [] satildeo totalmente versados na arte da guerra [] [] Essa senhora Domiacutecia-Nero natildeo pode mais reinar sobre mim ou sobre vocecircs homens deixem-na cantar e dominar os romanos pois eles certamente merecem ser escravos de tal mulher depois de terem se submetido a ela por tanto tempo []rdquo1353

1351

LEFEBVRE 2017 p 93-94 1352

Dio 621-2 1353

ldquoπέπεισθε μὲν τοῖς ἔργοις αὐτοῖς ὅσον ἐλευθερία τῆς δουλείας διαφέρει ὥστ᾽ εἰ καὶ πρότερόν τις

ὑμῶν ὑπὸ τῆς τοῦ κρείττονος ἀπειρίας ἐπαγωγοῖς ἐπαγγέλμασι τῶν Ῥωμαίων ἠπάτητο ἀλλὰ νῦν γε

ἑκατέρου πεπειραμένοι μεμαθήκατε μὲν ὅσον ἡμαρτήκατε δεσποτείαν ἐπισπαστὸν πρὸ τῆς πατρίου

διαίτης προτιμήσαντες ἐγνώκατε δὲ ὅσῳ καὶ πενία ἀδέσποτος πλούτου δουλεύοντος []οὐρανὸν

ἀνατείνασα εἶπε lsquoχάριν τέ σοι ἔχω ὦ Ἀνδράστη καὶ προσεπικαλοῦμαί σε γυνὴ γυναῖκα οὐκ

Αἰγυπτίων ἀχθοφόρων ἄρχουσα ὡς Νίτωκρις οὐδ᾽ Ἀσσυρίων τῶν ἐμπόρων ὡς Σεμίραμις ῾καὶ γὰρ

ταῦτ᾽ ἤδη παρὰ τῶν Ῥωμαίων μεμαθήκαμεν᾽ οὐ μὴν οὐδὲ Ῥωμαίων αὐτῶν ὡς πρότερον μὲν

Μεσσαλῖνα ἔπειτ᾽ Ἀγριππῖνα νῦν δὲ καὶ Νέρων ῾ὄνομα μὲν γὰρ ἀνδρὸς ἔχει ἔργῳ δὲ γυνή ἐστι

σημεῖον δέ ᾄδει καὶ κιθαρίζει καὶ καλλωπίζεταἰ ἀλλὰ ἀνδρῶν Βρεττανῶν γεωργεῖν μὲν ἢ

329

Terminado o discurso ela lidera seu exeacutercito contra os inimigos estando

estes sob o comando do general Paulino Ao final dos confrontos os romanos

prevalecem e Boudica adoece e morre1354

O relato de Diatildeo Caacutessio dos conflitos

na Britacircnia eacute bem extenso ocupando 12 capiacutetulos do livro 62 da Historia

Romana No decorrer da narrativa Nero aparece pouquiacutessimas vezes sendo

sempre referenciado em contraposiccedilatildeo a Boudica A nosso ver tal atitude

evidencia dois pensamentos do historiador O primeiro ele via o princeps como

um imperador que natildeo se interessava pelas tarefas militares Nero natildeo vai ateacute a

Britacircnia resolver o problema assim como tambeacutem natildeo vai ateacute a Armecircnia Ele fica

ausente o tempo todo Inclusive Diatildeo Caacutessio natildeo comenta nem que o princeps

escolhe um general para lidar com a situaccedilatildeo ndash Paulino por exemplo apenas

surge no texto Aqui parece que o miacutenimo esforccedilo feito pelo imperador existente

nos conflitos com os partas desaparece O que Nero desejava era se dedicar

totalmente aos seus jogos e aos seus crimes Natildeo eacute agrave toa que Diatildeo Caacutessio coloca

Boudica afirmando ldquodeixem-a cantar e dominar os romanosrdquo1355

O segundo pensamento do historiador envolve uma criacutetica agrave masculinidade

de Nero Notemos que Boudica em seu discurso retrata o soberano como uma

mulher artista que governa romanos servis e contrasta estes com os bretotildees viris

Tal discurso conforme Adler e Beacutedoyegravere eacute o meio utilizado por Diatildeo Caacutessio para

rebaixar a imagem do princeps e a dos romanos os quais aceitavam serem

governados por uma mulher ou seja por um soberano fraco Eacute por essa razatildeo que

ele representa Boudica como o exato oposto de Nero a guerreira possuidora das

caracteriacutesticas essenciais a um liacuteder e que comandou uma rebeliatildeo inteira ndash algo

que Nero natildeo conseguia fazer pela manutenccedilatildeo da ordem1356

Como destaca

Gillespie Diatildeo Caacutessio quase natildeo insere figuras femininas em sua obra e as

δημιουργεῖν οὐκ εἰδότων πολεμεῖν δὲ ἀκριβῶς μεμαθηκότων καὶ τά τε ἄλλα πάντα κοινὰ καὶ

παῖδας καὶ γυναῖκας κοινὰς νομιζόντων καὶ διὰ τοῦτο καὶ ἐκείνων τὴν αὐτὴν τοῖς ἄρρεσιν ἀρετὴν

ἐχουσῶν τοιούτων οὖν ἀνδρῶν καὶ τοιούτων γυναικῶν βασιλεύουσα προσεύχομαί τέ σοι καὶ αἰτῶ

νίκην καὶ σωτηρίαν καὶ ἐλευθερίαν κατ᾽ ἀνδρῶν ὑβριστῶν ἀδίκων ἀπλήστων ἀνοσίων εἴ γε καὶ

ἄνδρας χρὴ καλεῖν ἀνθρώπους ὕδατι θερμῷ λουμένους ὄψα σκευαστὰ ἐσθίοντας οἶνον ἄκρατον

πίνοντας μύρῳ ἀλειφομένους μαλθακῶς κοιμωμένους μετὰ μειρακίων καὶ τούτων ἐξώρων

καθεύδοντας κιθαρῳδῷ καὶ τούτῳ κακῷ δουλεύοντας μὴ γάρ τοι μήτ᾽ ἐμοῦ μήθ᾽ ὑμῶν ἔτι

βασιλεύσειεν ἡ Νερωνὶς ἡ Δομιτία ἀλλ᾽ ἐκείνη μὲν Ῥωμαίων ᾄδουσα δεσποζέτω ῾καὶ γὰρ ἄξιοι

τοιαύτῃ γυναικὶ δουλεύειν ἧς τοσοῦτον ἤδη χρόνον ἀνέχονται τυραννούσησ᾽ ἡμῶν δὲ σύ ὦ

δέσποινα ἀεὶ μόνη προστατοίηςrsquordquo (Dio 6231 62-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 87-95) 1354

Dio 62125-6 1355

SCHULZ 2019 p 206-207 1356

ADLER 2008 p 193 BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 21

330

poucas adicionadas satildeo as que representam modelos positivos1357

Portanto

Boudica evidencia a real opiniatildeo do historiador sobre Nero um jovem inadequado

que tinha prioridades (artiacutesticas) distorcidas

Em uacuteltima anaacutelise precisamos explanar a apropriaccedilatildeo e a transformaccedilatildeo

realizada por Diatildeo Caacutessio dos Neros do passado Observemos que ele usa

elementos da esfera de referecircncia e simultaneamente acrescenta mudanccedilas neles

Por exemplo apreende o Nero antiprinceps de Taacutecito ndash que envia um liberto a

Britacircnia para pacificar a situaccedilatildeo e acaba expondo os romanos agrave humilhaccedilatildeo

puacuteblica ndash e o de Suetocircnio e o recaracteriza como um Nero artista e como um Nero

antiprinceps fraco e feminino1358

Assim combina as abordagens preteacuteritas e cria

novas dimensotildees de significados as quais soacute podem existir agrave luz do passado com

base em uma tradiccedilatildeo jaacute consolidada como exemplaridade que natildeo manteacutem essa

tradiccedilatildeo inalterada como se os exempla fossem prontos e acabados prescritivos

Como viemos apontando a exemplaridade eacute maleaacutevel e precisa ser interpretada e

colocada frente a eventos diversos da sua origem fazendo Nero ao mesmo

tempo contemporacircneo da narrativa no que se refere aos problemas enfocados e

antigo pois eacute objeto de uma tradiccedilatildeo jaacute consolidada e conhecida

Encerradas as contendas na Britacircnia Nero se divorcia e assassina Otaacutevia

afirma Diatildeo Caacutessio Ele assim o fez apesar de toda a oposiccedilatildeo de Burro o qual

francamente lhe dizia ldquo[] bem entatildeo devolva-lhe o doterdquo []1359

Em vista

disso Nero envenena Burro e coloca em seu lugar Tigelino homem de caraacuteter

licencioso e violento De acordo com o historiador a grande instigadora da

separaccedilatildeo e do uxoriciacutedio eacute Popeia que contava com o apoio de quase todos os

servos de Otaacutevia os quais a bajulavam ndash devido agrave sua influecircncia sob o princeps ndash

e diziam que a filha de Claacuteudio estava infeliz1360

O caraacuteter resumido da narrativa

1357

GILLESPIE 2018 p 77 1358

Tac Ann 14391-3 Suet Nero 391 1359

[hellip] ldquoπερὶ ὧν ἂν ἅπαξ τι εἴπω μηκέτι μου αὖθις πύθῃrdquo [] (Dio 62132) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 105) Diatildeo

Caacutessio aponta a franqueza como uma qualidade louvaacutevel de Burro (Dio 62132) 1360

Dio 62133-4 Sobre Popeia Diatildeo Caacutessio informa ldquoesta Sabina era tatildeo dada ao luxo

extravagante (como seraacute plenamente demonstrado no mais breve espaccedilo) que mandou calccedilar as

mulas que puxavam sua carruagem com sapatos dourados e tinha 500 burros receacutem-nascidos

ordenhados todos os dias para que pudesse se banhar no leiterdquo ἡ δὲ δὴ Σαβῖνα αὕτη οὕτως

ὑπερετρύφησεν ῾ἐκ γὰρ τῶν βραχυτάτων πᾶν δηλωθήσεταἰ ὥστε τάς τε ἡμιόνους τὰς ἀγούσας αὐτὴν

ἐπίχρυσα σπαρτία ὑποδεῖσθαι καὶ ὄνους πεντακοσίας ἀρτιτόκους καθ᾽ ἡμέραν ἀμέλγεσθαι (Dio

62281) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 137)

331

de Diatildeo Caacutessio nos faz recordar de um argumento elaborado por Lefebvre o do

processo de esquematizaccedilatildeo Para a autora as histoacuterias da vida do princeps

sofreram um processo de esquematizaccedilatildeo que envolveu a omissatildeo eou o resumo

dos contextos existentes por traacutes das suas histoacuterias e a repeticcedilatildeo de certos

ldquomotivosrdquo imperiais Tal processo iniciado com Flaacutevio Josefo no final do seacuteculo

I comeccedila a se consolidar com Diatildeo Caacutessio fazendo com que alguns crimes a

exemplo do uxoriciacutedio cimentem a ldquocarreirardquo e o caraacuteter de Nero1361

Dessa

maneira o princeps deixa de ser um indiviacuteduo com visotildees proacuteprias de mundo

para se tornar uma figura tiacutepica Ao usar uma narrativa geneacuterica para tratar do

assassinato de Otaacutevia Diatildeo Caacutessio faz de Nero natildeo um personagem

historicamente datado que cometeu um crime especiacutefico contra uma pessoa mas

um monstro tiacutepico jaacute conhecido haacute muito tempo por todos E eacute precisamente essa

passagem do estatuto de indiviacuteduo para o de tipo que permite a Diatildeo Caacutessio

ldquodesencarnarrdquo Nero1362

Mas a esquematizaccedilatildeo como proposta por Lefebvre a

nosso ver natildeo eacute uma mera simplificaccedilatildeo narrativa Longe disso pela via da

exemplaridade Nero se torna transtemporal reunindo conflitos e dramas de

eacutepocas diversas sendo ao mesmo tempo contemporacircneo da narrativa e pela

tradiccedilatildeo um homem do passado em que as coisas natildeo se passavam como hoje A

alteridade e a proximidade natildeo satildeo polos opostos binaacuterios mas se relacionam

dialeticamente produzindo siacutenteses novas exempla que satildeo mobilizadas e

colocadas como instrumentos simultaneamente de memoacuteria do passado e de

compreensatildeo e de intervenccedilatildeo do presente

Ainda assim mesmo nos oferecendo uma histoacuteria condensada Diatildeo

Caacutessio faz questatildeo de demarcar o envenenamento de Burro e a manipulaccedilatildeo de

Popeia Esses comentaacuterios segundo Madsen e Mallan indicam-nos como o

historiador projetava a figura imperial ideal um princeps justo saacutebio e habilidoso

poliacutetica e militarmente forte Para conquistar estes dois uacuteltimos atributos o

soberano entre outras atitudes deveria manter a deferecircncia em relaccedilatildeo ao Senado

e aos outros membros proeminentes da sociedade e preservar a hierarquia social

deixando os subalternos em seus lugares Mas Nero natildeo parece disposto a isso Ao

contraacuterio ignora o conselho do seu chefe da guarda pretoriano e assassina a

esposa a mando de uma mulher Assim Diatildeo Caacutessio o representa como um liacuteder

1361

LEFEBVRE 2017 p 86-88 1362

LEFEBVRE 2017 p 93

332

autoritaacuterio que natildeo lida com opiniotildees divergentes da sua e como um imperador

fraco que natildeo estaacute no controle nem das proacuteprias decisotildees1363

E ao adotar essas

visotildees de Nero o historiador compotildee seu retrato incorporando as informaccedilotildees

contidas nos Annales na Octavia e no De Vita Caesarum e as repetindo

instituindo a tradiccedilatildeo do Nero uxoricida1364

Ao repeti-las cria um novo Nero

tirano e antiprinceps reforccedilando determinados aspectos do velho Nero que nunca

deixa de estar presente

Concretizados o uxoriciacutedio e o novo casamento as fontes no caso os

Annales e o De Vita Caesarum comentam que Nero foi para Naacutepoles fazer uma

apresentaccedilatildeo puacuteblica Poreacutem Diatildeo Caacutessio natildeo referencia tal evento na sua

Historia Romana Em vista disso passaremos para o proacuteximo episoacutedio citado por

ele o incecircndio da Vrbs O historiador inicia seu relato com as seguintes palavras

Nero colocou seu coraccedilatildeo em algo que haacute muito tempo desejava fazer a saber

destruir toda a cidade Para tanto enviou homens fingindo estarem becircbados para

atearem fogo em determinados locais Todos na cidade ficaram perplexos quando

notaram o fogo se espalhando sem saberem se a calamidade havia comeccedilado por

acaso ou intencionalmente Diatildeo Caacutessio afirma que vaacuterias casas foram destruiacutedas

sendo algumas incendiadas pelas proacuteprias pessoas que apareciam para ajudar Os

homens enviados por Nero estavam focados em saquear e natildeo em apagar o fogo

O desastre foi tatildeo grande que todo o monte Palatino e cerca de dois terccedilos do resto

da cidade arderam em chamas havendo tambeacutem uma perda de vidas incalculaacutevel

1365 Enquanto essas coisas estavam acontecendo Nero

[] subiu ao ponto mais alto do seu palaacutecio de onde a maior

parte da conflagraccedilatildeo podia ser mais bem-vista e vestindo sua roupa de tocador de lira cantou o que chamou de ldquoA Destruiccedilatildeo de Troiardquo mas que na verdade foi percebido como ldquoA Destruiccedilatildeo de Romardquo [] Natildeo houve uma maldiccedilatildeo que o povo

natildeo proferisse contra Nero e apesar de natildeo ser citado o seu nome maldiziam-se ldquoaqueles que incendiaram a cidaderdquo [] Ele agora cobrava enormes quantias de dinheiro tanto de cidadatildeos privados quanto das comunidades agraves vezes agrave forccedila usando o fogo como desculpa e agraves vezes por meio de contribuiccedilotildees voluntaacuterias Quanto aos residentes de Roma ele os privou da distribuiccedilatildeo gratuita de gratildeos1366

1363

MADSEN 2020 p 54 MALLAN 2016 p 292 1364

([Sen] Oct 899-959 Tac Ann 1460-63 Suet Nero 352-3 1365

Dio 62161-2 171 182 1366

ὅθεν μάλιστα σύνοπτα τὰ πολλὰ τῶν καιομένων ἦν ἀνῆλθε καὶ τὴν σκευὴν τὴν κιθαρῳδικὴν

λαβὼν ᾖσεν ἅλωσιν ὡς μὲν αὐτὸς ἔλεγεν Ἰλίου ὡς δὲ ἑωρᾶτο Ῥώμης ldquoδιεφθάρησαν ὁ μέντοι

333

Diatildeo Caacutessio escreve essa narrativa mais ou menos um seacuteculo depois de

Suetocircnio e parece recorrer sumariamente a ele1367

Como o bioacutegrafo ele acredita

na responsabilidade do princeps pelo incecircndio oferecendo-nos um relato

altamente antineroniano1368

Por exemplo aponta o desejo imperial de destruir

Roma assinala o comportamento ultrajante do soberano de enviar homens para

queimar a cidade e frisa o saque dos soldados Eacute intrigante que ele lanccedila tais

afirmaccedilotildees no texto como se elas fossem veriacutedicas sem se dar ao trabalho de

problematizaacute-las tampouco de considerar versotildees alternativas Para Barrett assim

o faz porque provavelmente natildeo encontrou um bom motivo para Nero natildeo ser o

culpado Ou seja Diatildeo Caacutessio cria uma ligaccedilatildeo entre os excessos pessoais do

princeps ndash expostos ateacute aquele momento por esse primeiro e por outras fontes ndash e

o desastre representando-os como as realizaccedilotildees de um homem ruim Em suma o

fogo eacute o resultado do (jaacute conhecido por todos) peacutessimo caraacuteter do soberano e de

seus notoacuterios interesses privados com relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo da Domus Aurea

Dessa forma o relato suetoniano da culpabilidade de Nero que jaacute era fraacutegil

torna-se ainda mais pois Diatildeo Caacutessio natildeo separa o plausiacutevel do imaginaacuterio Ao

contraacuterio apropria-se das informaccedilotildees agrave sua disposiccedilatildeo e utiliza-as de modo a

criar uma impressatildeo negativa irresistiacutevel de Nero apesar de natildeo existirem

evidecircncias convincentes da sua responsabilidade afinal ele sabia que nenhuma

pessoa razoaacutevel acreditaria que Nero natildeo era o causador do desastre pois jaacute havia

uma forte tradiccedilatildeo o condenando de forma uniacutessinona1369

O retrato era coerente e

verossiacutemil mesmo que natildeo fosse verdadeiro

O aacutepice da narrativa eacute a famosa atuaccedilatildeo do imperador com a lira da

ldquoDestruiccedilatildeo de Troiardquo a qual foi interpretada pela populaccedilatildeo como ldquoA Destruiccedilatildeo

δῆμος οὐκ ἔστιν ὅ τι οὐ κατὰ τοῦ Νέρωνος ἠρᾶτο τὸ μὲν ὄνομα αὐτοῦ μὴ ὑπολέγων ἄλλως δὲ δὴ τοῖς τὴν πόλιν ἐμπρήσασι καταρώμενοι καὶ μάλισθ᾽ ὅτι αὐτοὺς ἡ μνήμη τοῦ λογίου τοῦ κατὰ τὸν

Τιβέριόν ποτε ᾀσθέντος ἐθορύβει ἦν δὲ τοῦτο lsquoτρὶς δὲ τριηκοσίων περιτελλομένων ἐνιαυτῶν

Ῥωμαίους ἔμφυλος ὀλεῖ στάσιςrsquordquo ldquoἐπειδή τε ὁ Νέρων παραμυθούμενος αὐτοὺς οὐδαμοῦ ταῦτα τὰ

ἔπη εὑρέσθαι ἔλεγε μεταβαλόντες ἕτερον λόγιον ὡς καὶ Σιβύλλειον ὄντως ὂν ᾖδον ἔστι δὲ τοῦτο

lsquoἔσχατος Αἰνεαδῶν μητροκτόνος ἡγεμονεύσειrsquo καὶ ἔσχεν οὕτως εἴτε καὶ ὡς ἀληθῶς θεομαντείᾳ τινὶ

προλεχθέν εἴτε καὶ τότε ὑπὸ τοῦ ὁμίλου πρὸς τὰ παρόντα θειασθέν τελευταῖος γὰρ τῶν Ἰουλίων τῶν

ἀπὸ Αἰνείου γενομένων ἐμονάρχησεrdquo ldquoχρήματα δὲ ὁ Νέρων παμπληθῆ καὶ παρὰ τῶν ἰδιωτῶν καὶ

παρὰ τῶν δήμων τὰ μὲν βίᾳ ἐπὶ τῇ προφάσει τοῦ ἐμπρησμοῦ τὰ δὲ καὶ παρ᾽ ἑκόντων δῆθεν

ἠργυρολόγησεν καὶ τῶν Ῥωμαίων αὐτῶν τὸ σιτηρέσιον παρεσπάσατο (Dio 62181 183-5) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 116-118) 1367

Suet Nero 381-3 1368

BARRETT 2020 p 137-140 1369

BARRETT 2020 p 137-140 CHAMPLIN 2005 p 183

334

de Romardquo Suetocircnio tambeacutem comenta sobre essa performance alegando que o

imperador subira ateacute a Torre de Mecenas1370

Eacute importante observar que ambos os

autores outra vez consideram a apresentaccedilatildeo como um fato concreto Isso mostra

que a cautela taciteana ndash ou qualquer cautela ndash para tratar desse feito foi

completamente abandonada1371

Natildeo haacute mais duacutevidas aqui os boatos satildeo

verdadeiros e afirmam o que natildeo podia ser dito abertamente na eacutepoca Nero eacute um

incendiaacuterio artista Essa eacute uma situaccedilatildeo notaacutevel argumenta Barrett Diatildeo Caacutessio

embora esteja compondo uma histoacuteria eacute em muitos aspectos bastante biograacutefico

tratando seu material com ecircnfase no caraacuteter das personagens e natildeo nos eventos

histoacutericos Ele eacute tatildeo propenso a focar nos viacutecios dos indiviacuteduos quanto Suetocircnio

por essa razatildeo concede-nos um relato extremamente hostil quanto a Nero

fortalecendo a peacutessima iacutendole imperial que jaacute circulava naquela altura1372

Essas reflexotildees nos levam a concluir que o retrato do Nero incendiaacuterio e

do Nero artista se consolidou A crenccedila na capacidade do imperador de realizar

atos abominaacuteveis e a narrativa dos seus crimes eram tatildeo presentes na mentalidade

dos leitores que natildeo havia mais a necessidade de se detalharem as notiacutecias Assim

os elementos da Octavia (incecircndio como ferramenta para punir a populaccedilatildeo

contraacuteria ao enlace com Popeia) da Naturalis Historia (queima de aacutervores) das

Siluae (fogo que atingiu os montes de Roma) dos Annales e do De Vita

Caesarum satildeo condensados em um uacutenico relato1373

Os diversos Neros do passado

satildeo integrados em uma narrativa mais simples no presente mas cuja existecircncia eacute

totalmente dependente do Nero do passado O imperador eacute um artista que natildeo

distingue o palco e a vida ele quer contruir uma residecircncia magniacutefica e para

tanto precisa colocar fogo na cidade ndash o que ele faz Eacute um tirano megalomaniacuteaco

desconectado da realidade e sem noccedilatildeo das suas responsabilidades ou das

consequecircncias dos seus atos e omissotildees A imagem Nero-lira-fogo se consolida e

ao longo do tempo vai ser associada com inuacutemeras outras situaccedilotildees e conflitos

que renovam o Nero da tradiccedilatildeo e o fazem presente sempre que aparece na

histoacuteria algueacutem ldquocomo Nerordquo1374

Dito de outra forma os Neros da esfera de

recepccedilatildeo soacute existem por causa dos da esfera de referecircncia os quais por sua vez

1370

Suet Nero 382-3 1371

Tac Ann 1539 1372

BARRETT 2020 p 15 1373

[Sen] Oct 825-844 Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 Suet Nero 381-3 Tac Ann 1539 1374

FAVERSANI 2020 p 380

335

foram encapsulados em uma grande e aparentemente uacutenica representaccedilatildeo1375

que

se desdobra em muitas por conta da sua exemplaridade da sua releitura e da

reinterpretaccedilatildeo disputada nas lutas em torno da rememoraccedilatildeo neroniana agrave luz de

novos eventos personagens e contextos Tal encapsulamento cria um princeps

facilmente reconheciacutevel pelas geraccedilotildees posteriores inclusive pela nossa embora

esteja tatildeo distante temporalmente Como defende Faversani

[] basta colocar algueacutem em vestimentas que lembrem vagamente a toga romana com uma lira em suas matildeos e o fogo a sua volta que imediatamente o puacuteblico reconheceraacute o Nero original []1376

A siacutentese das narrativas sobre o princeps ndash fruto da longa tradiccedilatildeo negativa

ndash tambeacutem eacute usada por Diatildeo Caacutessio para narrar o episoacutedio da edificaccedilatildeo da Domus

Aurea Ao falar a respeito do palaacutecio imperial o historiador parece pressupor que

seus leitores jaacute sabiam das caracteriacutesticas luxuosas da moradia e do caraacuteter

vaidoso do princeps Por isso descreve o edifiacutecio em poucas linhas

[] nem mesmo a Casa Dourada de Nero poderia satisfazer

Viteacutelio Pois embora ele admirasse e elogiasse o nome a vida e todas as praacuteticas de Nero ainda assim ele o culpava por viver em uma casa tatildeo miseraacutevel escassa e mesquinhamente equipada1377

Notemos que a nova residecircncia eacute usada por Diatildeo Taacutecito como instrumento

de criacutetica ao futuro imperador Viteacutelio homem viciado em ldquoluxordquo e em

ldquolicenciosidaderdquo1378

O historiador o recrimina por natildeo se satisfazer com a

magnificecircncia da Domus Aurea neroniana Isso nos mostra que a moradia e a sua

suntuosidade jaacute eram tatildeo renomadas que viraram paracircmetros de maacutexima elevaccedilatildeo

do viacutecio e da desmedida Assim natildeo eacute mais necessaacuterio citar os abusos perpetrados

agrave natureza para a construccedilatildeo do palaacutecio (contidos na Naturalis Historia) a

ostentaccedilatildeo da riqueza (existente na Octavia) e a usurpaccedilatildeo das propriedades

1375

BERGEMANN L et al 2019 p 14 1376

FAVERSANI 2020 p 378 1377

Dio 6541 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs

de Cary (1914-1927 p 227) 1378

Dio 6521

336

(disposta nos Liber Spectaculorum)1379

Estaacute tudo aiacute dito de forma impliacutecita Cabe

pontuar ainda que para Diatildeo Caacutessio o simples fato de Viteacutelio admirar Nero e

suas accedilotildees o transforma automaticamente em um peacutessimo liacuteder Ou seja a

imagem do soberano como um mau governante tambeacutem se cristalizou gerando

outro paracircmetro de comparaccedilatildeo Dessa maneira se algueacutem se aproxima de Nero eacute

considerado um liacuteder ruim e se algueacutem se afasta eacute visto como um bom liacuteder ndash

dito em outros termos Nero se tornou um sinocircnimo de antiprinceps1380

Em meio a esse contexto do incecircndio e da construccedilatildeo da Domus Aurea

Diatildeo Caacutessio de igual modo a Suetocircnio natildeo alude agrave perseguiccedilatildeo dos Cristatildeos

Segundo Barrett seu propoacutesito com a omissatildeo eacute demonstrar inequivocamente que

Nero foi o culpado pelo desastre Para tanto natildeo faria sentido ldquo[] turvar as aacuteguas

sobre a sua responsabilidade []rdquo e atribuiacute-la a terceiros1381

Contudo isso natildeo o

impede de criticar o princeps pois salienta a antipatia generalizada da populaccedilatildeo

em relaccedilatildeo a ele manifesta em forma de maldizeres

Eacute curioso que natildeo soacute a plebe demonstrou sua insatisfaccedilatildeo como tambeacutem a

aristocracia Diatildeo Caacutessio afirma que apoacutes o incecircndio Secircneca Rufo (prefeito da

guarda pretoriana) e alguns homens proeminentes formaram uma conspiraccedilatildeo

contra Nero pois natildeo podiam mais suportar seu comportamento vergonhoso sua

licenciosidade e sua crueldade Segundo o historiador eles queriam se livrar dos

males trazidos pelo princeps e livrar o proacuteprio Nero da sua personalidade

nefasta1382

Poreacutem a conspiraccedilatildeo natildeo foi adiante informaccedilotildees foram apresentadas

contra esses homens e eles acabaram sendo punidos1383

Observemos que a

descriccedilatildeo de Diatildeo Caacutessio eacute bem mais sucinta do que a feita por Taacutecito ndash perdendo

apenas em concisatildeo para o relato de Suetocircnio realizado em apenas um

paraacutegrafo1384

Nos Annales a narrativa ocupou 27 capiacutetulos do livro 15 aqui

ocupa somente 41385

Isso implica que o ponto em que o incidente era

extremamente bem documentado tornou-se mais de um seacuteculo depois

assustadoramente resumido Essa reduccedilatildeo das informaccedilotildees nos leva a relembrar

1379

Plin Nat 3624 [Sen] Oct 624-631 Mart Sp 21-10 1380

LEFEBVRE 2017 p 271-272 1381

BARRETT 2020 p 163 1382

Dio 62241-2 1383

Diatildeo Caacutessio comenta sobre as diversas execuccedilotildees incluindo a de Secircneca (Dio 62241 251-

3) 1384

Suet Nero 362-37 1385

Tac Ann 1548-74

337

da ideia proposta por Lefebvre a da esquematizaccedilatildeo1386

Aqui haacute uma

cristalizaccedilatildeo do retrato do Nero antiprinceps a qual envolve um niacutetido

esvaziamento de detalhes acerca da trama Assim explicar as razotildees dos

conspiradores e o andamento da trama torna-se algo totalmente dispensaacutevel Nero

jaacute eacute unanimemente concebido pelo menos no ciacuterculo senatorial como um

peacutessimo governante que natildeo sabe lidar com oposiccedilotildees e que mata seus suacuteditos

Resumindo Nero virou um tirano tiacutepico que comete violecircncia contra todos

aqueles que o enfrentam1387

Para encerrar eacute importante dizer que o incecircndio desestabilizou as relaccedilotildees

entre o imperador e os membros da elite romana A partir daqui como veremos

as relaccedilotildees natildeo seratildeo mais as mesmas e a atmosfera de suspeita e desconfianccedila se

fortaleceraacute Nos termos de Barrett os eventos seguintes vatildeo pavimentar o

caminho para a vitoacuteria de Vindex e para o suiciacutedio de Nero1388

Apoacutes a breve exposiccedilatildeo da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo temos a segunda ediccedilatildeo

dos Neronia Contudo Diatildeo Caacutessio cita esse evento de forma bastante nebulosa

deixando-nos em duacutevida se estaacute de fato referindo-se ao festival No livro 62 da

Historia Romana ele comenta que em um espetaacuteculo puacuteblico Nero desce para a

orquestra do teatro e recita alguns de seus proacuteprios poemas chamados Troica1389

Em concordacircncia com Champlin a imprecisatildeo do trecho resulta na dificuldade de

investigaacute-lo e por conseguinte na impossibilidade de o enquadrarmos em uma de

nossas categorias de anaacutelise1390

Passemos entatildeo para o proacuteximo episoacutedio o do assassinato de Popeia

Diatildeo Caacutessio o descreve no contexto da Conspiraccedilatildeo pisoniana com as seguintes

palavras ldquoSabina tambeacutem morreu nesta eacutepoca por um ato de Nero ele acidental

ou intencionalmente saltou sobre ela com os peacutes enquanto ela estava graacutevidardquo1391

Notemos que o uxoriciacutedio sofre a mesma esquematizaccedilatildeo da conspiraccedilatildeo

havendo a alusatildeo a poucos elementos do crime Mas aqui eacute essencial demarcar

um ponto o reforccedilo da crueldade de Nero Tanto nos Annales quanto no De Vita

Caesarum (e agora na Historia Romana) a histoacuteria eacute a mesma Nero seja de

1386

LEFEBVRE 2017 p 86-88 1387

LEFEBVRE 2017 p 91-93 1388

BARRETT 2020 p 242-245 1389

Dio 62291 1390

CHAMPLIN 2005 p 290 1391

(Dio 62 274) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 137)

338

forma acidental seja de forma proposital chutou sua esposa enquanto ela estava

graacutevida Eacute importante apontar como essa repeticcedilatildeo simultaneamente fortalece a

personalidade violenta do soberano e constroacutei um caraacuteter desequilibrado

transferindo a brutalidade do acircmbito puacuteblico para a domus1392

Inclusive tal

brutalidade eacute usada por Diatildeo Caacutessio para narrar o luto de Nero pois ele diz que o

princeps sentiu tanto a falta da mulher que ao saber da existecircncia de um liberto

parecido com ela mandou castraacute-lo e se casou com ele1393

Ou seja aqui o

historiador ao inveacutes de pontuar como Taacutecito que o imperador concedeu um

funeral extravagante agrave esposa mostrando publicamente a sua dor atesta que ele

castrou um liberto e se voltou a uma ldquoresoluccedilatildeordquo domeacutestica dessa ausecircncia Essa

notiacutecia tambeacutem eacute dada por Taacutecito1394

Conforme Baughman essa reaccedilatildeo de Nero

foi usada por Diatildeo Caacutessio para enrobustecer a ideia de que Nero era um liacuteder

vaidoso volaacutetil e degenerado que havia perdido completamente a noccedilatildeo das

restriccedilotildees fixadas ao seu papel de imperador1395

Por fim quando lemos a histoacuteria do assassinato de Popeia atraveacutes dos

olhos de Diatildeo Caacutessio vemos que Nero se transforma em um tiacutepico uxoricida Por

oacutebvio isso se deve ao processo de (re)apropriaccedilatildeo dos seus retratos o qual se

torna cada vez mais seletivo cria um novo Nero sempre mais e mais cruel em

uma narrativa mais simples e foca na esfera privada Se olharmos de uma

perspectiva ampla perceberemos que as semelhanccedilas entre as fontes suplantam as

diferenccedilas preservando a concepccedilatildeo negativa do princeps que ateacute hoje continua

a determinar nossa compreensatildeo sobre ele

Depois do uxoriciacutedio Diatildeo Caacutessio natildeo menciona o casamento de Nero e

Messalina o que nos leva para o proacuteximo episoacutedio o da ida de Tiridates a Roma

para firmar o acordo previamente estabelecido com os partas De acordo com o

historiador a chegada de Tiridates agrave Vrbs foi um acontecimento de ldquogrande

gloacuteriardquo e tambeacutem de ldquoprofunda desgraccedilardquo1396

ldquoDe grande gloacuteriardquo porque ele se

apresenta em Roma trazendo consigo uma procissatildeo triunfal magnificente e de

ldquoprofunda desgraccedilardquo porque Nero celebra um triunfo no Circus toca a lira e se

1392

BEacuteDOYERE 2018 p 264 1393

Dio 62282 1394

Tac Ann 166 1395

BAUGHMAN 2014 p 3 1396

Dio 6311

339

apresenta publicamente como um cocheiro1397

Tiridates eacute descrito por Diatildeo

Caacutessio como um homem de famiacutelia rico bonito e inteligente ao passo que Nero eacute

representado como um liacuteder que soacute pensa em entretenimentos artiacutesticos1398

Tal

preocupaccedilatildeo imperial inclusive eacute materializada na proacutepria decoraccedilatildeo de Roma e

do teatro luzes guirlandas e muito ouro a ponto de as pessoas denominarem o

dia de ldquodia douradordquo1399

Enfim quando Tiridates entra na Vrbs multidotildees podem

ser vistas em todos os lugares sobretudo no Foacuterum afirma Diatildeo Caacutessio Ateacute os

telhados dos edifiacutecios proacuteximos estavam totalmente ocupados Entatildeo Nero

vestindo o traje triunfal e acompanhado pelo Senado e pelos pretorianos entra no

Foacuterum e sobe nos rostra1400

Em seguida Tiridates se aproxima e com muita

humildade diz ao princeps

ldquo[] Mestre sou descendente de Aacutersaces irmatildeo dos reis

Vologeso e Paacutecoro e teu escravo E vim a ti meu deus para te adorar como faccedilo a Mitras O destino que propusestes seraacute meu pois tu eacutes minha fortuna e meu destinordquo Nero responde-lhe ldquoFoi bom que tenhas vindo ateacute aqui pessoalmente para que me encontrasse face a face e desfrutasse da minha presenccedila Pois que eu te conceda aquilo que nem teu pai te deixou e nem teus irmatildeos te deram e preservaram Rei da Armecircnia eu agora te declaro para que tanto tu como eles possam compreender que eu tenho poder para tirar reinos e concedecirc-losrdquo1401

Ao final dessas palavras o soberano coloca o diadema na cabeccedila de

Tiridates Com isso haacute uma enorme festa no teatro e Nero canta com a lira e

dirige uma biga usando o traje dos Verdes e um elmo de cocheiro Isso deixa

Tiridates com ldquoantipatiardquo dele mas natildeo o impede de elogiar Corbulatildeo general em

quem ele encontrou apenas uma falha tolerar tal mestre1402

1397

Dio 6312 1398

Dio 6321 31 1399

Dio 6341 61 Para sustentar esse luxo 800 mil sesteacutercios eram necessaacuterios diariamente

(Dio 6322) 1400

Dio 6342 1401

[] ldquoἐγώ δέσποτα Ἀρσάκου μὲν ἔκγονος Οὐολογαίσου δὲ καὶ Πακόρου τῶν βασιλέων ἀδελφός

σὸς δὲ δοῦλός εἰμι καὶ ἦλθόν τε πρὸς σὲ τὸν ἐμὸν θεόν προσκυνήσων σε ὡς καὶ τὸν Μίθραν καὶ

ἔσομαι τοῦτο ὅ τι ἂν σὺ ἐπικλώσῃς σὺ γάρ μοιrdquo ldquoκαὶ μοῖρα εἶ καὶ τύχηrsquo ὁ δὲ Νέρων ἠμείψατο

αὐτὸν ὧδε lsquoἀλλ εὖ τοι ἐποίησας αὐτὸς δεῦρο ἐλθών ἵνα καὶ παρὼν παρόντος μου ἀπολαύσῃς ἃ

γάρ σοι οὔτε ὁ πατὴρ κατέλιπεν οὔτε οἱ ἀδελφοὶ δόντες ἐτήρησαν ταῦτα ἐγὼ χαρίζομαι καὶ βασιλέα

τῆς Ἀρμενίας ποιῶ ἵνα καὶ σὺ καὶ ἐκεῖνοι μάθωσιν ὅτι καὶ ἀφαιρεῖσθαι βασιλείαςrdquo (Dio 6352-3)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 144-145) 1402

Dio 6354 61-4

340

Ao descrever o episoacutedio Diatildeo Caacutessio mostra um interesse particular em

confrontar a imagem de Nero com a de Tiridates Nesse sentido seu objetivo eacute

bastante diferente dos de Pliacutenio o Velho e de Suetocircnio que criticaram o uso

desmedido de ouro por Nero e insinuaram que a gloacuteria militar do evento foi

substituiacuteda por valores artiacutesticos1403

O propoacutesito de Diatildeo Caacutessio eacute evidenciar que

o rei da Armecircnia era virtuosamente superior ao princeps1404

Para tanto torna a

comparaccedilatildeo entre os dois o centro da histoacuteria de modo que de um lado Tiridates

eacute o natildeo romano inteligente humilde e detentor de uma procissatildeo triunfal

magnificente e de outro Nero eacute o liacuteder arrogante cocheiro e tocador de lira1405

Conforme Lefebvre ao escolher o caraacuteter de um estrangeiro como contraponto a

Nero Diatildeo Caacutessio revela ainda mais a sua hostilidade ao princeps ateacute um natildeo

romano podia exibir mais nobreza virilidade e sabedoria do que o imperador1406

A autora tambeacutem defende outro ponto importante A seu ver o relato

particularmente laudatoacuterio da pompa triunfal de Tiridates feito pelo historiador eacute

influenciado pela memoacuteria que ele tem da entrada triunfal de Septiacutemio Severo em

Roma durante sua ascensatildeo em 193 a qual ele caracteriza como ldquoa mais incriacutevel

de todasrdquo1407

Isso significa que Diatildeo Caacutessio natildeo estaacute apenas comparando

Tiridates a Nero mas construindo o paralelo a partir do filtro de experiecircncias

vividas por ele Desse modo o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano natildeo eacute soacute a antiacutetese de

Tiridates mas sobretudo a antiacutetese do optimus princeps Septiacutemio Severo1408

No final entatildeo voltamos agrave mesma questatildeo de sempre Nero eacute uma figura

usada com frequecircncia pelos autores para a construccedilatildeo de reflexotildees sobre o

presente Melhor dizendo ele eacute o pano de fundo das narrativas sobre as coisas

consideradas dignas de nota E precisamente por ser o pano de fundo natildeo existe

uma preocupaccedilatildeo com a descriccedilatildeo fidedigna dos seus atos Nero eacute e sempre seraacute

apresentado conforme as intenccedilotildees do autor e do governo no qual este estaacute

inserido mas tal natildeo se daacute independentemente do que o soberano fez ou deixou de

fazer Tais retratos natildeo se datildeo por uma criaccedilatildeo livre totalmente produzida pelo

presente muito do que se afirma estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo e a margem para se

1403

Plin Nat 3316 Suet Nero 131 1404

SCHULZ 2019 p 202-212 1405

CHAMPLIN 2005 p 227 1406

LEFEBVRE 2017 p 230-264 1407

Dio 7514 1408

LEFEBVRE 2017 p 264

341

escapar dela eacute pequena sob pena inclusive de um Nero absolutamente novo natildeo

ser nem mesmo reconhecido pela audiecircncia Essa tradiccedilatildeo remete a eventos que

ocorreram originalmente no Principado de Nero (para exemplos de que tratamos

exaustivamente matriciacutedio uxoriciacutedio incecircndio apresentaccedilotildees artiacutesticas

conspiraccedilotildees suiciacutedio) Os retratos mesclam traccedilos diversos para relatar de forma

nova eventos antigos Natildeo se trata de algo novo totalmente portanto Assim o

imperador eacute explorado de maneira exaustiva por diferentes vieses marcas e

testemunhos das lutas de diversas eacutepocas que elaboram os retratos de Nero

contribuindo para o desenvolvimento e a durabilidade da lenda negativa que

supera sua marca original de origem particular e eacute generalizada em uma

multiplicidade de situaccedilotildees novas A narrativa se torna mais simples poreacutem cada

vez mais humana e capaz de ser percebida em qualquer eacutepoca ou lugar quando

livre dos detalhes particulares que marcam o acontecimento histoacuterico Em

particular no caso de Diatildeo Caacutessio e do episoacutedio da ida de Tiridates a Roma

temos a assimilaccedilatildeo de Nero como um antiprinceps tragicamente inapropriado

Depois desse evento Nero vai para a Greacutecia a fim de dirigir bigas tocar

lira fazer proclamaccedilotildees e atuar em trageacutedias Segundo Diatildeo Caacutessio Roma jaacute natildeo

lhe bastava tampouco o teatro de Pompeu e o Circus Maximus pois ele desejava

ser o vencedor da ldquogrande turnecircrdquo1409

No entanto como algueacutem poderia suportar ndash ateacute mesmo ouvir e quanto mais ver ndash um romano um senador um patriacutecio um

sumo sacerdote um Ceacutesar e um imperador um Augusto junto aos competidores treinando sua voz praticando canccedilotildees usando cabelos longos [] olhando com antipatia para os seus oponentes e constantemente proferindo comentaacuterios zombeteiros para eles []1410

Pois foi exatamente assim que Nero agiu segundo o retrato de Diatildeo

Caacutessio Ele ainda ldquose livrou da sua dignidaderdquo para atuar no palco como Eacutedipo

1409

Dio 6381-3 1410

καὶ εἰ μὲν μόνα ταῦτα ἐπεπράχει γέλωτα ἂν ὠφλήκει καίτοι πῶς ἄν τις καὶ ἀκοῦσαι μὴ ὅτι

ἰδεῖν ὑπομείνειεν ἄνδρα Ῥωμαῖον βουλευτὴν εὐπατρίδην ἀρχιερέα Καίσαρα αὐτοκράτορα

Αὔγουστον ἔς τε τὸ λεύκωμα ἐν τοῖς ἀγωνισταῖς ἐγγραφόμενον καὶ τὴν φωνὴν ἀσκοῦντα μελετῶντά

τέ τινας ᾠδάς καὶ τὴν μὲν κεφαλὴν κομῶντα (Dio 6391-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 151-152)

342

Tiestes Heacutercules Alcmeatildeo e Orestes Ou seja Nero fez tudo aquilo considerado

improacuteprio para um imperador1411

Enfim quando retornou a Roma em 67

[] uma parte do muro foi derrubada e uma seccedilatildeo dos portotildees arrombada porque alguns afirmavam que essas coisas eram habituais no retorno dos vencedores coroados em jogos Entraram primeiro [na cidade] os homens que carregavam as coroas que ele havia ganhado e depois deles outros com paineacuteis de madeira erguidos em lanccedilas nos quais estavam inscritos os

nomes dos jogos o tipo de competiccedilatildeo e uma declaraccedilatildeo de que Nero Ceacutesar [] havia vencido Em seguida veio o proacuteprio vencedor em um carro triunfal aquele em que Augusto havia celebrado suas muitas vitoacuterias Ele estava usando uma coroa de oliva e uma veste puacuterpura coberta com lantejoulas de ouro [] Depois de passar pelo Circo e pelo Foacuterum [] Nero foi para o Capitoacutelio e dali procedeu para o palaacutecio A cidade toda estava enfeitada com guirlandas e iluminada por luzes e cheirando a

incenso e toda a populaccedilatildeo sobretudo os proacuteprios senadores gritava em coro ldquosalve vitorioso Oliacutempico Salve vencedor Piacutetico Augusto Augusto Saudaccedilotildees a Nero nosso Heacutercules Saudaccedilotildees a Nero nosso Apolo O uacutenico vencedor da grande turnecirc o uacutenico desde o iniacutecio do tempo de Augusto Augusto Oacute voz divina Bem-aventurados aqueles que te ouvemrdquo1412

Podemos ler essa narrativa de Diatildeo Caacutessio como uma tentativa de limitar a

representaccedilatildeo de Nero a uma imagem especiacutefica a de um mau imperador O

historiador edifica um soberano que parece natildeo ter nenhuma noccedilatildeo de qual era o

seu papel como princeps ou seja um liacuteder explicitamente inadequado1413

Para

tanto acentua com irritaccedilatildeo o fato de ldquoum Ceacutesar e um imperadorrdquo estarem junto

dos competidores e salienta com deboche o disparate do triunfo de Nero No

1411

Dio 6393-6 1412

καὶ ἤλπισαν αὐτὸν ἀπολεῖσθαι ἐπεὶ δ᾽ οὖν ἐς τὴν Ῥώμην ἐσήλασε τοῦ τε τείχους τι καθῃρέθη

καὶ τῶν πυλῶν περιερράγη νενομίσθαι τινῶν λεγόντων ἑκάτερον τοῖς ἐκ τῶν ἀγώνων

στεφανηφόροις γίνεσθαι καὶ ἐσεφοίτησαν πρῶτοι μὲν οἱ τοὺς στεφάνους οὓς ἀνῄρητο κομίζοντες

καὶ μετ᾽ αὐτοὺς ἕτεροι σανίδια ἐπὶ δοράτων ἀνατείνοντες ἐφ᾽ οἷς ἐπεγέγραπτο τό τε ὄνομα τοῦ ἀγῶνος καὶ τὸ εἶδος τοῦ ἀγωνίσματος ὅτι τε Νέρων Καῖσαρ πρῶτος πάντων τῶν ἀπὸ τοῦ αἰῶνος

Ῥωμαίων ἐνίκησεν αὐτό ἔπειτα αὐτὸς ἐφ᾽ ἅρματος ἐπινικίου ἐν ᾧ ποτε ὁ Αὔγουστος τὰ πολλὰ

ἐκεῖνα νικητήρια ἐπεπόμφει ἁλουργίδα χρυσόπαστον ἔχων καὶ κότινον ἐστεφανωμένος τὴν Πυθικὴν

δάφνην προτείνων καὶ αὐτῷ ὁ Διόδωρος ὁ κιθαρῳδὸς παρωχεῖτο καὶ οὕτω διά τε τοῦ ἱπποδρόμου

καὶ διὰ τῆς ἀγορᾶς μετά τε τῶν στρατιωτῶν καὶ μετὰ τῶν ἱππέων τῆς τε βουλῆς διελθὼν ἐς τὸ

Καπιτώλιον ἀνέβη καὶ ἐκεῖθεν ἐς τὸ Παλάτιον πάσης μὲν τῆς πόλεως ἐστεφανωμένης καὶ

λυχνοκαυτούσης καὶ θυμιώσης πάντων δὲ τῶν ἀνθρώπων καὶ αὐτῶν βουλευτῶν ὅτι μάλιστα

συμβοώντων ldquoὈλυμπιονῖκα οὐᾶ Πυθιονῖκα οὐᾶ Αὔγουστε Αὔγουστε Νέρωνι τῷ Ἡρακλεῖ Νέρωνι

τῷ Ἀπόλλωνι ὡς εἷς περιοδονίκης εἷς ἀπ᾽ αἰῶνος Αὔγουστε Αὔγουστε ἱερὰ φωνή μακάριοι οἵ σου

ἀκούοντεςrdquo τί γὰρ δεῖ περιπλέκειν καὶ οὐκ αὐτὰ τὰ λεχθέντα δηλοῦν οὐδὲ γὰρ οὐδ᾽ αἰσχύνην τινὰ τῇ

συγγραφῇ τὰ ῥηθέντα ἀλλὰ καὶ κόσμον τὸ μηδὲν αὐτῶν ἀποκρυφθῆναι φέρει (Dio 63201-5) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 169-170) 1413

SCHULZ 2019 p 196

343

caso particular deste uacuteltimo feito ressalta a sua inadequaccedilatildeo pois a seu ver os

triunfos eram reservados para os imperadores que tinham de fato conquistado

vitoacuterias militares e natildeo para os imperadores que haviam ganhado vitoacuterias falsas a

exemplo de Nero1414

Para Diatildeo Caacutessio o soberano natildeo obteve triunfos mas

dirigiu bigas tocou lira e ateou no palco ndash tal foi o seu ldquogrande triunfordquo O

historiador portanto estaacute zombando de Nero e das suas conquistas vazias isto eacute

dos seus tiacutetulos recebidos na Greacutecia1415

Sobre esse assunto destacamos outro ponto importante a maneira como

Diatildeo Caacutessio mistura o triunfo militar com as vitoacuterias artiacutesticas subordinando o

primeiro agrave segunda Por exemplo ele coloca o Nero vencedor em cima da

carruagem de Augusto desenha o soberano portando uma coroa oliva em vez de

uma coroa de louros usadas pelos generais e o retrata sendo saudado pelos

senadores como Apolo ao inveacutes de Marte Resumindo o historiador o representa

como o liacuteder que fez a arte prevalecer sobre o triunfo Como observa Gowing

Diatildeo Caacutessio teve o cuidado de criar um Nero que desprezou as virtudes

tradicionais romanas ele trocou a coragem e a gloacuteria militar tatildeo querida aos olhos

da aristocracia senatorial por uma paixatildeo vergonhosa deixando assim o papel

vago de liacuteder do Impeacuterio e dos exeacutercitos1416

Natildeo eacute agrave toa entatildeo que o historiador

assevera que ele ldquose livrou da sua dignidaderdquo

O triunfo de 67 eacute a uacuteltima realizaccedilatildeo artiacutestica de Nero jaacute registrada pelas

fontes histoacutericas Mas se olharmos para traacutes e relembrarmos os seus feitos dos

jogos no anfiteatro ateacute esse ponto perceberemos como a concepccedilatildeo neroniana de

triunfo se encaixa perfeitamente com a dramatizaccedilatildeo que ele concedia agrave sua

existecircncia e ao seu governo Por exemplo no De Vita Caesarum vimos como ele

foi um princeps que performou os proacuteprios crimes no palco o assassinato de

Britacircnico de Agripina e de Otaacutevia por meio da trageacutedia o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo

o matriciacutedio a partir de ldquoOrestesrdquo e de ldquoAlcmeatildeordquo e o incesto com a matildee atraveacutes

de ldquoEacutedipordquo1417

E aqui quase um seacuteculo depois ele continua sendo apropriado

como mateacuteria de retrato como um soberano que mesclou a realidade com a arte e

perdeu a dimensatildeo do seu lugar no mundo Em suma Nero se transformou em um

1414

BEARD 2007 p 271 1415

LANGE 2016 p 112 1416

GOWING 1997 p 2570-2579 1417

Suet Nero 21

344

lugar de convergecircncia de todos os topoi relativos agrave paixatildeo desmedida pela arte e

pela extravagacircncia Melhor dito tornou-se o siacutembolo da inadequaccedilatildeo imperial o

pessimus princeps A partir daqui todos os autores que objetivarem criticar o mau

governo de um liacuteder utilizaratildeo Nero Eacute claro que a forma como iratildeo usaacute-lo variaraacute

conforme suas obras e seus projetos literaacuterios mas em geral ele seraacute sempre

desenhado da mesma forma como o Nero artista1418

Apoacutes explanar sobre a turnecirc de Nero pela Greacutecia Diatildeo Caacutessio comeccedila a

relatar como esse primeiro ldquocaiu do poderrdquo1419

Assim conta-nos que enquanto o

princeps ainda estava na Greacutecia Juacutelio Vindex um liacuteder ldquoforterdquo ldquointeligenterdquo e

ldquocorajosordquo instiga uma revolta sob os argumentos de que o imperador tinha

saqueado o mundo romano havia destruiacutedo o Senado aleacutem de dizer que a matildee de

Nero natildeo mantinha uma aparecircncia de soberania1420

Entatildeo Vindex reuacutene os

gauleses e lhes diz

ldquo[] Algueacutem [] chamaraacute tal pessoa de Ceacutesar de imperador e

de Augusto Nunca Que ningueacutem abuse desses tiacutetulos sagrados Eles foram mantidos por Augusto e por Claacuteudio ao passo que este sujeito poderia ser mais apropriadamente denominado Tiestes Eacutedipo Alcmeatildeo ou Orestes pois esses satildeo os personagens que ele representa no palco e satildeo esses tiacutetulos que ele assumiu no lugar dos outros Portanto levantem-se agora finalmente contra ele []rdquo1421

Essas palavras foram aprovadas por todos segundo Diatildeo Caacutessio Nero fica

sabendo da revolta enquanto assistia a uma competiccedilatildeo de ginaacutestica em Naacutepoles

mas longe de mostrar qualquer preocupaccedilatildeo pula de sua cadeira e comeccedila a

competir com algum atleta Segundo o historiador ele nem mesmo retorna a

Roma enviando apenas uma carta ao Senado na qual pede desculpas por sua

ausecircncia e diz que cantaria para eles quando a crise passasse1422

Por conseguinte

Nero continua com as suas praacuteticas luxuosas soacute tomando alguma providecircncia

quando ouve que Vindex havia conquistado o apoio de Galba e sido proclamado

1418

LEFEBVRE 2017 p 267-272 1419

Dio 632211 1420

Dio 63221-2 1421

Dio 63225-6 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 175-176) 1422

Dio 63261

345

imperador pelos gauleses e pelos soldados romanos1423

Por causa disso Diatildeo

Caacutessio alega que Nero volta a Roma Ao chegar laacute e ver que os seus proacuteprios

guardas pessoais tinham o abandonado ele resolve fugir Para tanto veste roupas

velhas monta em um cavalo e cavalga a noite toda em direccedilatildeo agrave vila do seu

liberto Faonte por quem aleacutem de Epafrodito e Esporo eacute acompanhado1424

Apoacutes

algum tempo chega a uma caverna e sentindo fome come um patildeo estragado e

bebe uma aacutegua suja

Tal foi o papel traacutegico que Nero desempenhou e esse versiacuteculo

constantemente passava por sua mente ldquoTanto a minha esposa quanto o meu pai desejaram que eu morresse cruelmenterdquo [] Enquanto ele estava nessa situaccedilatildeo o povo romano oferecia sacrifiacutecios e enlouquecia de alegria Alguns ateacute usavam pileus da liberdade significando que agora estavam livres [] Para o proacuteprio Nero instituiacuteram uma busca em todas as direccedilotildees [] Quando eles finalmente souberam [onde ele estava] enviaram cavaleiros contra ele Ele entatildeo percebendo que eles estavam

se aproximando [] matou-se apoacutes proferir aquela observaccedilatildeo frequentemente citada ldquoJuacutepiter que artista morre comigordquo E enquanto ele se demorava em sua agonia Epafrodito deu-lhe o golpe final Ele viveu 30 anos e 9 meses dos quais governou 13 anos e 8 meses1425

Sobre a descriccedilatildeo dos uacuteltimos momentos do soberano destacamos trecircs

pontos Em primeiro lugar pontuamos a contraposiccedilatildeo entre Vindex e Nero Diatildeo

Caacutessio contrasta os dois indiviacuteduos a partir da menccedilatildeo de expressotildees elogiosas ao

primeiro e vituperiosas ao segundo Por exemplo o gaulecircs eacute retratado como um

liacuteder ldquoforterdquo ldquointeligenterdquo e ldquocorajosordquo e o princeps como um indiviacuteduo

ganancioso e desrespeitoso em relaccedilatildeo ao Senado e ao seu proacuteprio papel (um

antiprinceps) Tal contraste se torna ainda mais acentuado no momento em que

Diatildeo Caacutessio apresenta o discurso de Vindex com as principais justificativas da

revolta extorsatildeo do Impeacuterio performances artiacutesticas improacuteprias e uso indevido

dos tiacutetulos sagrados Nesse sentido como argumenta Schulz Vindex eacute a

ferramenta utilizada pelo historiador para divulgar ao seu puacuteblico a sua proacutepria

opiniatildeo sobre Nero O autor se intromete na histoacuteria para colocar palavras na boca

1423

Dio 63263 271-1ordf 1424

Dio 63273 1425

Dio 63284 291-3

346

do seu personagem fazendo Vindex dizer o que ele mesmo desejava dizer Nero

natildeo era digno de ser chamado nem de Ceacutesar e nem de Augusto1426

Em segundo salientamos o papel artiacutestico de Nero Diatildeo Caacutessio de igual

modo a Suetocircnio retrata o princeps como um liacuteder que tanto se apresenta no

teatro indevidamente que acaba deixando o palco para atuar na proacutepria vida

Melhor dizendo o papel teatral prevalece sobre o papel imperial Mas natildeo

prevalece de qualquer maneira e sim de modo desonroso Nero eacute um pobre ator

abandonado procurado e forccedilado a se suicidar Seu fim eacute despreziacutevel e

aterrorizante1427

No final das contas a impressatildeo que fica eacute que o proacuteprio

historiador elaborou aquilo que considerava ser um fim digno do Nero artista

Em terceiro lugar destacamos a evocaccedilatildeo de alguns dos crimes do

princeps No final da narrativa da vida de Nero Diatildeo Caacutessio relembra aos seus

leitores certos delitos imperiais a exemplo do matriciacutedio do assassinato de

Otaacutevia das atuaccedilotildees no palco e da destruiccedilatildeo do Senado A nosso ver sua escolha

por tais crimes representa aquilo que ele queria que ficasse guardado na memoacuteria

das pessoas Nero foi um imperador indigno que envergonhou a si mesmo e aos

romanos ndash ldquoisso foi o que ele julgou importante e interessante preservarrdquo1428

Como afirma Gowing o Nero de Diatildeo Caacutessio eacute um exibicionista e natildeo uma

figura poliacutetica1429

Assim ao final percebemos que os escassos resquiacutecios do bom Nero

surgidos nesse capiacutetulo desaparecem completamente em Taacutecito e em Suetocircnio

Diatildeo Caacutessio transforma Nero no tiacutepico tirano que natildeo se importa com o

funcionamento do Estado nem mesmo para atrapalhar tomar maacutes decisotildees de

governo ndash essa eacute sua mensagem mais importante Natildeo eacute fortuitamente que coloca

Nero ignorando a revolta de Vindex de um lado e a populaccedilatildeo mais tarde

comemorando a sua morte de outro Natildeo nos esqueccedilamos de que para construir

essa mensagem o autor se baseia nas suas experiecircncias pessoais durante os

governos de Cocircmodo Septiacutemio Severo Caracala e Heliogaacutebalo um periacuteodo de

conturbaccedilotildees advindas das raacutepidas trocas de imperadores Ao viver essa realidade

Diatildeo elabora uma Historia Romana na qual a monarquia era a forma superior de

1426

SCHULZ 2019 p 202-214 1427

DRINKWATER 2019 p 86-87 1428

HURLEY 2013 p 32 1429

GOWING 1997 p 2559

347

governo e traria estabilidade poliacutetica para o Impeacuterio ou seja o princeps seria o

responsaacutevel por salvar os romanos da destruiccedilatildeo Para tanto ele precisava ser natildeo

soacute um bom imperador assumindo a responsabilidade de liderar com prudecircncia e

com respeito aos membros da elite mas tambeacutem uma boa pessoa modesta e

humilde Foi exatamente aiacute na concepccedilatildeo de Diatildeo Caacutessio que Nero falhou Ele

natildeo soacute natildeo abandonou o seu trabalho como ainda tentou se beneficiar do proacuteprio

tiacutetulo1430

Nero morreu em junho de 68 e desse modo desistiu da sua existecircncia

terrena Como vimos a sua vida e o seu governo foram lidos de modos muito

diferentes o que criou uma imagem multifacetada desse imperador Concluiacutedos os

estudos desses trecircs autores passemos agraves consideraccedilotildees finais

1430

MADSEN 2020 p 115-120

348

Consideraccedilotildees Finais

Em 2009 a escritora nigeriana Chimamanda Adichie proferiu uma palestra

no programa TEDTalk na qual comentou sobre O perigo de uma histoacuteria uacutenica

Nela alertou sobre os riscos de ouvirmos e nos acomodarmos com uma uacutenica

versatildeo de uma histoacuteria pois isso aleacutem de natildeo assimilar a complexidade e a

diversidade dos povos e indiviacuteduos gera preconceitos e estereoacutetipos Eacute claro que

na eacutepoca a autora estava se referindo agrave construccedilatildeo de estereoacutetipos feitos pela

literatura moderna ocidental sobretudo a que envolve a Aacutefrica e os africanos

Todavia a ideia central da sua palestra se encaixa muito bem aqui Os perigos de

uma histoacuteria uacutenica natildeo se limitam agrave contemporaneidade e podem com certeza ser

aplicados a Nero Em um trecho do seu discurso Adichie afirma [] ldquoeacute assim

que se cria uma uacutenica histoacuteria mostre um povo como uma uacutenica coisa como

somente uma coisa vaacuterias vezes e isso seraacute o que ele se tornaraacuterdquo Ou seja natildeo

haveraacute mais a possibilidade de ele ser outra coisa porque sua histoacuteria teraacute se

transformado em algo definitivo Foi exatamente isso o que aconteceu com Nero e

com o seu Principado Sua imagem foi tatildeo (re)elaborada e (re)contada de modo

tatildeo negativo e sistemaacutetico que ficou impossiacutevel vecirc-lo de outra forma seja na

proacutepria Antiguidade seja nos dias atuais A tradiccedilatildeo literaacuteria para usarmos as

palavras de Adichie ldquosuperficializourdquo e ldquonegligenciourdquo muitas outras histoacuterias de

Nero dando-nos um mau imperador que na verdade eacute incompleto ndash e portanto

viacutetima de uma histoacuteria uacutenica1431

Concordamos com a visatildeo de Chimamanda Adichie mas tambeacutem

consideramos ao longo desta tese que essa histoacuteria uacutenica natildeo eacute tatildeo uacutenica assim

Apesar de existir uma clara hegemonia que permite o reconhecimento de Nero a

partir de traccedilos muito simples como a associaccedilatildeo de um homem laureado com a

lira em um cenaacuterio em chamas a hegemonia se reflete em contextos muito

diversos e em um uso plural dessa mesma narrativa predominante Como

defendemos cada contexto que definimos em blocos arbitraacuterios denominados

conceitualmente de forma coloca nossos conflitos em pauta e cria novas formas

1431

ADICHIE 2009 Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpswwwtedcomtalkschimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_storytranscriptl

anguage=pt-

br~text=Uma20C3BAnica20histC3B3ria20de20catC3A1strofeuma20co

nexC3A3o20como20humanos20iguais Acesso em 02 mai 2021

349

de pensar a tradiccedilatildeo Essas lutas levam a novas seleccedilotildees no repertoacuterio disponiacutevel

na tradiccedilatildeo no caso da Antiguidade atraveacutes da inuentio dos autores Por meio da

seleccedilatildeo de tais elementos mormente jaacute conhecidos do puacuteblico elabora-se a

construccedilatildeo de uma imagem que mescla elementos relativos a diversas

temporalidades por exemplo os eventos ocorridos no proacuteprio governo de Nero e

as suas releituras e recomposiccedilotildees feitas atraveacutes do tempo bem como os eventos

do tempo da proacutepria composiccedilatildeo dessa imagem pelo autor

A mescla desses elementos jaacute conhecidos e pertencentes a temporalidades

diferentes gera um novo registro que eacute perfeitamente reconheciacutevel pela audiecircncia

por trazer elementos jaacute familiares Opera por essa composiccedilatildeo o que chamamos

de retratos de Nero Esses retratos satildeo construiacutedos como foi indicado pelo

tratamento de elementos transmitidos pela tradiccedilatildeo do passado e por temas atuais

que estejam na base dos conflitos que levam a uma retomada desse passado

Por allelopoiesis vemos de forma recorrente esse procedimento ocorrer

na construccedilatildeo dos sucessivos Neros o presente lanccedila novas questotildees para o

passado gerando novas formas de vecirc-lo e interpretaacute-lo e reciprocamente as

novas formas de ver o passado por alteridade permitem ver o presente de uma

forma nova Assim por allelopoiesis passado e presente se constroem

mutuamente sem que o primeiro determine o segundo como um legado

incontornaacutevel nem o segundo domine o primeiro manipulando-o livremente para

gerar uma visatildeo totalmente nova do passado adequada a cada contexto ou geraccedilatildeo

Esses Neros satildeo utilizados como exemplum ajustando-se a diferentes

temporalidades pois trazem um conteuacutedo humano geral transtemporal e tecircm

capacidade de auxiliar os contemporacircneos a entender e agir em seu proacuteprio tempo

Nero por sua exemplaridade pertence simultaneamente a diversos passados e

presentes os quais se sucedem apresentando conflitos que podem ser observados

tendo o imperador como referecircncia

Assim nosso estudo de Nero permitiu evidenciar que i) a relaccedilatildeo entre

passado e presente eacute mais complexa sendo multidimensional transtemporal e

multifacetada ii) cada geraccedilatildeo ou contexto comporta disputas e conflitos e

portanto natildeo haacute um Nero uacutenico para cada uma delas (ainda que ocorram

consensos crescentes quanto aos seus traccedilos centrais ao longo do tempo) iii) a

composiccedilatildeo das imagens de Nero natildeo se daacute como mera repeticcedilatildeo dos elementos

350

conhecidos o procedimento eacute de recomposiccedilatildeo dos elementos conhecidos como

retrato iv) o meacutetodo de seleccedilatildeo dos elementos usados para a composiccedilatildeo do

retrato natildeo se daacute pela criaccedilatildeo livre do autor mas se coloca em relaccedilatildeo direta e

necessaacuteria com a tradiccedilatildeo a partir da qual opera o procedimento de seleccedilatildeo ou

inuentio e v) o uso de Nero como exemplum reforccedila a noccedilatildeo da utilidade dessa

experiecircncia humana para muacuteltiplas temporalidades quase como um heroacutei traacutegico

que ao mesmo tempo em que eacute apresentado como uma figura do passado

transmitida por uma rica tradiccedilatildeo eacute uma figura contemporacircnea por sua

exemplaridade por servir para lidar com indiviacuteduos que a cada novo contexto satildeo

julgados negativamente como ldquoNerosrdquo

Nesta tese dedicamo-nos agrave investigaccedilatildeo dessa histoacuteria neroniana

multifacetada e disputada que tende a se tornar cada vez mais simplificada e

concentrada em poucos traccedilos apontando para a unicidade Em outros termos

estudamos a parcela inicial e fundamental do processo de consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

literaacuteria negativa sobre o princeps e sobre o seu reinado Nesse sentido

trabalhamos com a seguinte hipoacutetese a de que a tradiccedilatildeo negativa se consolidou a

partir de julgamentos sobre Nero e o seu governo feitos em contextos histoacutericos e

literaacuterios especiacuteficos diversos e em disputa que por mudarem ao longo do

tempo geraram por um lado o apagamento dos traccedilos positivos do liacuteder e do seu

reinado e por outro a manutenccedilatildeo dos negativos Pudemos demonstrar que temos

transformaccedilotildees importantes ao longo do periacuteodo e que tratar Nero como uma

unidade implica um problema metodoloacutegico a ser evitado Na verdade como

percebemos isso justifica a opccedilatildeo de privilegiar algumas fontes em detrimento de

outras pelo fato de essas primeiras serem supostamente portadoras de uma

autoridade mais elevada em desconsideraccedilatildeo de outras ou finalmente por

atenderem melhor as visotildees preconcebidas dos autores que as utilizam

Por oacutebvio para comprovaacute-la noacutes tambeacutem fizemos algumas escolhas e

realizamos certos procedimentos Em relaccedilatildeo agraves escolhas optamos por trabalhar

apenas com a tradiccedilatildeo literaacuteria porque a nosso ver de todas as existentes como a

numismaacutetica a epigraacutefica ou mesmo outras ligadas agrave cultura material ela eacute a mais

longa e dominante influenciando na posteridade de forma mais determinante do

que outras Tambeacutem fixamos uma baliza cronoloacutegica entre os seacuteculos I e III a

qual nos pareceu suficiente para percebermos a construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria

351

negativa sobre Nero e sobre seu governo haja vista que parte relevante de tal

tradiccedilatildeo surgiu e se consolidou nesse intervalo de tempo Como deve ter restado

claro essa amostra selecionada gerou um conjunto de transformaccedilotildees conflitos

disputas construccedilatildeo de consensos mais do que suficientes para nossos propoacutesitos

Ao mesmo tempo selecionamos os episoacutedios da vida e do Principado neroniano

mais recorrentemente citados nos textos antigos e elaboramos um complexo

divisoacuterio com 12 categorias Juntamente a isso ainda decidimos utilizar para a

leitura das fontes os eixos diacrocircnico e sincrocircnico sendo o primeiro empregado

na apreciaccedilatildeo cronoloacutegica dos eventos sociais poliacuteticos econocircmicos e culturais

de cada eacutepoca e o segundo na comparaccedilatildeo entre eventos ocorridos em

temporalidades distintas Por fim delimitamos nosso aporte teoacuterico pautado nos

conceitos de forma tradiccedilatildeo inuentio retrato allelopoiesis e exemplum que

nos auxiliou tanto na organizaccedilatildeo da tese fundamentando a divisatildeo dos capiacutetulos

quanto na leitura do corpus textual No que diz respeito aos procedimentos

desenvolvidos analisamos cada fonte agrave luz das estrateacutegias discursivas do seu

proacuteprio gecircnero literaacuterio e dos interesses dos seus autores tentando compreender

como essas questotildees interferiram nas produccedilotildees das narrativas acerca do

soberano Concomitantemente a tais leituras e agrave compreensatildeo dos propoacutesitos dos

autores fomos enquadrando os relatos dos episoacutedios nas nossas categorias de

anaacutelise o que nos permitiu verificar natildeo soacute as mudanccedilas e as permanecircncias nas

apropriaccedilotildees das imagens de Nero como tambeacutem a consolidaccedilatildeo da sua imagem

negativa e os mecanismos operados nesse processo

Vejamos como essas escolhas e esses procedimentos ocorreram na praacutetica

Relembremos de um episoacutedio investigado na tese a ascensatildeo de Nero Secircneca no

iniacutecio do seacuteculo I isto eacute na contemporaneidade do imperador louvou

vigorosamente tal ocasiatildeo representando o princeps como um liacuteder que repudiaria

a guerra e instauraria a paz no Impeacuterio Como vimos o filoacutesofo se aproveitou do

falecimento de Claacuteudio e da imagem autocraacutetica desse soberano para elaborar a

Apocolocyntosis saacutetira que escarneceu o antigo governo e exaltou o novo De

igual modo ele se embasou nesse momento de troca de imperadores e na sua

proacutepria posiccedilatildeo senatorial para redigir o De Clementia assegurando a todos que

Nero possuiacutea a virtude necessaacuteria (clementia) para fazer um bom reinado Em

meio agrave percepccedilatildeo desses interesses de Secircneca e das especificidades literaacuterias das

352

suas obras notamos o seu uso da inuentio realizado na criaccedilatildeo de situaccedilotildees

extraordinaacuterias que provocaram e satirizaram a verdade (Apocolocyntosis) e na

representaccedilatildeo de Nero como um soberano que trouxe verossimilhanccedila ao seu

modelo de Estado (De Clementia) Em suma Nero foi lido por Secircneca como um

imperador prodigioso que promoveria a paz o retorno agrave Idade de Ouro

Ainda no final do seacuteculo I esse elogio foi apropriado por Pseudo-Secircneca e

convertido em um vitupeacuterio Na Octavia ao seguir os propoacutesitos de legitimaccedilatildeo

poliacutetica dos Flaacutevios o autor transformou a ascensatildeo de um liacuteder paciacutefico na

ascensatildeo de um liacuteder violento fruto de uma matildee ambiciosa o qual reinaria

segundo o seu proacuteprio plano de governo ndash e natildeo segundo o que lhe havia sido

dado por Secircneca no De Clementia Ademais destacamos como Pseudo-Secircneca se

aproveitou das estrateacutegias argumentativas da trageacutedia praetexta para expor as

queixas de Otaacutevia contra o princeps erigindo um Nero que defendia a autocracia

o uso das armas e o extermiacutenio dos inimigos Logo o princeps bom passou a ser

visto como mau Por allelopoiesis e inuentio Pseudo-Secircneca se apossou dos

argumentos positivos sobre a ascensatildeo de Nero contidos na Apocolocyntosis e no

De Clementia e os reorganizou em concordacircncia com os interesses flavianos da

sua eacutepoca desmantelando a imagem prodigiosa de Nero

Por sua vez no iniacutecio do seacuteculo II a representaccedilatildeo da ascensatildeo de Nero

sofreu outra transformaccedilatildeo A imagem totalmente prodigiosa elaborada no iniacutecio

do seacuteculo I e a imagem nefasta composta no final do mesmo seacuteculo foram

(re)apropriadas e alteradas por Taacutecito Como mostramos o historiador redigiu a

maior parte das suas obras incluindo os Annales durante os governos de Nerva e

de Trajano os quais eram considerados por ele como reinados da liberdade nos

quais se podia dizer o que se pensava Nesse aspecto ele representou os

Principados dos Juacutelio-Claacuteudios sobretudo o de Nero como periacuteodos de tirania

em que os membros proeminentes da sociedade romana tinham que se humilhar e

dissimular suas opiniotildees para sobreviverem Conjuntamente ele seguiu a noccedilatildeo

do caraacuteter exemplar da historia magistra uitae descrevendo a partir da inuentio

as condutas malignas do soberano no intuito de convencer seu puacuteblico a evitaacute-las

Tendo em vista essas questotildees Taacutecito se apossou dos relatos da ascensatildeo de Nero

anteriores a ele e os reformatou dando-nos uma ascensatildeo positiva mas positiva

natildeo por causa do proacuteprio Nero e sim por causa de Secircneca e de Burro

353

Resumindo para ele enquanto Nero respeitasse e ouvisse os seus tutores homens

dos altos extratos sociais as coisas ficariam bem Portanto Taacutecito atraveacutes da

allelopoiesis construiu sua nova versatildeo da ascensatildeo utilizando mutuamente o

passado e o presente usou o primeiro porque manteve e reforccedilou os traccedilos

positivos e usou o segundo porque pontuou a importacircncia da deferecircncia imperial

ao Senado e agrave elite

Continuamente Suetocircnio ao compor o seu De Vita Caesarum na segunda

metade do seacuteculo II tambeacutem fez seus proacuteprios usos das tradiccedilotildees interpretativas

do passado Como vimos o bioacutegrafo por ter vivenciado a conturbada ascensatildeo de

Adriano redigiu uma obra na qual julgou de um ponto de vista moral as atitudes

imperiais Assim todos os liacutederes que respeitaram as estruturas republicanas a

exemplo de Augusto foram representados por ele de forma positiva e todos os

que desrespeitaram foram retratados de forma negativa Nesse sentido Nero foi

figurado de modo positivo haja vista que em sua ascensatildeo afirmou que seu

governo se aproximaria dos ideais do Principado augustano Portanto o bioacutegrafo

concedeu menor peso ao retraho taciteano de Nero ndash o do liacuteder controlado por

seus conselheiros ndash e forneceu maior peso ao retraho de Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo

e Lucano ndash o do soberano que traria de volta a Idade de Ouro

Ao seu turno Diatildeo Caacutessio ao escrever a sua Historia Romana na primeira

metade do seacuteculo III tambeacutem encontrou formas novas de se apropriar das

representaccedilotildees da ascensatildeo de Nero Como destacamos ele de igual modo a

Taacutecito foi um senador romano e enxergava o mundo por meio das lentes de tal

posiccedilatildeo social Quando produziu a sua obra o Impeacuterio estava enfrentando um

momento de grave crise poliacutetica com muitas guerras e constantes trocas de

liacutederes questotildees que o levaram a defender a concepccedilatildeo de optimus princeps

Dessa forma usou a inuentio para demonstrar como Nero fugiu do modelo

augustano de imperador e tambeacutem como ele era inapto para governar Roma Essa

inaptidatildeo foi apontada jaacute na ascensatildeo do soberano quando eacute insinuado que o bom

governo existiria enquanto o princeps continuasse tendo bons parceiros no poder

(Secircneca e Burro) Notemos entatildeo que por allelopoiesis Diatildeo Caacutessio manteve e

consolidou a representaccedilatildeo taciteana da ascensatildeo de Nero ao mesmo tempo em

que ignorou as representaccedilotildees positivas construiacutedas no iniacutecio do seacuteculo I Do

historiador em diante tal imagem do soberano ndash um liacuteder que comeccedilou bem e

354

terminou mal ndash se tornou ainda mais fonte chegando agrave contemporaneidade como

uma das imagens mais conhecidas do princeps

Essa digressatildeo dos exemplos da ascensatildeo de Nero objetivou natildeo apenas

evidenciar a maneira como as nossas escolhas e os nossos procedimentos se

efetivaram durante a tese mas tambeacutem salientar a maior contribuiccedilatildeo do nosso

trabalho os resultados das aplicaccedilotildees do conceito de allelopoiesis para o estudo

da consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre o imperador e sobre o seu

Principado Demonstramos que as narrativas e o entendimento delas ao longo do

tempo foram se alterando conforme os interesses em voga o que por

conseguinte fez com que tanto as narrativas quanto o entendimento delas

ganhassem novas versotildees e novos elementos Poreacutem mesmo com esses novos

aspectos vimos que de forma direta ou indireta houve uma certa permanecircncia de

algumas versotildees e elementos ocorrida devido agraves suas repeticcedilotildees pelos autores

antigos ou devido agraves suas complementaccedilotildees (por exemplo o caraacuteter de Nero foi

inserido em episoacutedios variados para dar verossimilhanccedila a um fato) A

identificaccedilatildeo de tal permanecircncia foi justamente o que comprovou a nossa hipoacutetese

da consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa No decorrer dos seacuteculos ainda que o

repertoacuterio dos relatos sobre Nero e sobre seu governo tenha se tornado mais rico e

maleaacutevel inclusive permitindo aos autores que misturassem cronologias e eventos

descritos em contextos distintos os feitos negativos imperiais sempre estiveram

presentes E natildeo soacute estiveram presentes como se tornaram mais resumidos e

consolidados a ponto de os autores nem precisarem mais contar toda a histoacuteria

pois os seus leitores ou jaacute a conheciam ou a captariam com poucas palavras

Desse modo a ideia de allelopoiesis nos permitiu perceber que a construccedilatildeo da

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa acerca de Nero se deu atraveacutes de temporalidades

conflitos e visotildees de mundo muacuteltiplos os quais foram relidos e recombinados a

partir de usos variados E a cada vez que foram recombinados foram produzidos

novos Neros no presente que dialogaram com os Neros do passado os quais

reciprocamente fortaleceram a tradiccedilatildeo interpretativa negativa

Dado tal fortalecimento natildeo eacute de se admirar que o imperador tenha se

tornado cada vez mais objeto de estudos acadecircmicos ndash apontados inclusive no

primeiro capiacutetulo desta tese com uma frequecircncia maior os autores modernos tecircm

investigado as fontes antigas a fim de entenderem de que maneira Nero foi lido e

355

apropriado Contudo como vimos ao realizarem tal investigaccedilatildeo nem sempre se

preocupam com a ldquobagagemrdquo cultural social e poliacutetica dos claacutessicos o que resulta

na construccedilatildeo de interpretaccedilotildees enviesadas do soberano e do seu governo Por

exemplo certos autores a exemplo de Mommsen e Fini tenderam a seguir os

planos narrativos e as estrateacutegias argumentativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio dando-nos a figura de Nero como mau imperador (devido agrave sua fraca

atuaccedilatildeo militar por exemplo) eou como bom imperador (devido agrave era paciacutefica

instaurada no Impeacuterio) Tambeacutem tivemos aqueles que se embasaram nos trecircs

autores sobretudo em Taacutecito e compuseram obras que reforccedilaram a ideia do Nero

fantoche isto eacute do liacuteder bom ou mau conforme as influecircncias recebidas Aiacute se

inseriram Weigall e Griffin em uma parte do seu livro Em contraposiccedilatildeo a tais

autores tivemos ndash e temos tido cada vez mais ndash aqueles que consideraram a

ldquobagagemrdquo dos claacutessicos e buscaram as contradiccedilotildees dos seus relatos visando a

erigir um retrato mais real de Nero Nesse ponto contamos por exemplo com

Cizek e Champlin que problematizaram as representaccedilotildees do Nero artista com

Griffin Levi e Belchior que criticaram os retratos de Nero como bom e mau

imperador e com Lefebvre e Ketterij que mostraram de que modo as

representaccedilotildees do soberano foram alteradas conforme a mudanccedila dos contextos

Independentemente das maneiras como Nero foi ndash e vem sendo ndash estudado pelos

autores modernos uma coisa eacute certa ele eacute sempre instigante ou para citar

Barrett Fantham e Yardley ldquoirresistiacutevelrdquo1432

Natildeo eacute a toa que estimula jornalistas

literatos e ateacute museus a produzirem diversos materiais a exemplo do Museu

Britacircnico que estaacute preparando uma exposiccedilatildeo com mais de 200 artefatos sobre o

imperador1433

Para finalizarmos gostariacuteamos de frisar que esta tese de doutorado foi

desenvolvida sem bolsa de fomento em meio agrave busca pela nossa manutenccedilatildeo

financeira e emocional agravada ainda mais neste uacuteltimo ano com a pandemia da

Covid-19 Por oacutebvio isso trouxe consequecircncias diretas para o trabalho como a

falta de aprofundamento em algumas questotildees que nos ajudariam a entender

melhor a consolidaccedilatildeo do Nero negativo exemplar e allelopoieacutetico Poreacutem

mesmo com essas dificuldades julgamos ter desenvolvido uma tese que traz

relevantes contribuiccedilotildees cientiacuteficas e sociais Por exemplo cooperamos

1432

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 284 1433

Cf ADDLEY 2021

356

cumulativamente com a comunidade claacutessica de seis formas i) adicionamos ao

estudo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero e sobre o seu governo o exame

das fontes contemporacircneas ao princeps que tendem em geral a ser ignoradas ii)

realizamos uma investigaccedilatildeo do Principado neroniano baseada nos conceitos de

forma tradiccedilatildeo inuentio retrato exemplum e allelopoiesis os quais lanccedilaram

um novo olhar sobre um tema muito debatido ndash em especial este uacuteltimo conceito

aleacutem de ser complexo eacute ainda pouco utilizado nos estudos nacionais e

internacionais iii) criamos quatro formas para analisarmos as fontes

contemporacircneas e posteriores ao soberano iv) propusemos uma nova opccedilatildeo

metodoloacutegica a partir da abordagem sincrocircnica e diacrocircnica que colocadas em

conjunto criaram uma visatildeo mais completa da consolidaccedilatildeo de Nero como um

mau imperador e v) produzimos uma tese que pela primeira vez reuniu em um

soacute estudo em liacutengua portuguesa fontes de diferentes temporalidades e gecircneros

literaacuterios que tratam dos feitos de Nero (ou daqueles atribuiacutedos a ele) vi)

contribuiacutemos com o treinamento e a qualificaccedilatildeo em alto niacutevel graccedilas agrave

Universidade Puacuteblica e ao trabalho coletivo do LEIR-UFOP de uma nova

pesquisadora em Estudos Claacutessicos especialmente em Histoacuteria Antiga subaacuterea

ainda muito carente de profissionais que possam atuar no campo e desafiar todos

os perigos de diversas histoacuterias uacutenicas que se alicerccedilam em leituras da

Antiguidade e refletem os princiacutepios da exclusatildeo e da opressatildeo produzidos pelo

estaacutegio atual do capitalismo internacional aos quais nos opomos

Outro aspecto a considerar nestas consideraccedilotildees finais satildeo as

possibilidades de pesquisas futuras geradas pelo nosso trabalho A nossa

utilizaccedilatildeo dos conceitos e a forma que deles lanccedilamos matildeo para dar organizaccedilatildeo

agraves fontes podem ser (re)aproveitadas por qualquer pesquisador que queria estudar

a construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo interpretativa acerca de uma personagem ndash quer seja

ela fruto da tradiccedilatildeo literaacuteria e proveniente da Antiguidade quer natildeo Em suma

nossa abordagem pode ser (re)aplicada em qualquer pesquisa de Nero ateacute a

contemporaneidade

Quanto agraves contribuiccedilotildees sociais colaboramos com a sociedade brasileira e

com os debates poliacuteticos modernos que a compotildeem atraveacutes da reflexatildeo do que

caracteriza um governante tiracircnico Tal debate como sabemos tem se feito

bastante atual especialmente nos uacuteltimos tempos em que vemos um

357

fortalecimento de grupos e de discursos antidemocraacuteticos no Brasil e no mundo

Isso faz com que a imagem de Nero seja atemporal e seja sempre retomada a

partir da sugestatildeo de que determinado liacuteder estaacute agindo como o imperador ou de

que possui os defeitos de caraacuteter do princeps Como explicitou Faversani

ldquoenquanto houver tiranos incendiaacuterios egoacutelatras e assassinos no poder Nero

estaraacute entre noacutesrdquo1434

No final das contas entatildeo o importante natildeo eacute que as pessoas

saibam quem de fato foi Nero mas o que foi feito dele e o que ele simboliza

para assim poderem lutar contra a tirania a opressatildeo e a destruiccedilatildeo dos

patrimocircnios da humanidade

1434

FAVERSANI 2020 p 391

358

Referecircncias

Fontes

ARISTOTLE LONGINUS DEMETRIUS Poetics Longinus On the Sublime

Demetrius On Style Translated by Stephen Halliwell W Hamilton Fyfe

Doreen C Innes and W Rhys Roberts Loeb Classical Library 1 ed Cambridge

Harvard University Press 1995

AUGUSTO E SUETOcircNIO A Vida e os Feitos do Divino Augusto Traduccedilatildeo de

Matheus Trevizam Paulo Seacutergio Vasconcellos e Antocircnio Martinez de Rezende 1

ed Belo Horizonte Editora UFMG 2007

CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo Beato 1 ed Lisboa Verbo

1996

CASSIUS DIO The Roman History Trans by Earnest Cary Loeb Classical

Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1914-1927

CICERO De oratore Trans by E W Sutton Loeb Classical Library 1 ed

Cambridge Harvard University Press 1942 v1

______ Rhetorica ad Herennium Trans by Harry Caplan Loeb Classical

Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1954

EacuteSQUILO Sete Contra Tebas de Eacutesquilo Trad de Trajano Vieira 1 ed Satildeo

Paulo Editora 34 2018

FLAVIUS JOSEPHUS The Complete Works of Josephus 1 ed Trans by

William Whiston New York BIGELOW BROWN amp CO 1800- 180- v1-3

______ The Jewish War Trans by H St J Thackeray Loeb Classical Library

1 ed Cambridge Harvard University Press 1927-1928 v 1-3

______ The Life Against Apion Trans by H St J Thackeray 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1926

GELLIUS Attic Nights Trans by J C Rolfe Loeb Classical Library 1 ed

Cambridge Harvard University Press 1927 v 3

HISTORIA AUGUSTA Hadrian Aelius Antoninus Pius Marcus Aurelius

L Verus Avidius Cassius Commodus Pertinax Didius Julianus Septimius

Severus Pescennius Niger Clodius Albinus Trans by David Magie Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1921 v 1

HORAacuteRIO Arte Poeacutetica Trad de R M Rosado Fernandes 4 ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012

359

JUVENAL PERSIUS The Satires Trans by G G Ramsay 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1918

LUCANO Farsaacutelia Cantos de I a V Trad de Brunno V G Vieira 1 ed

Campinas Editora da Unicamp 2011

MARTIAL Epigrams Spectacles Trans by D R Shackleton Bailey Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1993 v 1-3

SEcircNECA Apocolocintose do Divino Claacuteudio Trad de Frederico de Souza

Silva 2008 145 f Tese (Doutorado em Letras Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

______ Tratado sobre a Clemecircncia Trad de Ingeborg Braren 1 ed Petroacutepolis

Vozes 2013

PLINY THE ELDER Natural History Trans by H Rackham 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1938-1962 v 1-10

PLINY THE YOUNGER Letters Trans by B Radice 1 ed Loeb Classical

Library Cambridge Harvard University Press 1969 v 1

PSEUDO-SEcircNECA A Praetexta Octavia e o Pensamento de Secircneca 2016 94

f Trad de Fernanda Vieira Gozo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) ndash

Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro

2006

STATIUS Silvae Thebaid I-IV Trans by J H Mozley Loeb Classical Library

1 ed Cambridge Harvard University Press 1928

SUETONIUS Lives of the Caesars Trans by Catharine Edwards 1 ed Oxford

Oxford University Press 2000

TAacuteCITO Diaacutelogo dos Oradores Trad de Antocircnio Martinez de Rezende e Juacutelia

Batista Castilho de Avellar 1 ed Satildeo Paulo Autecircntica 2014

TACITUS Tacitus The Annals the Reigns of Tiberius Claudius and Nero

Trans by A A Barrett and J C Yardley 1 ed Oxford Oxford University Press

2008

______ The Histories Trans by Clifford H Moore Loeb Classical Library 1

ed Cambridge Harvard University Press 1925-1931 v 1-2

THUCYDIDES History of the Peloponnesian War Trans by C F Smith

Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1919 v 1

VACA Vitae M Annaei Lucani Trans by Karl Friedrich Weber 1 ed

Marburgi Typis Academicis Elwerti 1856

360

VIRGIacuteLIO Eneida Brasileira Trad de Manuel Odorico Mendes 1 ed

Campinas Editora da UNICAMP 2008

Obras de referecircncia

GLARE P G W (Ed) Oxford Latin Dictionary 1 ed Oxford Oxford

University Press 1968

GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana 5 ed Rio de Janeiro

Bertrand 2005

HORNBLOWER S SPAWFORTH A (Eds) Oxford Classical Dictionary 4

ed Oxford Oxford University Press 2012 v 1-2

INSCRIPTIONES LATINAE SELECTAE Ed by Hermann Dessau 1 ed Berlin

Weidmann 1906 v 2

MORWOOD J TAYLOR J (Eds) Oxford Classical Greek Dictionary 2 ed

Oxford Clarendon Press 2002

SARAIVA F R dos S Dicionaacuterio Latino-Portuguecircs 12 ed Belo Horizonte

Livraria Garnier 2006

SUTHERLAND C H V The Roman Imperial Coinage From 31 BC to 69 1

ed London Spink and Son Ltd 1984

Livros Capiacutetulos e Artigos

ABBOTT F F A History and Description of Roman Political Institutions 1

ed Boston Ginn amp Company 1901

ABBOTT J History of Nero 1 ed New York Harper amp Brothers Publishers

1958

ADDIS F Fiddling while America burns Trump is Todayrsquos emperor Nero

CITYAM London 17 September 2018 Politics Disponiacutevel em

httpswwwcityamcomfiddling-while-america-burns-trump-todays-emperor-

nero Acesso em 02 set 2019

ADDLEY E Was Nero cruel British Museum offers hidden depths to Roman

emperor The Guardian London 22 April 2021 Art Disponiacutevel em

httpswwwtheguardiancomculture2021apr22was-nero-cruel-british-

museum-offers-hidden-depths-to-roman-

emperorCMP=Share_AndroidApp_Other Acesso em 06 mai 2021

361

ADICHIE C N The danger of a single story TEDTalk July 2009 Disponiacutevel

em

httpswwwtedcomtalkschimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_s

torytranscriptlanguage=pt-

br~text=Uma20C3BAnica20histC3B3ria20de20catC3A1st

rofeuma20conexC3A3o20como20humanos20iguais Acesso em 02

mai 2021

ADLER E Boudicarsquos Speeches in Tacitus and Dio The Classical World v

101 n 2 p 173-195 2008

AGNOLON A O Cataacutelogo das Mulheres Os Epigramas Misoacuteginos de Marcial

1 ed Satildeo Paulo Humanitas 2010

AGUIAR M A de A poliacutetica de Nero eacute a poliacutetica do Impeacuterio In

FAVERSANI F JOLY F D (Orgs) As formas do Impeacuterio Romano 1 ed

Mariana UFOP 2014 p 75-80

AHL F M Lucan An Introduction 1 ed New York Cornell University Press

1976

ALFOumlLDY G A Histoacuteria Social de Roma Trad de Maria do Carmo Cary 1

ed Lisboa Editorial Presenccedila 1989

AALDERS G J D Cassius Dio and the Greek World Mnemosyne v 39 n 34

p 282-304 1986

ALLEN JR W et al Martial Knight Publisher and Poet The Classical

Journal v 65 n 8 p 345-357 1970

ALMEIDA J C S Secircneca e a Saacutetira ao Imperador Claacuteudio Argumentos v 6

n 12 p 61-70 2014

ALMEIDA P A F Iliacuteada Latina A Adaptaccedilatildeo Resumida da Iliacuteada de Homero

Organon Porto Alegre v 29 n 56 p 297-312 2014

ALPERS P A The Eclogue Tradition and the Nature of Pastoral College

English v 34 p 352-371 19721973

AMAT J Introduction In CALPURNIUS SICULUS Bucoliques Pseudo-

Calpurnius Eacuteloge de Pison Texte Eacutetabli et Traduit par Jacqueline Amat 1 ed

Paris Les Belles Lettres 1991 p vii-lvi

ARNAR A S Encyclopedism from Pliny to Borges 1 ed Chicago The

University of Chicago Library 1990

ASHBY T PLATNER S B A Topographical Dictionary of Ancient Rome

1 ed Oxford Oxford University Press 1929

362

AUGUET R CAZENAVE M Os Imperadores Loucos Ensaio de Mito-

anaacutelise Histoacuterica Trad de Alberto Paes Salvaccedilatildeo 1 ed Lisboa Editorial

Inqueacuterito 1995

AVELINE J The Death of Claudius Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v

53 n 4 p 453-475 2004

AZEVEDO S F L de Histoacuteria Retoacuterica e Mulheres no Impeacuterio Romano

Um Estudo sobre as Personagens Femininas e a Construccedilatildeo da Imagem de Nero

na Narrativa de Taacutecito 1 ed Ouro Preto Editora UFOP 2012

BAKHTIN M Problemas da Poeacutetica de Dostoieacutevski 1 ed Trad de Paulo

Bezerra Rio de Janeiro Editora Forense-Universitaacuteria 1981

BALDWIN B Roman Emperors in the Elder Pliny Scholia v 4 p 56-78 1995

______ Suetonius 1 ed Amsterdam Hakkert 1983

______ Suetonius Birth disgrace and death Acta Classica v 18 p 61-70

1975

BALLAND A ldquoNova Urbs et lsquoNeapolisrsquo Remarques sur les Projets

Urbanistiques de Neacuteronrdquo Meacutelanges drsquoArcheacuteologie et drsquoHistoire de lrsquoEacutecole

Franccedilaise de Rome v 77 n 2 p 349-393 1965

BARENGHI F The Temple of Janus on Roman Coins 19992016 Disponiacutevel

em httpswwwmoruzziitlang2the_temple_of_janushtml Acesso em 02 jul

2020

BARRETT A A Agrippina Mother of Nero 1 ed London Routledge 1996

______ Agrippina Sex Power and Politics in the Early Empire 1 ed London

Routledge 2001

______ Annals 1426 and the Armenian Settlement of AD 60 The Classical

Quarterly v 29 n 2 p 465-469 1979

______ Introduction In TACITUS The Annals The Reigns of Tiberius

Claudius and Nero Trans by A A Barrett and J C Yardley 1 ed Oxford

Oxford University Press 2008 p ix-xxix

______ Nero Caesar Augustus Emperor of Rome London Pearson Education

Limited 2008 Resenha de SHOTTER David The American Historical

Review v 114 n 3 p 812-813 2009

______ Nerorsquos Women In BARTSCH S FREUDENBURG K

LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1

ed New York Cambridge University Press 2017 p 63-76

363

______ Rome is Burning Nero and the Fire that Ended a Dynasty 1 ed

Princeton Princeton University Press 2020

______ FANTHAM E YARDLEY J (Eds) The Emperor Nero A Guide to

the Ancient Sources 1 ed Princeton Princeton University Press 2016

BARTLETT J R Jews in the Hellenistic World Josephus Aristeas The

Sibylline Oracles Eupolemus 1 ed Cambridge Cambridge University Press

1985

BARTON T The inventio of Nero Suetonius In ELSNER J MASTERS J

(Eds) Reflections of Nero Culture History amp Representation 1 ed Chapel

Hill The University of North Carolina Press 1994 p 48-66

BARTSCH S Actors in the audience Theatricality and doublespeak from Nero

to Hadrian 1 ed Cambridge Harvard University Press 1994

______ Ideology in Cold Blood A Reading of Lucanrsquos Civil War 1 ed

Massachusetts Harvard University Press 1997

______ FREUDENBURG K LITTLEWOOD C Introduction In ______

(Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero New York Cambridge

University Press 2017 p 1-17

BAUGHMAN K E Poppaea Sabina Jewish Sympathies and the Fire of Rome

Women in Judaism A Multidisciplinary Journal v 11 n 2 p 1-18 2014

BAUMAN R A Women and Politics in Ancient Rome 1 ed London

Routledge 1994

BEAGON M Roman Nature The Thought of Pliny the Elder 1 ed Oxford

Oxford University Press 1992

BEARD M The Roman Triumph 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2007

BEATO J Biografia In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo

Beato 1 ed Lisboa Verbo 2000a p 3

______ Calpuacuternio Siacuteculo Um Poeta Pobre ou um Pobre Poeta HVMANITAS

v 47 p 617-627 1995

______ Comentaacuterio criacutetico In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo

Beato 1 ed Lisboa Editora Verbo 1996 p 102-138

______ Introduccedilatildeo In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo Beato

1 ed Lisboa Editora Verbo 1996 p 11-56

______ Nero 1 ed Lisboa Inqueacuterito 2000b

364

BEacuteDOYEgraveRE G D L Domina The Women Who Made Imperial Rome 1 ed

New Haven Yale University Press 2018

BELCHIOR Y K Nero Bom ou Mau Imperador Retoacuterica Poliacutetica e Sociedade

em Taacutecito (54 a 69 dC) 1 ed Curitiba Editora Prismas 2016

BEacuteLO T P FUNARI P P A As romanas e o poder nos Anais de Taacutecito

Revista Classica v 30 n 2 p 75-90 2017

BENARIO H W The Annals In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to

Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 101-122

BENNETT J Trajan Optimus Princeps A Life and Times 1 ed London

Routledge 2005

BENOIST S Neronia V Neacuteron Histoire et Leacutegende Actes du Ve

Colloque

International de la SIEN Lrsquoantiquiteacute Classique v 70 p 472-475 2001

BERGEMANN L et al Transformation A Concept for the Study of Cultural

Change In BAKER P HELMRATH J KALLENDORF C (Eds) Beyond

Reception Renaissance Humanism and the Transformation of Classical

Antiquity 1 ed Berlin De Gruyter 2019 p 9-26

BERNARD W Henderson Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyBernard-W-Henderson Acesso em 22

fev 2020

BERNSTEIN N W Fashioning Crispinus through his Ancestors Epic Models in

Statius Silvae 52 Arethusa p 183-196 2007

BESTE H-J HESBERG H V Buildings of an Emperor ndash How Nero

Transformed Rome In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to

the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 314-331

BILDE P Flavius Josephus between Jerusalem and Rome His Life His

Works and Their Importance 1 ed Sheffield Sheffield Academic Press 1988

BILLOT F Tacitus Responds Annals 14 and the Octavia In WILSON M

(Ed) The Tragedy of Nerorsquos Wife Studies on the Octavia Praetexta 1 ed

Auckland Polygraphia 2003 p 126-141

BIRLEY A R The Life and Death of Cornelius Tacitus Historia n 49 p 230-

247 2000

BISHOP J Nero The Man and the Legend 1 ed London Robert Hale Ltd

1964

BLAISON M Sueacutetone et lrsquoekphrasis de la Domus Aurea (Sueacutet Nero 31)

Latomus v 57 n 3 p 617-624 1998

365

BLAacuteZQUEZ J M DEL CASTILLO A ROLDAacuteN J M Historia de Roma

Tomo II El Imperio Romano (Siglos I-III) 1 ed Madrid Ed Catedra 1989

BLOCH M Apologia da Histoacuteria ou o Ofiacutecio do Historiador Trad de Andreacute

Telles 1 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002

BOISSIER G Tacite 1 ed Paris Hachette 1934

BOSTOCK J RILEY H T The Life and Writings of Pliny In PLINY THE

ELDER The Natural History of Pliny Trans by J Bostock and H T Riley 1

ed London Henry G Bohn 1855 v 1 p vii-xxi

BOTELHO J M Um breve questionamento sobre Ficccedilatildeo e Histoacuteria em

Suetocircnio Revista Philologus v 22 n 66 p 1936-1955 2016

BOYCE M Zoroastrians Their Religious Beliefs and Practices 1 ed London

Routledge 2001

BOYLE A J Introduction In PSEUDO-SENECAN Octauia Attributed to

Seneca Trans by A J Boyle 1 ed Oxford Oxford University Press 2008 p xi-

lxxxix

BRADLEY K R Nero and Claudia Antonia Symbolae Osloenses v 52 n 1 p

79-82 1977

______ Slavery and Society at Rome 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 1994

BRAMBLE J C Lucan In CLAUSEN W V KENNEY E J (Eds) The

Cambridge History of Classical Literature 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 1982 v 2 p 533-557

BRANDAtildeO J L Estereoacutetipos de tirania Humanitas v 60 p 115-137 2008a

______ Galba Otatildeo e Viteacutelio A Crise e Experiecircncias de 68-69 In ______

OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e

Romanidade Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p

97-110

______ Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralidade nas Vidas suetonianas 1

ed Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2009a

______ Paacuteginas de Suetocircnio A morte de Agripina matildee de Nero Boletim de

Estudos Claacutessicos v 52 p 37-42 2009b

______ Suetocircnio e drama Da Trageacutedia ao Mimo Humanitas v 57 p 159-194

2005

366

______ LEAtildeO D O Principado de Augusto In ______ OLIVEIRA F (Eds)

Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade

Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 13-46

BRAREN I Introduccedilatildeo In SEcircNECA Tratado sobre a Clemecircncia Trad de

Ingeborg Braren 1 ed Petroacutepolis Vozes 2013 p 9-36

______ O Mausoleacuteu de Augusto e a Apocolocintose de Secircneca Classica n 78

p 165-170 19941995

BRAUND S Introduction In SENECA De Clementia Trans by Susanna

Braund 1 ed Oxford Oxford University Press 2009 p 1-91

______ Seneca Multiplex The Phases (and Phrases) of Senecarsquos Life and Works

In BARTSCH S SCHIESARO A (Eds) The Cambridge Companion to

Seneca 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2015 p 15-28

______ JAMES P Quasi Homo Distortion and Contortion in Senecarsquos

Apocolocyntosis Arethusa v 31 n 3 p 285-308 1998

BRIAN H Warmington Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyBrian-H-Warmington Acesso em 20 fev

2020

BRIGHTON M The Sicarii in Josephusrsquos Judean War Rhetorical Analysis

and Historical Observations 1 ed Atlanta Society of Biblical Literature 2009

BRISSET J Les Ideacutees Politiques de Lucain 1 ed Paris Les Belles Lettres

1964

BRYAN J Neronian Philosophy In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 134-

150

BUCKLEY E Nero Insitiuus Constructing Neronian Identity in the Pseudo-

Senecan Octavia In GIBSON A G G (Ed) The Julio-Claudian Succession

Reality and Perception of the ldquoAugustan Modelrdquo 1 ed Leiden Brill 2013 p

133-154

BUENO T S L Formaccedilatildeo Moral e Accedilatildeo Poliacutetica em Secircneca Entre o Saacutebio e

o Princeps 2016 207 f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia

Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2016

CALDER W M A History of the Ancient World In Two Volumes The

Classical Review v 42 p 174-175 1928

CAMBRIDGE Statutes and Ordinances of the University of Cambridge

Cambridge Cambridge University Press 2008

367

CAMERON A Circus factions Blues and Greens at Rome and Byzantium 1

ed Oxford Clarendon Press 1976

CAMPBELL B The Severan dynasty In BOWMAN A K CAMERON A

GARNSEY P (Eds) The Cambridge Ancient History The Crisis of Empire

AD 193-337 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2005 v 12 p 1-27

CAMPOS R da C Entre Roma e Capri O afastamento de Tibeacuterio Ceacutesar como

ponto de inflexatildeo poliacutetica durante seu Principado (14-37 dC) 2013 308 f Tese

(Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013

CARDANO G Book of My Life Trans by Jean Stoner 1 ed New York E P

Dutton amp Co 2002

CARDOSO Z de A A Literatura Latina 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes

2011

CARRIEacute J M ROUSELLE A LrsquoEmpire Romain en Mutation des Seacutevegraveres agrave

Constantin 1 ed Paris Seuil 1999

CARY E Introduction In CASSIUS DIO The Roman History Trans by

Earnest Cary Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University

Press 1914-1927 p ix- xxxii

CARVALHO L H R de A Elementos de Permanecircncia do Gecircnero Silva da

Antiguidade Romana agrave Modernidade Espanhola Estaacutecio e Quevedo (seacutecs I-

XVII) 2018 160 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais Universidade

Federal do Espiacuterito Santo Vitoacuteria 2018

CARVALHO M M de OMENA L M de Morte e Gecircnero em Secircneca Um

diaacutelogo com os vestiacutegios da cultura material Claacutessica Revista Brasileira de

Estudos Claacutessicos v 27 n 1 p 223-244 2014

CARVALHO R N B de Metamorfoses em traduccedilatildeo 2010 158 f Relatoacuterio

Final (Poacutes-Doutorado) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas

Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo 2010

CASALI S The Bellum Civile as an Anti-Aeneid In ASSO P (Ed) Brillrsquos

Companion to Lucan 1 ed Leiden Brill 2011 p 81-110

CAZENAVE M Michel Cazenave Michelcazenavefr 2019 Biographie

Disponiacutevel em httpwwwmichelcazenavefrbiographie Acesso em 24 fev

2020

CHAMPLIN E Edward Champlin Princeton Classics 2020 Biography

Disponiacutevel em httpsclassicsprincetonedupeoplefacultyemeritae-iedward-

champlin Acesso em 24 fev 2020

368

______ Nero 1 ed Cambridge Harvard University Press 2005

______ Nero Apollo and the Poets Phoenix v 57 n 34 p 276-283 2003

______ Nero Reconsidered New England Review v 19 n 2 p 97-108 1998

______ The Life and Times of Calpurnius Piso Museum Helveticum v 46 n 2

p 101-124 1989

______ The Life and Times of Calpurnius Siculus The Journal of Roman

Studies v 68 p 95-110 1978

CHARLES-PICARD G Auguste et Neacuteron Le Secret de LrsquoEmpire 1 ed New

York Hachette 1962

CHARTIER R A Beira da Faleacutesia A Histoacuteria entre Incertezas e Inquietudes

Trad de Patriacutecia Chittoni Ramos 1 ed Porto Alegre Ed UFRGS 2002

______ A Histoacuteria Cultural Entre Praacuteticas e Representaccedilotildees Trad de Maria

Manuela Galhardo 1 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1990

CHEVITARESE A L Cristianismo e Impeacuterio Romano In MENDES N M

SILVA G V (Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva

Socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2006 p 161-173

CHILTON C W The Roman Law of Treason under the Early Principate The

Journal of Roman Studies v 45 p 73-81 1955

CHILVER G E F Cisalpine Gaul Social and Economic History from 49 BC to

the Death of Trajan 1 ed Oxford The Clarendon Press 1941

CITRONI M Poetry in Augustan Rome In KNOX P E (Ed) A Companion

to Ovid 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2009 p 8-25

CITRONI MARCHETTI S Plinio il Vecchio e la Tradizione del Moralismo

Romano 1 ed Pisa Giardini 1991

CIZEK E Lrsquoexpeacuterience Neacuteronienne Reacuteforme ou reacutevolution Revue des Eacutetudes

Anciennes v 84 n 1-4 p 105-115 1982a

______ Neacuteron 1 ed Paris Librairie Arthegraveme Fayard 1982b

CLELAND L et al Greek and Roman Dress From A to Z 1 ed Londres

Routledge 2007

CLOSS V G While Rome Burned Fire Leadership and Urban Disaster in the

Roman Cultural Imagination 2013 338 f Dissertation (Doctorate in Philosophy)

ndash Department of Classical Studies University of Pennsylvania 2013

369

COARELLI F Rome and Environs An Archaeological Guide 1 ed Los

Angeles University of California Press 2007

CONEGLIAN S M G G Dos Deveres de Marco Tuacutelio Ciacutecero e o processo

formativo do cidadatildeo romano 2012 106 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Educaccedilatildeo) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Estadual

de Maringaacute Maringaacute 2012

CONTE G B Il Proemio della Pharsalia Maia v 18 p 42-53 1966

______ Latin Literature A History Trans by Joseph B Solodow 2 ed

Baltimore Johns Hopkins University Press 1999

CORADINI H Fato Mito e Razatildeo na Composiccedilatildeo Dramaacutetica da Pretexta Otaacutevia

Letras Claacutessicas n 1 p 77-96 1997

CORASSIN M L Secircneca entre a Colaboraccedilatildeo e a Oposiccedilatildeo Letras Claacutessicas

n 3 p 275-285 1999

CORREcircA A G As perspectivas elaboradas por Diatildeo Caacutessio e Herodiano

sobre as praacuteticas poliacutetico-culturais do Imperador Heliogaacutebalo (Seacutec III dC)

2019 146 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Poacutes Graduaccedilatildeo em Histoacuteria

Faculdade de Ciecircncias Humanas e Sociais Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio

de Mesquita Filhordquo Franca 2019

COSTRINO A De Rhetoribus de Suetocircnio Classica ndash Revista Brasileira de

Estudos Claacutessicos v 27 n 2 p 257-270 2014

CROISILLE J M Caton et Seacutenegraveque Face au Pouvoir Lucain Pharsale 2234-

235 9186-217 Actes du II Colloque de la SIEN p 75-82 1982

______ Neacuteron a tueacute Agrippine 1 ed Bruxelles Complexe 1994

______ MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia V Neacuteron Histoire et

Leacutegende Actes du Ve Colloque International de la SIEN Bruxelles Latomus

1999

CROOK J A Law and Life of Rome 1 ed New York Cornell University

Press 1967

______ Nero The Man and the Legend The Classical Review v 15 p 364-

365 1965

______ Suetonius ab epistulis Proceedings of the Cambridge Philological

Society v 184 n 4 p 18-22 1956-1957

CRUM R H Petronius and the Emperors I Allusions in the Satyricon The

Classical Weekly v 45 n 11 p 161-168 1952

370

CURRY S A Nero Quadripes Animalizing the Emperor in Suetoniusrsquos Nero

Arethusa v 47 n 2 p 197-230 2014

DACK E V A studiis a bibliothecis Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte

v 12 n 2 p 177-184 1963

DANESI H FRANCcedilOIS M Picard Gilbert Eacutetienne Charles dit Gilbert Charles-

Picard Comiteacute des Travaux Historiques et Scientifiques 2015 Biographie

Disponiacutevel em httpcthsfransavantphpid=100348 Acesso em 24 fev 2020

DARWALL-SMITH R H Emperors and Architecture A Study of Flavian

Rome 1 ed Bruxelles Latomus 1996

DAVIS P J Structure and Meaning in the Eclogues of Calpurnius Siculus

Ramus v 16 n 1-2 p 32-54 1987

DE BLOIS L FUNKE P HAHN J The Impact of Imperial Rome on

Religions Ritual and Religious Life in The Roman Empire 1 ed Leiden

Brill 2006

DE BONI L A O estatuto juriacutedico das perseguiccedilotildees dos cristatildeos no Impeacuterio

Romano TransFormAccedilatildeo v 37 p 135-168 2014

DEGAN A As Laacutegrimas e o Historiador Uma Leitura de Guerra Judaica

Histoacuteria da Historiografia n 5 p 21-32 2010

______ Judaiacutesmo em Suspensatildeo O Judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo 2013 292 f

Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013

DrsquoENCARNACcedilAtildeO J A Epiacutegrafe Latina como Elemento Didaacutectico Cursus

Honorum Senatorial Boletim Estudos Claacutessicos v 48 p 99-103 2007

DE TOFFOLI I La transformation de lrsquoAntiquiteacute Greacuteco-Romaine dans les

romans de Claude Simon Association des lecteurs de Claude Simon v 14 p

167-179 2019

DEVELIN R Tacitus and Techniques of Insidious Suggestion Antichthon v

17 p 64-95 1983

DEVILLERS O Forms of Historical Persuasion in the Histories (11-49) In

PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell

2012 p 162-186

______ Observations sur la repreacutesentation de la politique spectaculaire de Neacuteron

Pour une comparaison entre Tacite Sueacutetone et Dion Cassius In POIGNAULT

R (Eacuted) Preacutesence de Sueacutetone Clermont-Ferrand Centre de Recherches A

Piganiol Preacutesence de lAntiquiteacute 2009 p 61-72

371

DEWAR M Laying it on with a Trowel The Proem to Lucan and Related Texts

The Classical Quarterly v 44 p 199-211 1994

DIAS M Q Imperador ou Tirano Comunicaccedilatildeo e Formas Sociopoliacuteticas

sob(re) o Principado de Domiciano (81-96) 2019 274 f Tese (Doutorado em

Histoacuteria) ndash Instituto de Ciecircncias Humanas e Sociais Universidade Federal de

Ouro Preto Mariana 2019

DIETRICH J S Dead Woman Walking Jocasta in the Thebaid In DOMINIK

W J NEWLANDS C E GERVAIS K (Eds) Brillrsquos Companion to Statius

1 ed Leiden Brill 2015 p 307-324

DILKE O A W Lucanrsquos Political Views and the Caesars In DUDLEY D R

(Ed) Neronians and Flavians Silver Latin 1 ed London Routledge 1972 p

62-82

DIMACCO M II Colosseo Funzione Simbolica Storica Urbana 1 ed Rome

Biblioteca di Storia Dellrsquoarte 1971 v 5

DINTER M T Anatomizing Civil War Studies in Lucanrsquos Epic Technique 1

ed Ann Arbor The University of Michigan Press 2013

DOMINIK W K Epigram and Occasional Poetry Social Life and Values in

Martialrsquos Epigrams and Statiusrsquo Silvae In ZISSOS A (Ed) A Cambridge to

the Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p

412-433

______ GARTHWAITE J ROCHE P A Visions of Gold Hopes for the New

Age in Calpurnius Siculusrsquo Eclogues In _____ (Eds) Writing Politics in

Imperial Rome 1 ed Leiden Brill 2009 p 307-322

DOMINIK W J Ecircnfase narrativa e a colocaccedilatildeo dos eventos histoacutericos nos Anais

de Taacutecito Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios n 55 p 166-182 2016

DOODY A Literature of the World Senecarsquos Natural Questions and Plinyrsquos

Natural History In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the

Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 288-301

______ Plinyrsquos Encyclopedia The Reception of the Natural History 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2010

DOREY T A Claudius und seine Ratgeber Altertum v 12 p 144-155 1966

DOUBLET G Inscriptions de Carie Bulletin de correspondance helleacutenique v

14 p 603-630 1890

DRINKWATER J F Nero Emperor and Court 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2019

372

DUBUISSON M Neacuteron by Eugen Cizek Latomus v 46 n 1 p 241-243

1987

DUFF J D Introduction In LUCAN The Civil War Trans by J D Duff

Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1962 p ix-

xv

DUNKLE J R The Greek Tyrant and Roman Political Invective of the Late

Republic Transactions and Proceedings of the American Philological

Association v 98 p 151-171 1967

DU TOIT L A Tacitus and the rebellion of Boudicca Acta Classica v 20 p

149-158 1977

DYSON S L PRIOR R E Horace Martial and Rome Two Poetic Outsiders

Read the Ancient City Arethusa v 28 n 23 p 245-263 1995

EDEN P T Introduction In SENECA The Apocolocyntosis Trans by P T

Eden 1 ed Cambridge Cambridge University Press 1984 p 1-23

EDMONDSON J Introduction Flavius Josephus and Flavian Rome In ______

MASON S RIVES J (Eds) Flavius Josephus and Flavian Rome 1 ed

Oxford Oxford University Press 2005 p 1-33

EDWARDS C Beware of Imitations Theatre and the Subversion of Imperial

Identity In ELSNER J MASTERS J (Eds) Reflections of Nero Culture

History amp Representation Chapel Hill The University of North Carolina Press

1994 p 83-97

______ Catharine Edwards Birkbeck University of London London 2018

Biography Disponiacutevel em httpwwwbbkacukhistoryour-staffacademic-

staffprofessor-catharine-edwards Acesso em 24 fev 2020

______ Introduction In SUETONIUS Lives of the Caesars Trans by C

Edwards 1 ed Oxford Oxford University Press 2000 p vii- xxxviii

______ Miriam Griffin Obituary The Guardian London 19 June 2018

Culture Disponiacutevel em

httpswwwtheguardiancomeducation2018jun19miriam-griffin-obituary

Acesso em 23 fev 2020

______ The Politics of Immorality in Ancient Rome 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 2002

EHRENKROOK J V Sculpting Idolatry in Flavian Rome (An)Iconic

Rhetoric in the writings of Flavius Josephus 1 ed Atlanta Society of Biblical

Literature 2011

EHRHARDT C Nero Lancaster pamphlets BMCR v 9 n 18 p 1-5 1997

373

EHRHARDT M L ldquoVir Virtutisrdquo A Construccedilatildeo da Imagem do Priacutencipe

Perfeito nos Escritos de Lucius Secircneca 2001 147 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal do

Paranaacute Curitiba 2001

ELSNER J MASTERS J (Ed) Introduction In ______ Reflections of Nero

Culture History amp Representation London Duckworth 1994 p 1-10

EPSTEIN J Hail Mommsen A German Historianrsquos Tribute to Rome

Claremont Review of Books 2018 Disponiacutevel em

httpsclaremontreviewofbookscomhail-mommsen Acesso em 23 fev 2020

ERASMO M Roman Tragedy Theatre to Theatricality 1 ed Austin

University of Texas Press 2004

ESTEVES A de A M Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em

suas obras Principia n 30 p 1-7 2015

______ Nero nos Annales de Taacutecito 2010 164 f Tese (Doutorado) ndash Programa

de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Rio de Janeiro 2010

EUGEN Cizek Les Belles Lettres Biographie Disponiacutevel em

httpswwwlesbelleslettrescomlivreeugen-cizek Acesso em 24 fev 2020

FAGAN G Bathing in Public in the Roman World 1 ed Ann Arbor The

University of Michigan Press 2002

FANTHAM E A controversial life In ASSO P (Ed) Brillrsquos Companion to

Lucan 1 ed Leiden Brill 2011 p 3-20

______ The Performing Prince In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 17-

28

______ Women in the Classical World Image and Text 1 ed Oxford Oxford

University Press 1994

FAVERSANI F Clavdia Octavia Praise and criticism of a woman In

EURYKLEIA WOMEN WHO MATTER GENDER amp DIGITAL

CLASSICS Universiteacute Paris 2018 Paris

______ Eacutekphrasis e as fronteiras da descriccedilatildeo em Taacutecito Letras Claacutessicas v 19

n 1 p 43-53 2015

______ Entre a Repuacuteblica e o Impeacuterio Multiplicidade de Fronteiras Mare

Nostrum n 4 p 146-152 2013

374

______ Estado e Sociedade no Alto Impeacuterio Romano Um Estudo das Obras

de Secircneca 1 ed Ouro Preto EDUFOP 2012

______ Tirano Louco e Incendiaacuterio BolsoNero Anaacutelise da Constituiccedilatildeo da

Assimilaccedilatildeo entre o Presidente da Repuacuteblica do Brasil e do Imperador Romano

como Allelopoiesis Histoacuteria da Historiografia v 13 n 33 p 375-395 2020

______ JOLY F Alexandre em Quinto Cuacutercio e o Principado Romano

Phoicircnix Rio de Janeiro no prelo 2021

______ Os Juacutelio-Claacuteudios In BRANDAtildeO J L OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria

de Roma antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade Hispacircnica 1 ed

Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 79-96

______ MANCINI W Laudationes et Iniuriae Debate sobre um Aspecto da

Construccedilatildeo da Imagem do Governante em Secircneca Nuntius Antiquus Belo

Horizonte n 6 p 29-40 2010

FEAR A T Laus Neronis The Seventh Eclogue of Calpurnius Siculus

Prometheus v 20 p 269-277 1994

FERREIRA P S M Contributo para o Estudo das Relaccedilotildees entre a

Historiografia e a Saacutetira Menipeia Cadmo n 18 p 181-191 2008

FERRI R Commentary In PSEUDO-SENECA Octavia A Play Attributed to

Seneca Trans by Rolando Ferri 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2003 p 119-406

______ Introduction In PSEUDO-SENECA Octavia A Play Attributed to

Seneca Trans by Rolando Ferri 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2003 p 1-82

______ Octavia In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to

Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p 521-530

FINI M Massimo Fini massimofiniit 2020 Biografia Disponiacutevel em

httpwwwmassimofiniit Acesso em 22 fev 2020

______ Nero ndash O Imperador Maldito Dois Mil Anos de Mentiras Trad de

Meacutercia Justum e Alessandro Giannini 1 ed Satildeo Paulo Scritta 1993

FISCHLER S Social Stereotypes and Historical Analysis The case of the

Imperial Women at Rome In ARCHER L FISCHLER S WYKE M (Eds)

Women in Ancient Societies 1 ed New York Routledge 1994 p 115-133

FRANZERO C M Vida e Eacutepoca de Nero Trad de Geir Campos e Moacyr

Werneck de Castro 1 ed Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1958

375

FRAZER JR R M Nero the Artist Criminal The Classical Journal v 62 n 1

p 17-20 1966

______ Nero the singing animal Arethusa v 4 n 2 p 215-218 1971

FREUDENBURG K Senecarsquos Apocolocyntosis Censors in the Afterworld In

BARTSCH S SHIESARO A (Eds) The Cambridge Companion to Seneca

1 ed Cambridge Cambridge University Press 2015 p 93-108

FRIGHETTO R A Antiguidade Tardia Roma e as monarquias Romano-

Baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (Seacuteculos II-VIII) 1 ed Curitiba Juruaacute

2012

FUNARI P P A GARRAFFONI R S Historiografia Saluacutestio Tito Liacutevio e

Taacutecito Campinas Editora Unicamp 2016

GAIA D V As financcedilas privadas na Roma de 64 dC O incecircndio da Vrbs e a

desvalorizaccedilatildeo da moeda Phoicircnix v 16 n 1 p 84-96 2010

______ Os Antoninos O apogeu e o fim da pax romana In BRANDAtildeO J L

OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e

Romanidade Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p

175-216

GALIMBERTI A The Emperor Domitian The Emperor Domitian In ZISSOS

A (Ed) A Cambridge to the Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden

Wiley-Blackwell 2016 p 92-108

GALLIVAN P A Historical Comments on Suetonius ldquoNerordquo Latomus v 33

n 2 p 385-396 1974

______ WILKINS P Familial Structures in Roman Italy A regional approach

In RAWSON B WEAVER P (Eds) The Roman Family in Italy 1 ed

Oxford Oxford University Press 1999 p 239-255

GARSON R W The Pseudo-Senecan Octavia A Plea for Nero Latomus v

34 n 3 p 754-756 1975

GEER R M Nero the Singing Emperor of Rome by Arthur Weigall The

Classical Journal v 27 n 1 p 51-52 1931

______ Notes on the Early Life of Nero Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 62 p 57-67 1931

GIANCOTTI F Il Posto della Biografia nella Problematica Senechiana IV l

Sfondo storico e data del De Clementia RAL v 9 p 329-344 1954

GIBBON E Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano Trad de Joseacute Paulo Paes 1

ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 1989

376

GIBSON B Commentary In STATIUS Siluae 5 Trans by B Gibson 1 ed

Oxford Oxford University Press 2006 p 71-433

______ General Introduction In STATIUS Siluae 5 Trans by B Gibson 1 ed

Oxford Oxford University Press 2006 p xvii-lii

GILLESPIE C Boudica Warrior Woman of Roman Britain 1 ed Oxford

Oxford University Press 2018

GINSBERG L D A Tale of Two Waters Agrippinarsquos Death in Flavian Poetry

In AUGOUSTAKIS A LITTLEWOOD R J (Eds) Campania in the Flavian

Poetic Imagination 1 ed Oxford Oxford University Press 2019 p 25-41

GINSBURG J Representing Agrippina Constructions of Female Power in the

Early Roman Empire 1 ed New York Oxford University Press 2006

GOacuteES G C A Famiacutelia como construccedilatildeo de Memoacuteria O uso da imagem da

Famiacutelia em De Vita Caesarum de Suetocircnio e a construccedilatildeo da Memoacuteria de Nero

(seacuteculos I e II dC) 2015 167 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Programa

de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes Goiacircnia 2015

GOacuteMEZ L P La Tragedia In CODONtildeER C (Ed) Historia de la Literatura

Latina 1 ed Madrid Caacutetedra 1997 p 567-578

GONCcedilALVES A T M A noccedilatildeo de propaganda e sua aplicaccedilatildeo nos estudos

claacutessicos O caso dos imperadores romanos Septiacutemio Severo e Caracala 1 ed

Jundiaiacute Paco Editorial 2013

______ Os Severos e a Anarquia Militar In SILVA G V MENDES N M

(Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e

cultural 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2006 p 175-192

______ Uma Anaacutelise da Obra De Clementia de Secircneca A Noccedilatildeo de Virtude

Phoinix Rio de Janeiro v 5 p 51-74 1999

GOODENOUGH E R The Political Philosophy of Hellenistic Kingship 1 ed

New Haven Yale University Press 1928

GOODMAN M A Classe Dirigente da Judeacuteia As Origens da Revolta Judaica

contra Roma (66-77 dC) Trad de Alexander e Elizabeth Lissovsky 1 ed Rio

de Janeiro Imago 1994

GOWING A M Cassius Dio on the Reign of Nero ANRW II v 34 n 3 p

2558-2590 1997

______ Tacitus and the Client Kings Transactions of the American

Philological Association v 120 p 315-331 1990

377

GRACcedilA I Marcial e os Banhos em Roma In PIMENTEL C S LEAtildeO D F

BRANDAtildeO J L (Coords) Toto notus in orbe Martialis Celebraccedilatildeo de Marcial

1900 Anos apoacutes a sua Morte 1 ed Coimbra Instituto de Estudos

ClaacutessicosCentro de Estudos Claacutessicos 2004 p 117-136

GRAMMATICO G Silencio y furor en la Apokolokynthosis de Seacuteneca Letras

Claacutessicas n 3 p 109-127 1999

GRANT M Introduction In TACITUS The Annals of Imperial Rome 1 ed

Harmondsworth Penguin Books 1956 p 7-26

______ Nero Emperor in Revolt 1 ed New York American Heritage Press

1970

GRASSI C Svetonio (Antologia della letteratura latina) 1 ed Brescia

Paideia 1972

GRIFFIN M T Nero The End of a Dynasty 1 ed London Routledge 2001

______ Nerva to Hadrian In BOWMAN A K GARNSEY P RATHBONE

D (Eds) The Cambridge Ancient History The High Empire AD 70-192 1

ed Cambridge Cambridge University Press 2000 v 11 p 84-131

______ Seneca A Philosopher in Politics 1 ed Oxford Oxford University

Press 1992

______ Tacitus as a historian In WOODMAN A J (Ed) The Cambridge

Companion to Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2009 p

168-183

GRIMAL P Histoacuteria de Roma Trad de Maria Leonor Loureiro 1 ed Lisboa

Ediccedilotildees Texto amp Grafia 2008

______ Lrsquoeacuteloge de Neacuteron au Deacutebut de la Pharsale Est-il Ironique REL v 38 p

296-305 1960

GRISET E Lucanea III Lrsquoanticesarismo IV Lrsquoelogio Neroniano V

Lrsquouniversalismo Rivista di Studi Classici v 3 p 56-61 p 134-138 p 203-238

1955

GRUEN E S Polybius and Josephus on Rome In MOR M PASTOR J

STERN P Flavius Josephus Interpretation and History 1 ed Leiden Brill

2011 p 149-162

GUARINELLO N L Nero o Estoicismo e a Historiografia Romana Boletim do

CPA n 1 p 53-61 1996

______ Uma Morfologia da Histoacuteria As Formas da Histoacuteria Antiga Politeia v

3 n 1 p 41-61 2003

378

GUNDERSON E The Flavian Amphitheatre All the World as Stage In

BOYLE A J DOMINIK W J (Eds) Flavian Rome Culture Image Text 1

ed Leiden Brill 2003 p 637-658

GUNDERSON E The Neronian ldquoSymptomrdquo In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion

to the Age of Nero 1 ed New York Cambridge University Press 2017 p 333-

353

GYLES M F Nero Qualis Artifex The Classical Journal v 57 n 5 p 193-

200 1962

HABINEK T Imago suae Vitae Senecarsquos Life and Career In DAMSCHEN G

HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed

Leiden Brill 2014 p 3-32

HADAS-LEBEL M Flaacutevio Josefo O Judeu de Roma 1 ed Rio de Janeiro

Imago 1991

HAMMAN A-G A vida cotidiana dos primeiros cristatildeos (95-197) 1 ed Satildeo

Paulo Paulus 1997

HANKEY J A Passion for Egypt A Biography of Arthur Weigall 1 ed

London I B Tauris 2001

HARDIE P Lucanrsquos Bellum Civile In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 225-

240

HARRILL J A Coming of Age and Putting on Christ The Toga Virilis

Ceremony Its Paraenesis and Pauls Interpretation of Baptism in Galatians

Novum Testamentum v 44 n 3 p 252-277 2002

HARRINGTON D Cassius Dio as a Military Historian Acta Classica v 20 p

159-165 1977

HARRISON G W M Seneca on the Fall of Troy In ______ (Ed) Brillrsquos

Companion to Roman Tragedy 1 ed Leiden Brill 2015 p 118-150

HARTOG F A Histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad de Jacyntho Lins

Brandatildeo 1 ed Belo Horizonte Ed UFMG 2001

______ Regimes de Historicidade Presentismo e Experiecircncias do Tempo Trad

de Andreacutea S de Menezes Bruna Beffart Camila R Moraes Maria Cristina de A

Silva e Maria Helena Martins 1 ed Belo Horizonte Autecircntica 2014

HAUSTEINER E M HUHNHOLZ S WALTER M Imperial Interpretations

The Imperium Romanum as Category of Political Reflection Mediterraneo

Antico v 13 n 1-2 p 11-16 2010

379

HELMRATH J Transformations of Antiquity A Berlin Concept Aegyptiaca v

4 p 139-151 2019

HENDERSON B W The Life and Principate of the Emperor Nero 1 ed

London Methuen amp Co 1903

HENDERSON J Lucan The Word at War Ramus v 16 n 1 p 122-164

1987

HERINGTON C J Octavia Praetexta A Survey The Classical Quarterly v

11 n 1 p 18-30 1961

HIGHET G Petronius the Moralist Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 72 p 176-194 1941

HINE H M Rome the Cosmos and the Emperor in Senecarsquos Natural Questions

The Journal of Roman Studies v 96 p 42-72 2006

______ Seneca and his World In SENECA Natural Questions Trans by

Harry M Hine Chicago University of Chicago Press 2010 p vii-xxvi

HOLLAND R Nero The Man Behind the Myth 1 ed Stroud Sutton

Publishing 2000

______ Richard Holland Richardhollandwritercouk 2002 Biography

Disponiacutevel em wwwrichardhollandwritercouk Acesso em 22 fev 2020

HOLMES N Nero and Caesar Lucan 133-66 Classical Philology v 94 n 1

p 75-81 1999

HOLZTRATTNER F Neronis potens Die Gestalt der Poppaea Sabina in den

Nerobuumlchern des Tacitus Mit einem Anhang zu Claudia Acte 1 ed Horn F

Berger u Soumlhne 1995

HURLEY D W Biographies of Nero In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 29-

44

______ Introduction In SUETONIUS Divus Claudius Trans by D W Hurley

1 ed Cambridge Cambridge University Press 2001 p 1-28

HURT C Nero Fiddles while Trump Burns The Washington Times New York

18 September 2018 Politics Disponiacutevel em

httpswwwwashingtontimescomnews2018nov18nero-fiddles-while-trump-

burns Acesso em 02 set 2019

HUTTON M PETERSON W Introduction to Agricola In TACITUS

Agricola Germania Dialogue on Oratory Trans by M Hutton and W

380

Peterson Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press

1914 p 149-160

ISAGER J Pliny on Art and Society The Elder Plinys Chapters on The History

Of Art 1 ed London Routledge 2006

JACOB C Athegravenes-Alexandrie In SCHAER R (Ed) Tous les Savoirs du

Monde Encyclopeacutedies et Bibliothegraveques de Sumer au XXIe Siegravecle Paris

Flammarion 1996

JENKINSON J R Sarcasm in Lucan 133-66 CR v 24 p 8-9 1974

JENNISON G Polar Bears at Rome CR v 36 p 73 1922

JOHANSSON B S Boys will be Boys The Portrayal of Youthful Emperors in

Roman Imperial Histories and Biographies 2016 199 f Thesis (Mastership in

Philosophy) ndash Department of Historical and Philosophical Inquiry University of

Queensland 2016

JOLY F D Espaccedilo Poder e Escravidatildeo no De Re Rustica de Columella Rev

Bras Hist v 23 n 45 p 281-299 2003

_______ Suetocircnio e a Tradiccedilatildeo Historiograacutefica Senatorial Uma Leitura da Vida

de Nero Histoacuteria v 24 n 2 p 111-127 2005

_______ Taacutecito e a metaacutefora da escravidatildeo Um Estudo de Cultura Poliacutetica

Romana 1 ed Satildeo Paulo EDUSP 2004

______ Teleologia e Metodologia Histoacutericas em Taacutecito Histoacuteria Revista v 6

n 2 p 25-50 2001

JONES B W Agrippina and Vespasian Latomus v 43 n 3 p 581-583 1984

_______ The Emperor Domitian 1 ed London Routledge 1992

JONES C Nero Speaking Harvard Studies in Classical Philology v 100 p

453-462 2000

JORDAN M A Spirit of True Learning The Jubilee History of the University

of New England 1 ed New South Wales UNSW Press Book 2004

JOYCE J W Glossary In LUCAN Pharsalia Trans by Jane Wilson Joyce 1

ed Ithaca Cornell University Press 1993 p 287-330

_______ Introduction In LUCAN Pharsalia Trans by Jane Wilson Joyce

Ithaca Cornell University Press 1993 p ix-xxvi

JUNIOR B I R Para Aleacutem da Heteronormatividade Uma Anaacutelise dos

Eunucos Representados por Estaacutecio Marcial e Suetocircnio (Roma 80-121 dC)

381

2016 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Histoacuteria Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Assis 2016

JUacuteNIOR W M de S A Trageacutedia ldquoAs Bacantesrdquo de Euriacutepides sob a oacutetica dos

Estudos de Gecircnero Penteu e as Fronteiras do Masculino e do Feminino Revista

Cantareira v 24 p 5-17 2016

KARAKASIS E T Calpurnius Siculus A Pastoral Poet in Neronian Rome 1

ed Berlim De Gruyter 2016

KEENE C H The Bucolics of Calpurnius and Nemesianus Hermathena v 5

n 11 p 362-388 1885

KEMEZIS A M Greek Narratives of the Roman Empire under the

Severans Cassius Dio Philostratus and Herodian 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2014

KENNEDY G A A new History of Classical Rhetoric 1 ed New Jersey

Princeton University Press 1994

KENNEY E J The First Satire of Juvenal Proceedings of the Cambridge

Philological Society v 8 p 29-40 1962

KERESZTES P Nero the Christians and the Jews in Tacitus and Clement of

Rome Latomus v 43 n 2 p 404-413 1984

KETTERIJ V D G Gertrude van de Ketterij University of Applied Sciences

2020 Biographie Disponiacutevel em httpshznlonderzoekersgertrude-van-de-

ketterij Acesso em 26 fev 2020

______ The Development of the Image of Nero as Murderer Arsonist and

Persecutor of Christians 2009 60 f Thesis (Mastership in Ancient History) ndash

Department of History University of Leiden 2009

KRAGELUND P Historical Drama in Ancient Rome Republican flourishing

and Imperial decline Symbolae Osloenses v 73 p 5-51 2002

______ Roman Historical Drama The Octavia in Antiquity and Beyond 1 ed

Oxford Oxford University Press 2016

LAEHN T R Plinys Defense of Empire 237 f 2010 Dissertation (Doctorate

in Philosophy) ndash Department of Political Science Louisiana State University

Baton Rouge 2010

LAMOUR D Flaacutevio Josefo 1 ed Satildeo Paulo Estaccedilatildeo Liberdade 2006

382

LANGE C H Mock the Triumph Cassius Dio Triumph and Triumph-Like

Celebrations In ______ MADSEN J M (Eds) Cassius Dio Greek

Intellectual and Roman Politician 1 ed Leiden Brill 2016 p 92-116

LAURENS P Martial et Lrsquoeacutepigramme Grecque du Ier

Siegravecle ap J-C REL v

43 p 315-341 1965

LEACH E W Corydon Revisited An Interpretation of the Political Eclogues of

Calpurnius Siculus Ramus v 2 n 1 p 53-97 1973

LEFEBVRE L Laurie Lefebvre Universiteacute de Lille 2020 Biographie

Disponiacutevel em httpsuniv-lilleLaurieLefebvreCurriculumVitae Acesso em 26

fev 2020

______ Le Mythe Neacuteron La Fabrique drsquoun Monstre dans la Litteacuterature Antique

(Ier

-Ve s) 1 ed Villeneuve drsquoAscq Presses Universitaires du Septentrion 2017

LE GLAY M et al A History of Rome 1 ed Cambridge Blackwell 2009

LE GOFF J Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas UNICAMP 2003

LEIGH M Nero the Performer In FREUDENBURG K LITTLEWOOD C

(Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1 ed New York

Cambridge University Press 2017 p 21-33

LEITE L R A Farsaacutelia de Lucano como obra historiograacutefica ArtCultura v

21 n 38 p 59-72 2019

______ Marcial e o Livro 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2013

______ O Patronato em Marcial 2003 83 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras

Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade

Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

LEME A L O pensamento poliacutetico de Suetocircnio em A Vida Dos Doze Ceacutesares

(Seacutec II dC) A criacutetica ao poder absoluto do priacutencipe romano 2015 264 f Tese

(Doutorado) ndash Universidade Federal do Paranaacute Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria Curitiba 2015

______ Sobre as caracteriacutesticas do gecircnero biograacutefico e sua possibilidade de

interpretaccedilatildeo na Roma do seacuteculo II dC A Vida dos Doze Ceacutesares de Suetocircnio

Anais da X Jornada de Estudos Antigos e Medievais Maringaacute p 1-10 2011

LENDERING J Theodor Mommsen Liviusorg 23 April 2020 Biography

Disponiacutevel em httpswwwliviusorgarticlespersonmommsen Acesso em 20

fev 2020

LERER S Tradition A Feeling for the Literary Past 1 ed Oxford Oxford

University Press 2016

383

LEVI M A LrsquoImpero Romano 1 ed Milano Instituto Editorial Cisalpino

1949a

______ Nerone e i Suoi Tempi 1 ed Milano Biblioteca Universale Rizzoli

1949b

LEVICK B Claudius 1 ed London Yale University Press 1990

LIBERMAN G Introduction In PSEUDO-SEacuteNEgraveQUE Octavie 1 ed Paris

Les Belles Lettres 1998 p vii-xxv

LINDSAY H Adoption in the Roman World 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2009

______ Suetonius as ab epistulis to Hadrian and the Early History of the 157

Imperial Correspondence Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 43 n 4 p

454-468 1994

LOBATO M No Tempo de Nero 1 ed Rio de Janeiro Globinho 2013

LUCARINI C M La Praetexta Octavia e Tacito Giornale Italiano di

Filologia n 57 p 263ndash284 2005

LUCE T J Reading and Response in the Dialogus In ______ WOODMAN

A J (Eds) Tacitus and the Tacitean Tradition 1 ed New Jersey Princeton

University Press 1993 p 11-38

MADSEN J M Cassius Dio 1 ed London Bloomsbury Academic 2020

MAIER H O Nero in Jewish and Christian Tradition from the First Century to

the Reformation In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the

Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 385-404

MALAMUDE M A Happy Birthday Dead Lucan (P)Raising the Dead in

Silvae 27 Ramus v 24 n 1 p 1-30 2014

MALASPINA E De Clementia In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos

Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p

175-180

MALIK S The Nero-Antichrist Founding and Fashioning a Paradigm 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2020

MALITZ J Nero Trans by Allison Brown 1 ed Oxford Blackwell Publishing

2005

MALLAN C Parrhecircsia in Cassius Dio In LANGE C H MADSEN J M

(Eds) Cassius Dio Greek Intellectual and Roman Politician 1 ed Leiden Brill

2016 p 258-275

384

MANUWALD B Cassius Dio und Augustus Philologische Untersuchungen zu

den Buumlchern 45-56 des dionischen Geschichtswerkes 1 ed Wiesbaden Franz

Steiner 1979

MARCHETTI A M Sapientiae Facies Eacutetude sur les Images de Seacutenegraveque 1 ed

Paris Les Belles Lettres 1989

MARCHIORI L A B S Estudo introdutoacuterio In ______ Heacutercules furioso de

Secircneca Estudo introdutoacuterio traduccedilatildeo e notas 2008 165 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado

em Letras Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008 p 8-55

MAREC M E PFLAUM M H-G Nouvelle inscription sur la Carriegravere de

Sueacutetone lrsquoHistorien Comptes-rendus des seacuteances de lrsquoAcadeacutemie des

Inscriptions et Belles-Lettres v 96 n 1 p 76-85 1952

MARQUES J B Estruturas narrativas nos Anais de Taacutecito Histoacuteria da

Historiografia n 5 p 44-57 2010

______ Puacuteblio (Gaio) Corneacutelio Taacutecito In PARADA M (Org) Os

Historiadores Claacutessicos da Histoacuteria 1 ed Rio de Janeiro PUC-RioVozes

2012 v 1 p 88-106

MARSHALL C W The Works of Seneca the Younger and Their Dates In

DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to Seneca Philosopher

and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p 33-44

MARTI B M Senecarsquos Apocolocyntosis and Octavia A Diptych The

American Journal of Philology v 73 n 1 p 24-36 1952

______ The Meaning of the Pharsalia AJP v 66 p 352-376 1945

MARTIN B Calpurnius Siculus New Aurea Aetas Acta Classica v 39 p 17-

38 1996

MARTIN D Michael Grant Who Wrote Histories of the Ancient World Is Dead

at 89 The New York Times New York 25 October 2004 Culture Disponiacutevel

em httpswwwnytimescom20041025obituariesmichael-grant-who-wrote-

histories-of-the-ancient-world-is-deadhtml Acesso em 23 fev 2020

______ Similarities between the Silvae of Statius and the Epigrams of Martial

CJ v 34 n 8 p 461-470 1939

MARTIN J-P Neacuteron et le pouvoir des astres Pallas v 30 p 63-74 1983

MARTIN R Les reacutecits taciteacuteens des crimes de Neacuteron sont-ils fiables In

CROISILLE J M MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia V Bruxelles

Latomus 1999 p 75-85

385

______ Tacitus 1 ed London Bristol Classical Press 1989

MARTINDALE C The Politician Lucan Greece amp Rome v 31 n 1 p 64-79

1984

MARTINS P Imagem e poder Consideraccedilotildees sobre a representaccedilatildeo de Otaacutevio

Augusto 1 ed Satildeo Paulo EDUSP 2011

MAacuteRVAacuteNYO K Astrologia et crimen Four cases with astrological relevance

during Tiberiusrsquo rule In BAJNOK D NEacuteMETH G (Eds) Proceedings of the

first Croatian-Hungarian PHD Conference on Ancient History 1 ed

Budapest Debrecen 2014 p 63-78

MASON S Josephusrsquos Judean War In CHAPMAN H H RODGERS Z

(Eds) A Companion to Josephus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 13-

35

MASTERS J Poetry and Civil War in Lucanrsquos Bellum Civile 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 1992

MAXWELL-STUART P G Studies in the Career of Pliny the Elder and the

Composition of his Naturalis Historia 422 f 1995 Dissertation (Doctorate in

Philosophy) ndash University of St Andrews St Andrews 1995

MAYER R Latin Pastoral after Virgil In FANTUZZI M PAPANGHELIS T

(Eds) Brillrsquos Companion to Greek and Latin Pastoral 1 ed Leiden Brill

2006 p 453-464

MELLOR R Tacitusrsquo Annals 1 ed Oxford Oxford University Press 2010

______ The Roman historians 1 ed London Routledge 2002

MENDES N M O Sistema Poliacutetico do Principado In SILVA G V MENDES

N M (Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva Socioeconocircmica

Poliacutetica e Cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 21-51

MENDICK R THOMPSON J Emperor Nero the Nice Guy Who only Wanted

to Entertain Independent London 24 September 2000 Culture Disponiacutevel em

httpswwwindependentcoukarts-entertainmentbooksnewsemperor-nero-the-

nice-guy-who-only-wanted-to-entertain-701698html Acesso em 22 fev 2020

MIKHAIL Ivanovich Rostovtzeff Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyMikhail-Ivanovich-Rostovtzeff Acesso

em 20 fev 2020

MILLAR F A Study of Cassius Dio 1 ed Oxford Clarendon Press 1964

386

______ Last Year in Jerusalem Monuments of the Jewish War in Rome In

EDMONDSON J MASON S RIVES J (Eds) Flavius Josephus and Flavian

Rome 1 ed Oxford Oxford University Press 2005 p 101-128

______ The Emperor in the Roman World (31 BC-AD 337) 1 ed London

Duckworth 1977

MILNOR K Women and Domesticity In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion

to Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 458-475

MOMIGLIANO A De Paganos Judiacuteos y Cristianos 1 ed Meacutexico Fondo de

Cultura Econoacutemica 1984

______ Ensayos de Historiografiacutea Antigua y Moderna 1 ed Meacutexico Fondo

de Cultura Econoacutemica 1987

______ Literary Chronology of the Neronian Age CQ v 38 p 96-100 1944

______ The development of Greek Biography 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 1993

MOMMSEN T A History of Rome under the Emperors Trans by Clare

Krojzl 3 ed London Routledge 2005

MOORE C H Introduction In TACITUS The Histories Trans by Clifford H

Moore Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press

1925 v 1 p vii-xviii

MORDINE M J Domus Neroniana The Imperial Household in the Age of Nero

In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the Neronian Age 1

ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 102-117

MORFORD M P Nerorsquos Patronage and Participation in Literature and the Arts

ANRW v 32 n 3 p 2003-2031 1985

______ Tacitusrsquo Historical Methods in the Neronian Books of the Annals

ANRW II v 33 n 2 p 1582-1627 1990

______ The distortion of the Domus Aurea tradition Eranos v 66 p 158-179

1968

MOURA A R de A Otaacutevia Uma Trageacutedia Romana Letras Curitiba n 49 p

183-200 1998

MOURATIDIS J Nero The Artist the Athlete and His Downfall Journal of

Sport History v 12 n 1 p 5-20 1985

387

MOZLEY J H Introduction In STATIUS Siluae Trans by J H Mozley Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1967 v 1 p vii-

xxxii

MRATSCHEK S Nero the Imperial Misfit Philhellenism in a Rich Manrsquos

World In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the Neronian

Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 45-64

MURGATROYD P Tacitus on the Deaths of Britannicus and Claudius Eranos

v 103 p 97-100 2006

______ Tacitus on the Death of Octavia Greece amp Rome v 55 n 2 p 263-

273 2008

MURPHY T Pliny the Elderrsquos Natural History The Empire in the

Encyclopedia 1 ed Oxford Oxford University Press 2004

MUSTI D LEVI Mario Attilio Treccani 1993 Biographie Disponiacutevel em

httpwwwtreccaniitenciclopediamario-attilio-levi_28Enciclopedia-

Italiana29 Acesso em 24 fev 2020

NAGLE B R Introduction In STATIUS The Silvae of Statius Trans by Betty

Rose Nagle 1 ed Indianapolis Indiana University 2004 p 1-33

NAUTA R Poetry for Patrons Literary Communication in the Age of

Domitian 1 ed Leiden Brill 2002

NEWBOLD R F Cassius Dio and the Games LrsquoAntiquiteacute Classique v 44 n

2 p 589-604 1985

NEWLANDS C Statiusrsquo Silvae and the Poetics of Empire 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 2002

NOCK A D The proem of Lucan The Classical Review v 40 n 1 p 17-18

1926

OAKLEY S P Style and language In WOODMAN A J (Ed) The

Cambridge Companion to Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2009 p 195-211

OLIVEIRA F de Os Imperadores Loucos Ensaio de Mito-anaacutelise Histoacuterica

Recensotildees 1996 Disponiacutevel em

httpswwwucptfluceclassicospublicacoeshumanitas48recensoespdf

Acesso em 15 jul 2017

OLIVEIRA L de Secircneca e a Clementia no poder HYPNOE v 5 n 6 p 109-

117 2000

388

OrsquoGORMAN E Irony and Misreading in the Annals of Tacitus 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2003

OMENA L M de A Centralizaccedilatildeo do Poder nas Obras De Clementia e Divi

Clavdii Apocolocyntosis de Secircneca 2002 110 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Estadual de

Campinas Campinas 2002

OSGOOD J How to be a bad Emperor An ancient guide to truly terrible

Leaders 1 ed Princeton Princeton University Press 2020

______ Georgetown360 2019 Biography Disponiacutevel em

httpsgufaculty360georgetowneduscontact6000014RXQYAA4josiah-

osgood Acesso em 24 fev 2020

______ Nero and the Senate In BARTSCH S FREUDENBURG K

LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1

ed New York Cambridge University Press 2017 p 34-47

______ The Vox and Verba of an Emperor Claudius Seneca and Le Prince Ideal

The Classical Journal v 102 n 4 p 329-353 2007

PAGAacuteN V E Introduction In ______ (Ed) A Companion to Tacitus 1 ed

Malden Wiley-Blackwell 2012 p 1-12

PESAVENTO S J (Org) Histoacuteria amp Histoacuteria cultural 1 ed Belo Horizonte

Autecircntica 2004

PITA L F D A praetexta Octavia e o Pensamento de Secircneca 2006 86 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) ndash Faculdade de Letras Universidade

Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2006

PLESSIS F La poesie latine 1 ed Paris Klincksieck 1909

POE J P Octavia Praetexta and its Senecan Model The American Journal of

Philology v 110 n 3 p 434-459 1989

POSTGATE J P The Comet of Calpurnius Siculus The Classical Review v

16 n 1 p 38-40 1902

POTTER D S Tacitusrsquo sources In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to

Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 125-140

PRADO J B T Eacute ver para (fazer) crer In MARTINS P Imagem e poder

Consideraccedilotildees sobre a representaccedilatildeo de Otaacutevio Augusto 1 ed Satildeo Paulo

EDUSP 2011 p 13-28

389

______ TEIXEIRA F D A Construccedilatildeo do Discurso Histoacuterico na Trageacutedia

Pretexta Octauia Terra Roxa e Outras Terras Revista de Estudos Literaacuterios

v 6 p 44-63 2005

PRATES J P Nero Brasileiro Bolsonaro Joga Gasolina em vez de Apagar

Incecircndios Carta Capital Satildeo Paulo 29 de agosto de 2019 Poliacutetica Disponiacutevel

em httpswwwcartacapitalcombropiniaonero-brasileiro-bolsonaro-joga-

gasolina-em-vez-de-apagar-incendios Acesso em 30 ago 2019

PUCCI G Nerone Superstar In REA R TOMEI M A (Cur) Nerone

Catalogo della Mostra Roma Electa 2011 p 62-75

PURCELL N Rome and Italy In BOWMAN A K GARNSEY P

RATHBONE D (Eds) The Cambridge Ancient History The High Empire

AD 70-192 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2000 v 11 p 405-

443

RAJAK T Josephus the Historian and his Society 1 ed London Duckworth

2002

RAMAGE E S Denigration of Predecessor under Claudius Galba and

Vespasian Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 32 n 2 p 201-214 1983

RATHBONE D Foreword In SCULLARD H H From the Gracchi to Nero

A History of Rome from 133 BC to AD 68 1 ed London Routledge 2010 p

xxiv-xxviii

REA R TOMEI M A (Cur) Nerone Catalogo della Mostra 1 ed Roma

Electa 2011

REBELLO I da S O Engajamento Poliacutetico-social na Poesia Bucoacutelica de

Virgiacutelio Calpuacuternio e Nemesiano SOLETRAS v 4 n 7 p 70-85 2004

REBOUL O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Trad de Ivone Castilho Benedetti 2 ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

REINHOLD M Historian of the Classic World A Critique of Rostovtzeff

Science amp Society v 10 n 4 p 361-391 1946

RELIHAN J C On the Origin of Menippean Satire as the Name of a Literary

Genre Classical Philology v 79 n 3 p 226-229 1984

REZENDE A M de Apresentaccedilatildeo In TAacuteCITO Diaacutelogo dos Oradores Trad

de Antocircnio Martinez de Rezende e Juacutelia Batista Castilho de Avellar 1 ed Belo

Horizonte Autecircntica 2014 p 13-18

______ Rompendo o Silecircncio A Construccedilatildeo do Discurso Oratoacuterio em

Quintiliano 1 ed Belo Horizonte Crisaacutelida 2010

390

RICH J W Cassius Dio The Augustan Settlement (Roman History 53-55) 1

ed Warminster Aris and Philips 1990

RIMELL V Martialrsquos Rome Empire and the Ideology of Epigram 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2009

RIPOLL F Aspects et Fonction de Neacuteron dans la Propagande Impeacuteriale

Flavienne In CROISILLE J M MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia

V Bruxelles Latomus 1999 p 137-151

RIVES J B Introduction In SUETONIUS The Twelve Caesars Transby

Robert Graves 1 ed London Penguin Books 2007 p 12-21

ROBERTS M The Revolt of Boudicca (Tacitus Annals 1429-39) and the

Assertion of Libertas in Neronian Rome The American Journal of Philology v

109 n 1 p 118-132 1988

ROCHA PEREIRA M H Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Cultura

Romana 1 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1984

ROCHE P Nero by Edward Champlin Bryn Mawr Classical Review p 1-4

2006

RODRIGUES N S Os Flaacutevios In BRANDAtildeO J L OLIVEIRA F (Eds)

Histoacuteria de Roma antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade

Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 111-142

ROLFE J C Suetonius and his Biographies Proceedings of the American

Philosophical Society v 52 n 209 p 206-225 1913

ROLLAND Auguet IdRef Biografia Disponiacutevel em

httpswwwidreffr026696401 Acesso em 24 fev 2020

ROLLER M Constructing Autocracy Aristocrats and Emperors in Julio-

Claudian Rome 1 ed Princeton Princeton University Press 2001

ROMAN L Martial and the City of Rome The Journal of Roman Studies v

100 p 88-117 2010

ROSSO E Le Destins Multiples de la Domus Aurea Lrsquoexploitation de la

Condamnation de Neacuteron dans Lrsquoideacuteologie Flavienne In BENOIST S

DAGUET-GAGEY A (Eds) Un Discours en Images de la Condamnation de

Meacutemoire 1 ed Metz Centre Reacutegional Universitaire Lorrain drsquoHistoire site de

Metz 2008 p 43-78

RICHARDS F T The Life and Principate of the Emperor Nero The Classical

Review v 18 p 57-61 1904

391

RICHARDSON J S Augustan Rome 44 BC to AD 14 The Restoration of the

Republic and the Establishment of the Empire 1 ed Edinburgh Edinburgh

University Press 2012

RONCALI R Apocolocyntosis In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos

Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p

673-688

ROSTOVTZEFF M Histoacuteria de Roma Trad de Waltensir Dutra 5 ed Rio de

Janeiro Jorge Zahar 1983

ROYO M LrsquoOctavie entre Neacuteron et les Premiers Antonins Revue des Etudes

Latines v 61 p 189-200 1983

RUDICH V Dissidence and Literature under Nero The price of

rhetoricization 1 ed London Routledge 1997

______ Political Dissidence under Nero The price of dissimulation 1 ed New

York Routledge 2005

RYBERG I S Tacitusrsquo art of Innuendo Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 73 p 383-404 1942

SAILOR D Writing and Empire in Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2008

SALLER R P Personal Patronage under the Early Empire 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 1989

SALMON E T Nerone e i Suoi Tempi by Mario Attilio Levi Classical

Philology v 47 n 1 p 55-56 1952

SANTOS F M Q Estrutura da Poesia Bucoacutelica de Nemesiano 2003 102 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Liacutenguas e Literaturas) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Liacutenguas e Literaturas Universidade de Aveiro Aveiro 2003

SCHMIDT J Nero Monstro Sanguinaacuterio ou Imperador Visionaacuterio Trad de

Heacutelder Viccediloso 1 ed Lisboa Texto amp Grafia 2011

SCHOFIELD M Seneca on Monarchy and the Political Life De Clementia De

Tranquillitate Animi De Otio In BARTSCH S SHIESARO A (Eds) The

Cambridge Companion to Seneca 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2015 p 68-81

SCHUBERT C Studien zum Nerobild in der lateinischen Dichtung der

Antike 1 ed Leipzig Stuttgart 1998

SCHULZ V Deconstructing Imperial Representation Tacitus Cassius Dio

and Suetonius on Nero and Domitian 1 ed Leiden Brill 2019

392

SCHWARTZ D R Many Sources but a Single Author Josephusrsquos Jewish

Antiquities In CHAPMAN H H RODGERS Z (Eds) A Companion to

Josephus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 36-58

SCULLARD H H From the Gracchi to Nero A History of Rome from 133

BC to AD 68 1 ed London Routledge 2010

SEAGER R Nero The End of a Dynasty The Classical Review v 36 p 98-

100 1986

SEAR F Roman theatres An architectural study 1 ed Oxford Oxford

University Press 2006

SEGURADO E CAMPOS J A A Trageacutedia Octaacutevia A Obra e a Eacutepoca 1 ed

Lisboa Imprensa Nacional 1972

SHACKLETON BAILEY D R S Introduction In MARTIAL Epigrams

Trans by D R S Bailey Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard

University Press 1993 v 1 p 1-9

SHAKESPEARE W Hamlet Prince of Denmark 2 ed Cambridge

Cambridge University Press 2003

SHERWIN-WHITE A N Why were the Early Christians persecuted ndash An

amendment Past and Present n 27 p 23-27 1964

SHOTTER D Nero Trad de Rui Miguel Oliveira Duarte 1 ed Lisboa Ediccedilotildees

70 2008

______ Professor David Shotter Lancaster University 2002 Biography

Disponiacutevel em httpswwwlancasteracukarts-and-social-sciencesabout-

uspeopledavid-shotter Acesso em 23 fev 2020

SILVA B da Bolsonaro Imita Nero Miacutedia Ninja Satildeo Paulo 30 de agosto de

2019 Poliacutetica Disponiacutevel em httpsmidianinjaorgbeneditadasilvabolsonaro-

imita-nero Acesso em 01 set 2019

SILVA F de S Comentaacuterio criacutetico In SEcircNECA Apocolocintose do Divino

Claacuteudio 2008 145 f Tese (Doutorado em Letras Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008 p

15-139

SILVA S C Os galli sacerdotes de Cibele Representaccedilotildees literaacuterias femininas e

possibilidades sobre as praacuteticas de castraccedilatildeo ritual Notandum v 24 p 1-22

2021

______ REZENDE W B O imperador Nero e as perseguiccedilotildees aos Cristatildeos no I

seacuteculo dC Um estudo da obra Annales de Taacutecito Linguagem Acadecircmica v 1

n 1 p 157-172 2011

393

SILVA U G da A escrita biograacutefica na Antiguidade Uma tradiccedilatildeo incerta

Politeia Hist e Soc v 8 n 1 p 67-81 2008

SLATER N W Nerorsquos Mask Classical World v 90 v 1 p 33-40 1996

SMITH J A Flavian Drama Looking Back with Octavia In BOYLE A J

DOMINIK W J (Eds) Flavian Rome Culture Image Text 1 ed Leiden

Brill 2003 p 391-430

STADTER P History and Biography In MARINCOLA J (Org) A

Companion to Greek and Roman Historiography 1 ed Malden Wiley-

Blackwell 2007 v 1 p 528-540

STAR C Roman Tragedy and Philosophy In HARRISON G W M (Ed)

Brillrsquos Companion to Roman Tragedy 1 ed Leiden Brill 2015 p 238-259

______ The Empire of the Self Self-command and Political Speech in Seneca

and Petronius 1 ed Baltimore Johns Hopkins University Press 2012

STEEL C Divisions of Speech In GUNDERSON E (Ed) The Cambridge

Companion to Ancient Rhetoric 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2009 p 77-91

STEINWENTER A Ius liberorum RE v 10 p 1919 p 1281-1285

STRECKER M Bolsonaro Queima o Brasil para o Mundo Istoeacute Satildeo Paulo 30

de agosto de 2019 Poliacutetica Disponiacutevel em httpsistoecombrbolsonaro-

queima-o-brasil-para-o-mundo Acesso em 01 set 2019

SULLIVAN D L Attitudes Toward Imitation Classical Culture and the Modern

Temper Rhetoric Review v 8 n 1 p 5-21 1989

SULLIVAN J P Assrsquos Ears and Attises Persius and Nero The American

Journal of Philology v 99 n 2 p 159-170 1978

______ Literature and Politics in the Age of Nero 1 ed Ithaca Cornell

University Press 1985

______ Martial The Unexpected Classic A Literary and Historical Study 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 1991

______ Petronius Seneca and Lucan A Neronian Literary Feud Transactions

and Proceedings of the American Philological Association v 99 p 453-467

1968

SYME R Domitius Corbulo The Journal of Roman Studies v 60 p 27-39

1970

394

______ Pliny the Procurator Harvard Studies in Classical Philology v 73 p

201-236 1969

______ Tacitus 1 ed Oxford Oxford University Press 1967 v 1-2

THACKERAY H St J Josephus The Man and the Historian 1 ed New York

KTAV Publishing House 1967

THOMPSON L Lucanrsquos apotheosis of Nero Classical Philology v 59 n 3 p

147-153 1964

TIKKANEN A Jacob Abbott Britannica 16 October 2012 Biography

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyJacob-Abbott Acesso em

20 fev 2020

TODMAN D Childbirth in Ancient Rome From Traditional Folklore to

Obstetrics The Australian and New Zealand Journal of Obstetrics and

Gynecology v 47 n 2 p 82-85 2007

TOWNEND G B Augustus and Nero The Secret of Empire by Gilbert Charles-

Picard The Journal of Roman Studies v 57 n 12 p 248-249 1967

______ Calpurnius Siculus and the Munus Neronis The Journal of Roman

Studies v 70 p 166-174 1980

______ Suetonius and his influence In DOREY T A (Ed) Latin Biography

1 ed London Routledge 1967 p 79-111

______ The Hippo Inscription and the Career of Suetonius Historia Zeitschrift

fuumlr Alte Geschichte v 10 n 1 p 99-109 1961

______ Traces in Dio Cassius of Cluvius Aufidius and Pliny Hermes v 89 n

2 p 227-248 1961

TREGGIARI S Women in the Roman Society In KLEINER D E E

KLEINER E E MATHESON S B (Eds) I Claudia Women in Ancient

Rome 1 ed New Haven University of Texas Press 1996 p 116-125

TUCK S L Imperial Image-making In ZISSOS A (Ed) A Cambridge to the

Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 109-

128

VANDENBERG P Nero Trad de Flaacutevio Paulo Meurer 1 ed Satildeo Paulo

Ciacuterculo do Livro 1987

VARELLA F F A proximidade feminina e a imagem Imperial Nero Taacutecito amp

os Anais Cadernos de Histoacuteria v1 n 1 p 1-12 2006

395

______ Sine ira et Studio Retoacuterica tempo e verdade na Historiografia de Taacutecito

Histoacuteria da Historiografia n 1 p 71-87 2008

VARNER E Nerorsquos Memory in Flavian Rome In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion

to the Age of Nero 1 ed New York Cambridge University Press 2017 p 237-

258

VERDIEgraveRE R Calpurnius Siculus et le Culte de la Personnaliteacute Helmantica

Revista de Filologiacutea Claacutesica y Hebrea v 43 n 130-131 p 31-40 1992

VERVAET F J Domitius Corbulo and the Rise of the Flavian Dynasty

Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 52 n 4 p 436-464 2003

VEYNE P Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In ______ O

Impeacuterio Greco-Romano Trad Marisa Motta 1 ed Rio de Janeiro Elsevier

2009 p 245-246

______ Seneca The Life of a Stoic 1 ed London Routledge 2003

VIEIRA B V G Introduccedilatildeo In LUCANO Farsaacutelia Cantos de I a V Trad de

Brunno V G Vieira 1 ed Campinas Editora da Unicamp 2011 p 13-71

VIEIRA H O D Introduccedilatildeo In LUCANO Guerra Civil Livro I Trad de

Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira 1 ed Joatildeo Pessoa Ideia 2018 p 5-22

VIZENTIM M Imagens do Poder em Secircneca Estudo sobre o De Clementia 1

ed Cotia Ateliecirc Editorial 2005

WALBANK F W Howard Hayes Scullard Gnomon v 2 n 56 p 189-191

1984

WALKER B The Annals of Tacitus A study in the writing of history 1 ed

Manchester Manchester University Press 1960

WALLACE K G Women in Tacitus 1903-86 ANRW v 33 n 5 p 3556-3574

1991

WALLACE-HADRILL A Pliny the Elder and Manrsquos Unnatural History Greece

amp Rome v 37 n 1 p 80-96 1990

______ Suetonius 1 ed Londres Bristol Classical Press 1995

______ The Imperial Court In BOWMAN A K CHAMPLIN E LINTOTT

A The Cambridge Ancient History The Augustan Empire 43 BC-AD 69 1

ed Cambridge Cambridge University Press 1996 v 10 p 283-308

WANKENNE J Faut-il Reacutehabiliter Lrsquoempereur Neacuteron Les Etudes Classiques

v 49 p 135-152 1981

396

WARDEN P G The Domus Aurea Reconsidered Journal of the Society of

Architectural Historians v 40 n 4 p 271-278 1981

WARMINGTON B H Nero Reality and Legend 1 ed London Chatto amp

Windus 1969

WEIGALL A Nero Emperor of Rome 1 ed London Thornton Butterworth

Ltd 1930

WES M A Before the Revolution Russians in America Americans in Russia

In ______ Michael Rostovtzeff Historian in exile 1 ed Stuttgart Steiner

1990 p 5-11

WHITTON C L Seneca Apocolocyntosis In BUCKLEY E DINTER M

(Eds) A Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell

2013 p 151-169

WIEDEMANN T E J From Nero to Vespasian In BOWMAN A K

CHAMPLIN E LINTOTT A The Cambridge Ancient History The

Augustan Empire 43 BC-AD 69 1 ed Cambridge Cambridge University Press

1996 v 10 p 256-282

WILLIAMS G D Change and Decline Roman Literature in the Early Empire

1 ed Berkeley University of California Press 1978

______ Lucanrsquos Civil War in Nerorsquos Rome In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C A J (Eds) The Cambridge

Companion to the Age of Nero 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2017 p 93-106

______ Nero Seneca and Stoicism in the Octavia In ELSNER J MASTERS

J (Eds) Reflections of Nero Culture History amp Representation 1 ed London

Duckworth 1994 p 178-195

WINTERLING A Loucura Imperial na Roma Antiga Histoacuteria (Satildeo Paulo) v

31 n 1 p 4-26 2012

______ Politics and Society in Imperial Rome 1 ed London

Wiley‐Blackwell 2009

WISEMAN T P Calpurnius Siculus and the Claudian Civil War Journal of

Roman Studies v 72 p 57-67 1982

WISEMAN T P Cliosrsquos Cosmetics Three Studies in Greco-Roman Literature

1 ed Leicester Leicester University Press 1979

WITKE C Persius and the Neronian Institution of Literature Latomus v 43 n

4 p 802-812 1984

397

WOOD S E Imperial Women A study in public images 40 BC-AD 68 1 ed

Leiden Brill 2000

WOODMAN A J Amateur Dramatics at the Court of Nero Annals 1548-74 In

LUCE T J ______ (Eds) Tacitus and the Tacitean Tradition 1 ed New

Jersey Princeton University Press 1993 p 104-128

______ Introduction In TACITUS The Annals Trans by A J Woodman 1

ed Cambridge Hackett Publishing Company 2004 p ix-xxviii

______ Rhetoric in Classical Historiography Four studies 1 ed Portland

Areopagitica Press 1988

WRAY D Wood Statiusrsquo Silvae and the Poetic of Genius Arethusa v 40 p

127-143 2007

YEGUumlL F Baths and Bathing in Classical Antiquity 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 1942

ZANKER P By the Emperor for the People ldquoPopularrdquo Architecture in Rome

In EDWALD B C NORENtildeA C F (Eds) The Emperor and Rome Space

Representation and Ritual 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2010

p 45-87

______ The Power of Images in the Age of Augustus 1 ed Ann Arbor

University of Michigan Press 1988

ZISSOS A Introduction In ______ (Ed) A Cambridge to the Flavian Age of

Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 1-14

398

APEcircNDICE

399

Apecircndice A Cronologia da vida de Nero

Data Episoacutedios

37 Nascimento de Luacutecio Domiacutecio Aenobarbo (Nero)

39-41 Exiacutelio de Agripina matildee de Nero

40 Morte de Cneu Domiacutecio Aenobarbo pai de Nero

41 Ascensatildeo de Claacuteudio

Retorno de Agripina do exiacutelio

49 Casamento de Claacuteudio e Agripina

Noivado de Nero e Otaacutevia

50 Adoccedilatildeo de Nero por Claacuteudio

53 Casamento de Nero com Otaacutevia

54 Assassinato de Claacuteudio

Ascensatildeo de Nero

54-63 Conflito com os partas

55 Assassinato de Britacircnico

57 Realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro erguido por Nero

59 Assassinato de Agripina

Promoccedilatildeo dos Juvenalia

60 Promoccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo dos Neronia

Rebeliatildeo na Britacircnia

62 Casamento de Nero com Popeia Sabina

Divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia

64 Apresentaccedilatildeo artiacutestica puacuteblica de Nero em Naacutepoles

Incecircndio de Roma

65

Iniacutecio da construccedilatildeo da Domus Aurea

Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo

Promoccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo dos Neronia

Assassinato de Popeia

66 Casamento de Nero com Estatiacutelia Messalina

Ida de Tiridates a Roma

66-68 Turnecirc artiacutestica de Nero pela Greacutecia

68 Revolta de Vindex

Suiciacutedio de Nero

400

ANEXOS

401

Anexo A Aacutervore genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia

Fonte BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p xix

402

Anexo B Mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero

Fonte BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p xx

403

Anexo C Mapa da Roma neroniana

Fonte BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 150

  • 65767452bd6d13c717c09305821bfa726f26a8f6979bbca670bc5560e7a2ef5cpdf
  • f904cfb29b842cad39cb70faed6f73668c522b4e773cdbaad733dbeae96f6e4cpdf
  • 65767452bd6d13c717c09305821bfa726f26a8f6979bbca670bc5560e7a2ef5cpdf
Page 2: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...

ANA LUCIA SANTOS COELHO

As Metamorfoses de Nero

Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo

Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Histoacuteria do Instituto de

Ciecircncias Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Ouro Preto

(UFOP) como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutora em

Histoacuteria

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Poder e

Linguagens

Linha de Pesquisa Ideias Linguagens e

Historiografia

Orientador Prof Dr Faacutebio Faversani

Mariana

Instituto de Ciecircncias Humanas e Sociais ndash UFOP

2021

Coelho Ana Lucia SantosCoeAs Metamorfoses de Nero [manuscrito] um estudo da construccedilatildeo datradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacuteltimo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-III dC) Ana Lucia Santos Coelho - 2021Coe403 f

CoeOrientador Prof Dr Faacutebio FAVERSANICoeTese (Doutorado) Universidade Federal de Ouro Preto Departamentode Histoacuteria Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em HistoacuteriaCoeAacuterea de Concentraccedilatildeo Histoacuteria

Coe1 Imperadores - Roma 2 Nero Imperador de Roma 37- 68 3Tradiccedilatildeo Literaacuteria I FAVERSANI Faacutebio II Universidade Federal de OuroPreto III Tiacutetulo

Bibliotecaacuterio(a) Responsaacutevel Luciana De Oliveira - SIAPE 1937800

SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMACcedilAtildeO

C672a

CDU 9394

MINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

REITORIA INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTORIA

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

Ana Luacutecia Santos Coelho

As metamorfoses de Nero Um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre o uacutelmo Juacutelio-Claacuteudio e o seu Principado (I-IIIdC)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federalde Ouro Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tulo de Doutor

Aprovada em 28 de maio de 2021

Membros da banca

Prof Dr Faacutebio Faversani - Orientador (Universidade Federal de Ouro Preto)Profa Dra Semiacuteramis Corsi Silva - (Universidade Federal de Santa Maria)

Profa Dra Sarah Fernandes Lino de Azevedo - (Universidade de Satildeo Paulo)Profa Dra Helena Amalia Papa - (Universidade Estadual de Montes Claros)

Prof Dr Fabio Duarte Joly - (Universidade Federal de Ouro Preto)

Faacutebio Faversani orientador do trabalho aprovou a versatildeo final e autorizou seu depoacutesito no Repositoacuterio Instucional da UFOP em 12072021

Documento assinado eletronicamente por Fabio Faversani PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR em 10072021 agraves1913 conforme horaacuterio oficial de Brasiacutelia com fundamento no art 6ordm sect 1ordm do Decreto nordm 8539 de 8 de outubro de 2015

A autencidade deste documento pode ser conferida no site hpseiufopbrseicontrolador_externophpacao=documento_conferirampid_orgao_acesso_externo=0 informando o coacutedigo verificador 0177106 e o coacutedigo CRC 8DC6421C

Referecircncia Caso responda este documento indicar expressamente o Processo nordm 231090053372021-33 SEI nordm 0177106

R Diogo de Vasconcelos 122 - Bairro Pilar Ouro PretoMG CEP 35400-000 Telefone 3135579406 - wwwufopbr

A meus pais Alberto e Lucia

Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia

A todas as Anas (boas e ruins) surgidas ao longo desta tese

A Nero

AGRADECIMENTOS

Ao teacutermino de um trabalho acadecircmico eacute impossiacutevel natildeo agradecer agravequeles

que de alguma forma estiveram presentes durante o processo de escrita Entatildeo

vamos laacute

Agradeccedilo primeiramente a mim mesma pela perseveranccedila e resiliecircncia

ao longo destes cincos anos principalmente neste uacuteltimo ano pandecircmico

Ao Professor Dr Faacutebio Faversani por me acolher como orientanda na

UFOP desde 2016 guiando meus passos e dedicando-me atenccedilatildeo e paciecircncia

Aos Professores Doutores Faacutebio Duarte Joly e Artur Costrino pelas

sugestotildees recomendadas durante o Exame de Qualificaccedilatildeo as quais foram

fundamentais para o acerto dos rumos da minha pesquisa Agrave Universidade Federal

de Ouro Preto e ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria por possibilitarem a

execuccedilatildeo deste trabalho Ao Giovani Duarte pela revisatildeo atenta deste texto que

certamente conferiu melhorias a ele

Aos meus pais Lucia e Alberto que tanto renunciaram aos seus sonhos

para que eu pudesse realizar os meus Esta conquista natildeo eacute minha eacute nossa

Ao meu irmatildeo Rafael pela amizade pelo carinho e por estar sempre

torcendo pelas minhas conquistas

A meus colegas do LEIR-UFOP Caroline Morato Stephanie Caroline

Coelho Joatildeo Victor e Mamede pelas ideias e dicas

Aos meus colegas de profissatildeo e de vida Norma Cloacutevis Elenise Barata

Nei Faniacute Amali Marcos Ludmila e Andrey pela forccedila nestes tempos sombrios

A todos os meus queridos alunos por me confirmarem a cada dia o quatildeo

maravilhoso eacute ser professora

Aos meus parceiros de vida Ygor e Margocirc Baleia por todo amor que

vocecircs trazem ao meu mundo

ldquoE o injusto hoje eacute justo amanhatilde

para a cidaderdquo1

1 καὶ πόλις ἄλλως ἄλλοτ᾿ ἐπαινεῖ τὰ δίκαια (Aes Sept 1070-1071) Traduccedilatildeo de Vieira (2018 p

105)

RESUMO

Esta tese eacute um estudo da construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria sobre Nero e seu

Principado (I-III dC) Analisamos como a imagem desse soberano foi se

modificando ao longo dos seacuteculos ateacute se consolidar negativamente com as obras

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Com o passar do tempo os traccedilos positivos de

tal imperador foram sendo apagados esquecidos eou alterados por diversos

autores antigos Acreditamos que isso ocorreu porque os julgamentos sobre ele e

seu governo foram feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios especiacuteficos que por

mudarem no decorrer dos anos geraram um processo de reelaboraccedilatildeo da

memoacuteria Ou seja cada autor dentro da sua proacutepria temporalidade produziu um

Nero condizente com seus valores e dilemas o qual por sua vez transformou os

Neros anteriores e reforccedilou mais e mais os aspectos negativos Empreendemos

essa investigaccedilatildeo por meio da anaacutelise de fontes textuais variadas situadas entre os

seacuteculos I e III selecionando as referecircncias sobre o imperador contidas aiacute e

inserindo-as em um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias

Portanto mostramos como as criacuteticas a Nero retiraram suas caracteriacutesticas

individuais transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua

realidade histoacuterica para tornaacute-lo um modelo atemporal de mau governante

Palavras-chave Impeacuterio Romano Principado de Nero Tradiccedilatildeo Literaacuteria

Allelopoiesis

ABSTRACT

This thesis investigates the formation of the literary tradition concerning Nero and

his Principate (I-III AD) We analyze the ways this sovereignrsquos image changed

across the centuries until its consolidation in the negative sense through the works

of Tacitus Suetonius and Cassius Dio With the passage of time positive

attributes of this emperor were gradually eliminated forgotten andor altered by

several authors We claim this happened because judgments that befell him and

his government were made in specific historical and literary contexts and these

judgments spawned a process of memory rewriting In other words each author

within hisher own temporality depicted a version of Nero consistent with hisher

values and dilemmas which in turn transformed the preceding portrayals of Nero

and helped reinforce more and more of his negative traits We develop our study

by examining various textual sources situated between the first and third

centuries AD selecting references therein that allude to the emperor and placing

them in a multiple categorical complex guided by 13 categories Therefore we

show how the criticisms towards Nero removed from him his individual

characteristics converted him into a figure ever more disconnected from his

historical reality and wound up turning him into an atemporal model of bad ruler

Keywords Roman Empire Neronian Principate Literary Tradition

Allelopoiesis

ABREVIATURAS DE OBRAS ANTIGAS

Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em

latim ou em grego

Tiacutetulo da obra em

portuguecircs

Aes Sept Eacutesquilo Septem contra Thebas

Ἑπτὰ ἐπὶ Θήβας Sete Contra Tebas

Arist Poet Aristoacuteteles De Poetica Περὶ

ποιητικῆς Peri poietikecircs Poeacutetica

Aug RG Augusto Res Gestae A Vida e os Feitos do

Divino Augusto

Calp Ecl Calpuacuternio

Siacuteculo Eclogae Bucoacutelicas

Cic de Orat

Cic Rhet

Her

Ciacutecero

De oratore

Rhetorica ad

Herennium

Do Orador

Retoacuterica a Herecircnio

Dio Diatildeo Caacutessio Historia Romana

Ῥωμαϊκὴ Ἱστορία Histoacuteria Romana

Hor Ars P Horaacutecio Ars Poetica Arte Poeacutetica

Jos AJ

Jos BJ

Jos Vit

Flaacutevio

Josefo

Antiquitates Judaicae

Bellum Judaicum

Vitae

Antiguidades Judaicas

Guerras Judaicas

Vida

Gel Aulo Geacutelio Noctes Atticae Noites Aacuteticas

Pers Peacutersio Saturae Saacutetiras

Luc Lucano Pharsalia Farsaacutelia

Mart Ep

Mart Marcial

Epigrammata

Liber Spectaculorum

Epigramas

Livro dos Espetaacuteculos

Plin Ep Pliacutenio o

Jovem Epistulae Cartas

Plin Nat Pliacutenio o

Velho Naturalis Historiae Histoacuteria Natural

Plut Alex Plutarco Vitae Parallelae

Βίοι Παράλληλοι Vidas Paralelas

Abreviatura Autor Tiacutetulo da obra em

latim ou em grego

Tiacutetulo da obra em

portuguecircs

Quint Inst Quintiliano Institutio Oratoria Instituiccedilatildeo Oratoacuteria

Sen Apoc

Sen Cl Secircneca

Apocolocyntosis divi

Claudii

De Clementia

Apocolocintose

Sobre a Clemecircncia

[Sen] Oct Pseudo-

Secircneca Octauia Otaacutevia

Sid Ep Sidocircnio

Apolinaacuterio Epistulae Cartas

Stat Silv Estaacutecio Silvae Silvas

Suet Aug

Suet Cl

Suet Gal

Suet Nero

Suet Otho

Suet Vesp

Suet Vit

Suetocircnio

(De Vita Caesarum)

Divus Augustus

Divus Claudius

Galba

Nero

Otho

Divus Vespasianus

Vitellius

(Vida dos Doze

Ceacutesares)

Divino Augusto

Divino Claacuteudio

Galba

Nero

Otatildeo

Divino Vespasiano

Viteacutelio

Tac Agric

Tac Ann

Tac Dial

Tac Hist

Taacutecito

Agricola

Annales

Dialogus de Oratoribus

Historiae

Agriacutecola

Anais

Diaacutelogo dos Oradores

Histoacuterias

Thuc Tuciacutedides Historiae

Ἱστορίαι

Histoacuteria da guerra do

Peloponeso

Vac Vaca Vita Marco Annaei

Lucani

Vida de Marco Aneu

Lucano

Verg A Viacutergilio Aeneid Eneida

VH _

(Scriptores Historiae

Augustae)

Vita Hadriani

(Histoacuteria Augusta)

Vida de Adriano

OBRAS DE REFEREcircNCIA

ILS ndash Inscriptiones Latinae Selectae

OCD ndash Oxford Classical Dictionary

OCGD - Oxford Classical Greek Dictionary

OLD ndash Oxford Latin Dictionary

RIC ndash The Roman Imperial Coinage

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 16

Capiacutetulo 1 Neros recentes 34

Nero um mau imperador 37

Nero um bom imperador 43

Nero o imperador fantoche 49

Os verdadeiros Neros 57

Os muacuteltiplos Neros 81

Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69) 87

Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia 90

Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae 110

Lucano Pharsalia 125

Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96) 137

Pseudo-Secircneca Octauia 140

Pliacutenio o Velho Naturalis Historia 160

Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae 173

Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae 186

Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235) 208

Taacutecito Annales 211

Suetocircnio De Vita Caesarum 264

Diatildeo Caacutessio Historia Romana 308

Consideraccedilotildees Finais 348

Referecircncias 358

Apecircndice 398

Apecircndice A Cronologia da vida de Nero 399

Anexos 400

Anexo A Aacutervore genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia 401

Anexo B Mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 402

Anexo C Mapa da Roma neroniana 403

PROacuteLOGO

Reconstituiccedilatildeo hiper-realista de Nero2

Fonte httpscesaresderomacomPROYECTO

2 A reconstituiccedilatildeo foi produzida pelo escultor espanhol Salva Ruano em 2019 Ela adveio de um

projeto intitulado Ceacutesares de Roma desenvolvido com o intuito divulgar a histoacuteria romana

claacutessica a partir de uma percepccedilatildeo mais humana real e moderna Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpscesaresderomacomPROYECTO Acesso em 12 mar 2021

16

Introduccedilatildeo

A pesquisa apresentada nesta tese teve iniacutecio em 2016 com o ingresso da

discente no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de

Ouro Preto (UFOP) O projeto desenvolvido teve como objeto de estudo a

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa que se consolidou acerca do imperador Nero e do seu

Principado a qual o transformou no decorrer dos seacuteculos em exemplo notaacutevel de

monstruosidade e tirania

A ideia para a pesquisa adveio da observaccedilatildeo dos usos midiaacuteticos

negativos da figura do soberano que eacute constantemente evocado no cinema no

teatro na muacutesica na oacutepera na pintura e na literatura No cinema por exemplo

Nero foi rememorado no famoso filme Quo vadis lanccedilado em 19511 cujo

roteiro baseou-se no livro de Henryk Sienkiewicz de 1895-1896 e ambas as

produccedilotildees trazem uma leitura francamente desfavoraacutevel do princeps2 No teatro

foi relembrado na burlesca peccedila Time of Nero and Seneca from Soviet escrita em

1984 pelo russo Radzinsky que discute a relaccedilatildeo conturbada de Nero e Secircneca3

Por sua vez na muacutesica foi desenhado em 1946 como uma ldquomulher histeacutericardquo na

composiccedilatildeo de Louis Jordan intitulada Ainrsquot that just like a woman e tambeacutem

como um soberano louco e festeiro em 1997 na muacutesica Danccedila da Manivela da

banda Asa de Aacuteguia Na oacutepera foi reavivado em 1643 na encenaccedilatildeo

Lrsquoincoronazione di Poppea de autoria do maestro Claacuteudio Monteverdi bem

como na produccedilatildeo Neacuteron apresentada em 1879 pelo pianista Anton Rubistein

Ao seu turno na pintura e na literatura fez-se presente na prestigiada tela The

remorse of Nero after the murder of his mother criada por John Waterhouse em

1878 e no recente livro Maman je veux pas ecirctre empereur elaborado por

1 Para uma lista de filmes sobre Nero cf PUCCI 2011 p 62-75

2 ldquo[] O tiacutetulo de princeps (o mais eminente cidadatildeo do Estado) era dado a um cidadatildeo que

ocupasse uma posiccedilatildeo de lideranccedila e destaque na cidade obtida pela consagraccedilatildeo de sua

popularidade dignitas e auctoritas Haacute muita diferenccedila entre a posiccedilatildeo dos priacutencipes republicanos

e a posiccedilatildeo de Otaacutevio como priacutencipe do Senado Durante a Repuacuteblica a preeminecircncia do priacutencipe

natildeo era permanente sendo revestida de noccedilotildees de paridade e equidade [] lsquoprimeiro entre os

iguaisrsquordquo (MENDES 2006 p 26) 3 A peccedila foi adaptada para a televisatildeo no mesmo ano apresentando o encontro do imperador mais

sanguinaacuterio de Roma com Secircneca em uma arena romana Uma longa conversa entre os dois

termina na exibiccedilatildeo do relacionamento do princeps com Deus e com o poder Informaccedilatildeo

disponiacutevel em httpswwwnytimescom19840914moviestheater-time-of-nero-and-seneca-

from-soviethtml Acesso em 02 set 2019

17

Franccediloise Xenakis em 2001 Esta uacuteltima produccedilatildeo em particular concede ao

soberano a imagem de um menino sensiacutevel e incompreendido que embarcou

contra a sua vontade ldquono mundo conturbado da poliacuteticardquo4

A figura do princeps tambeacutem eacute muito recorrente no debate poliacutetico atual

A emergecircncia contemporacircnea de governos conservadores com perfil autoritaacuterio

tem sido associada agrave tirania neroniana trazendo aos holofotes o retrato negativo

imperial Como ilustraccedilatildeo vimos em 2018 a associaccedilatildeo do soberano ao entatildeo

presidente dos Estados Unidos Donald Trump tido como o ldquonovo Nerordquo em

consequecircncia dos incecircndios florestais na Califoacuternia As devastaccedilotildees foram

divulgadas pelos jornais norte-americanos com os seguintes tiacutetulos ldquoNero toca

lira enquanto Trump ateia fogordquo5 ldquoTocando lira enquanto a Ameacuterica queima

Trump eacute o atual imperador Nerordquo6 Um ano depois em 2019 foi a vez de

assistirmos agrave comparaccedilatildeo do princeps com o presidente da Repuacuteblica no Brasil

Jair Bolsonaro considerado o ldquoincendiaacuterio modernordquo devido aos desmatamentos

e agraves queimadas na floresta Amazocircnica A esse respeito os jornais logo criaram as

suas manchetes ldquoNero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar

incecircndiosrdquo7 ldquoBolsonaro imita Nerordquo

8 e ldquoBolsonaro queima o Brasil para o

mundordquo9 Tais notiacutecias nos fizeram entender que os defeitos ou os crimes

imperiais satildeo relembrados para condenar estadistas que tiveram atitudes

4 LEFEBVRE 2017 p 13 Em 2013 foi veiculado um livreto de Monteiro Lobato denominado

No Tempo de Nero Na aventura os personagens do Siacutetio do Pica-Pau Amarelo conhecem a Roma

neroniana Ao chegarem agrave capital do Impeacuterio satildeo presos por terem ldquocara de cristatildeosrdquo e

condenados pelo pior crime da eacutepoca Enquanto o grupo eacute obrigado a enfrentar um rinoceronte em

pleno Coliseu Emiacutelia inventa um plano para tirar todo mundo daquela encrenca e retornar ao Siacutetio

Cf LOBATO 2013 5 HURT C Nero fiddles while Trump burns The Washington Times Nova Iorque 18 set 2018

Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwwashingtontimescomnews2018nov18nero-

fiddles-while-trump-burns Acesso em 02 set 2019 6 ADDIS F Fiddling while America burns Trump is todayrsquos emperor Nero CITYAM London

17 set 2018 Politics Reportagem disponiacutevel em httpswwwcityamcomfiddling-while-america-burns-trump-todays-emperor-nero Acesso em 02 set 2019 Em abril de 2018 o

classicista Freudenburg publicou um artigo intitulado Donald Trump and Romersquos Mad Emperors

no jornal online Common Dreams em que discute essa associaccedilatildeo entre Donald Trump e Nero Cf

httpswwwcommondreamsorgviews20180429donald-trump-and-romes-mad-emperors 7 PRATES J P Nero brasileiro Bolsonaro joga gasolina em vez de apagar incecircndios Carta

Capital Satildeo Paulo 29 de ago 2019 Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em

httpswwwcartacapitalcombropiniaonero-brasileiro-bolsonaro-joga-gasolina-em-vez-de-

apagar-incendios Acesso em 30 ago 2019 8 SILVA B da Bolsonaro imita Nero Miacutedia Ninja Satildeo Paulo 30 ago 2019 Poliacutetica

Reportagem disponiacutevel em httpsmidianinjaorgbeneditadasilvabolsonaro-imita-nero Acesso

em 01 set 2019 9 STRECKER M Bolsonaro queima o Brasil para o mundo Istoeacute Satildeo Paulo 30 ago 2019

Poliacutetica Reportagem disponiacutevel em httpsistoecombrbolsonaro-queima-o-brasil-para-o-

mundo Acesso em 01 set 2019

18

semelhantes agraves atribuiacutedas ao soberano ndash ou seja os meios de comunicaccedilatildeo

associam Nero a poliacuteticos na tentativa de desqualificar estes uacuteltimos10

Essa desqualificaccedilatildeo pode ocorrer segundo Faversani de trecircs formas A

primeira ndash e a mais empregada ndash eacute a acusaccedilatildeo de os governantes serem vaidosos

em excesso e cegos perante a falta de talentos que os aduladores lhes atribuem

fato que produz um estadista com o ego demasiadamente inflado A segunda eacute o

ataque a condutas do proacuteprio governante sobretudo agravequelas de destruiccedilatildeo material

ou abstrata de patrimocircnios ou valores A terceira eacute a menccedilatildeo agrave tirania ou uma

combinaccedilatildeo desta com alguns dos crimes imperiais11

Independentemente da

desqualificaccedilatildeo escolhida uma questatildeo eacute recorrente os usos de Nero possibilitam

uma nova interpretaccedilatildeo do passado e uma anaacutelise ineacutedita do presente O problema

historiograacutefico eacute que esses usos retiram o princeps do seu contexto original e

colocam-no em um cenaacuterio permeado por esquemas preexistentes e selecionados

para criar a imagem de um soberano cruel Em outras palavras sua imagem eacute

sempre relembrada de maneira que as menccedilotildees positivas a ele satildeo esquecidas e as

negativas satildeo mantidas agravadas eou acrescidas de elementos novos

A constante retomada de Nero ao longo de seacuteculos gera um efeito

interessante de se observar o de sua familiarizaccedilatildeo entre os indiviacuteduos mesmo

entre a ampla parcela da populaccedilatildeo que nunca recebeu uma educaccedilatildeo erudita com

grande contato com a literatura claacutessica Nero eacute simultaneamente o imperador

romano distante no tempo e um personagem atemporal de caraacuteter traacutegico capaz

de accedilotildees monstruosas As retomadas agrave sua imagem tendem a mesclar o

personagem histoacuterico com outros personagens que agiram como se fossem Nero ndash

os novos Neros ndash ou com o Nero heroacutei traacutegico atemporal que se combina com

aquele histoacuterico de forma indissociaacutevel Assim Nero estaacute no passado mas natildeo

estaacute aprisionado nele podendo reaparecer a qualquer momento e encarnar o anti-

heroacutei em alguma de nossas muitas trageacutedias contemporacircneas

Essas apropriaccedilotildees contemporacircneas do imperador ndash pouco rigorosas do

ponto de vista historiograacutefico mas usuais e compreendidas pelo grande puacuteblico ndash

fomentaram a nossa curiosidade em verificar como as fontes literaacuterias da

10

Em 2020 Faversani publicou um artigo na revista Histoacuteria da Historiografia intitulado Tirano

Louco e Incendiaacuterio BolsoNero Anaacutelise da Constituiccedilatildeo da Assimilaccedilatildeo entre o Presidente da

Repuacuteblica do Brasil e o Imperador Romano como ldquoAllelopoiesisrdquo no qual discute perspicazmente

essa relaccedilatildeo midiaacutetica entre Jair Bolsonaro e Nero 11

FAVERSANI 2020 p 377

19

Antiguidade o representavam Apoacutes algumas leituras notamos que a loacutegica se

repete os relatos criacuteticos se sobrepotildeem aos elogiosos com a maior parte das

narrativas descrevendo-o como um monstro Em certos momentos os autores

claacutessicos fornecem informaccedilotildees falsas para apoiar essa imagem dele e omitem

dados que possam contradizecirc-la em outros apresentam as accedilotildees do soberano fora

de contexto a fim de que seu significado original seja obscurecido ou entendido

apenas com dificuldade Portanto percebemos que na documentaccedilatildeo antiga em

termos da memoacuteria do imperador o ldquomaurdquo perpetuamente domina

Depois de refletirmos sobre os usos midiaacuteticos do princeps e lermos o

corpus textual do passado entendemos que a imagem do Nero incendiaacuterio e

assassino comeccedilou a ser criada na Antiguidade sendo retomada por geraccedilotildees

futuras a partir de debates poliacuteticos eou de representaccedilotildees artiacutesticas12

Essas

reaproximaccedilotildees transformaram o soberano em um personagem tiracircnico sem

paralelos contribuindo para o desenvolvimento e a durabilidade de uma tradiccedilatildeo

negativa que acabou apagando ndash quase completamente ndash qualquer traccedilo positivo

desse imperador ou do seu governo

Eacute a construccedilatildeo de tal tradiccedilatildeo na Antiguidade que investigaremos nesta

tese ndash ou se usarmos a expressatildeo do nosso tiacutetulo as Metamorfoses de Nero A

palavra metamorfose remete agrave obra homocircnima do poeta Oviacutedio escrita no iniacutecio

do seacuteculo I que traz descriccedilotildees de mutaccedilotildees incomuns como as de homens em

plantas animais rios pedras e em outros elementos Essas mutaccedilotildees satildeo relatadas

por Oviacutedio de uma forma que muito nos interessa aqui atraveacutes de uma narrativa

pautada na oposiccedilatildeo entre transformaccedilatildeo e permanecircncia isto eacute de uma histoacuteria

que traz os traccedilos dos indiviacuteduos existentes antes das transformaccedilotildees e que depois

de modificados permaneceram na nova forma13

Tal procedimento nos ajuda a

compreender como as representaccedilotildees literaacuterias de Nero se consolidaram

negativamente tivemos diversas histoacuterias sobre ele que foram contadas (e

modificadas) ao longo do tempo mas que sempre mantiveram certa imagem

negativa contiacutenua

No nosso caso em especiacutefico trabalharemos com a tradiccedilatildeo literaacuteria

Decidimos lidar apenas com ela porque de todas as tradiccedilotildees existentes como a

monetaacuteria a iconograacutefica ou a epigraacutefica ela a nosso ver eacute a mais longa

12

Cf REA TOMEI 2011 13

CARVALHO 2010 p 19

20

contiacutenua e dominante influenciando na posteridade de forma mais determinante

do que as culturas material ou epigraacutefica na edificaccedilatildeo de outras tradiccedilotildees

Ademais acreditamos que as diferentes linguagens se comunicam de alguma

maneira mas tambeacutem guardam certa autonomia Por exemplo as imagens

literaacuterias e monetaacuterias de Nero natildeo podem ser entendidas como desconectadas

pois dialogam mas o fazem por uma miriacuteade de canais que natildeo permitem uma

comparaccedilatildeo direta e simples Logo sem negar que haja pontos de contato cada

forma de representaccedilatildeo cria uma tradiccedilatildeo proacutepria que precisa ser compreendida

em suas particularidades inclusive no que tange agrave cronologia

Dito isso eacute importante esclarecer o que concebemos como tradiccedilatildeo A

palavra tradiccedilatildeo adveacutem do vocaacutebulo latino traditio o qual de acordo com o

Oxford Latin Dictionary (OLD) possui dois significados i) a) ato de entregar a

entrega de bens posses etc b) a renuacutencia de pessoas territoacuterios etc ii) a) a

transmissatildeo de conhecimento ensino etc b) a entrega do conhecimento um item

de conhecimento tradicional crenccedila etc14

A segunda definiccedilatildeo eacute a que mais se

aproxima daquilo que pensamos por tradiccedilatildeo ou seja a passagem de um saber

para um indiviacuteduo ou grupo em tempos presentes ou futuros Nesse acircmbito

concordamos com Lerer quando afirma que a palavra traz consigo um sentido de

poder e controle uma espeacutecie de personificaccedilatildeo da autoridade Para o autor a

obra literaacuteria necessita ser lida como agente de poder como objeto que pode

legitimar ou deslegitimar governos e governantes15

Eacute dentro dessa perspectiva

que compreenderemos a prevalecircncia da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero

Nesse aspecto examinaremos a forma pela qual os escritores claacutessicos

controlaram a imagem do princeps persuadindo os leitores futuros a aceitarem a

figura de um monstro16

Ao fazecirc-lo focaremos na anaacutelise dos modelos

empregados por eles para comporem seus retratos do soberano Esses retratos

obviamente natildeo nasceram como criaccedilatildeo puramente ficcional dos autores eles

vieram de eventos testemunhados pelos proacuteprios autores ou por pessoas com as

quais eles conviveram aleacutem de narrativas tambeacutem Estas uacuteltimas se inseriam em

14

OLD 1968 p 1956 15

LERER 2016 p 2 16

Nesta tese empregaremos o conceito de imagem utilizado por Pesavento (2004 p 85-87) em

seu livro Histoacuteria amp Histoacuteria Cultural ldquorepresentaccedilotildees do mundo para serem vistasrdquo que possuem

uma ldquo[] funccedilatildeo epistecircmica de dar a conhecer algo uma funccedilatildeo simboacutelica de dar acesso a um

significado e uma esteacutetica de produzir sensaccedilotildees e emoccedilotildees no espectadorrdquo

21

diversas tradiccedilotildees jaacute constituiacutedas fixando uma grade hegemocircnica de leitura e

escrita que por sua vez era mobilizada para a inserccedilatildeo de novos ldquoretratosrdquo17

Estabelecidos esses pressupostos comeccedilamos a desenvolver nossa

pesquisa E natildeo havia ponto de partida melhor do que a busca pelo nascimento

dessa grade hegemocircnica de interpretaccedilatildeo sobre o imperador Eacute consenso entre os

pesquisadores contemporacircneos que a origem proveacutem dos trabalhos de trecircs autores

Taacutecito (AnnalesAnais livros 13-16) Suetocircnio (De Vita CaesarumVida dos Doze

Ceacutesares) e Diatildeo Caacutessio (Ῥωμαϊκὴ ἹστορίαHistoria Romana livros 61-63) cujas

obras foram compostas entre a primeira metade do seacuteculo II e a primeira metade

do seacuteculo III18

A leitura delas nos permite identificar criacuteticas acerca do princeps

ldquo[] Nero estendeu seu reinado e crimes por muitos anos []rdquo19

ldquoprostituiu seu

proacuteprio corpo a tal ponto que quando praticamente todas as partes [] estavam

maculadas ele concebeu uma praacutetica nova e sem precedentes []rdquo20

e ldquoele se

entregou a muitas accedilotildees licenciosas tanto em casa quanto pela cidade de noite e

de dia []rdquo21

As trecircs obras satildeo as grandes fontes responsaacuteveis pela cristalizaccedilatildeo da

figura do Nero tirano no imaginaacuterio ocidental por meio da repeticcedilatildeo de elementos

nelas presentes associados aos novos contextos a que se dirigiam22

Tal ponto eacute

fundamental para nosso estudo as acusaccedilotildees contra o soberano natildeo satildeo simples

repeticcedilotildees feitas ao longo do tempo e sim elaboraccedilotildees apresentadas com base em

elementos comuns formulados de um modo novo Contudo essas trecircs fontes ndash e

as que derivam delas ndash natildeo satildeo as uacutenicas a tratarem do princeps Existem outros

textos tatildeo importantes quanto esses e muito mais proacuteximos temporalmente do

objeto que analisam mas que natildeo satildeo tatildeo considerados pelos claacutessicos Exemplos

17

Aqui eacute fundamental especificarmos o que entendemos como retrato conceito definido por Azevedo (2012 p 25) a palavra deriva do vocaacutebulo latino retraho cujo significado eacute ldquoretirarrdquo

pois os autores antigos sobretudo Taacutecito ldquoretiravamrdquo argumentos de pessoas ou de

acontecimentos que lhe eram uacuteteis para construir a representaccedilatildeo de personagens ou de situaccedilotildees 18

A menos que se indique o contraacuterio todas as datas desta tese satildeo referentes a depois do

nascimento de Cristo (dC) 19

[] ut multos post[ea] annos Nero imperium et scelera continuaverit (Tac Ann 1412) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 310) 20

suam quidem pudicitiam usque adeo prostituit ut contaminatis paene omnibus membris []

(Suet Nero 29) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs

de Edwards (2000 p 210) 21

καὶ πολλὰ μὲν οἴκοι πολλὰ δὲ καὶ ἐν τῇ πόλει [] (Dio 6181) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 53) 22

JOLY 2005 p 112

22

satildeo o De Clementia (Sobre a Clemecircncia) escrito por Secircneca e as Eclogae

(Bucoacutelicas) redigidas por Calpuacuternio Siacuteculo ambos compostos na segunda metade

do seacuteculo I por contemporacircneos ao governo de Nero Nesses documentos

observamos um quadro bem diferente temos elogios agrave bondade imperial ldquoisto

teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti [Nero] mas encenada de

vez em quandordquo23

aleacutem de enaltecimentos agrave era de paz instaurada no Impeacuterio

ldquo[] aquele que o nosso mundo governa com a sua divindade propiacutecia e a paz

perpeacutetua manteacutemrdquo24

Vale adicionar que as fontes contemporacircneas positivas com

relaccedilatildeo ao soberano e ao seu Principado tornaram-se depois pouco confiaacuteveis

vistas como marcadas pela adulaccedilatildeo e pelo temor ao tirano Esse tipo de leitura

aliaacutes eacute construiacutedo desde a Antiguidade como mostra Taacutecito nos Annales

As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram

distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando eles morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes25

Ao redigirem suas obras os autores retomavam elementos de fontes

anteriores recombinando-os Os aspectos positivos perdiam espaccedilo nas narrativas

e os negativos tornavam-se cada vez mais destacados Nesse processo Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ocupam um lugar importante para a produccedilatildeo de uma

visatildeo negativa do princeps ainda que preservem elementos positivos Ora o

Taacutecito que fala que Nero cometeu ldquocrimes por muitos anosrdquo eacute o mesmo que diz

que ele vinha

[] seguindo demandas persistentes do povo que vinha acusando os publicanos de excessos Nero considerou se deveria ordenar a suspensatildeo de todos os impostos indiretos e fazer disso o seu melhor presente para a raccedila humana26

23

difficile hoc fuisset si non naturalis tibi ista bonitas esset [] (Sen Cl 116) Traduccedilatildeo de

Braren (2013 p 39) 24

[] qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore pacem laetus et

augusto felix arrideat ore (Calp Ecl 484-86) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 25

Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae postquam

occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 11) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 4) 26

eodem anno crebris populi flagitationibus immodestiam publicanorum arguentis dubitavit Nero

an cuncta vectigalia omitti iuberet idque pulcherrimum donum generi mortalium daret sed

impetum eius multum prius laudata magnitudine animi [] (Tac Ann 1350) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p

298)

23

O Suetocircnio que denuncia a ldquoprostituiccedilatildeordquo eacute o mesmo que afirma Nero

ldquo[] declarou que governaria de acordo com os princiacutepios de Augusto e natildeo

perdeu nenhuma oportunidade de demonstrar sua generosidade clemecircncia ou

afabilidaderdquo27

E o Diatildeo Caacutessio das ldquoaccedilotildees licenciosasrdquo eacute aquele que diz ldquo[] na

verdade ele agora se conduzia com mais prudecircncia do que nuncardquo28

A percepccedilatildeo dessas aparentes incoerecircncias nas fontes nos colocou

simultaneamente diante de uma afirmaccedilatildeo ndash jaacute realizada ndash e de um problema de

pesquisa Repetiremos a afirmaccedilatildeo a tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e sobre seu

Principado consolidou-se na Antiguidade com os escritos de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio29

O problema mas o que de fato ocasionou essa consolidaccedilatildeo

Nossa hipoacutetese eacute a de que a tradiccedilatildeo negativa se consolidou a partir de

julgamentos sobre Nero e seu governo feitos em contextos histoacutericos e literaacuterios

especiacuteficos que por mudarem ao longo do tempo geraram um processo de

reelaboraccedilatildeo da memoacuteria o qual se compotildee a partir da mescla das seleccedilotildees feitas

nesses diversos contextos combinando fontes produzidas em diferentes

temporalidades e contextos30

Tal processo gerou o apagamento dos traccedilos

positivos ndash inseridos no iniacutecio dessa tradiccedilatildeo e mantidos ainda que com peso

menor em periacuteodos posteriores ndash e a manutenccedilatildeo dos negativos Assim cada

eacutepoca produziu um novo soberano condizente com seus proacuteprios valores e

dilemas sem que ele fosse inteiramente novo pois dialogava com essa cada vez

mais longa tradiccedilatildeo ndash um novo Nero que ao mesmo tempo transforma os Neros

anteriores reforccedilando mais e mais os aspectos negativos Buscaremos mostrar

tambeacutem que as representaccedilotildees de Nero natildeo satildeo livres manipulaccedilotildees a cargo de

cada novo autor porque i) dependem da criaccedilatildeo de um regime de

verossimilhanccedila e ii) remetem a uma tradiccedilatildeo anterior (toacutepicas gerais e

especiacuteficas estabelecidas sobre o princeps) que restringe tudo aquilo que se possa

27

[] ex Augusti praescripto imperaturum se professus neque liberalitatis neque clementiae ne

comitatis quidem exhibendae ullam occasionem omisit (Suet Nero 10) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 199) 28

οὔτε ἐνεωτέρισέ τι οὔτε ᾐτιάθη (Dio 62236) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 128) 29

ldquoCerca de vinte e cinco autores antigos natildeo cristatildeos tem algo de valor a dizer sobre Nero mas

o grosso da imagem que temos vem de apenas trecircs deles os historiadores Taacutecito e Diatildeo Caacutessio e o

bioacutegrafo Suetocircniordquo (CHAMPLIN 2005 p 37) 30

Adotaremos o conceito de memoacuteria formulado por Le Goff (2003 p 471) ldquoa memoacuteria na qual

cresce a Histoacuteria que por sua vez a alimenta procura salvar o passado para servir ao presente e ao

futurordquo

24

afirmar de novo31

Verificaremos ainda como essa tradiccedilatildeo modificada ao longo

de seacuteculos produziraacute um Nero que em certa medida jaacute natildeo pertence mais a

nenhuma dessas temporalidades mas as perpassa compondo um modelo

atemporal de mau governante32

Para o exame da hipoacutetese perseguiremos cinco objetivos especiacuteficos os

quais natildeo devem ser tomados como estanques e sim como articulados ganhando

maior ou menor pesos na anaacutelise segundo os elementos oferecidos pelas fontes e

pelos diferentes contextos estudados Assim pretenderemos i) identificar

representaccedilotildees sobre Nero nos textos produzidos tanto na contemporaneidade

quanto na posteridade de seu governo ii) reconhecer os contextos e os modelos

empregados pelos autores antigos para moldarem suas representaccedilotildees do

princeps iii) identificar similitudes e diferenccedilas mudanccedilas e permanecircncias entre

essas mesmas representaccedilotildees iv) compreender a relaccedilatildeo entre por um lado os

interesses e os valores daqueles que produziram as fontes sobre o soberano e

sobre o seu governo e por outro os interesses e os valores daqueles que as

julgaram e finalmente v) identificar como ao longo do tempo as criacuteticas natildeo

apenas se sucederam mas retiraram as caracteriacutesticas individuais de Nero

transformando-o em uma figura cada vez mais desconectada da sua realidade

histoacuterica e consequentemente um modelo atemporal de mau governante

Tanto a hipoacutetese quanto os objetivos seratildeo enquadrados na baliza

cronoloacutegica fixada entre os seacuteculos I e III que nos parece suficiente para perceber

a dinacircmica que operou a construccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo Bem sabemos como jaacute foi

destacado que essa tradiccedilatildeo natildeo se cristaliza e nem se manteacutem inalterada do

seacuteculo III em diante A proposta de situar o recorte aiacute adveio da constataccedilatildeo de

que parte relevante da tradiccedilatildeo literaacuteria surgiu e se consolidou nesse intervalo de

tempo comeccedilando ndash entre as obras que chegaram ateacute noacutes ndash com a publicaccedilatildeo da

Apocolocyntosis em 54 e terminando com a Historia Romana de Diatildeo Caacutessio

31

Utilizaremos o conceito de representaccedilatildeo postulado por Chartier (2002 p 165) ldquorepresentar eacute

pois fazer conhecer as coisas lsquopela pintura de um objetorsquo lsquopelas palavras e gestosrsquo lsquopor algumas

figuras por marcasrsquo ndash como os enigmas os emblemas as faacutebulas as alegorias Representar no

sentido juriacutedico e poliacutetico eacute tambeacutem lsquomanter o lugar de algueacutem ter em matildeos sua autoridadersquordquo

Esse uacuteltimo sentido eacute o que mais se aproxima da nossa tese pois concebemos as representaccedilotildees

em conexatildeo direta com poliacutetica e poder como produtoras e produto de praacuteticas culturais de

ordenaccedilotildees simboacutelicas que permitem apropriaccedilotildees e significaccedilotildees sobre a realidade Em suma

entendemo-las como construccedilotildees sociais da realidade em que os sujeitos fundamentam suas visotildees

de mundo a partir dos seus interesses e do seu grupo (CHARTIER 1990 p 17) 32

Cabe frisar que natildeo estaacute no escopo desta tese alcanccedilar a contemporaneidade por significar a

criacutetica de material muito extenso

25

por volta de 230 Eacute dentro dessa cronologia que investigaremos as nossas fontes

cuja divisatildeo dar-se-aacute em trecircs blocos fontes contemporacircneas a Nero (54-69)

fontes da dinastia Flaviana (69-96) fontes da dinastia Antonina e dos Severos

(97-235) O foco nesses trecircs pontos de observaccedilatildeo eacute como qualquer outro

arbitraacuterio pois como jaacute indicamos essa tradiccedilatildeo se constroacutei com base em

continuidades e rupturas sendo qualquer fronteira riacutegida e clara impossiacutevel de ser

percebida Contudo isso natildeo significa que os blocos se constituiacuteram sem criteacuterios

Esperamos demonstrar que eles constituem trecircs momentos distinguiacuteveis e

relevantes para a comparaccedilatildeo e percepccedilatildeo da dinacircmica que eacute objeto desse estudo

Em relaccedilatildeo ao primeiro bloco vale destacar que a sua dataccedilatildeo se encerraraacute

em 69 e natildeo em 68 (ano do suiciacutedio de Nero) porque os imperadores Oto e

Viteacutelio ainda tentaram reabilitar positivamente a imagem do princeps Todavia

depois de 69 com a derrota dos exeacutercitos de Viteacutelio pelos de Vespasiano e a

consolidaccedilatildeo desse imperador no poder a possibilidade de uma reabilitaccedilatildeo plena

da memoacuteria de Nero foi claramente perdida Vespasiano revogou a liberdade

concedida agrave Greacutecia por Nero abriu a Domus Aurea ao puacuteblico e dedicou o

Colosso de Nero ao Sol aleacutem de construir o Anfiteatro Flaacutevio como uma clara

marca de contestaccedilatildeo ao modelo urbano de Nero33

Enfim com a chegada da nova

dinastia Flaviana e a ascensatildeo de uma moralidade mais rigorosa e austera

juntamente agrave publicaccedilatildeo de obras como a trageacutedia Octauia (Otaacutevia) de Pseudo-

Secircneca a reputaccedilatildeo monstruosa do soberano foi se tornando dominante34

Desse

modo nosso primeiro bloco elencaraacute as seguintes fontes Apocolocyntosis

(Apocolocintose) e De Clementia escritas por Secircneca Eclogae redigidas por

Calpuacuternio Siacuteculo e Pharsalia (Farsaacutelia) por Lucano

Ao seu turno o segundo bloco o das fontes da dinastia Flaviana marcado

como vimos por um momento de negaccedilatildeo de uma visatildeo positiva de Nero

abrangeraacute a Octauia a Naturalis Historia (Histoacuteria Natural) de Pliacutenio o Velho

o Bellum Judaicum (Guerras Judaicas) e as Antiquitates Judaicae (Antiguidades

Judaicas) de Flaacutevio Josefo o Liber Spectaculorum (Livro dos Espetaacuteculos) e os

Epigrammata (Epigramas) de Marcial e as Siluae (Silvas) de Estaacutecio

33

ROSSO 2008 p 43-78 34

CHAMPLIN 2005 p 9

26

O terceiro bloco o dos Antoninos e dos Severos pode ser bem

representado pela maacutexima de Taacutecito sine ira et studio35 ndash seria assim um

periacuteodo em que os autores jaacute estariam livres de oacutedios recentes (ira) e igualmente

do impulso da adulaccedilatildeo (studio) Cabe destacar que o findar do governo flaviano

levou agrave ascensatildeo de principes que se representavam como diferentes de

Domiciano figurado nos textos da eacutepoca como o tirano acabado36

Nesse

instante Nero natildeo foi mais o tirano fundamental a ser repudiado ndash como foi sob

os Flaacutevios ndash mas integrou um repertoacuterio a ser lido sob um novo olhar No entanto

percebe-se nesse terceiro momento a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa

representada nos Annales escritos por Taacutecito no De Vita Caesarum composto

por Suetocircnio e na Historia Romana elaborada por Diatildeo Caacutessio Sabemos que

nesse periacuteodo houve a produccedilatildeo de outras obras que talvez ajudariam a ampliar o

estudo da tradiccedilatildeo negativa sobre Nero e seu Principado a exemplo das Epistulae

(Cartas) de Pliacutenio o Jovem das Saturae (Saacutetiras) de Juvenal e das Vitae

Parallelae (Vidas Paralelas) de Plutarco Poreacutem como o nosso interesse eacute

investigar a consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo manteremos o foco apenas nos trecircs autores

jaacute mencionados

O corpus textual escolhido engloba obras de gecircneros literaacuterios distintos

como o satiacuterico o biograacutefico o eacutepico o traacutegico e o histoacuterico Isso nos permite

conhecer diversos registros sobre o soberano e sobre seu governo37

No entanto eacute

importante enfatizar que natildeo nos aprofundaremos na avaliaccedilatildeo dos gecircneros e nos

problemas de constituiccedilatildeo de cada elemento da tradiccedilatildeo textual Decerto sabemos

que uma histoacuteria deva ser lida de forma diferente de uma biografia e em vista

disso faremos um apontamento das principais caracteriacutesticas dos gecircneros quando

seus aspectos forem relevantes para nossa anaacutelise Entretanto o aprofundamento

no gecircnero de cada fonte exigiria a criaccedilatildeo de uma nova pesquisa com uma

organizaccedilatildeo distinta da documentaccedilatildeo o que mudaria o foco da tese

A catalogaccedilatildeo das referecircncias a Nero nas fontes seraacute realizada a partir de

um complexo categorial muacuteltiplo pautado em 12 categorias 1) Nero infausto 2)

35

ldquoSem ira e nem afeiccedilatildeordquo (Tac Ann 113) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 36

GALIMBERTI 2016 p 92-108 37

Concordamos com Doody (2010 p 6) ldquogecircnero eacute uma matriz poderosa para a compreensatildeo de

textos ateacute porque configura meios alternativos de relacionar um texto a outro diferentes daquele

baseado exclusivamente na contingecircncia histoacuterica O gecircnero eacute importante porque fornece aos

leitores um meio de relacionar um texto a outro atraveacutes do tempo e do espaccedilo []rdquo

27

Nero prodigioso 3) Nero fratricida 4) Nero matricida 5) Nero uxoricida 6)

Nero artista 7) Nero vaidoso 8) Nero cruel 9) Nero incendiaacuterio 10) Nero

antiprinceps 11) Nero construtor e por uacuteltimo 12) Nero anticristo Todas elas

seratildeo examinadas dentro dos 26 episoacutedios da vida do soberano recorrentemente

citados nas fontes isto eacute daqueles que a nosso ver mais influenciaram na

construccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa a saber o nascimento de Nero a adoccedilatildeo dele por

Claacuteudio o seu casamento com Otaacutevia a sua ascensatildeo o conflito entre ele e os

partas o assassinato de Britacircnico a realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro erguido por

Nero o assassinato de Agripina a promoccedilatildeo dos jogos Juvenalia a promoccedilatildeo da

primeira ediccedilatildeo dos Neronia a rebeliatildeo de Boudica na Britacircnia o casamento de

Nero com Popeia Sabina o divoacutercio o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia a

apresentaccedilatildeo artiacutestica puacuteblica de Nero em Naacutepoles o incecircndio de Roma o iniacutecio

da construccedilatildeo da Domus Aurea a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos a Conspiraccedilatildeo de

Pisatildeo a promoccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo dos Neronia o assassinato de Popeia o

casamento de Nero com Estatiacutelia Messalina a visita de Tiridates a Roma a turnecirc

artiacutestica de Nero pela Greacutecia a revolta de Vindex e por fim o suiciacutedio de Nero

A anaacutelise dos episoacutedios ocorreraacute em conjunto com a sistematizaccedilatildeo do

complexo categorial de modo que buscaremos alocar os primeiros no segundo

Por exemplo Secircneca no De Clementia relata o episoacutedio da ascensatildeo do princeps

como algo positivo o que nos permitiraacute alocaacute-lo na categoria Nero prodigioso

Em contrapartida Pliacutenio o Velho em sua Naturalis Historia descreve o mesmo

evento como algo negativo o que nos permitiraacute inseri-lo na categoria Nero

infausto Eacute certo que os dois textos pertencem a temporalidades distintas sendo

um contemporacircneo ao soberano e outro posterior Entretanto como

investigaremos a tradiccedilatildeo literaacuteria seraacute imprescindiacutevel a comparaccedilatildeo entre obras

contextualmente diferentes pois eacute exatamente isso que possibilitaraacute a verificaccedilatildeo

da mudanccedila nos julgamentos sobre Nero

Delineada a metodologia de trabalho falta apontarmos as nossas opccedilotildees

teoacutericas Utilizaremos trecircs conceitos o de forma (focircrma) o de allelopoiesis e o de

inuentio (invenccedilatildeo) O primeiro nos auxiliaraacute na organizaccedilatildeo da tese

fundamentando a divisatildeo dos capiacutetulos e os outros seratildeo empregados na leitura

do corpus textual

28

Eacute no artigo Uma Morfologia da Histoacuteria As Formas da Histoacuteria Antiga

publicado em 2003 que Guarinello explica o conceito de forma (focircrma) Nesse

trabalho o autor esclarece que os historiadores constroem formas para pensarem o

passado conferirem-lhe sentido e o divulgarem aos seus leitores As formas

seriam generalizaccedilotildees artificiais criadas para atribuir significado ao passado

instituindo uma sensaccedilatildeo de realidade e de completude Em outras palavras as

formas seriam as maneiras por meio das quais os historiadores tornam o passado

inteligiacutevel no presente Sua fixaccedilatildeo surge a partir do instante em que os

pesquisadores organizam as informaccedilotildees encontradas na documentaccedilatildeo e impotildeem

contextos para lhes darem loacutegica38

Como sabemos as fontes satildeo um fundamento primaacuterio para o exame do

passado o alicerce com o qual se pode confirmar ou negar uma hipoacutetese E os

historiadores estatildeo sempre atribuindo uma ordem a elas unindo-as ou separando-

as segundo as teorias defendidas por eles Essas teorias estatildeo ligadas ao modo

como cada estudioso escreve a Histoacuteria seleciona os fatos pertinentes e os coloca

em associaccedilatildeo Mesmo quando impliacutecitas satildeo modos de transformar as evidecircncias

em interpretaccedilotildees do passado e de propor reconstruccedilotildees especiacuteficas da Histoacuteria

Por exemplo se um historiador julga os episoacutedios econocircmicos decisivos ele

escolheraacute dados com esses vieses e os ordenaraacute de um jeito que decirc ldquoformardquo agrave sua

anaacutelise39

Portanto a Histoacuteria eacute um jogo interpretativo entre teorias e fontes feito

de generalizaccedilotildees ndash as formas ndash que satildeo aceitas como vaacutelidas pelos escritores e

seus leitores E tais formas satildeo necessaacuterias porque as fontes ldquo[] satildeo sempre

singulares e do ponto de vista de um historiador natildeo tecircm sentido em si

mesmasrdquo40

Podemos dizer entatildeo que as formas a par dos meacutetodos e das teorias

integram qualquer reconstruccedilatildeo histoacuterica sendo impossiacutevel para um historiador

entender o passado sem usaacute-las Complementamos esse raciociacutenio com uma

valorosa afirmaccedilatildeo de Marc Bloch

38

GUARINELLO 2003 p 42 39

GUARINELLO 2003 p 44 40

GUARINELLO 2003 p 45

29

A realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de

linhas de forccedila todas convergindo para o mesmo fenocircmeno A escolha que fazemos entre elas pode muito bem se fundar em caracteriacutesticas [] bastante dignas de atenccedilatildeo mas natildeo deixa de se tratar sempre de uma escolha41

No nosso caso escolhemos quatro formas para orientar os capiacutetulos da

tese Neros recentes Nero originaacuterio (54-69) Nero transformado (69-96) e Nero

consolidado (97-235) A primeira forma seraacute constituiacuteda pelos debates

historiograacuteficos contemporacircneos a respeito do imperador e as demais seratildeo

formadas pelas fontes histoacutericas produzidas em tempos e lugares diferentes por

agentes sociais distintos e com propoacutesitos variados mas que colocadas em

conjunto criaratildeo uma mesma unidade de sentido

O segundo conceito adotado seraacute o de allelopoiesis A consolidaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa neroniana pode ser bem capturada por esse termo

derivado do grego allelon (ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriarrdquo) No artigo Imperial

Interpretations The Imperium Romanum as Category of Political Reflection

Hausteiner Huhnholz e Walter afirmam que o conceito traz uma relaccedilatildeo de

reciprocidade isto eacute implica que a constituiccedilatildeo de um domiacutenio de recepccedilatildeo

ocorre em relaccedilatildeo a um domiacutenio de referecircncia sendo este uacuteltimo moldado e

construiacutedo atraveacutes do primeiro e vice-versa42

Tal definiccedilatildeo eacute esclarecida por Faversani no artigo Entre a Repuacuteblica e o

Impeacuterio Multiplicidade de Fronteiras Aiacute o autor explica que a cada instante em

que produzimos uma nova interpretaccedilatildeo sobre algo esse algo deixa de ser o que

era pois estabelecemos uma nova maneira de ver que modifica o fenocircmeno e ao

mesmo tempo cria novas modulaccedilotildees para os diversos modos de vecirc-lo logo cada

vez que tratamos desse algo o modificamos E modificamos natildeo soacute o modo como

o entendemos mas tambeacutem como achamos que os outros deveriam tecirc-lo visto e

assim modificamos o que ele eacute para noacutes (desejando que isso mude o que ele eacute

41

BLOCH 2002 p 156 42

HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 11-16 O artigo dos trecircs autores eacute fruto do

Projeto A11 do Centro de Pesquisa Colaborativa 644 conhecido pelo nome Transformaccedilotildees da

Antiguidade O projeto vigorou entre 2005 a 2016 e foi sediado na Universidade de Humboldt O

foco das pesquisas repousava no papel constitutivo da Antiguidade no desenvolvimento do sistema

cientiacutefico e na autoconstruccedilatildeo cultural das sociedades europeias modernas Um dos seus resultados

mais positivos foi a formulaccedilatildeo do conceito de allelopoiesis o qual ainda hoje infelizmente eacute

pouco utilizado pela comunidade acadecircmica brasileira Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpswwwgeschichtehu-berlindeenforschung-und-projekte-en-

oldfoundmeddokumenteforschung-und-projektesfb-644 Acesso em 03 set 2019

30

para os outros ou que pelo menos modifique a forma como as pessoas se

propotildeem a vecirc-lo)43

Entatildeo ndash trazendo esse aspecto para a nossa tese ndash cada novo

entendimento produzido sobre Nero natildeo altera soacute o passado como tambeacutem a

proacutepria eacutepoca que o interpreta e a tradiccedilatildeo em questatildeo O passado natildeo determina o

presente nem o presente constroacutei o passado ambos satildeo produzidos de forma

simultacircnea e mediados por uma tradiccedilatildeo viva e dinacircmica aberta a novas

interpretaccedilotildees tanto quanto o passado e o presente que satildeo arbitrariamente

conectados por essas tradiccedilotildees e natildeo de forma direta Essa tradiccedilatildeo produz Neros

natildeo pertencentes apenas ao passado ou ao presente mas sim mesclados em

temporalidades e siacutenteses distintas as quais de um lado comunicam-se atraveacutes de

um repertoacuterio a ser reapropriado e reinterpretado de acordo com o surgimento de

novos eventos e quadros de interesse que possam mobilizar novas leituras quer

seja do passado quer seja do presente e de outro satildeo fundadas em uma criacutetica da

tradiccedilatildeo Portanto nossa tese natildeo examina de modo estanque o Nero do seu

proacuteprio tempo e sim pensa os diferentes Neros como uma tradiccedilatildeo que se

constitui reciprocamente em temporalidades diversas ou seja allelopoiesis44

O uacuteltimo conceito o de inuentio vincular-se-aacute aos elementos retoacutericos

empregados na caracterizaccedilatildeo de Nero e do seu Principado Em seu tratado

Rhetorica ad Herennium Ciacutecero explica que a inuentio era a primeira das cinco

partes componentes de um discurso retoacuterico inuentio (invenccedilatildeo) dispositio

(arranjo) elocutio (elocuccedilatildeo) memoria e actio (accedilatildeo)

Invenccedilatildeo eacute a concepccedilatildeo da mateacuteria verdadeira ou plausiacutevel que tornaria o caso convincente Arranjo eacute a ordem e distribuiccedilatildeo do

assunto deixando claro o lugar para o qual cada coisa deve ser atribuiacuteda Estilo eacute a adaptaccedilatildeo de palavras e frases adequadas ao assunto planejado A memoacuteria eacute a retenccedilatildeo firme na mente do assunto das palavras e do arranjo A entrega eacute a regulaccedilatildeo elegante da voz do semblante e do gesto45

43

FAVERSANI 2013 p 149 44

FAVERSANI 2013 p 146-152 45

Oportet igitur esse in oratore inventionem dispositionem elocutionem memoriam

pronuntiationem Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium quae causam

probabilem reddant Dispositio est ordo et distributio rerum quae demonstrat quid quibus locis sit

conlocandum Elocutio est idoneorum verborum et sententiarum ad inventionem adcommodatio

Memoria est firma animi rerum et verborum et dispositionis perceptio Pronuntiatio est vocis

vultus gestus moderatio cum Venustate (Cic Rhet Her 123) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Caplan (1954 p 7)

31

Ou seja cabia ao orador reunir os argumentos que sustentavam seu caso

colocaacute-los na ordem mais eficaz encontrar as palavras certas para expressaacute-los

memorizar o discurso elaborar os gestos e o tom de voz que apoiariam a

comunicaccedilatildeo dos argumentos e proferir o discurso46

Em especiacutefico o objetivo da

invenccedilatildeo era a descoberta por parte do orador das ideias verdadeiras ou

verossiacutemeis que tornassem comprovaacutevel seu argumento e convencessem seus

ouvintes Reboul esclarece que se tratava de uma noccedilatildeo com duplo sentido de um

lado era o ldquoinventaacuteriordquo a detecccedilatildeo pelo orador de todos os argumentos ou

procedimentos retoacutericos disponiacuteveis para a construccedilatildeo do seu discurso e de

outro era a ldquoinvenccedilatildeordquo no sentido moderno a criaccedilatildeo de argumentos e de

instrumentos de prova a partir da articulaccedilatildeo daqueles elementos que compunham

um repertoacuterio de conhecimento geral Resumindo a invenccedilatildeo era o processo

minucioso de classificaccedilatildeo das maneiras pelas quais uma situaccedilatildeo poderia ser

analisada a fim de se identificarem todas as possiacuteveis linhas de argumento Em

funccedilatildeo dessa dupla articulaccedilatildeo Reboul afirma que o orador necessitava i)

dominar o tema do seu discurso por meio da leitura de tudo o que jaacute havia sido

escrito sobre ele ii) saber o gecircnero e as regras de composiccedilatildeo do seu discurso e

iii) conhecer a audiecircncia para a qual proferiria o seu discurso no intuito de

conseguir deleitaacute-la e convencecirc-la47

Estamos falando entatildeo de um conceito que

envolvia a construccedilatildeo de linhas de argumentaccedilatildeo e a busca de provas para a

construccedilatildeo de tais linhas ndash um conceito que envolvia segundo Ciacutecero ldquopersuadir

os ouvintes do curso desejadordquo48

Na praacutetica isso significa que cada autor antigo

ao desenvolver a inuentio representou o seu Nero a partir de uma ordenaccedilatildeo

proacutepria produzindo novos Neros (a partir dos Neros do passado) e encontrando

argumentos para apoiar julgamentos eou transmiti-los ao presente

A organizaccedilatildeo do texto da tese se distribui em quatro capiacutetulos aleacutem desta

introduccedilatildeo Os capiacutetulos de dois a quatro estaratildeo dispostos em diacronia e

sincronia O eixo diacrocircnico lidaraacute com as fontes e com os episoacutedios

cronologicamente posicionando-os em relaccedilatildeo aos eventos sociais poliacuteticos

econocircmicos e culturais de cada eacutepoca Ao seu turno o sincrocircnico investigaraacute a

46

STEEL 2009 p 79 47

REBOUL 2004 p 43-44 48

Cic Rhet Her 334

32

documentaccedilatildeo e os episoacutedios situando-os em relaccedilatildeo a eventos ocorridos em

temporalidades distintas

No primeiro capiacutetulo intitulado Neros recentes apresentaremos o debate

historiograacutefico moderno acerca dos retratos do princeps Ou seja examinaremos o

modo como os autores a noacutes contemporacircneos leram os relatos das fontes literaacuterias

problematizaram-nos ndash explicitamente ou natildeo ndash e elaboraram os seus proacuteprios

Neros Eacute importante notar que mesmo com a variedade de textos antigos

disponiacuteveis para o estudo de Nero hoje os escritores sempre recorrem de maneira

central a Taacutecito a Suetocircnio e a Diatildeo Caacutessio No segundo denominado Nero

originaacuterio (54-69) analisaremos o corpus textual produzido durante o governo do

soberano na tentativa de observarmos como ele foi representado em vida No

terceiro Nero transformado (69-96) investigaremos as fontes elaboradas no

contexto imediato agrave sua morte a fim de verificarmos de que maneira a ascensatildeo

de uma nova dinastia a Flaviana influenciaraacute nas suas representaccedilotildees No quarto

Nero consolidado (97-235) avaliaremos as narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio buscando entender como eles se apropriaram dos retratos dos Neros do

passado e reelaboraram sua memoacuteria apagando seus traccedilos positivos e mantendo

eou cristalizando os negativos Por fim nas Consideraccedilotildees finais sintetizaremos

os argumentos discutidos no trabalho agrave luz das fontes examinadas

Com o desenvolvimento desta pesquisa almejamos oferecer contribuiccedilotildees

cientiacuteficas e sociais relevantes A priori ambicionamos cooperar cumulativamente

com a comunidade claacutessica de duas formas executando um exame cronoloacutegico

das fontes bem distinto dos jaacute realizados e propondo uma nova opccedilatildeo

metodoloacutegica para o estudo do Principado neroniano a partir de uma abordagem

sincrocircnica e tambeacutem de outra diacrocircnica o que talvez lance um novo olhar sobre

um tema muito debatido A posteriori pretendemos colaborar com a sociedade

brasileira e com os debates poliacuteticos que a compotildeem por meio da reflexatildeo

universal e transgeracional do que caracteriza um governante louco e tiracircnico Tal

debate infelizmente faz-se muito atual

Por fim gostariacuteamos de expor quatro questotildees teacutecnicas i) as autorias das

traduccedilotildees latinas e gregas dos textos antigos seratildeo sempre destacadas nas notas de

rodapeacute ii) as traduccedilotildees do inglecircs para o portuguecircs satildeo de nossa autoria tendo por

referecircncia as traduccedilotildees dos textos antigos latinos e gregos iii) as traduccedilotildees do

33

inglecircs para o portuguecircs das obras modernas tambeacutem satildeo de nossa autoria iv) esta

tese possui um apecircndice a saber uma cronologia com os episoacutedios mais

relevantes relacionados agrave vida de Nero e trecircs anexos a exemplo da aacutervore

genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia do mapa do Impeacuterio Romano durante o

governo de Nero e do mapa da Roma neroniana

34

Capiacutetulo 1 Neros recentes

Se existe um tema que parece ter sido amplamente explorado pelas fontes

da Antiguidade eacute o que se refere ao Principado de Nero Ceacutesar Augusto cuja

duraccedilatildeo compreendeu os anos de 54 a 68 Satildeo muito conhecidas as narrativas do

mundo greco-romano que consideraram esse periacuteodo como a encarnaccedilatildeo do

exagero da devassidatildeo e da crueldade Ceacutelebres satildeo as passagens que nos

informam como o soberano assassinou sua matildee Agripina envenenou o seu meio-

irmatildeo Britacircnico chutou sua esposa na eacutepoca graacutevida ateacute a morte e mandou

queimar a cidade de Roma49

Parece natildeo se ignorar mais nada acerca do princeps e de seu governo os

quais satildeo representados sob o signo da tirania Aliaacutes as narrativas da crueldade de

Nero romperam as fronteiras da Antiguidade podendo ser lidas na literatura

moderna foi esse imperador que serviu de inspiraccedilatildeo para a escrita do matriciacutedio

presente na famosa obra Hamlet de William Shakespeare50

A historiografia contemporacircnea tambeacutem acompanhou esse processo Ao

verificaacute-la observamos que amiuacutede o soberano eacute apresentado como um mau

imperador Por exemplo Mommsen em seu livro A History of Rome under the

Emperors alega que Nero era ldquoalheio aos assuntos de Estadordquo51

Rostovtzeff em

Histoacuteria de Roma afirma que o Principado de Nero assim como o de Caliacutegula

foi cruel e terriacutevel52

e Warmington em Nero Reality and Legend enfatiza a

incompetecircncia militar imperial53

Mas nem soacute de retratos negativos vive a pesquisa atual Diversas tentativas

de reabilitar a imagem de Nero total ou parcialmente jaacute foram feitas Uma das

mais radicais eacute a de Cardano que em sua autobiografia elaborada em 1642

49

Cf no Apecircndice A a cronologia da vida de Nero e no Anexo A a aacutervore genealoacutegica da

dinastia Juacutelio-Claacuteudia 50

Hamlet evoca a histoacuteria de Nero quando este pensa em matar sua matildee ldquoNero era um homem

grande de corpo Com um grande esqueleto E sua matildee era pequena Ele se perguntava desde

sempre Onde nela se encontrava tanto lugar Em um espaccedilo tatildeo limitado Em que ela tenha

podido o colocar no mundo Sem querer renunciar a seu projeto E tendo assim imaginado a

coisa seguinte Ele daacute a ordem que a abram em duas Ele assim teve que sofrer isso Por causa de

suas maacutes inclinaccedilotildees Ele olha sob o peito E descendo ao longo de todo o corpo Ele contempla

maravilhas sem nuacutemerordquo (SHAKESPEARE 2003 p 181) 51

MOMMSEN 2005 p 148 52

ROSTOVTZEFF 1983 p 198 53

WARMINGTON 1969 p 71-72

35

intitulada The Book of my Like argumenta que os termos usados pelos autores das

fontes para se referirem a Nero satildeo ldquorobustos rudes e irritantesrdquo54

Outra tentativa

conhecida eacute a obra The Life and Principate of the Emperor Nero composta por

Henderson em 1903 na qual o professor afirma que Nero natildeo confrontou o

Senado e nem rompeu com os costumes antigos55

Mais um estudo renomado eacute o

artigo Faut-il reacutehabiliter Lrsquoempereur Neacuteron redigido por Wankenne em 1981

em que o pesquisador sem desculpar o priacutencipe em todos os aspectos insiste nas

medidas louvaacuteveis tomadas por ele56

Tais esforccedilos reabilitativos foram muito importantes porque aleacutem de

recuperarem positivamente a figura de Nero revelaram as dificuldades existentes

em sua anaacutelise Os obstaacuteculos em geral estatildeo vinculados agrave deformaccedilatildeo dos fatos

e aos elementos fictiacutecios inseridos nas narrativas pelos escritores claacutessicos os

quais apagaram ou alteraram os motivos do princeps impossibilitando a

construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo mais positiva

Mesmo assim o exame da lenda negativa natildeo parou de despertar interesse

nos historiadores Nos uacuteltimos anos autores como Picard Griffin Champlin

Elsner Masters e Woodman prosseguiram com as investigaccedilotildees buscando definir

quem era o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano e o que foi feito dele Seus trabalhos

demonstraram as diferenccedilas entre os elementos retoacutericos empregados na

caracterizaccedilatildeo do imperador e a ldquoverdaderdquo histoacuterica separando ndash ou pelo menos

tentando separar ndash a ficccedilatildeo da realidade57

As produccedilotildees dessa natureza tornaram-se mais comuns e profiacutecuas a partir

de 1994 com a promoccedilatildeo do V Coloacutequio da Socieacuteteacute Internationale drsquoEacutetudes

Neacuteroniennes (SIEN) intitulado Neacuteron Histoire et Leacutegende O evento contou com

a participaccedilatildeo de pesquisadores renomados a saber Perrin Cizek Croisille

Martin e Chevallier que enfatizaram a necessidade de se considerarem os

modelos literaacuterios existentes por detraacutes das representaccedilotildees do princeps As

diversas comunicaccedilotildees proferidas na oportunidade conectaram-se a um fio

54

CARDANO 2002 p 270 55

HENDERSON 1903 p 93 56

WANKENNE 1981 p 135-152 57

Como exemplo temos a coletacircnea de artigos disposta no livro Reflections of Nero Culture

History amp Representation (1994) editado por Elsner e Masters a qual apresenta uma anaacutelise de

Nero que vai desde a sua representaccedilatildeo na histoacuteria e na literatura de sua eacutepoca ateacute a posterioridade

e os diversos artigos presentes no Companion to the Neronian Age (2013) e no The Cambridge

Companion to the Age of Nero (2017) que oferecem uma visatildeo abrangente dos processos e

interesses culturais existentes por traacutes da construccedilatildeo do ldquomonstro Nerordquo

36

condutor que visava a confirmar o caraacuteter complexo e multidisciplinar de Nero e

do seu governo Tais comunicaccedilotildees foram divididas em trecircs seccedilotildees cada qual

com uma temaacutetica especiacutefica A primeira intitulada LrsquoHistoire (A Histoacuteria)

englobou os trabalhos que discutiram a figura de Nero em Taacutecito e nos

historiadores tardios Nero em seu tempo e Nero sob os sucessores flavianos A

segunda denominada La Litteacuterature et la Leacutegende (A Literatura e a Lenda)

envolveu as contribuiccedilotildees que abordaram a imagem do princeps na tradiccedilatildeo

antiga as visotildees literaacuterias a seu respeito nos seacuteculos XVII e XVIII e o seu retrato

na literatura no cinema e nos manuais didaacuteticos A terceira Plastique Peinture

Musique (Escultura Pintura Muacutesica) abarcou os artigos que trataram das

representaccedilotildees do soberano nas artes modernas58

Ao final do Coloacutequio Perrin

proferiu uma palestra de encerramento na qual celebrou esse novo olhar das

pesquisas acadecircmicas sobre Nero ressaltando a importacircncia do estudo das figuras

histoacutericas e das suas mitologias atraveacutes dos tempos59

A nosso ver o evento da

SIEN foi de suma importacircncia para os debates da Antiguidade porque trouxe

reflexotildees ineacuteditas acerca de um imperador que ateacute entatildeo parecia fadado agrave

polarizaccedilatildeo mau versus bom ndash isto eacute ele revelou que existem muacuteltiplos acircngulos

de investigaccedilatildeo e que cada um deles pode produzir um Nero diferente novo

Eacute exatamente nesses acircngulos que nos deteremos a partir de agora

apresentando o debate historiograacutefico que traz os diversos retratos do princeps e

do seu governo Em outros termos analisaremos o modo como os estudiosos

contemporacircneos mais reconhecidos leram as fontes antigas e elaboraram os seus

proacuteprios Neros Organizamos a anaacutelise em cinco grupos com a finalidade de

melhor estruturar a apresentaccedilatildeo 1) Nero um mau imperador 2) Nero um bom

imperador 3) Nero o imperador fantoche 4) Os verdadeiros Neros e 5) Os

muacuteltiplos Neros Os dois primeiros grupos trataratildeo basicamente da personalidade

do soberano os trecircs restantes de elementos variados a exemplo das influecircncias

sofridas por ele e dos impasses poliacuteticos do Principado Eacute essencial salientar que

esse arranjo pode se mostrar incoerente em alguns momentos pois certos autores

suportariam a disposiccedilatildeo em mais de um grupo Mas nossas escolhas foram

58

As informaccedilotildees sobre o V Coloacutequio da SIEN estatildeo disponiacuteveis em httpwwwsien-

neronfrcolloques-et-actesactes-de-neronia-v-1994 Acesso em 20 fev 2020 59

CROISILLE MARTIN PERRIN 1999 p 5 BENOIST 2001 p 472-475

37

pensadas almejando uma exposiccedilatildeo consistente das concepccedilotildees historiograacuteficas

as quais nos ajudaratildeo adiante na apreciaccedilatildeo das fontes

Nero um mau imperador

Iniciaremos a discussatildeo comentando sobre quatro autores cujas pesquisas

interpretam Nero como um dos piores soberanos de todos os tempos o modelo

negativo de governante Entre eles Mommsen (1817-1903) eacute o mais antigo

considerado o maior historiador claacutessico do seacuteculo XIX De sua biografia

sabemos que cursou Estudos Claacutessicos e Direito em Kiel na Pruacutessia entre os anos

de 1838 e 1843 e tambeacutem que tentou uma curta carreira no Jornalismo Em 1854

assumiu a cadeira de Histoacuteria Antiga na Universidade de Breslau onde comeccedilou a

redigir o famoso compecircndio A History of Rome under the Emperors produccedilatildeo

poliacutetica que reflete a sua participaccedilatildeo na fundaccedilatildeo do Deutsche Fortschrittspartei

(Partido Progressista Alematildeo)60

Esse envolvimento influenciou na sua

representaccedilatildeo da queda da Repuacuteblica Romana a qual eacute colorida por uma profunda

desilusatildeo com a poliacutetica liberal nacionalista alematilde61

Foi exatamente tal vivecircncia que permeou a sua visatildeo do Principado

romano Para Mommsen esse regime deveria se assemelhar ao Parlamentarismo

amparando-se no equiliacutebrio de poderes em que o imperador seria uma espeacutecie de

ldquochancelerrdquo e o Senado o ldquoparlamentordquo concepccedilatildeo refletida nas paacuteginas do seu

compecircndio em que analisa todos os governos Juacutelio-Claudianos Flavianos

Antoninos Severos Constantinos e Teodoacutesios A ideia geral da obra eacute a de que o

Principado romano foi uma espeacutecie de monarquia constitucional uma Repuacuteblica

com um monarca em sua cabeccedila na qual o Senado jamais esteve em peacute de

igualdade com o imperador62

O poder deste uacuteltimo equivalia a uma autocracia e

era potencialmente ilimitado e proveniente das estruturas magistraacuteticas

60

Segundo Epstein (2018) a obra natildeo finalizada eacute dominada por preocupaccedilotildees poliacuteticas e

filosoacuteficas Mommsen estava entre aquele seleto grupo de ldquohistoriadores filosoacuteficosrdquo que incluiacutea

Hume Gibbon e Macaulay ldquolsquoHistoriadores filosoacuteficosrsquo satildeo aqueles interessados na natureza

humana conforme ela se desenvolve nos amplos campos dos assuntos poliacuteticos e militares da

cultura e da economia para eles a histoacuteria estaacute centrada tanto no caraacuteter quanto no acontecimento

Devido a esse interesse pela natureza humana e pelo caraacuteter dos grandes homens (sobretudo) e

mulheres eles proacuteprios encontraram um lugar de destaque e merecido natildeo apenas na

historiografia mas na literaturardquo 61

LENDERING 2020 62

MOMMSEN 2005 p 309

38

republicanas como o imperium proconsulare63 e a tribunicia potestas64

O

postulado existente por traacutes do Principado consistia no governo pessoal em que o

soberano era um funcionaacuterio administrativo com o monopoacutelio do poder65

Em funccedilatildeo disso a eacutepoca imperial representou para o autor uma falecircncia

poliacutetica militar econocircmica e moral da Repuacuteblica Falecircncia porque os imperadores

nunca conseguiram equilibrar a balanccedila do poder e criar uma coexistecircncia de

responsabilidades entre si mesmos e o Senado Ao acumularem magistraturas e

engrandecerem a sua auctoritas66

tornaram irreal qualquer ideia de domiacutenio

senatorial E sem a cooperaccedilatildeo do Senado natildeo poderia haver um Principado

eficiente e seguro um governo com a aparecircncia republicana que ocultasse a

imagem usurpadora do princeps Segundo Mommsen Augusto foi o uacutenico que se

preocupou em manter a fachada republicana Nero em contraste foi um dos que

mais se afastou desconsiderando tudo o que natildeo estivesse voltado ao seu

diletantismo artiacutestico67

[] O negoacutecio do governo era repugnante para ele Ele natildeo apreciava esforccedilos em larga escala sobretudo de tipo militar Ele foi o primeiro imperador que natildeo sentiu necessidade de estar agrave frente de suas tropas [] Ele detestava completamente a aristocracia romana procurando erradicar o Senado e dominar

apenas com homens livres e equestres68 Era uma natureza covarde e natildeo militar69

63

O termo imperium proconsulare designava um feixe de poderes com os quais eram investidos os

magistrados superiores que acumulavam responsabilidades civis ndash como a administraccedilatildeo puacuteblica e

fiscal a seguranccedila interna e o poder judicial ndash e responsabilidades militares como o comando dos

exeacutercitos em campanha (GRIMAL 2008 p 51) 64

A tribunicia potestas conferia ao imperador os poderes de um tribuno ou seja o de convocar o

Senado de vetar suas decisotildees e de apresentar projetos de lei Esse poder podia ser concedido de

modo vitaliacutecio e tornava o possuidor imune agrave interferecircncia das outras magistraturas (LE GLAY

2009 p 217) 65

MOMMSEN 2005 p 22 66

ldquoA auctoritas do priacutencipe era sustentada pelas mesmas noccedilotildees que regulavam as relaccedilotildees entre

patrono e cliente De iniacutecio era entendida como um processo ou seja o desempenho de uma perpeacutetua lideranccedila militar uma accedilatildeo contiacutenua como o maior benfeitor da Res publica natildeo somente

pela demonstraccedilatildeo das suas virtudes (prudecircncia justiccedila sabedoria clemecircncia pietas gravitas)

pelas suas accedilotildees e realizaccedilotildees (meritis) como tambeacutem por ser o mais rico O benefiacutecio gerado pelo

imperador criava um deacutebito (officium) o qual deveria ser reparado pela gratidatildeo (gratia) A

relaccedilatildeo de troca entre o imperador e seus suacuteditos poderia dificilmente ser em termos iguais em

decorrecircncia da disparidade de recursos e poderesrdquo (MENDES 2006 p 40) 67

MOMMSEN 2005 p 153 68

ldquoO ordo equester era composto de cidadatildeos romanos de nascimento livre cujos pais e avoacutes

tambeacutem fossem ingenui Por seu estatuto distinguiam-se pelo uso de um anel de ouro na matildeo

esquerda e pela tuacutenica angusticlauia uma tuacutenica marcada por uma faixa puacuterpura estreita no seu

cumprimento Aleacutem disso detinham o tiacutetulo de eques romanus e tinham o direito de se sentarem

nas fileiras logo apoacutes os senadores no teatro [] A dignidade equestre sob o Alto Impeacuterio natildeo era

hereditaacuteria pois a entrada na ordem equestre era uma decisatildeo que competia ao princeps que por

meio da adlectio uma das prerrogativas do censor nomeava um cidadatildeo para a ordem

39

A apatia era tanta que o autor menciona o fato de o princeps nunca ter

escrito os seus discursos era Secircneca quem os compunha para ele Todos os outros

soberanos sem exceccedilatildeo redigiram os seus Nero gostava mesmo era de se

apresentar no palco como ator e cantor e mesmo nisso mostrou-se totalmente

inepto Tamanha indiferenccedila poliacutetica levou Mommsen a declarar

Ele foi indiscutivelmente o imperador mais despreziacutevel que jaacute

sentou no trono de Roma e isso realmente diz alguma coisa Ele era um adolescente covarde que estava consciente do seu poder Na sua mentalidade fantasmal ele procurou a destruiccedilatildeo de todo o globo70

Prosseguindo Rostovtzeff (1870-1952) eacute outro estudioso bastante

reconhecido considerado um dos maiores historiadores do seacuteculo XX Com

formaccedilatildeo em Filologia Claacutessica realizou nas aacutereas de Histoacuteria Grega e Histoacuteria

Romana Antigas pesquisas centradas nos aspectos econocircmicos e sociais Entre os

anos de 1898 e 1918 atuou como professor de Latim na Universidade de Satildeo

Petersburgo cargo que precisou abandonar devido ao iniacutecio da Revoluccedilatildeo Russa

Rostovtzeff abominava as pretensotildees radicais do Partido Bolchevique cujas ideias

pautavam-se no fim da Monarquia Czarista a partir de uma revoluccedilatildeo popular

armada que resultaria na implantaccedilatildeo imediata e radical do socialismo Ele em

contrapartida defendia uma transiccedilatildeo mais branda e democraacutetica estabelecida

pelo fortalecimento inicial da burguesia ndash e do Capitalismo ndash que seria seguido

pela implantaccedilatildeo posterior do Socialismo Com a vitoacuteria bolchevique todos

aqueles contraacuterios ao Partido foram perseguidos o que fez Rostovtzeff buscar

exiacutelio nos Estados Unidos71

Laacute foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade

de Wisconsin entre 1920 e 1925 e professor de Histoacuteria Antiga e Arqueologia na

Universidade de Yale de 1925 em diante72

Em 1928 publicou o seu livro

Histoacuteria de Roma em que aborda desde as correntes de imigraccedilatildeo para a Itaacutelia no

inscrevendo-o numa lista oficial Apesar disso salvo se tivesse comportamento indigno ou se a

famiacutelia se empobrecesse o filho de um eques romanus tinha a expectativa de integrar esta ordemrdquo

(ESTEVES 2010 p 38-39) 69

MOMMSEN 2005 p 153 70

MOMMSEN 2005 p 152 71

WES 1990 p 5-53 72

Informaccedilatildeo disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyMikhail-Ivanovich-

Rostovtzeff Acesso em 20 fev 2020

40

seacuteculo VIII aC ateacute as causas do decliacutenio da civilizaccedilatildeo antiga no seacuteculo IV73

Essa obra eacute uma siacutentese do seu monumental The Social and Economic History of

the Roman Empire composto em 192674

Eacute no capiacutetulo 16 intitulado A Dinastia Juacutelio-Claacuteudia que Rostovtzeff

discute o Principado neroniano Ao abordaacute-lo o autor fundamenta-se na sua

experiecircncia autoritaacuteria da Revoluccedilatildeo Russa considerando-o um periacuteodo de accedilotildees

sanguinaacuterias a exemplo dos assassinatos de Britacircnico e Agripina A seu ver

Nero mesmo influenciado por Secircneca e Burro natildeo soube lidar com a oposiccedilatildeo da

aristocracia romana instituindo um ldquoreinado de terror [] com o massacre de

todos os suspeitos de natildeo simpatizarem com ele ou com seus meacutetodos de

governordquo75

Essa conduta hostil somada ao desinteresse do princeps pela

atividade militar agrave sua paixatildeo pelo teatro e agrave preferecircncia em prol dos gregos

provocou um crescente desagrado nos senadores e na Guarda Pretoriana76

cuja

reaccedilatildeo concretizou-se no preparo de um ldquogolperdquo eles jaacute natildeo suportavam o tirano

o ldquosenhor e deusrdquo e queriam restaurar a liberdade que ele tinha suprimido

obrigando-o a se suicidar em junho de 6877

Eacute sob esse mesmo vieacutes tiracircnico que Abbott (1803-1879) redigiu a sua obra

History of Nero em 1853 Com formaccedilatildeo a niacutevel superior em Teologia na Andover

Newton Theological School situada em Massachusetts fundou a Igreja Eliot

Congregational em 1834 e tornou-se pastor dela fato que o impulsionou a

escrever pequenos livros de contos infantis moralistas Os volumes compostos

traziam histoacuterias sobre um personagem chamado Rollo que viajava pelo mundo

se aventurando A proposta de Abbott era fazer o leitor acompanhar as andanccedilas

73

CALDER 1928 p 174-175 74

Concordamos com Reinhold (1946 p 362-363) quando ele afirma que a biografia de

Rostovtzeff influenciou no modo como ele escreveu essa obra O autor russo entendia que o

Mundo Antigo experimentou em menor escala o mesmo processo de desenvolvimento que o mundo estava experimentando nas deacutecadas de 40-50 O desenvolvimento moderno difere do antigo

apenas em quantidade e natildeo em qualidade ldquoEste axioma baacutesico da ausecircncia das diferenccedilas

qualitativas entre a estrutura da Civilizaccedilatildeo Antiga e a da sociedade capitalista moderna permite

uma transposiccedilatildeo para a Antiguidade do padratildeo e das categorias do modo de produccedilatildeo e troca

capitalista sua estrutura de classes configuraccedilotildees ideoloacutegicas e terminologias especiais Todos os

maiores esforccedilos de Rostovtzeff no campo da Histoacuteria Social e Econocircmica satildeo lsquomodernizadosrsquo

com conceitos como lsquocapitalistasrsquo lsquoburguesiarsquo lsquoproletariadorsquo lsquofaacutebricasrsquo e lsquoproduccedilatildeo em massarsquordquo 75

ROSTOVTZEFF 1983 p 198 76

A Guarda Pretoriana (cohors praetoria) ldquo[] era uma pequena escolta que acompanhava um

comandante do Exeacutercito na Repuacuteblica [] Durante as guerras civis as dinastias militares

mantiveram guarda-costas pessoais e em 27 aC Augusto estabeleceu uma forccedila permanente

consistindo de nove coortes cada uma contendo 500 (ou possivelmente 1000) homens recrutados

principalmente da Itaacutelia e das proviacutencias romanizadasrdquo (OCD 2012 p 1204) 77

ROSTOVTZEFF 1983 p 195-198

41

de Rollo e ao mesmo tempo aperfeiccediloar o conhecimento sobre Histoacuteria

Geografia Ciecircncia e sobretudo Eacutetica cristatilde78

Esses pequenos contos o

inspiraram tambeacutem a produzir histoacuterias biograacuteficas como as de Aniacutebal Juacutelio

Ceacutesar Cleoacutepatra e Nero79

Decerto sua biografia de Nero eacute atravessada por sua orientaccedilatildeo cristatilde e

moralista No iniacutecio do livro explana sobre os homiciacutedios de Britacircnico Otaacutevia

Agripina e Popeia crimes antinaturais que revelaram a posiccedilatildeo do princeps agrave

frente de tudo o que a depravaccedilatildeo humana jaacute havia presenciado80

No caso

especiacutefico do matriciacutedio Abbott menciona que natildeo constituiu um ato de

autodefesa pois Agripina natildeo pretendia causar danos ao seu filho Tambeacutem natildeo

foi um feito de necessidade poliacutetica como um meio para obter um desejo puacuteblico

Na verdade foi um crime legal e deliberado efetuado com o objetivo de eliminar

um obstaacuteculo agrave perpetraccedilatildeo de outro delito ldquoNero assassinou a sua matildee a sangue

frio apenas porque ela estava no caminho de seus planos para se divorciar da sua

esposa inocente [Otaacutevia] e se casar adulteramente com outra mulher aduacuteltera

[Popeia]rdquo81

Tal atrocidade natildeo causou remorsos no imperador afirma Abbott Ao

contraacuterio ele investiu em vaacuterias espeacutecies de excesso e desordem negligenciando

[] os negoacutecios puacuteblicos do Impeacuterio82 ndash aparentemente considerando o vasto poder e os imensos recursos que estavam

sob seu comando como os uacutenicos meios para a gratificaccedilatildeo completa de suas [] paixotildees pessoais A ambiccedilatildeo que realmente o motivou foi o desejo de alcanccedilar fama como cantor e ator no palco83

Para tanto dispendeu somas de dinheiro incalculaacuteveis realizando

confiscos e exaccedilotildees despoacuteticas de muacuteltiplos tipos e ausentando-se dos assuntos de

poliacutetica externa Isso tudo o tornou orgulhoso vaidoso voluntarioso cruel e

acostumado a ceder sem restriccedilatildeo a todas aquelas tendecircncias imorais que sempre

78

TIKKANEN 2012 79

Essas histoacuterias biograacuteficas pertencem a uma seacuterie de narrativas denominada Makers of History

Com a seacuterie Abbott pretendia fornecer aos leitores um relato preciso e fiel das vidas e accedilotildees dos

personagens mais famosos da Histoacuteria O grande problema eacute que seus relatos confiam em demasia

nas fontes histoacutericas No caso de Nero por exemplo ele acredita piamente nos discursos negativos

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e natildeo os critica 80

ABBOTT 1958 p 213 81

ABBOTT 1958 p 208 82

Cf Anexo B com o mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero 83

ABBOTT 1958 p 215

42

ganham domiacutenio sobre a alma humana84

Natildeo demorou muito entatildeo para que a

sua extravagacircncia e profusatildeo despertassem nas altas categorias sociais a vontade

de destruiacute-lo e substituiacute-lo por Galba um comandante ndash no entendimento da elite

ndash distinto honrado e respeitoso perante as tradiccedilotildees e instituiccedilotildees romanas85

De igual modo Warmington (1924-2013) elucida a excentricidade do

princeps Esse autor comeccedilou os estudos em Claacutessicos e Histoacuteria na Peterhouse

College na Universidade de Cambridge agraves veacutesperas da Segunda Guerra Mundial

Mas infelizmente precisou interrompecirc-los devido agrave convocaccedilatildeo para servir

como oficial do Corpo de Inteligecircncia do Exeacutercito Britacircnico Juntamente a outros

estudantes de Claacutessicos foi enviado para a Austraacutelia com a finalidade de decifrar

transmissotildees de raacutedio japonesas Findada a guerra retornou a Cambridge e obteve

o grau de honras em Claacutessicos e Histoacuteria ganhando o Precircmio Thirlwall86 Depois

assumiu a posiccedilatildeo de Lecturer em Histoacuteria Antiga na Universidade de Bristol

onde publicou obras significativas como A History of the Roman World from AD

138 to 337 e Nero Reality and Legend87

Esse uacuteltimo impresso em 1969 eacute marcado por sua participaccedilatildeo na guerra

uma vez que Warmington destaca dentre vaacuterios aspectos possiacuteveis a fraca

atuaccedilatildeo militar de Nero e sua precaacuteria administraccedilatildeo provincial No livro afirma

que Nero ldquo[] nunca visitou os seus soldados [em campo] e natildeo demonstrava

interesse por elesrdquo88

Os seus encargos se limitavam agrave escolha de governadores

para as proviacutencias em que existiam forccedilas beacutelicas e agrave aprovaccedilatildeo de medidas para

apoiaacute-los caso ocorressem problemas Elucida tambeacutem que a administraccedilatildeo

provincial ficou esquecida havendo uma diminuiccedilatildeo na concessatildeo da cidadania

romana e na fundaccedilatildeo de colocircnias fora da Itaacutelia89

O autor comenta ainda sobre as

84

ABBOTT 1958 p 115-121 85

ABBOTT 1958 p 121 86

O Precircmio Thirlwall foi criado em 1884 pela Universidade de Cambridge em homenagem ao

Bispo Connop Thirlwall Era concedido apenas em anos iacutempares para a melhor e mais original

pesquisa sobre Histoacuteria eou Literatura Britacircnica O vencedor recebia uma medalha e uma quantia

em dinheiro para custear as despesas da sua pesquisa (CAMBRIDGE 2008 p 716-857) 87

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBrian-H-Warmington Acesso em 20

fev 2020 No livro sobre Nero Warmington (1969 p 3) afirma que ldquo[] eacute impossiacutevel

desacreditar em sua totalidade a imagem hostil do soberano na tradiccedilatildeo histoacuterica []rdquo Ainda

assim ele se propotildee a enfrentar o desafio escolhendo a interpretaccedilatildeo tradicional das fontes que

temos sobre o princeps Ou seja ele utiliza majoritariamente Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio

embora tambeacutem use Secircneca em alguns momentos 88

WARMINGTON 1969 p 71 89

WARMINGTON 1969 p 71-72

43

dificuldades financeiras que o soberano impingiu ao Impeacuterio e as suas ambiccedilotildees

autocraacuteticas90

Acerca das primeiras conta-nos que

as reservas de ouro do Tesouro foram rapidamente reduzidas por aumentos repentinos nas despesas [] As uacutenicas alternativas quando se necessitava de mais dinheiro era o aumento da tributaccedilatildeo ou a apreensatildeo da propriedade dos ricos Nero eacute um dos vaacuterios imperadores que foram acusados de condenar homens agrave morte [] para conquistar sua riqueza91

Quanto agraves ambiccedilotildees Nero anuncia um movimento na mesma direccedilatildeo de

Caliacutegula ou seja um impulso de embasar o governo em um poder pessoal com

sanccedilatildeo religiosa Como prova Warmington alega que de 65 em diante esse

primeiro autorizou a produccedilatildeo de moedas em cobre retratando a si mesmo com a

chamada coroa irradiada destinada apenas a imperadores deificados Outra prova

eacute a estaacutetua colossal de si proacuteprio feita pelo artista grego Zenodoro e inserida no

vestiacutebulo da Domus Aurea a qual ldquo[] apoacutes a sua morte precisou de pouca

alteraccedilatildeo para ser transformada em uma imagem do deus-Solrdquo92

Como buscamos deixar claro a partir dos exemplos selecionados a

apreciaccedilatildeo negativa comum desses autores natildeo significa a utilizaccedilatildeo dos mesmos

aspectos para a construccedilatildeo do juiacutezo de cada um Os elementos mobilizados e a

combinaccedilatildeo deles tiveram muita relaccedilatildeo com as experiecircncias pessoais dos autores

e com os contextos particulares em que viveram A nosso ver isso eacute vaacutelido no

geral mas eacute muito mais evidente neste bloco do que em qualquer um dos

seguintes Por isso jaacute deixamos esse ponto demarcado aqui

Nero um bom imperador

Em contrapartida agraves concepccedilotildees negativas temos os trecircs autores dispostos

no segundo grupo Aqui se situam os estudos que veem Nero como um

governante incompreendido pela Histoacuteria e que tentam construir um retrato

positivo representando-o como um princeps desenvolvedor de bons projetos

90

WARMINGTON 1969 p 69 91

WARMINGTON 1969 p 69 92

WARMINGTON 1969 p 121

44

O primeiro autor eacute Henderson (1871-1929) diplomado em Estudos

Claacutessicos no Lincoln College na Universidade de Oxford Durante sua carreira

foi professor de Histoacuteria Antiga na Universidade de Londres e na Universidade de

Cambridge Seus interesses acadecircmicos sempre estiveram direcionados a

temaacuteticas militares compondo livros acerca da histoacuteria das campanhas romanas

fossem as guerras dos romanos contra os povos estrangeiros fossem as guerras

civis Suas obras mais conhecidas satildeo The life and Principate of the Emperor

Nero escrita no ano de 1903 e Civil War and Rebellion in the Roman Empire

AD 69-70 Companion to the lsquoHistoriesrsquo of Tacitus lanccedilado em 190893

Eacute alicerccedilado no vieacutes militarista que Henderson construiu o seu Nero Seu

trabalho sobre o princeps eacute meticuloso e preciso trazendo os principais episoacutedios

da sua vida94

Ele elogia o soberano e cria justificativas para minimizar suas

atrocidades declarando jaacute nas primeiras paacuteginas

Concedemos ao grande imperador toda a nossa admiraccedilatildeo justa

e [] talvez devamos confessar que a nossa visatildeo de historiador sobre Nero pode ser tatildeo inadequada quanto o gosto jornaliacutestico de todas as eras95

Essa admiraccedilatildeo eacute dada por certas qualidades que o autor atribui a Nero

um governante habilidoso e genial cuja administraccedilatildeo teria feito honra ao

veterano mais bem-sucedido Um princeps que escutava de bom grado o conselho

dos seus tutores Secircneca e Burro e que tinha ideias proacuteprias Um soberano que

realizou um governo com coragem e sucesso apesar da preferecircncia artiacutestica em

detrimento dos assuntos de Estado96

Em suma um homem que

93

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyBernard-W-Henderson Acesso em 22

fev 2020 94

O livro de Henderson eacute praticamente uma justificaccedilatildeo Ele comenta repetidamente sobre os

primeiros anos do governo de Nero suas promessas justas ao Senado a sagacidade da sua

administraccedilatildeo provincial entre outros episoacutedios As fontes histoacutericas satildeo tratadas sobretudo do

ponto de vista moral e poliacutetico (RICHARDS 1904 p 57-61) O autor utiliza Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio mas tambeacutem se pauta em outros relatos a exemplo dos de Marcial e Pliacutenio o Velho 95

HENDERSON 1903 p 15 96

HENDERSON 1903 p 76-126

45

[] por treze anos cumpriu um bom serviccedilo ao Estado serviccedilo

esse que natildeo pode ser enterrado sob uma massa esmagadora de iniquidades Os primeiros anos do seu governo foram anos de justiccedila e misericoacuterdia e de uma poliacutetica cuidadosa [] Dentro das fronteiras nenhuma guerra perturbou a paz ateacute o ano de sua morte []97

Fini (1943- ) compartilha da visatildeo elogiosa de Henderson Sem instruccedilatildeo

na aacuterea de Estudos Claacutessicos atua como ensaiacutesta ativista e jornalista em

conhecidos veiacuteculos da imprensa italiana a saber no jornal LrsquoIndipendente e no Il

Fatto Quotidiano Em suas publicaccedilotildees posiciona-se criticamente em relaccedilatildeo a

determinadas ideologias do mundo moderno a exemplo do liberalismo do

marxismo do industrialismo e da democracia representativa98

Acredita que a

contemporaneidade internalizou os piores aspectos do Iluminismo como o

universalismo e o crescimento econocircmico rejeitando a liberdade de expressatildeo e a

democracia direta alcanccedilaacuteveis em aacutereas bastante limitadas Por conta dessas

opiniotildees Fini tem sido acusado por intelectuais italianos de se aproximar da

extrema direita e de simpatizar com o fascismo Trata-se de acusaccedilotildees que a

nosso ver natildeo satildeo desprovidas de embasamento Em alguns artigos do seu blog

pessoal ele afirma que o combate ao fascismo natildeo deveria existir em uma

verdadeira democracia porque isso constituiria uma atitude antidemocraacutetica Em

outros elogia Mussolini como um grande estadista responsaacutevel por desenvolver

projetos urbanos e artiacutesticos monumentais Defende ainda que foi com o Duce

que a Itaacutelia presenciou as uacuteltimas poliacuteticas direcionadas agraves camadas populares

bem como viveu o seu resquiacutecio de sentimento patrioacutetico99

Tal visatildeo de Mussolini fundamenta toda a sua interpretaccedilatildeo do Principado

neroniano exposta no livro Nero ndash O Imperador Maldito Dois Mil Anos de

Mentiras impresso em 1993100

Para o autor Nero foi uma espeacutecie de Duce

97

HENDERSON 1903 p 421-422 98

FINI 2020 99

FINI 2020 100

Ao longo de todo o livro Fini tenta com um senso objetivo revelar quem ldquorealmente foirdquo Nero

e dissipar a sombra que haacute milhares de anos obscurece a sua imagem Para tanto realiza trecircs

operaccedilotildees em primeiro lugar insere Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio no periacuteodo histoacuterico em que

escreveram tentando identificar suas ideologias e verificando as contradiccedilotildees internas em suas

obras em segundo analisa as moedas os achados arqueoloacutegicos as epiacutegrafes as inscriccedilotildees os

papiros e as circulares que irradiavam do centro do Impeacuterio em direccedilatildeo agrave periferia em terceiro

lugar verifica os resultados concretos que o imperador obteve deixando suas inclinaccedilotildees sexuais

de lado (FINI 1993 p 14)

46

melhorado visto que natildeo possuiacutea caracteriacutesticas ditatoriais e racistas O princeps

foi um grande estadista um visionaacuterio o artiacutefice de uma revoluccedilatildeo cultural e um

homem agrave frente de seu tempo Ele sempre recorreu a uma poliacutetica econocircmica em

prol dos menos ricos era muito cauteloso com o dinheiro do eraacuterio nunca pensou

em instituir uma monarquia teocraacutetica encorajou a mentalidade pacifista sempre

caminhava em direccedilatildeo de medidas amenas natildeo era sanguinaacuterio e odiava a guerra

a violecircncia e as execuccedilotildees capitais suportava com paciecircncia os impropeacuterios das

pessoas era tolerante no acircmbito religioso e jamais perdeu o senso dos seus

deveres a despeito do amor pelos espetaacuteculos101

Esse amor segundo Fini natildeo surgiu ao acaso mas foi fruto dos desgostos

poliacuteticos sofridos no iniacutecio do governo A recusa do Senado em aceitar a proposta

da Reforma Fiscal em 58102

e o incidente de Pedacircnio Segundo em 61103

levaram

Nero a se distanciar das atividades administrativas e a procurar introduzir

elementos da menos grosseira e mais civilizada cultura helenista104

Ambos os

eventos ajudaram-no a compreender que qualquer poliacutetica social como chamamos

hoje era impossiacutevel com uma elite que natildeo tolerava nenhum arranhatildeo nos

proacuteprios privileacutegios e nas suas imensas riquezas Foi por isso que ele se

direcionou a plebe ela o entendia o amava e o respeitava Natildeo agrave toa que

durante os quatorze anos do seu reinado o Impeacuterio experimentou um periacuteodo de paz prosperidade e dinamismo econocircmico e cultural que jamais teve ou teria no futuro [] Este imperador muacutesico cantor poeta ator escritor auriga interessado na ciecircncia e na teacutecnica promotor das mais ousadas

exploraccedilotildees autor e admirador de projetos grandiosos foi um unicum e natildeo soacute na histoacuteria do Impeacuterio Romano105

Ainda no caminho laudativo incluiacutemos outro jornalista Holland (1960- )

De origem inglesa e sem formaccedilatildeo historiograacutefica trabalhou por 25 anos no jornal

London Times publicando novelas com temas e personagens variados fantasmas

monstros fadas bruxaria lugares assombrados animais fantaacutesticos e o

Principado de Nero Ademais atuou como editor da Paranormal Magazine e

participou de programas de Raacutedio na BBC que debatiam o mundo sobrenatural

101

FINI 1993 p 52-178 102

Sobre a Reforma Fiscal cf LEVI 1949a p 270-272 103

Acerca do incidente de Pedacircnio Segundo cf BRADLEY 1994 p 108-114 104

FINI 1993 p 91 105

FINI 1993 p 14-15

47

Hoje trabalha como editor independente de um site dedicado a fantasmas

folcloacutericos britacircnicos e eacute coautor de um aplicativo localizador de assombraccedilotildees

Portanto tem uma carreira alicerccedilada em discussotildees controversas e na produccedilatildeo e

venda de best-sellers ndash a tatildeo conhecida literatura de massa106

O Nero concebido por Holland no livro Nero The Man Behind the Myth

lanccedilado em 2000 eacute uma figura editorial criada com o intuito de despertar o maior

interesse possiacutevel nos leitores107

O autor faz questatildeo de ser bem polecircmico em sua

escrita afirmando que o mundo deveria pedir desculpas ao princeps108

pois ele

foi ldquo[] mais libertaacuterio do que opressor [] a sua poliacutetica consistia em lsquofazer

amor e natildeo guerrarsquo e [] ele se tornou [] o primeiro grande pop star da

Histoacuteriardquo109

Ele prossegue com as afirmaccedilotildees impactantes assegurando que Nero

era um homem e natildeo um monstro que era um grande populista que natildeo tinha

gosto pela crueldade que desprezava as categorias sociais na escolha dos amigos

e que queria tornar o mundo um lugar mais bonito110

Sua administraccedilatildeo consistia

[] em manter a paz e a harmonia dentro das fronteiras restringindo a atividade militar a um miacutenimo necessaacuterio preferindo a diplomacia agrave guerra Sua poliacutetica domeacutestica [] baseava-se em evitar o assassinato de qualquer forma mantendo as pessoas felizes e tentando elevar suas visotildees para o

que ele considerava serem as melhores coisas da vida ndash muacutesica poesia artes visuais e delitos eroacuteticos111

Nero entatildeo eacute visto erroneamente como o maior vilatildeo da histoacuteria sustenta

Holland Conquanto fosse excessivo em tudo o que fizesse nunca torturou

ningueacutem e soacute cometeu assassinatos quando se sentiu ameaccedilado Na verdade ele

era bem mais moderado do que as fontes antigas demonstram

106

HOLLAND 2002 107

No livro o autor defende que Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ao escreverem sobre Nero natildeo

contaram necessariamente mentiras diretas mas ficaram felizes em tratar boatos como fatos ou em

inventar palavras para colocar na boca das pessoas Esse meacutetodo foi reconhecido no Mundo

Antigo como sendo natural agrave arte da retoacuterica cujo propoacutesito natildeo eacute simplesmente informar mas

persuadir (HOLLAND 2000 p vi) 108

Em entrevista ao jornal Independent antes do lanccedilamento do seu livro Holland afirmou ldquo[]

Natildeo estou tentando calar Nero Soacute quero esclarecer as coisasrdquo (MENDICK THOMPSON 2000) 109

HOLLAND 2000 p vii 110

HOLLAND 2000 p xii 5 77 214 111

HOLLAND 2000 p 10

48

Nos primeiros oito anos do seu reinado o nuacutemero total de

homiciacutedios foi quatro duas mulheres e dois homens sua matildee sua esposa seu cunhado e um primo Em cada caso ele tentou outras soluccedilotildees ao inveacutes do assassinato durante [] anos [] [] Este registro de quatro assassinatos confirmados em oito anos todos confinados ao mesmo grupo familiar natildeo eacute a marca de um homicida monstruoso [] mas a reaccedilatildeo demorada de um

governante cauteloso que sabe que se ele for esfaqueado nas costas seraacute por um dos seus parentes ou amigos []112

Em siacutentese os dois grupos expostos ateacute agora explicitaram uma polaridade

de percepccedilotildees sobre Nero ora o imperador eacute cruel e sanguinaacuterio ora eacute beneacutevolo e

exemplar Os autores em geral parecem estar mais preocupados em compor uma

reconstruccedilatildeo imaginaacuteria e apaixonada do passado do que em tentar apreendecirc-lo

sob uma perspectiva de fato histoacuterica Aiacute reside um problema de anaacutelise das

fontes Sob nossa perspectiva os escritores fazem um exame superficial e

limitado delas ndash sobretudo de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio ndash tendendo a seguir

os seus planos narrativos e a ignorar os contextos e os interesses existentes por

detraacutes de cada uma Juntamente a isso desenvolvem uma interpretaccedilatildeo a partir de

concepccedilotildees pessoais e modernas gerando anacronismos prejudiciais agraves suas

obras logo oferecem uma reavaliaccedilatildeo da vida e da personalidade de Nero no

lugar de um estudo focado no periacuteodo histoacuterico que condicionou as evidecircncias

literaacuterias e o soberano

Ademais as obras examinadas obviamente estatildeo vinculadas agrave forma

polecircmica jaacute consolidada na literatura especializada de avaliar muito

negativamente o governo neroniano Poreacutem percebemos entre elas uma visatildeo

comum de indignaccedilatildeo com a aristocracia romana que criticava o soberano mas

que natildeo era em nada melhor do que ele De forma difusa os autores mostram uma

desconfianccedila em relaccedilatildeo ao que parecia ser uma opiniatildeo geral fruto de distorccedilatildeo e

de interesses inconfessaacuteveis

Por fim eacute necessaacuterio destacar que as produccedilotildees analisadas nos dois grupos

iniciais foram redigidas ou por historiadores mais antigos ou por jornalistas Os

escritores da primeira categoria ignoram a noccedilatildeo de Histoacuteria como uma

construccedilatildeo relativamente arbitraacuteria e os da segunda usam a noccedilatildeo da Histoacuteria

como fonte de uma verdade ignorada pelo senso comum Essa uacuteltima concepccedilatildeo

112

HOLLAND 2000 p 142

49

ainda eacute bastante popular entre os natildeo especialistas e desperta grande curiosidade

na imprensa especialmente hoje em tempos de grande impulso de todas as

formas de negacionismo Doravante falaremos dos grupos mais heterogecircneos dos

que priorizam abordagens temaacuteticas ou aspectos especiacuteficos das fontes literaacuterias

Vejamos portanto o terceiro grupo nomeado Nero o imperador fantoche

Nero o imperador fantoche

Os nove autores alocados nesse grupo natildeo estatildeo interessados em verificar

se Nero era bom ou mau mas sim em analisaacute-lo como um princeps manipulaacutevel

O argumento central eacute o de que a administraccedilatildeo do soberano foi positiva ou

negativa consoante as influecircncias recebidas Isso significa que Nero fez um bom

governo enquanto esteve sob a influecircncia de bons conselheiros a exemplo de

Secircneca e Burro e fez um mau governo enquanto esteve sob a influecircncia de maus

conselheiros ndash no caso Agripina Tigelino e Popeia Essa eacute a visatildeo mais comum

nos estudos sobre Nero ainda que natildeo seja a mais popular entre o puacuteblico

Inseridos nessa perspectiva temos a obra Vida e Eacutepoca de Nero elaborada

em 1956 pelo jornalista italiano Franzero113

o manual Historia de Roma escrito

no ano 1989 pelos espanhoacuteis Roldaacuten Blaacutezquez e del Castillo professores da

Universidade Complutense de Madrid e da Universidade de Alicante114

e o livro

Histoacuteria de Roma composto em 2003 por Grimal ex-catedraacutetico da

Universidade de Sorbonne115

Existem tambeacutem outras produccedilotildees mais

reconhecidas no meio acadecircmico cuja abordagem concede maior atenccedilatildeo agraves

fontes literaacuterias e aos demais tipos de evidecircncias histoacutericas Eacute delas que

trataremos agora

A obra de Weigall (1880-1934) eacute a primeira da lista Esse autor apesar de

natildeo possuir instruccedilatildeo a niacutevel superior foi um grande apaixonado pelo Mundo

Claacutessico exercendo a funccedilatildeo de pesquisador de antiguidades egiacutepcias no iniacutecio do

113

Franzero (1958 p 104) afirma que durante a supervisatildeo de Secircneca e Burro a administraccedilatildeo

imperial foi muito satisfatoacuteria ldquoOito anos de paz haviam permitido ao Impeacuterio desenvolver ao

maacuteximo os seus recursos Secircneca e Burro guiavam com matildeo leve o governo imperial Roma

dominava o mundo sem oprimi-lordquo 114

Para os professores foi somente com a influecircncia de Secircneca e Burro que Nero conseguiu gerir

o Impeacuterio de modo beneacutefico assegurando agrave aristocracia senatorial o respeito ao seu status

econocircmico e social (BLAacuteZQUEZ DEL CASTILLO ROLDAacuteN 1989 p 151) 115

Grimal (2008 p 97) diz que sob a influecircncia de Secircneca e de Burro Nero cumpriu as

promessas que tinham sido feitas em seu nome respeitando os privileacutegios senatoriais

50

seacuteculo XX bem como de cenoacutegrafo jornalista e escritor de guias de viagens

roteiros cinematograacuteficos romances e biografias histoacutericas Dentre suas vinte e

quatro publicaccedilotildees destacamos o roteiro do filme Burning Sands lanccedilado em

1922 e o livro Nero Emperor of Rome redigido em 1930116

Ao lermos esse

uacuteltimo verificamos que Weigall muitas vezes ignora a cronologia das fontes

histoacutericas quando ela serve ao seu propoacutesito e tambeacutem considera o discurso

taciteano como verdade absoluta117

Isso fica evidente na apresentaccedilatildeo dos

personagens que dominaram Nero pois o seu Secircneca o seu Burro a sua Agripina

o seu Tigelino e a sua Popeia satildeo sujeitos bons e maus segundo os relatos do

historiador antigo

O autor acredita que as interferecircncias ruins na vida de Nero comeccedilaram

desde antes do seu nascimento com a instaacutevel e licenciosa famiacutelia dos

Aenobarbi118 O pai do imperador Cneu Aenobarbo e sua matildee Agripina foram

tatildeo corruptos e imorais que nunca deram bons exemplos ao filho Para piorar

Nero viveu a sua infacircncia sob o governo do seu tio Caliacutegula um ambiente vicioso

que moldou de maneira danosa os primeiros traccedilos da sua personalidade119

O

grande problema poreacutem foi Agripina afirma Weigall Sedenta pela manutenccedilatildeo

do filho no poder ela edificou um projeto de princeps divergente daquilo que

Nero pensava para si Ela queria fazer dele um ldquohipoacutecrita convencionalrdquo pelo

ldquobem de Romardquo e pela ldquogloacuteria da casa imperialrdquo Ela era incapaz de compreender

o temperamento do soberano exercendo um domiacutenio tatildeo amplo sobre ele que fez

despertar nele coisas ruins Assim as saiacutedas noturnas de Nero e seu gosto pela

muacutesica tatildeo criticados foram na praacutetica respostas agraves vontades austeras da matildee120

Em contraste Secircneca e Burro sempre aguccedilaram o melhor visto que eram

uma ldquoboa combinaccedilatildeordquo121

De um lado estava

116

HANKEY 2001 p 5-53 No livro Weigall utiliza uma gama de fontes antigas bastante

variada dando-nos uma visatildeo bem completa de Nero Por exemplo ele usa os relatos contidos na

Octauia no Bellum Judaicum nas Antiquitates Judaicae nas Siluae na Naturalis Historia no De

Vita Caesarum na Historia Romana e principalmente nos Annales 117

GEER 1931 p 51 118

Os Aenobarbi eram assim chamados por causa de suas barbas ruivas (Suet Nero 1) 119

WEIGALL 1930 p 25-36 120

WEIGALL 1930 p 81-115 121

WEIGALL 1930 p 99

51

[] o cortecircs Secircneca com sua habilidade diplomaacutetica de lidar

com as pessoas sua consideraccedilatildeo filosoacutefica e ponderada por todos os direitos dos homens e sua adesatildeo natildeo muito riacutegida aos princiacutepios estoacuteicos [de outro estava] o honesto Burro com sua lealdade contundente sua disciplina militar e sua habilidade de comandar a devoccedilatildeo do exeacutercito122

Enquanto esteve sob a autoridade deles o princeps diminuiu os impostos

evitou o desperdiacutecio de vidas manteve uma relaccedilatildeo cordial com o Senado e

aprovou leis para retirar os indiviacuteduos da opressatildeo123

Os trecircs proacuteximos autores Scullard (1903-1983) Grant (1954-2004) e

Bishop (1959-1981) seratildeo debatidos em conjunto porquanto fazem a mesma

abordagem das fontes O primeiro deles foi um historiador britacircnico formado em

Estudos Claacutessicos pelo St Johnrsquos College na Universidade de Cambridge Foi

tambeacutem professor de Histoacuteria Antiga no Kingrsquos College na Universidade de

Londres onde editou o renomado Oxford Classical Dictionary De todas as suas

produccedilotildees a mais conhecida eacute From the Gracchi to Nero A History of Rome from

133 BC to AD 68 divulgada em 1959124

O segundo fez formaccedilatildeo em Estudos

Claacutessicos no Trinity College na Universidade de Cambridge Especializou-se em

Numismaacutetica Antiga desenvolvendo pesquisas inovadoras acerca das moedas

romanas as quais ele argumentava serem um registro social viacutevido do Impeacuterio

Ocupou a cadeira de Ciecircncias Humanas em Cambridge entre os anos de 1948 a

1959 compondo cerca de 70 obras que abrangem desde a traduccedilatildeo dos Annales

ateacute biografias de Juacutelio Ceacutesar e de Nero125

Por seu turno o terceiro foi professor

de Estudos Claacutessicos e Histoacuteria Antiga na Universidade de New England de 1959

a 1981 Foi graccedilas a seus esforccedilos que a aacuterea de Claacutessicos consolidou-se na

Austraacutelia visto que ele ajudou a fortalecer um campo pouco investigado no paiacutes

lanccedilando dois livros Nero The Man and the Legend em 1969 e The Cost of

Power Studies in the lsquoAeneidrsquo of Virgil em 1988126

Os trecircs autores em nosso

entendimento usam as obras de Taacutecito Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio para

produzirem suas proacuteprias narrativas ao mesmo tempo em que tentam cada um a

seu modo comprovar a veracidade dos relatos antigos

122

WEIGALL 1930 p 99 123

WEIGALL 1930 p 82-116 124

WALBANK 1984 p 189-191 125

MARTIN 2004 126

JORDAN 2004 p 101

52

Por exemplo Scullard127

e Grant128

sustentam a ideia de que as tutorias de

Secircneca e Burro trouxeram um momento de bem-estar social para o Impeacuterio O

primeiro autor destaca a otimizaccedilatildeo da administraccedilatildeo financeira e do

fornecimento de gratildeos para Roma129

O segundo salienta as melhorias na gestatildeo

do tesouro e na ordem puacuteblica com ldquo[] provisotildees contra falsificaccedilotildees e

instruccedilotildees de que os governadores de proviacutencias e seus oficiais natildeo deveriam dar

espetaacuteculos gladitoriais ou de bestas selvagens []rdquo130

Ambos defendem tambeacutem

ndash semelhantemente a Weigall ndash a nocividade de Agripina para Nero

argumentando que sua presenccedila dominadora o impedia de dirigir natildeo soacute o Impeacuterio

como a proacutepria vida Ele odiava a influecircncia que a sua matildee tinha sobre ele e

estava ansioso para emancipar-se de sua ascendecircncia psicoloacutegica O matriciacutedio

entatildeo eacute apontado pelos autores como algo compreensiacutevel e justificaacutevel131

Bishop tambeacutem defende a noccedilatildeo da maacute influecircncia de Agripina132

Ele

atribui a culpa das accedilotildees ruins do soberano agrave matildee cuja ganacircncia insaciaacutevel

dominava a mente e o Principado do filho Nero ldquo[] se tornou o peatildeo de uma

matildee ambiciosa []rdquo e permaneceu como o foco de uma das mulheres mais

controladoras da histoacuteria133

Na avidez de tornaacute-lo princeps ela suprimiu vaacuterios

potenciais rivais mandando assassinar Juacutenio Silano tataraneto de Augusto

Narciso o fiel liberto de Claacuteudio e o proacuteprio imperador Claacuteudio envenenado por

cogumelos134

Essa matanccedila toda de acordo com o autor ocorreu quando Nero

127

Concordamos com Rathbone (2010 p xxvi) quando ele alega que ldquoa visatildeo geral de Scullard

sobre a Histoacuteria Romana estaacute fundamentada no Liberalismo do iniacutecio do seacuteculo XXrdquo Um

Liberalismo que aceita a conquista em nome da paz e da prosperidade e defende a condenaccedilatildeo do

controle estadista em prol da liberdade individual Nesse sentido Scullard critica as accedilotildees do

Senado durante a Repuacuteblica argumentando que o Conselho era extremamente burocraacutetico e natildeo

representativo da vontade do povo taxando em demasia as proviacutencias e a plebe ndash uma maacute

administraccedilatildeo que soacute foi retificada com a chegada do Impeacuterio a partir das boas decisotildees de

Augusto Tibeacuterio Claacuteudio e dos conselheiros de Nero Secircneca e Burro que promoveram o bem-

estar das proviacutencias Eacute importante frisar que essa visatildeo de Scullard sobre o Principado de Nero eacute pautada natildeo soacute no uso dos trecircs autores mais recorrentes mas tambeacutem no da numismaacutetica 128

Para construir sua representaccedilatildeo de Nero Grant vai aleacutem das narrativas de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio recorrendo agraves inscriccedilotildees epigraacuteficas e agraves moedas O resultado eacute um livro lindamente

montado com vaacuterias moedas estaacutetuas bustos e pinturas 129

SCULLARD 2010 p 258 130

GRANT 1970 p 59 131

SCULLARD 2010 p 259 GRANT 1970 p 74 132

Adotamos a visatildeo de Crook (1965 p 364-365) a respeito do livro de Bishop sua histoacuteria eacute a de

Nero e natildeo a do Impeacuterio Seu livro eacute essencialmente uma reescrita das fontes antigas com uma

linguagem menos polida O uso de Taacutecito em especiacutefico eacute exacerbado e pouco criacutetico Ademais a

obra estaacute cheia de clichecircs todas as mulheres parecem ser bastante ldquoespirituosasrdquo exceto Otaacutevia

que ldquovivia nas sombrasrdquo 133

BISHOP 1964 p 192-193 134

BISHOP 1964 p 11-33

53

era bem jovem situaccedilatildeo que o fez enxergar o homiciacutedio como algo comum Para

ele o assassinato

[] era uma arma com a qual ele jaacute estava acostumado desde a infacircncia se natildeo por experiecircncia pessoal por meio do testemunho vicaacuterio de muita coisa que se passava ao seu redor [] O assassinato era um meacutetodo conveniente de remover os seus inimigos [] Ele viu seu proacuteprio padrasto eliminado por

sua matildee para abrir caminho para ele Seu proacuteprio uso dessa arma fatalmente faacutecil deve ter parecido natural quando a ocasiatildeo exigiu isso135

Enfim as atitudes sanguinaacuterias de Nero satildeo resultantes da cobiccedila de

Agripina por poder Isso faz com que a sua peacutessima reputaccedilatildeo mereccedila ser

reconsiderada pela Histoacuteria afinal ele se tornou o peatildeo de uma matildee ambiciosa

que o fez imperador

A partir desse momento ele vivia como ela queria Sua vida pessoal estava arruinada mas grande parte do seu povo o considerava um governante consciencioso para seus interesses e

muitos lamentaram sua morte precoce Nenhuma outra explicaccedilatildeo pode ser verdade pois seu retorno foi esperado com alegria136

Tempos depois Griffin (1935-2018) uma das principais estudiosas sobre

Nero entrou nesse debate Com uma trajetoacuteria educacional admiraacutevel conquistou

o bacharelado em Filosofia Claacutessica na Universidade Columbia em 1956 No

mesmo ano ingressou no mestrado na Universidade de Harvard e ao terminaacute-lo

cursou o doutorado com bolsa Fulbright na Universidade de Oxford sob

orientaccedilatildeo de Syme Finalizada a formaccedilatildeo assumiu em 1967 a cadeira de

Histoacuteria Antiga no Sommerville College na Universidade de Oxford posiccedilatildeo que

exerceu com excelecircncia ateacute 2002137

No decorrer da sua carreira Griffin desempenhou um papel crucial na

apreciaccedilatildeo da escrita filosoacutefica dos antigos romanos em particular a de Secircneca

redigindo livros relevantes como Seneca a Philosopher in Politics no ano de

1967 Aleacutem da temaacutetica filosoacutefica pesquisou a dinastia imperial Juacutelio-Claudiana

135

BISHOP 1964 p 185-186 136

BISHOP 1964 p 192-193 137

EDWARDS 2018

54

com ecircnfase no imperador Nero Em sua biografia Nero The End of a Dynasty

divulgada em 1984 propotildee-se a investigar duas questotildees i) o caraacuteter do soberano

e o modo como ele foi afetado por circunstacircncias particulares e pelo conselho de

outros e ii) as pressotildees intriacutensecas ao Principado as quais condicionavam a

conduta de qualquer governante Essas questotildees fizeram-na classificar o seu livro

como hiacutebrido pois eacute tanto biograacutefico na medida em que se concentra na

personalidade do imperador quanto histoacuterico dado que analisa a sua queda em

termos da sua interaccedilatildeo com o sistema poliacutetico Logo a parte I da sua obra

denominada Nerorsquos Principate destina-se agrave pesquisa biograacutefica e a parte II

intitulada Post-Mortem on the Fall of Nero ao exame histoacuterico138

Tal diferenccedila

de foco ocasionou a disposiccedilatildeo das suas ideias em locais distintos do nosso texto

sendo a parte I discutida aqui no terceiro grupo e a parte II no quinto

Diferente de Weigall de Scullard de Grant e de Bishop Griffin natildeo toma

os relatos das fontes histoacutericas como imediatamente vaacutelidos e nem tenta justificaacute-

los seu objetivo eacute averiguar a documentaccedilatildeo questionando as narrativas e

contextualizando-as dentro do sistema poliacutetico Por exemplo a primeira duacutevida do

seu texto na parte I repousa na independecircncia e no interesse do soberano pela

tarefa imperial ldquodevemos acreditar em Diatildeo Caacutessio que Nero deixou as decisotildees

para os outros ou em Suetocircnio que ele estava no controle total ou em Taacutecito de

que ele era ativo sob orientaccedilatildeordquo139

Como resposta alega ser perverso assumir a

passividade poliacutetica do imperador nas boas iniciativas Sua determinaccedilatildeo e seu

compromisso com a promoccedilatildeo das artes sugerem que ele ldquo[] natildeo poderia ter sido

totalmente dominado por seus conselheiros []rdquo e que teria sido capaz de tomar

um interesse ativo em outros aspectos mais convencionais do governo140

A segunda duacutevida do seu livro recai sobre o domiacutenio de Secircneca e Burro

ldquoqual teria sido a natureza e a duraccedilatildeo da influecircncia dos conselheirosrdquo A

resposta se vincula ao assassinato de Agripina Para Griffin tanto Secircneca quanto

Burro deviam suas posiccedilotildees a ela porquanto Secircneca tornou-se conselheiro do

138

Tendo em vista que para Griffin (2001 p 16-17) ldquoo evento mais importante do reinado de

Nero foi seu colapsordquo a ecircnfase do seu livro estaacute necessariamente no sistema e no envolvimento do

governante nele e natildeo no proacuteprio indiviacuteduo e seu meacutetodo eacute temaacutetico em vez de estritamente

analiacutetico O resultado eacute uma anaacutelise minuciosa e persuasiva um trabalho soacutebrio atencioso e

confiaacutevel A autora problematiza bastante as fontes antigas dando atenccedilatildeo especial agraves narrativas

de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio e em algumas ocasiotildees agraves de Secircneca Ela tambeacutem investiga

documentaccedilatildeo epigraacutefica e numismaacutetica 139

GRIFFIN 2001 p 40 140

GRIFFIN 2001 p 43

55

jovem princeps em 49 e Burro virou o uacutenico Prefeito da Guarda Pretoriana de

Roma em 51 Por isso nunca foram a favor de mataacute-la a despeito da sua peacutessima

interferecircncia Essa oposiccedilatildeo provocou uma quebra de confianccedila na relaccedilatildeo com o

princeps a qual jamais foi restaurada Quando Nero percebeu que havia efetivado

o matriciacutedio sem a ajuda dos dois viu que natildeo precisava mais deles o que

enfraqueceu o controle positivo dos tutores141

A partir daiacute a autora discorre sobre o Turning Point (Ponto da Virada)

momento em que a influecircncia de Secircneca e de Burro de fato desapareceu e

surgiram parceiros ruins Nessa loacutegica apresenta a terceira pergunta da sua obra

ldquoquando ocorreu a descida de Nero agrave tiraniardquo Ela demonstra que Suetocircnio natildeo eacute

muito uacutetil em dar uma data Taacutecito opta pelo falecimento de Burro e a ascensatildeo de

Tigelino em 62 e Diatildeo Caacutessio seleciona os homiciacutedios de Britacircnico em 55 e o de

Agripina em 59 Com base nesses dados formula sua proacutepria soluccedilatildeo a descida agrave

tirania se inicia em 62 com o divoacutercio e o assassinato de Otaacutevia Os dois eventos

causaram o rompimento da ligaccedilatildeo de Nero com Claacuteudio e com a dinastia Juacutelio-

Claacuteudia a qual legitimava a sua posse do trono Trata-se de um rompimento

seguido pelo controle de Tigelino e Popeia que passaram a encorajar o

exibicionismo como um meio para a popularidade e a repressatildeo como um antiacutedoto

para o medo142

O uacuteltimo autor do grupo Shotter (1939- ) ratifica o posicionamento de

Griffin acerca da interferecircncia nociva de Tigelino Professor emeacuterito de Histoacuteria

do Impeacuterio Romano na Universidade de Lancaster ele eacute um pesquisador

especialista nas dinastias Juacutelio-Claudiana e Flaviana com publicaccedilotildees bastante

famosas e comercializadas a exemplo dos livros Nero (1997) Augustus Caesar

(2004) e The Fall of the Roman Republic (2005)143

Em relaccedilatildeo agrave obra Nero Shotter escreveu uma biografia com a intenccedilatildeo de

atingir um puacuteblico leigo dado que faz uma anaacutelise restrita e pouco criacutetica das

fontes Nesse sentido referencia em poucos momentos a trageacutedia Octauia e as

narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio os mais recorrentes nos estudos do

Principado neroniano144

Aliaacutes o seu uso de tais escritores eacute seletivo porque

141

GRIFFIN 2001 p 67-82 142

GRIFFIN 2001 p 83-118 143

SHOTTER 2002 144

O livro de Shotter pertence a uma seacuterie intitulada Lancaster Pamphlets cujo objetivo eacute oferecer

relatos concisos e atualizados dos principais toacutepicos histoacutericos a fim de ajudar alunos que fazem

56

privilegia os relatos taciteanos a fim de demonstrar que Nero foi um bom

governante enquanto permitiu-se deixar-se guiar e assistir por homens de

consideraacutevel capacidade145

O autor alega que durante o controle de Secircneca e de Burro o Principado

seguiu um vieacutes moderado paciacutefico e conciliatoacuterio A seguranccedila e a prosperidade

progrediram na maior parte do Impeacuterio graccedilas agraves influecircncias dos tutores na

escolha de bons comandantes militares e governadores de proviacutencias os quais

despendiam forccedilas e os proacuteprios recursos para solucionar os problemas No

entanto a morte de Burro e o afastamento de Secircneca trouxeram agrave cena ldquo[] o

perverso Ofocircnio Tigelino que encarou como sua funccedilatildeo aquiescer aos mais

rasteiros instintos de Nerordquo146

Ele incentivou a concretizaccedilatildeo de vaacuterias

atrocidades como as mortes de Rubeacutelio Plauto e de Fausto Sula levando o

princeps a acreditar que esses homens ndash e muitos outros ndash configuravam uma

potencial rivalidade em virtude das ligaccedilotildees que tinham com a casa imperial147

A ascensatildeo de Tigelino entatildeo causou o decliacutenio do bom governo Mas

natildeo apenas isso as mortes de Agripina de Otaacutevia de Secircneca e de Burro

possibilitaram o desenvolvimento de projetos que estavam abandonados148

Segundo Shotter essas perdas significavam um caminho livre de obstaacuteculos o

qual se afastava das linhas tradicionais delineadas por Augusto149

Era o caminho

dos prazeres culturais e sociais do soberano artista e do monarca heleniacutestico

opccedilotildees que despertaram insatisfaccedilotildees na ordem senatorial e nas tropas150

Em resumo acreditamos que os autores desse bloco ainda que de modo

parcial redigiram suas obras a partir da discussatildeo da tradiccedilatildeo mais comum acerca

do Principado neroniano Eles buscaram estabelecer uma interlocuccedilatildeo entre por

um lado as fontes antigas ndash em especial os Annales de Taacutecito ndash e por outro as

suas apresentaccedilotildees do governo do princeps as quais dividem esse periacuteodo em um

cursos introdutoacuterios nas universidades Para tanto disponibiliza notas e referecircncias adequadas

bem como extensa bibliografia ferramentas essenciais agrave compreensatildeo do Principado neroniano O

grande problema e nesse ponto concordamos com Barrett (2009 p 813) e Ehrhardt (1997 p 5) eacute

que Shotter faz uma discussatildeo rasa de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio natildeo nos dando uma imagem

clara da poliacutetica romana do sistema imperial ou da proacutepria vida e eacutepoca de Nero 145

SHOTTER 2008 p 46-48 146

SHOTTER 2008 p 53 147

SHOTTER 2008 p 54 148

SHOTTER 2008 p 54 149

SHOTTER 2008 p 54 150

SHOTTER 2008 p 142

57

momento inicial de esplendor e um momento final de tirania No final das

contas Nero natildeo era bom ou mau mas o resultado das influecircncias que sofreu

Os verdadeiros Neros

Em contraste com as ideias dos trecircs grupos expostos o quarto grupo busca

a essencialidade do soberano Os verdadeiros Neros satildeo representados por aqueles

que tentam encontrar o real caraacuteter do princeps e os seus autecircnticos propoacutesitos

governamentais e de vida Ateacute o momento lidamos com as abordagens

metodoloacutegicas inseridas em Nero um mau imperador e em Nero um bom

imperador que fizeram uma reconstruccedilatildeo fantasiosa do passado por meio da

leitura em geral literal de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Ocupamo-nos tambeacutem

dos procedimentos historiograacuteficos dos autores dispostos em Nero um imperador

fantoche os quais embora tenham feito um exame mais criacutetico da documentaccedilatildeo

adotam a versatildeo usual acerca do Principado neroniano De ora em diante

trataremos das interpretaccedilotildees que questionam as fontes e procuram suas

inverdades e contradiccedilotildees visando a construir um retrato mais real Iremos

apresentaacute-las em trecircs sub-blocos o primeiro abordaraacute as caracteriacutesticas

psicoloacutegicas do imperador o segundo versaraacute sobre seu lado artiacutestico e o terceiro

investigaraacute sua relaccedilatildeo com alguns aspectos do Principado Dito isso vamos ao

primeiro sub-bloco composto por trecircs autores

Iniciaremos com Vandenberg (1941- ) um proliacutefico escritor europeu de

livros histoacutericos e biograacuteficos para o grande puacuteblico Formado em Histoacuteria da

Arte e Histoacuteria Germacircnica na Universidade de Munique trabalhou por diversos

anos como jornalista nas revistas Quick e Playboy Em 1975 iniciou a redaccedilatildeo da

sua imensa seacuterie de livros publicando Ramseacutes II (1977) Nero (1981) Os

Conspiradores de Pedro (2006) entre outros Suas obras jaacute alcanccedilaram um total

de 25 milhotildees de coacutepias divulgadas em 34 idiomas e satildeo classificadas pelas

grandes livrarias mundiais como parapsicoloacutegicas ou seja satildeo parte da literatura

que expressa o subconsciente os transtornos e a histeria dos personagens O seu

58

Nero eacute entatildeo uma reflexatildeo sobre o estado mental do soberano e sobre o modo

como suas patologias se manifestavam151

Ao se basear especialmente nos relatos morais de Suetocircnio Vandenberg

argumenta que as atitudes do princeps precisam ser lidas a partir do exame dos

ancestrais da domus152 Juacutelio-Claacuteudia ldquohaveria nessas duas antiquiacutessimas famiacutelias

casos de anomalia mentalrdquo153

Ele responde apresentando pesquisas

desenvolvidas por historiadores da Medicina cujos resultados indicam as

tendecircncias bissexuais e a epilepsia de Ceacutesar os complexos fiacutesicos de Augusto a

esquizofrenia de Tibeacuterio a loucura de Caliacutegula e a debilidade mental de Claacuteudio

Era dessa ldquoseara de doidosrdquo que descendia Nero ldquoSeus antepassados pelo lado

paterno os Enobarbos [] eram indiviacuteduos instaacuteveis e desregradosrdquo154

Tal ancestralidade na visatildeo do autor justificaria os comportamentos

exibidos pelo imperador e as situaccedilotildees que lhes deram origem Por exemplo o

medo de novas oposiccedilotildees apoacutes a descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo em 65

levou-o a reforccedilar a guarda e a exterminar quaisquer possiacuteveis rivais155

Essa

atitude ndash e diversas outras ndash deve ser lida como uma consequecircncia da opressatildeo

sentida por um jovem inseguro sentado no trono

Todos esses comportamentos satildeo humanos e podem ser explicados [] Por isso natildeo se pode definir Nero como um

deacutebil mental ou um esquizofrecircnico Do ponto de vista psicopatoloacutegico os historiadores da medicina colocam Nero quando muito na categoria dos maniacuteacos A mania provoca uma necessidade de atividades em excesso fortalece os instintos suscita a fuga das ideias e a supervalorizaccedilatildeo do ego Nero nunca foi louco Mas entatildeo o que foi ele Um joguete da Histoacuteria156

151

VANDENBERG 1987 p 303 O livro de Vandenberg eacute um romance histoacuterico O autor usa os

textos de Taacutecito de Diatildeo Caacutessio e sobretudo de Suetocircnio para narrar com detalhes minuciosos

os episoacutedios da vida de Nero Em alguns momentos inclusive ele apresenta informaccedilotildees sobre o

princeps que natildeo estatildeo disponiacuteveis nas fontes O curioso eacute que apesar disso Vandenberg possui a

criticidade de entender que o cunho negativo da imagem de Nero deve-se ao modo como as fontes

foram transmitidas e ao contexto no qual estava inserido cada autor que as escreveu 152

De acordo com Saraiva (2006 p 393) o vocaacutebulo domus tinha diversos significados mas os

que se aplicam aqui satildeo ldquocasardquo ldquomoradardquo e ldquofamiacuteliardquo 153

VANDENBERG 1987 p 270 154

VANDENBERG 1987 p 270-273 155

VANDENBERG 1987 p 278 156

VANDENBERG 1987 p 278

59

Tempos depois Auguet (1935-1994) e Cazenave (1942-2018) aprofundam

o raciociacutenio psicoloacutegico O primeiro foi um jornalista especializado em Ciecircncias

Sociais e produtor na Radio-France com forte interesse na aacuterea de Histoacuteria

Antiga Entre os anos de 1974 e 1984 compocircs os ensaios Os Jogos Romanos e

Caliacutegula157

O segundo foi filoacutesofo radialista escritor e um apaixonado pela

psicanaacutelise especialista na obra de Carl Jung De 1984 a 2005 presidiu o Grupo

de Estudo Carl Jung de Paris e o Ciacuterculo Francoacutefono de Reflexatildeo e Informaccedilatildeo

sobre o trabalho do mesmo Seu fasciacutenio por Jung eacute refletido em muitas de suas

produccedilotildees como no Pequeno Dicionaacuterio do Amor Louco (2005) e Jung e os

Religiosos (2012)158

Esse mesmo fasciacutenio adentra tambeacutem a obra Os Imperadores Loucos

Ensaio de Mito-anaacutelise Histoacuterica elaborada em 1981 Nela Cazenave em

parceria com Auguet propotildee uma nova forma de fazer Histoacuteria a Histoacuteria

Etioloacutegica construiacuteda sobre alicerces independentes e em constante interaccedilatildeo Os

alicerces satildeo o poliacutetico o econocircmico o morfoloacutegico e o arquetipoloacutegico cuja

existecircncia se associa agrave psicanaacutelise de Jung Eacute no uacuteltimo que eles insistem a fim de

introduzirem na disciplina histoacuterica a dupla hipoacutetese de ldquoarqueacutetipos da

sociabilidaderdquo e de manifestaccedilotildees de uma ldquorealidade psiacutequica objetivardquo159

A

investigaccedilatildeo arquetipoloacutegica ldquo[] exige que o observador se situe no acircmago da

dinacircmica do arqueacutetipo estudado tornando-se deste modo como o fiacutesico quacircntico

ou o analista junguiano um participante na realidade que persegue []rdquo160

Eacute a partir desse ponto de vista que avaliam Nero perseguindo sobretudo

a narrativa suetoniana sobre o que eacute dito acerca dele161

Para os autores se

quisermos entender o imperador precisamos captar como ele pensava o seu

mundo e um dos principais elementos para tanto reside na religiatildeo visto que ele

tentou se fazer reconhecer como um deus162

157

Disponiacutevel em httpswwwidreffr026696401 Acesso em 24 fev 2020 158

CAZENAVE 2019 159

AUGUET CAZENAVE 1995 p 14-15 160

AUGUET CAZENAVE 1995 p 17 161

Aceitamos a visatildeo de Oliveira (1996 p 368) sobre o trabalho de Auguet e Cazenave ldquo[] aqui

estaacute um livro escrito com inteligecircncia e arguacutecia diria ateacute com alguma paixatildeo com paacuteginas

interessantes para serem lidas por quem se interessa por coisas romanas dispotildee de algum juiacutezo

criacutetico e gosta de controveacutersia Uma tentativa de reabilitaccedilatildeo pela mito-anaacutelise das figuras dos

imperadores loucos []rdquo com o propoacutesito de mostrar que eles natildeo eram tatildeo loucos assim

Todavia acreditamos que os autores empregam os relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio da

maneira que convecircm agrave sua anaacutelise criticando-os ou natildeo apenas quando julgam necessaacuterio 162

AUGUET CAZENAVE 1995 p 150-151

60

De acordo com Auguet e Cazenave a divindade de Nero afirma-se desde a

sua origem em Acircncio no ano 37 quando foi tocado pelos raios do sol ao

nascer163

Para os antigos egiacutepcios nascer ao romper do sol era equivaler

simbolicamente ao deus-sol Raacute e ser o seu representante o ldquoungido do Senhorrdquo

A ressonacircncia egiacutepcia e o fundamento solar divino se fortalecem no momento em

que Nero se torna imperador e adere aos misteacuterios do Masdeiacutesmo graccedilas agrave

influecircncia de Tiridates164

Entre as divindades cultuadas nessa religiatildeo estava

Anahita deusa do amor e da fertilidade a qual era adorada por Nero e foi

associada em Roma agrave deusa Cibele165

Nessa via de interpretaccedilatildeo falar da adoraccedilatildeo a Cibele eacute exatamente o que

permite dar sentido agraves atitudes do soberano Consideremos um episoacutedio que os

autores retiram de Suetocircnio o casamento com o liberto Esporo em 66 O

imperador exigiu a castraccedilatildeo do liberto vestiu-o de mulher mandou-o vir com o

seu dote e o seu veacuteu alaranjado num cortejo e o tomou como sua esposa Tal cena

embora grotesca era a mesma de um dos rituais a Cibele166

Auguet e Cazenave

explicam que uma parte do ritual consistia na castraccedilatildeo de jovens que apoacutes se

mutilarem com facas jogavam as partes iacutentimas ensanguentadas sobre a estaacutetua

da deusa passando depois a se vestirem com roupas femininas e a cultivarem

cabelos longos O enlace com Esporo portanto foi uma tentativa neroniana de se

aproximar da deusa Cibele o que suplantava uma simples atitude violenta

afirmam os autores167

A verdade eacute que se o princeps fosse lido de modo

adequado deixaria de ser um monstro ridiacuteculo e odioso Ele foi louco idiota e

canalha mas pode ter sido tambeacutem qualquer coisa de extremamente

extraordinaacuterio Os estudiosos precisam ir aleacutem dos testemunhos das fontes que

ignoram os motivos religiosos em prol da oposiccedilatildeo poliacutetica Essa eacute uma

interpretaccedilatildeo pobre que negligencia o contexto real das disputas pelo poder e

163

AUGUET CAZENAVE 1995 p 151 164

AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Fundada na antiga Peacutersia pelo profeta Zoroastro o

Masdeiacutesmo tambeacutem chamado de Zoroastrismo era uma religiatildeo dualista que ensinava o eterno

combate entre as potecircncias sobrenaturais do bem e do mal O culto girava em torno das forccedilas e

deuses da aacutegua e do fogo (BOYCE 2001 p 3-12) 165

AUGUET CAZENAVE 1995 p 153 Sobre o culto a Cibele cf SILVA 2021 p 1-22 166

AUGUET CAZENAVE 1995 p 155 167

AUGUET CAZENAVE 1995 p 156

61

reteacutem apenas alguns siacutembolos de alcance praacutetico da Histoacuteria romana sem

verdadeiro e obscuro conteuacutedo psiacutequico168

O debate psicoloacutegico finaliza aqui com Beato (1935- ) docente de Latim

da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Licenciado em Filologia

Claacutessica Mestre e Doutor em Literatura Latina pela mesma instituiccedilatildeo eacute autor de

artigos sobre criacutetica literaacuteria divulgados em revistas especializadas Eacute compositor

tambeacutem de uma biografia chamada Nero (2000) de uma traduccedilatildeo das Bucoacutelicas

(2006) de Calpuacuternio Siacuteculo e outra das Confissotildees (2008) de Agostinho169

Ao biografar Nero Beato recorre aos textos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio cujas narrativas fundamentam suas afirmaccedilotildees e conferem credibilidade

ao seu trabalho170

Recorre ainda agrave Psicologia se natildeo apta de redimir Nero dos

muitos crimes que praticou ao menos capaz de integraacute-lo no contexto em que

foram cometidos e assim atenuar a sua responsabilidade Em poucas paacuteginas

delineia o caraacuteter do mais jovem imperador de Roma mostrando-o como um

indiviacuteduo dominado por quatro caracteriacutesticas instabilidade medo duplicidade e

megalomania171

A primeira herdada da famiacutelia materna manifesta-se ao longo

de todo o seu governo

Nas circunstacircncias banais do dia-a-dia bem como nos momentos decisivos da sua governaccedilatildeo ela estaacute sempre em

evidecircncia O contraste que assinala o iniacutecio do seu Principado ndash em que revela um notaacutevel domiacutenio emocional ndash e o fim do mesmo ndash em que demonstra uma total falta de controle ndash prova agrave sociedade o que se acaba de dizer172

A segunda caracteriacutestica adveacutem da infacircncia de Nero devido agrave presenccedila

intimidante de Agripina que o forccedilava a assumir atitudes contraacuterias agrave sua forma

de estar no mundo O soberano infelizmente ldquo[] natildeo foi capaz de vencer o

medo que antes da morte nasceu de si proacuteprio Por isso se lhe rendeu recorrendo

168

AUGUET CAZENAVE 1995 p 209 169

BEATO 2000a p 3 170

O trabalho de Beato estaacute inserido na coleccedilatildeo Vultos da Antiguidade que traz livros curtos

superficiais e com narrativas proacuteximas a um romance dando a conhecer as figuras mais famosas

da Antiguidade Ao escrever sobre Nero o autor analisa as narrativas das trecircs fontes antigas agrave luz

de duas perguntas ldquoi) teratildeo os trecircs bioacutegrafos de Nero recorrido agraves mesmas fontes por certo

restritas para a elaboraccedilatildeo das suas obras e ii) essas fontes seriam as uacutenicasrdquo Eacute com base nelas

que Beato tenta encontrar novos dados sobre o princeps que lhe permitam reformular a opiniatildeo do

leitor sobre Nero (BEATO 2000b p 9) 171

BEATO 2000b p 14 172

BEATO 2000b p 14

62

ao suiciacutediordquo173

A terceira a duplicidade eacute definida por Beato como a marca

central da personalidade imperial Nero foi capaz ao mesmo tempo de usar da

maior liberalidade como da maior avareza Eacute por essa razatildeo que ora ele

proporcionava jogos ao povo e distribuiacutea trigo aos pretorianos ora roubava os bens

das pessoas na escuridatildeo da noite e servia-se do incecircndio de Roma para se

aproveitar da falta de dinheiro mandando fundir as estaacutetuas dos deuses174

A

quarta e uacuteltima caracteriacutestica eacute o aspecto pelo qual o princeps guiava as suas accedilotildees

e pelo qual eacute mais criticado Para Beato

as exibiccedilotildees histriocircnicas a que se presta os esforccedilos que empreende para rebatizar determinadas cidades do Oriente a tentativa que faz para substituir o nome do mecircs de abril pelo de Nero [] satildeo disso um claro testemunho Natildeo menos significativos do que estes fatos satildeo o construir da Domus

Aurea o pescar com redes de ouro e nunca viajar ldquocom menos de mil viaturasrdquo []175

Em resumo dentro do vieacutes psicoloacutegico Nero eacute lido como um homem

cheio de defeitos e dotado de um pesado fardo geneacutetico Desde o seu nascimento

eacute envolvido numa teia de influecircncias imorais e negativas que moldam a sua iacutendole

do pior modo possiacutevel No fim eacute como se todos os defeitos dos Juacutelio-Claudianos

tivessem sido transmitidos a ele e justificassem o seu modo de agir e de pensar A

nosso ver tais abordagens satildeo importantes e merecem ser destacadas ndash ainda que

por boas razotildees sejam pouco aceitas ndash pois elas evidenciam uma faceta essencial

da tradiccedilatildeo da construccedilatildeo dos Neros sua loucura Os autores ao comporem seus

livros em uma eacutepoca em que a medicalizaccedilatildeo da sauacutede mental jaacute havia se

consolidado atribuiacuteram novos sentidos agraves informaccedilotildees das fontes produzindo

interpretaccedilotildees impensaacuteveis para os antigos sobretudo se considerarmos a

historicidade da loucura

A seguir trataremos das obras que datildeo mais ecircnfase aos desejos artiacutesticos

de Nero Elas o representam mais como um artista do que como um imperador

colocando-o no papel de fundador de uma nova ordem mundial quase miacutetica de

revoluccedilotildees esteacuteticas Sob tal oacutetica estatildeo dispostas muacuteltiplas produccedilotildees como o

artigo Nero the Artist Criminal redigido em 1966 por Frazer Jr ex-professor da

173

BEATO 2000b p 14 174

BEATO 2000b p 15 175

BEATO 2000b p 15

63

Universidade de Tulane176

o livro Nero escrito em 1999 por Malitz docente da

Universidade Catoacutelica de Eichstaumltt-Ingolstadt177

a obra Nero Monstro

Sanguinaacuterio ou Imperador Visionaacuterio concebida em 2010 pelo historiador

Schmidt178

e por uacuteltimo o artigo The Performing Prince composto no ano de

2013 por Fantham professora emeacuterita da Universidade de Princeton179

Entre

todos os trabalhos jaacute publicados optamos novamente por dissecar os quatro mais

referenciados nos debates sobre Nero o artista

Nesse cenaacuterio as ideias de Charles-Picard (1913-1998) satildeo um excelente

ponto de partida Filho de um importante helenista desde jovem envolveu-se com

a Antiguidade acompanhando o pai em exploraccedilotildees arqueoloacutegicas por Roma e

Cartago Esse envolvimento despertou a sua vontade de seguir uma carreira na

aacuterea levando-o a se graduar em Histoacuteria em 1938 e a se doutorar em Letras em

1954 ambas as formaccedilotildees feitas na Universidade de Paris-Sorbonne Foi laacute que

atuou como Professor de Histoacuteria e membro do Comitecirc Francecircs de Trabalhos

Histoacutericos e Cientiacuteficos na seccedilatildeo de Arqueologia e Arte Sua educaccedilatildeo e carreira

profissional refletem-se no teor de suas produccedilotildees entre as quais se destacam

LrsquoArt Romain (1962) Architecture Universelle Le Monde Romain (1965) e

Empire Romain (1980)180

A temaacutetica artiacutestica norteia todo o seu livro Auguste et Neacuteron Le Secret de

LrsquoEmpire lanccedilado em 1962 Nele o autor analisa os eventos dos Principados

augustano e neroniano agrave luz da Arqueologia no intuito de construir uma

interpretaccedilatildeo histoacuterica dos monumentos No governo de Nero em especiacutefico

utiliza tambeacutem os relatos de Taacutecito de Suetocircnio e de Diatildeo Caacutessio181

O princeps eacute

176

ldquoNossa anaacutelise do personagem de Nero confirma a imagem que temos de um artista-arsonista e

nos faz questionar se algum dos outros crimes de que eacute acusado mostra o toque do artistardquo

(FRAZER JR 1966 p 18) 177

Malitz (2005 p 40-79) afirma que os interesses artiacutesticos de Nero tomaram muito do seu

tempo e que seu verdadeiro entusiasmo recaiacutea sobre performances artiacutesticas 178

Schmidt (2011 p 9) questiona se apesar dos fracassos Nero natildeo compreendeu muito melhor o

seu tempo do que se tinha pensado tentando reformaacute-lo artisticamente 179

Nesse artigo Fantham (2013 p 17-28) descreve o tipo de atividade esportiva ou artiacutestica que

as monarquias constitucionais modernas consideram aceitaacutevel em um priacutencipe e as compara com

as atividades exercidas pelos priacutencipes Juacutelio-Claudianos Feito isso ela analisa a evoluccedilatildeo artiacutestica

de Nero indo desde a sua apresentaccedilatildeo privada com a lira ateacute as suas performances puacuteblicas 180

DANESI FRANCcedilOIS 2015 181

No livro Charles-Picard (1962 p 5) se propotildee a responder a trecircs perguntas ldquo1) o que eacute um

imperador 2) por que e quando nasceu essa dignidade 3) como isso se difere da realeza e da

ditadurardquo Para responder a elas investiga os governos de Augusto e de Nero na tentativa de

determinar o que significava para cada um tornar-se imperador e o efeito que sua reaccedilatildeo teve no

desenvolvimento do Principado Em especial no estudo de Nero procura demonstrar que se ele

64

exibido por Charles-Picard como um monarca que se considerava um artista

negligenciando os deveres poliacuteticos e tentando substituir o Impeacuterio da forccedila pelo

reinado da esteacutetica ndash um poeta apaixonado pela beleza que nutria um sentimento

de revolta contra a ordem estabelecida enquanto sonhava com um mundo natildeo

mais comandado pelas regras morais tradicionais Na concepccedilatildeo do autor o

soberano trocou o racionalismo por uma esteacutetica fundada na paixatildeo convocando a

magia dos sonhos o misteacuterio e o extraordinaacuterio Ou seja Nero implantou uma

revoluccedilatildeo esteacutetica ele ldquo[] se comprometeu a perturbar o mundo pelo qual era

responsaacutevel [] a fim de tornaacute-lo mais bonito do seu ponto de vistardquo182

Para

cumprir tal objetivo criou um ciacuterculo literaacuterio a Aula Neronis no qual era

naturalmente o liacuteder Esse ciacuterculo afirma Charles-Picard reunia-se no palaacutecio

imperial e tinha como membros os artistas e pessoas de bom gosto da eacutepoca

Consistia em uma espeacutecie de partido cuja atividade ao inveacutes de ser poliacutetica ou

militar era de ordem esteacutetica Os principais meios de accedilatildeo se pautavam em festas

as quais serviam a trecircs propoacutesitos unir o grupo provocar a admiraccedilatildeo do puacuteblico

por sua suntuosidade e desafiar a moralidade contraacuteria ao novo ideal183

Ademais Nero promoveu alguns eventos culturais em Roma a exemplo

dos Juvenalia no ano 59 e dos Neronia em 60 e 65 O primeiro contou com

diversos tipos de performances teatrais gregas e romanas184

Agrave ocasiatildeo o

soberano encorajou o envolvimento de senadores e equestres e fez sua primeira

apariccedilatildeo no palco afinando sua lira e testando sua voz185

O segundo foi um

festival quinquenal aos moldes gregos que teve a apresentaccedilatildeo de indiviacuteduos da

aristocracia em concursos de poesia de muacutesica de atletismo e de corridas de

bigas Segundo o autor os jogos demonstraram a vontade neroniana de criar uma

nova ordem reeducar a populaccedilatildeo e alegrar o seu mundo186

As competiccedilotildees no

estilo helecircnico indicaram o seu desejo de trazer para Roma eventos civilizados

menos sangrentos e que englobassem todos os habitantes abolindo as distinccedilotildees

entre as categorias sociais

negligenciou os deveres poliacuteticos que lhe incumbiram foi porque compreendeu perfeitamente o

seu papel artiacutestico (TOWNEND 1967 p 249) 182

CHARLES-PICARD 1962 p 199 183

CHARLES-PICARD 1962 p 199-222 184

Os Juvenalia foram celebrados para comemorar a primeira barba feita de Nero (Suet Nero 12) 185

CHARLES-PICARD 1962 p 217 186

CHARLES-PICARD 1962 p 219-220

65

O grande problema foi que Nero ao perseguir o seu sonho perdeu a razatildeo

alega Charles-Picard Sua ousadia o fez esquecer o limite do possiacutevel e do

impossiacutevel do real e do imaginaacuterio Isso poreacutem natildeo diminui o fato de ele ter

projetado uma realidade governada por padrotildees esteacuteticos

Nero natildeo eacute o precursor de uma sociedade possiacutevel nascido cedo demais Ele eacute o campeatildeo de uma utopia e o mais surpreendente em sua aventura eacute que essa utopia poderia ter seduzido uma fraccedilatildeo consideraacutevel da humanidade187

Anos mais tarde Cizek (1932-2008) divulgou a sua opiniatildeo acerca desse

debate Trata-se de um estudioso romeno com dois doutorados um em Filologia

na Universidade de Bucareste e outro em Letras na Universidade de Lyon Entre

1985 e 1993 foi professor de Literatura Latina na Universidade de Bucareste e na

Universidade de Lyon onde se aposentou Em geral seus interesses acadecircmicos

concerniam ao estudo das mentalidades poliacuteticas e coletivas bem como da

Axiologia teoria sobre as regras e os preceitos morais reguladores do

comportamento humano Dentro dessa perspectiva redigiu em 1982 o livro

Neacuteron e em 2005 o artigo Lrsquoexpeacuterience Neacuteronienne Reacuteforme ou Reacutevolution188

Eacute embasado na Axiologia que Cizek escreveu o seu Neacuteron no qual relecirc

toda a documentaccedilatildeo disponiacutevel sobre o princeps e a apresenta de forma

inovadora tentando natildeo julgar o soberano mas compreendecirc-lo189

Nesse sentido

admite que Nero foi um sujeito devotado a implantar uma reforma axioloacutegica na

sociedade romana ndash reforma porque ele natildeo empreendeu uma ruptura total de

padrotildees culturais mas preferiu transformaccedilotildees progressivas e graduais

187

CHARLES-PICARD 1962 p 269 188

Disponiacutevel em httpswwwlesbelleslettrescomlivreeugen-cizek Acesso em 24 fev 2020 189

Concordamos com Dubuisson (1987 p 241-242) quando afirma que se os historiadores da

contemporaneidade tecircm uma imagem de Nero diferente daquela do estereoacutetipo contido nas fontes

histoacutericas eacute graccedilas em parte ao trabalho de Cizek o qual trouxe uma percepccedilatildeo clara das

correntes ideoloacutegicas do primeiro seacuteculo dando novo sentido aos atos e aos comportamentos do

princeps Ao inveacutes de julgar o soberano Cizek procura entender a loacutegica do seu pensamento

tarefa que realiza segundo Dubuisson por meio da reflexatildeo de trecircs questotildees i) com que propoacutesito

Nero confrontou o Senado ii) com que intenccedilatildeo se exibia no palco e iii) por que apesar da forte

oposiccedilatildeo senatorial ele fez uma grande viagem agrave Greacutecia que parece ter contribuiacutedo para sua

queda A resposta eacute construiacuteda a partir do uso de toda documentaccedilatildeo disponiacutevel ndash literaacuteria e natildeo

literaacuteria ndash de onde Cizek extrai tudo libertando-se da dependecircncia estreita de Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio Por exemplo ele explora a numismaacutetica e os tratados De Clementia e De Vita Beata

escritos por Secircneca Acima de tudo o autor enxerga no Principado de Nero um momento

particularmente importante no confronto tatildeo caracteriacutestico do primeiro seacuteculo entre o Oriente

helenizado e o Ocidente romanizado

66

desafiando realidades existentes ou anteriores para reivindicar outras Dito de

outro modo reformou o sistema de valores fazendo a sociedade aceitar preceitos

morais muito distintos daqueles que ela conhecia ateacute entatildeo190

Sem duacutevida a reforma das mentalidades foi orientada [] para

uma reorientaccedilatildeo dos valores o que preferimos chamar de reforma axioloacutegica Estas satildeo as palavras que achamos mais apropriadas Em nossa opiniatildeo esta eacute a substacircncia do projeto de Nero para mudar a vida de seus suacuteditos [] Eacute certo que essa mudanccedila gradual implicou outras reformas de longo alcance como as reformas da moral educaccedilatildeo cultura e estruturas poliacuteticas Entatildeo Nero estava considerando todas elas na

esperanccedila de alcanccedilar uma vida inimitaacutevel e incriacutevel que era importante para ele191

Na praacutetica ele desejava libertar os romanos dos tabus de seus ancestrais

modificando o modo como ajuizavam o mundo Consciente de que o coacutedigo

sociocultural da antiga Roma republicana era obsoleto comprometeu-se a

reordenar a velha virtus revisando a gravitas (seriedade) a pudicitia (castidade)

a pietas (piedade) entre outros princiacutepios ndash reconsiderados em consonacircncia com a

vocaccedilatildeo artiacutestica do imperador o absolutismo teocraacutetico baseado no Helenismo e

a expansatildeo das fronteiras do Impeacuterio192

Agrave revisatildeo dos valores seguiu-se a disseminaccedilatildeo de dois novos agocircn e

luxus Cizek esclarece que o primeiro advindo do grego significa ldquocompeticcedilatildeordquo

ou ldquolocalidade para jogos para concorrentes e para espectadoresrdquo Eacute portanto um

preceito vinculado ao feito esportivo o que revela a intenccedilatildeo imperial de seguir o

caminho artiacutestico com vistas agrave satisfaccedilatildeo pessoal O segundo termo procedente do

latim tem sentido de ldquoauspiciosordquo ldquoexcessordquo e ldquolibertinagemrdquo ou seja tudo o

que permite diversatildeo sem impedimentos Ao passo que o agocircn relacionava-se ao

componente heleniacutestico da reforma o luxus conotava a parte italiana referindo-se

ao prazer livre tatildeo amado por Nero Esses dois novos valores apesar de

importantes para o imperador natildeo o fizeram aniquilar os antigos ideais romanos

os quais foram inseridos como secundaacuterios na reforma axioloacutegica a fim de

reduzir oposiccedilotildees193

Essa inserccedilatildeo foi acompanhada ainda de medidas voltadas

ao sucesso total do projeto a saber a inauguraccedilatildeo de jogos e de espetaacuteculos os

190

CIZEK 1982b p 21 191

CIZEK 1982a p 108 192

CIZEK 1982b p 408-409 193

CIZEK 1982b p 161-165

67

Juvenalia e os Neronia a criaccedilatildeo de escolas imperiais onde se podia adquirir

treinamento artiacutestico a formaccedilatildeo dos Augustiani194 jovens propagandistas da

nova educaccedilatildeo e o assassinato de Agripina que se opunha ao projeto195

Natildeo demorou entatildeo para a plebe da Vrbs196 e uma parcela da elite

aderirem agrave reforma Alguns senadores e equestres poreacutem fingiram concordar

com o projeto no intuito de mais tarde oporem-se a ele ostensivamente Cizek

pondera a dificuldade de certos membros do Senado em lidar com uma axiologia

centrada no agocircn e na luxus e que transformava uma dolce vita em um plano de

governo Isso revela que o fato de Nero ter tentado reformar ndash e natildeo revolucionar

ndash o coacutedigo sociocultural natildeo tornou o seu negoacutecio mais faacutecil Verdade seja dita

suas ideias natildeo foram um capricho impensado porque o novo projeto de axiologia

surgiu num momento em que era necessaacuteria a renovaccedilatildeo da mentalidade197

Em oposiccedilatildeo a Cizek temos Champlin (1948- ) Natural de Nova Iorque

cresceu e fez quase toda a sua formaccedilatildeo na cidade de Toronto no Canadaacute onde

conquistou os diplomas de bacharel em Histoacuteria e mestre em Estudos Claacutessicos

Seguiu depois para a Universidade de Oxford finalizando o doutorado em

Estudos Claacutessicos Atualmente ensina no Departamento de Humanidades da

Cotsen na Universidade de Princeton pesquisando a histoacuteria social e cultural da

Repuacuteblica romana tardia e do iniacutecio do Impeacuterio No decorrer dos seus 40 anos

como docente escreveu cerca de 40 artigos e lecionou cursos com temaacuteticas

variadas tornando-se uma das figuras mais influentes no campo dos Estudos

Claacutessicos Todas as suas obras trazem rigor filoloacutegico e uso criativo dos textos

literaacuterios como documentos histoacutericos aleacutem de mesclarem elementos juriacutedicos

topograacuteficos folcloacutericos e mitoloacutegicos Citamos aqui as mais prestigiadas The

Augustan Empire 43 BC-AD 69 (1996) The Cambridge Ancient History ndash

Volume X (1996) e Nero (2005)198

O ponto central dessa uacuteltima obra eacute a autoconceitualizaccedilatildeo de Nero em

termos das Mitologias Grega e Romana Champlin sugere que o soberano era um

mestre manipulador de mitos para fins poliacuteticos usando figuras mitoloacutegicas para

194

ldquo[] Equestres [] que faziam soar o dia e a noite com aplausos e elogios agrave beleza e a voz

divinas de Nero []rdquo (CHAMPLIN 2005 p 60) 195

CIZEK 1982a p 113 196

Cidade ou circuito da cidade (SARAIVA 2006 p 1244) 197

CIZEK 1982a p 115 198

CHAMPLIN 2020

68

criar uma potente imagem imperial Argumenta que os excessos teatrais do

princeps que chocaram e fascinaram os contemporacircneos devem ser tratados

como performances evocadoras do mundo da mitologia ao inveacutes de serem apenas

o produto dos preconceitos das fontes199

O autor explica que o elemento mitoloacutegico sempre esteve presente no

cotidiano romano Na Arte na Literatura nas casas particulares nas pinturas nas

esculturas e nos grafites era comum encontrar vocabulaacuterios lendaacuterios que

forneciam coacutedigos decifraacuteveis por todos A popularidade das lendas facilitava a

associaccedilatildeo dos governantes a deuses e a heroacuteis pois eles sabiam que os cidadatildeos

captariam suas mensagens Alexandre Pompeu e Marco Antocircnio por exemplo

vincularam-se agraves faccedilanhas de Dioniacutesio e de Heacutercules transformando os pedigrees

heroicos em armas para a legitimaccedilatildeo do poder Nero por sua vez associou-se agrave

figura de Orestes encenando seus feitos no palco200

Para Champlin entatildeo havia uma racionalidade por traacutes das atitudes do

soberano a qual natildeo foi captada e transmitida pela nossa tradiccedilatildeo literaacuteria hostil

Eacute possiacutevel encontrar para a maioria dos seus atos mesmo os mais excecircntricos

uma finalidade que natildeo possui relaccedilatildeo com os motivos que lhe foram atribuiacutedos

Por mais monstruoso que seu comportamento parecesse havia um objetivo para

tanto Ele a todo o tempo calculava os efeitos das suas atitudes em uma

audiecircncia201

Inclusive suas performances teatrais eram planejadas com o fito de

atingirem certos propoacutesitos O proacuteprio assassinato de Agripina foi encenado em

consonacircncia com o mito de Orestes uma relaccedilatildeo cautelosamente pensada202

O autor comenta que o matriciacutedio foi o ato definidor do Principado de

Nero libertando-o da pessoa que o mantinha longe dos palcos Natildeo eacute agrave toa que

apoacutes o homiciacutedio o imperador comeccedilou a se apresentar sendo Orestes um dos

199 CHAMPLIN 2005 p 236-237 Segundo Roche (2006 p 1-4) os dois pressupostos fundamentais que regem o estudo de Champlin satildeo a racionalidade das accedilotildees do imperador e a

ressonacircncia dessas mesmas accedilotildees nas atitudes sociais da eacutepoca Ele representa Nero como um

brilhante inteacuterprete e explorador de exempla mitoloacutegicos um princeps cujas inversotildees das normas

sociais e das estruturas de poder estavam inseridas em um programa abrangente de imagens

puacuteblicas que buscavam constantemente confirmar e estender a conexatildeo entre o imperador e o seu

puacuteblico Sua construccedilatildeo da representaccedilatildeo neroniana vai aleacutem da simples leitura de Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio pautando-se tambeacutem em fontes materiais e em outras fontes literaacuterias

como a Apocolocyntosis a Octauia os Epigrammata e a Naturalis Historia 200

CHAMPLIN 2005 p 93-94 201

CHAMPLIN 2005 p 237 202

CHAMPLIN 2005 p 99-103

69

seus papeacuteis favoritos203

ndash favoritismo que na opiniatildeo de Champlin relacionava-se

ao fato de Orestes ser um matricida justificado Ele matara a matildee natildeo soacute porque

seu pai e Apolo exigiram vinganccedila mas porque Clitemnestra roubara sua heranccedila

e o povo de Micenas estava sofrendo sob a tirania de uma mulher204

Essa era a essecircncia da campanha poacutestuma contra Agripina sobretudo quando relatada na carta de Secircneca ao Senado que ela havia ido aleacutem de seu papel feminino para almejar o poder supremo minando lealdades e ateacute planejando matar seu filho como Clitemnestra teria ameaccedilado a crianccedila Orestes a

preservaccedilatildeo de Nero [] estava intimamente ligada agrave preservaccedilatildeo do Impeacuterio [] 205

No fim foi Nero ndash e natildeo seus inimigos ndash que escolheu mitificar a morte da

sua matildee Ao dramatizar Orestes no palco ele usava uma maacutescara com suas

proacuteprias feiccedilotildees almejando conceder credibilidade aos seus tormentos

existenciais e publicizar a sua culpa206

Aliaacutes o autor alega que o ecircxito na

demarcaccedilatildeo da culpa foi tatildeo grande que os antigos criacuteticos reagiram

demonstrando que ele natildeo era comparaacutevel a Orestes e sim pior

Filoacutestrato em sua Vida de Apolocircnio de Tiana observou que o

pai de Orestes havia sido assassinado por sua matildee mas que Nero devia sua adoccedilatildeo e o Impeacuterio a sua matildee Filoacutestrato o velho assinalou que enquanto Orestes vingava seu pai Nero natildeo tinha tal desculpa207

Em conclusatildeo Champlin atesta que se escrutinarmos a imagem de Nero

veremos que ele queria tornar-se o heroacutei de sua histoacuteria ansiando a imortalidade e

203

CHAMPLIN 2005 p 96-97 A histoacuteria de Orestes eacute a seguinte Agamenon rei de Micenas

tinha sido comandante-chefe do exeacutercito grego em Troia Ao retornar para casa depois da guerra

ele foi morto em sua banheira por sua esposa Clitemnestra e pelo amante dela Egisto Filho de

Clitemnestra e de Agamenon Orestes ao saber do crime fugiu de Micenas em direccedilatildeo agrave Foacutecida

pois suspeitava que Egisto tambeacutem pudesse mataacute-lo Ao se tornar adulto Orestes perguntou ao

oraacuteculo de Apolo em Delfos se deveria vingar seu pai Apolo respondeu que sim Disfarccedilado

Orestes foi ateacute Micenas e assassinou Egisto e Clitemnestra Reconhecendo seu filho Clitemnestra

apelou para seus sentimentos filiais desnudando o seio que o nutrira mas ele a derrubou

(GRIMAL 2005 p 338-340) 204

CHAMPLIN 2005 p 97 205

CHAMPLIN 2005 p 98 206

CHAMPLIN 2005 p 98 207

CHAMPLIN 2005 p 100

70

a fama ldquoEle era um artista que confiava em suas habilidades e visatildeo [] um

esteta comprometido com a vida como se ela fosse uma obra de arterdquo208

O encerramento da discussatildeo cultural dar-se-aacute com a exposiccedilatildeo do

pensamento de Edwards (1963- ) professora de Claacutessicos e Histoacuteria Antiga da

Birkbeck College na Universidade de Londres Com bacharelado e doutorado em

Estudos Claacutessicos pela Universidade de Cambridge apresenta atualmente a seacuterie

da BBC Mothers Murderers and Mistresses Empresses of Ancient Rome bem

como contribuiu para o programa de raacutedio In our Time da mesma emissora

debatendo sobre Cleoacutepatra e sobre a Eneida entre outros temas Suas pesquisas

centram-se na histoacuteria cultural do Mundo Antigo sobretudo na Roma do iniacutecio do

Principado com foco nas maneiras pelas quais os valores culturais e os aspectos

da identidade pessoal e social operavam atraveacutes da linguagem e eram

influenciados por ela Nessa linha teoacuterica lanccedilou os livros The Politics of

Immorality in Ancient Rome em 1993 Writing Rome Textual Approaches to the

City em 1996 e Death in Ancient Rome em 2007209

Entre os seus renomados textos haacute um capiacutetulo abrangendo o Principado

neroniano intitulado Beware of Imitations Theatre and the Subversion of

Imperial Identity (1994) cujo propoacutesito eacute debater as imagens artiacutesticas hostis de

Nero criadas por Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio O artigo traz a ideia jaacute bem

comentada da preocupaccedilatildeo do soberano em ser mais artista do que governante210

Trata-se de uma preocupaccedilatildeo que no entender da autora fecirc-lo transcender as

regras ordenadoras da sociedade romana recusando as virtudes imperiais no caso

dignitas (dignidade) e fides (fidelidade) e se apossando da teatralidade como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo do poder211

Ao fazer isso Nero virou a ordem social de

cabeccedila para baixo pois essas virtudes deveriam ser exibidas pelos governantes em

maior grau do que o apresentado pelos demais romanos Quando se tornou ator

assumiu um papel que parecia tatildeo distante quanto possiacutevel daquele de imperador

208

CHAMPLIN 2005 p 236 209

EDWARDS 2018 210

O capiacutetulo da autora estaacute contido no livro Reflections of Nero Culture History amp

Representation (1994) editado por Elsner e Masters o qual objetiva reexaminar as representaccedilotildees

de Nero nas fontes histoacutericas e questionar os fundamentos do mito neroniano Em seu texto

Edwards argumenta que o princeps esteve implicado em sua proacutepria representaccedilatildeo sendo pelo

menos em parte responsaacutevel por promover a imagem que sobreviveu apoacutes sua morte Ela defende

tambeacutem que o interesse de Nero pelo palco foi problemaacutetico para os membros da elite romana

ajudando na sua queda (ELSNER MASTERS 1994 p 6) 211

EDWARDS 1994 p 90-91

71

O homem que deveria ter sido o mais nobre de todos os

romanos alinhou-se com o mais ignoacutebil [] As virtudes romanas foram abandonadas O imperador imperator deveria ser o siacutembolo da coragem militar mas Nero era o inverso de um soldado bem-sucedido212

Nas matildeos de um ator-princeps portanto os valores foram distorcidos As

vitoacuterias militares que costumeiramente geravam a saudaccedilatildeo do soberano como

imperator transformaram-se em usos de soldados como audiecircncia para

performances teatrais Edwards inclusive menciona o fato de Nero ter decidido

natildeo conversar com suas tropas a fim de preservar sua voz para concursos de canto

A distorccedilatildeo continua quando o princeps ao retornar da sua turnecirc artiacutestica pela

Greacutecia executou um insulto agrave tradiccedilatildeo militar213

Na ocasiatildeo ele comemorou suas

vitoacuterias nos jogos helecircnicos como se fossem um triunfo honraria reservada aos

generais de grande sucesso Vestindo um robe decorado com estrelas douradas

ele montou na carruagem que Augusto usara em seu proacuteprio triunfo Em sua

cabeccedila Nero natildeo usava os louros triunfantes de um general mas a coroa oliva

oliacutempica e ele natildeo foi ao templo de Jupiter Optimus Maximus214

mas ao de

Apolo deus das artes215

O problema argumenta a autora foi que o princeps ao

fazer isso perdeu a distinccedilatildeo entre ilusatildeo e verdade Na tentativa de modificar as

virtudes que regiam a sociedade ele levou o teatro muito a seacuterio e se perdeu As

aparecircncias do palco tornaram confusas as relaccedilotildees entre signo e significado natildeo

havendo mais contraste entre o teatro e a vida real216

Tendo sido apontados os principais autores que investigam o Nero artista

duas questotildees merecem a nossa atenccedilatildeo Em primeiro lugar vimos que a visatildeo

negativa sobre a dedicaccedilatildeo imperial ao mundo cultural eacute bastante forte Por mais

que alguns estudiosos tenham interpretado o princeps como um homem agrave frente

de seu tempo propositor de reformas e revoluccedilotildees eles natildeo conseguiram escapar

dos relatos hostis das fontes e dos criacuteticos que natildeo aceitavam que um imperador

pudesse ser tambeacutem um ator ndash hostilidade intrincada na percepccedilatildeo de que um

212

EDWARDS 1994 p 87-91 213

EDWARDS 1994 p 90 214

O templo de Jupiter Optimus Maximus localizava-se no pico do monte Capitolino e era um dos

mais importantes da cidade de Roma Dentre as cerimocircnias ocorridas laacute destacavam-se a leitura de

auspiacutecios por magistrados que iniciariam campanhas militares e a oferta de sacrifiacutecios por generais

vitoriosos na conclusatildeo da procissatildeo triunfal (COARELLI 2007 p 32) 215

EDWARDS 1994 p 90 216

EDWARDS 1994 p 93

72

soberano com legiotildees sob o seu comando jamais poderia abandonar as atividades

puacuteblicas para competir como um artista A indulgecircncia amadora em uma arte ou

esporte ateacute seria perdoaacutevel mas a dedicaccedilatildeo obsessiva natildeo era Em segundo

notamos que alguns pesquisadores frisam a seriedade artiacutestica de Nero Defendem

que apesar da criacutetica e dos limites morais de sua eacutepoca ele levou a arte bem a

seacuterio criando jogos competiccedilotildees e novos valores para o seu mundo Sendo assim

o seu Principado deve ser lido se natildeo como uma espeacutecie de triunfo da arte sobre a

poliacutetica como uma tentativa de diminuir a fronteira entre os dois

Cremos ainda que se enganam aqueles que pensam que tais trabalhos estatildeo

ligados a uma emergecircncia casual e passageira da chamada Histoacuteria Cultural Esse

aspecto mais interno ao ambiente acadecircmico certamente tem seu peso Poreacutem

essas leituras que valorizam o papel da cultura e da arte dentro de um projeto

poliacutetico tecircm a ver para o bem e para o mal com a utilizaccedilatildeo efetiva da alianccedila

cultura-poder Os regimes autoritaacuterios que emergiram no seacuteculo XX ndash e no XXI ndash

claramente se embasaram nessa alianccedila a exemplo dos vaacuterios grupos nazifascistas

espalhados pelo mundo afora e que ainda hoje infelizmente satildeo bastante

atuantes Diversas perspectivas de revoluccedilatildeo ou reforma da sociedade sobretudo

aquelas de inspiraccedilatildeo Gramsciana tambeacutem apontaram nesse sentido Portanto a

atuaccedilatildeo de Nero como artista a qual em geral ligava-se mais agrave sua loucura

ganhou outra perspectiva o uso da arte como base para a afirmaccedilatildeo de um projeto

poliacutetico Isso nos leva a duas reflexotildees fundamentais i) o Principado de Nero

antecipa a ideia de que nenhum projeto poliacutetico pode se afirmar e conquistar as

massas sem possuir um projeto artiacutestico esteacutetico ii) a arte ao perder sua

autonomia frente ao Estado ou frente a um governante tiracircnico perde a razatildeo da

sua existecircncia passando a servir apenas aos desmandos do poder agraves vaidades e agrave

egolatria Sem duacutevida essa associaccedilatildeo Neroarte foi se alterando ao longo do

tempo e gerando muacuteltiplas leituras tanto do passado quanto do presente Trata-se

de um aspecto bastante atual e em aberto na constituiccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa Por

isso julgamo-lo essencial na composiccedilatildeo do repertoacuterio dos retratos neronianos

merecendo ser bem analisado pelos estudiosos do tema

Resta agora abordarmos o uacuteltimo sub-bloco desse grupo o dos autores que

examinam a relaccedilatildeo entre o soberano e o Principado Tal relaccedilatildeo se resume em

dois aspectos as dificuldades imperiais em lidar com os problemas inerentes do

73

Principado e os desentendimentos ocorridos entre Nero o Senado o exeacutercito e a

Guarda Pretoriana O primeiro tange agraves complicaccedilotildees sucessoacuterias do Principado

ao controle monetaacuterio e agraves expectativas militares geradas pelo sistema O segundo

ndash e o mais aprofundado nas obras ndash se refere ao fato de Nero natildeo ter escondido

sua posiccedilatildeo excepcional sob uma fachada republicana mas tecirc-la exercido de

forma manifesta Logo os autores daqui natildeo estatildeo interessados em avaliar os

traccedilos da personalidade do princeps e sim a maneira como ele conduziu o seu

governo Nesse acircmbito trataremos das produccedilotildees de Levi (1949) Griffin (2001)

Belchior (2016) e Osgood (2017) pois satildeo as que julgamos mais influentes

Comecemos por Levi (1902-1998) Historiador italiano e arqueoacutelogo

lecionou Histoacuteria Romana e Histoacuteria Grega na Universidade de Milatildeo entre os

anos de 1968 e 1977 Ao longo da sua carreira dedicou-se ao estudo das

antiguidades puacuteblicas e privadas gregas e romanas da histoacuteria social heleniacutestica e

de temas claacutessicos da Historiografia e da Cultura Poliacutetica grega Todavia a maior

parte da sua produccedilatildeo concernia agrave histoacuteria romana com atenccedilatildeo aos processos de

crise e de transformaccedilatildeo das instituiccedilotildees217

Por exemplo no livro Augusto e il suo

Tempo caracterizou o contexto social da accedilatildeo poliacutetica de Otaviano e seu papel

como governante Em Nerone e i suoi Tempi revisitou os relatos de Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio colocando o governo de Nero no quadro geral do tempo e

pintando um afresco da vida social da eacutepoca218

O foco no vieacutes institucional levou o autor a defender que o verdadeiro

motivo da queda de Nero foi uma discussatildeo com o Senado ocorrida entre 56 e 58

cujo foco foi o indeferimento da Reforma Fiscal Durante o seu terceiro

consulado Nero moveu no Senado uma moccedilatildeo de extinccedilatildeo dos impostos

indiretos visando a diminuir o custo de vida e a aumentar a capacidade de

consumo dos estratos sociais mais baixos219

Poreacutem o Senado natildeo se dispocircs a

217

MUSTI 1993 218

Nesse livro Levi natildeo se mostra iludido com o caraacuteter de Nero mas apenas busca oferecer uma

explicaccedilatildeo do porquecirc de os eventos do seu governo terem seguido o curso que seguiram

Resumidamente sua visatildeo eacute a de que a ascensatildeo do princeps coincidiu com o cliacutemax de uma luta

cultural entre influecircncias heleniacutesticas versus tradiccedilotildees romanas genuiacutenas a qual ocorria desde os

dias da Repuacuteblica tardia e durante os governos de Caliacutegula e Claacuteudio parecia estar se movendo de

forma constante em favor dos elementos orientais Tal visatildeo eacute erigida a partir de uma leitura atenta

das fontes antigas na qual ele insiste nas discrepacircncias bastante marcantes entre Taacutecito Suetocircnio e

Diatildeo Caacutessio (SALMON 1952 p 55-56) 219 ldquoO consulado era a magistratura maior sempre exercida por duas pessoas Detinham os

cocircnsules o poder executivo quer no plano poliacutetico (convocavam e presidiam ao Senado e aos

comiacutecios e zelavam pelo cumprimento das decisotildees aiacute tomadas) quer no plano militar promoviam

74

aprovar o plano pois boa parte dos seus membros seria prejudicada de modo

financeiro Por conseguinte o princeps natildeo podia desconsiderar o veredicto do

Senado em um assunto que era tradicionalmente da responsabilidade deste pois

caso o fizesse alteraria o equiliacutebrio da esfera poliacutetica A inexistecircncia do aval para

Levi foi a pior coisa que aconteceu porque o soberano se sentiu incapacitado de

beneficiar os grupos que mais o apoiavam Tal situaccedilatildeo provocou uma ruptura nas

relaccedilotildees com a Cuacuteria e colocou Nero em um caminho perigoso220

Como consequecircncia o plano passou a ser o de implantar uma nova poliacutetica

cultural de valorizaccedilatildeo dos costumes gregos Do ponto de vista artiacutestico houve o

enaltecimento da muacutesica do atletismo e do teatro aos moldes heleniacutesticos E do

ponto de vista do culto imperial houve a tendecircncia agrave adoraccedilatildeo e agrave divinizaccedilatildeo do

imperador Segundo o autor a poliacutetica promovida por Nero difundiu a ideia de

que a civilizaccedilatildeo grega tinha um valor superior ao da romana de modo que a

uacuteltima precisava imitar a primeira221

Natildeo tardou para que a divulgaccedilatildeo dos ideais

helecircnicos acompanhasse uma resistecircncia estoica cujas concepccedilotildees morais

compunham o caraacuteter eacutetico da vida romana A criacutetica dos estoicos era bastante

importante ldquo[] natildeo pelo nuacutemero mas pela qualidade intelectual social e poliacutetica

daqueles que a exerciam e tambeacutem porque suas criacuteticas correspondiam a ideias

enraizadas [] de respeito ao mos maiorum []rdquo222

Os adversaacuterios acusavam

Nero de diminuir a dignidade proacutepria e a do povo da Vrbs incentivando haacutebitos

ofensivos agraves tradiccedilotildees republicanas Esse ressentimento logo proporcionou os

meios para a criaccedilatildeo de um movimento de revolta eclodido na conspiraccedilatildeo

pisoniana de 65 a grande responsaacutevel pelo suiciacutedio do soberano e pelo fim da

linhagem Juacutelio-Claacuteudia223

Levi tambeacutem menciona outros determinantes na queda de Nero A priori

defende que o princeps natildeo obteve vitoacuterias militares dignas dos padrotildees romanos

o recrutamento de soldados e exerciam o comando geral dos exeacutercitos sendo da sua

responsabilidade as nomeaccedilotildees dos oficiais Ser cocircnsul constituiacutea [] a maior ambiccedilatildeo de um

senador [] porque era a magistratura que lhe proporcionava depois o exerciacutecio das mais altas

funccedilotildees administrativas e poliacuteticasrdquo (DENCARNACcedilAtildeO 2007 p 101) 220

LEVI 1949b p 168-161 221

LEVI 1949b p 173 222

LEVI 1949b p 177 A expressatildeo mos maiorum significa ldquocostume dos antepassadosrdquo Ela eacute a

combinaccedilatildeo do vocaacutebulo mos (ldquocostumesrdquo ldquocomportamentosrdquo) com o vocaacutebulo maiores

(ldquoantepassadosrdquo ldquovelhosrdquo) na sua forma genitiva maiorum (SARAIVA 2006 p 754 705) 223

LEVI 1949b p 143

75

e nem foi capaz de conquistar novas terras e rotas comerciais224

A posteriori

anuncia que o reavivamento dos processos de lesa-majestade em 62 acrescido

dos confiscos de bens e dos imensos gastos na reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o

incecircndio aumentaram as inimizades e evidenciaram a ganacircncia imperial225

Tudo

isso se juntou ao conflito com o Senado e fez com que Nero revelasse as

deficiecircncias do seu caraacuteter e a sua dificuldade em acatar os tracircmites do

Principado abrindo caminho para uma crise de legitimidade226

Foi embasada em argumentos similares que Griffin criou o seu Nero Na

segunda parte da sua obra denominada Post-mortem on the Fall of Nero a autora

examina a queda imperial que eacute apresentada como a incapacidade do soberano

em lidar com as pressotildees do Principado227

Para o desenvolvimento do estudo

Griffin remete o leitor ao iniacutecio do seu livro quando argumentou que os crimes de

Nero natildeo foram a causa da sua derrubada O evento mais importante do seu

reinado foi o seu colapso causado pelos obstaacuteculos do sistema que o jovem

vaidoso tentou contornar mas natildeo conseguiu228

A sua queda foi determinada pelo

sistema erguido por Augusto ou seja teve mais a ver com a inadequaccedilatildeo do

aparelho imperial do que com os defeitos do caraacuteter de Nero229

De modo geral a complicaccedilatildeo foi sucessoacuteria Como o Principado natildeo era

identificado abertamente como uma monarquia natildeo poderia haver

reconhecimento do princiacutepio hereditaacuterio e nem leis para regulaacute-lo Em teoria a

escolha de um sucessor cabia ao Senado uma vez que ele era o responsaacutevel por

conferir a um homem as magistraturas tradicionais transformando-o em princeps

Na praacutetica contudo nenhum soberano respeitava isso porquanto entendia que a

uacutenica maneira de assegurar poderes agrave sua famiacutelia quando morresse era

designando o seu proacuteprio herdeiro230

Assim o imperador tendia a ignorar o

Senado fazendo a sua indicaccedilatildeo e contando com o apoio da Guarda Pretoriana

para a legitimaccedilatildeo da sua escolha ndash ou comprando-o Logo a sucessatildeo

desregulada se tornou um foco natural para a intriga Como natildeo havia criteacuterios

palpaacuteveis de elegibilidade os descendentes de famiacutelias nobres que tinham

224

LEVI 1949b p 211 225

LEVI 1949b p 213 226

LEVI 1949b p 231 227

ldquoPara simplificar um pouco Nero natildeo era o homem para o trabalhordquo (SEAGER 1986 p 99) 228

GRIFFIN 2001 p 8 229

GRIFFIN 2001 p 17 230

GRIFFIN 2001 p 191

76

nascimento e status dos Julii e dos Claudii nutriam ambiccedilotildees ao trono Daiacute

adveio um nuacutemero grande de rivais e de herdeiros que o princeps precisou

expurgar em prol de sua seguranccedila como Rubeacutelio Plauto e Juacutenio Silano231

O sistema encorajou temores aos quais Nero estaria propenso

em qualquer caso Todavia sua obsessatildeo com os cometas que supunha pressagiar uma troca de governante e sua tendecircncia geral agrave paranoia compartilhada com sua matildee tornam-se mais inteligiacuteveis quando se percebe que ele enfrentou um problema maior do que todos os seus antecessores Ele ainda estava cercado de descendentes de famiacutelias republicanas tatildeo antigas e ilustres como os Juacutelio-Claudianos e o nuacutemero de homens que

poderiam reivindicar descendecircncia de imperadores do passado aumentava naturalmente agrave medida que a dinastia continuava232

Quando Nero morreu a dinastia Juacutelio-Claudiana tinha quase 100 anos

Seria necessaacuteria outra longa dinastia para elevar o nuacutemero de inimigos ao niacutevel

que alcanccedilara o da famiacutelia de Augusto Essa situaccedilatildeo segundo Griffin natildeo

justifica a crueldade do princeps no entanto tornam compreensiacuteveis as decisotildees

que afetaram a estabilidade da sua posiccedilatildeo233

Aleacutem do transtorno sucessoacuterio Griffin comenta sobre mais trecircs questotildees

causadoras do decliacutenio do soberano A primeira foi de ordem financeira pois as

necessidades de Nero em satisfazer as suas expectativas e as do seu puacuteblico

fizeram com que ele sobrecarregasse o eraacuterio234

A segunda foi de ordem

filelecircnica visto que a atenccedilatildeo concedida pelo princeps aos valores gregos agrave

muacutesica e ao atletismo gerou insatisfaccedilotildees aristocraacuteticas235

Por fim a terceira foi

de ordem militar dado que Nero ao contraacuterio de Ceacutesar Augusto e Tibeacuterio natildeo

obteve vitoacuterias extraordinaacuterias ndash e as poucas que obteve foram graccedilas ao trabalho

de comandantes e natildeo ao seu proacuteprio A gloacuteria militar que ele precisava ter foi

substituiacuteda por precircmios artiacutesticos236

Em suma Griffin alega que

231

GRIFFIN 2001 p 194-195 232

GRIFFIN 2001 p 196 233

GRIFFIN 2001 p 17 234

GRIFFIN 2001 p 197-207 235

GRIFFIN 2001 p 208-220 236

GRIFFIN 2001 p 221-234

77

Nero nunca alcanccedilou uma imagem satisfatoacuteria e consistente

como princeps No final ele sabia que seu fracasso nesse papel havia sido completo A confianccedila que ansiava tinha chegado a ele apenas como artista dos insultos que apareceram nos eacuteditos de Vindex ele contestou somente as criacuteticas agrave sua lira237

Se formos mais longe nesse debate veremos que as dificuldades do

Principado se manifestam de modo central no raciociacutenio de Belchior (1987- )

Bacharel e doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo trabalha

atualmente como professor no Departamento de Histoacuteria da Universidade

Estadual de Minas Gerais campus Campanha (UEMG) Suas aacutereas de

especializaccedilatildeo satildeo Repuacuteblica e Principado Romano e Historiografia Romana

Elaborou muitas produccedilotildees relevantes como o livro Nero bom ou mau

imperador Retoacuterica Poliacutetica e Sociedade em Taacutecito (54 a 69 dC) em 2016 e o

artigo BNCC e a Histoacuteria Antiga Uma possiacutevel compreensatildeo do presente pelo

passado e do passado pelo presente em 2017

Em especiacutefico no livro sobre Nero fruto de uma dissertaccedilatildeo de mestrado

o autor analisa os Annales de Taacutecito e defende que para o historiador antigo o

jogo poliacutetico do Principado dependia de muitas outras coisas que natildeo

necessariamente das atitudes imperiais Segundo Belchior Taacutecito entendia o

Principado como um sistema de governo onde todas as posiccedilotildees hieraacuterquicas eram

alcanccedilaacuteveis sobretudo pelos membros do Senado romano Em vista disso cabia

ao soberano equilibrar a balanccedila entre a sua autonomia e a sua sujeiccedilatildeo agraves leis e as

normas da respublica a fim de permitir o funcionamento da sociedade em acordo

com suas leis Ou seja o princeps deveria articular a sua atuaccedilatildeo em conjunto

com a do Senado Caso a balanccedila pesasse para o seu lado os senadores poderiam

contestar publicamente a sua lideranccedila238

Dessa maneira Belchior compreende

que os conflitos ocorridos durante o Principado de Nero os quais resultaram na

sua queda podem ser explicados a partir da complexidade das relaccedilotildees poliacuteticas

inerentes ao sistema inaugurado por Augusto o que vai aleacutem das simples criacuteticas

agraves condutas individuais de Nero

Finalizaremos esse sub-bloco com Osgood (1973- ) Bacharel e doutor em

Estudos Claacutessicos pela Universidade de Yale trabalha atualmente como professor

237

GRIFFIN 2001 p 234 238

BELCHIOR 2016 p 159-160

78

no Departamento de Claacutessicos na Universidade de Georgetown em Washington

Suas aacutereas de especializaccedilatildeo satildeo Histoacuteria Romana e Literatura Latina com ecircnfase

na queda da Repuacuteblica nas biografias imperiais e em saacutetira antiga Redigiu muitas

obras famosas incluindo o livro Claudius Caesar Image and Power in the Early

Roman Empire (2010) o capiacutetulo Nero and the Senate (2017) e o livro How To

Be a Bad Emperor An Ancient Guide to Truly Terrible Leaders (2020)239

No capiacutetulo sobre Nero o autor defende a partir das narrativas de Taacutecito e

de Diatildeo Caacutessio que o Senado natildeo foi o responsaacutevel pelo decliacutenio do princeps

ponderando a importacircncia poliacutetica de tal conselho240

Em momentos criacuteticos como a morte de um herdeiro

favorecido ou a supressatildeo de uma conspiraccedilatildeo o Senado poderia ajudar a reunir apoio por traacutes do imperador Aleacutem disso os imperadores confiavam nos senadores para fazerem o trabalho real de governar Os senadores comandavam os exeacutercitos [] dirigiam a maior parte das proviacutencias do Impeacuterio ocupavam importantes funccedilotildees administrativas na proacutepria cidade de Roma e aconselhavam os imperadores sobre a poliacutetica no conselho semioficial241

Para Osgood os poderes senatoriais mantiveram-se reais durante todo o

Principado embora limitados Como exemplo relembra a busca constante de

Nero pelos conselhos dos magistrados destacando o discurso de 54 no qual este

afirmou que restauraria a dignidade da instituiccedilatildeo tatildeo perseguida por Claacuteudio

Rememora tambeacutem os bons anos de cooperaccedilatildeo entre os dois antes de o princeps

comeccedilar a se sentir ameaccedilado por certos membros Segundo o autor a relaccedilatildeo

entre eles comeccedilou a deteriorar no final do governo dando lugar a um clima de

suspeita e rivalidade242

239

OSGOOD 2019 240

O capiacutetulo do autor estaacute contido no The Cambridge Companion to the Age of Nero (2017)

editado por Bartsch Freudenburg e Littlewood o qual pretende analisar os debates histoacutericos que

a eacutepoca de Nero estimulou e as maneiras como ele foi recebido e interpretado na Era Cristatilde do

primeiro seacuteculo e aleacutem Em seu texto Osgood examina Taacutecito e Diatildeo Caacutessio a partir das suas

proacuteprias perspectivas isto eacute a de historiadores senatoriais que foram viacutetimas sofredoras da era

neroniana Ademais investiga o que significava ser um senador sob Nero em um periacuteodo no qual

os poderes do Senado haviam se tornado secundaacuterios e circunscritos e ainda eram em alguns

aspectos muito reais (BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p 5) 241

OSGOOD 2017 p 34 242

OSGOOD 2017 p 39-41

79

Apoacutes as corridas de bigas de Nero na Juvenalia e no Neronia de

60 da chocante estreia do imperador como citaredo em Naacutepoles em 64 e do grande incecircndio que destruiu parte de Roma alguns senadores talvez se perguntassem literalmente o que restaria da cidade deles243

Com medo da resposta que obteriam organizaram em conjunto com

alguns equestres e oficiais da Guarda Pretoriana a primeira conspiraccedilatildeo contra

Nero O plano era assassinaacute-lo no Circus Maximus no decorrer do festival de

Ceres e substituiacute-lo por Calpuacuternio Pisatildeo um aristocrata que atraiacutea entusiasmo por

sua superioridade moral O movimento rapidamente alcanccedilou os ouvidos do

soberano o qual aproveitou para matar rivais e oferecer recompensas aos que

mostraram lealdade Na situaccedilatildeo ldquo[] o Senado investiu em accedilotildees de graccedilas e

celebraccedilotildees [] [pois] Nero tinha voltado ao padratildeo de governo Claudianordquo244

Apoacutes isso a convivecircncia entre os dois manteve-se paciacutefica por um breve

intervalo A interrupccedilatildeo veio em 67 com a turnecirc artiacutestica do princeps pela Greacutecia

cuja realizaccedilatildeo diminuiu o seu prestiacutegio perante os senadores e soldados Osgood

explica que enquanto o imperador estava na Greacutecia o senador Juacutelio Vindex

iniciou uma rebeliatildeo na Gaacutelia em marccedilo de 68 Ele emitiu eacuteditos insultando o

soberano e escreveu para governadores de proviacutencia como Galba incentivando a

associaccedilatildeo na revolta Quando essas notiacutecias chegaram a Nero ele decidiu ficar

por mais oito dias em Naacutepoles desfrutando das competiccedilotildees atleacuteticas ao inveacutes de

retornar a Roma Ao voltar natildeo procurou o Senado para falar da rebeliatildeo

preferindo passar o dia ldquo[] exibindo alguns instrumentos de aacutegua de um tipo

novo []rdquo245

Somente no instante em que os avisos sobre a adesatildeo de Galba

chegaram eacute que o princeps decidiu agir designando o comandante Virgiacutenio Rufo

e suas legiotildees da Germacircnia para lutarem contra o oponente Mas Nero se limitou agrave

designaccedilatildeo pois em nenhum instante reuniu-se com o Senado ou foi ao campo de

batalha conversar com as tropas Ademais atrasou o pagamento dos soldados

devido ao deacuteficit financeiro decorrente das extravagacircncias na Greacutecia Esses

eventos levaram os homens da Guarda Pretoriana a retirarem o seu apoio a Nero e

243

OSGOOD 2017 p 42 244

OSGOOD 2017 p 43 245

OSGOOD 2017 p 45

80

o depositarem em Galba Portanto o autor acredita que os militares foram os

responsaacuteveis pela derrubada do princeps e natildeo o Senado246

A queda de Nero serve como um bom estudo de caso sobre onde estava o poder no Impeacuterio Romano Juntos um comandante do exeacutercito e suas tropas poderiam representar uma seacuteria ameaccedila ao soberano Em Roma tambeacutem eram os soldados que importavam [] bem como os funcionaacuterios domeacutesticos do

imperador O Senado natildeo estava orientando eventos mesmo se os comandantes apelassem agrave sua autoridade [] Muitos senadores inundados de dinheiro e [] vaidosos estavam felizes o suficiente com jantares perucas e roupas []247

Em conclusatildeo os textos expostos nesse sub-bloco demonstram que as

complexidades do Principado serviram como criteacuterios de julgamento para o

governo neroniano ndash julgamento construiacutedo a partir dos relatos das fontes hostis

escritas por membros ressentidos da ordem senatorial ou equestre que natildeo

estavam interessados em avaliar as fraquezas do sistema ou o desempenho de

Nero em termos institucionais As visotildees construiacutedas sobre o princeps

privilegiaram apenas a sua postura monaacuterquica sem levar em conta o proacuteprio jogo

poliacutetico que dependia de muitas outras coisas que natildeo necessariamente o caraacuteter

imperial Essas leituras satildeo em boa medida o produto de experiecircncias modernas

que natildeo se limitam mas que podem ser exemplificadas pelo espectro que vai

desde Hitler ateacute o recentiacutessimo Trump Esses governantes monstruosos

dificilmente seriam compreendidos apenas por seus defeitos individuais A

emergecircncia e a afirmaccedilatildeo dessas figuras tecircm estreita relaccedilatildeo tanto com os

sistemas democraacuteticos modernos quanto com os viacutecios as omissotildees e as

imperfeiccedilotildees das elites que lhes deram sustentaccedilatildeo por um periacuteodo bem mais

longo do que seria razoaacutevel No final das contas tal abordagem traz para o

repertoacuterio das representaccedilotildees de Nero essa ldquopaisagemrdquo que ao mesmo tempo

produz os retratos neronianos e gera sua condenaccedilatildeo quando o seu projeto de

poder fracassa Assim os ldquoNerosrdquo entram no repertoacuterio mais do que como

indiviacuteduos eles satildeo o fracasso e a vergonha de uma geraccedilatildeo

246

OSGOOD 2017 p 46 247

OSGOOD 2017 p 46

81

Os muacuteltiplos Neros

Expostos os quatro grupos prosseguiremos a jornada em direccedilatildeo ao fim do

debate com o quinto e uacuteltimo conjunto de autores Esta seccedilatildeo concerne agravequeles

que conjecturam a existecircncia natildeo de um uacutenico Nero mas de diversos conforme a

mudanccedila dos contextos Citaremos duas autoras Ketterij (1986- ) e Lefebvre

(1981- ) historiadoras com formaccedilatildeo em instituiccedilotildees europeias A primeira

graduou-se em Histoacuteria na Universidade de Leiden na Holanda e atualmente

leciona para alunos do Ensino Meacutedio na escola Nehalennia Kruisweg Em 2009

defendeu a dissertaccedilatildeo de mestrado em Histoacuteria Antiga na Universidade de

Leiden intitulada The Development of the Image of Nero as Murderer Arsonist

and Persecutor of Christians passando em seguida ao doutorado com uma

pesquisa sobre a formaccedilatildeo de cidades no iniacutecio do periacuteodo moderno248

A segunda

graduou-se em Letras Claacutessicas fez mestrado em Ciecircncias da Antiguidade e

doutorado em Liacutengua e Literatura Antigas na Universidade de Lille na Franccedila

Hoje trabalha como docente no Departamento de Letras Claacutessicas dessa mesma

instituiccedilatildeo realizando estudos sobre mitos literaacuterios e Nero materializados no

artigo De la Mythologie agrave Lrsquohistoire de Lrsquohistoire aux Mythes De Quelques

Incestes Ceacutelegravebres publicado em 2013 e no livro Le Mythe Neacuteron La Fabrique

drsquoun Monstre dans la Litteacuterature Antique (Ier-Ve s) lanccedilado em 2017

249

Ambas as autoras se dedicam agrave avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa

sobre Nero verificando o impacto dos relatos hostis na formaccedilatildeo da imagem do

soberano Ketterij observa a mudanccedila no retrato imperial da eacutepoca claacutessica ateacute a

contemporaneidade250

Partindo da Antiguidade analisa os testemunhos de Taacutecito

248

KETTERIJ 2020 249

LEFEBVRE 2020 250

Em seu trabalho Ketterij (2009 p 3-9) estuda trecircs aspectos da imagem de Nero no intuito de

compreender como seu retrato foi se tornando cada vez mais negativo O primeiro aspecto

avaliado eacute Nero como assassino de seus parentes investigado nas fontes a partir das seguintes

perguntas 1) quais assassinatos satildeo mencionados e vistos como histoacutericos nas fontes 2) esses

assassinatos satildeo motivados Quais satildeo as motivaccedilotildees mencionadas O segundo e o terceiro

aspectos observados satildeo Nero como incendiaacuterio e Nero como perseguidor de cristatildeos procurados

na documentaccedilatildeo por meio de quatro questionamentos 1) Nero eacute visto como um incendiaacuterio 2)

quais motivos satildeo mencionados 3) existe alguma relaccedilatildeo entre o incecircndio de Roma e a

perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 4) e haacute algo dito sobre por que os cristatildeos foram perseguidos Aleacutem

disso Ketterij tambeacutem busca entender a imagem de Nero na contemporaneidade Para tanto aplica

um questionaacuterio em 100 pessoas cristatildes e natildeo cristatildes a fim de descobrir o que pensavam sobre

Nero O resultado eacute surpreendente existem dois locais em que o nome de Nero eacute frequentemente

82

Suetocircnio Diatildeo Caacutessio Eutroacutepio Oroacutesio Sulpiacutecio Severo Aureacutelio Victor

Euseacutebio de Cesareia entre outros concluindo que a maioria dos escritores do

Mundo Antigo era negativa sobre Nero pois suas representaccedilotildees vinculavam-se a

interesses aristocraacuteticos251

Na Idade Meacutedia aponta a intervenccedilatildeo do catolicismo

na representaccedilatildeo de Nero visto por Tertuliano como modelo de depravaccedilatildeo moral

e crueldade252

No Renascimento demonstra que o reavivamento da cultura

claacutessica acrescido agrave redescoberta do texto taciteano criou um Nero tirano Nos

seacuteculos XIX XX e XXI exibe uma mudanccedila de paradigma na reputaccedilatildeo negativa

de Nero devido agrave difusatildeo de trabalhos histoacutericos e biograacuteficos que questionam a

culpabilidade do imperador no incecircndio de Roma e nas mortes de Britacircnico

Agripina e Popeia253

Tal mudanccedila de acordo com a autora manteve a

predominacircncia da imagem hostil visto que a influecircncia cristatilde na longa duraccedilatildeo

incutiu na cultura popular o retrato do Nero Anticristo254

Lefebvre ao seu turno pretende examinar a construccedilatildeo e a evoluccedilatildeo da

figura do monstro Nero somente na Antiguidade Ao fazecirc-lo discute um corpus

textual extenso cuja abrangecircncia comeccedila na morte do soberano e termina nos

escritos de Agostinho o uacuteltimo representante da cultura claacutessica255

A pertinecircncia

do seu livro reside na forma como examina as fontes porquanto se concentra nos

modelos usados pelos antigos para comporem seus retratos de Nero

Por um lado suas visotildees dos fatos satildeo impostas pela perspectiva do seu ambiente geralmente a da ordem senatorial

da qual eles participavam Por outro o treinamento retoacuterico que eles receberam influencia nos lugares da memoacuteria e na representaccedilatildeo dos fatos256

mencionado a Igreja e a Escola Cerca de um quarto dos cristatildeos aprendeu algo sobre Nero na

Igreja ou na Escola Dominical 251

KETTERIJ 2009 p 42-47 252

KETTERIJ 2009 p 35-37 253 KETTERIJ 2009 p 25-34 254

KETTERIJ 2009 p 47 255

No livro a autora investiga a criaccedilatildeo da lenda do monstro Nero Para tanto dedica-se a um

longo exame das fontes latinas e gregas apresentadas de maneira temaacutetica Todos os crimes que

tais fontes imputaram a Nero (crueldade vida voluptuosa amor agraves artes matriciacutedio incecircndio em

Roma entre outros) criaram em torno dele um mito padronizado que os uacuteltimos abreviadores

resumiram Nero eacute o imperador citaredo e matricida Eacute essa imagem que Lefebvre discute nos dois

capiacutetulos centrais do seu estudo intitulados Neacuteronologie Structurale Durante a discussatildeo analisa

a imagem consolidada de Nero como a antiacutetese do priacutencipe do chefe de Estado romano o

soberano ausente da cena poliacutetica estrangeira aleacutem de tambeacutem discutir a imagem do Nero-tirano

que mata as elites por vinganccedila pessoal e natildeo por necessidade poliacutetica 256

LEFEBVRE 2017 p 15

83

A averiguaccedilatildeo dos modelos leva a autora a entender que Taacutecito Suetocircnio

Diatildeo Caacutessio Flaacutevio Josefo Estaacutecio Marcial e muitos outros lidaram com os fatos

segundo as necessidades da sua causa Por exemplo os escritores do ciacuterculo

senatorial frustrados com a perda dos seus privileacutegios delinearam um pessimus

princeps os escritores de liacutengua grega devido ao amor do soberano pela cultura

heleniacutestica focaram na imagem do citaredo e os cristatildeos por causa da

perseguiccedilatildeo privilegiaram o tema da crueldade Contudo um topos norteia todos

os modelos o caraacuteter tiracircnico de Nero257

Lefebvre afirma que os relatos claacutessicos

foram ajustados para comporem um retrato em que a tirania era bem perceptiacutevel

Eles de certa forma estabeleceram diretrizes destinadas a demonstrar a

adequaccedilatildeo de Nero a um tirano e monstro Isso significa que os antigos apagaram

ou alteraram os pretextos que justificariam as atitudes imperiais Como ilustraccedilatildeo

as medidas tomadas pelo soberano apoacutes o incecircndio de Roma em vez de serem

lidas positivamente tornaram-se marcas de ganacircncia258

Ao concluir a autora atesta que os escritores antigos transmitiram por

meio de Nero seus proacuteprios medos seus ressentimentos e suas desilusotildees

colocando-o assim no comando de suas preocupaccedilotildees contemporacircneas Em suma

a figura de Nero

[] evoluiu segundo dois princiacutepios agrave primeira vista contraditoacuterios mutaccedilatildeo e permanecircncia [] A homogeneizaccedilatildeo da figura de Nero e sua reduccedilatildeo em torno de certos toacutepicos foram acompanhadas por um fenocircmeno de esquematizaccedilatildeo

progressiva e de obliteraccedilatildeo dos detalhes [] que imperceptivelmente transformou Nero em um tipo atemporal e a-histoacuterico desconectado da sua realidade primitiva Isto ocorre porque Nero foi percebido menos como um indiviacuteduo especiacutefico e mais como uma encarnaccedilatildeo impessoal de tirania259

Entre as duas pesquisadoras Lefebvre eacute a que mais se aproxima da nossa

proposta De igual modo a ela investigaremos a evoluccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria

negativa acerca do princeps no periacuteodo da Antiguidade utilizando fontes textuais

variadas Nossos trabalhos todavia distanciam-se em trecircs aspectos o temporal o

metodoloacutegico e o teoacuterico No primeiro porque ela natildeo considera a documentaccedilatildeo

contemporacircnea ao imperador e avanccedila para aleacutem do seacuteculo III no segundo

257

LEFEBVRE 2017 p 268-270 258

LEFEBVRE 2017 p 269 259

LEFEBVRE 2017 p 268

84

porque ela investiga os episoacutedios do Principado neroniano apenas de forma

temaacutetica examinando o mesmo evento em fontes de temporalidades distintas e

no terceiro porque ela natildeo utiliza os mesmos conceitos que noacutes a exemplo do de

allelopoiesis inuentio retrato e forma Ainda assim trata-se de um estudo

notaacutevel por sua completude por sua bibliografia e pelo panorama disponibilizado

da ldquofaacutebrica do monstrordquo auxiliando-nos na compreensatildeo dos mecanismos

criadores da lenda negativa de Nero

Estando delineadas todas as cinco visotildees do debate algumas conclusotildees se

impotildeem Em primeiro lugar a figura de Nero mesmo com o passar dos anos

continuou instigante e atual estimulando jornalistas historiadores e literatos a

redigirem obras que o representaram sob distintos vieses Em segundo por mais

que os trabalhos tenham abordado o princeps de modos diferentes a tradiccedilatildeo

literaacuteria negativa sempre esteve presente o que fortalece a perpetuaccedilatildeo do terriacutevel

retrato neroniano Em terceiro vimos que o desenho de tal retrato foi embasado

principalmente nas narrativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio Por mais que

alguns autores tenham utilizado fontes arqueoloacutegicas ou outros documentos

literaacuterios os relatos dos trecircs nunca foram abandonados em sua centralidade fato

que tambeacutem justifica o teacutermino do nosso recorte temporal no seacuteculo III Em

quarto lugar a lenda negativa passou a ser ndash e tem sido cada vez mais ndash

reanalisada por determinados estudiosos interessados em repensar as tradiccedilotildees do

passado Como prova apontamos os nuacutemeros dos nossos grupos tivemos dez

autores que condenaram o soberano (os dispostos nos grupos Nero um mau

imperador e Nero o imperador fantoche) contra os quinze que problematizaram

as atitudes atribuiacutedas a ele (os fixados em Nero um bom imperador Os muacuteltiplos

Neros e Os verdadeiros Neros) Isso revela que os pesquisadores tecircm considerado

com maior precisatildeo as controveacutersias existentes nas fontes hostis ao princeps

atentando-se para os julgamentos dos claacutessicos e para as correntes ideoloacutegicas de

oposiccedilatildeo Talvez essa virada tenha sido ocasionada pelo V Coloacutequio da SIEN

como vimos na introduccedilatildeo do capiacutetulo Ou talvez tenha sido causada pelo

interesse dos historiadores nas uacuteltimas deacutecadas em natildeo trabalhar com a ideia de

que haacute um veacuteu que cobre a realidade do governo de Nero ou a de que as fontes

podem revelar uma verdade uacutenica e clara sobre esse imperador seja ela favoraacutevel

85

seja desfavoraacutevel O essencial eacute que cada vez mais as difamaccedilotildees propagadas

contra o soberano tecircm sido objetos de questionamentos

Todavia essa nova forma de examinar a imagem de um imperador natildeo se

restringe soacute a Nero Por exemplo as avaliaccedilotildees recentes sobre Caliacutegula e

Domiciano tecircm questionado a escrita da Histoacuteria pautada em julgamentos morais

realizada dentro da perspectiva da magistra vitae Os historiadores tecircm produzido

obras que inserem a histoacuteria de cada soberano em seu contexto especiacutefico bem

como analisam as teacutecnicas retoacutericas contidas nas fontes Como exemplos temos

os livros Caligula a Biography composto por Winterling em 2003 e

Deconstructing Imperial Representation Tacitus Cassius Dio and Suetonius on

Nero and Domitian lanccedilado por Schulz em 2019

Outra nova forma deriva da criacutetica agraves democracias modernas as quais tecircm

apontado para os problemas dos sistemas de representaccedilatildeo A falta de qualidade

de determinados governantes eleitos colocou em duacutevida a proacutepria validade do

sistema democraacutetico levando a uma mudanccedila na visatildeo do passado Assim os

pesquisadores uniram a criacutetica ao governante agrave criacutetica ao sistema de governo

tentando entender a seguinte questatildeo satildeo maus sistemas de governo que

produzem maus governantes ou satildeo maus governantes que deturpam bons

sistemas de governo Esse questionamento fez tanto sucesso que em 2020

Painter ndash ex-advogado do Conselho de Eacutetica da Casa Branca ndash e Golenbock ndash

formado pela NYU Law School ndash lanccedilaram o livro American Nero The History of

the Destruction of the Rule of Law and Why Trump is the Worst Offender

De qualquer forma natildeo se trata aqui de trazer agrave tona as mudanccedilas

contemporacircneas nas avaliaccedilotildees sobre o soberano mas sim de compreender as

mudanccedilas nas fontes textuais da Antiguidade situadas na baliza dos seacuteculos I ao

III No capiacutetulo seguinte iniciaremos tal processo a partir da anaacutelise das fontes

coevas ao Principado neroniano a fim de verificarmos como os autores antigos

fizeram-no ndash ou natildeo ndash herdeiro de tudo aquilo que consideravam negativo

Agrave guisa de conclusatildeo deixamos claro que nosso propoacutesito natildeo eacute

desvendar o que as fontes dizem sobre Nero (embora isso seja relevante) e nem

mesmo verificar dentro do que eacute dito aquilo que se aproxima ou natildeo da verdade

Objetivamos menos ainda avaliar o ldquolegadordquo do princeps o que ele teria a nos

ensinar hoje ndash se foi um bom ou um mau modelo de governante ndash e a loacutegica da

86

sua recepccedilatildeo no tempo presente ou em algum momento da modernidade Nosso

ponto de investigaccedilatildeo estaacute mais proacuteximo deste uacuteltimo bloco Logo recusamos a

busca pelo verdadeiro Nero no passado ou por quem eacute Nero para noacutes

Pretendemos estudar de que maneira o retrato do soberano se construiu e foi

sendo composto ao longo dos seacuteculos I a III tendo como foco a composiccedilatildeo desse

retrato e os seus mecanismos sem nos preocuparmos em categorizar um deles

como mais verossiacutemil eou mais uacutetil e tambeacutem sem focar na descriccedilatildeo das

mudanccedilas que se podem perceber nos vaacuterios Neros Queremos analisar os

mecanismos que geraram essas mudanccedilas e na medida do possiacutevel as bases

histoacutericas que os moveram a par do papel especiacutefico da criaccedilatildeo retoacuterica realizada

por cada um dos autores pesquisados Trata-se como se vecirc de uma tarefa

complexa a qual restaraacute sempre parcial e incompleta dado o infinito nuacutemero de

variaacuteveis a se observar Nossa contribuiccedilatildeo a esse debate em pleno curso tanto na

Historiografia quanto na arena puacuteblica seraacute apresentada nos proacuteximos trecircs

capiacutetulos cujos limites e criteacuterios de organizaccedilatildeo jaacute foram divulgados na

introduccedilatildeo Vamos a eles

87

Capiacutetulo 2 Nero originaacuterio (54-69)

Comeccedilaremos agora a investigaccedilatildeo da forma Nero originaacuterio cuja

abrangecircncia envolveraacute os anos de 54 a 69 Tal forma examinaraacute o iniacutecio do

processo de construccedilatildeo da imagem do princeps ou seja o modo como os

escritores da sua eacutepoca o representaram e a seu governo

A preponderacircncia dos textos hostis de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio nos

estudos sobre o soberano fez com que as fontes contemporacircneas ao seu Principado

fossem esquecidas eou ignoradas Essa escolha aleacutem de fortalecer

exageradamente um momento da tradiccedilatildeo negativa desconsidera atitudes

positivas tomadas pelo princeps em vida as quais estatildeo contidas em diversas

narrativas hodiernas a ele A riqueza e a diversidade dessas narrativas satildeo

atestadas por Sullivan que defende o Principado de Nero depois do de

Augusto260

foi um periacuteodo de enorme riqueza cultural Isso porque o soberano

nutria um grande entusiasmo pela literatura pela muacutesica pelas performances

teatrais e pelas declamaccedilotildees poeacuteticas as quais foram estimuladas para muito aleacutem

do utilitarismo poliacutetico Nero promoveu um ldquorenascimento literaacuteriordquo durante o seu

governo uma espeacutecie de ldquoenergia culturalrdquo inovadora que trouxe o ressurgimento

da Idade de Ouro261

O creacutedito por esse renascimento deve ser concedido ao proacuteprio Nero

afirma Sullivan262

Sua enorme devoccedilatildeo pelas artes personificada na expressatildeo

qualis artifex pereo263 ndash criada para representar suas uacuteltimas palavras e

transmitida por Suetocircnio deacutecadas depois ndash concretizou-se na criaccedilatildeo dos

Juvenalia e dos dois Neronias bem como na formaccedilatildeo de um ciacuterculo literaacuterio que

era parte central da Aula Neronis264

Esse grupo era composto por pessoas com

aptidatildeo para as letras cujas habilidades ainda natildeo tinham atraiacutedo atenccedilatildeo

260

Os leitores de literatura latina antiga estatildeo acostumados a conceberem soacute o Principado de

Augusto (3127 aC-14) como um periacuteodo de esplendor poeacutetico A razatildeo deve-se agrave tendecircncia dos

pesquisadores claacutessicos de considerarem Virgiacutelio Horaacutecio Oviacutedio Tibulo e Propeacutercio os maiores

exemplos de excelecircncia e maturidade literaacuterias Tais autores vivenciaram os benefiacutecios da

estabilidade poliacutetica e militar advindos com o fim das guerras civis apoacutes a batalha de Aacutecio

produzindo obras que engendraram a chamada Idade de Ouro (CITRONI 2009 p 8) 261

SULLIVAN 1968 p 454 262

SULLIVAN 1985 p 23 263

ldquoQue grande artista perece comigordquo (Suet Nero 49) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 224) 264

SULLIVAN 1985 p 28

88

puacuteblica265

Entre os membros havia importantes indiviacuteduos da poliacutetica e da

literatura romanas a saber Calpuacuternio Pisatildeo um respeitado senador Cluacutevio Rufo

um historiador consular os futuros imperadores Nerva Viteacutelio e Tito e os

conhecidos autores Petrocircnio e Lucano aleacutem de Secircneca A produccedilatildeo aiacute era

proliacutefica e recompensada por privileacutegios poliacuteticos a exemplo da concessatildeo de

magistraturas e riquezas

Esse grupo estimulou no princeps o desejo de promover escritores

contemporacircneos gerando uma longa lista de talentos Secircneca o gecircnio versaacutetil das

composiccedilotildees Calpuacuternio Siacuteculo o bucoacutelico perfeccionista Lucano o prodiacutegio da

eacutepica Columella o intelectual agrocircnomo Petrocircnio e Peacutersio os notaacuteveis satiristas

Pliacutenio o Velho o ceacutelebre naturalista Luciacutelio e Nicarco os criacuteticos epigramatistas

gregos Aneu Cornuto e Musocircnio Rufo os distintos filoacutesofos estoicos entre

outros autores266

Segundo Faversani Joly e Winterling essa preferecircncia de Nero

pelo campo artiacutestico longe de ser uma mera excentricidade mostra-nos sua forma

de se inserir no ambiente de competiccedilatildeo intra-aristocraacutetica romano e tambeacutem sua

concepccedilatildeo de Principado No seu governo a referecircncia agrave res publica deixa de ser

a base para a posiccedilatildeo imperial A hierarquia poliacutetica tradicional em que a honra

social resultava de cargos poliacuteticos eacute anulada e substituiacuteda por uma alternativa

um tipo de meritocracia passa a ser a base da classificaccedilatildeo social Natildeo honores de

cargos puacuteblicos mas a participaccedilatildeo em ciacuterculos literaacuterios e em competiccedilotildees surge

como a base da gloacuteria imperial267

Essa concepccedilatildeo fez Nero estimular fortemente a elaboraccedilatildeo de obras

literaacuterias Foi desse estiacutemulo que sucederam a Apocolocyntosis e o De Clementia

redigidos por Secircneca as Eclogae por Calpuacuternio Siacuteculo e a Pharsalia por

Lucano Advieram ainda as Saturae (Saacutetiras) de Peacutersio o Laus Pisonis (Elogio a

Pisatildeo) de Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo o De Re Rustica (Da Agricultura) de

Columela e outras composiccedilotildees de Secircneca Trata-se de publicaccedilotildees que embora

tenham o seu proacuteprio valor literaacuterio natildeo seratildeo avaliadas neste capiacutetulo e

explicaremos o porquecirc Por outro lado outras obras como o Satyricon

(Satiacutericon) de Petrocircnio e as Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais) de Secircneca

265

Tac Ann 1416 266

GRIFFIN 2001 p 146-155 267

FAVERSANI JOLY 2020 p 91-92 WINTERLING 2012 p 17

89

entre outras foram escritas no principado de Nero mas com seus autores muito

provavelmente jaacute afastados de sua Aula

No caso de Peacutersio natildeo abordaremos suas Saturae por entendermos em

consonacircncia com Sullivan e Witke que as informaccedilotildees contidas ali natildeo se

dirigem de fato ao imperador268

A obra natildeo cita nomes como objetos de

condenaccedilatildeo e o uacutenico verso das Saturae em que Peacutersio talvez ataque o soberano

ndash Auriculas asini Mida rex habet269 ndash natildeo eacute necessariamente verdadeiro Sullivan

esclarece ldquo[] acredita-se hoje em dia que natildeo haacute um ataque especiacutefico a Nero

na primeira saacutetira de Peacutersio []rdquo pois a difamaccedilatildeo puacuteblica no Principado estava

ligada ao crime de maiestas270 e isso representaria um risco agrave vida do poeta

271 A

afirmaccedilatildeo do autor eacute complementada por Kenney no artigo The First Satire of

Juvenal ldquoHoraacutecio Peacutersio e Juvenal [] natildeo atacam e natildeo poderiam ter atacado

pessoas vivas sem sofrerem as consequecircnciasrdquo272

No tocante a Petrocircnio natildeo investigaremos o Satyricon porque o escritor

aleacutem de natildeo referenciar o princeps supostamente faz apenas algumas alusotildees

contundentes a ele a partir do personagem Trimalquiatildeo Tais alusotildees na visatildeo de

Crum e Highet natildeo satildeo categoacutericas Esse uacuteltimo autor aliaacutes afirma ldquo[] foi

proposto que o que Petrocircnio escreveu em suas uacuteltimas horas e enviou a Nero foi o

Satyricon e que Trimalchiatildeo eacute Nero Isso eacute tatildeo ridiacuteculo que nem precisa de

refutaccedilatildeo []rdquo273

No que tange a Pseudo-Calpuacuternio Siacuteculo e seu Laus Pisonis

compartilhamos do argumento de Champlin ldquoa evidecircncia histoacuterica para os anos

neronianos pode ser resumida de modo breve natildeo existe nenhuma O imperador eacute

pouco mencionado e natildeo haacute alusatildeo a qualquer fato histoacuterico reconheciacutevel []rdquo

Em outras palavras o autor defende que natildeo existe certeza entre os estudiosos se

o Laus Pisonis foi composto durante o governo de Nero bem como natildeo haacute certeza

268

SULLIVAN 1978 p 159-170 WITKE 1984 p 802-812 269

ldquoO Rei Midas tem orelhas de burrordquo (Pers 1121) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Ramsay (1918 p 329) 270

Expressatildeo ldquo[] usada como uma abreviatura para o crime maiestas minuta populi Romani lsquoa

diminuiccedilatildeo da majestade do povo romanorsquo Esta acusaccedilatildeo foi introduzida pela primeira vez por L

Apuleio Saturnino com a lex Appuleia (provavelmente em 103 aC)rdquo Com o tempo a acusaccedilatildeo

passou tambeacutem a englobar qualquer forma de traiccedilatildeo revolta ou falha no serviccedilo puacuteblico (OCD

2012 p 888) Para detalhes cf CHILTON 1955 p 73-81 271

SULLIVAN 1978 p 159 272

KENNEY 1962 p 38 273

HIGHET 1941 p 188 CRUM 1952 p 161-168

90

se o homem identificado como Calpuacuternio Pisatildeo no texto seja o responsaacutevel pela

Conspiraccedilatildeo de 65274

Tudo isso a nosso ver torna o uso da obra problemaacutetico

Quanto a Columella acreditamos que o seu De Re Rustica apesar de ter

sido redigido no governo de Nero traz em seu conteuacutedo soacute informaccedilotildees

agriacutecolas abordando desde tipos de trabalhos campestres ateacute a fabricaccedilatildeo de

conservas Contudo Joly sustenta que a obra incorpora debates poliacuteticos mais

amplos versando acerca da autoridade e do modo imperial de se postar diante da

aristocracia275

Mas tais debates natildeo se encaixam em nossas categorias de anaacutelise

Por fim em relaccedilatildeo a Secircneca natildeo examinaremos seus demais trabalhos

porque os dois citados anteriormente satildeo os uacutenicos em que o filoacutesofo menciona

Nero pelo nome Em todos os outros o soberano natildeo aparece ou quando o faz

surge de modo alusivo situaccedilatildeo que pode gerar leituras controversas e duvidosas

dos episoacutedios276

Secircneca Apocolocyntosis e De Clementia

Comecemos entatildeo por Luacutecio Aneu Secircneca Ele nasceu por volta de 4

aC na colocircnia romana de Coacuterdoba na Beacutetica a mais rica e paciacutefica das

proviacutencias espanholas277

Sua famiacutelia era equestre e tinha origem italiana uma vez

que o sobrenome Aneu proclamava uma ancestralidade uacuteltima do nordeste da

Itaacutelia278

Secircneca era fruto do casamento de Secircneca o Velho com Heacutelvia ocorrido

por volta de 8 aC que resultou no nascimento de trecircs filhos Aneu Novato o

primogecircnito o nosso autor e Marco Aneu Mela pai do poeta Lucano Na

infacircncia em torno do ano 5 mudou-se para Roma e iniciou os estudos orientados

pelo retoacuterico e filoacutesofo Papiacuterio Fabiano o estoico Aacutetalo o ciacutenico Demeacutetrio e o

neopitagoacuterico Soacutecion Mais tarde em 25 empreendeu por questotildees de sauacutede

uma viagem ao Egito cujo prefeito era o marido da sua tia materna279

Tempos

274

CHAMPLIN 1989 p 102 275

JOLY 2003 p 281-299 276

DOODY 2013 p 296 HINE 2006 p 63 277

O nosso propoacutesito natildeo eacute fazer um estudo biograacutefico de Secircneca mas apenas fornecer alguns

dados que facilitem a anaacutelise das fontes Isso se aplicaraacute tambeacutem aos outros autores estudados

nesta tese A respeito da vida de Secircneca cf GRIFFIN 1992 p 29-174 VEYNE 2003 p 1-157 278

GRIFFIN 1992 p 31 279

Star (2012 p 167) esclarece que Secircneca sofria de constantes problemas respiratoacuterios

91

depois regressou a Roma e iniciou o cursus honorum280

exercendo a Questura

entre 31 e 37 e o Tribunato da Plebe entre 38 e 39281

A essa altura seu talento

oratoacuterio deve ter se tornado conhecido pois despertou ciuacutemes em Caliacutegula que

quase o sentenciou agrave morte Mesmo com o reveacutes seu talento continuou atraindo

atenccedilatildeo ateacute 41 quando foi condenado ao exiacutelio na ilha da Coacutersega por Claacuteudio

sob acusaccedilatildeo de adulteacuterio com Juacutelia Livila sobrinha de Claacuteudio e irmatilde de

Caliacutegula Secircneca permaneceu desterrado ateacute 49 quando Agripina garantiu o seu

perdatildeo e o seu retorno transformando-o em tutor do seu filho Nero282

Foi no papel de tutor atuando lado a lado com Burro prefeito da Guarda

Pretoriana que ele presenciou a ascensatildeo de Nero ao trono em 54 tornando-se

seu conselheiro pessoal e poliacutetico Assim ldquoSecircneca que correu o risco de ser

morto por um Ceacutesar e foi exilado por outro passava agora a ser uma das pessoas

mais proacuteximas do imperador []rdquo283

Contudo a morte de Burro em 62 fez a sua

influecircncia como conselheiro diminuir causando sua retirada gradual da vida

puacuteblica Infeliz e suspeito aos olhos de Nero e do novo prefeito da Guarda

Pretoriana Tigelino foi implicado na Conspiraccedilatildeo Pisoniana ocorrida em abril de

65 e alcanccedilado pela repressatildeo que se seguiu Informado de que seria condenado

cometeu suiciacutedio no mesmo ano284

No decorrer da sua vida Secircneca percorreu um enorme espaccedilo geograacutefico

conhecendo as partes ocidental e oriental do Impeacuterio Romano Na trajetoacuteria viu

muitas coisas e comentou sobre vaacuterias delas em suas obras escrevendo acerca de

tudo o que um erudito da sua eacutepoca costumava escrever filosofia mitologia

poliacutetica moral pobreza vida morte e fenocircmenos naturais Entre as obras que

280

Constitui a carreira ou a ordem senatorial ldquoNormalmente por volta dos 18 ou 20 anos de idade

um senador comeccedilava uma carreira como vigintiviri Seguia depois geralmente para uma proviacutencia

na qualidade de tribunus legionis Aos 25 anos tornava-se formalmente membro do Senado na

qualidade de quaestor Depois tornava-se tribunus plebis ou aedilis e com 30 anos atingia o cargo de praetor (os limites etaacuterios muitas vezes quebrados por privileacutegios pessoais eram na praacutetica

limites miacutenimos) Com a categoria de pretor podia exercer alguns cargos da competecircncia do

Senado principalmente o de prococircnsul de uma proviacutencia senatorial mas muitos outros cargos tais

como o de comandante da legiatildeo (legatus legionis) e de governador de uma proviacutencia imperial

(legatus Augusti pro praetore) sem guarniccedilatildeo da legiatildeo ou soacute com uma legiatildeo estavam ao serviccedilo

do imperador e eram por este diretamente concedidos Aos 40 ou mais geralmente aos 43 anos de

idade o senador podia tornar-se cocircnsul havendo vaacuterios todos os anosrdquo (ALFOumlLDY 1989 p 136) 281

Os questores eram os representantes financeiros do governo de Roma responsaacuteveis pela

arrecadaccedilatildeo de impostos e pela administraccedilatildeo do tesouro puacuteblico Por sua vez o Tribunato da

Plebe era a magistratura que atuava juntamente ao Senado em defesa dos direitos e dos interesses

da plebe (ABBOTT 1901 p 44-72) 282

VEYNE 2003 p 9 HABINEK 2014 p 9 283

FAVERSANI 2012 p 15 284

GRIFFIN 1992 p 369

92

sobreviveram dessa diversa produccedilatildeo as de caraacuteter filosoacutefico satildeo as de maior

nuacutemero285

Algumas inclusive foram reunidas no coacutedice ambrosiano intitulado

Dialogi (Diaacutelogos) Temos aiacute tratados breves que abordam questotildees eacuteticas e

psicoloacutegicas cujas publicaccedilotildees variam entre os anos 37 e 62 De Prouidentia

(Tratado sobre a Providecircncia Divina) De Constantia Sapientis (Tratado sobre a

Constacircncia do Saacutebio) De Ira (Tratado sobre a Ira) Ad Marciam de Consolatione

(Consolaccedilatildeo a Maacutercia) De Vita Beata (Tratado sobre a Felicidade) De Otio

(Tratado sobre o Oacutecio) De Tranquillitate Animi (Tratado sobre a Tranquilidade

da Alma) De Brevitate Vitae (Tratado sobre a Brevidade da Vida) Ad Polybium

de Consolatione (Consolaccedilatildeo a Poliacutebio) e Ad Helviam de Consolatione

(Consolaccedilatildeo a Heacutelvia)286

Os demais trabalhos filosoacuteficos transmitidos a noacutes de modo independente

satildeo os sete livros do De Beneficiis (Tratado sobre os Benefiacutecios) redigidos entre

50 e 60 o De Clementia elaborado na passagem dos anos 55 e 56 e os vinte

livros das Ad Lucilium Epistulae Morales (Epiacutestulas Morais a Luciacutelio) compostos

em 62 Aleacutem disso dispomos de trabalhos cientiacuteficos como os sete livros das

Naturales Quaestiones escritos em 62 de nove Trageacutedias com dataccedilatildeo incerta

(Hercules Furens Troades Phoenissae Medea Phaedra Oedipus Agamemnon

Thyestes e Hercules Oetaeus) de uma saacutetira menipeia intitulada Apocolocyntosis

divulgada em 54 e de textos atribuiacutedos a Secircneca como a trageacutedia Octauia

produzida entre 68 e 70 e uma seacuterie de Epigramas287

Tendo em vista todas essas obras Whitton defende que a mais

extravagante desconcertante e cocircmica eacute a Apocolocyntosis288

As razotildees para

tanto satildeo duas i) ela combina rigor filoloacutegico com um toque de liberaccedilatildeo saturnal

e ii) ela eacute um panfleto poliacutetico da nova era neroniana difamando o governo

285

Secircneca identificava-se como estoico e seguia uma tradiccedilatildeo de inovaccedilatildeo filosoacutefica estoica

exemplificada mais claramente por Paneacutecio e Possidocircnio que introduziram alguns exemplos

platocircnicos e aristoteacutelicos enquanto adaptavam o estoicismo agraves circunstacircncias romanas Secircneca

estava preocupado acima de tudo em aplicar princiacutepios eacuteticos estoicos agrave sua vida e agrave vida dos

outros Os toacutepicos principais discutidos por ele eram como reconciliar a adversidade com a

providecircncia como libertar-se das paixotildees (sobretudo a raiva e a tristeza) como enfrentar a morte

como desvincular-se do envolvimento poliacutetico como praticar a pobreza e como beneficiar os

outros (HINE 2010 p xv) 286

BRAUND 2015 p 15-28 287

MARSHALL 2014 p 33-44 288

WHITTON 2013 p 151

93

claudiano em prol do novo Principado289

Sobre a primeira razatildeo Roncali explica

que ela adveacutem do fato de o texto provavelmente ter sido escrito e lido durante as

Saturnaacutelias290

momento em que a ordem social era invertida e o ldquoimperador

tornava-se um palhaccedilo e o palhaccedilo um imperadorrdquo O trabalho eacute uma paroacutedia da

deificaccedilatildeo de um rei dos tolos ou de um tolo rei redigido no espiacuterito

carnavalesco291

Quanto agrave segunda razatildeo Marchetti declara O fato eacute que a

qualidade burlesca embora constitua um dos prazeres da leitura empresta armas

efetivas ao empreendimento da propaganda poliacutetica292

A Apocolocyntosis foi composta logo depois do falecimento de Claacuteudio

ocorrido em 54 A inspiraccedilatildeo derivou do ressentimento de Secircneca em relaccedilatildeo ao

soberano que lhe submeteu ao exiacutelio bem como do desprezo que ele nutria pela

atuaccedilatildeo imperial de Claacuteudio considerado incapaz e abobalhado Ela retrata

portanto a coacutelera do filoacutesofo defronte agraves atrocidades que o princeps cometera

contra ele e contra o ideal de governo romano Eacute o resultado do silecircncio e da fuacuteria

duas forccedilas terriacuteveis que a moldam atravessam-na datildeo-lhe aquele caraacuteter peculiar

que a torna uma obra-prima293

Ao escrevecirc-la Secircneca objetivava ridicularizar a

deificaccedilatildeo de Claacuteudio pois para ele o soberano natildeo merecia nenhuma apoteose

mas sim ser mandado ao inferno294

O texto pertence agrave saacutetira menipeia assim denominado devido agrave Menipo de

Gaacutedara escritor da escola ciacutenica do seacuteculo III aC Infelizmente natildeo haacute como

conhecermos ou caracterizarmos melhor esse tipo de gecircnero295

Satildeo poucos os

textos que sobreviveram desse registro Apesar disso temos acesso a algumas

especificidades graccedilas a uma pesquisa desenvolvida por Bakhtin em seu livro

Problemas da Poeacutetica de Dostoievski no qual elenca 14 aspectos dos quais

289

A presenccedila de uma dimensatildeo poliacutetica na Apocolocyntosis eacute aceita pela maioria dos estudiosos Eden (1984 p 1-23) em sua traduccedilatildeo do texto senequiano discute amplamente tal dimensatildeo 290

Festas em honra ao deus Saturno que aconteciam em dezembro (GRIMAL 2005 p 414) Tais

festas satildeo referidas por Secircneca duas vezes quando Claacuteudio eacute eleito Saturnalicius princeps durante

a assembleia dos deuses e quando apoacutes o falecimento do imperador os iurisconsulti consolam o

choro dos advogados dizendo Dicebam uobis non semper Saturnalia erunt ndash Eu vos falava natildeo

haveraacute sempre as Saturnais (Sen Apoc 82 122) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 31-41) 291

RONCALI 2014 p 678 292

MARCHETTI 1989 p 339 293

GRAMMATICO 1999 p 109 294

ALMEIDA 2014 p 70 O ritual da apoteose grosso modo consistia em transformar o

imperador em uma divindade Resumidamente o ritual pode ser descrito como tendo trecircs fases i)

uma lamentaccedilatildeo puacuteblica realizada no Foacuterum ii) uma procissatildeo dali ateacute o campo de Marte e iii) a

cremaccedilatildeo realizada neste uacuteltimo local (HARTOG 2014 p 177-178) 295

Sobre o que eacute uma saacutetira menipeiana cf RELIHAN 1984 p 226-229

94

destacamos seis Eles fazem referecircncia agrave presenccedila nesse tipo de saacutetira em

questatildeo i) de efeito cocircmico ii) de construccedilotildees de planos (por exemplo ceacuteu e

inferno) iii) de heroacuteis deuses e figuras lendaacuterias e mitoloacutegicas iv) de violaccedilatildeo

das normas v) de enfoques na atualidade e vi) de excepcional liberdade de

invenccedilatildeo do enredo sem nenhuma exigecircncia de verossimilhanccedila Bakhtin enxerga

a saacutetira menipeia como a personificaccedilatildeo literaacuteria de uma visatildeo carnavalesca da

vida uma percepccedilatildeo da sociedade e do mundo construiacuteda a partir de opiniotildees

desafiadoras das coisas296

Estamos lidando entatildeo com um espeacutecime singular da literatura latina

antiga um trabalho de irreverecircncia luacutedica que fabrica a desintegraccedilatildeo de um tema

No caso o tema eacute a apoteose de Claacuteudio e sua desintegraccedilatildeo jaacute inicia no tiacutetulo da

obra uma vez que a palavra grega ἀποκολοκύντωσις (Apocolocyntosis)297

significa ldquoaboborizaccedilatildeordquo ou ldquotransformaccedilatildeo em aboacuteborardquo Silva explica que o

radical apo- presente em apoteose juntou-se agrave palavra latina colocynthis cujo

significado eacute ldquoerva cabaccedilardquo (ldquoaboacuteborardquo) da famiacutelia das cucurbitaacuteceas

Considerando-se que no texto natildeo haacute uma cena em que Claacuteudio sofra uma

verdadeira metamorfose em aboacutebora devemos considerar a mutaccedilatildeo somente no

sentido figurado pois a palavra aboacutebora jaacute era usada entre os romanos para

indicar pessoas tolas298

Constituiacuteda por 15 paraacutegrafos a obra conteacutem um enredo bem simples a

trajetoacuteria percorrida pela alma de Claacuteudio apoacutes a morte em quatro localidades na

Terra no ceacuteu a caminho do inferno e no inferno A trama desenrola-se da

seguinte maneira Claacuteudio estaacute falecendo e Mercuacuterio pede a uma das Parcas que

acelere sua partida O princeps segue para o ceacuteu e eacute anunciado a Juacutepiter que envia

Heacutercules para interrogaacute-lo Um tipo de debate senatorial na Cuacuteria celeste eacute

entatildeo realizado para determinar se o imperador deveria receber o status divino

No meio do debate Juacutepiter e Augusto discursam sendo o uacuteltimo contraacuterio agrave

proposta Em seguida Mercuacuterio acompanha o rejeitado Claacuteudio ateacute o inferno

observando no caminho o seu alegre funeral Ao chegarem ao inferno as viacutetimas

indignadas de Claacuteudio o perseguem perante o tribunal de Eacuteaco e acusam-no de

296

BAKHTIN 1981 p 113-118 297

Diatildeo Caacutessio e apenas ele testemunha que Secircneca escreveu a Apocolocyntosis e que essa

composiccedilatildeo ganhou o tiacutetulo de ἀποκολοκύντωσις (Dio 60353) 298

SILVA 2008 p 16

95

assassinato Ele eacute condenado a jogar dados com uma caixa de dados furada por

toda a eternidade Mas Caliacutegula aparece e o reivindica como seu escravo299

A narrativa encerra-se nesse ponto com a reduccedilatildeo de Claacuteudio a escravo

destinado a jogar um jogo de dados sem fim Depois natildeo temos mais informaccedilotildees

acerca do falecido A falta de notiacutecias poreacutem natildeo muda o fato de que no decorrer

da obra Secircneca aponta os diversos niacuteveis da indignidade do soberano o modo

como ele ldquo[] emporcalhou todas as coisasrdquo300

ndash maledicecircncias reveladoras da

sua real intenccedilatildeo destruir a reputaccedilatildeo de Claacuteudio como princeps mostrando o

quatildeo despreziacutevel ele fora Tal ideia integra uma tendecircncia da literatura do

primeiro seacuteculo de difamar um governante morto para exaltar um vivo301

Assim

Claacuteudio eacute feito um monstro com um Principado abominaacutevel em contrapartida a

Nero que promete uma eacutepoca de ouro idiacutelica A importacircncia da Apocolocyntosis

para a nossa tese reside aiacute na construccedilatildeo de expectativas positivas sobre o

Principado neroniano Secircneca produziu a saacutetira a fim de exaltar o governo

vindouro argumentando que o novo princeps traria um periacuteodo de gloacuterias para

Roma Trata-se nesse sentido de uma obra poliacutetica que nos ajuda a compreender

um episoacutedio a ascensatildeo do Nero prodigioso

Como jaacute dissemos no ano 54 a sociedade romana presenciou o

falecimento de Claacuteudio e a consequente substituiccedilatildeo do trono O stylus de Secircneca

logo comeccedilou a trabalhar anunciando a chegada do novo imperador ldquoDesejo

transmitir agrave histoacuteria aquilo acontecido no ceacuteu no terceiro dia antes dos idos de

outubro em um ano-novo no iniacutecio de um seacuteculo muito felizrdquo302

No anuacutencio a

expressatildeo initio saeculi felicissimi eacute propositalmente usada pelo filoacutesofo para

enfatizar as expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo Principado haja vista que a

morte claudiana deixou para traacutes um periacuteodo de tirania o qual foi aliaacutes muito

criticado no decorrer da obra sendo frisadas a saeuitia (ferocidade) e a crudelitas

(crueldade) do soberano303

Todas essas criacuteticas satildeo feitas por Secircneca no intuito de

celebrar o fim do desgoverno e o surgimento das esperanccedilas Como observam

Faversani e Mancini em contraste com Claacuteudio que deixava o poder Secircneca

299

SULLIVAN 1985 p 49 300

[] omnia certe concacauit (Sen Apoc 43) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 24) 301

WHITTON 2013 p 152 302

quid actum sit in caelo ante diem III idus Octobris anno nouo initio saeculi felicissimi uolo

memoriae tradere (Sen Apoc 11) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 16) 303

Sen Apoc 122 115 104 62 47 13

96

apresenta uma imagem auspiciosa de Nero demonstrando que se dissipavam as

trevas e que a partir do iniacutecio do seu Principado comeccedilava a era das luzes304

Apoacutes o anuacutencio da chegada do novo princeps a narrativa prossegue com a

agonia poacutes-morte de Claacuteudio isto eacute com a tentativa de sua anima (alma) de

abandonar o corpo O filoacutesofo relata que essa jaacute exalava um cheiro ruim natildeo

conseguindo encontrar a saiacuteda Mercuacuterio305

entatildeo aparece e solicita a Cloto uma

das trecircs Parcas306

a liberaccedilatildeo da alma argumentando que o falecido jaacute havia

vivido por 64 anos e que por isso seria mais saacutebio entregaacute-lo agrave morte

consentindo que o ldquomelhorrdquo reinasse no ldquopalaacutecio desocupadordquo307

Vejam que no

argumento mercuriano haacute uma alusatildeo ao fato de Nero ser um soberano melhor do

que Claacuteudio mesmo sem ainda ter governado Acreditamos que Secircneca implanta

tal ideia por um motivo diminuir as contestaccedilotildees durante a ascensatildeo de Nero Por

ser membro da elite o filoacutesofo sabia das criacuteticas poliacuteticas feitas ao Principado

claudiano da sua tendecircncia agrave centralizaccedilatildeo e agrave autocracia E por ser tutor de

Nero sabia da necessidade de posicionar o seu aluno ndash e se posicionar ndash

publicamente favoraacutevel agraves criacuteticas Assim ao sugerir que ldquoo melhor reine no

palaacutecio desocupadordquo ele queria definir a posiccedilatildeo do novo governo conferindo um

plano poliacutetico prodigioso agrave sociedade e ao jovem Nero Nesse aspecto

concordamos com Braren quando afirma que a pretensatildeo de Secircneca natildeo poderia

ser diferente afinal ele estava muito proacuteximo do poder tanto como preceptor de

Nero quanto como aristocrata O filoacutesofo provavelmente detinha informaccedilotildees

que muitos outros natildeo detinham e as usou a favor do novo governo308

Avanccedilando Cloto ouve o apelo de Mercuacuterio e corta o fio da vida de

Claacuteudio309

Em seguida Laacutequesis outra Parca passa a tecer o fio aacuteureo de Nero

304

FAVERSANI MANCINI 2010 p 31-32 305

Mercuacuterio eacute o deus romano protetor dos comerciantes e dos viajantes (GRIMAL 2005 p 306-

307) Como a alma de Claacuteudio ldquoviajariardquo da terra para o ceacuteu eacute ele que aparece para auxiliaacute-lo 306

As Parcas satildeo as deusas do destino Em nuacutemero de trecircs Aacutetropo Cloto e Laacutequesis satildeo

representadas como fiandeiras medindo a bel-prazer a vida das pessoas (GRIMAL 2005 p 355) 307

Sen Apoc 32 Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 20) 308

BRAREN 19941995 p 168-169 309

Sen Apoc 33

97

[] Cingindo e enfeitando os cabelos com o poeacutetico louro

coroando a cabeleira e a face toma de uma niacutevea latilde os puros fios para serem temperados por matildeo feliz os quais conduzidos adquirem cor nova As irmatildes admiram sua latilde fiada muda-se a latilde comum em precioso metal do fio formoso seacuteculos de ouro aproximam-se E natildeo haacute limite para elas que conduzem as favoraacuteveis latildes E alegram-se em encher as matildeos com a latilde doces que satildeo esses deveres310

Notemos que todo o excerto eacute constituiacutedo por expressotildees positivas ldquoniacutevea

latilderdquo ldquopuros fiosrdquo ldquocor novardquo ldquolatilde afiadardquo ldquoprecioso metalrdquo ldquofio formosordquo

ldquofavoraacuteveis latildesrdquo e ldquoseacuteculos de ourordquo Sobre esses uacuteltimos Silva explica que os

romanos confiavam no ritmo regular do universo e na sua virtude regeneradora

esperando que um periacuteodo de horrores fosse substituiacutedo por outro aacuteureo311

Nessa

loacutegica ndash como jaacute dissemos ndash a morte de Claacuteudio representa o fim de uma eacutepoca

de atrocidades ao passo que o Principado de Nero representa um tempo de

tranquilidade e de paz Encontramos a mesma ideia no canto sexto da Eneida de

Virgiacutelio no qual o poeta cita a Idade de Ouro trazida por Augusto

Eis eis o prometido Augusto Ceacutesar

Diva estirpe varatildeo que ao Laacutecio antigo Haacute de os Satuacuternios seacuteculos dourados Restituir e sobre os Garamantes E Indos seu mando propagar dos signos Clima aleacutem situado aleacutem das todas

Do ano e do Sol por onde aos ombros vira O celiacutefero Atlante o eixo ardente

De estrelas tauxiado312

Diante disso julgamos que Secircneca utilizou a referecircncia virgiliana no

intuito de associar a loacutegica da Idade de Ouro augustana ao governo de Nero pois

Augusto foi considerado um modelo de imperador o representante do ideal

romano o fiador da paz da estabilidade da seguranccedila e da ordem313

Claramente

310

at Lachesis redimita comas ornata capillos Pieria crinem lauro frontemque coronans

Candida de niueo subtemina uellere sumit Felici moderanda manu quae ducta colorem

Assumpsere nouum Mirantur pensa sorores Mutatur uilis pretioso lana metallo Aurea formoso

descendunt saecula filo Nec modus est illis felicia uellera ducunt Et gaudent implere manus sunt

dulcia pensa (Sen Apoc 41) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 21) 311

SILVA 2008 p 73 312

Augustus Caesar divi genus aurea condet saecula qui rursus Latio regnata per arva

Saturno quondam super et Garamantas et Indos proferet imperium iacet extra sidera tellus

extra anni solisque vias ubi caelifer Atlas axem umero torquet stellis ardentibus aptum (Verg A

6 792-797) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 254) 313

MENDES 2006 p 40

98

temos aiacute uma ldquopoliacutetica a favor de Nerordquo na qual o filoacutesofo alude ao bom governo

augustano para insinuar que o jovem soberano seria um novo Augusto314

A narrativa progride com a inserccedilatildeo do deus Apolo no texto Ele adentra

para pedir a Laacutequesis que teccedila o fio de Nero agrave sua semelhanccedila

ldquoNatildeo lanccedilais nada oacute Parcas diz Febo [Apolo] que ele dos mortais exceda o tempo de vida a mim semelhante em rosto e em beleza nem em canto nem em voz inferior Aos desventurados felizes seacuteculos ofereceraacute e romperaacute o silecircncio das leis Como Luacutecifer dissipando os astros que fogem [] o

Sol radiante contempla a terra e lanccedila do nascente seus primeiros raios Tal Ceacutesar estaacute presente agora Roma olharaacute tal Nero Brilha com liacutempida honra seu resplandecente rosto e com o cabelo solto sua bela nucardquo Essas coisas disse Apolo315

No Mundo Antigo Apolo era representado como a divindade do sol da

beleza da muacutesica da justiccedila e da liberdade316

Sua entrada na obra constitui uma

estrateacutegia senequiana para comprovar que Nero detinha trecircs atributos

imprescindiacuteveis a um bom princeps beleza talento oratoacuterio e integridade Os dois

primeiros satildeo observaacuteveis na fala de Apolo quando ele diz que Nero era

semelhante a ele em rosto e em beleza possuindo um ldquoresplandecente rostordquo uma

ldquobela nucardquo e natildeo era ldquonem em canto nem em voz inferiorrdquo Ao seu turno a

integridade eacute verificada nas expressotildees ldquoromperaacute o silecircncio das leisrdquo e ldquobrilha

com liacutempida honrardquo as quais sugerem a edificaccedilatildeo por Nero de um Principado

de respeito agraves leis

A opccedilatildeo do filoacutesofo por Apolo tambeacutem marca a ligaccedilatildeo existente entre a

divindade e Augusto Em seu governo esse imperador empregou fortes

referecircncias apoliacutenicas lanccedilando-se como um salvador e protegido do deus sem

precedentes na histoacuteria romana A imagem divina era usada no acircmbito poliacutetico

como siacutembolo de disciplina moralidade e purificaccedilatildeo e no acircmbito cultural como

314

ALMEIDA 2014 p 301 315

ldquoNe demite Parcae Phoebus ait uincat mortalis tempora uitae Ille mihi similis uultu

similisque decore Nec cantu nec uoce minor Felicia lassis Saecula praestabit legumque silentia

rumpet Qualis discutiens fugientia Lucifer astra Aut qualis surgit redeuntibus Hesperus astris

Qualis cum primum tenebris Aurora solutis Induxit rubicunda diem Sol aspicit orbem Lucidus et

primos a carcere concitat axes Talis Caesar adest talem iam Roma Neronem Aspiciet Flagrat

nitidus fulgore remisso Vultus et adfuso ceruix formosa capillordquo Haec Apollo (Sen Apoc 41-2)

Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 22-23) 316

GRIMAL 2005 p 32-34

99

siacutembolo de paz e estiacutemulo agraves artes317

Agrave semelhanccedila de Augusto Nero vinculou o

seu governo agrave proteccedilatildeo de Apolo Eacute bem verdade que o seu viacutenculo era mais

direcionado ao campo artiacutestico mas isso natildeo muda o fato de que os dois principes

se associaram a Apolo na intenccedilatildeo de legitimarem os seus Principados Inclusive

como bem destaca Silva Nero acreditava muito nessa associaccedilatildeo com Apolo e era

saudado por seus bajuladores como sendo o proacuteprio deus Ademais ele se

aproveitou como era praxe desde Juacutelio Ceacutesar dessa associaccedilatildeo dos romanos com

os deuses para se autorrepresentar como a personificaccedilatildeo da justiccedila e da

liberdade318

Assim a escolha de Secircneca pela divindade demonstra claramente o

seu intuito de marcar a vinda de uma nova eacutepoca para o povo romano319

Cabe destacar ainda que os elogios feitos a Nero ao longo da

Apocolocyntosis satildeo sempre dispostos em contrapartida aos defeitos fiacutesicos de

Claacuteudio320

Por exemplo o filoacutesofo menciona o seu comportamento social

indigno o seu jeito coxo de caminhar e a sua peacutessima voz321

Em especial a

menccedilatildeo aos distuacuterbios na fala traz uma criacutetica seacuteria por parte de Secircneca Os

autores Osgood Braund e James afirmam que os aristocratas romanos

valorizavam muito a habilidade de discursar em puacuteblico sendo a voz de um

homem a grande reveladora do seu caraacuteter 322

Logo a dificuldade do falecido em

se expressar aponta uma grave falha poliacutetica de Claacuteudio sua inaptidatildeo para

governar Como ele sofria de um problema de fala ele fornecia ldquo[] o primeiro

exemplo de uma eloquentia indigna de um princepsrdquo323

Se ele natildeo conseguia

controlar o funcionamento baacutesico do seu corpo natildeo conseguiria controlar o

funcionamento do Estado Eacute assim que Secircneca frisa a imperfeiccedilatildeo de Claacuteudio

aproveitando para simultaneamente frisar a perfeiccedilatildeo de Nero324

Nas palavras de

Braund e James o filoacutesofo constroacutei uma relaccedilatildeo significativa entre a aparecircncia do

governante e o caraacuteter de seu regime O mau e fraco Claacuteudio com seu regime mau

317

ZANKER 1988 p 167-238 318

Cabe mencionar que Nero mandou cunhar diversas moedas em que a identidade com Apolo e

outros deuses era bastante niacutetida Cf RIC 178 319

SILVA 2008 p 74 320

Levick (1990 p 14-15) faz uma boa apresentaccedilatildeo das enfermidades fiacutesicas de Claacuteudio 321

Sen Apoc 43 52-3 322

OSGOOD 2007 p 341-345 BRAUND JAMES 1998 p 294 323

OSGOOD 2007 p 342 324

BRAUND JAMES 1998 p 307-308

100

e fraco foi substituiacutedo pelo bom e forte Nero que presidiraacute uma eacutepoca de ouro O

corpo vil de Claacuteudio eacute sucedido pelo corpo belo de Nero325

Retomando a narrativa Laacutequesis ouve as palavras de Apolo e finaliza o

tear do fio de Nero ldquo[] com a matildeo cheia fez Nero e com muitos anos o

brindardquo326

A essa altura cessam no texto as menccedilotildees ao novo princeps e

prosseguem os relatos sobre os destinos da alma claudiana

Em siacutentese entendemos que a Apocolocyntosis espelhou um momento

singular da vida romana cheio de ansiedades e de incertezas A distinta saacutetira

com suas situaccedilotildees extremas e elementos provocativos gerou o riso e a reflexatildeo

acerca do futuro proacuteximo Ela serviu a um fim poliacutetico Secircneca entreteve divertiu

e instruiu a elite romana Claacuteudio foi ejetado do mecanismo de legitimaccedilatildeo

imperial Nero por outro lado foi divinamente estabelecido como soberano

necessaacuterio Adotando o raciociacutenio de Freudenburg o filoacutesofo se apoderou

sabiamente da ocasiatildeo da troca de imperadores inundada por hipocrisias

obrigatoacuterias ndash no caso as formalidades exageradas da apoteose ndash para representar

um velho pouco carismaacutetico e desajeito sendo substituiacutedo por um jovem Apolo

Secircneca reivindicou esse instante como a oportunidade ideal para a implantaccedilatildeo de

um novo tipo de discurso o tipo decididamente antigo republicano de respeito agraves

leis A Apocolocyntosis ldquo[] permite que aqueles que riem juntamente com ela

pensem que desta vez as coisas seratildeo diferentes []rdquo e que a liberdade

republicana estaraacute de volta ao menu327

A obra nos leva ao coraccedilatildeo da ascensatildeo

neroniana criando espaccedilo para um destino grandioso para o Nero prodigioso

Complementarmente eacute imprescindiacutevel ainda demarcar duas questotildees i) a

escolha criativa do filoacutesofo pelo gecircnero menipeacuteico e ii) o uso da inuentio com

excepcional liberdade Secircneca poderia ter optado por qualquer gecircnero literaacuterio

para atacar Claacuteudio e elogiar Nero mas preferiu selecionar aquele que lhe

permitiu utilizar figuras mitoloacutegicas e deuses a exemplo de Mercuacuterio e Apolo e

produzir ao mesmo tempo um riso vituperioso e uma sacralidade prodigiosa

Tambeacutem empregou a inuentio na criaccedilatildeo de situaccedilotildees extraordinaacuterias que

provocaram e brincaram com a verdade328

ndash ou seja contou uma histoacuteria que natildeo

325

BRAUND JAMES 1998 p 295 326

at Lachesis quae et ipsa homini formosissimo faueret fecit illud plena manu et Neroni multos

annos de suo donat (Sen Apoc 42) Traduccedilatildeo de Silva (2008 p 23) 327

FREUDENBURG 2015 p 104-105 328

SILVA 2008 p 12

101

necessariamente era veriacutedica mas que possuiacutea uma ligaccedilatildeo com os eventos do

momento Como citamos anteriormente a invenccedilatildeo na saacutetira menipeia consistia

na libertaccedilatildeo das limitaccedilotildees histoacutericas das exigecircncias da verossimilhanccedila Nesse

sentido a narrativa construiacuteda pautava-se em geral na atualidade sociopoliacutetica329

Isso significa que Secircneca edificou um discurso sobre o ldquoburburinhordquo do momento

ironizando a maacute governaccedilatildeo de um passado recente e saudando a esperanccedila da

nova era de felicidade do presente e do futuro330

O proacuteximo trabalho a ser analisado o De Clementia complementaraacute a

anaacutelise do episoacutedio da ascensatildeo de Nero que novamente seraacute disposto na

categoria Nero prodigioso Ao passo que a Apocolocyntosis possui um tom

satiacuterico ridicularizando a deificaccedilatildeo de Claacuteudio o De Clementia possui um tom

elevado construindo um programa de governo Como veremos nessa obra o

filoacutesofo organizou sua argumentaccedilatildeo a fim de convencer a sua audiecircncia acerca da

melhor forma de conduzir o Principado E eacute aiacute que entrou a inuentio Nero eacute o

soberano que trouxe verossimilhanccedila ao modelo de Estado senequiano Em outras

palavras o melhor Principado soacute existiria se houvesse um Nero em seu comando

De acordo com Schofield o De clementia eacute a performance literaacuteria mais

deslumbrante de Secircneca ldquoum trabalho altamente originalrdquo331

A obra constitui um

manual de conselhos para o jovem imperador tal como o filoacutesofo desejava que ele

fosse nos seus primeiros anos de governo Eacute um texto no qual Secircneca recomenda

a Nero um modelo de Principado centrado predominantemente na virtude da

clemecircncia elemento-chave para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio entre o princeps e os

seus suacuteditos A clemecircncia ldquo[] fazia parte da publicidade do novo regime []rdquo

era a ideologia-base que ajudaria a sociedade a esquecer dos erros do passado e a

focar nos acertos do presente332

A obra data do iniacutecio do governo de Nero entre o final do ano 55 e o

iniacutecio do ano 56 apoacutes o assassinato de Britacircnico333

O texto eacute inspirado na

tradiccedilatildeo dos specula principum (espelhos de priacutencipes) cujo nascimento remonta

329

BAKHTIN 1981 p 114 330

FERREIRA 2008 p 186 331

SCHOFIELD 2015 p 68 332

GRIFFIN 1992 p 135 333

Essa data eacute aceita pela maioria dos estudiosos como por exemplo Braund (2009 p 16)

Todavia alguns pesquisadores delimitam-na antes do assassinato de Britacircnico a exemplo de

Giancotti (1954 p 329-344)

102

agraves monarquias heleniacutesticas do seacuteculo IV aC334

Empenhados em justificar o poder

poliacutetico dos monarcas os filoacutesofos gregos elaboraram manuais de gestatildeo do

Estado no intuito de direcionarem as virtudes do bom soberano em prol da

cidade ldquo[] Os espelhos de priacutencipe tinham como fim mostrar ao governante por

meio dos mais diversos exemplos como a sua accedilatildeo poderia vir em benefiacutecio

daqueles cuja vontade lhe pertenciardquo335

Em relaccedilatildeo agrave estrutura Malaspina informa que o De Clementia eacute um

tratado inacabado provavelmente destinado a compreender trecircs livros dos quais

temos apenas o primeiro e o iniacutecio do segundo totalizando vinte e seis

capiacutetulos336

No primeiro livro Secircneca explica a importacircncia e os benefiacutecios

particulares da clementia para os governantes a qual caracterizaria o priacutencipe

virtuoso ndash que eacute distinguido do tirano ndash como um liacuteder racional quase divino E

no segundo preocupa-se em definir clementia e diferenciaacute-la das noccedilotildees de

piedade e misericoacuterdia337

Mas afinal qual eacute o sentido da palavra clementia para o filoacutesofo No

decorrer do tratado satildeo apresentadas quatro definiccedilotildees i) ldquoa clemecircncia eacute a

temperanccedila de espiacuterito de quem tem o poder de castigar ou ainda a brandura de

um superior perante um inferior ao estabelecer a penalidaderdquo338

ii) ldquo[] eacute a

inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo339

iii) ldquo[] a

clemecircncia eacute a moderaccedilatildeo que retira alguma coisa de uma puniccedilatildeo merecida e

devidardquo340

iv) ldquo[] eacute a clemecircncia que faz desviar a puniccedilatildeo pouco antes da

execuccedilatildeo que poderia ter sido estabelecida por merecimentordquo341

Portanto a

clemecircncia seria uma espeacutecie de justiccedila exercida por uma instacircncia superior de

caraacuteter humanitaacuterio Ao apresentaacute-la desse modo Secircneca natildeo soacute traduziu o

conteuacutedo ideoloacutegico que almejava introduzir no Impeacuterio como tambeacutem

334

Para detalhes sobre o gecircnero dos espelhos de priacutencipes cf GOODENOUGH 1928 335

VIZENTIM 2005 p 92 336

MALASPINA 2014 p 175-176 337

Sen Cl 131 338

Clementia est temperantia animi in potestate ulciscendi vel lenitas superioris adversus

inferiorem in constituendis poenis (Sen Cl 231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 339

[] itaque dici potest et inclinatio animi ad lenitatem in poena exigenda (Sen Cl 231)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 340

Illa finitio contradictiones inveniet quamvis maxime ad verum accedat si dixerimus

clementiam esse moderationem aliquid ex merita ac debita poena remittentem [] (Sen Cl 232)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43) 341

[] Atqui hoc omnes intellegunt clementiam esse quae se flectit citra id quod merito constitui

posset (Sen Cl 232) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 43)

103

demonstrou sua preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo filosoacutefico-moral de Nero ndash e

tambeacutem a vontade de colocar em praacutetica toda uma teoria de governo baseada nos

mais altos padrotildees morais342

Tal preocupaccedilatildeo fica evidente jaacute no proecircmio da obra A primeira frase do

tratado chama a atenccedilatildeo do leitor para as expectativas do filoacutesofo

Dispus-me a escrever a respeito da clemecircncia oacute Nero Ceacutesar

para que eu de certa forma desempenhasse a funccedilatildeo de espelho e te mostrasse a tua pessoa como a que haacute de vir para a maior de todas as satisfaccedilotildees343

Secircneca utiliza o espelho para mostrar a Nero sua verdadeira natureza Mas

natildeo apenas isso o espelho eacute empregado perspicazmente para revelar natildeo soacute o

reflexo do que jaacute existia como tambeacutem do que poderia existir344

Nas palavras de

Schofield ele eacute usado para dar-lhe prazer o prazer de inspecionar e examinar sua

proacutepria boa consciecircncia ndash antes de desviar o olhar e contemplar o destino que teria

a ldquoenorme massardquo (multitudo) da populaccedilatildeo A imagem de si mesmo que Nero

veria quando se olhasse no espelho de Secircneca estaria portanto envolvida em um

autoexame Em suma o que estaacute sendo dito eacute que Nero deveria fazer da clemecircncia

sua primeira e mais elevada prioridade345

E por que tanta preocupaccedilatildeo com a clementia De acordo com Griffin a

razatildeo deve ser procurada em Roma mais precisamente naquela contemporacircnea ao

filoacutesofo346

A clementia passou a ser usada como um conceito de virtude do

homem poliacutetico a partir de 49 aC Segundo Rocha Pereira ela adquiriu uma aura

extraordinaacuteria no tempo das guerras civis ficando particularmente ligada agrave figura

de Ceacutesar a quem o Senado honrou com um templo dedicado a clementia

Caesaris onde a personificaccedilatildeo da clemecircncia aparecia de matildeos dadas com o

general347

O orador Ciacutecero entatildeo ao perceber a relevacircncia da noccedilatildeo helecircnica de

clemecircncia para a posiccedilatildeo do governante inseriu-a nos seus Discursos como

qualidade de um excelente estadista Depois disso os imperadores seguintes se

342

BRAREN 2013 p 20 CORASSIN 1999 p 279 343

scribere de clementia Nero Caesar institui ut quodam modo speculi vice fungerer et te tibi

ostenderem perventurum ad voluptatem maximam omnium (Sen Cl Pr 11) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 37) 344

OLIVEIRA 2000 p 111-112 345

SCHOFIELD 2015 p 69 BRYAN 2013 p 144 346

GRIFFIN 1992 p 149-150 347

ROCHA PEREIRA 1984 p 358

104

apossaram da ideia Augusto adicionou a clementia no seu Res Gestae Tibeacuterio

inscreveu clementia e moderatio em moedas confeccionadas sob o seu Principado

Caliacutegula foi elogiado como clemente pelo Senado e Claacuteudio em seu discurso

inicial prometeu ao Senado que governaria sob o veacuteu da clemecircncia348

Assim

as razotildees de Secircneca para enfatizar a clementia na ascensatildeo de Nero [] satildeo oacutebvias se a clementia era reconhecida como uma das qualidades mais desejaacuteveis em um princeps era a que mais precisava ser destacada em Nero natildeo apenas por causa da sua hereditariedade mas por causa da crueldade do seu antecessor [Claacuteudio]349

Os abusos de Claacuteudio tatildeo repudiados na Apocolocyntosis haviam sido

deixados para traacutes O filoacutesofo queria destacar a tranquilidade com a qual o povo

romano poderia viver haja vista que os tempos de horror tinham acabado Nero

seria o governante virtuoso que inauguraria uma nova era Ele restauraria a fama

da dinastia Juacutelio-Claacuteudia fundada por Ceacutesar e Augusto e interrompida por

Claacuteudio Lido dessa maneira o De Clementia transforma-se em uma espeacutecie de

manifesto otimista do novo Impeacuterio iluminado350

Eacute com essa esperanccedila que Secircneca ainda no proecircmio da obra elogia a

benignidade de Nero insinuando que agora os romanos estavam em seguranccedila

Ceacutesar podes anunciar galhardamente que todas as coisas que vieram confiadas a tua guarda e tutela satildeo consideradas seguras que por teu intermeacutedio nada de mau se prepara contra o Estado [] Isto teria sido difiacutecil se a bondade natildeo fosse natural em ti mas encenada de vez em quando351

Tamanha seguranccedila adviria tambeacutem da inocecircncia do soberano

348

GRIFFIN 2001 p 149 349

GRIFFIN 1992 p 150 350

Na Apocolocyntosis Secircneca afirma que Claacuteudio mandou executar 35 senadores e 221 equestres

(Sen Apoc 141) BRAUND 2009 p 63 351

potes hoc Caesar audacter praedicare omnia quae in fidem tutelamque tuam venerunt tuta

haberi nihil per te neque vi neque clam adimi rei publicae [] Difficile hoc fuisset si non

naturalis tibi ista bonitas esset sed ad tempus sumpta (Sen Cl Pr 115-6) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 38-39)

105

Cobiccedilaste uma distinccedilatildeo bastante rara e que ateacute agora natildeo se

concedeu a priacutencipe nenhum a inocecircncia Esta singular bondade natildeo pocircs a perder tua obra [] Adquiriste este reconhecimento nunca um homem foi tatildeo caro a outro homem quanto tu eacutes ao povo romano []352

Para sublinhar ainda mais o bom caraacuteter de Nero Secircneca relata um

episoacutedio em que o princeps se entristeceu ao assinar a execuccedilatildeo de dois ladrotildees

No momento em que ia condenar dois ladrotildees Burro o teu prefeito [] exigia de ti que escrevesses os nomes dos condenados e por que motivos querias a condenaccedilatildeo Ele insistia para que finalmente fizesses aquilo que era sempre postergado Quando ele constrangido apresentara o documento

e o entregava a ti tambeacutem constrangido exclamaste ldquogostaria de natildeo saber escreverrdquo Que pronunciamento digno Que pudessem ouvi-lo todos os povos que habitam o Impeacuterio Romano [] Que pronunciamento digno da inocecircncia universal do gecircnero humano []353

Na acepccedilatildeo do filoacutesofo uma vez que a natureza do imperador era boa a

realizaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial seria plena E enquanto a administraccedilatildeo

fosse plena a satisfaccedilatildeo dos cidadatildeos tambeacutem seria Nesse sentido Secircneca

reconhece que no Principado de Nero existia

[] uma seguranccedila profunda contiacutenua um direito colocado

acima de toda injusticcedila [] uma forma de Estado que se mostra aos nossos olhos como muito satisfatoacuteria Estado ao qual nada falta para a liberdade absoluta []354

352

Rarissimam laudem et nulli adhuc principum concessam concupisti innocentiam Non perdit

operam nec bonitas ista tua singularis ingratos aut malignos aestimatores nancta est Refertur tibi gratia nemo unus homo uni homini tam carus umquam fuit quam tu populo Romano magnum

longumque eius bonum (Sen Cl Pr 115) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 38-39) 353

Animadversurus in latrones duos Burrus praefectus tuus vir egregius et tibi principi natus

exigebat a te scriberes in quos et ex qua causa animadverti velles hoc saepe dilatum ut

aliquando fieret instabat Invitus invito cum chartam protulisset traderetque exclamasti ldquoVellem

litteras nesciremrdquo O dignam vocem quam audirent omnes gentes quae Romanum imperium

incolunt quaeque iuxta iacent dubiae libertatis quaeque se contra viribus aut animis attollunt O

vocem in contionem omnium mortalium mittendam in cuius verba principes regesque iurarent O

vocem publica generis humani innocentia dignam [] (Sen Cl 211-3) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 41) 354

Multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta

adfluens ius supra omnem iniuriam positum obversatur oculis laetissima forma rei publicae cui

ad summam libertatem nihil deest nisi pereundi licentia (Sen Cl Pr 118) Traduccedilatildeo de Braren

(2013 p 39)

106

Todas as qualidades do princeps fizeram com que o seu governo fosse

considerado superior ao do grande Augusto e ao de Tibeacuterio

Ningueacutem fala mais do divino Augusto nem dos primeiros tempos de Tibeacuterio Ceacutesar nem querendo imitar um modelo procura outro aleacutem do teu avalia-se o teu Principado por esta prova355

A mansidatildeo de Nero difundiu-se por todo o vasto territoacuterio do Impeacuterio

levando-o a uma eacutepoca de grandiosidade ldquo[] brotam a partir desta soacutelida

substacircncia e em seu devido tempo [as coisas fingidas] desenvolvem-se em algo

maior e melhorrdquo356

Movendo-se do proecircmio para o primeiro e o segundo livros do tratado

Secircneca abandona o discurso filosoacutefico-moral para iniciar o discurso praacutetico-

poliacutetico Vizentim explica que eacute aiacute onde ele se baseia na tradiccedilatildeo dos espelhos de

priacutencipe para desenvolver a teoria por traacutes da sua obra qual seja converter o

despotismo em monarquia tornando o absolutismo poliacutetico aceitaacutevel desde que a

moralidade e a poliacutetica se unam e que o rei virtuoso possa ser um modelo para

seus governados357

Tal ideia conforme a autora ligava-se agraves circunstacircncias

histoacutericas nas quais o De Clementia foi composto Sob o Impeacuterio o regime

adotado jaacute natildeo era mais tatildeo combatido e tudo dependia de um uacutenico homem O

foco era a figura do indiviacuteduo do priacutencipe era o seu poder que estava em jogo

que seria contestado O soberano deveria se configurar como o elemento de

ordenaccedilatildeo puacuteblica de forma a natildeo permitir a desagregaccedilatildeo das forccedilas do Impeacuterio

Secircneca entatildeo percebeu que a monarquia necessitava de novas razotildees para se

manter358

Foi por isso que defendeu a clemecircncia o modelo ideal de soberania soacute

existiria se fosse pautado nos auspiacutecios da clementia Esta orientaria a vida do

princeps disciplinando seus caprichos e garantindo a ele um bom desempenho A

Repuacuteblica seria personificada pelo imperador com a clemecircncia transformando-o

no ldquomaiorrdquo por proporcionar um componente humaniacutestico Ela ajudaria Nero a

355

[] nemo iam divum Augustum nec Ti Caesaris prima tempora loquitur nec quod te imitari

velit exemplar extra te quaerit principatus tuus ad gustum exigitur (Sen Cl Pr 116) Traduccedilatildeo

de Braren (2013 p 39) 356

[] Ex solido enascuntur tempore ipso in maius meliusque procedunt (Sen Cl Pr 116)

Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39) 357

VIZENTIM 2005 p 97 358

OMENA 2002 p 89

107

manter seu poder coeso e duradouro pois o coibiria de praticar abusos juriacutedicos

conservaria a felicidade dos cidadatildeos e manteria a seguranccedila359

O que se apreende enfim eacute que a clemecircncia seria o elemento de liberdade

sob o exerciacutecio do poder absoluto do princeps Em um regime de caraacuteter absoluto

sem qualquer controle externo ela seria a uacutenica restriccedilatildeo sobre o imperador

aquilo que o impediria de governar tiranicamente360

Como afirma o proacuteprio

filoacutesofo o poder natildeo precisa ser nocivo se estiver constituiacutedo sob a lei da

natureza361

De sua praacutetica adviriam a paz e o cumprimento das leis Soberano e

suacuteditos coexistiriam em harmonia e os interesses de ambos seriam preservados e

respeitados Soacute assim Nero ganharia o consentimento e a devoccedilatildeo dos cidadatildeos

peccedilas-chave para a estabilidade do Estado362

Todo esse debate acerca da teoria senequiana foi desenvolvido com um

objetivo mostrar as consequecircncias da desconsideraccedilatildeo da clemecircncia pelos

soberanos No segundo livro do De Clementia Secircneca denuncia as condutas

autoritaacuterias dos priacutencipes salientando os momentos em que suas vontades

ameaccedilaram a liberdade dos cidadatildeos Nessa perspectiva contrapotildee o imperador

clemente agrave figura do tirano culpado por exorbitar o absolutismo e a

arbitrariedade Ele critica a dissipaccedilatildeo praticada pelos tiranos em contraste com a

liberalidade autocontrolada do soberano justo e clemente363

Como ilustraccedilatildeo

aponta as falhas de Augusto e Claacuteudio durante os seus Principados enfatizando

suas atitudes crueacuteis Tal discussatildeo eacute bastante relevante para a nossa tese haja vista

que o filoacutesofo aponta essas falhas a fim de argumentar que Nero jamais as

cometeria pois era virtuosamente superior aos dois

Em relaccedilatildeo a Augusto Secircneca comenta que ele soacute aderiu agrave clemecircncia

quando jaacute havia se tornado velho e experiente364

Antes disso foi um princeps de

ldquocabeccedila quenterdquo conduzindo Roma de modo atroz e sanguinaacuterio Nero por outro

359

VIZENTIM 2005 p 96-97 360

Secircneca deixa claro que a clemecircncia natildeo deveria ser usada a qualquer custo mas com razatildeo e

discernimento O mote era a medida ldquodevemos manter um padratildeo mas como todo comedimento eacute

difiacutecil tudo o que for aleacutem da equidade deveraacute pender para o lado mais humanitaacuteriordquo modum

tenere debemus sed quia difficile est temperamentum quidquid aequo plus futurum est in partem

humaniorem praeponderet (Sen Cl Pr 22) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 40) 361

Sen Cl 3171 362

GONCcedilALVES 1999 p 68 363

CORASSIN 1999 p 281 364

Rudich (1997 p 63) acrescenta que a adesatildeo de Augusto agrave clemecircncia natildeo foi um movimento

espontacircneo do coraccedilatildeo mas o resultado de um frio caacutelculo poliacutetico

108

lado trazia a clemecircncia a bondade e a mansidatildeo consigo desde jovem natildeo

derramando uma uacutenica gota de sangue civil Vejamos

[] Na juventude [Augusto] inflamou-se e a coacutelera arruinou-o fez muitas coisas agraves quais voltava os olhos constrangido Ningueacutem ousaraacute comparar a tua mansidatildeo agrave do divino Augusto mesmo se fossem levados agrave disputa os teus anos juvenis e a velhice dele mais do que madura [] A verdadeira clemecircncia

Ceacutesar eacute esta que tu desempenhas e que natildeo tendo arrependimento de seviacutecias praticadas comeccedila sem qualquer maacutecula sem nunca ter derramado sangue civil [] Preservaste Ceacutesar a naccedilatildeo sem sangue e o fato que tanto glorificou teu grande espiacuterito eacute que natildeo derramaste nenhuma gota de sangue humano em todo o mundo []365

Griffin argumenta que Secircneca realccedila a conversatildeo tardia de Augusto agrave

clemecircncia para tornar a clementia juvenil de Nero notaacutevel366

O seu propoacutesito era

aumentar a credibilidade de Nero indicando a sua superioridade em relaccedilatildeo ao

seu ancestral Natildeo podemos nos esquecer de que na Apocolocyntosis o filoacutesofo

apresentou Augusto como um governante ideal e o associou a Nero defendendo

que o Principado neroniano seria tatildeo bom quanto o augustano367

Agora poreacutem

Secircneca proclama que Nero seria melhor do que Augusto e natildeo mais igual Para

Croisille e Ehrhardt Augusto deveria ser imitado mas sobretudo ultrapassado368

O governo de Nero por se aproximar do de Augusto no tempo suplantaria

[] o modelo estabelecido por esse uacuteltimo de modo a ser

tomado a partir de entatildeo como o paradigma por excelecircncia a ser seguido pelas geraccedilotildees futuras [] Augusto nesse sentido deixa de ser um ideal para se tornar apenas uma referecircncia sobre quem Nero tem uma superioridade moral []369

No que se refere a Claacuteudio o filoacutesofo manteacutem o mesmo discurso da

Apocolocyntosis a saber o de que ele era um monstro com um Principado

365

[] in adulescentia caluit arsit ira multa fecit ad quae invitus oculos retorquebat Comparare

nemo mansuetudini tuae audebit divum Augustum etiam si in certamen iuvenilium annorum

deduxerit senectutem plus quam maturam [] [] Haec est Caesar clementia vera quam tu

praestas quae non saevitiae paenitentia coepit nullam habere maculam numquam civilem

sanguinem fudisse [] Praestitisti Caesar civitatem incruentam et hoc quod magno animo

gloriatus es nullam te toto orbe stillam cruoris humani misisse eo maius est mirabiliusque quod

nulli umquam citius gladius commissus est (Sen Cl 1111-3) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 59) 366

GRIFFIN 1992 p 411 367

Sen Apoc 41-2 368

CROISILLE 1994 p 58 EHRHARDT 2001 p 134 369

VIZENTIM 2005 p 182

109

abominaacutevel370

No De Clementia a sua crueldade novamente eacute rememorada

com ecircnfase na natureza autocraacutetica e ilegal do seu governo Secircneca explana as

repetidas puniccedilotildees de parriciacutedios autorizadas por Claacuteudio as quais serviram para

transformar as condenaccedilotildees em espetaacuteculos ao inveacutes de ajudarem na correccedilatildeo dos

criminosos ldquoteu pai durante cinco anos mandou costurar dentro de sacos muito

mais condenados do que ouvimos mencionar em todos os seacuteculosrdquo371

O retrato

claudiano eacute divulgado como exemplum de despotismo vinculado sobretudo agrave

falta de preocupaccedilatildeo com o exerciacutecio da justiccedila Ele representa o desgoverno

siacutembolo de oacutedio e rebeliatildeo enquanto Nero simboliza o governo de um homem

racional e clemente Para Roller o contraste com Claacuteudio eacute feito tambeacutem como

alternativa para Nero escolher por si mesmo um caminho diferente ldquoNa verdade

o De Clementia pode ser considerado como um esforccedilo urgente para estabelecer

um modelo para o jovem imperador que o levaraacute a agir de maneira vantajosa para

os aristocratas []rdquo para que eles natildeo sofram mais humilhaccedilotildees e injuacuterias como

as que ocorreram no reinado anterior372

Como argumentam Bryan e Bueno o

foco na clementia de Nero uma virtude essencialmente ligada agrave praacutetica juriacutedica

serve para enfatizar sua diferenccedila em relaccedilatildeo a Claacuteudio para afastar a imagem do

novo imperador de seu antecessor conhecido por suas ilegalidades373

Cabe salientar que as criacuteticas a Claacuteudio foram o meio utilizado por Secircneca

para lembrar os seus leitores dos tempos sombrios enfrentados por Roma Afinal

ele mesmo tinha sofrido com os desmandos imperiais Mas com Nero Roma

poderia sentir-se protegida pois detinha um princeps manso de coraccedilatildeo E isso

para o filoacutesofo jaacute se refletia pela cidade ldquo[] hoje a todos os teus cidadatildeos

obriga-se a confessar que satildeo felizes e que jaacute nada mais se pode acrescentar agraves

suas venturas exceto que sejam permanentesrdquo374

A magnificecircncia do novo

soberano natildeo podia mais ser ocultada ldquo[] a ti natildeo eacute dado esconder-te mais do

370

Sen Apoc 122 115 104 62 47 13 371

pater tuus plures intra quinquennium culleo insuit quam omnibus saeculis insutos accepimus

(Sen Cl 1231) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 72) 372

ROLLER 2001 p 247 373

BRYAN 2013 p 144 BUENO 2016 p 125 374

[] multa illos cogunt ad hanc confessionem qua nulla in homine tardior est securitas alta

(Sen Cl Pr 17) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 39)

110

que ao sol Existe muita luz agrave tua volta para ela convergem os olhos de todos e se

julgas poder mostrar-te elevas-terdquo375

Enfim o De Clementia foi elaborado por Secircneca para integrar o momento

da ascensatildeo de Nero fornecendo a ideologia do novo Principado Em periacuteodos de

trocas de imperadores era de se esperar que a elite romana ficasse ansiosa com as

direccedilotildees do proacuteximo governo E Secircneca soube aproveitar muito bem esse instante

para assegurar a todos que o novo princeps possuiacutea as virtudes necessaacuterias para

construir um excelente Principado E ainda que ele natildeo as tivesse o filoacutesofo

estava mostrando o caminho a seguir um modelo ideal de soberania baseado nos

auspiacutecios da moderaccedilatildeo Esta orientaria sua proacutepria vida disciplinaria seus

caprichos e ambiccedilotildees pessoais visando a uma finalidade uacutenica proporcionar um

bom desempenho como chefe do imperium cumprindo nestas condiccedilotildees suas

funccedilotildees como um homem sapiente e como tutor rei publicae Restava soacute um

princeps virtuoso com poderes extraordinaacuterios para ordenar os indiviacuteduos

dispostos agrave desordem376

Este era Nero Em breve ele revelaria a sua alma

clemente atraveacutes de boas accedilotildees mostrando-se como o Nero prodigioso e todos

poderiam saudar sua ascensatildeo ldquo[] como o iniacutecio de um novo seacuteculo de uma

idade de ouro de caraacuteter quase miacutesticordquo377

Calpuacuternio Siacuteculo Eclogae

Discutida a ascensatildeo do soberano nas duas obras senequianas

abordaremos a partir deste ponto a presenccedila dela nas Eclogae de Calpuacuternio

Siacuteculo Tal poeta eacute pouquiacutessimo estudado na atualidade sendo negligenciado por

completo ou quando notado descartado com desprezo378

Na concepccedilatildeo de

Martin um fator significativo contribui para isso a comparaccedilatildeo da sua obra com

aquelas de mesmo nome dos seus dois ilustres predecessores Teoacutecrito e Virgiacutelio

O autor alega que o texto de Calpuacuternio natildeo possui a profundidade dos seus

precursores o que natildeo quer dizer que seu trabalho natildeo tenha meacuterito algum Ao

375

[] tibi non magis quam soli latere contingit Multa circa te lux est omnium in istam conversi

oculi sunt prodire te putas Oriris (Sen Cl 184) Traduccedilatildeo de Braren (2013 p 54) 376

FAVERSANI 2012 p 141 377

GUARINELLO 1996 p 58 378

FEAR 1994 p 269

111

contraacuterio sua poesia eacute encantadora e tecnicamente habilidosa379

ndash aspecto que

aliaacutes foi confirmado por vaacuterios outros classicistas a partir da segunda metade do

seacuteculo XX gerando um aumento do interesse cientiacutefico pelo poeta380

As novas investigaccedilotildees tiveram que lidar com a nebulosidade em torno da

biografia de Calpuacuternio Sua vida ainda hoje eacute pouco conhecida pelos modernos e

poder-se-ia dizer incompreendida381

Tudo o que sabemos sobre ele adveacutem das

descriccedilotildees e alusotildees presentes em seus proacuteprios versos382

Determinados trechos

por exemplo permitem-nos afirmar que ele era um homem humilde e de escassos

recursos e que nutria um enorme desejo de singrar na vida383

Outros possibilitam-

nos propor a localizaccedilatildeo da sua cidade natal no sul da Itaacutelia mais especificamente

na Siciacutelia384

o que explicaria o cognomen Siacuteculo385

A essa proposiccedilatildeo somam-se

vaacuterias menccedilotildees a plantas e a animais da regiatildeo mediterracircnica como faia platanus

orientalis e hystrix Talvez entatildeo Amat teria razatildeo ao estabelecer que a melhor

hipoacutetese parece ser a mais simples aquela que faz de Calpuacuternio Siacuteculo um

siciliano por origem386

As Eclogae estatildeo inseridas no gecircnero bucoacutelico estilo que encontrou

poucos representantes no seu longo caminhar sendo produzido pelo grego

Teoacutecrito no seacuteculo III aC e depois adotado pelos latinos Virgiacutelio Calpuacuternio e

Nemesiano nos seacuteculos I e III387

Segundo Santos a poesia bucoacutelica possui como

pano de fundo o cenaacuterio campestre ruacutestico com um protagonista que pastoreia

cabras eou ovelhas Esse pastor eacute um indiviacuteduo que vive uma vida modesta e

tranquila em meio agrave natureza fora das agitaccedilotildees citadinas Eacute um homem que

busca a paz em seu existir e que aparece vestido singelamente e acompanhado dos

seus cajados e dos catildees enquanto se ocupa de cantigas sobre amores sonhos e

tristezas Calpuacuternio em especiacutefico eacute um apaixonado pelas belezas naturais e

379

MARTIN 1996 p 17 380

A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo tivemos trecircs novas traduccedilotildees criacuteticas das Eclogae feitas por Verdiegravere

(1954) Korzeniewski (1971) e Amat (1991) bem como pesquisas sobre sua tradiccedilatildeo manuscrita

suas caracteriacutesticas literaacuterias e sua relaccedilatildeo com a ideologia imperial 381

Para detalhes biograacuteficos do poeta cf BEATO 1995 p 617-627 382

AMAT 1991 p vii 383

Calp Ecl 193-95 384

Calpuacuternio na Ecloga 1 refere-se agrave planta fagus aquas (ldquopinhalrdquo) (Calp Ecl 19) Segundo

Beato (1996 p 16) essa planta a faia apesar de se encontrar cultivada de forma geral nas

montanhas da Europa era muito mais faacutecil de ser encontrada na Siciacutelia 385

Era costume dos autores de eacutepocas remotas adotar como sobrenome o nome de sua paacutetria

(REBELLO 2004 p 75) 386

AMAT 1991 p x 387

Para detalhes a respeito do gecircnero bucoacutelico cf ALPERS 19721973 p 352-371

112

pelos prazeres campestres apresentando-nos uma imagem idealizada mas natildeo

irreal da vida rural em uma linguagem plena de vivacidade realismo e humor388

Esse sentimentalismo eacute exibido nas Eclogae em sete livros os quais

abordam temaacuteticas variadas 1) poliacutetica 2) idealismo pastoril 3) idealismo

pastoril poder da canccedilatildeo 4) poliacutetica 5) realidade ruacutestica 6) realidade ruacutestica

poder da canccedilatildeo e 7) poliacutetica Os princiacutepios da organizaccedilatildeo da obra satildeo bem

claros nas Eclogae 1 4 e 7 o poeta preocupa-se com a esfera poliacutetica ao passo

que nas Eclogae 2 3 5 e 6 atenta-se para questotildees ruacutesticas usuais O primeiro

grupo de poesias eacute o uacutenico em que Calpuacuternio cita acontecimentos ensejam

especulaccedilotildees acerca do seu tempo histoacuterico qual seja o Principado neroniano389

Grande parte dos pesquisadores aceita essa dataccedilatildeo devido agraves referecircncias do poeta

a um princeps jovem belo patrocinador de jogos esplecircndidos e sucessor de um

governante tiracircnico390

Keene inclusive declara que as evidecircncias a favor da

eacutepoca neroniana satildeo esmagadoras e que o ldquo[] reinado de nenhum outro

imperador apresenta tantas coincidecircnciasrdquo391

Assim tambeacutem consideraremos

essa demarcaccedilatildeo como a mais provaacutevel utilizando-nos dos versos calpurnianos

para examinarmos dois episoacutedios da vida de Nero a sua ascensatildeo e a realizaccedilatildeo

de jogos em um anfiteatro O primeiro seraacute lido sob a oacutetica da categoria Nero

prodigioso e o segundo sob a da Nero construtor O episoacutedio da ascensatildeo

aparece basicamente nas Eclogae 1 e 4 o dos jogos na 7

A primeira bucoacutelica inicia-se com os pastores Coacuteridon e seu irmatildeo Oacuternito

protegendo-se do calor veranil no interior de um bosque agrave sombra de uma aacutervore

faia Enquanto desfrutam do momento refrescante veem um poema gravado na

casca da faia o qual verificam ter sido escrito pelo deus Fauno392

Coacuteridon entatildeo

sugere a Oacuternito que leia o poema divino em voz alta

388

SANTOS 2003 p 8-39 389

BEATO 1996 p 51 DAVIS 1987 p 32 TOWNEND 1980 p 166-174 390

Existem poucos pesquisadores que fogem de tal delimitaccedilatildeo como Champlin (1978 p 95) que

defende que as Eclogae podem ser alinhadas com os reinados de Heliogaacutebalo e Severo Alexandre 391

KEENE 1885 p 377 392

Fauno foi ldquo[] um antiquiacutessimo deus de Roma cujo culto estava localizado no Palatino ou nas

suas imediaccedilotildees Pelo nome aparece como um deus benfazejo lsquofavoraacutevelrsquo (qui fauet) protetor

em particular dos rebanhos e dos pastores []rdquo (GRIMAL 2005 p 166)

113

[Oacuternito] ldquoEu Fauno [] que protejo os bosques e

as montanhas anuncio aos povos o futuro apraz-me gravar nesta aacutervore sagrada estes felizes versos reveladores dos destinos Alegrai-vos principalmente voacutes oacute habitantes dos bosques alegrai-vos voacutes oacute povos da Itaacutelia Embora todo o rebanho vagueie sem preocupaccedilatildeo de guarda e o pastor natildeo queira fechar os estaacutebulos agrave

noite com o cancelo de freixo nem assim o ladratildeo faraacute assaltos aos redis ou soltos os cabrestos roubaraacute os animais de carga Assegurada a paz renasce a Idade de Ouro e uma vez eliminada a torpeza e a sordidez a beneacutefica Teacutemis regressa enfim agrave terrardquo393

A passagem possui uma linguagem profeacutetica anunciadora do renascimento

da Idade de Ouro Para Beato e Momigliano Calpuacuternio estaacute se referindo aiacute aos

tempos advindos com a nova sucessatildeo da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Os autores

sustentam que o poeta provavelmente escreveu esses versos nos primeiros meses

do novo Principado a fim de divulgar uma visatildeo auspiciosa do soberano O seu

intento era propagar os sinais de um presente proacutespero surgido haacute pouco no

horizonte e regido por um jovem deus Nero seria aquele que instauraria uma

eacutepoca nova em Roma restaurando a paz e implementando uma seguranccedila

generalizada394

Tal seguranccedila inclusive eacute marcada por Calpuacuternio logo nas

primeiras linhas onde o Fauno cita os benefiacutecios que seratildeo obtidos pelos coloni

com o governo vindouro os ladrotildees natildeo faratildeo mais assaltos aos redis e nem

roubaratildeo os animais de carga

Sobre essa passagem eacute possiacutevel ainda extrairmos conotaccedilotildees mais

profundas A menccedilatildeo ao retorno da Idade Aacuteurea retoma versos da Eneida nos

quais Virgiacutelio louva os seacuteculos dourados (aurea saecula) trazidos por Augusto395

Como jaacute dissemos Augusto foi apreciado como o grande pacificador do Impeacuterio

responsaacutevel por retirar Roma das turbulentas guerras civis e restituir o mos

maiorum aos moldes tradicionais Ao realizar a intertextualidade com a eacutepica

Calpuacuternio constroacutei um discurso laudatoacuterio identificando Nero positivamente com

393

[Ornytus] ldquoqui iuga qui siluas tueor satus aethere Faunus haec populis uentura cano iuuat

arbore sacra laeta patefactis incidere carmina fatis uos o praecipue nemorum gaudete coloni

uos populi gaudete mei licet omne uagetur securo custode pecus nocturnaque pastor claudere

fraxinea nolit praesepia crate non tamen insidias praedator ouilibus ullas afferet aut laxis

abiget iumenta capistris aurea secura cum pace renascitur aetas et redit ad terras tandem

squalore situque alma Themis posito iuuenemque beata sequunturrdquo (Calp Ecl 133-44)

Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 394

BEATO 1996 p 21 MOMIGLIANO 1944 p 97 395

Verg A 6 792-797

114

Augusto Nero eacute o novo Augusto aquele que recuperaria os ecos de um passado

feliz controlando os conflitos civis e fixando a paz396

Isso fica mais evidente se

atentarmos para o retorno da ldquobeneacutefica Teacutemisrdquo presente no excerto Na mitologia

antiga Teacutemis era considerada a divindade da justiccedila da lei e da ordem capaz de

equilibrar o mundo entre as leis universais e as paixotildees humanas397

A alusatildeo a

ela entatildeo indica o regresso de um periacuteodo de justiccedila em Roma personificado na

figura do jovem princeps A administraccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica equilibrada e

harmocircnica que predominou nos anos augustanos ndash e que foi negligenciada por

Claacuteudio ndash estava de volta Com a deusa o poeta expressa as suas esperanccedilas as

de que a ldquomiseacuteriardquo e o ldquodesmazelordquo mantivessem-se distantes Nesse ponto

concordamos com Dominik Garthwaite e Roche ela eacute uma escolha apropriada

para o contexto pois combina poderes divinos com a autoridade legal incorporada

pelo jovem priacutencipe398

Eacute necessaacuterio destacar que o elemento literaacuterio da eacutepoca aacuteurea permite-nos

aproximar as Eclogae da Apocolocyntosis Nas duas obras o elemento se destaca

na primeira temos um Fauno anunciando o advento da Idade de Ouro e na

segunda vemos a Parca Laacutequesis tecendo o fio de ouro da vida de Nero Mayer

afirma que existe uma grande possibilidade de Calpuacuternio ter se inspirado na saacutetira

senequiana para a composiccedilatildeo do seu trabalho Isso porque no princiacutepio do

governo de Nero houve um renascimento do gecircnero bucoacutelico sendo Calpuacuternio

um dos representantes do movimento O poeta entatildeo embarcou no elogio contido

na saacutetira de Secircneca para construir o seu proacuteprio fato que revela um sentimento

comum entre ambos expectativas positivas em relaccedilatildeo ao novo governo399

Em suma o marco nestes versos iniciais da primeira Ecloga eacute o retorno

da paz e da justiccedila augustanas ao Principado de Nero ideia consolidada por

Calpuacuternio no prosseguir da profecia fauniana

396

MENDES 2006 p 40 DAVIS 1987 p 41 POSTGATE 1902 p 40 397

GRIMAL 2005 p 435-436 398

DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 313 399

MAYER 2006 p 454

115

[Oacuternito] ldquoEnquanto um deus em pessoa governar

os povos a iacutempia Belona poraacute as matildeos vencidas atraacutes das costas e despojada de armas lanccedilaraacute mordeduras loucas contra as suas proacuteprias entranhas e travaraacute contra si as guerras civis que recentemente difundiu em todo o orbe Roma jaacute natildeo choraraacute desastres [] nem cativa celebraraacute quaisquer triunfos Todas as

guerras seratildeo encerradas no caacutercere Tartaacutereo [] A paz apresentar-se-aacute esplendorosa []rdquo400

O fim do derramamento de sangue eacute representado pela referecircncia agrave deusa

da guerra Belona401

a qual eacute pintada de modo impotente despojada de suas armas

e com as matildeos amarradas nas costas Sem poder pois o jovem deus a dominou

ela natildeo consegue instigar uma guerra civil e passa a se autodestruir cravando

dentadas em suas entranhas Outra vez o poeta pega emprestado versos da

Eneida porquanto Belona surge no escudo de Eneias para retratar a vitoacuteria de

Augusto na batalha de Aacutecio402

No meio ecircneas armadas e Aacutecias guerras Todo a ferver Leucate em marte instruto Com o ouro viras fulgurar as ondas

Caacute nrsquoalta popa Augusto arrasta aos preacutelios Senado e povo os deuses e os penates De ambas as fontes ledo exala flamas Na cabeccedila a luzir a estrela paacutetria [] Com triacuteplice triunfo entrado em Roma De Itaacutelia aos deuses cumpre os votos Ceacutesar [] Festa aplauso alegria as ruas soam []403

A alegria sentida pelo povo das Vrbes apoacutes a derrota de Marco Antocircnio e

Cleoacutepatra em Aacutecio eacute associada por Calpuacuternio agrave felicidade sentida pelo populus

400

[Ornytus] ldquodum populos deus ipse reget dabit impia uictas post tergum Bellona manus

spoliataque telis in sua uesanos torquebit uiscera morsus et modo quae toto ciuilia distulit orbe secum bella geret nullos iam Roma Philippos deflebit nullos ducet captiua triumphos

omnia Tartareo subigentur carcere bella immergentque caput tenebris lucemque timebunt

candida pax aderit []rdquo (Calp Ecl 146-55) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 61) 401

Deusa romana da guerra Eacute por vezes considerada a esposa de Marte Assemelha-se muito agrave

representaccedilatildeo tradicional das Fuacuterias (GRIMAL 2005 p 60) 402

A batalha de Aacutecio ocorreu no ano 31 aC e foi uma disputa entre Marco Antocircnio e Augusto na

qual este uacuteltimo lutou contra a ameaccedila de orientalizaccedilatildeo de Roma por esse primeiro e Cleoacutepatra

(MENDES 2006 p 26) 403

in medio classis aeratas Actia bella cernere erat totumque instructo Marte videres fervere

Leucaten auroque effulgere fluctus hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus

populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flammas [] at

Caesar triplici invectus Romana triumphos moenia dis Italis votum immortale sacrabat

maxima ter centum totam delubra per urbem laetitia ludisque viae plausuque fremebant []

(Verg A 8 675-680 714-717) Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 339-340)

116

romanus com o regresso da Era de Ouro no Principado neroniano Livre de

confrontos Roma jaacute natildeo choraria e todos os seus inimigos seriam abandonados

na escuridatildeo do caacutercere Tartaacutereo404

abrindo espaccedilo para o reinado da candida pax

ndash uma paz que como Wiseman sugeriu traria o contraste entre o passado paciacutefico

claudiano aparente e o presente paciacutefico neroniano real A paz brilhante

disponiacutevel agora seria real e natildeo apenas uma maacutescara como era com Claacuteudio405

Em vista disso o Fauno profetiza a restauraccedilatildeo das relaccedilotildees paciacuteficas entre

o Senado e o imperador predizendo um periacuteodo de respeito aos direitos

constitucionais e agrave autoridade dos cocircnsules

[Oacuternito] ldquo[] Seraacute plena a tranquilidade que

desconhecedora do desembainhar da espada traraacute ao Laacutecio [] um segundo reinado de Numa o primeiro que aos exeacutercitos exultantes com as carnificinas e ainda inflamados com as guerras de Rocircmulo ensinou o esforccedilo da paz e ordenou que caladas as armas as trombetas soassem no meio das cerimocircnias religiosas e natildeo no meio das batalhas O cocircnsul jaacute natildeo deixaraacute de comprar a aparecircncia de uma honra fictiacutecia nem reduzido ao silecircncio

receberaacute fasces sem poder ou um tribunal ilusoacuterio mas restauradas as leis vigoraraacute plenamente o direito e um deus melhor [] eliminaraacute a eacutepoca de opressatildeordquo406

O Principado de Nero eacute contraposto ao anterior Calpuacuternio assinala a

substituiccedilatildeo dos assassinatos dos senadores por uma plena quietude Vale recordar

que a gestatildeo claudiana irracional jaacute havia sido criticada por Secircneca na

Apocolocyntosis e no De Clementia o que reflete novamente a concepccedilatildeo

positiva dos autores acerca do novo soberano ele viera para redimir o passado

infeliz407

Eacute essencial destacar tambeacutem que tal vinda no excerto eacute vinculada ao

retorno do reino de Numa Pompiacutelio e agrave morte do reino de Rocircmulo Mas por que

Numa e Rocircmulo De acordo com o Oxford Classical Dictionary (OCD) Numa

404

Regiatildeo mais profunda do mundo situada sob os proacuteprios infernos Na mitologia romana eacute o

local onde as diferentes geraccedilotildees divinas abandonavam os seus inimigos para serem castigados

(GRIMAL 2005 p 429-430) 405

WISEMAN 1982 p 58-59 406

[Ornytus] ldquoplena quies aderit quae stricti nescia ferri altera Saturni referet Latialia regna

altera regna Numae qui primus ouantia caede agmina Romuleis et adhuc ardentia castris

pacis opus docuit iussitque silentibus armis inter sacra tubas non inter bella sonare iam nec

adumbrati faciem mercatus honoris nec uacuos tacitus fasces et inane tribunal accipiet consul

sed legibus omne reductis ius aderit moremque fori uultumque priorem reddet et afflictum

melior deus auferet aeuumrdquo (Calp Ecl 163-74) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 62) 407

DAVIS 1987 p 41-42

117

foi o segundo dos sete reis que governaram Roma antes da fundaccedilatildeo da

Repuacuteblica Ele reinou de 715 a 673 aC sendo considerado um governante

paciacutefico creditado pelo estabelecimento do direito da lei e dos bons costumes

bem como pela criaccedilatildeo de alguns fundamentos religiosos a exemplo dos cultos de

Marte e Juacutepiter Numa era visto como a contraparte paciacutefica de Rocircmulo o seu

antecessor e lendaacuterio fundador de Roma que era tido como siacutembolo de conflito

civil devido ao assassinato do seu irmatildeo Remo A menccedilatildeo aos dois feita por

Calpuacuternio portanto carrega uma mensagem bem significativa Nero eacute o novo

Numa Pompiacutelio o anti-Rocircmulo o deus melhor que garantiria a observacircncia da

justiccedila afastando a Era decadente Sob o seu comando os cocircnsules natildeo teriam

mais falsas honras e a antiga tradiccedilatildeo republicana seria retomada408

Apoacutes abundantes manifestaccedilotildees de esperanccedilas Oacuternito finaliza a leitura da

profecia do Fauno gravada na casca da faia e convida o seu irmatildeo Coacuteridon a

cantaacute-la ao som da flauta a fim de que ela alcanccedilasse os ouvidos neronianos

Temos assim o encerramento da primeira Eacutecloga calpurniana e a sua imediata

sucessatildeo no acircmbito poliacutetico pela quarta Eacutecloga classificada como a poesia

central da obra409

Nela os irmatildeos Coacuteridon e Amintas compotildeem diversas canccedilotildees

com a flauta para Melibeu patrono de Coacuteridon no intuito de convencecirc-lo a incluir

este uacuteltimo nos ciacuterculos literaacuterios imperiais Dentro das canccedilotildees destacamos

quatro trechos nos quais Calpuacuternio mais uma vez alude ao episoacutedio da ascensatildeo

do princeps No primeiro Coacuteridon louva a Idade de Ouro renovada manifestando

a alegria da nova era em relaccedilatildeo ao passado sombrio ldquoadmito que disse isso oacute

Melibeu [] Agora os tempos jaacute satildeo outros e o deus natildeo eacute o mesmo A esperanccedila

jaacute nos sorri mais []rdquo410

No segundo os irmatildeos exaltam a juventude de Nero e

comparam a sua eloquecircncia com a de Apolo

[Coacuteridon] ldquoMas a mim que me sorria alegre e feliz com o seu augusto rosto aquele que o nosso mundo governa com sua

divindade propiacutecia e a paz perpeacutetua manteacutem com vigor juvenilrdquo

408

OCD 2012 p 1181 LEACH 1973 p 62 409

KARAKASIS 2016 p 48 410

[Corydon] ldquohaec ego confiteor dixi Meliboee sed olim non eadem nobis sunt tempora non

deus dem spes magis arridet []rdquo (Calp Ecl 429-31) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 79)

118

[Amintas] ldquoTambeacutem para mim acompanhado do eloquente Apolo Ceacutesar volva o seu olhar []rdquo411

A menccedilatildeo a Apolo parece ser uma toacutepica comum entre os autores

contemporacircneos a Nero Na Apocolocyntosis Secircneca jaacute havia evocado a figura do

deus para enaltecer a beleza o talento oratoacuterio e a integridade do imperador bem

como para frisar a conexatildeo entre o soberano Augusto e Apolo Ele o evoca no

intuito de legitimar e elevar o Principado vindouro Aqui Calpuacuternio estaacute

interessado no mesmo ponto ao colocar ldquoCeacutesar acompanhado do eloquente

Apolordquo ele projeta a benccedilatildeo divina para o novo governo posicionando Nero sob

o patronato apoliacutenico Em resumo temos novamente a sugestatildeo do renascimento

de uma Idade de Ouro (aurea aetas) paciacutefica e a indicaccedilatildeo de Apolo como

patrono do jovem imperador412

Mas natildeo apenas isso o fato de o princeps estar ao

lado de Apolo demonstra que o poeta o enxergava como um liacuteder divino em

disfarce humano Eacute o que ele demonstra nos versos posteriores

[Coacuteridon] ldquoTu igualmente oacute Ceacutesar quer sejas o proacuteprio Juacutepiter413 revestido de outra aparecircncia quer sejas qualquer outro deus ocultado sob uma imagem falsa e mortal (pois eacutes de fato um deus) governa peccedilo-te governa eternamente este mundo estes povosrdquo414

Ao ser associado a Juacutepiter divindade responsaacutevel por presidir os ceacuteus

Nero eacute colocado natildeo soacute em uma posiccedilatildeo divina como tambeacutem em um lugar de

comandante pastoral Ou seja sob a sua administraccedilatildeo o mundo pastoril viveria

fecundo Ao ouvir o seu nome a terra inerte se aqueceria e produziria flores as

aacutervores renasceriam e a seara abundante cresceria Os pastores jaacute natildeo receariam

mais trabalhar pois o jovem divino havia lhes propiciado terra farta segura e

411

[Corydon] ldquoat mihi qui nostras praesenti numine terras perpetuamque regit iuuenili robore

pacem laetus et augusto felix arrideat orerdquo [Amyntas] ldquoMe quoque facundo comitatus

Apolline Caesar respiciat []rdquo (Calp Ecl 484-88) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 81) 412

CHAMPLIN 2003 p 280 KARAKASIS 2016 p 251 413

ldquoJuacutepiter eacute o deus romano assimilado a Zeus Eacute por excelecircncia o grande deus do panteatildeo

romano Surge como a divindade do ceacuteu da luz divina das condiccedilotildees climateacutericas e tambeacutem do

raio e do trovatildeo []rdquo (GRIMAL 2005 p 261-262) 414

[Corydon] ldquotu quoque mutata seu Iuppiter ipse figura Caesar ades seu quis superum sub

imagine falsa mortalique lates (es enim deus) hunc precor orbem hos precor aeternus

populos regerdquo (Calp Ecl 4142-144) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 83)

119

paciacutefica415

Com medo de perder esses benefiacutecios o poeta pede aos deuses que

deixem Nero viver perpetuamente

[Amintas] ldquoPeccedilo-vos oacute deuses que a este jovem por voacutes enviado do ceacuteu (disso estou certo) o faccedilais regressar apoacutes uma longa vida ou antes que o liberteis da sua condiccedilatildeo humana e lhe concedais um fio celeste de um metal impereciacutevel que ele seja um deus e natildeo queira trocar o seu palaacutecio pelo ceacuteurdquo416

Apoacutes o pedido Coacuteridon e Amintas concluem as canccedilotildees Ao ouvi-las

Melibeu elogia a qualidade delas mostrando-se surpreso com a capacidade dos

dois pastores de escreverem versos tatildeo doces Coacuteridon agradece o elogio e roga a

Melibeu novamente que leve as canccedilotildees ao sagrado palaacutecio no Palatino417

Ateacute

aqui foi possiacutevel notar que Calpuacuternio eacute um poeta atento e sensiacutevel agrave realidade

sociopoliacutetica do seu tempo histoacuterico Contemporacircneo de uma nova era ele faz

questatildeo de expressar ora de maneira clara e incisiva ora de forma impliacutecita sua

felicidade com a ascensatildeo do princeps

A proacutexima Eacutecloga a ser examinada a seacutetima tornaraacute ainda mais niacutetida

essa empolgaccedilatildeo do poeta e representaraacute Coacuteridon deixando o mundo pastoril para

visitar Roma no desejo de conhecer o princeps pessoalmente Ao chegar agrave capital

do Impeacuterio esse primeiro logo se dirige ao anfiteatro ndash erguido por Nero ndash para

assistir a espetaacuteculos418

Ao entrar no edifiacutecio fica perplexo com sua imensidatildeo e

o descreve nas seguintes palavras

415

Calp Ecl 4108-116 4117-130 416

[Amyntas] ldquoa di precor hunc iuuenem quem uos (neque fallor) ab ipso aethere misistis post

longa reducite uitae tempora uel potius mortale resoluite pensum et date perpetuo caelestia fila

metallo sit deus et nolit pensare palatia caelordquo (Calp Ecl 4137-142) Traduccedilatildeo de Beato (1996

p 83) 417

Calp Ecl 4157-160 418

Cf Anexo C com o mapa da Roma neroniana

120

[Coacuteridon] ldquoVi elevar-se no ceacuteu um anfiteatro formado por um

entranccedilado de vigas quase dominando a rocha Tarpeia Depois de percorrer as enormes bancadas e as rampas de acesso [] cheguei ao local onde [] o povoleacuteu de roupa escura e coccedilada contemplava o espetaacuteculo [] [] Ali o centro da curva arena forma uma planiacutecie deixando no meio um espaccedilo delimitado por dois muros semicirculares Como hei-de contar-te agora

aquilo que eu proacuteprio a custo tive dificuldade em examinar nos seus pormenores a tal ponto me entusiasmou o esplendor circundante Estava eu de peacute imoacutevel e boquiaberto admirando toda esta maravilha no seu conjunto [] quando um velho que por acaso estava agrave minha esquerda disse lsquoPor que estaacutes tatildeo admirado oacute campocircnio ao contemplares toda esta magnificecircncia tu que ignoras o ouro e apenas conheces casas

humildes choccedilas e cabanas solitaacuteriasrsquo Cintilam agrave porfia os parapeitos revestidos de pedras preciosas e os poacuterticos cobertos de ouro No ponto onde o limite da arena proporciona o espetaacuteculo junto ao muro de maacutermore corre uma fieira de fustes ligados uns aos outros de esplecircndido marfim [] Entretecidas de fios de ouro brilham tambeacutem umas redes pendentes sobre a arena de dentes inteiros de elefantes []rdquo419

Taacutecito e Suetocircnio indicam que tal anfiteatro foi erigido no Campo de

Marte em 57 estendendo-se do Capitoacutelio onde ficava o cume Tarpeio ateacute o rio

Tibre420

Pela descriccedilatildeo de Coacuteridon verificamos o luxo e a grandeza da

construccedilatildeo traves entrelaccediladas que se dobravam entre montes sem fim parapeitos

revestidos de pedras preciosas um poacutertico recoberto de ouro muros marmoacutereos

com vigas de marfim e redes de ouro pendentes sobre o edifiacutecio Natildeo foi agrave toa

entatildeo que o campesino ficou ldquoboquiabertordquo com o que os seus olhos

testemunharam acostumado a viver proacuteximo agrave natureza de modo simples e

ruacutestico Coacuteridon natildeo conseguia assimilar a riqueza do monumento citadino

Juntamente ao vislumbre arquitetocircnico ele tambeacutem exibiu admiraccedilatildeo pelos

419

[Corydon] ldquouidimus in caelum trabibus spectacula tecircxtis surgere Tarpeium prope

despectantia culmen emensique gradus et cliuos lene iacentes uenimus ad sedes [] Qualiter

haec patulum concedit uallis in orbem et sinuata latus resupinis undique siluis inter continuos

curuatur concaua montes sic ibi planitiem curuae sinus ambit harenae et geminis medium se

molibus alligat ouum quid tibi nunc referam quae uix suffecimus ipsi per partes spectare suas

sic undique fulgor percussit Stabam defixus et ore patenti cunctaque mirabar necdum bona

singula noram [] Balteus en gemmis en illita porticus auro certatim radiant nec non ubi

finis harenae proxima marmoreo praebet spectacula muro sternitur adiunctis ebur admirabile

truncis et coit in rotulum tereti qui lubricus axe impositos subita uertigine falleret uacutengues

excuteretque feras Auro quoque torta refulgente retia quae totis in harenam dentibus exstant

dentibus aequatis []rdquo (Cal Ecl 723-56) Traduccedilatildeo de Beato (1996 p 99-100) 420

Tac Ann 13311 Suet Nero 121

121

animais selvagens que adentraram a arena421

lebres brancas javalis de chifres

alces raros touros422

bezerros do mar423

ursos424

e cavalos do rio425

Fear comenta que as construccedilotildees luxuosas eram uma caracteriacutestica tiacutepica

da Roma imperial sobretudo do periacuteodo neroniano O autor relata que algumas

inscriccedilotildees evergeacuteticas citadas por Suetocircnio e Marcial revelam a enorme quantia de

dinheiro gasta pelos principes em jogos e adornos para os edifiacutecios Decerto os

soberanos deviam julgar importante investir na esteacutetica dos preacutedios para

demonstrarem poder e conquistarem apoio puacuteblico Em especiacutefico as obras e os

jogos patrocinados por Nero eram muito populares a ponto da sua fama tornar-se

a do ldquomaior showman de todos os temposrdquo426

Calpuacuternio foi um dos que

vivenciaram essa fama A descriccedilatildeo detalhada que faz do anfiteatro a qual ocupa

57 versos em um poema de 84 reflete a seriedade com que Nero lidava com o

entretenimento bem como retrata os investimentos despendidos por ele na

execuccedilatildeo dos espetaacuteculos Nesse sentido entendemos que a seacutetima Eacutecloga eacute um

instrumento de divulgaccedilatildeo da accedilatildeo imperial como algo beneacutefico porque pinta um

liacuteder comprometido com a inovaccedilatildeo cultural e com um Principado materializador

da Era de Ouro427

Em concordacircncia com Dominik Garthwaite e Roche

concluiacutemos que a descriccedilatildeo minuciosa dos esplendores arquitetocircnicos e culturais

de Roma sob o patrociacutenio do novo Ceacutesar caracteriza positivamente o princeps428

421

Calp Ecl 759-68 422

Possiacutevel referecircncia a bisontes europeus (BEATO 1996 p 137) 423

Menccedilatildeo provaacutevel a focas (Plin Nat 8110) 424

Segundo Jennison (1922 p 73) trata-se de ursos brancos ou polares 425

Hipopoacutetamo (BEATO 1996 p 137) 426

FEAR 1994 p 272-273 427

Na contramatildeo dessa visatildeo Leach (1973 p 84-87) argumenta que a seacutetima Eacutecloga traz uma

criacutetica impliacutecita a Nero Para a autora a surpresa de Coacuteridon com o anfiteatro carrega a

insatisfaccedilatildeo do poeta com a tentativa imperial de controlar a natureza Ao vasculhar o mundo em

busca de maravilhas o princeps criou um novo cosmos dentro da estrutura do edifiacutecio Sua accedilatildeo foi uma amostra ldquo[] exagerada do poder do homem de dominar a natureza e domesticar o

selvagem []rdquo No lugar de um paraiacuteso Nero acabou criando uma perversatildeo da natureza um

universo de artifiacutecios que excluiu a flora e a fauna italianas Logo soacute restava a Coacuteridon ficar

ldquoboquiabertordquo pois discordava dessa nova disposiccedilatildeo do mundo Leach portanto lecirc a seacutetima

Eacutecloga natildeo como um louvor e sim como uma crocircnica de decepccedilatildeo No entanto eacute fundamental

frisar que a proacutepria autora alega a fragilidade da sua leitura o poema natildeo conteacutem nenhuma palavra

de repugnacircncia e nem versos diretamente ofensivos a Nero Ao contraacuterio tudo eacute disfarccedilado por

elogios O imperador caso se preocupasse em ler esse poema poderia muito bem se prender agrave

aparente lisonja impenetraacutevel agraves implicaccedilotildees irocircnicas ldquoO significado mais sombrio eacute reservado

aos leitores capazes de compartilhar a insatisfaccedilatildeo do poeta e ainda [ansiar] pela integridade do

ideal pastoral romanordquo Diante dessa afirmaccedilatildeo natildeo consideraremos a hipoacutetese de Leach na

anaacutelise das Eclogae pois acreditamos que Calpuacuternio longe de reprovar o esplendor do anfiteatro

utilizou-o como siacutembolo da prosperidade trazida pelo governo de Nero 428

DOMINIK GARTHWAITE ROCHE 2009 p 312

122

Prossigamos para o final das aventuras de Coacuteridon em Roma o momento

em que ele vecirc o imperador na arena

[Coacuteridon] ldquoOh Oxalaacute eu natildeo tivesse ido com roupa de campocircnio Teria contemplado mais de perto as minhas divindades Mas a minha roupa escura e coccedilada e a minha fiacutebula de fecho arqueado impediram-me de estar mais proacuteximo De qualquer modo consegui observaacute-lo em pessoa mesmo

longe e se a vista me natildeo enganou estou em crer que num soacute rosto se associam as feiccedilotildees de Marte429 e de Apolordquo430

Eacute bastante niacutetida aiacute a postura humilde de Coacuteridon ao se referir a Nero

mostrando tristeza por natildeo ter conseguido se aproximar deste uacuteltimo O

campesino que uma vez sonhara em ver de perto o imperador teve que se

contentar com o vislumbre de uma figura distante ndash distacircncia poreacutem que natildeo o

impediu de observar a beleza do princeps comparada agraves feiccedilotildees de Apolo e de

Marte A assimilaccedilatildeo a Apolo como vimos natildeo eacute nova dado o entusiasmo de

Nero pelas artes no entanto a associaccedilatildeo a Marte deus da guerra eacute nova Haacute uma

alusatildeo aqui segundo Fear e Verdiegravere agraves honras recebidas por Nero apoacutes a retirada

dos partos da Armecircnia em 55 Nessa ocasiatildeo o Senado emitiu votos de suacuteplicas

ao princeps concedeu-lhe o manto triunfal ofereceu-lhe ovaccedilotildees puacuteblicas e

mandou erigir uma estaacutetua sua no templo de Marte Vltor431

Vale destacar que os

dois deuses eram apreciados por Augusto com especial atenccedilatildeo A escolha das

divindades por Calpuacuternio entatildeo natildeo apenas sublinha as virtudes pessoais de

Nero como tambeacutem conecta o jovem governante ao melhor dos imperadores A

opccedilatildeo por Marte na visatildeo de Verdiegravere provavelmente agradou muito a Nero

tanto por causa do papel tutelar do deus quanto pela forccedila militar que evocava foi

uma escolha feliz432

Em siacutentese a leitura das Eclogae mostra que Calpuacuternio Siacuteculo apesar de

ser um poeta bucoacutelico era muito interessado nos aspectos poliacuteticos dos seus dias

429

Marte era o deus romano da guerra Era tambeacutem o guardiatildeo da agricultura e o deus da

juventude haja vista que a guerra constituiacutea uma atividade destinada aos jovens (GRIMAL 2005

p 291-292) 430

[Corydon] ldquoo utinam nobis non rustica uestis inesset uidissem propius mea numina sed mihi

sordes pullaque paupertas et adunco fibula morsu obfuerunt utcumque tamen conspeximus

ipsum longius ac nisi me uisus decepit in uno et Martis uultus et Apollinis esse putauirdquo (Cal

Ecl 779-85) Traduccedilatildeo de Braren (1996 p 101) 431

Para mais informaccedilotildees acerca do templo de Marte Vltor cf COARELLI 2007 p 111-113 432

FEAR 1994 p 276 VERDIEgraveRE 1992 p 37-38

123

escrevendo sobre eles em trecircs dos seus sete poemas433

Tais composiccedilotildees

anunciaram atraveacutes do miacutetico Fauno a chegada da nova Idade de Ouro ao

Impeacuterio acompanhada por paz justiccedila e ordem Divulgaram tambeacutem que um deus

melior regeria o populus romanus em consonacircncia com os tempos do rei Numa

Pompiacutelio e do princeps Augusto E noticiaram ainda que o luxo e a prosperidade

seriam as marcas principais da nova era as quais aumentariam o esplendor

arquitetocircnico e cultural da capital Os versos do poeta desse modo concebem a

ascensatildeo de Nero como um momento altamente promissor refletindo os

acontecimentos do passado enquanto sonham com o futuro Em outras palavras

as Eclogae comeccedilam e terminam propagando os benefiacutecios da nova lideranccedila

poliacutetica a chegada do Nero prodigioso e do Nero construtor Os elogios satildeo

irrestritos e copiosos o panegiacuterico eacute expliacutecito o laus Neronis eacute sincero

A anaacutelise das Eclogae revela ademais o modo imitativo como Calpuacuternio

Siacuteculo utilizou a dimensatildeo retoacuterica da inuentio para compor sua estruturaccedilatildeo

discursiva Conforme mencionamos as fontes analisadas nesta tese pertencem ao

gecircnero epidiacutetico no qual o orador usa o passado para refletir sobre o presente

Rezende e Sullivan explicam que para desenvolver esse processo o orador exalta

e intensifica valores culturais a fim de por exemplo preservar a estabilidade

poliacutetica Tal preservaccedilatildeo estava nos tempos antigos vinculada tambeacutem agrave forma

como o orador representava determinado indiviacuteduo (no caso o imperador) que

seria celebrado por suas virtudes ou censurado por seus viacutecios Resumindo os

oradores epidiacuteticos caracterizavam personalidades a partir de qualidades morais

Caso as qualidades fossem admiraacuteveis o indiviacuteduo seria fonte de inspiraccedilatildeo e

motivo de emulaccedilatildeo pois seu governo traria estabilidade434

Eacute exatamente isso

que Calpuacuternio faz nas Eclogae Ele resgata valores culturais do passado e celebra

os feitos do princeps-modelo (Augusto) de quem o imperador Nero eacute mais do que

imitaccedilatildeo ele o supera e se torna o proacuteprio soberano a ser imitado Secircneca segue a

mesma linha como vimos O seu Nero da Apocolocyntosis tambeacutem possuiacutea as

qualidades de Augusto mas as superava como fica ainda mais claro com o seu

Nero do De Clementia

Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca assim fazem uso de uma mesma toacutepica

apresentam o novo governante que sucede um periacuteodo de trevas e desorganizaccedilatildeo

433

SANTOS 2003 p 94 434

REZENDE 2010 p 113-114 SULLIVAN 1989 p 5-21

124

isto eacute um favor dos deuses que instaura uma nova ordem retomada dos tempos

antigos uma nova era de justiccedila e prosperidade Contudo natildeo devemos

simplificar a utilizaccedilatildeo dessa toacutepica como mera repeticcedilatildeo e muito menos como

falso elogio A proacutepria estrutura da toacutepica gera um entrelaccedilamento de

temporalidades e uma especificidade da toacutepica aplicada a Nero passado elevado

ruptura com guerras civis ordem retomada com Augusto e instauraccedilatildeo de um

grande Impeacuterio pela forccedila militar ruptura com maus imperadores e instauraccedilatildeo

de um Impeacuterio ainda maior pela paz e pela arte Em outros termos o uso da toacutepica

por Calpuacuternio Siacuteculo e Secircneca deixa claro que ela eacute por definiccedilatildeo lugar-comum

mas natildeo eacute uma repeticcedilatildeo vazia ela produz elementos proacuteprios que entram em

disputa para estabelecer a especificidade de Nero e a sua inserccedilatildeo em uma

tradiccedilatildeo comum que ganha novo sentido com sua presenccedila ndash no caso desses

autores uma presenccedila fortemente positiva

Um elemento especiacutefico de tal construccedilatildeo surge de modo destacado em

Calpuacuternio Siacuteculo a arte como parte de um projeto poliacutetico de afirmaccedilatildeo da

pacificaccedilatildeo e da unificaccedilatildeo do Impeacuterio Esse dado valorizado pela Historiografia

recente como vimos parte de uma leitura das fontes do seacuteculo II mas jaacute havia

sido colocado em disputa desde o comeccedilo do Principado de Nero como atestam

as Eclogae ndash sobretudo a seacutetima Se em um poeta da eacutepoca neroniana esse traccedilo

eacute visto como algo positivo e libertador em autores posteriores como Suetocircnio e

Taacutecito seraacute visto como algo desmedido e como fonte de opressatildeo As construccedilotildees

do princeps em Calpuacuternio Siacuteculo satildeo a grandeza de Roma e em Suetocircnio e

Taacutecito satildeo mostras de exagero e ruiacutena Todavia nosso objetivo natildeo eacute determinar

que fonte seguir e qual eacute a verdade oculta sobre Nero e sim perceber como a

constituiccedilatildeo de toacutepicas eacute apropriada pelos autores antigos que inserem nelas

modificaccedilotildees mas sem romper com o passado Essa allelopoiesis faz com que

cada autor compreenda seu proacuteprio tempo a partir do entendimento que constroacutei

do(s) passado(s) e este(s) por sua vez reorganiza(m) o entendimento do seu

proacuteprio tempo Presente e passado(s) se constroem mutuamente e de forma

indissociaacutevel Nesse sentido Nero daacute um novo sentido ao passado romano

especialmente a Augusto e gera um novo entendimento de Nero

125

Lucano Pharsalia

A partir daqui comeccedilaremos o exame da uacuteltima fonte contemporacircnea ao

princeps a Pharsalia composta por Marco Aneu Lucano Os poucos fatos

conhecidos da vida desse poeta derivam de duas biografias antigas uma de

autoria suetoniana denominada De Viris Illustribus e outra atribuiacuteda a um

gramaacutetico chamado Vacca conhecida como Expositor Lucani Aleacutem de tais

testemunhos existem tambeacutem informaccedilotildees disponiacuteveis nas obras de quatro

autores latinos Estaacutecio Marcial Taacutecito e Diatildeo Caacutessio

Com base nas fontes sabemos que Lucano era natural da cidade de

Coacuterdoba proviacutencia romana da Beacutetica localizada no sul da atual Espanha435

Nasceu no dia trecircs de novembro de 39 em uma das famiacutelias mais ilustres e ricas

da regiatildeo seu pai Marco Aneu Mela um rico equestre era filho do renomado

orador Secircneca o Velho e irmatildeo do filoacutesofo Secircneca o Jovem ndash jaacute discutido neste

capiacutetulo ndash que como destacamos anteriormente tambeacutem era nascido em

Coacuterdoba Beacutetica436

Quando Lucano era crianccedila seus pais decidiram se mudar

para Roma o que lhe possibilitou estudar latim grego retoacuterica e filosofia estoica

sendo as duas uacuteltimas ensinadas por Aneu Cornuto escravo liberto do seu tio

Secircneca437

Os relatos antigos comentam que ele rapidamente revelou enorme

destreza mostrando-se superior a todos seus colegas e instrutores438

Ao

completar 19 anos por volta do ano 58 viajou para Atenas no intuito de finalizar

sua formaccedilatildeo e laacute permaneceu pouco tempo pois Nero receacutem-entronado

solicitou o seu retorno439

De volta a Roma recebeu trecircs grandes favores

imperiais foi designado questor440

foi nomeado membro do Coleacutegio dos

Aacuteugures441

e foi escolhido como integrante do grupo literaacuterio do princeps442

Esse

grupo foi formado pelo soberano com os propoacutesitos de conhecer os talentos

435

Mart Ep 1619 Stat Silv 2729 Para mais dados biograacuteficos de Lucano cf AHL 1976 p

35-46 FANTHAM 2011 p 3-20 436

Vac 3 Vac 2 Vac 1 437

Vac 4-5 438

Stat Silv 2755-61 439

DUFF 1962 p x VIEIRA 2011 p 15 440

Vac 9-10 441

AHL 1976 p 37 Os aacuteugures eram os sacerdotes responsaacuteveis pela interpretaccedilatildeo do

comportamento dos animais na busca de pressaacutegios a exemplo do voo dos paacutessaros (ABBOTT

1901 p 159) 442

VIEIRA 2011 p 15

126

poeacuteticos da eacutepoca e de divulgar os seus proacuteprios443

Natildeo demorou para Lucano

demonstrar a sua genialidade e atrair a atenccedilatildeo do imperador o qual logo se

interessou em estabelecer um viacutenculo amigaacutevel com o poeta Vale destacar que os

dois tinham uma diferenccedila de idade de apenas dois anos (Nero era o mais velho)

e ambos nutriam uma paixatildeo aacutevida por literatura444

A amizade entre eles assegurou conquistas importantes a Lucano como o

precircmio de melhor poesia nos jogos Neronia do ano 60 devido agrave declamaccedilatildeo de

versos elogiosos ao soberano (Laudes Neronis)445 e a redaccedilatildeo de inuacutemeros

trabalhos entre 60 e 63 todos infelizmente perdidos Iliacon (Poema sobre a

Guerra de Troia) Catachtonion (Poema sobre a Descida aos Infernos) De

Incendio Vrbis (Sobre o Incecircndio da Cidade) Medea (Medeia) Saturnalia Silvae

(Silvas) epigramas libretos para pantomimas e os dez cantos da Pharsalia446

Todas as obras estavam em total sintonia com as predileccedilotildees culturais de Nero

que era apaixonado por mateacuteria de leve entretenimento447

As relaccedilotildees entre Lucano e o soberano mantiveram-se cordiais ateacute o ano de

63 Contudo em algum momento no final de 63 ou no iniacutecio de 64 a amizade

entre eles comeccedilou a deteriorar As razotildees para tanto natildeo satildeo esclarecidas pelas

fontes que nos fornecem somente dados escassos e confusos Ahl defende a

hipoacutetese de que a publicaccedilatildeo do trabalho De Incendio Vrbis no qual Lucano

supostamente descreveu o incecircndio de Roma e atribuiu a culpa a Nero foi o que

motivou o desentendimento448

Seja como for Nero impocircs ao poeta a proibiccedilatildeo de

recitar versos em puacuteblico fato que marcou o fim da sua carreira449

Por causa

disso ele se juntou agrave conspiraccedilatildeo pisoniana na tentativa de destronar o

imperador A trama foi descoberta e vaacuterios dos envolvidos cometeram suiciacutedio

como forma de natildeo sofrerem penas mais duras que recaiacutessem inclusive sobre

seus familiares e amigos Assim em 15 de abril de 65 Lucano cometeu suiciacutedio

natildeo tendo completado ainda 26 anos450

443

Tac Ann 1416 444

JOYCE 1993 p x 445

Vac 13 446

PLESSIS 1909 p 550-552 447

VIEIRA 2018 p 5 448

No apecircndice de Lucan An Introduction Ahl (1976 p 333-354) explica melhor essa hipoacutetese e

apresenta o suposto conteuacutedo do livro 449

Tac Ann 1549 Vac 14 450

Tac Ann 1570

127

Foi no meio desse contexto turbulento que o poeta publicou os trecircs

primeiros cantos da Pharsalia451

um poema de dez cantos com 7386 versos452

Nele relata as vicissitudes da guerra civil ocorrida entre Juacutelio Ceacutesar e Pompeu

durante 49 e 48 aC descrevendo desde a travessia de Ceacutesar do Rubicatildeo ateacute a

fuga e o assassinato de Pompeu no Egito O ponto alto da histoacuteria eacute a batalha de

Farsaacutelia e a obra possui as caracteriacutesticas tradicionais de um eacutepico como o uso de

hexacircmetros do tom elevado e da narrativa longa e contiacutenua453

Eacute repleta tambeacutem

de belas descriccedilotildees figuras retoacutericas prodiacutegios sonhos e preciosismos O

intrigante eacute que esses elementos claacutessicos satildeo empregados por Lucano com base

em uma loacutegica subversiva Os estudiosos comentam que ele desafia os aspectos da

eacutepica claacutessica ao fugir da textura mitoloacutegica e acrescentar tensotildees poliacuteticas

morais e filosoacuteficas agrave sua narrativa454

adiccedilatildeo que conforme Hardie insere a

Pharsalia em uma complexa relaccedilatildeo entre a fantasia poeacutetica e a realidade

histoacuterica Por exemplo as accedilotildees descritas na obra satildeo todas movidas por agentes

humanos e natildeo por entidades divinas e os deuses aparecem apenas para

contemporizar as ambiccedilotildees humanas455

ndash ou seja natildeo haacute lugar de destaque na

Pharsalia para os deuses romanos como os responsaacuteveis pelo desenrolar das

accedilotildees eles estatildeo ausentes e imoacuteveis ignorando as calamidades da guerra civil

Enfim o importante eacute entender que o objetivo do poeta ao elaborar o eacutepico foi

dar centralidade agraves accedilotildees humanas e aos seus resultados grandiosos tanto positiva

quanto negativamente sem que isso estivesse conectado agrave agecircncia divina Lucano

entra constantemente no seu texto para nos lembrar de quem o estaacute criando

estrateacutegia que aponta a sua posiccedilatildeo subjetiva456

Ao lermos a Pharsalia notamos de imediato a contestaccedilatildeo por parte do

poeta de certos aspectos positivos do passado recente de Roma e dos

protagonistas nos eventos decisivos desse tempo Nos versos ele apresenta a

Roma humana a cidade lotada de cidadatildeos que sofrem com as consequecircncias da

guerra civil O ambiente eacute o de uma luta que derrubou a res publica e provocou o

451

Originalmente o tiacutetulo dado ao poema por Lucano foi Bellum Ciuile (Guerra Civil) O nome

Pharsalia aparece apenas no nono canto em que o poeta utiliza as palavras Pharsalia nostra

(ldquonossa Farsaacuteliardquo) Todavia a partir do seacuteculo XVII essa expressatildeo foi adotada pelos tradutores

como o tiacutetulo da obra uso que persiste ateacute hoje e que adotaremos (VIEIRA 2011 p 20-21) 452

Os outros sete cantos foram divulgados apoacutes a morte do poeta (AHL 1976 p 41-42) 453

CARDOSO 2011 p 6-22 Sobre o gecircnero eacutepico em Lucano cf DINTER 2013 p 9-49 454

BRAMBLE 1982 p 536-537 WILLIAMS 2017 p 97 455

HARDIE 2013 p 225 456

HENDERSON 1987 p 149

128

fim da liberdade colocando os romanos sob o controle de tiranos os Juacutelio-

Claacuteudios Segundo Bartsch a Pharsalia nada mais eacute do que um ataque ao

cesarismo e agrave ficccedilatildeo de que o governo criado por Augusto restauraria a liberdade

Eacute um poema que retrata o colapso do mundo em que a libertas tivera uma chance

proclamando a desesperanccedila no futuro457

Eacute precisamente dentro de tal conjuntura

ampla com caraacuteter predominantemente negativo ou ateacute mesmo caoacutetico que

aparecem as menccedilotildees a Nero O princeps eacute citado somente no proecircmio da obra

em cinco momentos e os trechos satildeo interpretados pelos estudiosos de modos

conflitantes Diante dessa situaccedilatildeo adotaremos duas atitudes a priori

discutiremos as referecircncias considerando-as como ilustraccedilotildees da ascensatildeo de

Nero e como exemplares da categoria Nero prodigioso a posteriori

explanaremos as interpretaccedilotildees existentes justificando o nosso posicionamento ndash

como disse Bartsch a Pharsalia eacute um poema ldquodifiacutecil de lerrdquo458

Na primeira referecircncia Lucano divulga a ideia de que os sofrimentos da

guerra civil prepararam a vinda de Nero Vejamos

Pois se agrave vinda de Nero natildeo diversa o Fado459

via encontrou se caro se compram dos deuses reinos eternos e servir ao seu Tonante natildeo pocircde o ceacuteu sem guerrear antes Titatildes jaacute nada deuses lamentamos com tal precircmio infacircmia e crime agradam460

Os danos e os campos manchados de sangue dos conflitos satildeo tratados de

forma valiosa porque prepararam o caminho para o governo de Nero461

Em

concordacircncia com Griffin o que Lucano expressou no excerto foi basicamente a

visatildeo comum da aristocracia romana de que a Repuacuteblica e as libertas eram

preferiacuteveis mas que o Principado era uma necessidade praacutetica para a estabilidade

e a paz O poeta parece sugerir que embora a ruiacutena da Repuacuteblica fosse algo

457

BARTSCH 1997 p 5-6 458

BARTSCH 1997 p 4 459

Fados satildeo as divindades do destino como por exemplo as Parcas (GRIMAL 2005 p 164) 460

quod si non aliam uenturo fata Neroni inuenere uiam magnoque aeterna parantur regna deis

caelumque suo seruire Tonanti non nisi saeuorum potuit post bella gigantum iam nihil o

superi querimur scelera ipsa nefasque hac mercede placent (Luc 132-37) Traduccedilatildeo de Vieira

(2011 p 79) 461

HOLMES 1999 p 77

129

negativo valeu a pena porque nos deu Nero462

Infelizmente o destino natildeo

conseguiu encontrar outro caminho para a chegada do princeps senatildeo o penoso

Mas na visatildeo do poeta isso natildeo representava um problema pois a recompensa foi

grande Nero traria paz ao Impeacuterio Essa noccedilatildeo compensatoacuteria continua nos versos

seguintes nos quais Lucano canta

Que Farsaacutelia atulhe

os vis campos de sangue e sacie almas Puacutenicas que funesta na extrema Munda a luta ocorra a isso a fome de Peruacutesia463 e o preacutelio em Muacutetina464 se somem Ceacutesar e os navios que a dura Lecircucade465 feriu e as servis guerras no Etna ardente466 muito Roma afinal deve agraves lutas civis feitas prrsquoa ti467

Notemos que a fome sofrida pelos aliados de Marco Antocircnio em Peruacutesia o

assassinato de Bruto em Moacutedena os navios abatidos nas rochas de Lecircucade e os

embates proacuteximos ao Etna justificam-se pela ascensatildeo de Nero Roma deve agraves

guerras civis a daacutediva do novo imperador Foi preciso haver periacuteodos de

dificuldades e de perdiccedilatildeo para que o princeps salvador instaurasse uma nova

era468

ndash aquela que de fato trouxe a liberdade e o fim das contendas Para Rudich

esse elogio foi pensado por Lucano como um estratagema poliacutetico cujo intento

era afastar Nero do resto dos odiados Ceacutesares mostrando o quatildeo melhor ele

era469

Sobre o trecho ainda eacute importante comentar que as alusotildees agraves guerras civis

natildeo apenas se limitam agraves batalhas entre Ceacutesar e Pompeu posicionadas no centro

do poema mas tambeacutem envolvem conflitos posteriores que datildeo um tom negativo

aos que se proclamavam tiranicidas e aos que se afirmavam herdeiros de Ceacutesar

462

GRIFFIN 2001 p 159 463

Peruacutesia cidade italiana onde no ano 40 aC Otaviano sitiou Luacutecio Antocircnio e Fuacutelvia aliados

de Marco Antocircnio ateacute fazecirc-los se entregarem por fome (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 17) 464

Moacutedena (ou Muacutetina) cidade ao norte da Peniacutensula itaacutelica onde em 43 aC Marco Antocircnio

matou Bruto o assassino de Juacutelio Ceacutesar (BRANDAtildeO LEAtildeO 2020 p 15) 465

Lecircucade grupo de ilhas rochosas situado no Mar Jocircnico onde aconteceu a batalha naval de

Aacutecio na qual Otaviano venceu Marco Antocircnio (VIEIRA 2018 p 27) 466

Guerras sucedidas no mar da Siciacutelia em 36 aC entre Otaviano e Pompeu onde o uacuteltimo foi

derrotado As batalhas transcorreram sob as chamas do vulcatildeo Etna (RICHARDSON 2012 p 57) 467

Diros Pharsalia campos inpleat et Poeni saturentur sanguine manes ultima funesta

concurrant proelia Munda his Caesar Perusina fames Mutinaeque labores accedant fatis et

quas premit aspera classes Leucas et ardenti seruilia bella sub Aetna multum Roma tamen

debet ciuilibus armis quod tibi res acta est (Luc 138-45) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 79-80) 468

CASALI 2011 p 86 469

RUDICH 1997 p 115

130

No caso de Augusto haacute uma criacutetica impliacutecita agraves suas accedilotildees sobretudo no conflito

contra Marco Antocircnio pois a vitoacuteria em Aacutecio trouxe o fim da liberdade

Nos versos subsequentes o poeta anuncia a futura apoteose do soberano

Ao perfazeres tua estada

velho aos astros iraacutes e o paccedilo eteacutereo eleito te acolheraacute com ceacuteu festivo quer te agrade tomar o cetro ou conduzir de Febo a biga flamiacutegera e luzir com chama errante a terra sem medo do mudado sol Ceder-te-aacute o paccedilo todo nume e teraacutes por direito ser qualquer deus e pocircr teu reino onde quiseres470

A passagem expressa claramente o desejo lucaniano de que Nero buscasse

seu lugar no ceacuteu o mais tardar possiacutevel apoacutes eliminar as pragas beacutelicas da terra

Ao adentrar os reinos celestes elevar-se-ia do status humano para o divino sendo

recebido com imensa alegria Laacute os deuses o deixariam escolher qual papel

desempenharia as prerrogativas de Juacutepiter regendo o panteatildeo e o clima com o

seu cetro ou as de Febo conduzindo a sua biga e iluminando a terra471

Todas as

possibilidades estariam agrave disposiccedilatildeo do princeps ele poderia escolher o que

desejasse ateacute mesmo o local onde instalaria a sede do seu poder divino

Uma anaacutelise mais detalhada do trecho nos permite observar o

aprofundamento do elogio de Lucano Na mitologia romana Juacutepiter tambeacutem era

conhecido como a divindade que venceu os monstros Gigantes encerrando o ciclo

das forccedilas destrutivas e trazendo o reinado da paz eterna472

Febo (ou Apolo) por

sua vez era conhecido como o deus da justiccedila da lei e da ordem Esses

esclarecimentos deslindam o pensamento do poeta Juacutepiter e Febo foram

erradicadores de iacutempetos desordenadores em seu tempo limpando o mundo das

oposiccedilotildees Da mesma forma o princeps extirparia os conflitos civis instituindo a

paz O elogio a Nero na visatildeo de Thompson vai ainda aleacutem Por traacutes dele haacute

uma associaccedilatildeo com Augusto este soberano eliminou os monstruosos elementos

conflituosos do Impeacuterio e instaurou a pax Augusta que Nero agora presidia Nero

470

te cum statione peracta astra petes serus praelati regia caeli excipiet gaudente polo seu

sceptra tenere seu te flammigeros Phoebi conscendere currus telluremque nihil mutato sole

timentem igne uago lustrare iuuet tibi numine ab omni cedetur iurisque tui natura relinquet

quis deus esse uelis ubi regnum ponere mundi (Luc 145-52) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 471

NOCK 1926 p 18 472

Filhos de Gaia (a Terra) seres monstruosos na aparecircncia na forccedila e na estatura (GRIMAL

2005 p 184-185)

131

assim eacute uma espeacutecie de Augusto por excelecircncia mas um Augusto livre da maacute

fama de Augusto advinda da sua participaccedilatildeo na discoacuterdia civil473

Com o soberano jaacute acolhido no ceacuteu a humanidade enfim poderia viver

tranquila ldquoEntatildeo depondo as armas que os homens se cuidem e todos se amem

mutuamente e a paz geral trave de Jano belicoso as feacuterreas portasrdquo474

O Templo de Jano era um pequeno edifiacutecio no canto nordeste do Foacuterum

Romano cujo fechamento simbolizava paz eou cessaccedilatildeo de conflitos475

A ideia

de mencionaacute-lo eacute retirada pelo poeta da Eneida na qual Virgiacutelio afirma que

Augusto depocircs as guerras ao vencer em Aacutecio cerrando as portas do Templo

Entatildeo deposta a guerra

Se amolgue a feacuterrea idade a encanecida Feacute mais Vesta os irmatildeos Quirino e Remo Ditem leis Jano feche as diraacutes portas

Com trancas e aldrabotildees []476

De acordo com a Res Gestae Augusto fechou o Templo em trecircs ocasiotildees

trazendo para Roma a nova Idade de Ouro477

Jaacute no governo de Nero as portas

foram cerradas em duas oportunidades para comemorar o fim da guerra Parta e

para celebrar a paz da Armecircnia conquistada em 66 apoacutes a morte de Lucano478

Mesmo natildeo tendo presenciado os eventos Lucano evoca o simbolismo do

fechamento dos portotildees para sugerir que o princeps retomaria o periacuteodo aacuteureo do

passado e afastaria seu governo das contendas Trata-se portanto de uma

tentativa de representar Nero como um ldquosegundo Augustordquo o melhor exemplo da

famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia e tambeacutem uma tentativa de mostraacute-lo como superior a ele

pois a paz que Nero traria natildeo seria fruto de guerras sangrentas479

Eacute essencial

demarcar contudo que esse elogio a nosso ver natildeo deve ser associado apenas ao

fato de Nero evitar as guerras afinal houve sim guerra durante o Principado de

473

THOMPSON 1964 p 148-151 474

tum genus humanum positis sibi consulat armis inque uicem gens omnis amet pax missa per

orbem ferrea belligeri conpescat limina Iani (Luc 160-62) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81) 475

COARELLI 2007 p 51 476

Aspera tum positis mitescent saecula bellis cana Fides et Vesta Remo cum fratre Quirinus

iura dabunt dirae ferro et compagibus artis claudentur Belli portae [] (Verg A 1291-294)

Traduccedilatildeo de Mendes (2008 p 34) 477

Aug RG 13 478

A fim de celebrar essas conquistas Nero mandou cunhar diversas moedas Para uma breve nota

sobre as cunhagens cf BARENGHI 19992016 479

MARTINDALE 1984 p 72

132

Nero cuja paz foi celebrada depois da morte de Lucano A guerra que o poeta

criacutetica ndash e que deve ser evitada ndash eacute aquela desmedida movida internamente e que

tem por motivaccedilatildeo a gloacuteria pessoal Esta na concepccedilatildeo de Lucano natildeo era a

guerra que Nero buscava

Ao concluir o proecircmio da Pharsalia Lucano elogia Nero uma uacuteltima vez

Mas jaacute me eacutes nume E se te encarno nem quisera

Eu vate que o inquieto deus sondasse arcanos Cirreus480 nem mesmo deslocar Baco481 de Nisa482 Prsquora dar arroubo a carmes Romanos tu basta483

O princeps eacute a inspiraccedilatildeo de que o poeta necessita para escrever o restante

da Pharsalia Apolo e Baco deuses conhecidos por seus poderes criativos satildeo

dispensados Nero eacute o ldquomusordquo do poema aquele que concede a Lucano as forccedilas

para compor cantos romanos484

Esse elogio agrave primeira vista pode parecer

simplista mas se olharmos com atenccedilatildeo veremos uma subversatildeo do gecircnero eacutepico

O poeta adota como inspiraccedilatildeo uma figura humana e natildeo uma figura divina eou

mitoloacutegica ndash isto eacute ele troca o divino pelo humano dando a Nero as atribuiccedilotildees

divinas Para Ahl essa deificaccedilatildeo do imperador ocorrida dentro de uma obra na

qual os deuses natildeo exercem poder mostra que Lucano queria oferecer uma honra

simboacutelica muito elevada ao soberano485

Sobre o trecho cabe mencionar ainda

que nos poemas eacutepicos a comeccedilar pelos homeacutericos as divindades atuam ao lado

dos homens buscando favorececirc-los na guerra Em Lucano poreacutem os deuses natildeo

atuam na guerra sangrenta ndash que por sua vez eacute condenada pelo poeta Eacute Nero

quem tem sua apoteose antecipada e que vai agir em favor dos homens dando fim

agrave guerra civil No final das contas Ceacutesar e Augusto ateacute podem ter recebido gloacuterias

por terem vencido as guerras civis mas Nero tem uma gloacuteria ainda maior proacutepria

de um deus que eacute a de dar fim agraves contendas

480

Cirreus se refere a Cirra localidade proacutexima ao Oraacuteculo de Delfos dedicado a Apolo (VIEIRA

2011 p 83) 481

Tambeacutem denominado Dioniso era identificado como o deus do vinho do teatro e do ecircxtase

miacutestico (GRIMAL 2005 p 121-122) 482

Cidade localizada no extremo oeste da Traacutecia onde Baco teria nascido (JOYCE 1993 p 314) 483

sed mihi iam numen nec si te pectore uates accipio Cirrhaea uelim secreta mouentem

sollicitare deum Bacchumque auertere Nysa tu satis ad uires Romana in carmina dandas (Luc

163-66) Traduccedilatildeo de Vieira (2011 p 81-82) 484

HOLMES 1999 p 75 485

AHL 1976 p 48

133

Todos esses elogios a Nero contidos no proecircmio da Pharsalia satildeo objetos

de um feacutervido e longo debate no qual os classicistas tentam desvendar as reais

intenccedilotildees do poeta ao escrevecirc-los De modo geral as opiniotildees podem ser

organizadas em dois grupos De um lado estatildeo aqueles que leem o panegiacuterico

como irocircnico ou artificioso sob o argumento de que ele eacute muito exagerado para

ser veriacutedico Como ilustraccedilatildeo temos os trabalhos de Marti Griset Conte Ahl

Croisille Morford e Vieira486

De outro lado estatildeo aqueles que confiam na

sinceridade do proacutelogo sustentando uma composiccedilatildeo bipartite da Pharsalia

sendo os trecircs primeiros cantos elaborados antes da ruptura entre Nero e Lucano e

os cantos restantes redigidos elaborados apoacutes a ruptura ndash o que explicaria a

existecircncia nestes uacuteltimos de criacuteticas ao cesarismo Aiacute incluem-se as produccedilotildees

de Levi Brisset Dilke Grimal Thompson Jenkinson Williams Dewar e

Cardoso487

Semelhantemente a esses autores tambeacutem acreditamos que o proecircmio

foi pensado e divulgado por Lucano como um elogio sincero Por mais

extravagante que ele pareccedila devemos nos lembrar de que ao concebecirc-lo o poeta

utilizou a linguagem convencional da eacutepoca empregando noccedilotildees bastante

difundidas488

Em outras palavras o elogio com os seus elementos literaacuterios

estava integrado aos modos de expressatildeo padrotildees do Principado489

Lucano entatildeo

conhecia a ldquomoda literaacuteriardquo do periacuteodo neroniano e precisamente por conhececirc-la

podia se recusar a usaacute-la Ele podia por exemplo ter escrito uma elegia amorosa

ao inveacutes de um eacutepico490

Como bem notou Masters ldquoLucano tinha uma escolha

ele natildeo precisava escrever este poemardquo491

Isso nos leva a crer que o poeta de

alguma forma considerava Nero um governante pacificador e divino Enfim natildeo

haacute razatildeo convincente para supor que o proecircmio da Pharsalia seja desfavoraacutevel ao

princeps ldquodenunciar o imperador no livro de abertura de um eacutepico seria

desaconselhaacutevel possivelmente ateacute fatal para o poeta e o poemardquo492

486

MARTI 1945 p 352-376 GRISET 1955 p 56-61 p 134-138 p 203-238 CONTE 1966 p

42-53 AHL 1976 p 41 CROISILLE 1982 p 75-82 MORFORD 1985 p 2003-2031

VIEIRA 2011 p 36 487

LEVI 1949b p 71-78 BRISSET 1964 DILKE 1972 p 62-82 GRIMAL 1960 p 296-305

THOMPSON 1964 p 147-153 JENKINSON 1974 p 8-9 WILLIAMS 1978 p 163-165

DEWAR 1994 p 199-211 CARDOSO 2011 p 20 488

NOCK 1926 p 18 489

DEWAR 1994 p 209 490

RUDICH 1997 p 117 491

MASTERS 1992 p 7 492

AHL 1976 p 54

134

Portanto entendemos que Lucano construiu uma obra na qual expressa

uma visatildeo otimista sobre Nero e seu governo ndash perspectiva erigida por meio do

uso ldquorevolucionaacuteriordquo da eacutepica reconstituiacuteda agrave luz da sua proacutepria inuentio493

De

acordo com Leite o poeta abandonou a posiccedilatildeo padratildeo do narrador eacutepico

desinteressado expressando claramente suas preferecircncias opiniotildees e sofrimentos

Sua voz eacute apaixonada e interessada em oposiccedilatildeo agrave voz descolorida de Virgiacutelio

Lucano tambeacutem natildeo seguiu a textura mitoloacutegica usual afirma Leite Como jaacute

dissemos ele natildeo elegeu uma Musa como inspiraccedilatildeo para seus versos e sim um

homem o imperador ndash destinado agrave apoteose A Farsaacutelia eacute o canto de um homem

inspirado por outro homem494

Por uacuteltimo ao substituir as deidades pelo princeps

o poeta tornou a Pharsalia mais proacutexima da historia do que da fabula no sentido

de que coube aos humanos o protagonismo nos eventos Sua obra assim

aproximou-se do carmen togatum de cunho factual que resgata acontecimentos

do passado para justificar o presente Nesse sentido o Nero prodigioso de Lucano

tornou-se bem diferente dos Neros prodigiosos de Secircneca e Calpuacuternio Siacuteculo O

soberano representado pelo filoacutesofo e pelo poeta bucoacutelico era prodigioso no

presente porque de alguma forma era esperado algo dele no futuro ndash ou seja era

esperado que ele se comportasse de igual modo a Augusto ou que o superasse Jaacute

em Lucano Nero eacute representado como prodigioso no presente porque ele eacute o

resultado do passado Em outras palavras foram as nefastas guerras civis que

propiciaram a ascensatildeo de Nero Natildeo haacute preocupaccedilatildeo com o futuro Nero eacute uma

consequecircncia do passado e natildeo uma expectativa

Destacamos tambeacutem que para Lucano a paz e o natildeo envolvimento do

princeps com as guerras que marcaram duramente a histoacuteria romana colocam

Nero em uma posiccedilatildeo de destaque muito positiva a qual lhe asseguraria gloacuterias jaacute

alcanccediladas por seus antecessores Ceacutesar e Augusto ambos diui Todavia na visatildeo

do poeta alcanccedilar essa gloacuteria pela paz eacute algo uacutenico e isso coloca Nero em uma

posiccedilatildeo ainda mais elevada Assim o tema do afastamento de Nero dos conflitos

entra para o repertoacuterio de construccedilatildeo dos retratos do princeps gerando ao mesmo

tempo uma imagem positiva de Nero e uma negativa de Ceacutesar e Augusto

Por fim depois de analisarmos as fontes textuais deste capiacutetulo quatro

consideraccedilotildees se impotildeem Em primeiro lugar as composiccedilotildees de Secircneca

493

VIEIRA 2011 p 52 494

LEITE 2019 p 65

135

Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano possuem cinco temas proeminentes e recorrentes 1) a

aboliccedilatildeo de Nero dos abusos ocorridos no governo de Claacuteudio 2) a associaccedilatildeo do

princeps com Augusto 3) a associaccedilatildeo do imperador com Apolo e com outras

divindades 4) a manutenccedilatildeo da paz e 5) o retorno da Idade de Ouro Trata-se de

temas que a nosso ver estatildeo diretamente relacionados com o conceito de

allelopoiesis Relembremo-lo

[A] estreita conexatildeo entre modificaccedilatildeo e construccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica essencial dos processos de transformaccedilatildeo que podem ocorrer tanto diacrocircnica quanto sincronicamente Tais processos portanto levam a algo ldquonovordquo em dois sentidos ou seja a novas configuraccedilotildees mutuamente dependentes tanto na

cultura de referecircncia quanto naquela de recepccedilatildeo Essa relaccedilatildeo de interdependecircncia de reciprocidade seraacute denotada [] pelo termo allelopoiesis um neologismo formado a partir das raiacutezes gregas allelon (ldquomuacutetuordquo ldquoreciacuteprocordquo) e poiesis (ldquocriaccedilatildeordquo ldquogeraccedilatildeordquo)495

Juntando essa definiccedilatildeo de Bergemann com a releitura do conceito feita

por Faversani e Joly interpretamos que Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano ao

falarem do passado de alguma maneira falaram do seu proacuteprio tempo E ao

refletirem sobre seu proacuteprio tempo projetaram problemas e perguntas que

emolduraram e redefiniram o que teria sido o passado ndash no caso os Principados de

Augusto e de Claacuteudio Por allelopoiesis entatildeo transformaram o passado ao

lanccedilarem novas questotildees sobre o tempo antecedente mas tambeacutem transformaram

o presente ao vecirc-lo com referecircncia nesse passado Allelopoiesis se revela assim

ldquo[] como uma alternativa para se pensar o passado como um legado e ao mesmo

tempo para se tomar esse passado como mateacuteria de uso pelo presente []rdquo que o

modificou496

Passado e presente se construiacuteram mutuamente Secircneca Calpuacuternio

Siacuteculo e Lucano ao representarem Nero alteraram a forma como o passado

poderia ser visto modificando simultaneamente a forma como viam seu

presente Por esse processo edificaram o retrato de um princeps que recompocircs

aspectos do passado ndash as lembranccedilas positivas e negativas dos governos

augustano e claudiano ndash e gerou elementos para a compreensatildeo do presente por

seus contemporacircneos ndash Nero seria o melhor pois tinha o bom caraacuteter de Augusto

495

BERGEMANN et al 2019 p 9 496

FAVERSANI JOLY no prelo 2021 Agradecemos aos professores pelo envio do artigo

Alexandre em Quinto Cuacutercio e o Principado Romano antes da publicaccedilatildeo

136

e abandonava o caraacuteter ruim de Claacuteudio Isso gerou um pequeno repertoacuterio a ser

transmitido ndash ou natildeo ndash daiacute em diante o do Nero prodigioso

Em segundo lugar os trabalhos dos trecircs autores ainda que tenham

enfoques diferentes centram-se majoritariamente em episoacutedios concernentes agrave

ascensatildeo do soberano representando-o como um jovem imperador com um

Principado deveras promissor o qual poderia vir a ser melhor do que o de

Augusto Secircneca por exemplo aponta no sentido de uma monarquia solar e

Lucano toma os tempos felizes iniciais como um sinal claro do governo de um

diuus Em terceiro a uacutenica obra que foge da temaacutetica da ascensatildeo satildeo as Eclogae

apresentando de forma positiva a figura do Nero construtor cujos

empreendimentos artiacutesticos ndash o anfiteatro e os espetaacuteculos com animais selvagens

ndash levariam Roma ao esplendor cultural Em quarto Secircneca e Lucano estiveram

em constante interaccedilatildeo com o princeps com suas ambiccedilotildees artiacutesticas e com sua

corte literaacuteria o que acreditamos ter fornecido inspiraccedilatildeo positiva para a produccedilatildeo

dos seus textos Sendo assim julgamos que na contemporaneidade do princeps

os elogios satildeo predominantes e evidentes As poucas criacuteticas existentes ndash se eacute que

existiram ndash satildeo frutos de interpretaccedilotildees posteriores feitas pelos classicistas atuais

e satildeo duacutebias e especulativas Logo entendemos o Nero criado por Secircneca

Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano como um soberano preponderantemente prodigioso

Natildeo existem aqui traccedilos de uma tradiccedilatildeo negativa e nem mesmo indiacutecios de que

Nero foi um mau imperador A literatura estaacute focada na comemoraccedilatildeo da vinda do

seu Principado Vejamos no proacuteximo capiacutetulo se tal visatildeo permaneceraacute

137

Capiacutetulo 3 Nero transformado (69-96)

Este capiacutetulo buscaraacute estudar a forma Nero transformado que se situaraacute no

contexto imediato apoacutes o fim do seu governo qual seja o da instauraccedilatildeo da

dinastia Flaviana no poder (69-96) Nosso objetivo eacute analisar como a imagem do

Nero prodigioso foi modificada ndash ou natildeo ndash com a consolidaccedilatildeo do novo cenaacuterio

poliacutetico surgido logo depois do seu suiciacutedio em 68 e apoacutes as guerras civis de 69

Nero permaneceu no comando do Impeacuterio Romano por longos 14 anos

(54-68) sendo o uacuteltimo soberano da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia A revolta liderada por

Vindex na Gaacutelia a perda de apoio dos exeacutercitos e dos pretorianos e a declaraccedilatildeo

do Senado que o transformou em inimigo puacuteblico fizeram-no se suicidar no dia 9

de junho quando somava 32 anos de idade497

A notiacutecia do seu falecimento de

acordo com Taacutecito despertou uma mistura de sentimentos entre a populaccedilatildeo os

senadores e os equestres regozijaram-se uma parcela da plebe os clientes e os

libertos daqueles que tinham sido condenados alegraram-se e as categorias

sociais mais baixas entristeceram-se498

Suetocircnio comenta que esta uacuteltima por

muito tempo enfeitou seu tuacutemulo com flores da primavera e do veratildeo499

Apoacutes a sua morte Roma teve um periacuteodo de guerra civil que se estendeu

por 18 meses de junho de 68 a dezembro de 69 Nesse iacutenterim tivemos a

ascensatildeo de quatro principes500

Houve Galba homem com uma carreira de

conquistas militares cujo governo de 7 meses estabeleceu uma poliacutetica austera

voltada agrave reorganizaccedilatildeo das financcedilas501

Otatildeo ex-governador da proviacutencia da

Lusitacircnia que por 3 meses natildeo deixou escapar nenhuma oportunidade de prestar

serviccedilos ou de ganhar popularidade dando por exemplo moedas de ouro a

homens da guarda pretoriana502

Viteacutelio ex-governador da proviacutencia da Germacircnia

inferior que ao longo de 5 meses demonstrou enorme crueldade assassinando

pessoas por quaisquer motivos503

e por fim Vespasiano comandante militar de

renome que conseguiu manter-se no trono e encerrar o periacuteodo de guerra civil

497

Dio 63293 498

Tac Hist 141 499

Suet Nero 571 500

Tac Hist 121 501

Suet Gal 7-8 15 502

Suet Otho 3-4 503

Suet Vit 14

138

dando iniacutecio a uma eacutepoca de estabilidade poliacutetica504

Sua ascensatildeo em dezembro

de 69 marcou o fim do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo e o comeccedilo da segunda

dinastia romana a Flaviana a qual geriu o Impeacuterio de 69 a 96 sob trecircs liacutederes

Vespasiano (69-79) e seus filhos Tito (79-81) e Domiciano (81-96)

Eacute essencial destacar que a turbulecircncia dos anos de 68 e 69 trouxe disputas

natildeo soacute pelo controle do Impeacuterio como tambeacutem pela manipulaccedilatildeo da memoacuteria de

Nero A imagem do falecido soberano foi apropriada pelos novos governantes de

modos diversos e contrastantes segundo os seus proacuteprios interesses poliacuteticos Por

exemplo Galba edificou sua imagem puacuteblica em contraposiccedilatildeo agrave imagem de

Nero no intuito de justificar a deposiccedilatildeo do predecessor e posicionar-se como

salvador Desse modo ordenou a cunhagem de moedas com a legenda Libertas

Restituta (Liberdade Restituiacuteda) insinuando que a tirania neroniana havia

terminado505

Em contrapartida Otatildeo e Viteacutelio exploraram positivamente a

memoacuteria de Nero pois acreditavam que ela os ajudaria a alcanccedilar popularidade

entre a plebe Otatildeo por exemplo mandou erguer estaacutetuas do ex-imperador

adotou o cognomen Nero e promoveu a conclusatildeo da Domus Aurea ao passo que

Viteacutelio fez sacrifiacutecios ao espiacuterito do finado e permitiu que suas canccedilotildees fossem

executadas em puacuteblico506

Vemos portanto que em um curto espaccedilo de tempo a

imagem do antigo princeps foi bastante utilizada para fomentar apoio aos novos

governos seja apoio por oacutedio seja apoio por amor ao antepassado Tal questatildeo

apesar de relevante para a nossa tese natildeo seraacute abordada neste capiacutetulo pois o uso

das representaccedilotildees de Nero por Galba Otatildeo e Viteacutelio aparece de forma jaacute

consolidada nas fontes literaacuterias escritas sob os Flaacutevios e Antoninos Ademais

natildeo temos fontes literaacuterias que possam ser seguramente datadas em cada um

desses breviacutessimos Principados do ldquoano dos quatro imperadoresrdquo Os documentos

que tratam dessa temaacutetica foram elaborados em mais detalhes apenas na dinastia

Antonina e na dos Severos e seratildeo discutidos no proacuteximo capiacutetulo

504

Tito Flaacutevio Vespasiano nascido no dia 17 de novembro do ano 9 foi o primeiro imperador

romano da dinastia flaviana Descendia de uma famiacutelia da ordem equestre a qual atingiu a

categoria senatorial durante os governos dos imperadores da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Ao longo da

sua vida Vespasiano ganhou renome como general militar colocando sob o domiacutenio romano mais

de 20 cidades e duas tribos britacircnicas poderosas Ele foi tambeacutem o responsaacutevel pela vitoacuteria romana

na guerra contra os rebeldes judeus na Judeia iniciada em 66 ndash guerra inclusive que ele chefiou a

mando de Nero Foi essa campanha bem-sucedida que tornou possiacutevel sua ascensatildeo ao trono

sendo aclamado imperator pelas tropas em Alexandria pelo exeacutercito da Judeia por todos os

legionaacuterios das forccedilas auxiliares e pelas proviacutencias do leste (Tac Hist 279-81 Suet Vesp 1-6) 505

ROLLER 2001 p 261 506

Tac Hist 178 Suet Otho 7 Tac Hist 295 1

139

Falemos entatildeo do uso da imagem neroniana pelos Flauii As fontes

epigraacuteficas sobreviventes revelam uma forte condenaccedilatildeo da memoacuteria do princeps

por tal dinastia desenvolvida devido agrave necessidade do fortalecimento da

legitimidade do seu proacuteprio poder Os novos soberanos natildeo detinham

descendecircncia direta ou indireta nem de Augusto (um Juacutelio) nem de Liacutevia (uma

Claacuteudia) por isso a construccedilatildeo da legitimidade era algo de extrema

importacircncia507

E nada melhor para erigir a legitimidade do que deslegitimar o

governante anterior mostrando-se diferente dele508

Nessa perspectiva uma das

estrateacutegias utilizadas pelos Flaacutevios foi a obliteraccedilatildeo da memoacuteria neroniana ou

seja a transformaccedilatildeo da identidade ideoloacutegica e cultural da capital do Impeacuterio por

meio da destruiccedilatildeo da reconfiguraccedilatildeo eou da remoccedilatildeo dos retratos e das

construccedilotildees de Nero da esfera puacuteblica do apagamento do seu nome de algumas

inscriccedilotildees da contramarcaccedilatildeo de moedas e da construccedilatildeo ou reforma de edifiacutecios

para o benefiacutecio comum509

Ramage comenta sobre algumas accedilotildees adotadas especificamente por

Vespasiano Uma delas foi o uso da legenda Roma Ressurgens nas cunhagens

simbolizando a recuperaccedilatildeo moral e material da Vrbs ldquoRoma Ressurgens tinha

uma forte conotaccedilatildeo com a restauraccedilatildeo fiacutesica da cidade apoacutes a influecircncia tiracircnica

de Nerordquo Outra accedilatildeo foi o retorno da legenda Libertas Restituta jaacute usada por

Galba significando o restabelecimento da liberdade apoacutes a morte de Nero

Vespasiano tambeacutem cunhou moedas com as legendas Felicitas Publica

(Felicidade Puacuteblica) Fides Publica (Feacute Puacuteblica) e Securitas Populi Romani

(Seguranccedila do Povo Romano) no intuito de fortalecer a diferenccedila do seu governo

em relaccedilatildeo ao de Nero Tivemos ainda a construccedilatildeo do Templo da Paz a

reapropriaccedilatildeo do terreno da Domus Aurea para a estruturaccedilatildeo do Anfiteatro

Flaviano510

a substituiccedilatildeo da cabeccedila de Nero no Colosso pela cabeccedila do deus-sol

e a reconstruccedilatildeo do Templo de Claacuteudio Deificado realizada como uma rejeiccedilatildeo da

poliacutetica de Nero segundo a qual a adoraccedilatildeo de Claacuteudio foi ignorada e seu templo

507

RODRIGUES 2020 p 112 508

A depreciaccedilatildeo do antecessor como dispositivo de propaganda tem uma longa histoacuteria

remontando pelo menos aos tempos de Ciacutecero 509

DARWALL-SMITH 1996 p 253 ROSSO 2008 p 43 RIPOLL 1999 p 148 ZISSOS

2016 p 7 VARNER 2017 p 238 510

Cabe destacar que o Anfiteatro comeccedilou a ser construiacutedo por Vespasiano por volta do ano 70

e foi finalizado por Tito em torno de 80

140

desmontado511

No final das contas entatildeo Vespasiano ndash e os Flaacutevios ndash acreditava

que se apagasse os traccedilos de Nero apagaria sua memoacuteria

Outra estrateacutegia muito usada pelos Flaacutevios foi o patrociacutenio de obras

literaacuterias que endossavam a visatildeo de que Nero desonrara Augusto e o resto da

famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia Em outras palavras Vespasiano Tito e Domiciano

encorajaram a divulgaccedilatildeo de trabalhos que davam ao falecido soberano uma

coloraccedilatildeo tiracircnica512

De fato no periacuteodo foram produzidos vaacuterios trabalhos que

atribuiacuteam a ele atitudes negativas transformando-o em uma espeacutecie de monstro a

ser rejeitado513

Nessa perspectiva inserem-se Octauia composta por Pseudo-

Secircneca Naturalis Historia redigida por Pliacutenio o Velho Bellum Judaicum e

Antiquitates Judaicae elaborados por Flaacutevio Josefo Liber Spectaculorum e

Epigrammata produzidos por Marcial e as Siluae concebidas por Estaacutecio Cabe

destacar que a obra Institutio Oratoria (Educaccedilatildeo Oratoacuteria) escrita por

Quintiliano embora seja contemporacircnea agraves citadas natildeo menciona os episoacutedios da

vida de Nero que nos interessam

A anaacutelise dessas fontes nos permitiraacute observar que o tratamento dado agrave

imagem neroniana pelos Flaacutevios foi uma estrateacutegia voltada agrave propagaccedilatildeo de novos

ideais poliacuteticos e de uma memoacuteria transformada Nero serviu como uma peliacutecula

conveniente contra a qual a nova dinastia pretendia se definir positivamente514

Eacute

sob tal ponto que nos deteremos a seguir organizando nossa anaacutelise pelo estudo

das obras selecionadas que permitem uma percepccedilatildeo clara dos contrastes

produzidos com essa produccedilatildeo dos Neros transformados

Pseudo-Secircneca Octauia

A primeira composiccedilatildeo publicada nessa nova era poliacutetica foi a trageacutedia

Octauia uacutenico drama ndash cuja trama se daacute em uma ambientaccedilatildeo romana ndash que nos

chegou completo515

Trata-se de uma obra na qual satildeo relatados os uacuteltimos

instantes da vida de Otaacutevia filha do imperador Claacuteudio com sua terceira esposa

511

RAMAGE 1983 p 209-214 512

GRIFFIN 2001 p 15 513

LEFEBVRE 2017 p 26-27 514

TUCK 2016 p 110 515

GRIFFIN 2001 p 100

141

Messalina516

Nascida no ano 40 essa primeira foi irmatilde de Britacircnico meia-irmatilde

de Antocircnia e primeira esposa de Nero O enlace ocorreu em junho de 53 graccedilas

aos arranjos de Agripina517

Agrave eacutepoca ela tinha 13 anos ele 15 e ambos

mantinham uma relaccedilatildeo pouco afetuosa518

Por consequecircncia Nero se direcionou

agraves amantes apaixonando-se por Popeia esposa do seu amigo Otatildeo

519 A fim de

casar-se com ela divorciou-se de Otaacutevia em um processo complicado acusando-a

falsamente de adulteacuterio enviando-a para o exiacutelio e assassinando-a Toda essa

trama eacute narrada na Octauia em uma sequecircncia cronoloacutegica de trecircs dias situados

em junho de 62520

Eacute importante destacar que a autoria e a dataccedilatildeo da obra satildeo questotildees

problemaacuteticas ateacute os dias atuais No tocante agrave autoria a inclusatildeo do texto nos

manuscritos das Trageacutedias de Secircneca durante a Idade Meacutedia fez com que ele

fosse atribuiacutedo ao filoacutesofo Poreacutem eacute um consenso entre os estudiosos que Octauia

natildeo foi produzido por Secircneca e sim por um admirador eou seguidor dele521

Para Herington o escritor da obra deve ter sido algueacutem que estimava o trabalho

do tutor de Nero e conhecia os seus versos de cor empenhando-se em reproduzir

o seu estilo522

Ferri adiciona que os versos da Octauia satildeo demasiadamente

pobres e repetitivos bem diferentes dos elaborados versos senequianos523

O

marcante no texto eacute a ausecircncia de variaccedilatildeo as mesmas expressotildees idiomaacuteticas satildeo

repetidas duas ou mais vezes o que daacute uma ideia da gama limitada de soluccedilotildees

literaacuterias disponiacuteveis para o tragedioacutegrafo524

A recusa em conferir a paternidade

do texto a Secircneca fez com que a comunidade cientiacutefica atual chamasse o autor

desconhecido de Pseudo-Secircneca denominaccedilatildeo que tambeacutem adotaremos

Em relaccedilatildeo agrave dataccedilatildeo a maior parte dos estudiosos costuma situaacute-la apoacutes a

morte de Nero e sob o governo de Vespasiano entre 69 e 70525

Considera-se que

516

Tac Ann 1134 517

Suet Cl 27 Tac Ann 1258 Suet Nero 72 518

CHAMPLIN 2005 p 162 519

Tac Hist 113 Popeia eacute retratada na Octauia como uma mulher bela prendada pelos deuses e

de linhagem nobre ([Sen] Oct 544-545 551-552) 520

O periacuteodo de trecircs dias eacute obviamente uma convenccedilatildeo dramaacutetica os eventos reais

desenvolveram-se por um periacuteodo mais longo (FERRI 2014 p 522) 521

POE 1989 p 436 522

HERINGTON 1961 p 28 523

FERRI 2003 p 32 524

FERRI 2003 p 36 525

Lucarini (2005 p 263-284) ao contraacuterio tentou provar que a peccedila foi escrita depois do terceiro

ou quarto seacuteculos As provas apresentadas pelo autor satildeo fracas e resumem-se essencialmente a

algumas passagens em que Octauia eacute mais alusiva ou obscura do que Taacutecito

142

ela foi produzida nessa eacutepoca por trecircs motivos i) a imitaccedilatildeo do estilo senequiano

indica que ela foi escrita dentro de uma proximidade razoaacutevel da morte do

filoacutesofo526

ii) o seu forte tom antineroniano sugere que ela natildeo deve ter sido

elaborada durante a vida do finado princeps527

e iii) as suas referecircncias claras agrave

tirania de Nero ajustam-se com perfeiccedilatildeo agrave apropriaccedilatildeo flaviana negativa da

memoacuteria do soberano528

De acordo com Liberman essa dataccedilatildeo entre todas as

possiacuteveis eacute a mais adequada pois o modo como Pseudo-Secircneca narra os fatos eacute

bastante vivo e detalhista algo que soacute poderia ocorrer se ele tivesse testemunhado

os eventos Decerto foi algum membro da corte proacuteximo aos personagens

histoacutericos citados cujo nome infelizmente natildeo alcanccedilou a posteridade529

No que tange ao gecircnero a Octauia carrega as caracteriacutesticas de uma

praetexta imperial drama antigo do qual sabemos pouco530

O nome praetexta

adveacutem do traje usado pelos personagens no momento da atuaccedilatildeo do drama uma

praetexta toga (toga com bordas roxas) vestimenta destinada aos membros

pertencentes agrave categoria senatorial O uso da roupa era feito no intuito de

representar magistrados e outras figuras puacuteblicas que protagonizavam episoacutedios

poliacuteticos importantes em Roma As praetextae imperiais traziam criacuteticas a

aristocratas por meio da encenaccedilatildeo de uma peccedila sobre uma figura contemporacircnea

que possuiacutea um comportamento autocraacutetico531

Em outras palavras eram

produccedilotildees relacionadas agrave histoacuteria recente da capital do Impeacuterio a acontecimentos

ainda presentes na memoacuteria da populaccedilatildeo Agrave vista disso natildeo eram encenadas por

muito tempo depois de escritas eram apresentadas uma uacutenica vez em um evento

especiacutefico e para um puacuteblico restrito ou mesmo circuladas apenas sob a forma de

texto sem chegarem a ir para o palco Isso explicaria no entender de Pita a pouca

necessidade de preservaccedilatildeo dos textos e o consequente desaparecimento de todo

um gecircnero literaacuterio532

Fundamentados nesses aspectos de autoria dataccedilatildeo e gecircnero os criacuteticos

modernos leem a Octauia como uma obra de denuacutencia agrave opressatildeo exercida por

526

Para Boyle (2008 p xvi) uma imitaccedilatildeo muito posterior agrave morte de Secircneca natildeo faria sentido 527

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p xix 528

ROYO 1983 p 200 529

LIBERMAN 1998 p vii-viii 530

Uma das discussotildees modernas mais extensas e completas sobre o gecircnero praetexta eacute a de

Kragelund (2002 p 5-51) 531

GOacuteMEZ 1997 p 573-574 532

PITA 2006 p 56 Aleacutem da Octauia haacute apenas uma menccedilatildeo a outra praetexta encenada no

periacuteodo imperial a qual eacute feita por Taacutecito no Dialogus de Oratoribus (Tac Dial 3)

143

Nero sobre o Impeacuterio uma composiccedilatildeo que condena os desvarios do soberano e

demonstra atraveacutes de um exemplo da histoacuteria recente os perigos que a

concentraccedilatildeo de poderes pode trazer Tal concepccedilatildeo eacute claramente perceptiacutevel no

texto Das linhas de abertura ateacute os versos finais Pseudo-Secircneca coloca Otaacutevia

expondo os assassinatos a repulsa emocional e os traumas vivenciados pelos seus

familiares e pelo povo de Roma533

Como afirmam Marti e Sullivan a Octauia eacute

uma ldquodiatribe contra Nerordquo um ldquodocumento poliacuteticordquo que expotildee as queixas das

suas viacutetimas534

Para entendermos com clareza a representaccedilatildeo de Nero construiacuteda por

Pseudo-Secircneca precisamos examinar a obra em detalhes Ela possui cinco atos e

nove personagens (aleacutem do coro) 1) Otaacutevia a protagonista 2) a escrava de

Otaacutevia 3) Secircneca 4) Nero 5) Agripina 6) Popeia 7) a escrava de Popeia 8) um

centuriatildeo e 9) um mensageiro535

Nesse cenaacuterio satildeo relatados episoacutedios da vida

de Otaacutevia dos quais o princeps participou Noacutes avaliaremos nove 1) a adoccedilatildeo de

Nero 2) o casamento dele com Otaacutevia 3) sua ascensatildeo 4) o assassinato de

Britacircnico 5) o assassinato de Agripina 6) o exiacutelio e o assassinato de Otaacutevia 7) o

casamento do imperador com Popeia 8) o incecircndio de Roma e 9) a construccedilatildeo da

Domus Aurea Com exceccedilatildeo da ascensatildeo neroniana essa eacute a primeira vez que

esses eventos aparecem no nosso corpus textual

Sem mais delongas tratemos do episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero536

Ele eacute

retratado como uma maquinaccedilatildeo de Agripina que estava disposta a qualquer coisa

para garantir o trono ao filho A matildee do futuro imperador eacute descrita pelo autor de

forma bem hostil ela aparece como uma mulher odiosa uma madrasta cruel e de

olhares ferozes537

Ela fez o marido Claacuteudio preferir538

533

SMITH 2003 p 397-425 534

MARTI 1952 p 28 SULLIVAN 1985 p 71 535

Os cinco atos satildeo bem desproporcionais o primeiro tem 376 versos o segundo tem 215 o

terceiro tem apenas 96 o quarto ato tem 129 e o quinto tem 162 536

Em Roma a adoccedilatildeo era o meacutetodo mais comum e eficaz de garantir a continuidade de um nome

da heranccedila e da memoacuteria (CROOK 1967 p 111) 537

[Sen] Oct 20-23 538

Agripina casou-se com Claacuteudio em 48 ou 49 O enlace eacute representado na Octauia de forma

muito negativa uma mulher selvagem ldquo[] com peacutes imortais entrou no templo vazio desonrou

com tocha infernal seu coraccedilatildeo sagrado rompeu as leis da natureza e tudo que eacute divinordquo

uacuamque Erinys saeua funesto pede intrauit aulam polluit Stygia face sacros penates iura

naturae furens ([Sen] Oct 161-163) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 19)

144

um nascido de outro sangue a seu filho

e dominado pelo amor tomou como esposa a filha de seu irmatildeo em uniatildeo amaldiccediloada a partir disso gerou uma seacuterie de crimes assassinato traiccedilatildeo ambiccedilatildeo por poder sede de sangue O genro tornou-se viacutetima do sogro para que por meio de teu casamento natildeo se tornasse poderoso

Que crime monstruoso Silano539 foi um presente dado a mulher para cobrir de sangue sua famiacutelia ancestral culpado de crime fictiacutecio O inimigo entrou ai de mim Tomou a casa por meio da astuacutecia da madrasta feito genro e filho do imperador jovem de gecircnio abominaacutevel e capaz de crimes cuja matildee maligna acendeu a tocha e por medo casou-te agrave forccedila540

Agripina preparou bem o caminho para assegurar a ascensatildeo do filho

Convenceu Claacuteudio a preferir Nero a Britacircnico seu filho legiacutetimo e eliminou

Silano casando Otaacutevia com Nero em uma ldquouniatildeo amaldiccediloadardquo A adoccedilatildeo eacute vista

de maneira ldquocatastroacuteficardquo pois com ela a casa dos Claacuteudios foi tomada por uma

mulher manipuladora e um jovem de gecircnio abominaacutevel541

Pseudo-Secircneca coloca

o futuro imperador em contraste com Britacircnico indicando que a adoccedilatildeo foi o

ldquoenterrordquo da famiacutelia Juacutelio-Claudiana Nero eacute figurado como um usurpador que

retirou uma posiccedilatildeo pertencente por direito a outro Por meio da astuacutecia da

madrasta o inimigo Nero infausto tomou a casa e trouxe consigo assassinato

traiccedilatildeo ambiccedilatildeo e sede de sangue

Aleacutem de articular a adoccedilatildeo Agripina tambeacutem agilizou o casamento do

filho com Otaacutevia A filha de Claacuteudio lamenta o infortuacutenio

539

Taacutecito conta que uma vez certa do seu enlace com Claacuteudio Agripina passou a arquitetar as bodas entre Nero e Otaacutevia O problema eacute que o imperador jaacute havia prometido Otaacutevia a Luacutecio

Silano bisneto de Augusto Entatildeo Agripina se uniu ao censor Viteacutelio (futuro imperador) para

articular acusaccedilotildees contra Silano dizendo que ele mantinha relaccedilotildees incestuosas com a irmatilde

Silano desinformado do complocirc e pretor naquele ano foi afastado da ordem senatorial por um

decreto de Viteacutelio Ao mesmo tempo Claacuteudio rompeu o noivado e Silano foi forccedilado a renunciar

agrave magistratura No dia do casamento de Otaacutevia Silano suicidou-se (Tac Ann 123-4 1281) 540

qui nato suo praeferre potuit sanguine alieno satum genitamque fratris coniugem captus sibi

toris nefandis flebili iunxit face hinc orta series facinorum caedes doli regni cupido

sanguinis diri sitis mactata soceri concidit thalamis gener uictima tuis ne fieret hymenaeis

potens pro facinus ingens feminae est munus datus Silanus et cruore foedauit suo patrios

penates criminis ficti reus intrauit hostis ei mihi captam domum dolis nouercae principis

factus gener idemque natus iuuenis infandi ingeni capaxque scelerum dira cui genetrix facem

accendit et te iunxit inuitam metu ([Sen] Oct 139-154) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 18-19) 541

KRAGELUND 2016 p 204 p 352

145

suportei de uma madrasta cruel as ordens

os olhares ferozes e a alma hostil ela ela como a terriacutevel Eriacutenia ao meu leito nupcial trouxe chamas infernais e te assassinou pai miseraacutevel quem haacute pouco o mundo todo obedeceu aleacutem do oceano

e do qual os bretotildees fugiram e antes desconhecidos por nossos comandantes viviam libertos Ai de mim pai pelas perfiacutedias de uma esposa estaacutes morto tua casa e tua filha servem como cativas a um tirano542

Aqui a matrona eacute identificada com Eriacutenia personagem mitoloacutegica que

aterrorizava eou amaldiccediloava os indiviacuteduos e vingava mortes543

Para Gozo ao

inserir um mito na histoacuteria o autor fortalece o retrato de Agripina como uma

mulher maligna cujas accedilotildees simultaneamente colocam Otaacutevia em uma posiccedilatildeo

de enorme infelicidade por casaacute-la com Nero e dificultam a vida da princesa por

a levarem a dominar Claacuteudio e a mataacute-lo544

A Otaacutevia entatildeo cabia apenas se

conformar com o seu destino ser cativa de um Nero tirano Mas segundo

Pseudo-Secircneca era difiacutecil esconder o luto insuportaacutevel uma vez que ela vivia sob

o jugo de um marido cruel e de uma madrasta selvagem545

Cega por sucesso Agripina ousa ameaccedilar o sagrado governo do mundo

afirma o autor Ela articula um crime na esperanccedila nefanda de tomar o poder

preparando venenos selvagens para o marido Com a morte de Claacuteudio o bastardo

Nero filho de Domiacutecio assume o controle e ldquomancha o nome de Augustordquo546

Agrave

frente do Impeacuterio toma suas primeiras decisotildees

542

tulimus saeuae iussa nouercae hostilem animum uultusque truces illa illa meis tristis

Erinys thalamis Stygios praetulit ignes teque extinxit miserande pater modo cui totus paruit

orbis ultra Oceanum cuique Britanni terga dedere ducibus nostris ante ignoti iurisque sui

coniugis heu me pater insidiis oppresse iaces seruitque domus cum prole tua capta tyranno

([Sen] Oct 21-33) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 13) 543

As Eriacutenias eram trecircs Megera Tisiacutefone e Alecto (GRIMAL 2005 p 146-147) 544

GOZO 2016 p 84 545

[Sen] Oct 46-48 170 546

[Sen] Oct 155-159 249-251

146

[Nero] ldquoCumpra minhas ordens Envie algueacutem que traga ateacute mim a cabeccedila decepada de Plauto e Sulardquo [Centuriatildeo] ldquoCumprirei sem demora Vou-me para o acampamento imediatamenterdquo [Secircneca] ldquoConveacutem que nada seja decidido precipitadamente contra parentesrdquo [Nero] ldquoEacute mais faacutecil ser justo quando o coraccedilatildeo estaacute livre de

medordquo [Secircneca] ldquoA clemecircncia eacute um grande remeacutedio para o temorrdquo [Nero] ldquoA maior virtude de um comandante eacute aniquilar o inimigordquo [Secircneca] ldquoPara um pai da paacutetria maior virtude eacute proteger seus cidadatildeosrdquo [Nero] ldquoPara um velho brando seria conveniente dar liccedilotildees agraves

crianccedilas [] A Fortuna me permite tudordquo547 [] [Secircneca] ldquoA gloacuteria consiste em fazer o que se deve natildeo o que eacute permitidordquo [Nero] ldquoO povo pisa no liacuteder indecisordquo [Secircneca] ldquoEsmaga o detestaacutevelrdquo [Nero] ldquo[] Conveacutem que um Ceacutesar seja temidordquo548

Na passagem Nero entra em cena solicitando as cabeccedilas de Plauto e Sula

homens considerados por ele como potenciais rivais na ocupaccedilatildeo do trono549

Ao

ouvir a ordem do soberano Secircneca550

passa a admoestaacute-lo criticando a forma

como tem exercido o poder e recomendando o uso da clemecircncia Nesse ponto

verificamos uma diferenccedila de tom entre os discursos do filoacutesofo No capiacutetulo

passado quando analisamos o De Clementia verificamos o tom prodigioso de

Secircneca ao falar da ascensatildeo de Nero Ele teceu diversos elogios ao imperador

exaltou a sua benignidade inocecircncia e mansidatildeo bem como destacou a

547

Fortuna era considerada a deusa romana do acaso da sorte do destino e da esperanccedila

Correspondia agrave divindade grega Tique Era representada com o corno da abundacircncia ndash com um

lema (porque eacute ela quem ldquopilotavardquo a vida dos homens) ndash ora sentada ora de peacute quase sempre

cega distribuindo seus desiacutegnios aleatoriamente (GRIMAL 2005 p 178) 548

[Nero] Perage imperata mitte qui Plauti mihi Sullaeque caesi referat abscisum caput

[Praefectus] Iussa haud morabor castra confestim petam [Seneca] Nihil in propinquos temere constitui decet [Nero] Iusto esse facile est cui uacat pectus metu [Seneca] Magnum timoris

remedium clementia est [Nero] Extinguere hostem maxima est uirtus ducis [Seneca] Seruare

ciues maior est patriae patri [Nero] Praecipere mitem conuenit pueris senem [] Fortuna

nostra cuncta permittit mihi [Seneca] Crede obsequenti parcius leuis est dea [Nero] Inertis

est nescire quid liceat sibi [Seneca] Id facere laus est quod decet non quod licet [Nero]

Calcat iacentem uulgus [Seneca] Inuisum opprimit [Nero] Ferrum tuetur principem []

[Nero] Decet timeri Caesarem ([Sen] Oct 436-458) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 31-32) 549

O primeiro por ser bisneto do ex-imperador Tibeacuterio e descendente consanguiacuteneo de Augusto e

o segundo por deter ligaccedilotildees estreitas com a famiacutelia imperial devido ao seu enlace com Antocircnia

filha de Claacuteudio Os dois foram inicialmente exilados e depois assassinados em 62 (Tac Ann

14591-2 13471-2) 550

O Secircneca da Octauia eacute apresentado como um bom velhinho abstecircmio e temperado que natildeo se

esquece de falar a verdade mesmo diante do perigo que tenta advertir seu aluno de ir longe

demais em seu desrespeito agrave humanidade (FERRI 2003 p 71)

147

tranquilidade com a qual o povo romano poderia viver pois Nero jaacute era um liacuteder

virtuoso Secircneca tambeacutem se posicionou como um homem que buscava a

sabedoria algueacutem que detinha a verdadeira receita da arte de governar cujo passo

a passo Nero adotaria O tom prodigioso usado para se referir a Nero nos textos do

proacuteprio autor poreacutem transformou-se aqui em um tom repreensivo na voz do

personagem Secircneca551

O filoacutesofo reprova veementemente a ordem do princeps

afirmando que ldquonada deve ser decidido contra parentesrdquo e que a maior virtude de

um pater patriae552 eacute ldquoproteger seus cidadatildeosrdquo Ao longo de todo o diaacutelogo

Secircneca natildeo tece nenhum elogio ao imperador apenas o censura e o relembra da

importacircncia da clemecircncia para o governo553

Nero ouve os conselhos e responde

com escaacuternio nomeando o filoacutesofo de ldquovelho brandordquo e declarando que seria

demecircncia natildeo usar a forccedila que possuiacutea Inclusive declara ndash em outro ponto do

diaacutelogo ndash que ateacute o proacuteprio Augusto usou da forccedila para erigir o seu Principado554

Como alega Erasmo a precipitaccedilatildeo de Nero aiacute eacute contrastada com a experiecircncia de

Secircneca por meio de ataques em termos poliacuteticos555

Em resumo ndash e aqui

concordamos com Buckley e Star ndash o princeps representado na Octauia natildeo eacute

mais um liacuteder virtuoso e sim uma figura que ascendeu ao trono e governaraacute

segundo seu proacuteprio plano de governo Eacute um soberano que faz parte de uma

linhagem de tiranos romanos que testam os limites do seu poder e cujo modo de

comando pode ser resumido pela maacutexima ldquoque odeiem desde que temam ndash ou

seja trata-se de um Nero infausto556

Eacute importante marcar que essa eacute a primeira vez que o episoacutedio da ascensatildeo

de Nero eacute apresentado de modo negativo O Nero prodigioso do capiacutetulo anterior

que traria um seacuteculo de ouro para o Impeacuterio e instauraria a paz comeccedilou a se

transformar A ascensatildeo do liacuteder clemente justo iacutentegro e divino deu lugar agrave

ascensatildeo de um soberano que defende a autocracia o uso das armas e o

extermiacutenio dos inimigos Como afirma Buckley o Nero da Octauia rejeita a

551

POE 1989 p 451 552

O tiacutetulo de pater patriae com que Augusto foi aclamado em 5 aC representa o apogeu do

movimento simboacutelico que o elevou agrave posiccedilatildeo de responsaacutevel pelos destinos da naccedilatildeo romana Com

isso ele atingiu a posiccedilatildeo de segundo fundador de Roma um sucessor de Rocircmulo (ESTEVES

2010 p 29) 553

STAR 2015 p 256 554

[Sen] Oct 504-513 555

ERASMO 2004 p 114 556

BUCKLEY 2013 p 135 STAR 2015 p 256-257

148

versatildeo da Era de Ouro augustana e reativa o passado da guerra civil tatildeo

abertamente deplorado no De Clementia e na Pharsalia557

Seguindo adiante temos o episoacutedio do assassinato de Britacircnico ocorrido

em 55558

Otaacutevia chora a morte do irmatildeo em uma conversa com sua escrava

[Otaacutevia] ldquo[] Ai de mim desse tirano beijar meu inimigo de quem ateacute mesmo as cariacutecias eu natildeo poderia tolerar apoacutes a terriacutevel morte de meu irmatildeo []rdquo [Escrava] ldquoTu tambeacutem jaz morto jovem infeliz sempre motivo de choro para noacutes

a uacuteltima estrela do mundo pilar da casa de Augusto oacute Britacircnico ai de mim agora soacute cinzas [] e triste sombra []rdquo [Otaacutevia] ldquoEle restituiraacute o irmatildeo tomado de mim por assassinatordquo [Escrava] ldquoQue tu permaneccedilas viva para restituir a casa decadente do teu pai um dia com filhos teusrdquo [Otaacutevia] ldquoSe ao menos o comandante dos ceacuteus pusesse em

chamas a cabeccedila vil do priacutencipe nefando [] Essa pestilecircncia eacute pior esse inimigo dos deuses [] tomou a vida do irmatildeo []rdquo559

Eacute possiacutevel notar que a descriccedilatildeo do assassinato natildeo eacute feita em detalhes A

imperatriz e a sua escrava natildeo nos datildeo informaccedilotildees sobre a forma como aconteceu

o incidente e nem sobre a repercussatildeo poliacutetica decorrente dele As duas apenas

sofrem e se enfurecem com Nero sem revelarem o enredo por traacutes do ocorrido A

nosso ver tal caracteriacutestica pode ser explicada com base no proacuteprio gecircnero da

obra Conforme Erasmo estamos lidando com uma praetexta imperial que

objetivava denunciar as atitudes crueacuteis de Nero sobretudo as que afetaram a vida

de Otaacutevia560

O foco eacute na tristeza da viacutetima na dramatizaccedilatildeo da sua trageacutedia561

Eacute

557

BUCKLEY 2013 p 141 558

Nascido no ano 41 Britacircnico era o uacutenico filho bioloacutegico de Claacuteudio e o herdeiro legiacutetimo do

trono imperial Em 50 tornou-se irmatildeo de Nero por adoccedilatildeo haja vista que Agripina apoacutes casar-se

com Claacuteudio fecirc-lo adotar Nero Depois de adotado ele teve o nome alterado para Nero Claacuteudio Ceacutesar Druso Germacircnico transformando-se em herdeiro de Claacuteudio As fontes relatam que antes

de falecer Claacuteudio arrependeu-se dessa decisatildeo e passou a preparar Britacircnico para o trono Ao

sentir a ameaccedila Nero supostamente ordenou o envenenamento de Britacircnico antes de ele

completar 14 anos (Tac Ann 1225-26 Suet Nero 71 Suet Cl 43 Dio 60341 Dio 6174) 559

[Octauia] [] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula timere nutus cuius

obsequium meus haud ferre posset fata post fratris dolor [] [Nutrix] Tu quoque extinctus

iaces deflende nobis semper infelix puer modo sidus orbis columen augustae domus

Britannice heu me nunc leuis tantum cinis et tristis umbra [] [Octauia] Ut fratrem ademptum

scelere restituat mihi [Nutrix] Incolumis ut sis ipsa labentem ut domum genitoris olim subole

restituas tua [Octauia] utinam nefandi principis dirum caput obruere flammis caelitum rector

paret [] haec grauior illo pestis hic hostis deum hominumque templis expulit superos suis

ciuesque patria spiritum fratri abstulit [] ([Sen] Oct 109-242) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p

17-24) 560

ERASMO 2004 p 67

149

importante lembrar que a estrateacutegia narrativa eacute concentrar as accedilotildees em trecircs dias

periacuteodo no qual os episoacutedios anteriores satildeo lembrados e tudo que aconteceu ao

longo de anos eacute apresentado de forma sinteacutetica intensa e conectada para gerar o

efeito dramaacutetico desejado O importante para Pseudo-Secircneca eacute falar da dor e da

raiva sentidas por Otaacutevia com a morte de Britacircnico e natildeo da morte em si E eacute

exatamente esses sentimentos que fazem o autor descrever Nero de maneira

negativa no excerto denominando-o de ldquotiranordquo ldquopriacutencipe nefandordquo ldquopestilecircnciardquo

e ldquoinimigo dos deusesrdquo tiacutetulos que nos possibilitam enquadrar o assassinato na

categoria Nero fratricida

Sobre o trecho cabe comentar ainda que Ferri e Kragelund defendem que

nele haacute uma representaccedilatildeo de Nero como usurpador haja vista que o trono por

nascimento pertencia a Britacircnico Enquanto Otaacutevia chora sua escrava reconhece

amargamente que o uacuteltimo descendente da famiacutelia Juacutelio-Claacuteudia o ldquouacuteltimo pilar

da casa de Augustordquo partiu para sempre A uacuteltima esperanccedila que a imperatriz

tinha de se vingar e de se livrar do marido tirano perecera Nero eacute figurado por

Pseudo-Secircneca entatildeo como um princeps ilegiacutetimo cujo governo possui fortes

traccedilos autocraacuteticos ndash muito diferentes aliaacutes dos traccedilos libertaacuterios mostrados no

capiacutetulo anterior562

Eis que os lamentos de Otaacutevia e da sua escrava chegam aos ouvidos do

coro romano que natildeo se mostra surpreso com o delito afinal este era soacute mais um

dos crimes perpetrados pelo imperador capaz de coisas piores Para ilustrar o

coro descreve outra atrocidade o assassinato de Agripina sucedido em 59563

561

HERINGTON 1961 p 30 562

FERRI 2003 p 159 KRAGELUND 2016 p 194-196 p 406 563

Nascida no ano 15 Agripina era a quarta filha de Germacircnico Ceacutesar com Agripina Maior Em

28 casou-se com Cneu Domiacutecio Aenobarbo por determinaccedilatildeo do imperador Tibeacuterio Em 37 no ano do falecimento de Tibeacuterio e da ascensatildeo de Caliacutegula deu agrave luz Nero Dois anos depois em 39

ela e sua irmatilde Juacutelia Livila foram exiladas por ordem de Caliacutegula Enquanto esteve longe de

Roma deixou Nero sob os cuidados de Domiacutecia Leacutepida tia paterna da crianccedila Em 41 Caliacutegula

foi assassinado e Claacuteudio tio de Agripina tornou-se imperador O novo soberano retirou as penas

de exiacutelio de Agripina e Juacutelia permitindo-lhes regressarem a Roma Foi provavelmente por esta

altura que Agripina casou-se pela segunda vez com Caio Passieno Crispo um rico e influente

orador Tal enlace parece natildeo ter durado muito tempo pois por volta de 49 Agripina estava viuacuteva

outra vez Seu terceiro e uacuteltimo casamento foi com Claacuteudio em 49 matrimocircnio que lhe rendeu a

adoccedilatildeo de Nero Apoacutes a uniatildeo ela tratou de colocar o seu filho cada vez mais proacuteximo da sucessatildeo

imperial Em 54 Claacuteudio supostamente foi envenenado por Agripina com cogumelos dando

espaccedilo para a ascensatildeo de Nero Nos meses iniciais do governo foram concedidos favores em

excesso a Agripina poreacutem com o tempo Nero desentendeu-se com a matildee passando a planejar o

seu assassinato ocorrido em 59 ([Sen] Oct 164-165 Tac Ann 4751 1223 Suet Cl 263

442 Dio 6041 60316 60323 6034)

150

[Coro romano] ldquoOs romanos antepassados tinham a virtude neles havia a verdadeira linhagem e sangue de Marte Expulsaram da cidade reis soberbos [] Esta era [] contemplou o crime odioso de um filho quando nosso priacutencipe traiu sua proacutepria matildee e a fez navegar pelo mar Tirreno em uma embarcaccedilatildeo mortal Comandados por ele os nautas partiram []

[] o navio alcanccedila o mar aberto quando se divide abre seu casco e se adentra no mar denso [] A morte suga muitos no mar profundo Augusta [Agripina] chora sobre suas vestes [] Quando natildeo haacute esperanccedila de seguranccedila ardendo a ira com a dor assolando lsquoessarsquo exclama lsquoeacute a recompensa

que me paga por meu grande presente filhorsquo Eu admito que mereccedilo esse barco te gerei dei a ti a luz o poder e o nome de Ceacutesar []rsquo [] A aacutegua afoga sua boca ela afunda no oceano e emerge [] Muitos [] corajosamente ajudam sua senhora [] Do que te foi uacutetil fugir do mar selvagem Tu estaacutes prestes a morrer pela matildeo do teu filho

cujo crime a posteridade natildeo esqueceraacute Nero se enfurece pelo resgate [] Ele apressa o destino de sua matildee [] Um capanga obedece agraves ordens abre seu peito com ferro Morrendo a infeliz pede a seu carrasco para que afunde a espada cruel em seu uacutetero dizendo lsquoafunde aqui sua espada aqui

onde essa monstruosidade nasceursquordquo564

564

[Chorus] Vera priorum uirtus quondam Romana fuit uerumque genus Martis in illis

sanguisque uiris Illi reges hac expulerunt urbe superbos [] Haec quoque nati uidere nefas

saecula magnum cum Tyrrhenum rate ferali princeps captam fraude parentem misit in

aequor Properant placidos linquere portus iussi nautae resonant remis pulsata freta fertur

in altum prouecta ratis quae resoluto robore labens pressa dehiscit sorbetque mare Tollitur

ingens clamor ad astra cum femineo mixtus planctu mors ante oculos dira uagatur quaerit

leti sibi quisque fugam alii lacerae puppis tabulis haerent nudi fluctusque secant repetunt alii

litora nantes multos mergunt fata profundo Scindit uestes Augusta suas laceratque comas

rigat et maestis fletibus ora postquam spes est nulla salutis ardens ira iam uicta malis lsquohaecrsquo exclamat lsquomihi pro tanto munere reddis praemia nate hac sum fateor digna carina

quae te genui quae tibi lucem atque imperium nomenque dedi Caesaris amens Exere uultus

Acheronte tuos poenisque meis pascere coniunx ego causa tuae miserande necis natoque

tuo funeris auctor en ut merui ferar ad manes inhumata tuos obruta saeuis aequoris undisrsquo

Feriunt fluctus ora loquentis ruit in pelagus rursumque salo pressa resurgit pellit palmis

cogente metu freta sed cedit fessa labori Mansit tacitis in pectoribus spreta tristi iam morte

fides multi dominae ferre auxilium pelago fractis uiribus audent bracchia quamuis lenta

trahentem uoce hortantur manibusque leuant Quid tibi saeui fugisse maris profuit undas

ferro es nati moritura tui cuius facinus uix posteritas tarde semper saecula credent Furit

ereptam pelagoque dolet uiuere matrem impius ingens geminatque nefas ruit in miserae fata

parentis patiturque moram sceleris nullam missus peragit iussa satelles reserat dominae

pectora ferro Caedis moriens illa ministrum rogat infelix utero dirum condat ut ensem lsquohic

est hic est fodiendusrsquo ait lsquoferro monstrum qui tale tulitrsquo ([Sen] Oct 291-372) Traduccedilatildeo de

Gozo (2016 p 26-29)

151

O matriciacutedio eacute cantado pelo coro em pormenores o filho lanccedila a matildee no

mar Tirreno em um navio mortal a morte a suga e ela quase se afoga no oceano

profundo ela magoa-se com a ldquorecompensardquo do filho pois deu a ele um Impeacuterio e

o nome de Ceacutesar e salva-se do naufraacutegio mas eacute assassinada friamente por um

ldquocapangardquo enviado a mando de Nero A nosso ver uma boa maneira de ler essa

descriccedilatildeo eacute a partir das interpretaccedilotildees poliacuteticas propostas por Coradini e

Lefebvre565

No iniacutecio do trecho o coro deixa claro que os soberanos

antepassados detinham a virtude uma vez que neles havia a verdadeira linhagem e

o sangue de Marte Como ilustraccedilatildeo cita Luacutecio Juacutenio Bruto liacuteder que expulsou o

monarca Tarquiacutenio o soberbo de Roma em 509 aC e ajudou a fundar a

Repuacuteblica Ou seja o coro defende que os tempos preteacuteritos eram bons porque

havia uma boa aristocracia indiviacuteduos que combatiam injusticcedilas e evitavam que

tiranias se afirmassem Em contrapartida os tempos presentes satildeo apontados

como ruins porque possuem Nero agrave frente do Impeacuterio soberano que cometeu o

ldquocrime odiosordquo de assassinar a matildee e natildeo foi punido566

Ele eacute o princeps que

ofende a uirtus dos antepassados colocando Roma sob uma eacutepoca de medo Para

as autoras entatildeo Pseudo-Secircneca estaacute dizendo que o pior momento da histoacuteria do

Impeacuterio foi aquele sob a administraccedilatildeo de Nero porquanto ele natildeo conhecia

limites para concretizar seus desejos extinguindo tudo quanto fosse obstaacuteculo

inclusive a matildee Tal reflexatildeo associada a outros elementos da trageacutedia como o

diaacutelogo anterior com Secircneca sugere uma visatildeo pessimista da histoacuteria por parte do

autor567

O mito tradicional da degenerescecircncia do mundo junta-se na Octavia a

um lugar-comum caro aos romanos aquele que elogia os antepassados e critica os

contemporacircneos Eacute portanto dentro desse contexto que o autor constroacutei a

representaccedilatildeo do Nero matricida sujeito que subjugou Roma a um scelus

nefarium (seacuteculo nefasto)

Apoacutes a morte de Agripina temos os episoacutedios do divoacutercio do exiacutelio e do

assassinato de Otaacutevia ocorridos em 62 Ao planejar o casamento com Popeia

Nero ordena ao centuriatildeo que coloque a imperatriz em um barco leve-a para a

Ilha da Pandataria e a elimine568

Quando ouve a notiacutecia Otaacutevia exclama

565

CORADINI 1997 p 83-84 LEFEBVRE 2017 p 34 566

Para contrapor o fato de Nero natildeo ter sido punido Pseudo-Secircneca cita histoacuterias romanas antigas

em que atos nefandos eram rigorosamente punidos ([Sen] Oct 294-299) 567

MOURA 1998 p 188 568

[Sen] Oct 874-876

152

[Otaacutevia] ldquoPara onde me levais Que lugar de exiacutelio o tirano

ou a rainha [Popeia] me ordenam Assim condoiacuteda ela me concede a vida jaacute vencida por meus numerosos males mas se com a minha morte pretende completar meus infortuacutenios por que tambeacutem me impede cruel de morrer em minha paacutetria

[] Vejo o barco do meu irmatildeo Este eacute o barco que um dia carregou sua matildee e agora carregaraacute a irmatilde expulsa do leito ai de mim [] Eis que o perverso tirano me envia tambeacutem ao mundo das tristes sombras e dos manesrdquo569

Otaacutevia eacute representada por Pseudo-Secircneca como uma viacutetima inocente do

soberano uma mulher negligenciada pelo marido trocada por uma ldquorainhardquo e

ainda enviada para a proacutepria morte Tudo isso em consequecircncia das accedilotildees

passionais de um ldquoperverso tiranordquo570

Aqui eacute essencial assinalar a escrita

tendenciosa do autor pois ele natildeo tece nenhum comentaacuterio acerca dos possiacuteveis

interesses poliacuteticos envolvidos na eliminaccedilatildeo da imperatriz Como relembra

Segurado e Campos Otaacutevia era filha legiacutetima de Claacuteudio e uacuteltima descendente

consanguiacutenea da dinastia Juacutelio-Claacuteudia Apoacutes os assassinatos de Britacircnico

Agripina Plauto e Sula ela era a uacuteltima oposiccedilatildeo dentro da famiacutelia imperial isto

eacute o uacuteltimo obstaacuteculo para o princeps conquistar o poder por completo571

Sua

execuccedilatildeo entatildeo poderia ser muito mais poliacutetica do que passional Na percepccedilatildeo

de Garson e Pita o fato de Otaacutevia ainda estar viva era uma lembranccedila constante

para Nero de que ele natildeo detinha um nascimento tatildeo nobre quando o dela e o de

Britacircnico Nesse sentido o assassinato estaria atrelado agrave consciecircncia do princeps

de que sua ascensatildeo ao poder era questionaacutevel572

Segundo Griffin Nero deve ter

planejado o homiciacutedio visando a fortalecer o seu poder e a exterminar de vez

qualquer possiacutevel rival da linhagem Juacutelio-Claacuteudia ndash o que ele queria era

569

[Octauia] Quo me trahitis quodue tyrannus aut exilium regina iubet sic mihi uitam fracta

remittit tot iam nostris euicta malis sin caede mea cumulare parat luctus nostros inuidet

etiam cur in patria mihi saeua mori [] fratris cerno miseranda ratem hac est cuius uecta

carina quondam genetrix nunc et thalamis expulsa soror miseranda uehar [] Me quoque

tristes mittit ad umbras ferus et manes ecce tyrannus ([Sen] Oct 899-959) Traduccedilatildeo de Gozo

(2016 p 54-56) 570

BAUMAN 1994 p 207-208 571

SEGURADO E CAMPOS 1972 p 651-652 572

GARSON 1975 p 755 PITA 2006 p 64

153

consolidar sua posiccedilatildeo573

E para tanto natildeo poderia apenas se divorciar de

Otaacutevia pois uma princesa divorciada de nascimento real e viva era uma tentaccedilatildeo

grande demais para qualquer um que pretendesse remover Nero Essas questotildees

poreacutem natildeo satildeo mencionadas pelo poeta o qual prefere atribuir o crime soacute agrave

frivolidade do soberano qualificando-o como Nero uxoricida e Nero cruel574

As queixas de Otaacutevia intercalam-se com os lamentos do coro romano que

cita os pesados fados da domus Juacutelio-Claacuteudia Exiacutelios accediloites grilhotildees funerais

lutos torturas e mortes satildeo alguns dos exemplos dos infortuacutenios citados que

proporcionaram dias terriacuteveis e instaacuteveis para a dinastia fazendo-a perder

membros importantes575

O intrigante eacute que em nenhum momento Pseudo-Secircneca

associa o fim da dinastia a esses eventos traacutegicos preteacuteritos Ao contraacuterio coloca

Nero como o culpado por tal fim Essa culpabilidade aliaacutes jaacute eacute apontada desde o

episoacutedio do assassinato de Britacircnico em que Otaacutevia disse agrave sua escrava que seu

irmatildeo era o uacuteltimo ldquopilar da casa de Augustordquo e sua serva respondeu desejando

que sua domina permanecesse viva ldquopara restituir a casa decadenterdquo do pai com

filhos576

Dessa forma Nero jaacute vinha eliminando os descendentes da famiacutelia

imperial haacute algum tempo chegando ateacute a excluir a possibilidade de ter filhos

pertencentes a essa genealogia Isso nos permite interpretar o homiciacutedio de Otaacutevia

como a concretizaccedilatildeo de um plano usurpador do princeps de fundar sua proacutepria

dinastia Aenobarba independente e com fortes tendecircncias tiracircnicas

Depois do assassinato da imperatriz o princeps finalmente casa-se com

Popeia No dia do enlace o fantasma de Agripina retorna do inferno para

relembrar a trageacutedia da sua morte

[Agripina] ldquoRompi a terra e saiacute do Taacutertaro minha matildeo ensanguentada carrega uma tocha infernal

para o funesto casamento sob essas chamas Popeia se case com meu filho as quais matildeo vingativa e a dor de matildee transformaratildeo em tristes piras fuacutenebres Permanece em meio agraves sombras sempre a lembranccedila de minha morte iacutempia [] como pagamento para meus serviccedilos recebi um navio mortal [] [] Uma Eriacutenia vingativa prepara uma morte digna para o iacutempio tirano []rdquo577

573

GRIFFIN 2001 p 99 574

FERRI 2003 p 4 575

[Sen] Oct 924-957 576

[Sen] Oct 109-242 577

[Agrippina] Tellure rupta Tartaro gressum extuli Stygiam cruenta praeferens dextra facem

thalamis scelestis nubat his flammis meo Poppaea nato iuncta quas uindex manus dolorque

154

Na passagem Pseudo-Secircneca apresenta Agripina amaldiccediloando as novas

bodas de Nero com as matildeos ensanguentadas portando uma tocha infernal Ela

estaacute visivelmente ressentida com a traiccedilatildeo do filho e deseja revidar a sua morte

pois a lembranccedila do seu assassinato a acompanha em meio agraves sombras A maacutegoa eacute

grande porque para ela foi ela quem dera o trono ao filho e ele ingrato natildeo

reconheceu os seus meacuteritos578

Assim profetiza o falecimento do princeps

dizendo que uma Eriacutenia vingativa prepararia uma ldquomorte dignardquo para o ldquoiacutempio

tiranordquo579

Eacute no meio dessa ldquosede de vinganccedilardquo que estaacute o episoacutedio do casamento

do imperador com Popeia sendo o evento tambeacutem amaldiccediloado por Agripina A

finada matrona afirma que Popeia ateacute poderia desposar Nero mas as chamas da

sua ldquotocha infernalrdquo transformariam a uniatildeo em ldquotristes piras fuacutenebresrdquo A tocha

aqui eacute o elemento-chave para a interpretaccedilatildeo do trecho De acordo com Ferri nas

cerimocircnias nupciais gregas e romanas era costume a matildee do noivo carregar

tochas haja vista que as chamas atraiacuteam fertilidade e longevidade para a uniatildeo580

A fuacuteria de Agripina entretanto metamorfoseou as tochas nupciais e seus

pressaacutegios positivos em tochas fuacutenebres as quais eram costumeiramente

utilizadas segundo Carvalho e Omena para iluminar o cortejo fuacutenebre e queimar

o corpo do defunto581

ndash ou seja ela empregou as tochas de forma invertida usou

as chamas de bons pressaacutegios para trazer o mau agouro do assassinato de Nero

As bodas resultariam em oacutebitos eram um ldquofunesto casamentordquo O soberano

morreria e pagaria por todas as suas maldades afinal era um Nero cruel que

matou a matildee assassinou a esposa e estava se casando com a amante582

Para

Kragelund a junccedilatildeo dos elementos do fantasma com a vinganccedila e a do crime com

matris uertet ad tristes rogos manet inter umbras impiae caedis mihi semper memoria manibus nostris grauis adhuc inultis reddita et meritis meis funesta merces puppis et pretium imperi

nox illa qua naufragia defleui mea iam parce dabitur tempus haud longum peto ultrix Erinys

impio dignum parat letum tyranno [] ([Sen] Oct 593-620) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 41-

42) 578

[Sen] Oct 609-613 579

HARRISON 2015 p 120 580

O uso da tocha era feito para evocar a presenccedila dos deuses Eros e Himeneu A primeira deidade

era responsaacutevel grosso modo por acender a chama do amor nos coraccedilotildees dos noivos e sua

apariccedilatildeo trazia fecundidade Eros era frequentemente retratado como um garotinho alado de

cabelos loiros e portando um arco e flecha ou uma tocha acesa A segunda deidade era responsaacutevel

por conduzir o cortejo nupcial e sua vinda trazia durabilidade para o enlace Seus distintivos eram

a tocha uma coroa de flores e por vezes uma flauta (GRIMAL 2005 p 149 p 229) 581

CARVALHO E OMENA 2014 p 234 582

FERRI 2003 p 296

155

a puniccedilatildeo ilustram muito bem como Pseudo-Secircneca sabia se agarrar a questotildees e a

discursos que reforccedilariam a imagem negativa de Nero583

Eacute no contexto de tal casamento que Pseudo-Secircneca retrata o episoacutedio do

incecircndio de Roma sucedido em 64 O autor representa o princeps furioso com a

plebe da Vrbs porquanto ela repudiara publicamente o seu divoacutercio de Otaacutevia e o

seu enlace com Popeia O repuacutedio eacute manifestado atraveacutes da derrubada das estaacutetuas

de Popeia por toda a cidade cujo maacutermore claro eacute coberto com ldquolama ascosa e

pisadardquo584

Ao tomar conhecimento desse feito Nero proclama

[Nero] ldquoMas jaacute eacute pouco punir os crimes com a morte O iacutempio crime da plebe merece puniccedilatildeo mais grave Ela que o furor dos cidadatildeos lanccedila contra mim [] deve [] extinguir minha ira com seu sangue Que em breve o teto da cidade caia pelas minhas chamas

o fogo e a ruiacutena oprimam esse povo perverso e uma torpe miseacuteria e a fome e ainda o luto [] Essa turba corrupta e ingrata nem percebe minha clemecircncia [] Deve ser dominada com sofrimentos e oprimida por pesado jugo [] Fragilizada pelos castigos e com medo aprenderaacute a obedecer conforme o desejo do seu priacutenciperdquo585

Eacute niacutetida no excerto a coacutelera de Nero com a populaccedilatildeo de Roma taxada

por ele de ldquoingratardquo e ldquocorruptardquo Para puni-la ele pensa em condenar todos os

indiviacuteduos agrave morte mas logo percebe que o castigo natildeo seria perverso o

suficiente Assim planeja incendiar a cidade no intuito de oprimir o povo

extinguir a sua ira e instaurar a miseacuteria586

As fontes posteriores nos revelam que o

incecircndio foi grande em escala e feroz em velocidade durando nove dias

Comeccedilou na regiatildeo sul da Vrbs na parte do Circus Maximus adjacente agraves colinas

do Palatino e foi interrompido na regiatildeo norte ao peacute do Esquilino Dos 14

distritos em que a cidade estava dividida quatro permaneceram intactos trecircs

583

KRAGELUND 2016 p 243 p 262 584

[Sen] Oct 794-799 585

[Nero] Admissa sed iam morte puniri parum est grauiora meruit impium plebis scelus en

illa cui me ciuium subicit furor suspecta coniunx et soror semper mihi tandem dolori spiritum

reddat meo iramque nostram sanguine extinguat suo mox tecta flammis concidant urbis meis

ignes ruinae noxium populum premant turpisque egestas saeua cum luctu fames Exultat ingens

saeculi nostri bonis corrupta turba nec capit clementiam ingrata nostram ferre nec pacem

potest sed inquieta rapitur hinc audacia hinc temeritate fertur in praeceps sua malis

domanda est et graui semper iugo premenda ne quid simile temptare audeat contraque sanctos

coniugis uultus meae attollere oculos fracta per poenas metu parere discet principis nutu sui

([Sen] Oct 825-844) Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 50-51) 586

PITA 2006 p 72-73 PRADO TEIXEIRA 2005 p 68

156

ficaram totalmente arrasados e sete subsistiram com edifiacutecios em ruiacutenas e

carbonizados587

Templos casas particulares lojas e corticcedilos tudo sucumbiu agraves

chamas588

Esse incecircndio todavia natildeo foi o primeiro sofrido pela capital

Segundo os estudiosos modernos Roma jaacute enfrentava incecircndios frequentes desde

o saque dos gauleses em 390 aC A grande populaccedilatildeo da Vrbs somada aos seus

preacutedios construiacutedos com material inflamaacutevel tornava essas ocorrecircncias

inevitaacuteveis589

O intrigante eacute que independentemente das causas provaacuteveis

Pseudo-Secircneca automaticamente atribui a culpa do incecircndio a Nero E o pior

associa o fogo ao desejo do soberano de retaliar a plebe pelos tumultos favoraacuteveis

a Otaacutevia pois ele queria casar-se com Popeia Essa postura do autor eacute refletida por

Closs com perspicaacutecia Octauia eacute uma ldquotrageacutedia de vinganccedilardquo na qual Nero

esboccedila a destruiccedilatildeo da cidade O princeps eacute desenhado como um Nero incendiaacuterio

e um Nero cruel incapaz de dominar tanto a populaccedilatildeo romana quanto suas

proacuteprias paixotildees planejando sitiar sua proacutepria Vrbs em represaacutelia pelo levante

civil montado contra ele590

Acerca da passagem eacute importante destacar ainda que

a acusaccedilatildeo de Nero como incendiaacuterio seraacute praticamente uma constante nos seacuteculos

seguintes e nessa trageacutedia as razotildees e as circunstacircncias do incecircndio estatildeo bem

distantes das que iratildeo predominar depois Notemos que natildeo haacute por exemplo

menccedilatildeo aos cristatildeos os quais passaratildeo a ter centralidade nos relatos sobre o

incecircndio especialmente em sociedades que tinham no Cristianismo uma doutrina

relevante Por oacutebvio natildeo eacute o caso da sociedade em que vivia Pseudo-Secircneca

Portanto resta claro que as apropriaccedilotildees dos eventos relativos agrave vida de Nero vatildeo

se alterando conforme mudam as sociedades que os relatam

Para finalizar vejamos o uacuteltimo episoacutedio o da construccedilatildeo da Domus

Aurea iniciada a partir do ano 65 Tal evento eacute mencionado ironicamente por

Agripina no mesmo excerto em que ela amaldiccediloa o novo casamento do filho

587

No ano 7 Augusto dividiu a cidade de Roma em 14 distritos e tomou providecircncias para que

alguns fossem tutelados por magistrados escolhidos por sorteio a cada ano e outros por ldquomestresrdquo

escolhidos entre a plebe de cada distrito (Suet Aug 301) 588

Tac Ann 1538-41 Suet Nero 38 Dio 62162-6 589

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 149 590

CLOSS 2013 p 203-204

157

[Agripina] ldquoAinda que esse soberbo construa um palaacutecio de

maacutermore e o cubra de ouro [] viraacute o dia e o tempo em que ele entregaraacute a alma culpado por seus crimes e a garganta para seus inimigos sozinho destruiacutedo e privado de tudordquo591

A Domus Aurea integrava um complexo de edifiacutecios de diferentes

tamanhos espalhados entre os montes Palatino e Esquilino todos dentro de um

enorme parque com jardins lagos bosques vinhas zonas agriacutecolas e pastorais O

terreno do Palaacutecio dourado propriamente dito incluiacutea um enorme vestiacutebulo um

grande lago retangular cercado por elaborados terraccedilos e colunatas uma fonte

ldquoartificialmente naturalrdquo e uma aacuterea aberta com construccedilotildees menores a exemplo

do Templo da Fortuna No interior da residecircncia havia duas salas de jantar

flanqueadas por um paacutetio octogonal sendo este coroado por uma cuacutepula com um

gigante oacuteculo central para permitir a entrada de luz592

Tamanha suntuosidade

ficava agrave disposiccedilatildeo somente de Nero e dos seus ldquoamigosrdquo convidados para

banquetes leituras de poemas danccedilas entre outros divertimentos Tudo isso na

visatildeo de Agripina eacute apontado como algo inuacutetil pois mesmo ostentando riqueza e

oferecendo agrados para os ldquoamigosrdquo o Nero construtor terminaria seus dias

sozinho destruiacutedo e privado de tudo Ele morreria e ningueacutem viria a seu favor

Ela entatildeo menospreza a Domus Aurea frisando a superficialidade de cobrir um

palaacutecio de ouro A nosso ver essa profecia de Agripina deve ter soado aos

ouvintes da eacutepoca em que a trageacutedia foi escrita como algo muito vivo pois Nero

como veremos suicidou-se em escassa companhia e fora dos recintos da Domus

Aurea em uma instalaccedilatildeo humilde nos arredores de Roma593

Ademais sob

Vespasiano boa parte da Domus Aurea ndash construccedilatildeo monumental erigida para

durar ndash jaacute tinha deixado de existir dando lugar a obras construiacutedas por aqueles

que acusavam Nero de ter edificado monumentos exageradamente Uma dessas

obras inclusive foi o Anfiteatro Flaacutevio conhecido hoje como Coliseu edificado

no local onde estavam uma parte dos jardins e o lago da Domus Aurea Assim

591

[Agrippina] licet extruat marmoribus atque auro tegat superbus aulam limen armatae ducis

seruent cohortes mittat immensas opes exhaustus orbis supplices dextram petant Parthi

cruentam regna diuitias ferant ueniet dies tempusque quo reddat suis animam nocentem

sceleribus iugulum hostibus desertus ac destructus et cunctis egens ([Sen] Oct 624-631)

Traduccedilatildeo de Gozo (2016 p 42-43) 592

COARELLI 2007 p 180-181 593

Suet Nero 491-4

158

Octavia produz um efeito de verossimilhanccedila profeacutetica proacutepria daqueles que

falam desde o reino dos mortos toacutepica eacutepica bem conhecida por figurar na

Odisseia e na Eneida Com esse efeito as previsotildees e tambeacutem as avaliaccedilotildees de

Agripina se apresentaram como verdades aos ouvintes Nero morreraacute

iniquamente sua casa natildeo perduraraacute e ele era um tirano

Em siacutentese no decorrer da leitura da Octauia identificamos 11 das nossas

categorias de anaacutelise 1) Nero infausto conectada ao episoacutedio da adoccedilatildeo de Nero

2) Nero tirano atrelada ao episoacutedio do casamento com Otaacutevia 3 ) Nero infausto

vinculada ao episoacutedio da ascensatildeo de Nero 4) Nero fratricida relacionadas ao

episoacutedio do assassinato de Britacircnico 5) Nero matricida ligada ao assassinato de

Agripina 6 e 7) Nero uxoricida e Nero cruel articuladas ao exiacutelio e ao

assassinato de Otaacutevia 8) Nero cruel concatenada ao casamento com Popeia 9 e

10) Nero incendiaacuterio e Nero cruel associadas ao incecircndio de Roma 11) Nero

construtor relativa agrave construccedilatildeo da Domus Aurea Vimos tambeacutem que a tirania

foi um fenocircmeno recorrente sendo Nero representado como um liacuteder petulante

vingativo e totalmente passional594

O cenaacuterio por traacutes da obra esteve recheado de

atrocidades tivemos adoccedilatildeo e ascensatildeo infausta fratriciacutedio matriciacutedio uxoriciacutedio

e incecircndio accedilotildees que ofereceram um potencial tiracircnico perfeitamente explorado

por Pseudo-Secircneca Natildeo agrave toa ele denominou o princeps de tirano 13 vezes ao

longo da trageacutedia sendo nove delas de modo expliacutecito e quatro de modo

impliacutecito595

A seu ver ndash e aqui citamos Prado e Teixeira ndash Nero usou de suas

prerrogativas como imperador para fazer valer sua vontade a todos e ordenou uma

seacuterie de execuccedilotildees poliacuteticas e o incecircndio da cidade596

Sem duacutevida entatildeo a

literatura prodigiosa neroniana iniciou o seu processo de metamorfose aqui O

soberano tatildeo elogiado na Apocolocyntosis no De Clementia nas Eclogae e na

Pharsalia natildeo existe mais suas qualidades desapareceram e seus defeitos

passaram a ser apontados597

A visatildeo negativa sobre Nero estaacute tomando forma e

suas histoacuterias de crueldade estatildeo surgindo598

O projeto dos Flavianos de

legitimaccedilatildeo poliacutetica comeccedilou perspicazmente A Octauia deu os primeiros passos

594

BILLOT 2003 p 130 595

Denominaccedilotildees expliacutecitas [Sen] Oct 33 87 110 250 303 610 620 899 958) Impliacutecitas

[Sen] Oct 65-69 443 453 470-471 596

PRADO TEIXEIRA 2005 p 68 597

GARSON 1975 p 756 598

WILLIAMS 1994 p 191

159

rumo agrave difamaccedilatildeo de Nero599

ndash natildeo randomicamente portanto Griffin diz a obra

estabeleceu Nero como ldquoo proverbial tirano [] uma mera encarnaccedilatildeo da vontade

para o mal natildeo afetado por conselhos ou influecircnciardquo600

Aleacutem disso se olharmos com atenccedilatildeo para alguns detalhes da trageacutedia

veremos uma estreita conexatildeo entre inuentio e allelopoiesis Por certo para

representar Nero Pseudo-Secircneca leu as narrativas de Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e

Lucano e construiu seus proacuteprios argumentos com base nos dos trecircs organizando-

os segundo seus interesses Tal organizaccedilatildeo a nosso ver foi feita a partir da

inversatildeo dos argumentos positivos dos trecircs autores a qual criou um novo Nero

com base no Nero do passado (um novo Nero anti-Nero) Vejamos como isso se

deu na praacutetica

Em relaccedilatildeo a Secircneca o tragedioacutegrafo utilizou as ideias contidas na

Apocolocyntosis para modificar a associaccedilatildeo entre Claacuteudio e Nero Na saacutetira

menipeia o governo neroniano foi apresentado como a superaccedilatildeo da autocracia

claudiana Agora na Octauia eacute exibido como a decadecircncia da casa de Claacuteudio

Ainda falando do filoacutesofo estoico Pseudo-Secircneca aproveitou as premissas

contidas no De Clementia para alterar a imagem do Nero clemente No tratado o

princeps foi descrito como o modelo virtuoso de governante aquele que superou

Augusto e soube preservar os interesses dos seus suacuteditos Na trageacutedia ele eacute

figurado como algueacutem que natildeo deseja superar Augusto mas igualar-se a ele por

usar a forccedila e natildeo mais a clemecircncia O emprego da forccedila se volta para o

tratamento dos seus suacuteditos ndash inclusive para puni-los indistintamente a exemplo

do episoacutedio do incecircndio

No tocante a Calpuacuternio Siacuteculo este pautou-se nas estrofes das Eclogae

para transfigurar o retrato de Nero como um novo Augusto Na poesia pastoril o

Principado neroniano foi louvado como o retorno do seacuteculo aacuteureo augustano

Aqui seu governo eacute representado como um seacuteculo nefasto

Por uacuteltimo Lucano se embasou nos versos da Pharsalia para mudar o

sentido positivo da ascensatildeo de Nero Na eacutepica a vinda do soberano foi vista

como o resultado de um processo ascendente que comeccedilou nas guerras civis e

terminou com a instauraccedilatildeo de um periacuteodo de paz e prosperidade Nesse

momento eacute figurada como fruto de um longo processo decadente que iniciou

599

LEFEBVRE 2017 p 32 600

GRIFFIN 2001 p 100

160

com os anos virtuosos dos antepassados romanos e finalizou com o

estabelecimento de um periacuteodo do medo

Enfim foi assim que Pseudo-Secircneca montou o seu novovelho Nero

ressignificando elementos do passado enquanto ressignificava elementos do

presente Isso o fez modificar natildeo soacute a forma como via Nero mas tambeacutem como

achava que os outros deveriam tecirc-lo visto ou passarem a vecirc-lo Dessa forma a

obra procura mudar tanto a forma como se deveria entender o passado neroniano

quanto o modo como esse mesmo passado poderia ser visto aludindo a uma

maneira nova de perspectiva e nesse caso positiva com a instauraccedilatildeo da nova

dinastia no poder Por allelopoiesis o passado e o presente se construiacuteram

mutuamente o passado fez sentido pelo presente e vice-versa Essa ligaccedilatildeo natildeo

se fez livremente ou a partir do nada mas se pautou em uma tradiccedilatildeo que

estabeleceu ao mesmo tempo por um lado esses elementos centrais a serem

utilizados por meio da inuentio e por outro as possibilidades de criaccedilatildeo que

deram um patamar comum reconheciacutevel pelo autor e tambeacutem por seus ouvintes

Pliacutenio o Velho Naturalis Historia

A difamaccedilatildeo de Nero torna-se ainda mais acentuada na obra Naturalis

Historia escrita por Pliacutenio o Velho entre 77 e 78601

Caio Pliacutenio Segundo nasceu

em Novo Como na proviacutencia Cisalpina no norte da Peniacutensula Itaacutelica por volta

do ano 23 no decurso do Principado de Tibeacuterio Membro de uma abastada famiacutelia

equestre os Plinii viveu o iniacutecio da infacircncia na sua regiatildeo natal migrando para

Roma quando tinha sete anos onde realizou estudos retoacutericos com o grammaticus

Apiatildeo entre 31 a 34 e assumiu a toga virilis602 na idade usual em 39 Ao atingir

a juventude dedicou-se agrave carreira militar tornando-se de 47 a 57 praefectus

alae603 nas proviacutencias das Germacircnias superior e inferior posiccedilatildeo que exerceu

juntamente a Domiacutecio Corbulatildeo Pompocircnio Segundo e o futuro imperador Tito

601

As fontes antigas que tratam da vida de Pliacutenio o Velho satildeo trecircs Cartas do seu sobrinho Pliacutenio

o Jovem uma breve nota biograacutefica geralmente atribuiacuteda a Suetocircnio e passagens retiradas da sua

Naturalis Historia Usaremos principalmente as Cartas 602

Segundo Harrill (2002 p 255) assumir a toga virilis significava passar por uma seacuterie de rituais

que marcavam a maioridade (ou a puberdade) de um menino na sociedade romana O rito era

frequentemente celebrado entre os 14 e os 16 anos e tinha uma procissatildeo puacuteblica ateacute o Foacuterum O

menino deixava de lado seu amuleto apotropaico (bulla) e sua toga praetexta da infacircncia para

vestir a ldquotoga da masculinidaderdquo (toga virilis) 603

Comandante de alguma legiatildeo eou destacamento de legiatildeo militar (OCD 2012 p 1202)

161

(filho de Vespasiano) Enquanto esteve laacute escreveu De Iaculatione Equestri

(Sobre o Uso do Dardo como Arma da Cavalaria) Bella Germaniae (Histoacuteria da

Guerra de Roma contra os Germacircnicos) e De Vita Pomponi Secundi (Sobre a

Vida de Pompocircnio Segundo)604

Em 59 retornou a Roma com a intenccedilatildeo de

exercer a advocacia mas por motivos desconhecidos pelos estudiosos natildeo o fez e

permaneceu afastado da vida puacuteblica Esse afastamento na visatildeo de Syme pode

ser explicado pelo ciuacuteme de Nero em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos com reconhecimento

puacuteblico eou eminecircncia de nascimento O ciuacuteme estaacute na origem de muita

perseguiccedilatildeo atribuiacuteda a Nero embora isso pareccedila contraditoacuterio haja vista que ele

estimulava as artes605

Essa eacute a razatildeo apontada para que Pliacutenio tenha se afastado

da vida puacuteblica mantendo-se discreto e devotando seus talentos ao trabalho

seguro de redigir livros sobre gramaacutetica a exemplo de Studiosus (Tratado sobre a

Educaccedilatildeo do Orador) e Dubius Sermo (Tratado sobre a Liacutengua Latina) Apoacutes a

morte de Nero reinseriu-se na esfera puacuteblica posicionando-se favoravelmente agrave

nova dinastia Como recompensa foi nomeado entre 70 e 77 procurador de

quatro proviacutencias (Gaacutelia Narbonense Aacutefrica Hispacircnia Tarraconense e Gaacutelia

Beacutelgica) e prefeito da frota de Miseno na baiacutea de Naacutepoles606

Nessa eacutepoca

compocircs A Fine Aufidi Bassi (uma histoacuteria que dava continuidade agravequela escrita

por Aufiacutedio Basso possivelmente da morte de Claacuteudio em diante) e Naturalis

Historia Tempos depois voltou agrave capital do Impeacuterio e atuou como membro do

conselho de Vespasiano e de Tito Pliacutenio morreu no dia 24 de agosto de 79

durante a erupccedilatildeo do Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano Seu sobrinho

Pliacutenio o Jovem conta-nos que ele faleceu ao se aproximar para ver a erupccedilatildeo

sendo asfixiado por gases toacutexicos607

De todas as obras produzidas por ele somente a Naturalis Historia e o

Dubius Sermo sobreviveram ao processo de transmissatildeo As demais perderam-se

Organizada em 37 livros constitui um estudo metoacutedico da natureza o qual

envolve o cosmos (livro II) a geografia mundial (livros III-VI) criaturas vivas

(livros VII-XI) plantas (livro XII) medicamentos (livros XX-XXXII) metais e

604

Plin Ep 35 616 620 CHILVER 1941 p 106-107 MAXWELL-STUART 1995 p 1 605

SYME 1969 p 210 606

Plin Ep 35 616-20 Para dados sobre a carreira militar de Pliacutenio cf SYME 1969 p 201-

236 607

Plin Ep 35 616 620

162

minerais (livros XXXIII-XXXVII)608

Todos os livros satildeo precedidos por um

prefaacutecio elogioso dirigido a Tito princeps ldquodigniacutessimordquo609

No decorrer da

coletacircnea Pliacutenio expotildee os fenocircmenos do universo e mostra aos leitores como

deveriam relacionar-se com o mundo natural revelando o senso de respeito

apropriado Ao fazer isso tambeacutem conduz os leitores pelas tradiccedilotildees pelas

fantasias e pelos preconceitos por meio dos quais os romanos observavam o

mundo isto eacute os sistemas culturais com os quais entendiam a realidade610

Por se tratar de uma composiccedilatildeo que aborda assuntos tatildeo diversos a

Naturalis Historia eacute classificada na contemporaneidade como uma enciclopeacutedia

Todavia Murphy afirma que essa classificaccedilatildeo precisa ser vista com cuidado

caso contraacuterio associaremos os pressupostos das enciclopeacutedias modernas a um

artefato da cultura claacutessica sem as devidas ressalvas A definiccedilatildeo atual de

enciclopeacutedia segundo Arnar eacute livro que encapsula um corpo total ou universal

de conhecimento organizado de forma a preservaacute-lo e tornaacute-lo acessiacutevel a um

grande puacuteblico611

Com base nessa definiccedilatildeo Murphy afirma que a obra de Pliacutenio

simultaneamente eacute e natildeo eacute uma enciclopeacutedia Ela eacute porque exibe algumas

caracteriacutesticas do gecircnero tais como a preservaccedilatildeo do conhecimento amplo e a

imposiccedilatildeo de um sistema ao conhecimento dividido em campos de investigaccedilatildeo

E natildeo eacute porque o conceito de enciclopeacutedia natildeo existia na Antiguidade sendo

cunhado por Franccedilois Rabelais soacute em 1532 a partir de uma assimilaccedilatildeo errocircnea

do conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία612

Assim Pliacutenio natildeo concebeu a Naturalis

Historia como uma enciclopeacutedia no maacuteximo redigiu-a como um tratado um

material de consulta613

Mesmo assim os estudiosos assim a denominam devido agrave

tradiccedilatildeo literaacuteria construiacuteda em torno dela ou seja agrave forma como foi lida e

consultada ao longo do tempo Ignorar esse uso para Murphy significa descartar

608

BOSTOCK RILEY 1855 p xvi-xvii Para uma ilustraccedilatildeo conveniente de como a Naturalis

Historia eacute organizada cf ISAGER 2006 p 48 609

Plin Nat Pr 1 610

BEAGON 1992 p 26-54 611

ARNAR 1990 p xi 612

O conceito grego ἐγκύκλιος παιδεία diz respeito a uma junccedilatildeo de ἐγκύκλιος (enkykliosldquomover-

se em ciacuterculosrdquo) com παιδεία (paideialdquoeducaccedilatildeordquo) cujo sentido era ldquotreinamento geralrdquo ou

ldquoeducaccedilatildeo diaacuteria geral recebida por todosrdquo Logo a noccedilatildeo de enciclopeacutedia ndash como a entendemos

hoje ndash natildeo existia para os antigos gregos (OCD 2002 p 95-209) Foi Rabelais quem fantasiou e

inventou a Enciclopeacutedia do grego ἐγκύκλιος παιδεία Ele estava preso entre as palavras e as coisas

ao redigir o seu livro Pantagruel (JACOB 1996 p 44) 613

Para Conte (1999 p 500-501) eacute bem provaacutevel que Pliacutenio tenha elaborado a Naturalis Historia

como um tratado haja vista que essa era uma tendecircncia cultural comum entre os romanos Como

exemplos de tratados temos os trabalhos de Varratildeo Vitruacutevio Columela e Quintiliano

163

os processos pelos quais passamos a lecirc-la614

Abandonar a ideia de que ela eacute uma

enciclopeacutedia soacute por ser anacrocircnico ldquo[] levaria ao subsolo as premissas e

suposiccedilotildees que colorem nossas leituras atuaisrdquo615

Portanto manteremos a

classificaccedilatildeo adotada nos dias de hoje

O importante eacute que a Naturalis Historia eacute uma obra fascinante e peculiar

tanto pelas informaccedilotildees que destaca quanto pela maneira como categoriza os

fenocircmenos em hierarquias de conhecimento Eacute tambeacutem uma obra ambiciosa

englobando informaccedilotildees sobre todos os aspectos do mundo natural em 37

volumes O proacuteprio Pliacutenio no prefaacutecio descreve seu enorme projeto em termos

quantitativos dizendo que leu cerca de dois mil trabalhos para escrever seu

texto616

um amontoado de dados que revela natildeo soacute a diligecircncia do autor mas

tambeacutem as suas opiniotildees Por exemplo Pliacutenio acredita que os romanos da sua

eacutepoca perderam o respeito pela natureza ignorando as suas daacutedivas e abusando

delas Eles eram ingratos e estavam mais preocupados em usufruir de uma vida

luxuosa do que em preservar as maravilhas disponiacuteveis para si Nesse sentido

mostra-se indignado com as despesas dos romanos em peacuterolas roupas de seda

perfumes e outras extravagacircncias617

O luxo para Pliacutenio desviava os indiviacuteduos

de uma compreensatildeo plena do mundo natural e das possibilidades positivas que

ele poderia apresentar618

Tal visatildeo reverbera na forma como o autor representou

Nero pois este eacute pintado como o monstro da extravagacircncia e da loucura algueacutem

que atacava a natureza sem hesitar construindo um canal que destruiacutea uma vinha

inteira ou queimando um ano de produccedilatildeo de incenso para enterrar a esposa619

As

referecircncias hostis satildeo tantas que eacute ateacute difiacutecil selecionaacute-las e isso chama muita

atenccedilatildeo porque como dissemos o objeto principal da obra natildeo eacute Nero

Possivelmente Pliacutenio usou na Naturalis Historia o material que serviu para a

composiccedilatildeo da obra A Fine Aufidi Bassi perdida no processo de transmissatildeo

Outra explicaccedilatildeo para tal ecircnfase pode ser atribuiacuteda agrave dedicaccedilatildeo elogiosa desses

livros a Tito demandando a desqualificaccedilatildeo do antecessor para colocar em mais

614

MURPHY 2004 p 11-16 615

DOODY 2010 p 6 Para uma discussatildeo da leitura da Naturalis Historia como enciclopeacutedia

cf DOODY 2010 p 1-10 616

Plin Nat Pr 17 617

Plin Nat 956 1126-27 134 618

O problema estava no uso que os humanos faziam da sua criatividade O luxo inspirava

inventividade mas essa invenccedilatildeo podia rivalizar com a criatividade da natureza e pervertecirc-la

(CITRONIMARCHETTI 1991 p 200-201) 619

Plin Nat 148 1241

164

relevo os meacuteritos do governante atual Essas poreacutem satildeo apenas hipoacuteteses de

leitura Manteremos o foco nas referecircncias a Nero e comentaremos apenas as que

condizem com nossa seleccedilatildeo de episoacutedios quais sejam as que abordam o

nascimento de Nero o matriciacutedio o incecircndio de Roma a visita de Tiridates agrave

Vrbs e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea

A imagem pliniana de Nero estaacute inteiramente articulada agrave ideia de

princeps antinatural aquele que desrespeitava a ordem orgacircnica das coisas um

comportamento que segundo o enciclopedista jaacute integrava a iacutendole imperial

desde o nascimento sucedido em 37

Natildeo eacute natural que uma crianccedila nasccedila com os peacutes primeiramente

e por esse motivo as pessoas chamam esses casos de ldquoAgripasrdquo sendo o nascimento ldquodifiacutecilrdquo [] Tambeacutem Nero que foi imperador haacute pouco tempo e que em todo o seu Principado foi inimigo do gecircnero humano nasceu com os peacutes primeiramente registra sua matildee Agripina Eacute devido agrave ordem da natureza que o homem entre no mundo primeiramente com a cabeccedila e seja levado para o tuacutemulo de maneira contraacuteria620

Na passagem eacute enfatizada a chegada anocircmala do soberano ao mundo Os

partos considerados normais na Roma Antiga ndash e ainda hoje ndash eram entendidos

como aqueles nos quais o bebecirc nascia primeiramente pela cabeccedila e depois pelos

peacutes sendo esta a melhor forma de dar agrave luz uma crianccedila pois natildeo acarretava

consequecircncias nem para a sauacutede da matildee nem para a do bebecirc Os partos destoantes

dessa normalidade esperada ndash os denominados partos peacutelvicos ndash traziam consigo

grandes riscos de complicaccedilotildees causando sofrimentos para ambos621

Esses riscos

satildeo marcados por Pliacutenio a partir do uso do vocaacutebulo ldquoAgripasrdquo derivado da frase

aegre partus (ldquonascido com dificuldaderdquo) encontrada tambeacutem em Aulo Geacutelio622

Os riscos e os possiacuteveis sofrimentos que causariam o parto a Nero e a Agripina

entretanto natildeo satildeo referidos por Pliacutenio Ele natildeo cita por exemplo a dor sentida

por Agripina ao passar pelo processo de dar agrave luz ou as complicaccedilotildees trazidas pelo

620

In pedes procidere nascentem contra naturam est quo argumento eos appellavere Agrippas ut

aegri partus [] Neronem quoque paulo ante principem et toto principatu suo hostem generis

humani pedibus genitum scribit parens eius Agrippina ritus naturae hominem capite gigni mos

est pedibus efferri (Plin Nat 78) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 535-537) 621

Alguns detalhes do processo do trabalho de parto na Roma do seacuteculo I satildeo fornecidos por

Celso nos livros II e VII da sua obra De Medicina 622

Gel 16161

165

parto para Nero Isso eacute muito curioso porque conforme alega Todman ldquoo parto

na sociedade romana era associado a um alto risco para o feto e para a matildee com

taxas substanciais de mortalidade []rdquo623

Pliacutenio era um enciclopedista mas no

excerto ele soacute divulga o sofrimento da humanidade com o nascimento antinatural

do soberano destacando que nada de positivo aconteceria ao mundo apoacutes aquele

evento Em outras palavras o autor traz uma espeacutecie de pressaacutegio negativo o

princeps nasceu como um problema e para ser um problema E tal pressaacutegio

aparentemente foi cumprido porquanto eacute salientado que durante todo o seu

Principado o imperador foi a maldiccedilatildeo do mundo624

Ele fora lanccedilado ao planeta

como um veneno era um Nero infausto desde o princiacutepio

Essa ideia nociva de Nero estaacute presente tambeacutem na maneira como Pliacutenio

narra o episoacutedio do assassinato de Agripina O naturalista declara

Entre os vegetais [] que satildeo consumidos com risco devo com boa razatildeo incluir os cogumelos uma comida muito saborosa eacute verdade mas merecidamente desprezada pelo notoacuterio crime cometido por Agripina que por intermeacutedio deles envenenou seu marido o imperador Claacuteudio e ao mesmo tempo infligiu

outra maldiccedilatildeo venenosa sobre o mundo inteiro e sobre ela mesma em particular o seu filho Nero625

Podemos observar que o autor concede uma atenccedilatildeo terciaacuteria ao

matriciacutedio A atenccedilatildeo primaacuteria repousa no uso dos elementos naturais ndash no caso

aqui dos cogumelos cuja finalidade eacute dupla de alimentaccedilatildeo e de envenenamento

A secundaacuteria baseia-se na criacutetica ao uso dado por Agripina aos cogumelos

(assassinar Claacuteudio) feito que transformou uma ldquocomida muito saborosardquo em

algo ldquodesprezadordquo E a terciaacuteria pauta-se na censura a Agripina acusada de trazer

uma ldquomaldiccedilatildeo venenosardquo sobre o mundo seu filho Nero quem mais tarde lhe

faria mal Eacute somente aiacute que o matriciacutedio emerge Mas vejam ele surge como um

tipo de castigo a Agripina mulher capaz de parir um filho infausto e envenenar o

marido para dar o poder ao filho que a matou Para Barrett Pliacutenio faz uma

623

TODMAN 2007 p 82 Gallivan e Wilkins (1999 p 239-255) desenvolvem uma boa

discussatildeo sobre as altas taxas de mortalidade infantil nas famiacutelias italianas dos seacuteculos I aC e I 624

Plin Nat 2246 625

Inter ea quae temere manduntur et boletos merito posuerim opimi quidem hos cibi sed

inmenso exemplo in crimen adductos veneno Tiberio Claudio principi per hanc occasionem ab

coniuge Agrippina data quo facto illa terris venenum alterum sibique ante omnes Neronem suum

dedit (Plin Nat 2246) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Rackham (1938-1962 p 359)

166

representaccedilatildeo hostil da matrona sugerindo que ela merecia morrer626

uma visatildeo

bem diferente das duas veiculadas na Octauia isto eacute a de Agripina como viacutetima

inocente e a de Nero vicioso O enciclopedista constroacutei um Nero matricida que eacute

consequecircncia dos maus atos da matildee um Nero infausto que cumpre o mau

pressaacutegio jaacute anunciado em seu parto Aliaacutes essa visatildeo dialoga bastante com a

perspectiva de um dos grupos apresentados no debate historiograacutefico do primeiro

capiacutetulo qual seja a de que Nero trazia consigo um pesado fardo geneacutetico o qual

era responsaacutevel por moldar negativamente sua personalidade e justificar o seu

modo de agir Nessa loacutegica seria a proacutepria Agripina a culpada pelo seu

assassinato pois transmitira ao filho seus piores defeitos sobretudo a rivalidade e

a ambiccedilatildeo627

Cabe frisar ainda que o uso da imagem do princeps natildeo eacute algo

fixo Sua reutilizaccedilatildeo pressupotildee permanecircncias que nos permitam identificar o

caraacuteter geral das accedilotildees e dos personagens mas cada autor e cada contexto vatildeo se

apropriando dessa imagem de forma nova Aqui Nero permanece como um

monstro poreacutem a culpa do matriciacutedio natildeo recai fundamentalmente sobre ele e

sim sobre quem o gerou Por esse mecanismo a viacutetima eacute a culpada Agripina

merecia seu destino mas a humanidade natildeo merecia Nero Pliacutenio indica que caso

natildeo queiramos sofrer com os Neros devemos evitar as Agripinas O Principado

para ser bom ou ruim dependia da casa que o originava

Os episoacutedios subsequentes continuam abordando essa nocividade do

princeps sobre o mundo e a humanidade Eacute o caso por exemplo do incecircndio da

Vrbs Leiamos a descriccedilatildeo

626

BARRETT 1996 p 237 Segundo Jones (1984 p 581-583) e Barrett (1996 p 237) a

concepccedilatildeo negativa de Pliacutenio sobre Agripina pode estar relacionada com um evento ocorrido em

39 Nesse ano Agripina juntamente agrave sua irmatilde Livila e a seu amante Marco Emiacutelio Leacutepido

(tambeacutem viuacutevo de Drusila) articulou uma trama para assassinar o imperador Caliacutegula e colocar Leacutepido no poder A trama foi logo descoberta pelo imperador que natildeo tardou em castigar os

envolvidos Agripina e Livila foram condenadas ao exiacutelio na ilha de Pandataacuteria e Leacutepido teve sua

garganta cortada por um pretoriano Mas isso natildeo foi tudo Antes de enviar Agripina para o exiacutelio

Caliacutegula a fez passar por uma humilhaccedilatildeo puacuteblica carregar as cinzas de Leacutepido por toda cidade de

Roma Foi aiacute que Vespasiano agrave eacutepoca pretor envolveu-se na situaccedilatildeo Quando Agripina entrou no

Senado com as cinzas Vespasiano moveu uma moccedilatildeo pedindo que elas fossem espalhadas ao

vento e permanecessem sem sepultura Desse ponto em diante comeccedilou uma enorme hostilidade

entre os dois Agripina nunca esqueceu esse insulto e durante o futuro governo de Nero fez de

tudo para dificultar a carreira poliacutetica de Vespasiano Portanto tendo em vista o apoio de Pliacutenio agrave

nova dinastia ldquo[] eacute improvaacutevel que sua representaccedilatildeo de Agripina [] fosse simpaacutetica

Certamente em sua [] Histoacuteria Natural [] as informaccedilotildees incidentais sobre Agripina satildeo quase

uniformemente hostisrdquo (BARRETT 1996 p 237) 627

BEATO 2000b p 13 Inclusive em Nat 3558 Pliacutenio afirma que durante o Principado de

Claacuteudio tal ambiccedilatildeo a fazia comandar o Senado

167

Essas aacutervores eram do tipo urtiga e pela exuberacircncia dos seus

galhos proporcionavam uma sombra deliciosa Caecina Largos um dos homens notaacuteveis de Roma [] costumava mostraacute-las para mim na minha juventude e como eu jaacute mencionei acerca da notaacutevel longevidade das aacutervores acrescentaria aqui que elas existiram ateacute o periacuteodo em que o imperador Nero ateou fogo agrave cidade cento e oitenta anos depois da eacutepoca de Crasso estando

elas ainda verdes e com todo o frescor se aquele priacutencipe tambeacutem natildeo tivesse achado adequado apressar a morte das proacuteprias aacutervores628

Pliacutenio diz que as aacutervores duraram ateacute o governo de Nero periacuteodo em que

ele incendiou a cidade Elas teriam permanecido verdes e jovens se o princeps

tambeacutem natildeo tivesse acelerado a morte delas Para Barrett esse ldquotambeacutemrdquo (etiam)

pode significar que o soberano aleacutem de matar aacutervores no incecircndio matou

pessoas Isso parece bastante condenatoacuterio todavia natildeo temos como afirmar com

certeza629

Ateacute porque Pliacutenio natildeo menciona o incecircndio nem os motivos que

levaram Nero a atear fogo na capital do Impeacuterio Ele natildeo comenta nada apenas

refere-se ao ocorrido e agraves consequecircncias acarretadas agrave natureza ndash no caso a

queima de aacutervores antigas e frondosas Essa ausecircncia de razotildees percorre os 37

livros da Naturalis Historia fato que nos intriga bastante pois a atribuiccedilatildeo de um

motivo para o incecircndio eacute um dos eixos fundamentais da tradiccedilatildeo negativa

neroniana estando em quase todas as fontes literaacuterias Afinal sabemos que

quanto mais friacutevola for a motivaccedilatildeo do crime mais monstruoso o princeps se

torna Inclusive vimos haacute pouco na Octauia a indicaccedilatildeo dessa frivolidade para

justificar o incecircndio Pliacutenio levou tatildeo a seacuterio as regras de composiccedilatildeo da sua

Enciclopeacutedia que aparentemente soacute citou o incecircndio devido agrave destruiccedilatildeo da

natureza Como afirma Champlin ldquoPliacutenio que estava em Roma durante o

incecircndio e detestava Nero tinha certeza de que ele era culpadordquo de que ele era

um Nero incendiaacuterio mas sua culpa estava muito mais ligada agrave queima das

aacutervores do que a outros fatores630

Percebam que aqui temos uma ampliaccedilatildeo do

repertoacuterio do uso da imagem de Nero Agrave eacutepoca que Pliacutenio escreveu a Naturalis

628

haec fuere lotoe patula ramorum opacitate lascivae caecina largo [] iuventa nostra eas in

domo sua ostentante duraveruntque ndash quoniam et de longissimo aevo arborum diximus ndash ad

neronis principis incendia cultu virides iuvenesque ni princeps ille adcelerasset etiam arborum

mortem ac ne quis vilem de cetero Crassi domum nihilque in ea iurganti domitio fuisse licendum

praeter arbores iudicet (Plin Nat 171) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 5) 629

BARRETT 2020 p 123 630

CHAMPLIN 2005 p 182

168

Historia jaacute era muito difundida a acusaccedilatildeo contra Nero quanto ao incecircndio

Coube ao enciclopedista entatildeo natildeo soacute repetir o que lhe trazia a tradiccedilatildeo ainda

recente mas ele tambeacutem adicionou ao retrato do Nero incendiaacuterio um novo

elemento ndash este destruiacutera tanto a cidade que nem as aacutervores escaparam

De qualquer forma depois do incecircndio a cidade de Roma precisou ser

reconstruiacuteda Wiedemann sustenta que o empreendimento foi muito custoso

fazendo com que o soberano procurasse fontes de recursos variadas para financiar

as obras631

Uma das encontradas por exemplo foi o confisco de riquezas

religiosas e privadas como tesouros de templos ou bens das elites provinciais

Sobre os uacuteltimos Pliacutenio alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras

detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a

mando de Nero para o confisco dos seus recursos632

As riquezas usurpadas daiacute ndash

e de outras regiotildees ndash foram empregadas na melhoria da infraestrutura da Vrbs a

saber no alargamento das ruas na edificaccedilatildeo de poacuterticos na implantaccedilatildeo de

paacutetios internos dentro das insulae entre outras accedilotildees De acordo com Rudich elas

tambeacutem foram utilizadas na construccedilatildeo da Domus Aurea a partir de 65 a opulenta

residecircncia imperial633

Sua edificaccedilatildeo financiada por recursos adquiridos de modo

violento gerou fortes criacuteticas a Nero suscitando rumores de que ele teria

propositalmente instigado o fogo no intuito de erigir o seu palaacutecio dourado e de

dar agrave cidade reconstruiacuteda o nome de Neroacutepolis Tais rumores aliaacutes foram

propagados pelas fontes literaacuterias posteriores as quais defendem uma relaccedilatildeo de

intencionalidade entre o incecircndio os confiscos e a Domus Aurea634

O autor natildeo se preocupa com o incecircndio tampouco com os possiacuteveis

interesses do soberano por detraacutes dele Vejamos

Nero cobriu o Teatro de Pompeu com ouro para usaacute-lo por um

uacutenico dia o dia em que se propocircs a mostraacute-lo ao rei Tiridates da Armecircnia E no entanto quatildeo pequeno era este teatro em comparaccedilatildeo com aquele seu Palaacutecio Dourado com o qual ele rodeava a nossa cidade635

631

WIEDEMANN 1996 p 251 632

Plin Nat 187 633

RUDICH 2005 p 80 634

Suet Nero 38 635

huius deinde successor Nero Pompei theatrum operuit auro in unum diem quo Tiridati

Armeniae regi ostenderet et quota pars ea fuit aureae domus ambientis urbem (Plin Nat 3316)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham

(1938-1962 p 45)

169

[] Duas vezes vimos toda a cidade rodeada pelos palaacutecios dos imperadores Caliacutegula e Nero o do uacuteltimo para que nada falhe em sua magnificecircncia sendo revestido de ouro636

O que verificamos aiacute eacute um vitupeacuterio ao tamanho do palaacutecio e agrave

personalidade excessiva do Nero construtor aspectos diretamente relacionados

aos objetivos da Naturalis Historia de repreender os abusos da natureza

perpetrados pelos romanos Os meios que levaram o princeps a erigir a Domus

Aurea natildeo satildeo significativos para Pliacutenio assim como natildeo o eacute a possibilidade de

ter havido uma relaccedilatildeo de intencionalidade com o incecircndio O cerne estaacute no uso

desmedido de um material mineral o ouro A propoacutesito nem mesmo o episoacutedio

da ida de Tiridates a Roma para realizar sua coroaccedilatildeo eacute minuciado637

O evento

soacute aparece para recriminar Nero acerca da utilizaccedilatildeo exagerada de ouro na

decoraccedilatildeo do Teatro de Pompeu a qual segundo o autor foi aproveitada soacute por

um dia Na percepccedilatildeo de Wallace-Hadrill qualquer tipo de uso desmedido dos

bens naturais eacute considerado por Pliacutenio como antinatural e luxuoso

Os produtos da natureza satildeo absolutos e perfeitos em si

mesmos Reuni-los e misturaacute-los por ostentaccedilatildeo natildeo eacute questatildeo de engenhosidade humana eacute impudentia A ideia do natural estaacute [] intimamente ligada agrave simplicidade baixo custo e acessibilidade O luxo [] eacute caracterizado pelo supeacuterfluo Eacute sempre um excesso de exigecircncias Eacute um desperdiacutecio e eacute destrutivo638

636

Sed omnes eas duae domus vicerunt bis vidimus urbem totam cingi domibus principum Gai et

Neronis huius quidem ne quid deesset aurea (Plin Nat 3624) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 87) 637

Tiridates foi o rei da Armecircnia por um periacuteodo de quase 20 anos entre 53 e 72 Tornou-se rei por aclamaccedilatildeo do seu irmatildeo Vologeso rei do Impeacuterio Parta Esse Impeacuterio foi palco de diversas

guerras contra o Impeacuterio Romano as quais levaram devastaccedilatildeo e opressatildeo agrave regiatildeo Por exemplo

entre os anos de 58 a 63 o Impeacuterio Parta vivenciou um confronto contra as forccedilas romanas pelo

controle das suas proacuteprias terras E por quecirc O Impeacuterio Parta era um reino submisso a Roma desde

a eacutepoca de Augusto mas em 53 conseguiu instalar Tiridates no trono um aristocrata nascido e

criado ali de linhagem arsaacutecida Tal evento coincidiu com a ascensatildeo de Nero ao poder que lutou

vigorosamente contra essa possiacutevel independecircncia dos partas O conflito perdurou por cinco anos e

envolveu um nuacutemero consideraacutevel de legionaacuterios terminando apoacutes um acordo diplomaacutetico

firmado entre Nero e Tiridates o priacutencipe parta seria reconhecido como o novo rei da Armecircnia

mas deveria ser coroado pelo imperador de Roma Ou seja Tiridates deveria ir ateacute a Vrbs colocar

seu diadema diante de Nero e ser coroado pelas matildeos dele A coroaccedilatildeo ocorreu no final do ano 66

e teve como cenaacuterio o Teatro de Pompeu cuja decoraccedilatildeo foi toda trabalhada em ouro

(CHAMPLIN 2005 p 221-224) 638

WALLACE-HADRILL 1990 p 86-88

170

A luxuacuteria traz consigo apenas uma seacuterie de fraquezas juntamente com

ambiccedilatildeo avareza supersticcedilatildeo e medos O luxo do homem eacute portanto uma falha

E nesse caso a falha de Nero estaacute ligada ao seu descontrole e agrave sua falta de

princiacutepios morais para lidar com a natureza Eacute uma criacutetica conforme Lefebvre ao

fato de o soberano se importar demasiadamente com a sua gloacuteria pessoal e com a

grandeza do Impeacuterio distanciando-se dos grandes generais do passado romano

republicano639

Continuando as recriminaccedilotildees Pliacutenio acusa o princeps de ter enclausurado

uma infinidade de obras de arte para enfeitar a Domus Aurea ldquoa Domus Aurea de

Nero foi a prisatildeo das produccedilotildees deste artista [Facircmulo] e por isso satildeo poucas as

que podem ser vistas em qualquer lugarrdquo640

Os mais ceacutelebres de todos os trabalhos [] foram dedicados []

pelo imperador Vespasiano no Templo da Paz e em outros preacutedios puacuteblicos construiacutedos por ele Eles haviam sido anteriormente carregados agrave forccedila por Nero e trazidos a Roma e arranjados por ele nas salas de recepccedilatildeo do seu palaacutecio dourado641

Ao frisar a atitude do novo princeps Pliacutenio contrapotildee a uoluptas de Nero agrave

utilitas de Vespasiano Ele dispotildee os liacutederes lado a lado no intuito de salientar

suas diferenccedilas de caraacuteter sendo um atento agrave virtude da simplicitas e outro atento

ao viacutecio da luxuria642

A Domus Aurea eacute fruto da vontade e do capricho do

priacutencipe da futilidade e dos sonhos neronianos de realizaccedilotildees fantaacutesticas trata-se

de uma construccedilatildeo inuacutetil que revela a superficialidade e a vaidade do

imperador643

Nero eacute um soberbo que soacute se preocupa consigo mesmo a exemplo

de Caliacutegula em contraste com Vespasiano o optimus princeps que sabe

639

LEFEBVRE 2017 p 137 640

carcer eius artis domus aurea fuit et ideo non extant exempla alia magnopere (Plin Nat

3537) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Rackham (1938-1962 p 349) 641

atque ex omnibus quae rettuli clarissima quaeque in urbe iam sunt dicata a vespasiano

principe in templo pacis aliisque eius operibus violentia neronis in urbem convecta et in sellariis

domus aureae disposita (Plin Nat 3419) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Rackham (1938-1962 p 189-191) 642

Viacutecio que vale acrescentar fez o primeiro flaviano encontrar o Impeacuterio com as financcedilas

esgotadas (Plin Nat 25) 643

LEFEBVRE 2017 p 129-131

171

demonstrar liberalitas publica assim como Augusto644

A realizaccedilatildeo de tal

condenaccedilatildeo pelo enciclopedista deve ser entendida como uma tentativa de

legitimar a nova dinastia que pretendia apagar os vestiacutegios do Principado

anterior destruindo suas construccedilotildees ndash em particular as que integravam o

complexo da Domus Aurea Natildeo nos esqueccedilamos de que a Naturalis Historia foi

dedicada a Tito logo eacute uma obra que reflete fortemente os valores flavianos

Como sustenta Baldwin o elogio de Pliacutenio agraves poliacuteticas artiacutesticas dos Flavianos

natildeo eacute meramente uacutetil mas uma expressatildeo genuiacutena da sua crenccedila na nova dinastia

como restauradora dos valores republicanos de Augusto645

Vespasiano eacute frequentemente apresentado em termos calculados

para fazer a audiecircncia romana lembrar de Augusto Ele eacute por exemplo geralmente referido como imperator Augustus grande tiacutetulo negado ao longo da Histoacuteria Natural a outros imperadores de Tibeacuterio em diante [hellip] Vespasiano [hellip] eacute simplesmente ldquoo imperadorrdquo o grande homem646

Dessa forma Pliacutenio se aproveita da tradiccedilatildeo criacutetica que se instaurava sobre

Nero e a recompotildee e a amplia Esse uacuteltimo episoacutedio deixa clara uma criacutetica bem

riacutegida Nero eacute aquele que acaba com os recursos do Impeacuterio para locupletar seus

desejos pessoais ou para embelezar a cidade de maneira efecircmera sem que

houvesse nenhum ganho puacuteblico com isso O que poderia ser uma caracteriacutestica

positiva do princeps como seu desejo de melhorar a Vrbs eacute transformado em

exagero despropositado e inuacutetil Os paracircmetros para a avaliaccedilatildeo aqui satildeo dois o

tempo presente e a atividade ediliacutecia de Vespasiano em contraposiccedilatildeo agrave de Nero

A maior obra de Nero seria a sua casa dourada privada e a maior obra de

Vespasiano e Tito seria um novo anfiteatro conhecido pelo nome da sua dinastia

Flaacutevia A nosso ver o julgamento de Nero por Pliacutenio ganha significacircncia para os

ouvintes atraveacutes da allelopoiesis que daacute novo sentido para o passado neroniano a

partir do presente flaviano e vice-versa Assim o anfiteatro Flaacutevio soacute faz sentido

como uma construccedilatildeo natildeo exagerada e excessiva quando colocada em paralelo

com a memoacuteria a ser destruiacuteda de uma Domus Aurea e de um teatro de Pompeu de

ouro usado em um soacute dia O anfiteatro eacute uma obra puacuteblica para a grandeza de

644

LEFEBVRE 2017 p 127-132 Em toda Naturalis Historia Pliacutenio descreve Caliacutegula como um

imperador vaidoso e extravagante tal como no trecho a seguir (Plin Nat 3322) 645

BALDWIN 1995 p 59 646

BALDWIN 1995 p 59

172

Roma e para o uso continuado por seacuteculos A Domus Aurea eacute uma construccedilatildeo

privada para a ganacircncia do imperador que logo desapareceu da paisagem Eacute desse

modo que o Nero construtor deixa de ser um soberano positivo para ser um

homem reprovaacutevel em seu despropoacutesito

Apoacutes realizarmos a anaacutelise da Naturalis Historia verificamos quatro das

nossas categorias de anaacutelise 1) Nero infausto relativa ao episoacutedio do nascimento

de Nero 2) Nero matricida referente ao episoacutedio do assassinato de Agripina 3)

Nero incendiaacuterio vinculada ao incecircndio de Roma e 4) Nero construtor

conectada agrave visita de Tiridates agrave Vrbs e agrave edificaccedilatildeo da Domus Aurea Por meio

delas entendemos que Pliacutenio estava totalmente empenhado em revelar o lado

antinatural de Nero As atitudes do soberano foram divulgadas a partir das lentes

de um enciclopedista dedicado em manter a natureza sagrada eterna e infinita647

Tudo o que atrapalhou tal manutenccedilatildeo foi motivo de condenaccedilatildeo como por

exemplo a construccedilatildeo da Domus Aurea Nesse ponto concordamos com o

argumento de Laehn ldquopara Pliacutenio a integraccedilatildeo completa do mundo da natureza

com a vida humana exigia o alinhamento dos limites da ordem poliacutetica com os

limites do mundo naturalrdquo648

ndash um alinhamento que ele acreditava ter sido Nero

incapaz de criar Foi assim que o autor contribuiu para a tradiccedilatildeo negativa

mostrando que o soberano natildeo possuiacutea o senso da importacircncia de viver em acordo

com a natureza

Antes de finalizarmos cabe frisar que essa contribuiccedilatildeo de Pliacutenio natildeo deve

ser desconectada dos seus intentos enciclopedistas Isto significa que seu objetivo

primordial nunca foi falar de Nero e do seu governo Ele apenas os inseriu na

narrativa quando assim julgou vaacutelido ou necessaacuterio agrave elaboraccedilatildeo dos seus

argumentos dividindo a abordagem entre de um lado criacuteticas agraves agressotildees agrave

natureza cometidas por Nero e de outro oposiccedilatildeo da imagem deste agrave dos Flaacutevios

Foi por meio dessa divisatildeo que ele utilizou a inuentio para em poucas e parcas

passagens mostrar seu pensamento negativo acerca do soberano Estamos falando

de um pensamento que a nosso ver esteve muito mais ligado agrave sua experiecircncia

pessoal eou proximidade poliacutetica com os Flaacutevios do que com um embasamento

na tradiccedilatildeo literaacuteria anterior ndash algo por exemplo feito por Pseudo-Secircneca A

647

Plin Nat 21 648

LAEHN 2010 p 25

173

uacutenica exceccedilatildeo foi o uso dos registros de Agripina mencionados por ele no evento

do nascimento do princeps649

O surpreendente eacute que mesmo natildeo se apoiando na tradiccedilatildeo literaacuteria

precedente Pliacutenio criou um Nero que eacute mutuamente novo e dependente do Nero

do passado ndash ou seja ele fez allelopoiesis Como ilustraccedilatildeo o seu Nero continuou

sendo infausto mas agora eacute infausto desde o ventre materno e natildeo mais desde o

iniacutecio do seu Principado Tambeacutem permaneceu sendo matricida poreacutem aqui eacute

acusado de matar uma matildee que merecera morrer natildeo uma viacutetima inocente

Manteve-se como incendiaacuterio mas neste momento sem crueldade com a plebe e

sem motivos para queimar Roma E prosseguiu sendo um construtor que

despendeu ouro em demasia para erguer a Domus Aurea e adornar o teatro de

Pompeu Sem duacutevidas a vivecircncia sob os governos de Nero e de Vespasiano deu a

Pliacutenio a oportunidade de selecionar classificar e interrogar realidades diversas as

quais por sua vez permitiram-lhe criar allelopoieticamente novos Neros mais

adequados ao presente que foram incorporados ao repertoacuterio que seraacute utilizado

posteriormente Por esse processo a possibilidade de criar novos retratos de Nero

vai se ampliando com o tempo e novas possibilidades vatildeo surgindo e se ligando

agraves antigas recompondo o entendimento do presente e do passado

Flaacutevio Josefo Bellum Judaicum e Antiquitates Judaicae

Tratemos agora da representaccedilatildeo de Nero feita por Tito Flaacutevio Josefo650

O historiador judeu nasceu em Jerusaleacutem no ano 37 data da ascensatildeo de Caliacutegula

no interior de uma famiacutelia aristocraacutetica sacerdotal651

Cresceu em sua cidade natal

e recebeu uma soacutelida educaccedilatildeo judaica voltada agrave tradiccedilatildeo oral ao exerciacutecio da

memoacuteria e ao estudo da Toraacute e do grego No desenvolver da sua formaccedilatildeo

demonstrou inteligecircncia e anamnese excepcionais as quais o fizeram ser

649

Plin Nat 76 650

Eacute importante destacar que ao nascer ele foi batizado com o nome hebraico Yosef ben

Mattityahu ha-Cohen (מתתיהו בן יוסף) O nome Flaacutevio Josefo sob o qual eacute conhecido na

contemporaneidade natildeo aparece em suas obras O designativo surgiu em 69 quando lhe foi

concedida a cidadania romana por Vespasiano Com a concessatildeo Josefo recebeu os tria nomina

aquele que se chamava Yosef filho de Mattityahu adotou os praenomina Titus e Flavius em

homenagem a seu libertador (Titus Flavius Vespasianus) Assim Yosef ben Mattityahu ha-Cohen

passou a chamar-se Titus Flavius Josephus (Tito Flaacutevio Josefo) denominaccedilatildeo que adotaremos em

nosso texto (BARTLETT 1985 p 72-76 LAMOUR 2006 p 29) 651

Jos Vit 1 Jos BJ 1Pr1 As informaccedilotildees sobre a vida de Josefo estatildeo contidas em sua

autobiografia Vita (Vida) e em declaraccedilotildees esparsas no Bellum Judaicum

174

procurado por rabinos eruditos para esclarecimentos acerca das leis judaicas652

Em 53 ao completar 16 anos decidiu vivenciar os princiacutepios das ramificaccedilotildees do

judaiacutesmo (Fariseus Saduceus e Essecircnios) no intuito de eleger uma para seguir

Apoacutes conhececirc-las profundamente optou por seguir a dos Fariseus a mais

numerosa e de maior influecircncia sobre a populaccedilatildeo da Judeia653

A relaccedilatildeo com os

Fariseus deve tecirc-lo tornado influente tambeacutem pois no ano 62 foi incumbido de

viajar ateacute Roma para apresentar-se diante de Nero e implorar a libertaccedilatildeo de

alguns sacerdotes que tinham sido levados para laacute como prisioneiros654

Ao chegar

agrave Vrbs conheceu Popeia e reuniu-se com ele que intercedeu em prol dos

sacerdotes juntamente ao princeps ganhando a soltura de todos655

Com a missatildeo

bem-sucedida retornou a Jerusaleacutem em 66 onde haacute pouco havia eclodido a

revolta da Judeia contra Roma Tal rebeliatildeo conforme Goodman ocorreu em

funccedilatildeo da atitude de Nero em confiscar parte do ouro do Templo de Jerusaleacutem

siacutembolo maacuteximo da cultura judaica656

A revolta estendeu-se ateacute o ano 70 quando

Jerusaleacutem foi dominada pelas tropas do general Tito filho de Vespasiano que a

essa altura jaacute era imperador Do iniacutecio ao fim da insurreiccedilatildeo Josefo assumiu

papeacuteis diferentes estando a priori na condiccedilatildeo de comandante das tropas

rebeldes e a posteriori reduzido a prisioneiro de Vespasiano Enquanto ficou

como refeacutem Josefo afirma que o soberano o tratou com distinccedilatildeo e respeito

agradando-lhe de vaacuterias maneiras657

Sua liberdade foi concedida um ano e meio

652

Jos Vit 2 653

Jos Vit 2 654

Jos Vit 3 655

Jos Vit 3 Nas Antiquitates Judaicae Josefo denomina Popeia como ldquomulher temente a Deusrdquo

(Jos Ant 20811) Lamour (2006 p 21) acredita que essa expressatildeo relaciona-se a uma possiacutevel

origem judaica da imperatriz ou simplesmente agrave sua ldquosimpatiardquo pelos judeus 656

GOODMAN 1994 p 158 Wiedemann (1996 p 251) esclarece que os altos custos da

reconstruccedilatildeo de Roma apoacutes o incecircndio debilitaram as financcedilas fazendo Nero apropriar-se de metais preciosos nas proviacutencias do leste e do oeste sendo a Judeia o local onde foi desencadeado o

conflito mais duradouro 657

Jos Vit 75 Do inverno de 66 ao veratildeo de 67 Josefo comandou o exeacutercito defensor da Galileia

contra as forccedilas romanas lideradas por Vespasiano Esse uacuteltimo sitiou a cidade fortificada de

Jotapata e a capturou apoacutes um cerco de 47 dias Com a captura Josefo escondeu-se em uma

caverna juntamente com outros sobreviventes mas eles logo foram descobertos por soldados

romanos Ao ser levado perante Vespasiano e seu filho Tito Josefo profetizou que Vespasiano

tornar-se-ia imperador A princiacutepio o soberano ficou ceacutetico no entanto ao saber que uma seacuterie de

profecias anteriores de Josefo haviam se tornado realidade melhorou as condiccedilotildees do seu cativo

concedendo-lhe roupas e outros presentes Dois anos depois em julho de 69 Vespasiano foi

aclamado imperador pelas legiotildees estacionadas em Alexandria no Egito Aiacute lembrou-se da

profecia de Josefo e o libertou do cativeiro ordenando que suas correntes fossem cortadas com um

machado (Jos BJ 3736-389) Desse ponto em diante a vida de Josefo seria irrevogavelmente

ligada agrave sorte da casa Flaviana

175

depois em 72 momento em que preferiu seguir para a capital do Impeacuterio ao lado

do princeps e de Tito ao inveacutes de voltar agrave sua terra natal Em Roma foi

autorizado a residir na antiga uilla de Vespasiano tornou-se cidadatildeo e recebeu

uma pensatildeo com a qual viveu sem problemas financeiros Josefo morou na Vrbs

ateacute falecer na passagem do seacuteculo I para o II658

Foi sob essas circunstacircncias que ele iniciou e completou a escrita das suas

obras Durante os anos 70 redigiu seu primeiro e mais conhecido trabalho o

Bellum Judaicum em sete volumes cuja narrativa descreve toda a histoacuteria da

Revolta Judaica a eclosatildeo o curso e a conclusatildeo dos eventos bem como os fatos

a eles posteriores659

Nos anos 80 a 90 elaborou seu segundo trabalho as

Antiquitates Judaicae em 20 volumes no qual relata a histoacuteria do povo judeu

desde seus primoacuterdios ateacute a revolta de 66660

Entre 93 e 94 divulgou sua

autobiografia em apenas um volume Vita em que fala sobre o periacuteodo em que

foi comandante das tropas rebeldes Pouco tempo depois veio sua uacuteltima obra

Contra Apionem (Contra Apiatildeo) contendo dois volumes nos quais defende o

judaiacutesmo e o povo judeu contra os ataques feitos pelos antissemitas do mundo

greco-romano sobretudo aqueles vindos do autor alexandrino Apiatildeo Os escritos

de Josefo segundo Degan oferecem uma excelente oportunidade para refletirmos

acerca dos desafios enfrentados pelos judeus do seacuteculo I das relaccedilotildees entre o

centro do poder poliacutetico (Roma) e as suas periferias e do refazer da memoacuteria de

um autor particular661

Suas duas primeiras composiccedilotildees Bellum Judaicum e Antiquitates

Judaicae ndash a serem analisadas neste capiacutetulo ndash constituem trabalhos de

historiografia enquanto os demais satildeo classificados pelos estudiosos como relatos

pessoais que embora natildeo sejam desprovidos de conteuacutedo histoacuterico natildeo podem

ser considerados historiograacuteficos Essas duas obras manifestam a ambiccedilatildeo de

Josefo em ser um historiador em termos de meacutetodos seguidor de Tuciacutedides o

renomado historiador grego do seacuteculo V aC662

Na visatildeo de Wiseman Tuciacutedides

foi o responsaacutevel por reformular a operaccedilatildeo historiograacutefica de Heroacutedoto e por

658

THACKERAY 1967 p 15 Para detalhes da biografia de Josefo cf RAJAK 2002 p 11-45 659

Para uma descriccedilatildeo dos livros do Bellum Judaicum cf MASON 2016 p 19-20 660

Sobre a divisatildeo das Antiquitates Judaicae cf SCHWARTZ 2016 p 37 661

DEGAN 2010 p 30-31 EDMONDSON 2005 p 7 662

RAJAK 2002 p 9 DEGAN 2013 p 226

176

estabelecer padrotildees de objetividade para a escrita da historia663

Ou seja foi ele

quem instituiu a ideia de que a historia deveria ser contemporacircnea buscar as

causas ldquoverdadeirasrdquo por traacutes da superficialidade dos eventos e basear-se na

anaacutelise criacutetica do depoimento de testemunhas oculares664

Era a ele quem Josefo

queria se assemelhar para conceber a histoacuteria do povo judeu Ele desejava ldquo[]

aparecer e ser avaliado como um historiador heleniacutestico da mais estrita escolardquo665

Para escrever a historia Tuciacutedides seguia em geral trecircs princiacutepios

metodoloacutegicos O primeiro dizia respeito agrave abordagem de temas contemporacircneos

ou quase contemporacircneos comumente entendidos como grandiosos Momigliano

argumenta que os leitores tendiam a dar mais creacutedito agraves narrativas de cujos

eventos os historiadores haviam sido testemunhas in loco ou agravequelas cujas fontes

eram recentes666

Josefo atendeu a esse princiacutepio na medida em que vivenciou os

fatos da Guerra Judaica delineando uma histoacuteria em que discutiu o passado

poliacutetico da Judeia para interpretar a chegada dos Flavianos ao poder O segundo

concernia agrave utilizaccedilatildeo de discursos para a construccedilatildeo das narrativas Dito de outro

modo trata-se da exibiccedilatildeo da habilidade retoacuterica do autor para recuperar as

palavras dos personagens envolvidos no ocorrido e edificar sua histoacuteria ndash

habilidade inclusive aliada agrave inuentio De acordo com Thackeray os discursos

usados por Josefo satildeo de trecircs tipos os minoritaacuterios formados por palavras

realmente proferidas pelos personagens os intermediaacuterios compostos pela

proximidade real das palavras proferidas (proximidade condizente com o caraacuteter

do personagem) e os majoritaacuterios constituiacutedos por elementos puramente

imaginaacuterios667

Nas palavras do proacuteprio Tuciacutedides

663

WISEMAN 1979 p 41 Para Heroacutedoto o historiador era o encarregado de expor e investigar

(historiacutee) os acontecimentos provocados pelos homens Ao fazer isso assumia a funccedilatildeo de hiacutestor

isto eacute a funccedilatildeo de juiz cabendo a ele julgar quais acontecimentos seriam dignos de memoacuteria

Portanto sua noccedilatildeo de histoacuteria ndash ou sua metodologia ndash compreendia a investigaccedilatildeo (historiacutee) feita

pelo hiacutestor juntamente agrave sua exposiccedilatildeo em forma de narrativa Dessa maneira havia uma

preocupaccedilatildeo em separar o estilo literaacuterio da exposiccedilatildeo da ldquoverdaderdquo (HARTOG 2001 p 51-52) 664

MOMIGLIANO 1987 p 14-15 Eacute essencial destacar contudo que quando falamos de

histoacuteria na Antiguidade natildeo estamos nos referindo a uma categoria particular de profissionais que

detinha um local especiacutefico de produccedilatildeo Ao contraacuterio no mundo greco-romano como ressaltou

Hartog (2001 p 19) a historiografia foi assumida por uma instituiccedilatildeo que codificava suas regras 665

BILDE 1988 p 203 666

MOMIGLIANO 1984 p 49 667

THACKERAY 1967 p 42-43

177

De quanto foi dito em discursos por cada um a ponto de entrar

em guerra ou jaacute estando nela era difiacutecil recordar com exatidatildeo cada palavra tanto para mim quando eu proacuteprio as escutei quanto para os que me informavam a partir de alguma outra fonte Como me parecia que cada um teria falado o que devia sobre a situaccedilatildeo do momento atendo-me o mais proacuteximo possiacutevel ao sentido geral do que foi verdadeiramente dito eacute assim que tudo se diraacute668

Os dois primeiros tipos de discursos foram retirados por Josefo de uma

variedade de fontes a exemplo da Toraacute dos Comentarii de Vespasiano sobre a

conduccedilatildeo da campanha judaica e de a Histoacuteria Universal de Nicolau de Damasco

historiador da corte de Herodes669

O terceiro e uacuteltimo princiacutepio metodoloacutegico tucidideano relacionava-se agrave

criacutetica aos relatos anteriores e agrave preocupaccedilatildeo em instituir uma histoacuteria que

desacreditasse os relatos jaacute existentes sobre os fatos no intuito de desvelar a

ldquoverdaderdquo por traacutes deles Para Tuciacutedides isso significava escrever natildeo recolhendo

informaccedilotildees de qualquer um mas as que ele mesmo tinha presenciado e checado

com a maior exatidatildeo possiacutevel670

Dito de outra forma significava ser imparcial e

construir relatos verossiacutemeis

Josefo prosseguiu com essa preocupaccedilatildeo ao compor suas obras porquanto

acusou seus predecessores de ignorarem ldquoa verdade exata dos fatosrdquo e elaborarem

histoacuterias pautadas em boatos contendo lisonjas eou oacutedios671

Seu intento foi

escrever para o bem dos que amam a verdade e natildeo para o bem dos que se

agradam com histoacuterias fictiacutecias672

Planejando alcanccedilar essa verdade dedicou-se agrave

averiguaccedilatildeo das fontes disponiacuteveis a fim de comparaacute-las avaliaacute-las e classificaacute-

las como veriacutedicas ou falsas Eacute precisamente em tal ponto que entra sua

representaccedilatildeo de Nero Ao consultar as evidecircncias Josefo tentou identificar quais

eram as narrativas confiaacuteveis e duvidosas acerca do imperador E eis que no meio

do processo ele observou uma falsificaccedilatildeo deliberada dos fatos

668

καὶ ὅσα μὲν λόγῳ εἶπον ἕκαστοι ἢ μέλλοντες πολεμήσειν ἢ ἐν αὐτῷ ἤδη ὄντες χαλεπὸν τὴν

ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι ἦν ἐμοί τε ὧν αὐτὸς ἤκουσα καὶ τοῖς ἄλλοθέν

ποθεν ἐμοὶ ἀπαγγέλλουσιν ὡς δ᾽ ἂν ἐδόκουν ἐμοὶ ἕκαστοι περὶ τῶν αἰεὶ παρόντων τὰ δέοντα

μάλιστ᾽ εἰπεῖν ἐχομένῳ ὅτι ἐγγύτατα τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων οὕτως εἴρηται

(Thuc 1221) (HARTOG 2001 p 81 traduccedilatildeo de Brandatildeo) 669

MASON 2016 p 25 670

Thuc 1222 671

Jos BJ 11 672

Jos BJ 1Pr12

178

[] Muitos foram os que compuseram a histoacuteria de Nero

Alguns se afastaram da verdade dos fatos devido a benefiacutecios recebidos dele Outros por oacutedio e antipatia a ele retrataram-no com tanta hostilidade que o cobriram imprudentemente com mentiras e estes merecem ser condenados [] Mas eu natildeo me surpreendo com os que contaram mentiras sobre Nero visto que natildeo preservaram em seus escritos a verdade da histoacuteria quanto aos fatos anteriores agrave sua eacutepoca []673

O historiador judeu entatildeo percebeu que os registros sobre Nero e seu

governo foram manipulados conforme os interesses daqueles que floresceram ou

sofreram sob o comando do princeps Houve um descuido com a verdade tanto

para o bem quanto para o mal Essa percepccedilatildeo eacute bastante significativa para a nossa

tese pois nos revela a existecircncia de uma dupla tradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave memoacuteria de

Nero Ou seja agrave eacutepoca da escrita das Antiquitates Judaicae subsistiam ao mesmo

tempo narrativas vituperiosas e laudatoacuterias As primeiras como sabemos

chegaram ateacute noacutes em grande quantidade Mas as segundas alcanccedilaram a

posteridade em nuacutemeros iacutenfimos E por quecirc Natildeo sabemos exatamente o porquecirc

poreacutem essa exiguidade evidencia um desinteresse na sua preservaccedilatildeo e tambeacutem

nos mostra que ela eacute viva e dinacircmica Claramente Josefo jaacute natildeo estava tratando

apenas dos Neros da proacutepria eacutepoca em que esse imperador viveu (cujas imagens

eram falsas por serem produto de adulaccedilatildeo) nem soacute dos Neros produzidos sob os

Flaacutevios (igualmente falsos pois eram fruto da antipatia ao princeps) Isso nos

mostra que Josefo deliberadamente decidiu produzir um novo Nero com base

nesses a que ele conseguia ter acesso por uma dupla tradiccedilatildeo ambas falsas Ele

natildeo criaraacute seu novo Nero a partir de elementos novos que eram desconhecidos por

essas duas tradiccedilotildees o que ele faz eacute recombinar elementos previamente existentes

dando mais peso para uns novos significados para outros e descartando alguns

Ao agir assim Josefo natildeo soacute se aproveita da tradiccedilatildeo como tambeacutem a transforma

ndash atitude inclusive adotada por outros autores analisados nesta tese Por fim

cumpre destacar que ao compor retratos os autores natildeo somente recuperam

673

Ἀλλὰ περὶ μὲν τούτων ἐῶ πλείω γράφειν πολλοὶ γὰρ τὴν περὶ Νέρωνα συντετάχασιν ἱστορίαν ὧν

οἱ μὲν διὰ χάριν εὖ πεπονθότες ὑπ᾽ αὐτοῦ τῆς ἀληθείας ἠμέλησαν οἱ δὲ διὰ μῖσος καὶ τὴν πρὸς αὐτὸν

ἀπέχθειαν οὕτως ἀναιδῶς ἐνεπαρῴνησαν τοῖς ψεύσμασιν ὡς ἀξίους αὐτοὺς εἶναι καταγνώσεως καὶ

θαυμάζειν οὐκ ἔπεισί μοι τοὺς περὶ Νέρωνος ψευσαμένους ὅπου μηδὲ τῶν πρὸ αὐτοῦ γενομένων

γράφοντες τὴν ἀλήθειαν τῆς ἱστορίας τετηρήκασιν καίτοι πρὸς ἐκείνους αὐτοῖς οὐδὲν μῖσος ἦν ἅτε

μετ᾽ αὐτοὺς πολλῷ χρόνῳ γενομένοις (Jos AJ 2083) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800- 180- p 261-262)

179

destacam e ressignificam determinados elementos mas tambeacutem os apagam No

caso de Josefo o desinteresse pelos elementos ligados agrave tradiccedilatildeo positiva

desqualificada como adulatoacuteria segundo Rajak estaria ligado ao projeto flaviano

de legitimaccedilatildeo do poder o qual priorizou as obras que marcaram os viacutecios do

antecessor674

Tal procedimento foi levado bem a seacuterio por Josefo que reconhece

a existecircncia das narrativas positivas mas natildeo as explora ndash talvez por medo de

perder os benefiacutecios conferidos por Vespasiano ou talvez por acreditar

sinceramente no Principado desse frente ao do seu antecessor

De qualquer forma o importante eacute que o historiador se contradiz

porquanto a busca pela verdade Tucidideana pautava-se na exploraccedilatildeo de ambas

as versotildees da histoacuteria e natildeo soacute de uma Assim a nosso ver Josefo constroacutei uma

imparcialidade aparente a qual se manifesta no seu comedimento ao citar os

episoacutedios da vida Nero675

a comeccedilar pela adoccedilatildeo

[] O proacuteprio Claacuteudio [] morreu e deixou Nero para ser seu

sucessor no Impeacuterio a quem ele havia adotado pelos deliacuterios da sua esposa Agripina a fim de ser seu sucessor embora tivesse um filho seu cujo nome era Britacircnico de Messalina sua ex-esposa e uma filha cujo nome era Otaacutevia que ele casou com

Nero []676

De igual modo a Pseudo-Secircneca Josefo representa a adoccedilatildeo como uma

manobra de Agripina Devido aos ldquodeliacuteriosrdquo da esposa provavelmente ligados agrave

sua ambiccedilatildeo pelo poder Claacuteudio elegeu Nero como sucessor ignorando a

legitimidade de Britacircnico Poreacutem ao contraacuterio do tragedioacutegrafo Josefo natildeo cita os

futuros assassinatos advindos da adoccedilatildeo e nem foca no caraacuteter negativo da matildee de

Nero ele apenas se restringe a reproduzir uma versatildeo jaacute conhecida da adoccedilatildeo

desde a Octauia a de que a matrona era a responsaacutevel pelo feito E o faz sem

atribuir criteacuterios de julgamento a Nero o que nos impossibilita de categorizar o

episoacutedio Por isso analisemos outros

674

RAJAK 2002 p 204 675

MAIER 2013 p 386 676

ὃν ταῖς Ἀγριππίνης τῆς γυναικὸς ἀπάταις ἐπὶ κληρονομίᾳ τῆς ἀρχῆς εἰσεποιήσατο καίπερ υἱὸν

ἔχων γνήσιον Βρεττανικὸν ἐκ Μεσσαλίνης τῆς προτέρας γυναικὸς καὶ Ὀκταουίαν θυγατέρα τὴν ὑπ᾽

αὐτοῦ ζευχθεῖσαν Νέρωνι γεγόνει δ᾽ αὐτῷ καὶ ἐκ Παιτίνης Ἀντωνία (Jos BJ 2249) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928

p 421)

180

Agora [falarei] em relaccedilatildeo aos diversos momentos em que

Nero agiu como louco transtornado pelo seu excesso de poder e riqueza [] assassinou o seu irmatildeo sua esposa sua matildee e depois voltou sua crueldade contra as pessoas proacuteximas a ele e por uacuteltimo ele estava tatildeo distraiacutedo que se tornou ator nos palcos do teatro Eu omito dizer qualquer coisa a mais sobre ele porque existem escritores suficientes em todo lugar para tratar

desses assuntos entatildeo me dedicarei agraves accedilotildees ocorridas em seu governo que envolveram os judeus677

No fragmento Josefo se recusa a fornecer mais detalhes sobre a vida do

soberano mencionando os assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina de

maneira raacutepida e sucinta Como argumenta Schubert ele natildeo utiliza as

oportunidades que tem para criticar Nero dando-nos representaccedilotildees visivelmente

contidas pela mera referecircncia aos casos jaacute bem conhecidos por sua audiecircncia678

Essa relativa indulgecircncia segundo Lefebvre e Mason pode ser explicada a partir

do fato de que o princeps estava ldquofora do campo de interesse de Josefordquo O

historiador afirma que ldquoomitiraacute dizer qualquer coisa a mais sobre o imperadorrdquo

porque desejava concentrar suas observaccedilotildees nos judeus Em outras palavras o

foco do Bellum Judaicum ndash e tambeacutem das Antiquitates Judaicae ndash era contar a

histoacuteria do povo judeu e natildeo a histoacuteria de Nero Eacute por isso que o autor daacute essa

visatildeo raacutepida dos assuntos romanos de 54 aos anos seguintes679

Mesmo assim

Josefo tem o cuidado de referenciar os crimes tradicionalmente atribuiacutedos ao

soberano agrave sua eacutepoca representando-o como Nero fraticida Nero uxoricida e

Nero matricida Eacute provaacutevel que esses trecircs delitos fossem bem conhecidos nos

meios literaacuterios quando ele publicou suas narrativas Gruen adiciona Josefo

seguiu o consenso dos retratos que prevaleciam no periacuteodo dos Flavianos680

De acordo com Barrett Fantham e Yardley o comentaacuterio do historiador

sobre o assassinato de Britacircnico eacute do seu especial interesse devido agrave sua amizade

677

Ὅσα μὲν οὖν Νέρων δι᾽ ὑπερβολὴν εὐδαιμονίας τε καὶ πλούτου παραφρονήσας ἐξύβρισεν εἰς τὴν

τύχην ἢ τίνα τρόπον τόν τε ἀδελφὸν καὶ τὴν γυναῖκα καὶ τὴν μητέρα διεξῆλθεν ἀφ᾽ ὧν ἐπὶ τοὺς

εὐγενεστάτους μετήνεγκεν τὴν ὠμότητα καὶ ὡς τελευταῖον ὑπὸ φρενοβλαβείας ἐξώκειλεν εἰς σκηνὴν

καὶ θέατρον ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν παραλείψω τρέψομαι δὲ ἐπὶ τὰ Ἰουδαίοις κατ᾽ αὐτὸν

γενόμενα (Jos BJ 2250) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego

para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 421) 678

SCHUBERT apud LEFEBVRE 2017 p 29 Isso se estende a outros imperadores Juacutelio-

Claudianos Josefo descreve rapidamente o caraacuteter sombrio e suspeito de Tibeacuterio e a

megalomania assassina de Caliacutegula (Tibeacuterio ndash Jos AJ 1865 18610 Caliacutegula ndash Jos AJ 1881

1911 1925) 679

LEFEBVRE 2017 p 29 MASON 2016 p 25 680

GRUEN 2011 p 156-157

181

com o futuro imperador Tito que foi criado com Britacircnico e supostamente

estava no banquete onde ocorreu o envenenamento681

Nesse caso Josefo deve ter

repetido a versatildeo do evento que circulava na corte no iniacutecio dos anos 90 graccedilas

aos testemunhos do proacuteprio Tito Essa sua atitude de retransmitir algo negativo da

vida de Nero prossegue no texto

Eu omiti dar um relato exato deles porque satildeo bem conhecidos

por todos e satildeo descritos por um grande nuacutemero de autores gregos e romanos ainda assim por causa da conexatildeo dos assuntos e para que minha histoacuteria natildeo seja incoerente acabei de falar rapidamente sobre tudo682

Seus comentaacuterios acerca do imperador entatildeo soacute reforccedilam aquilo que jaacute

circulava uma espeacutecie de vulgata oficial A propoacutesito eacute por meio de tal

perspectiva que ele evoca com brevidade os episoacutedios da revolta de Vindex e o

suiciacutedio de Nero sucedidos em 68683

Nesse iacutenterim soube-se que havia comoccedilotildees na Gaacutelia e que

Vindex juntamente com os homens no poder daquele paiacutes havia se rebelado contra Nero [] Esse relato assim relacionado a Vespasiano animou-o a prosseguir vigorosamente com a guerra []684

681

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 50 682

πάντα ταῦτα διεξιέναι μὲν ἐπ᾽ ἀκριβὲς παρῃτησάμην ἐπειδὴ δι᾽ ὄχλου πᾶσίν ἐστιν καὶ πολλοῖς

Ἑλλήνων τε καὶ Ῥωμαίων ἀναγέγραπται συναφείας δὲ ἕνεκεν τῶν πραγμάτων καὶ τοῦ μὴ

διηρτῆσθαι τὴν ἱστορίαν κεφαλαιωδῶς ἕκαστον ἐπισημαίνομαι (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 149) 683

O suiciacutedio de Nero foi o resultado de um longo processo de enfraquecimento poliacutetico que

comeccedilou em 64 com o incecircndio na Vrbs Tal processo se intensificou em 65 com a Conspiraccedilatildeo

de Pisatildeo cujos envolvidos tentaram colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo homem de famiacutelia

nobre Ao descobrir a insurreiccedilatildeo Nero realizou uma dura repressatildeo mandando assassinar

cavaleiros e senadores Sua posiccedilatildeo jaacute bastante fragilizada aiacute tornou-se ainda mais instaacutevel

quando ele rumou agrave Greacutecia em 66 para participar de concursos artiacutesticos deixando seu liberto

Heacutelio na capital como informante do estado das coisas Enquanto estava laacute Juacutelio Vindex governador da Gaacutelia Lugdunense sublevou-se contra ele promovendo uma revolta na Gaacutelia Para

fortalecer sua rebeliatildeo Vindex convidou Galba governador da Hispacircnia para se aliar agrave revolta

Galba ndash o futuro imperador ndash natildeo hesitou e aceitou o convite Sua entrada no movimento na

concepccedilatildeo de Brandatildeo (2020 p 98) tornou tudo mais seacuterio pois o general ldquo[] era oriundo de

uma linhagem de distintos poliacuteticos do passado tinha sido proacuteximo da casa de Augusto atraveacutes do

favor de Liacutevia prestara grandes serviccedilos e acumulara honras nos Principados de Caliacutegula e

Claacuteudio dera provas de possuir excepcionais dons administrativos e rigor no governo das

proviacutencias []rdquo Ao ouvir as notiacutecias da sublevaccedilatildeo de Vindex e do apoio de Galba Nero retornou

a Roma em 68 Percebendo que o princeps estava isolado Ninfiacutedio Sabino prefeito do Pretoacuterio

juntou-se a Galba com os pretorianos Pouco tempo depois em 8 de junho de 68 o Senado

declarou Nero inimigo puacuteblico Um dia depois fora de Roma ele cometeu suiciacutedio auxiliado por

um de seus libertos (FAVERSANI JOLY 2020 p 92-93) 684

Ἐν δὲ τούτῳ τὸ περὶ τὴν Γαλατίαν ἀγγέλλεται κίνημα καὶ Οὐίνδιξ ἅμα τοῖς δυνατοῖς τῶν

ἐπιχωρίων ἀφεστὼς Νέρωνος περὶ ὧν ἐν ἀκριβεστέροις ἀναγέγραπται Οὐεσπασιανὸν δ᾽ ἐπήγειρεν

182

Agora que Vespasiano retornou agrave Cesareia e estava se preparando com o seu exeacutercito para marchar diretamente para Jerusaleacutem ele foi informado de que Nero estava morto depois de ter reinado treze anos e oito dias Ele abusou de seu poder no seu governo e comprometeu a gestatildeo dos negoacutecios []685

A contenccedilatildeo nos detalhes nos leva a acreditar que os eventos as suas

consequecircncias e os seus personagens eram muito conhecidos por todos686

Isso

tanto pela proximidade temporal dos envolvidos quanto pela produccedilatildeo literaacuteria

acerca dos fatos e pela crescente predominacircncia de uma visatildeo negativa sobre

Nero O proacuteprio Josefo aliaacutes reconhece que existiam assuntos tatildeo conhecidos que

ele nem precisava mais falar sobre eles Isso significa como alega Mason que ele

sabia mais do que estava dizendo687

natildeo obstante preocupa-se outra vez em

citar negativamente o soberano destacando a grande revolta contra ele e o seu

abuso de poder concebendo-o como um Nero antiprinceps No final das contas a

narrativa comedida somada agrave menccedilatildeo aos delitos mais famosos reflete sua

agenda apologeacutetica Flaviana escondida por traz de uma aparente imparcialidade

Eacute essencial demarcarmos ainda outra atitude de Josefo a esquematizaccedilatildeo

Conforme vimos ele constroacutei uma lista sinteacutetica dos crimes de Nero cuja

divulgaccedilatildeo deve ter facilitado a perpetuaccedilatildeo da memoacuteria negativa deste No

estado atual das nossas fontes essa eacute a primeira vez que eacute implementada a

esquematizaccedilatildeo um tipo de organizaccedilatildeo usada pelo historiador em mais de uma

oportunidade como no exemplo a seguir

εἰς τὴν ὁρμὴν τοῦ πολέμου τὰ ἠγγελμένα (Jos BJ 4481) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 129) 685

Οὐεσπασιανῷ δ᾽ εἰς Καισάρειαν ἐπιστρέψαντι καὶ παρασκευαζομένῳ μετὰ πάσης τῆς δυνάμεως

ἐπ᾽ αὐτῶν τῶν Ἱεροσολύμων ἐξελαύνειν ἀγγέλλεται Νέρων ἀνῃρημένος τρία καὶ δέκα βασιλεύσας

ἔτη καὶ ἡμέρας ὀκτώ περὶ οὗ λέγειν ὃν τρόπον εἰς τὴν ἀρχὴν ἐξύβρισεν πιστεύσας τὰ πράγματα τοῖς

πονηροτάτοις [] (Jos BJ 4492) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

grego para o inglecircs de Thackeray (1927-1928 p 147) 686

BRIGHTON 2009 p 54 687

MASON 2016 p 24

183

Claacuteudio Ceacutesar morreu depois de governar por treze anos oito

meses e vinte dias e circulou a notiacutecia de que ele foi envenenado por sua esposa Agripina [] Ela trouxe consigo um filho Domiacutecio [Nero] [] Antes disso [Claacuteudio] por ciuacutemes jaacute havia matado sua esposa Messalina com quem teve seus filhos Britacircnico e Otaacutevia [] Ele tambeacutem casou Otaacutevia com Nero [] adotando-o como seu filho Mas agora

Agripina com medo de que Britacircnico viesse a ser um homem de Estado e sucedesse seu pai no governo desejava apoderar-se do Principado de antematildeo para seu proacuteprio filho [Nero] em vista disso circulou um boato de que ela tinha planejado a morte de Claacuteudio Por conseguinte ela enviou Burro [] imediatamente e com ele os tribunos e tambeacutem os libertos de maior autoridade para trazer Nero ateacute o acampamento e saudaacute-

lo como imperador Quando Nero assumiu o governo ele conseguiu que Britacircnico fosse envenenado de forma que as pessoas natildeo percebessem embora ele tivesse matado a sua matildee publicamente natildeo muito tempo depois [] Ele tambeacutem matou Otaacutevia sua proacutepria esposa e muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra ele [Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo]688

Em poucas palavras uma parte da trajetoacuteria do princeps nos eacute narrada

Todavia tanto aiacute quanto em outros momentos os eventos da sua vida satildeo

comentados de forma breve pela simples menccedilatildeo aos episoacutedios Por exemplo os

assassinatos de Britacircnico de Otaacutevia e de Agripina satildeo referenciados com as

sinteacuteticas expressotildees ldquoenvenenadordquo ldquomatado a sua matildee publicamenterdquo e ldquomatou

Otaacuteviardquo E a Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo689

eacute apresentada com a pequena frase ldquomatou

muitas outras pessoas ilustres sob o pretexto de que conspiraram contra elerdquo As

menccedilotildees concisas poreacutem satildeo suficientes para o enquadramento dos episoacutedios nas

688

Δεδοικυῖα δ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα μὴ ὁ Βρεττανικὸς ἀνδρωθεὶς αὐτὸς παρὰ τοῦ πατρὸς τὴν ἀρχὴν

παραλάβοι τῷ δὲ αὐτῆς παιδὶ προαρπάσαι βουλομένη τὴν ἡγεμονίαν τά τε περὶ τὸν θάνατον τοῦ

Κλαυδίου καθάπερ ἦν λόγος διεπράξατο καὶ παραχρῆμα πέμπει τὸν τῶν στρατευμάτων ἔπαρχον

Βοῦρρον καὶ σὺν αὐτῷ τοὺς χιλιάρχους τῶν τε ἀπελευθέρων τοὺς πλεῖστον δυναμένους ἀπάξοντας

εἰς τὴν παρεμβολὴν τὸν Νέρωνα καὶ προσαγορεύσοντας αὐτὸν αὐτοκράτορα Νέρων δὲ τὴν ἀρχὴν οὕτως παραλαβὼν Βρεττανικὸν μὲν ἀδήλως τοῖς πολλοῖς ἀναιρεῖ διὰ φαρμάκων φανερῶς δ᾽ οὐκ εἰς

μακρὰν τὴν μητέρα τὴν ἑαυτοῦ φονεύει ταύτην ἀμοιβὴν ἀποτίσας αὐτῇ οὐ μόνον τῆς γενέσεως ἀλλὰ

καὶ τοῦ ταῖς ἐκείνης μηχαναῖς τὴν Ῥωμαίων ἡγεμονίαν παραλαβεῖν κτείνει δὲ καὶ τὴν Ὀκταουίαν ᾗ

συνῴκει πολλούς τε ἐπιφανεῖς ἄνδρας ὡς ἐπ᾽ αὐτὸν ἐπιβουλὰς συντιθέντας (Jos AJ 2081-3) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Whiston (1800-

180- p 260-262) 689

A Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo foi uma conjura de senadores romanos ocorrida em 65 que tentou

assassinar Nero e colocar no trono imperial Calpuacuternio Pisatildeo descendente da nobreza republicana

que gozava de ampla popularidade A ideia dos senadores era matar o imperador quando ele

estivesse participando de corridas de bigas no Circus Maximus O esquema todavia natildeo deu certo

pois o liberto do senador Flaacutevio Escavino relatou ao princeps os preparativos suspeitos do seu

patrono Descoberta a conjuraccedilatildeo houve uma dura repressatildeo alguns participantes foram

decapitados outros forccedilados a cometer suiciacutedio como Secircneca e Lucano alguns foram exilados e

a minoria foi perdoada eou absolvida (Tac Ann 15 48-74)

184

categorias Nero fratricida Nero uxoricida e Nero matricida Cabe apontar ainda

em concordacircncia com Ehrenkrook que os episoacutedios citados estatildeo vinculados ao

discurso moralizante romano Desde o iniacutecio a maacutequina de legitimaccedilatildeo Flaviana

foi especialmente diligente em promover a impressatildeo de um renascimento da

romanitas tradicional Os valores morais tipicamente associados agrave Repuacuteblica ndash

por exemplo temperanccedila integridade e prudecircncia ndash foram anexados pela nova

famiacutelia imperial ao passo que uma constelaccedilatildeo potente de viacutecios ndash como tirania

luxuacuteria e avareza ndash passou a ser ligada a esse notoacuterio ldquovilatildeordquo dos Juacutelio-

Claudianos Nero Se ele realmente merecia essa reputaccedilatildeo natildeo podemos dizer

mas logo ele se tornou o emblema de tudo que potencialmente minaria e destruiria

a estabilidade do Impeacuterio690

A discussatildeo desenvolvida ateacute aqui mostrou que ao lermos o Bellum

Judaicum e as Antiquitates Judaicae deparamo-nos com cinco categorias de

anaacutelise 1) Nero fraticida referente ao assassinato de Britacircnico 2) Nero

uxoricida relativa ao assassinato de Otaacutevia 3) Nero matricida ligada ao

assassinato de Agripina 4) Nero cruel conectada agrave Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo e 5)

Nero antiprinceps vinculada agrave Revolta de Vindex e ao suiciacutedio de Nero Como

vimos ao relatar tais episoacutedios Josefo pretende seguir o modelo de Tuciacutedides

Esse historiador nos termos de Degan quis ser e foi reconhecido como o pai da

Histoacuteria verdadeira instituindo uma narrativa pautada no desvelar da verdade dos

acontecimentos a qual rejeitava os cacircnones narrativos poeacuteticos691

Ou seja ele

isentava-se de proferir julgamentos natildeo engradecendo ou embelezando a

realidade e nem seduzindo os ouvidos alheios com fabulaccedilotildees conforme o

paradigma de Tuciacutedides692

Josefo tenta seguir ao maacuteximo esses fundamentos

mas soacute os cumpre em parte dando-nos uma narrativa de aparente imparcialidade

Embora natildeo tenha emitido julgamentos extensos a respeito de Nero e de seu

governo ele soacute seleciona os episoacutedios negativos apresentando-os de forma

esquematizada e colocando adjetivos pontuais que evidenciavam o caraacuteter

negativo das ocorrecircncias referenciadas Onde foram parar os eventos positivos

Por que natildeo foram citados mesmo ele tendo reconhecido sua existecircncia Josefo

natildeo leva em consideraccedilatildeo nenhuma composiccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria positiva

690

EHRENKROOK 2011 p 177-178 691

DEGAN 2010 p 26 692

Thuc 1222-4

185

precedente Talvez ele ateacute tenha lido Secircneca e Lucano mas natildeo julga seus elogios

veriacutedicos o suficiente Seus argumentos satildeo todos elaborados a partir de obras

hostis a Nero como os Comentarii de Vespasiano aos quais teve acesso direto

Portanto ele faz uma inuentio orientada tentando persuadir o puacuteblico a aceitar o

seu ponto de vista693

Ele aponta uma versatildeo amplamente aceita que estava sendo

produzida e circulando no tempo em que viveu em Roma ndash lembremo-nos de que

Josefo escreveu o Bellum Judaicum e as Antiquitates Judaicae entre os anos 70 e

90 A versatildeo aceita sobre Nero aiacute jaacute era negativa e por isso eacute apresentada como

verdadeira Qualquer narrativa longe de tal perspectiva eacute descartada

Essa sua atitude relaciona-se perfeitamente com o conceito de retrato Ao

ignorar as representaccedilotildees positivas anteriores do princeps Josefo reforccedila a

tradiccedilatildeo negativa do presente Como um historiador que ambicionava dizer a

verdade ele natildeo soacute daacute autoridade agrave tradiccedilatildeo negativa como tambeacutem a faz parecer

mais verossiacutemil do que a positiva Poreacutem ele natildeo usa a tradiccedilatildeo negativa de modo

extenso mas apenas expotildee os traccedilos que permitiam aos leitores trazerem agrave cena

outros retratos de Nero mais detalhados e guardados na memoacuteria Se Josefo

tivesse se dedicado a ressaltar os traccedilos positivos deveria tecirc-los divulgado mais

minuciosamente para que fizessem sentido em um ambiente onde predominavam

as visotildees negativas Desse modo ele prioriza certos elementos episoacutedios e

tradiccedilotildees interpretativas escolha que gera duas consequecircncias a elevaccedilatildeo de

determinados eventos que a partir daqui seratildeo sempre dignos de memoacuteria a

exemplo dos trecircs assassinatos familiares e a desvalorizaccedilatildeo de outros que eram

muito rememorados e agora passaram despercebidos Como ilustraccedilatildeo o episoacutedio

da ascensatildeo de Nero ndash tatildeo prodigioso no passado e infausto no presente ndash eacute

aludido atraveacutes da exiacutegua indicaccedilatildeo de que Agripina matara Claacuteudio para dar o

trono ao filho

Outro aspecto marcante nas obras de Josefo ndash e que nos permite

compreender melhor essa mecacircnica de produccedilatildeo dos retratos literaacuterios de Nero ndash eacute

que ele dialoga com dois puacuteblicos distintos necessitando para tanto de tornar seu

Nero compreensiacutevel para ambos ao mesmo tempo Natildeo satildeo os romanos que estatildeo

discutindo sua histoacuteria domeacutestica e sim um judeu que estaacute apresentando como a

histoacuteria de seu povo conectou-se agrave de Roma O contraponto eacute produzido de uma

693

KENNEDY 1994 p 4

186

outra oacutetica a qual gerou uma nova perspectiva para o retrato de Nero Josefo

entendia a revolta dos judeus natildeo como uma recusa ao poder romano mas como

uma contraposiccedilatildeo agrave tirania de Nero que saqueou o templo de Jerusaleacutem Logo

natildeo coube a ele debater se Nero era tirano ou natildeo pois isso jaacute estava dado Seu

ponto foi contrapor o poderio romano que gerou a revolta com o poderio romano

atual representado pelos dignos soberanos Vespasiano e Tito Ele daacute ecircnfase

entatildeo ao retrato do Nero tirano que levou os judeus agrave revolta Por outro lado

tambeacutem utiliza esse retrato da tirania para mostrar aos judeus que o poderio

romano natildeo era Nero Usando o contraste dominante em seu tempo ele projeta

esse Nero tirano como o motor de desobediecircncia que natildeo existia mais Agora no

novo contexto a revolta perde o sentido e natildeo deve mais existir Nesse ponto o

mecanismo de allelopoiesis eacute claro Josefo mescla as temporalidades e projeta no

presente uma conjunccedilatildeo que daacute sentido simultaneamente ao presente e ao

Principado de Nero ndash ela daacute sentido tanto para a revolta dos judeus quanto para a

derrota tanto para a tirania do princeps quanto para a legitimidade dos Flaacutevios

Por uacuteltimo consideramos que as escolhas metodoloacutegicas de Josefo natildeo

devem ser separadas da sua posiccedilatildeo sociopoliacutetica Natildeo deixemos de lado o fato de

que o historiador pagava um tributo de gratidatildeo a dois imperadores sucessivos

Vespasiano e Tito o que inseriu o seu texto em um processo complexo de

redaccedilatildeo tornando os Flaacutevios seus patrocinadores e seus leitores ao mesmo

tempo694

A relaccedilatildeo com os principes significava que a ldquoverdaderdquo histoacuterica de

qualquer narrativa seria escrita visando ao bem da nova dinastia e natildeo ao bem dos

que amavam a verdade695

E nada melhor para produzir o ldquobemrdquo dos novos

governantes do que produzir o ldquomalrdquo do falecido soberano

Marcial e Estaacutecio Liber Spectaculorum Epigrammata e Siluae

Essa fabricaccedilatildeo da imagem negativa neroniana tambeacutem se faz presente nas

obras de Marcial e Estaacutecio uacuteltimos autores a serem analisados neste capiacutetulo O

Liber Spectaculorum os Epigrammata e as Siluae condenam o princeps por

quatro feitos o conflito contra os partas o assassinato de Agripina o incecircndio de

Roma e a construccedilatildeo da Domus Aurea Poreacutem antes de detalharmos essas

694

HADAS-LEBEL 1991 p 45 695

Jos BJ 1Pr12

187

condenaccedilotildees eacute importante apresentarmos os dados biograacuteficos dos autores A

opccedilatildeo por analisaacute-los em conjunto adveacutem do fato de que foram contemporacircneos e

podem ter tido os mesmos patronos696

Marcos Valeacuterio Marcial nasceu em Biacutelbilis na Hispacircnia Tarraconense

entre os anos 38 e 41697

Desde muito jovem recebeu uma excelente educaccedilatildeo

devido agraves preocupaccedilotildees dos seus pais Fronto e Flacila que o colocaram sob a

tutoria de um gramaacutetico e de um retoacuterico698

Em 64 por volta dos 24 anos de

idade foi enviado agrave capital do Impeacuterio para completar sua educaccedilatildeo699

Ao chegar

laacute foi acolhido pela famiacutelia espanhola mais conspiacutecua de Roma a de Secircneca que

o introduziu nos ciacuterculos literaacuterios de Nero A relaccedilatildeo com os Aneus somada agrave

inserccedilatildeo na corte imperial facilitou a divulgaccedilatildeo dos seus talentos poeacuteticos

fazendo com que ele conquistasse o auxiacutelio de patronos importantes700

Todavia a

descoberta da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo por Nero atingiu o filoacutesofo e outros artistas da

corte levando Marcial a perder seus principais suportes financeiros O golpe de

maacute sorte fecirc-lo comeccedilar a redigir poemas curtos para os patronos que conseguiu

reunir isto eacute ele retribuiacutea o apoio com versos elogiosos701

Tempos depois no

ano 80 publicou 30 epigramas intitulados Liber Spectaculorum nos quais

descreveu os espetaacuteculos ofertados pelo imperador Tito no receacutem-concluiacutedo

Anfiteatro Flaviano702

Segundo Conte tal publicaccedilatildeo deve ter lhe dado

notoriedade pois seus escritos seguintes foram todos patrocinados por Tito e

mais tarde por Domiciano703

Com a ajuda imperial elaborou 12 livros de

epigramas os Epigrammata escritos e gradualmente divulgados de 86 a 102 bem

como compocircs os epigramas Xenia e Apophoreta que hoje integram os livros 13 e

696

DOMINIK 2016 p 412 MOZLEY 1967 p viii 697

Mart 10103 Esse e os demais dados biograacuteficos chegaram ateacute noacutes atraveacutes de seus proacuteprios

versos Para detalhes acerca da vida e das publicaccedilotildees de Marcial cf SULLIVAN 1991 p 1-55 698

Mart 973 699

Mart 10103 700

De acordo com Saller (1989 p 49) trecircs aspectos caracterizavam uma relaccedilatildeo de patrocinium

deveria existir uma troca reciacuteproca de bens e serviccedilos entre patrono e cliente deveria haver uma

relaccedilatildeo pessoal entre ambos e tal relaccedilatildeo deveria ser assimeacutetrica ou seja patrono e cliente

deveriam ser membros de categorias sociais distintas 701

Mart 1117-118 702

Esses epigramas foram compostos de forma independente mas hoje integram o livro dos

Epigrammata Cabe adicionar tambeacutem que o nome Liber Spectaculorum foi dado agrave coleccedilatildeo de

epigramas posteriormente (SHACKLETON BAILEY 1993 p 2) 703

CONTE 1999 p 505

188

14 dos Epigrammata704

O favor dos Flavianos tambeacutem rendeu a Marcial trecircs

outras conquistas significativas i) as nomeaccedilotildees para o tribunatus semestris

(Tribunato de Seis Meses)705

e para um provaacutevel tribunato militar ii) a elevaccedilatildeo

ao status de equestre e iii) a dispensa do ius trium liberorum (Direito dos Trecircs

Filhos)706

No ano 100 Marcial decidiu deixar Roma e retornar a Biacutelbilis no

desejo de viver seus uacuteltimos dias sossegado Na proviacutencia encontrou a paz que

buscava mas isso natildeo o impediu de sentir nostalgia da vida turbulenta da Vrbs

Saudoso ele faleceu por volta de 104 deixando-nos uma quantidade expressiva

de versos707

Por sua vez Puacuteblio Papiacutenio Estaacutecio nasceu em Naacutepoles na Campacircnia

entre os anos 40 e 50708

Filho de um prestigiado grammaticus e professor de

poesia foi instruiacutedo nos mais altos padrotildees da composiccedilatildeo poeacutetica heleniacutestica

709

ganhando precircmios quando ainda era bem jovem710

Apoacutes a morte do pai em 69

mudou-se para Roma e assumiu a poesia como profissatildeo sobrevivendo de forma

modesta e ignota como poeta-cliente Felizmente em 83 sua vida sofreu uma

reviravolta a escrita da obra Agave um necroloacutegio para a morte de Paacuteris ndash amante

da imperatriz Domiacutecia ndash proporcionou-lhe renome gerando convites para recitar

seus versos em jantares ilustres711

A partir daiacute recebeu a proteccedilatildeo de Domiciano

e publicou os cinco livros das Siluae de 92 em diante os 12 cantos da Thebais

(Tebaida) em 93 e a Achilleis (Aquileida) em 95 poema eacutepico inacabado do

704

LEITE 2003 p 39 O arranjo atual das obras completas de Marcial possivelmente eacute o de uma

ediccedilatildeo antiga feita apoacutes a morte do autor (RIMELL 2009 p 5) 705

De acordo com Marquardt (apud ALLEN JR et al 1970 p 346) os tribuni semestres

provavelmente serviam por um ano mas ldquosoacute no papelrdquo pois na verdade o seu desempenho real

durava seis meses embora recebessem um ano inteiro de salaacuterio Essa magistratura era conferida

pelo imperador agravequeles que natildeo pretendiam seguir uma carreira militar 706

ALLEN JR et al 1970 p 345-348 Em 18 aC Augusto promulgou a lei de casamento Lex Iulia de Maritandis Ordinibus cujo propoacutesito era regular o matrimocircnio e o divoacutercio na sociedade

romana Entre as vaacuterias sanccedilotildees da lei estava o ius trium liberorum que conferia aos chefes de

famiacutelia com trecircs filhos ou mais incentivos fiscais e prioridade na obtenccedilatildeo de magistraturas

(EDWARDS 2002 p 39) Os indiviacuteduos que natildeo os tivessem por quaisquer motivos poderiam

pedir diretamente ao imperador a dispensa do ius trium liberorum (STEINWENTER 1919 p

1281-1285) No caso de poetas a dispensa era concedida caso eles redigissem uma obra que o

princeps julgasse ter alguma importacircncia esteacutetica eou poliacutetica como aconteceu com Marcial 707

SHACKLETON BAILEY 1993 p 4 708

Stat Silv 3512-13 As informaccedilotildees biograacuteficas sobretudo as relacionadas agrave sua famiacutelia e agrave

sua infacircncia satildeo deduzidas de relatos feitos pelo proacuteprio autor ao longo das Siluae Para mais

informaccedilotildees sobre a vida de Estaacutecio cf NAUTA 2002 p 195-203 709

Stat Silv 53209-213 710

Stat Silv 53225-230 711

JUNIOR 2016 p 80

189

qual temos apenas o primeiro e o segundo livros712 Estaacutecio provavelmente

faleceu na capital do Impeacuterio no ano 96 pouco antes de Domiciano713

Com base nas biografias podemos ver que ambos os poetas nasceram

viveram e morreram no mesmo periacuteodo Dominik inclusive defende a

possibilidade de eles terem participado da mesma rede de relaccedilotildees intelectuais e

clientelistas da dinastia Flaviana714

Natildeo eacute agrave toa que os dois divulgaram reflexotildees

similares acerca das praacuteticas sociais e culturais durante o governo dos Flavii ndash

opiniotildees que embora sejam semelhantes satildeo apresentadas atraveacutes de gecircneros

literaacuterios distintos Por exemplo no Liber Spectaculorum e nos Epigrammata

Marcial relata cenas da Roma imperial utilizando o gecircnero poeacutetico

epigramaacutetico715

isto eacute poemas de circunstacircncias com versos curtos716

cujo

objetivo era perpetuar a memoacuteria de um acontecimento importante Segundo

Agnolon e Leite um epigrama poderia incluir mateacuterias vaacuterias em discurso

obsceno e agudo e nele eram garantidas sempre a brevidade e a condensaccedilatildeo

Marcial procurava explorar as possibilidades do epigrama em todos os aspectos

ou seja preocupava-se em explorar sua ampla gama temaacutetica e estendecirc-la ainda

mais acrescentando uma tonalidade satiacuterica e jocosa717

Em outras palavras

Marcial descreve Roma e os vaacuterios indiviacuteduos que ocupavam os seus espaccedilos com

olhar malicioso desvelando os piores viacutecios da natureza humana (vaidade

avareza petulacircncia entre outros)718

Ele

712

MOZLEY 1967 p viii 713

GIBSON 2006 p xvii 714

DOMINIK 2016 p 412 Eacute intrigante que apesar dos perfis literaacuterios parecidos e do fato de

suas vidas terem se entrecruzado nenhum menciona o outro Esse silecircncio levou alguns criacuteticos

como Martin (1939 p 461-462) a suspeitarem de uma hostilidade entre eles 715

Originalmente epigrama em grego (ἐπί-γραφὼ) significava ldquoqualquer palavra ou marca inscrita em artefatos oferendas votivas sepulturas monumentos ou edifiacutecios representando o proprietaacuterio

o criador o doador o dedicataacuterio ou apenas a proacutepria mensagemrdquo (OCGD 2002 p 126) Na

Greacutecia arcaica entatildeo o epigrama era uma composiccedilatildeo de tom formal que tratava de temas seacuterios

Poreacutem durante o periacuteodo alexandrino ganhou os temas amorosos e neles se expandiu ateacute que

mais tarde jaacute em Roma teve em Marcial o mais alto grau de apuro na teacutecnica e na arte do

epigrama satiacuterico e jocoso razatildeo dessa fama que acompanha a forma epigrama desde entatildeo

(LEITE 2013 p 63-66 AGNOLON 2010 p 74-75) Para uma discussatildeo mais longa sobre a

histoacuteria do epigrama antigo e o lugar de Marcial nele cf LAURENS 1965 p 315-341 716

Mart 9502-3 717

AGNOLON 2010 p 75-76 p 26 LEITE 2013 p 79 Leite (2013 p 19) inclusive comenta

que a escolha de Marcial pelo epigrama pelas invectivas satiacutericas e pela linguagem obscena

tornou-o alvo de incompreensatildeo e de acusaccedilotildees diversas incoerente friacutevolo preconceituoso

oportunista inoacutecuo inferior 718

CONTE 1999 p 508

190

observa o espetaacuteculo da realidade e aqueles que ocupam seu

palco com um olhar distorcido Acentua seus traccedilos grotescos e os reduz a tipos recorrentes (parasitas vaidosos [] etc) Eacute uma saacutetira social sem aspereza e ele prefere o riso agrave indignaccedilatildeo com [] o absurdo do mundo em que se encontra719

Sua poesia eacute mordaz divertida e irreverente muito diferente da poesia de

Estaacutecio que se concentra nos aspectos mais dignos e edificantes da cultura

romana Nas Siluae720

o autor discorre acerca da vida na Vrbs usando poemas

curtos de ocasiatildeo compostos por encomenda para eventos especiacuteficos a exemplo

de aniversaacuterios casamentos despedidas e viagens721

Em vista disso seus versos

sempre trazem um destinataacuterio em geral membros da elite como nobres patronos

e o princeps os quais satildeo louvados por suas riquezas e realizaccedilotildees Sua obra

entatildeo possui um tom elogioso marcante fugindo dos relatos sobre os viacutecios da

sociedade romana Como um poeta que descreve a sociedade de seu tempo

Estaacutecio se distancia de Marcial ao evitar a grosseria e sua poesia reflete a

sensibilidade de seu caraacuteter722

Resumindo estamos lidando com leituras de mundo bem distintas a de

Marcial viacutevida satiacuterica e preocupada com a falibilidade da existecircncia humana e a

de Estaacutecio reverente em relaccedilatildeo a seus personagens e ao universo social da

elite723

Isso natildeo quer dizer que essas leituras natildeo tenham um ponto de

convergecircncia ambas satildeo produtos da era Flaviana O epigrama e a poesia

ocasional transmitem os valores romanos atraveacutes dos vislumbres eou dos

julgamentos dos autores que avaliam os gostos esteacuteticos o status o caraacuteter e as

virtudes tradicionais presentes nos agentes sociais de sua eacutepoca Ambas tambeacutem

culpabilizam Nero por determinadas atrocidades expondo julgamentos muito

negativos Ele eacute visto de modo bastante tiracircnico como o exemplo de mau

imperador Vejamos primeiramente os episoacutedios mencionados por Marcial a

719

CONTE 1999 p 508 720

A palavra Siluae significa literalmente ldquobosquerdquo ldquovegetaccedilatildeo rasteira ou terra natildeo cultivadardquo

Metaforicamente denota uma variedade profusa ou mateacuteria-prima incluindo um esboccedilo (OCD

2012 p 1367) Para Wray (2007 p 128) este uacuteltimo significado eacute o que mais se relaciona com a

obra por se aproximar do gecircnero de poemas de encomenda 721

NAGLE 2004 p 3-4 Em sua tese de Doutorado Carvalho (2018 p 24-53) localiza as Siluae

como subgecircnero literaacuterio pertencente agrave liacuterica 722

GIBSON 2006 p xiv 723

DOMINIK 2016 p 431

191

saber o assassinato de Agripina e a construccedilatildeo da Domus Aurea Comecemos

pelo assassinato

Enquanto Ceriacutelia uma matildee navegava de Baulos para Baias encontrou a morte afogada pelo crime de um mar agitado Aacuteguas que gloacuteria vocecircs perderam Uma vez embora ordenado vocecircs recusaram a Nero essa coisa monstruosa724

A referecircncia ao delito feita por Marcial nos leva a refletir sobre duas

questotildees Em primeiro lugar ele natildeo revela detalhes sobre a forma como o

homiciacutedio de fato ocorreu ele somente alude ao assassinato de Agripina

planejado por meio de um naufraacutegio a partir da menccedilatildeo ao afogamento de Ceriacutelia

Vale lembrar que ateacute o momento o naufraacutegio de Agripina soacute apareceu na

Octauia o que talvez indique a leitura da trageacutedia por Marcial ou que ele e

Pseudo-Secircneca conheciam fontes em comum que divulgaram o episoacutedio Essa eacute a

hipoacutetese mais provaacutevel pois tal elemento da narrativa (o afogamento) seraacute

apresentado tambeacutem em fontes posteriores como veremos Se tal hipoacutetese estiver

correta observamos o mesmo mecanismo de simples alusatildeo aos malfeitos de Nero

em Josefo Nesse sentido Marcial ao se apoiar em uma tradiccedilatildeo criacutetica

consolidada sob os Flaacutevios natildeo tem que divulgar detalhes sobre a fracassada

tentativa de matar Agripina com um barco destinado a naufragar A mera menccedilatildeo

ao barco e ao naufraacutegio jaacute bastavam para compor a imagem do Nero matricida

Em segundo lugar em concordacircncia com Ginsberg e Lefebvre o poeta critica

tanto Nero quanto sua matildee dado que recrimina o princeps por ter realizado uma

ldquocoisa monstruosardquo (o matriciacutedio) e censura o mar por ter perdido a gloacuteria de

matar Agripina Ou seja Marcial ao mesmo tempo condena o Nero matricida e

sugere que Agripina merecia morrer725

Tal imagem negativa de Agripina emergiu

tambeacutem na Naturalis Historia quando Pliacutenio o Velho retratou o homiciacutedio como

algo merecido pois a matrona trouxera Nero ao mundo726

Isso nos fornece

subsiacutedios para cogitarmos o iniacutecio da construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo negativa acerca

de Agripina embora natildeo seja esse o foco da tese

724

Dum petit a Baulis mater Caerellia Baias occidit insani crimine mersa freti gloria quanta

perit vobis haec monstra Neroni nec iussae quondam praestiteratis aquae (Mart 463) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (1993 p 331) 725

GINSBERG 2019 p 37-38 LEFEBVRE 2017 p 176 726

Plin Nat 2246

192

Outro episoacutedio referenciado por Marcial eacute a construccedilatildeo da Domus Aurea

No Liber Spectaculorum ele recrimina o soberano pela apropriaccedilatildeo indevida dos

espaccedilos puacuteblicos citadinos para a edificaccedilatildeo do Palaacutecio privado

Onde o colosso estrelado vecirc as constelaccedilotildees de perto []

uma vez brilhavam os odiosos corredores de um monarca cruel e em toda Roma havia uma uacutenica casa Onde se ergue diante dos nossos olhos o [] Anfiteatro foi outrora o lago de Nero Onde admiramos os banhos quentes [] uma altiva extensatildeo de terra roubou dos pobres suas moradias Onde a colunata claudiana se desdobra em sua sombra ampla ficava a parte mais externa do palaacutecio727

A Domus Aurea eacute visivelmente caracterizada como um empreendimento

odioso erigido por um ldquomonarca cruelrdquo que roubou dos pobres miseraacuteveis suas

casas uma construccedilatildeo tatildeo grande que tomou conta da capital dando a impressatildeo

de que em toda Roma soacute existia uma uacutenica casa visto que a Vrbs havia se

transformado em uma cidade-palaacutecio728

Aqui temos uma criacutetica vigorosa agrave

vaidade de Nero e ao seu individualismo pois o seu complexo residencial nos

termos de Sullivan alojava ldquoum no lugar de muitosrdquo729

Para Lefebvre ao frisar a

ocupaccedilatildeo do espaccedilo puacuteblico para a construccedilatildeo de uma residecircncia privada Marcial

sublinha fortemente o escacircndalo do projeto eacute um sinal claro de tirania A Domus

Aurea eacute representada como o siacutembolo por excelecircncia de um poder tiracircnico que

subordina egoisticamente o espaccedilo da cidade aos desejos de um soacute homem730

Lembremo-nos de que anteriormente Pliacutenio o Velho jaacute havia reclamado ldquoo

Palaacutecio Dourado de Nero rodeava a nossa cidaderdquo731

A criacutetica entatildeo eacute reforccedilada

por Marcial que aponta o caraacuteter autoritaacuterio do soberano enquanto ridiculariza os

ldquoodiosos corredoresrdquo da sua casa Cabe frisar que esse eacute um dos poucos trechos no

qual o epigramista se delonga na tratativa do assunto fato que revela sua real

insatisfaccedilatildeo com a habitaccedilatildeo imperial

727

Hic ubi sidereus propius videt astra colossus et crescunt media pegmata celsa via invidiosa

feri radiabant atria regis unaque iam tota stabat in urbe domus hic ubi conspicui venerabilis

Amphitheatri erigitur moles stagna Neronis erant hic ubi miramur velocia munera thermas

abstulerat miseris tecta superbus ager Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras ultima

pars aulae deficientis erat (Mart Sp 21-10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 13-15) 728

RIMELL 2009 p 117-118 729

SULLIVAN 1991 p 8-9 730

LEFEBVRE 2017 p 126 731

Plin Nat 3316

193

Ainda na mesma passagem o poeta tece elogios a Tito princeps

munificente que desmantelou a Domus Aurea e abriu seu espaccedilo ao usufruto

comum ldquoRoma foi restaurada a si mesma e sob seu governo Ceacutesar os prazeres

que pertenciam a um mestre senhor agora pertencem ao povordquo732

Notamos que o

local antes reservado a divertimentos privados agora traz termas quentes e o

Anfiteatro Flaviano tudo aberto ao populus733

Como alega Gunderson esse passa

a ser o lugar onde as velhas e as maacutes maravilhas da casa de Nero que todos viam

e odiavam foram transformadas em novos espetaacuteculos puacuteblicos oferecidos e

apreciados por todos734

Tito eacute o liacuteder magnacircnimo que substituiu o edifiacutecio do ldquoum

no lugar de muitosrdquo pelo edifiacutecio dos ldquomuitos no lugar de umrdquo735

Essa

contraposiccedilatildeo entre os imperadores na visatildeo de Rosso eacute na verdade uma

antiacutetese aparente criada por Marcial O fato de Nero ter transformado a cidade em

seu palaacutecio pessoal eacute que faz a restauraccedilatildeo desse espaccedilo feita pelos Flavianos se

tornar algo excepcional Ou seja como os Flavianos queriam fortalecer a ideia de

que seu programa de urbanismo era uma restitutio da Domus Aurea neroniana

eles passaram a retratar o projeto de Nero como algo ruim Dessa maneira a

antiacutetese que eacute sistemaacutetica e perfeita eacute tambeacutem complementar o Tito munificente

soacute existiria se o Nero egoiacutesta existisse Um precisava do outro Nesse caso Rosso

afirma ndash e aqui concordamos com ele ndash que seria aconselhaacutevel ldquo[] inverter a

grade de leitura e considerar que o ponto de vista flaviano estaacute em primeiro lugar

O Nero desta tradiccedilatildeo eacute uma criaccedilatildeo ad hoc forjada no negativo e de acordo com

as intenccedilotildees da nova dinastiardquo736

Eacute importante adicionar que o Anfiteatro Flaviano foi e ainda eacute uma

conquista arquitetocircnica colossal De acordo com Jones e Zanker a construccedilatildeo

tinha cerca de 50 metros de altura com dois andares de colunas doacutericas e jocircnicas e

um terceiro andar com arcadas coriacutentias Possuiacutea capacidade para 50 mil

espectadores os quais ficavam dispostos nas arquibancadas segundo suas

categorias sociais O piso da arena era de madeira cobrindo um labirinto de tocas

732

reddita Roma sibi est et sunt te praeside Caesar deliciae populi quae fuerant domini (Mart

Sp 211-12) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Shackleton Bailey (1993 p 15) 733

Para uma discussatildeo detalhada sobre os conceitos de publicus e priuatus no periacuteodo imperial cf

WINTERLING 2009 p 58-76 734

GUNDERSON 2003 p 652 735

SULLIVAN 1991 p 8-9 736

ROSSO 2008 p 56-57

194

de animais elevadores e ralos de drenagem737

Para a inauguraccedilatildeo Tito ofereceu

diversas atraccedilotildees por 100 dias houve lutas de gladiadores uma batalha naval em

um lago artificial e a exposiccedilatildeo de milhares de animais de procedecircncia exoacutetica738

A descriccedilatildeo desses espetaacuteculos eacute feita por Marcial em detalhes no Liber

Spectaculorum no qual ele intitula o monumento de ldquomaravilha do Mundo

Antigordquo739

denominaccedilatildeo a nosso ver conferida natildeo soacute pelo fato de o complexo

ser majestoso e puacuteblico como tambeacutem por contrastar o Principado de Nero com o

de Tito O Anfiteatro representa ali a fronteira entre o passado vicioso e o presente

virtuoso entre o dominus Nero e o praeses Tito E ao mesmo tempo significa a

ligaccedilatildeo entre eles pois as obras dos Flaacutevios ganham sentido por sua comparaccedilatildeo

com o projeto ediliacutecio de Nero e vice-versa A Domus Aurea e seu

desaparecimento natildeo satildeo a mera destruiccedilatildeo de uma monstruosidade e sim a

necessidade de colocar em seu lugar algo que natildeo servisse a um tirano mas ao

populus algo que justamente por servir a muitos seria ainda mais grandioso A

grandiosidade das obras dos Flaacutevios deve superar as de Nero assim como suas

virtudes devem superar os viacutecios do tirano tudo imponente e memoraacutevel

constituiacutedo um em razatildeo do outro em simultaneidade como jaacute argumentou

Rosso740

Marcial coloca o Nero construtor e o Nero vaidoso preocupados soacute com

a sua cidade-palaacutecio em oposiccedilatildeo ao benevolente Tito interessado em erigir uma

Roma para todos741

Percebemos assim que a atividade arquitetocircnica dos

imperadores eacute usada pelo poeta como mecanismo de manipulaccedilatildeo da memoacuteria

cujo intento eacute projetar os Flavii como benfeitores puacuteblicos notaacuteveis em oposiccedilatildeo

ao autoindulgente Nero742

Natildeo eacute agrave toa que em outra passagem o epigramista

designa o ano da morte de Nero como o ldquogrande ano sagrado em que o mundo foi

737

JONES 1992 p 93 ZANKER 2010 p 70 Juntamente ao Anfiteatro existiam ainda outras

estruturas a norte havia as Termas de Tito inauguradas com o Anfiteatro em 80 a leste estava o

Ludus Magnus construiacutedo por Domiciano para oferecer aos gladiadores acesso subterracircneo agrave

arena principal e entre o final da Via Sacra e a entrada leste do Foacuterum Romano ficava o Arco de

Tito uma das rotas de acesso ao proacuteprio Anfiteatro Todas as edificaccedilotildees ligadas ao Anfiteatro

preenchiam uma aacuterea consideraacutevel do centro de Roma (MILLAR 2005 p 119-120) Para dados

detalhados cf DIMACCO 1971 738

Mart Sp 8-13 739

Mart Sp 18 740 ROSSO 2008 p 56-57 741

ROMAN 2010 p 96 DIAS 2019 p 122-123 742

ldquoO caraacuteter propagandista do Liber Spectaculorum eacute inegaacutevel []rdquo (SULLIVAN 1991 p 8)

195

libertadordquo haja vista que no seu governo os espaccedilos puacuteblicos eram destruiacutedos e

sob o Principado de Tito eram construiacutedos743

O curioso eacute que a ferocidade utilizada por Marcial para criticar o egoiacutesmo

de Nero e a edificaccedilatildeo da Domus Aurea natildeo eacute usada para mencionar as termas

erigidas pelo falecido soberano em 62 Ao contraacuterio o poeta elogia os banhos

puacuteblicos ldquoO que eacute pior do que Nero O que eacute melhor do que as termas de

Nerordquo744

comenta que as pessoas relaxavam laacute ldquo[Ele] [] relaxa nos banhos

quentes de Nerordquo745

aconselha os indiviacuteduos a conservarem tais locais ldquo[]

Cuide dos banhos de Nerordquo746

e tece mais outros elogios aos banhos quentes do

princeps747

Ateacute mesmo Estaacutecio elogia o local ldquo[] Algueacutem que se banhou

ultimamente nos banhos de Nero se recusaria a se banhar aqui outra vezrdquo748

As

thermae Neronianae foram os segundos balneares puacuteblicos de Roma

Localizavam-se no Campus Martius natildeo muito longe do Panteatildeo e das antigas

termas de Agripa ocupando uma aacuterea retangular de cerca de 190 metros por

120749

Segundo Ashby e Platner escavaccedilotildees diversas trouxeram agrave luz vestiacutegios

arquitetocircnicos da grande beleza desses locais entre eles quatro colunas de granito

vermelho capiteacuteis de maacutermore branco fragmentos de colunas de poacuterfiro granito

cinzento e uma enorme bacia para fonte de 67 metros de diacircmetro recortada de

um uacutenico bloco de granito vermelho750

Estamos falando entatildeo de um espaccedilo

extremamente luxuoso e custoso que agradava agrave populaccedilatildeo da Vrbs ndash tatildeo luxuoso

e custoso quanto a proacutepria Domus Aurea E por que Marcial condena somente o

743

postquam bis senis ingentem faseibus annum rexerat asserto qui saeer orbe fuit (Mart 7639-

10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Shackleton Bailey (1993 p 129) 744

quid Nerone peius quid thermis melius Neronianis (Mart 7344-5) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p

105) Yeguumll (1942 p 30) esclarece que os banhos puacuteblicos eram parte integrante de um dia de

muitos que viviam na Roma antiga Aleacutem de suas funccedilotildees higiecircnicas normais eles forneciam instalaccedilotildees para esportes e recreaccedilatildeo Sua natureza puacuteblica criava o ambiente adequado ndash muito

parecido com um clube da cidade ou um centro comunitaacuterio ndash para relaccedilotildees sociais variando de

fofocas de bairro a discussotildees de negoacutecios Ademais os banhos incorporavam bibliotecas salas de

aula colunatas e passeios assumindo um caraacuteter como o ginaacutesio grego 745

Neronianas is refrigerat thermas (Mart 3254) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base

na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 219) 746

et thermas tibi have Neronianas (Mart 2488) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base

na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 169) 747

Mart 10483-4 12835 748

Neronea nee qui modo lotus in unda hie iterum sudare neget (Stat Silv 1562-63) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (2015 p 63) 749

COARELLI 2007 p 293-296 750

ASHBY PLATNER 1929 p 531-532

196

Palaacutecio e natildeo as termas A nosso ver porque o Palaacutecio proporcionava um

usufruto privado as termas um usufruto comum O problema natildeo era o luxo ou o

gasto despendido na construccedilatildeo dos edifiacutecios mas a quantidade de pessoas que

atendiam e agradavam Fagaacuten e Graccedila inclusive afirmam que os banhos do

princeps caracterizados por seu requinte e excelente niacutevel de aquecimento

interno eram os preferidos da populaccedilatildeo de Roma Menos frequentados eram os

banhos receacutem-construiacutedos por Tito situados nas proximidades do anfiteatro

Flaacutevio751

Dyson e Prior esclarecem que a preferecircncia estava vinculada natildeo apenas

ao luxo mas tambeacutem ao fato de as termas serem maiores e mais antigas o que

significava que jaacute faziam parte do cotidiano diaacuterio das pessoas haacute tempos752

Cabe

rememorar que Calpuacuternio Siacuteculo na seacutetima Eacutecloga teceu louvores ao Anfiteatro

erigido pelo soberano e aos espetaacuteculos ofertados laacute753

Isso nos leva a perceber

que as criacuteticas ao Nero construtor soacute emergiam quando ele agradava a si mesmo e

se esquecia dos demais habitantes da cidade

Por outro lado tais elogios embora pontuais permitem-nos compreender

uma questatildeo sobre a qual sempre chamamos atenccedilatildeo a inuentio era criada a partir

do material disponiacutevel que de algum modo jaacute era conhecido pelos ouvintes O

repertoacuterio negativo sobre Nero durante o governo dos Flaacutevios vai estar cada vez

mais dominado por referecircncias negativas sobretudo quando se aproximava do

ciacuterculo imperial Em outros ciacuterculos poreacutem como nos populares as visotildees

positivas continuaram circulando E a permanecircncia de algumas das construccedilotildees

neronianas na Vrbs a exemplo das termas e das vaacuterias melhorias feitas na cidade

apoacutes o incecircndio ajudava na manutenccedilatildeo dessas visotildees era muito difiacutecil relegar ao

esquecimento os monumentos que permeavam a vida e a memoacuteria das pessoas

Logo o que o trabalho de Marcial nos mostra eacute que a criaccedilatildeo do retrato do

princeps natildeo foi feita livremente no presente ela foi feita com base no passado o

qual natildeo podia ser modificado sem limites Isso significa dizer que o presente

interferia no modo como se via o passado no entanto ndash e esse eacute outro ponto que

buscamos evidenciar ndash por allelopoiesis o passado tambeacutem dava elementos para

se pensar o presente

751

FAGAN 2002 p 14-21 GRACcedilA 2004 p 120-121 752

DYSON PRIOR 1995 p 251-252 753

Cal Ecl 723-56

197

Ainda sobre as termas de Nero haacute outro ponto que precisa ser discutido

No terceiro livro dos Epigrammata Marcial afirma ldquoDiga-me Musa o que meu

amigo Cano Rufo anda fazendo [] Ele estaacute se banhando nas aacuteguas mornas de

Tito754

ou [] nos banhos do libertino Tigelinordquo755

Como jaacute dissemos Ofocircnio

Tigelino era o prefeito da Guarda Pretoriana desde o ano 62 quando Burro

faleceu e Secircneca pediu afastamento da corte imperial756

Agrave eacutepoca ele era visto

como um indiviacuteduo cruel devasso e sem nenhum princiacutepio moral ou poliacutetico757

Flaacutevio Josefo inclusive alega no Bellum Judaicum que Nero confiou a

administraccedilatildeo dos assuntos puacuteblicos ao infeliz e vil Tigelino758

Em adiccedilatildeo como

comentamos no primeiro capiacutetulo da tese uma parte da Historiografia moderna ndash

situada no grupo Nero fantoche ndash acredita que Nero era comandado por tal sujeito

e que o periacuteodo ruim do seu Principado comeccedilou quando ele colocou Tigelino agrave

frente dos negoacutecios Desse modo sua personalidade infame influenciava

negativamente o princeps direcionando-o aos piores viacutecios da natureza

humana759

Em vista disso a fala de Marcial torna-se bastante sintomaacutetica Seu

objetivo parece ser expropriar algo positivo construiacutedo pelo soberano e atribuir a

ideia a Tigelino ou seja representar Nero como algueacutem incapaz ateacute mesmo de

melhorar a proacutepria cidade O propoacutesito eacute esvaziar qualquer meacuterito do imperador

figurando-o como um governante incapaz de ter boas iniciativas As coisas bem-

feitas por ele natildeo foram planejadas por ele mas por seu auxiliar que por

conseguinte controlava a ele e ao seu Impeacuterio Portanto aqui haacute um vigoroso

ataque poliacutetico ao princeps juntamente a uma tentativa de desmerecer o seu

programa arquitetocircnico ndash como bem resume Darwall-Smith760

a loacutegica foi voltar

o seu projeto contra ele mesmo761

754

De acordo com Ashby Platner (1929 p 533-534) e Coarelli (2007 p 186-187) as Thermae Titi foram inauguradas por Tito no ano 80 juntamente com o Anfiteatro Flaacutevio Elas ficavam bem

proacuteximas ao Anfiteatro e dentro do recinto da Domus Aurea de Nero ocupando uma aacuterea quase

retangular de cerca de 105 metros por 120 755

Die Musa quid agat Canius meus Rufus [] Titine thermis an lavatur Agrippae an impudici

balneo Tigillini (Mart 3201 15-16) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 215) 756

GRIFFIN 2001 p 81 757

Tac Ann 1451 15 371 758

Jos BJ 4491 759

MORDINE 2017 p 113 760 DARWALL-SMITH 1996 p 38 761

Cabe destacar aqui um evento referenciado por Marcial nos Epigrammata mesmo ele

pertencendo agrave nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ldquoDesde a morte de Nero os verdes frequentemente

vencem a corrida e ganham muitos precircmios Vaacute agora morrendo de inveja e diga que vocecirc cedeu

198

Passemos agora agrave anaacutelise dos episoacutedios contidos nas Siluae quais sejam o

conflito contra os partas o incecircndio de Roma e o assassinato de Agripina A

princiacutepio falemos do conflito Ele estaacute inserido em um encocircmio a Crispino por

ocasiatildeo de sua nomeaccedilatildeo como tribuno militar na idade precoce de 16 anos dois

anos antes do tempo esperado O poeta elogia a juventude e a ancestralidade do

jovem representada na figura do pai Veacutecio Bolano renomado general militar que

atuou como prococircnsul na Aacutesia ao lado de Domiacutecio Corbulatildeo durante o governo de

Nero Entre os objetivos da ode o que mais nos interessa eacute a apresentaccedilatildeo de

Bolano como um exemplum a ser seguido por Crispino762

Estaacutecio faz diversos

elogios ao general no intento de que seu filho siga seus passos

Pois no limiar da idade adulta seu pai abriu grandes precedentes para tua fama Ele ao entrar na juventude [] atacou Araxes com suas aljavas trazendo a guerra e a Armecircnia que natildeo podia ser ensinada a servir ao feroz Nero Corbulatildeo assumiu o papel principal na guerra rigorosa mas ele admirava

demais Bolano seu camarada na guerra e parceiro de seus trabalhos durante batalhas distintas [] Bolano [] buscava cumes que fossem adequados para acampamentos seguros avaliava o terreno abria caminhos nos bosques hostis [] cumpria todo o plano de seu reverenciado comandante e sozinho estava agrave altura de seus grandes comandos763

a Nero com certeza natildeo foi Nero que venceu mas os verdesrdquo Saepius ad palmarn prasinus post

fata Neronis pervenit et victor praemia plura refert i nunc livor edax dic te cessisse Neroni

vicit nirnirum non Nero sed prasinus (Mart 1133) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton Bailey (1993 p 33) De modo sucinto os

verdes os azuis os vermelhos e os brancos eram os ldquotimesrdquo que compunham as corridas de bigas

no Circus Maximus em Roma durante a Repuacuteblica e o Impeacuterio Em especial a rivalidade entre os

verdes e os azuis era intensa e mais tarde no seacuteculo VI eles se tornaram os times proeminentes

Os azuis representavam as categorias sociais mais altas e os verdes as baixas Os cocheiros que

em geral eram escravos ou libertos inscreviam-se nas competiccedilotildees porque o precircmio costumava

ser bastante atrativo Por exemplo em uma uacutenica corrida podiam ganhar diversos sacos de ouro

vindos tanto de apostas do puacuteblico quanto do apoio imperial Nero assim como Caliacutegula torcia

para os verdes e sempre demonstrava publicamente o seu apoio (CAMERON 1976 p 5-104) Apesar de tal apoio vemos no excerto a defesa de que natildeo era o princeps quem dava vitoacuterias aos

verdes mas os verdes quem as conquistavam Haacute uma clara sugestatildeo para natildeo se considerar tudo o

que era vinculado ao soberano como algo negativo pois algumas coisas poderiam natildeo estar

relacionadas a ele e nem dependerem do seu apoio ou financiamento Em suma Marcial estaacute

dizendo que uma coisa para ser muito boa natildeo precisava nem de Nero (nem de Tigelino) 762

BERNSTEIN 2007 p 183-185 763

sed enim tibi magna parabat ad titulos exempla pater quippe ille iuventam protinus

ingrediens pharetratum invasit Araxen belliger indocilemque fero servire Neroni Armeniam

rigidi summam Mavortis agebat Corbulo sed comitem belli sociumque laborum ille quoque

egregiis multum miratus in armis Bolanum atque illi curarum asperrima suetus credere

partirique metus quod tempus amicum fraudibus exserto quaenam bona tempora bello quae

suspecta fides aut quae fuga vera ferocis Armenii Bolanus iter praenosse timendum Bolanus

tutis iuga quaerere commoda castris metiri Bolanus agros aperire malignas torrentum

nemorumque moras tantamque verendi mentem implere ducis iussisque ingentibus unus

199

Em 61 Bolano foi enviado para a Armecircnia com a missatildeo de fazer com que

os partos se retirassem do territoacuterio romano cuja fronteira haviam cruzado

violando o acordo de paz entre ambas as potecircncias No trecho vemos que Estaacutecio

o retrata tanto como amigo de Corbulatildeo quanto como parceiro de trabalhos

durante os momentos difiacuteceis da guerra764

isto eacute como um general que sabia

desempenhar muito bem o seu papel evitando as rotas perigosas procurando

locais seguros para acampamentos e abrindo caminhos Segundo Vervaet a

exaltaccedilatildeo de Bolano feita pelo poeta apesar de exagerada revela que Corbulatildeo

de fato confiava no general e que este provavelmente ajudou-o a conquistar a

vitoacuteria na Armecircnia765

Cabe esclarecer que o conflito contra os partas eclodiu em

54 poucos meses apoacutes a ascensatildeo de Nero Na ocasiatildeo o princeps designou

Corbulatildeo para liderar a campanha contra os inimigos pois ele jaacute era um militar

bastante respeitado766

Depois de 12 anos de disputas Roma prevaleceu e o rei

estabelecido na Armecircnia Tiridates foi coroado pelas matildeos de Nero na Vrbs em

66 Para Barrett Fantham e Yardley isso significa que a Armecircnia foi ldquo[] o

grande sucesso da lsquopoliacutetica externarsquo do Principado de Nero []rdquo a qual lhe rendeu

a saudaccedilatildeo de Imperator pelos pretorianos767

Contudo tal vitoacuteria natildeo parece ter

sido conquistada de forma faacutecil porquanto Estaacutecio afirma que a Armecircnia ldquonatildeo

podia ser ensinada a servir ao feroz Nerordquo ndash ou seja era um oponente indoacutecil e

irredutiacutevel ateacute mesmo para o selvagem soberano A ecircnfase na ferocidade do

imperador pode ser entendida como um elogio ao seu modo agressivo de lidar

com os assuntos externos um elogio agrave sua boa administraccedilatildeo inicial e ao seu

comando eficiente das proviacutencias que mantinha o Impeacuterio fortalecido Ao mesmo

tempo acreditamos que o poeta atribui essa boa administraccedilatildeo natildeo a Nero mas a

seus auxiliares Bolano e Corbulatildeo768

Inclusive Estaacutecio diz que Corbulatildeo

assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo Nesse sentido o jovem princeps soacute

prevaleceu sob os partas porque escolheu sabiamente seus generais Eacute uma

desvalorizaccedilatildeo clara da sua capacidade de ter iniciativa algo jaacute feito por Marcial

sufficere (Stat Silv 5230-46) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 291) 764

VERVAET 2003 p 448 765

VERVAET 2003 p 439 766

Para uma biografia de Corbulatildeo cf SYME 1970 p 27-39 767

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 81 Imperator era um termo usado para se

referir ao princeps ou a um comandante militar indicando seu triunfo (GRIFFIN 2001 p 222-

231) 768

GIBSON 2006 p 197

200

em relaccedilatildeo agraves termas Vale recordar que essa toacutepica da fraca atuaccedilatildeo militar eacute

muito aceita nos debates historiograacuteficos modernos sendo utilizada para construir

a imagem de Nero como um mau imperador Assim aqui compreendemos que o

poeta constroacutei um Nero antiprinceps que natildeo tem interesse e nem experiecircncia nas

lides beacutelicas Sua vitoacuteria ao final nunca foi propriamente sua

No tocante aos episoacutedios do incecircndio de Roma e do assassinato de

Agripina Estaacutecio os referencia dentro de uma ode a Polla Argentaacuteria viuacuteva de

Lucano No poema eacute feita uma extensa homenagem ao falecido poeta naquele

que seria o dia do seu aniversaacuterio Leiamos

Venham para a festa de aniversaacuterio de Lucano [] Fluam mais

abundantemente os riachos poeacuteticos e sejam mais verdes brilhantes oacute bosques de Aoacutenia e se em algum lugar sua sombra se abriu e recebeu a luz do sol deixe guirlandas suaves preencherem a sala [] Sobre Lucano noacutes cantamos mantenha silecircncio sagrado este eacute o vosso dia Musas guardai silecircncio enquanto aquele que vos tornou gloriosas nas duas artes [] eacute honrado como o sumo sacerdote do coro romano [] Ainda como um bebecirc receacutem-nascido ele engatinhou e com as

primeiras palavras docemente choramingou e Caliacuteope769 o levou para seu seio amoroso Entatildeo ela [] disse ldquo[] na tenra juventude deves praticar tua pena em Heitor e nas carruagens da Tessaacutelia e no ouro suplicante do rei Priacuteamo e desbloquearaacutes as moradas do inferno o ingrato Nero e o proacuteprio Orfeu770 seratildeo vistos por ti nos teatros Deves contar como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Roma Oacute crime oacute

crime mais hediondordquo [] Ela falou isso enquanto afastava as laacutegrimas Mas tu [] olha para a terra e ri dos sepulcros [] tu visita o Taacutertaro e ouve de longe as chicotadas do culpado e vecirc Nero paacutelido agrave vista da tocha de sua matildee esteja presente em esplendor brilhante e uma vez que Polla te chama ganhe um dia eu imploro aos deuses do mundo silencioso estaacute aberta aquela porta para os maridos voltarem para suas noivas771

769

ldquoUma das Musas [] A partir da eacutepoca alexandrina eacute-lhe atribuiacutedo como seu domiacutenio a poesia

liacutericardquo (GRIMAL 2005 p 71) 770

Orfeu era filho de Caliacuteope e do deus Apolo Ele era o cantor por excelecircncia o muacutesico e o poeta

Tocava lira e ciacutetara instrumento cuja invenccedilatildeo lhe eacute atribuiacuteda ldquo[] Sabia cantar melodias tatildeo

suaves que ateacute as feras o seguiam as aacutervores e as plantas se inclinavam na sua direccedilatildeo e os

homens mais rudes se acalmavamrdquo (GRIMAL 2005 p 340-341) 771

Lucani proprium diem frequentet [] docti largius evagentur amnes et plus Aoniae virete

silvae et si qua patet aut diem recepit sertis mollibus expleatur umbra [] Lucanum

canimus favete linguis vestra est ista dies favete Musae dum qui vos geminas tulit per artes

et vinctae pede vocis et solutae Romani colitur chori sacerdos [] Natum protinus atque

humum per ipsam primo murmure dulce vagientem blando Calliope sinu recepit turn primum

posito remissa luctu longos Orplieos exuit dolores et dixit ldquo[] ac primum teneris adhuc in

annis ludes Hectora Thessalosque currus et supplex Priami potentis aurum et sedes reserabis

inferorum ingratus Nero dulcibus theatris et noster tibi proferetur Orpheus dices culminibus

Remi vagantis infandos domini nocentis ignes mdash o dirum scelus o scelus mdash tacebisrdquo sic fata

est leviterque decidentes abrasit lacrimas nitente plectro At tu seu rapidum poli per axem

201

Estaacutecio evoca a memoacuteria de Lucano ao mesmo tempo em que condena

Nero A ocasiatildeo do aniversaacuterio do falecido poeta eacute acompanhada pelo lamento do

seu fim prematuro e consequentemente pela condenaccedilatildeo daquele que privou a

Terra dos talentos do jovem prodiacutegio Estaacutecio retrata Caliacuteope carregando o receacutem-

nascido Lucano nos braccedilos e prevendo o futuro brilhante do poeta A Musa entatildeo

chora a morte iminente do seu protegido o silenciamento da sua voz poeacutetica

qualificando-o como ldquocrime hediondordquo772

Tal expressatildeo a nosso ver atribui ao

princeps as caracteriacutesticas de um tirano representando-o como cruel feroz e

impiedoso Inclusive eacute sob esse retrato de tirano cruel que o imperador aparece

nos versos de Marcial ldquoAh cruel Nero natildeo poderia haver morte mais odiada

[]rdquo773

O uso do vocaacutebulo crudelis pelo epigramista tambeacutem marca a coloraccedilatildeo

tiracircnica de Nero Notemos que no intento de glorificar a memoacuteria de Lucano

Estaacutecio e Marcial mantiveram silecircncio sobre a causa da sua morte (no caso seu

envolvimento na Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo) Ao fazer isto Lefebvre defende que eles

privaram o ato do princeps de qualquer possiacutevel justificativa dando ao soberano a

imagem perturbadora de um tirano cruel774

Embora a morte de Lucano natildeo componha nossa seleccedilatildeo de episoacutedios ela

eacute importante porque eacute dentro do cenaacuterio do Nero cruel que satildeo citados o incecircndio

da Vrbs e o assassinato de Agripina No caso do primeiro a passagem mostra

Caliacuteope profetizando a Lucano que durante sua trajetoacuteria poeacutetica ele ldquocontaria

como os fogos iacutempios do monarca culpado alcanccedilaram os montes de Romardquo Aiacute

temos uma alusatildeo ao poema lucaniano perdido De Incendio Vrbis no qual

supostamente o incecircndio foi descrito Para Champlin as palavras domini nocentis

constituem uma acusaccedilatildeo clara contra Nero e eacute bem provaacutevel que o De Incendio

Vrbis jaacute trouxesse essa acusaccedilatildeo Estaacutecio nesse sentido estaria apenas

parafraseando Lucano775

Esse argumento tambeacutem eacute sustentado por Ahl que

acredita fortemente que Estaacutecio estaria se referindo ao poema Claro eacute possiacutevel

Famae cuiribus arduis levatus qua surgunt aniniae potentiores terras despicis et sepulcra

rides [] noscis Tartaron et procul nocentum audis verbera pallidumque visa matris lampade

respicis Neronem adsis lucidus et vocante Polla unum quaeso diem deos silentum exores

solet hoc patere limen ad nuptas redeuntibus maritis (Stat Silv 271-123) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Mozley (1928 p 129-137) 772

MALAMUDE 2014 p 12-14 NEWLANDS 2002 p 44 773

Nero crudelis nullaque invisior umbra debuit hoc saltem non licuisse tibi (Mart 721) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Shackleton

Bailey (1993 p 93) 774

LEFEBVRE 2017 p 67-68 775

CHAMPLIN 2005 p 320

202

que Lucano tenha descrito o fogo em termos muito mais neutros e que Estaacutecio

tenha incluiacutedo as opiniotildees poliacuteticas de sua proacutepria eacutepoca Isso poreacutem natildeo diminui

a importacircncia do trecho tanto Lucano quanto Estaacutecio acreditavam na

responsabilidade do princeps pelo fogo Afinal como alega Ahl se Estaacutecio natildeo

concordasse com Lucano ele natildeo teria citado o incecircndio ou a obra perdida776

A

crenccedila em comum mostra que jaacute circulava a ideia no final do primeiro seacuteculo da

responsabilidade do Nero incendiaacuterio no incidente E claramente essa crenccedila

estava sendo transmitida por aqueles que buscavam obter favores do regime atual

Deve ser enfatizado lembra Barrett que estamos falando de uma crenccedila na culpa

informal de Nero ao inveacutes de uma culpa real Apesar de toda a difamaccedilatildeo os

imperadores Flavianos nunca o culparam oficialmente pelo incecircndio777

Dando continuidade no excerto Estaacutecio diz que o falecido Lucano desce

do ceacuteu e visita o Taacutertaro (mundo dos mortos) Laacute encontra o culpado Nero que

paacutelido contempla a matildee com uma tocha nas matildeos Vejamos que o poeta coloca

Agripina jaacute morta e assombrando o filho sem nos dar detalhes sobre como o

assassinato aconteceu e sem sequer mencionar o naufraacutegio Ainda assim um

aspecto valoroso dessa descriccedilatildeo eacute a alusatildeo a alguns elementos da Octauia Na

trageacutedia Pseudo-Secircneca conta que no dia do casamento de Nero com Popeia o

fantasma de Agripina retornou do Taacutertaro portando uma tocha e profetizou a

morte do filho778

Nas Siluae Estaacutecio apresenta Nero jaacute morto e vendo a matildee ou

seja a profecia de Agripina cumprira-se Ademais na Octauia a matrona pede a

uma das Eriacutenias vingativas que prepare uma ldquomorte digna para o iacutempio tiranordquo779

Lembremo-nos de que as Eriacutenias ou Fuacuterias ldquo[] eram espiacuteritos do inferno que

vingavam mortes aterrorizavam eou amaldiccediloavam os indiviacuteduosrdquo780

Nesse

sentido entendemos que Marcial estaacute associando Agripina a uma Eriacutenia pois ela

persegue o filho no inferno ela ficara tatildeo ressentida com a crueldade de Nero e

com seu assassinato que viera atraacutes dele para aterrorizaacute-lo781

No final das contas

ela estaacute castigando-o pelos males promovidos em vida pelo fato de ele ter sido

um Nero matricida Esse tipo de visatildeo do universo dos mortos conecta-se muito

776

AHL 1976 p 341-342 777

BARRETT 2020 p 122-124 778

[Sen] Oct 593-620 779

[Sen] Oct 619-620 780

GRIMAL 2005 p 146-147 781

CHAMPLIN 2005 p 294

203

bem com a Apocolocyntosis de Secircneca em especial com a pena recebida por

Claacuteudio de ser escravo de Caliacutegula e jogar dados com uma caixa de dados furada

por toda a eternidade782

A correspondecircncia entre as Siluae e a Octauia nos leva a refletir ainda

sobre trecircs questotildees A primeira Estaacutecio de igual modo a Marcial foi leitor de

Pseudo-Secircneca o que mostra que a Octauia natildeo soacute iniciou o processo de

difamaccedilatildeo de Nero como tambeacutem se transformou em uma referecircncia literaacuteria da

tradiccedilatildeo negativa Dietrich defende a influecircncia da Octauia na redaccedilatildeo de

Estaacutecio783

A segunda o registro sutil da tocha indica um conhecimento profundo

da Octauia ou de outras fontes comuns por parte de Estaacutecio e da sua audiecircncia o

que fazia com que o poeta esperasse do seu puacuteblico o entendimento da alusatildeo

Natildeo nos esqueccedilamos de que os versos de Estaacutecio sempre possuiacuteam um

destinataacuterio logo a menccedilatildeo era reservada a um grupo especiacutefico E por fim a

terceira questatildeo se o poeta esperava que o grupo entendesse a alusatildeo eacute porque o

grupo jaacute conhecia a histoacuteria do matriciacutedio por isso o delito natildeo precisava ser

minuciado Em outras palavras Nero jaacute era conhecido por muitos como um Nero

matricida Tal informaccedilatildeo fica evidente tambeacutem nos escritos de Josefo em que a

omissatildeo de detalhes eacute justificada com a afirmaccedilatildeo de que os crimes jaacute eram ldquobem

conhecidos por todosrdquo e ldquodescritos por um grande nuacutemero de autoresrdquo784

Chegamos a um ponto portanto em que o Nero matricida se consolidou como

um elemento primordial da memoacuteria imperial

Em suma no decorrer da investigaccedilatildeo do Liber Spectaculorum dos

Epigrammata e das Siluae constatamos cinco das nossas categorias de anaacutelise 1)

Nero antiprinceps referente ao conflito com os partas 2) Nero matricida

vinculada ao assassinato de Agripina 3) Nero incendiaacuterio ligada ao incecircndio de

Roma 4 e 5) Nero construtor e Nero vaidoso atreladas agrave construccedilatildeo da Domus

Aurea Das cinco a do Nero matricida foi a mais presente aparecendo nos

escritos de Marcial e Estaacutecio Nos do primeiro surgiu de forma ambiacutegua pois ao

mesmo tempo em que houve a condenaccedilatildeo do imperador pelo homiciacutedio houve a

sugestatildeo de que Agripina merecia morrer nos do segundo por outro lado

emergiu inserida em um castigo haja vista que o princeps foi representado morto

782

Sen Apoc 145 151-2 783

DIETRICH 2015 p 310 784

Jos BJ 492

204

no Taacutertaro contemplando a matildee com uma tocha nas matildeos Por sua vez a

categoria Nero antiprinceps apareceu pela primeira vez estando associada agrave falta

de iniciativa do soberano nos conflitos contra a Armecircnia Por uacuteltimo a categoria

Nero construtor despontou juntamente agrave do Nero vaidoso sendo avaliadas a partir

da ambivalecircncia puacuteblico x privado Marcial enfatizou a diferenccedila do Principado

de Nero em relaccedilatildeo ao de Tito mostrando que este uacuteltimo se preocupava em

edificar espaccedilos para o usufruto comum ao passo que o primeiro soacute pensava no

seu Palaacutecio privado

Vimos tambeacutem que para elaborarem seus argumentos ambos os autores

utilizaram elementos da Octauia Marcial usou o naufraacutegio e Estaacutecio usou o

fantasma de Agripina portando a tocha o que nos leva a propor duas questotildees 1)

o Nero matricida eacute o Nero da Octauia e 2) o Nero matricida consolidou-se dentro

da tradiccedilatildeo negativa Observamos ainda que as categorias Nero antiprinceps e

Nero incendiaacuterio foram referenciadas somente por Estaacutecio estando esta uacuteltima

pautada em possiacuteveis criacuteticas a Nero contidas em uma obra lucaniana perdida o

De Incendio Vrbis Nesse ponto houve uma alusatildeo agrave Apocolocyntosis e ao castigo

de Claacuteudio Ao seu turno as categorias Nero construtor e Nero vaidoso foram

mencionadas apenas por Marcial por meio das suas experiecircncias cotidianas na

Roma de Nero x na Roma dos Flaacutevios Portanto a inuentio feita por Marcial e

Estaacutecio perpassou a seleccedilatildeo de obras e de argumentos muito mais hostis ao

soberano do que elogiosos Apesar de terem lido relatos positivos ndash a exemplo da

leitura da Apocolocyntosis por Estaacutecio ndash e vivido coisas positivas ndash como as

termas frequentadas por Marcial ndash preferiram fortalecer a grade negativa de

leitura sobre o imperador priorizando o ponto de vista flaviano Nas palavras de

Faversani cada autor se apegou a uma forma de desenhar Nero ldquo[] que melhor

se ajustasse a suas convicccedilotildees poliacuteticas para atacar seu adversaacuteriordquo785

A representaccedilatildeo de Nero entatildeo dependeu do interesse dos autores que

transportaram as informaccedilotildees sobre ele e que estavam disponiacuteveis naquele

momento histoacuterico Eacute assim que uma representaccedilatildeo se constitui como algo

verossiacutemil atraveacutes de um longo processo allelopoieacutetico de apropriaccedilatildeo e

reapropriaccedilatildeo Trata-se de um processo que segundo Hausteiner Huhnholz e

Walter gera uma transformaccedilatildeo histoacuterica e uma ecircnfase em determinados

785

FAVERSANI 2020 p 382

205

elementos em prol de outros786

Como ilustraccedilatildeo a ascensatildeo do princeps agora

seja prodigiosa seja infausta jaacute natildeo eacute mais lembrada A culpa de Nero no

matriciacutedio vincula-se agrave personalidade detestaacutevel de Agripina agrave construccedilatildeo da

Domus Aurea a seus iacutempetos egoiacutestas

Como destacamos o uso dos diversos episoacutedios envolvendo Nero e a

valecircncia positiva ou negativa que se daacute a eles vatildeo se alterando com o passar do

tempo A retomada de tais episoacutedios permite a eles que sejam cada vez mais

conhecidos e atraiam a atenccedilatildeo dos autores para seu uso pois se tornam

proverbiais A mera menccedilatildeo a Nero e a uma ou duas palavras que admitam a

raacutepida identificaccedilatildeo do episoacutedio especiacutefico a que se faz menccedilatildeo eacute o que passa a

ocorrer Isso tem um poder retoacuterico enorme por ser sinteacutetico e carregar uma

enargeia uma vivacidade para o discurso E ademais gera um ciclo interessante

quanto mais se fala do princeps mais conhecido ele se torna mais reconheciacuteveis

se tornam os episoacutedios ligados a ele e mais ricos se tornam o repertoacuterio e a sua

possibilidade de novos usos

Aleacutem disso cremos ser possiacutevel jaacute perceber a partir da anaacutelise desse

corpus textual que Nero progressivamente vai deixando de ser relevante por

aquilo que foi no passado para se tornar um personagem da tradiccedilatildeo construiacutedo

em muacuteltiplas temporalidades (que se constroem mutuamente por allelopoiesis)

Por esse mecanismo ele faz parte do seu tempo assim como de alguma maneira

eacute contemporacircneo de outras temporalidades podendo ressurgir a qualquer

momento como elemento a ser usado para compreender o que eacute um mau

imperador um tirano um construtor megalomaniacuteaco um destruidor incendiaacuterio

um familiar violento um artista mediacuteocre e ciumento ou qualquer outra faceta

construiacuteda para Nero nessa tradiccedilatildeo Tal processo como vimos inicia-se sob os

Flaacutevios e embora supere os limites desta tese parece-nos seguir acontecendo ateacute

os dias atuais sem pistas de interrupccedilatildeo

Em conclusatildeo faz-se necessaacuterio ainda o apontamento de algumas

consideraccedilotildees Em primeiro lugar os episoacutedios da vida de Nero apareceram nas

obras de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o Velho Flaacutevio Josefo Marcial e Estaacutecio sob as

seguintes ocorrecircncias i) assassinato de Agripina (seis vezes ndash em todas as obras)

ii) incecircndio de Roma (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e nas Siluae)

786

HAUSTEINER HUHNHOLZ WALTER 2010 p 14

206

iii) construccedilatildeo da Domus Aurea (trecircs vezes ndash na Octauia na Naturalis Historia e

no Liber Spectaculorum) iv) assassinato de Britacircnico (trecircs vezes ndash na Octauia no

Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) v) assassinato de Otaacutevia (trecircs

vezes ndash na Octauia no Bellum Judaicum e nas Antiquitates Judaicae) vi)

ascensatildeo de Nero (duas vezes ndash na Octauia e nas Antiquitates Judaicae) vii)

suiciacutedio de Nero (duas vezes ndash no Bellum Judaicum e nas Silvae) viii) casamento

com Popeia (uma vez ndash na Octauia) ix) nascimento de Nero (uma vez ndash na

Naturalis Historia) x) conflito com os partas (uma vez ndash nas Siluae) xi) visita de

Tiridates agrave Urbs (uma vez ndash na Naturalis Historia) xii) revolta de Vindex (uma

vez ndash no Bellum Judaicum) xiii) conspiraccedilatildeo de Pisatildeo (uma vez ndash no Bellum

Judaicum) Em segundo lugar as ocorrecircncias mais frequentes nos revelam que

durante o governo dos Flaacutevios alguns episoacutedios passaram a constituir a tradiccedilatildeo

negativa compondo a imagem negativa do Nero matricida do Nero incendiaacuterio

do Nero construtor do Nero fratricida e do Nero uxoricida Em terceiro as

ocorrecircncias menos frequentes sinalizam que momentos nunca antes valorizados

da vida do soberano como o conflito com os partas a revolta de Vindex e a

conspiraccedilatildeo de Pisatildeo comeccedilaram a surgir nas fontes embora natildeo sejam ainda

referecircncias fortes para a tradiccedilatildeo negativa Em quarto e uacuteltimo lugar se

colocarmos todas as ocorrecircncias daqui em comparaccedilatildeo com as do capiacutetulo

anterior verificaremos que os Neros satildeo demasiadamente distintos Laacute tiacutenhamos

praticamente soacute Neros prodigiosos agora praticamente soacute temos Neros infaustos

Como sabemos isso tem relaccedilatildeo direta com os contextos sob os quais os Neros

foram produzidos No seu governo existiam sujeitos interessados em elogiaacute-lo e

em bajulaacute-lo aleacutem tambeacutem de haver o perigo de criticaacute-lo publicamente No

governo dos Flavianos existe o projeto de poder pautado no ataque agrave sua

memoacuteria cuja finalidade eacute a legitimaccedilatildeo dinaacutestica Nessa transiccedilatildeo poliacutetica houve

uma mudanccedila na seleccedilatildeo dos episoacutedios por parte dos autores das fontes no

capiacutetulo anterior eles abordaram sobretudo a ascensatildeo do soberano e a

realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro dispostos nas categorias Nero prodigioso e Nero

construtor aqui abordaram 12 episoacutedios enquadrados em 24 categorias O que

isso significa Que o Nero negativo estaacute se tornando mais complexo e elaborado

do que o positivo restando deste uacuteltimo apenas o louvor agraves suas construccedilotildees

puacuteblicas Eacute portanto um Nero totalmente novo transformado com um pequeno

207

resquiacutecio do velho Mas seraacute que ele permaneceraacute assim Vejamos as fontes do

proacuteximo capiacutetulo

208

Capiacutetulo 4 Nero consolidado (97-235)

Este capiacutetulo examinaraacute a forma Nero consolidado que englobaraacute o final

da dinastia Flaviana ateacute o governo dos Severos (97-235) Nosso propoacutesito eacute

analisar os episoacutedios da vida do soberano contidos nos Annales no De Vita

Caesarum e na Historia Romana a fim de compreendermos de que maneira esse

novo contexto poliacutetico influenciou na consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa

sobre Nero e seu governo Hoje essas trecircs fontes satildeo as que nos oferecem a

descriccedilatildeo mais completa detalhada e conhecida de boa parte do Principado de

Nero Isso significa que a maior parcela das representaccedilotildees existentes sobre o

soberano proveacutem dos relatos de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio como mostramos

no primeiro capiacutetulo da tese Assim qualquer pessoa que queira estudar os

retratos de Nero precisa necessariamente ler (e analisar) os textos desses autores

Eacute o que faremos a partir de agora

No capiacutetulo anterior vimos que a segunda dinastia imperial romana

assumiu o poder no ano 69 com a ascensatildeo de Vespasiano e o deixou em 96

com o assassinato de Domiciano Entre ambos Tito governou por um periacuteodo

curto de dois anos (79-81) ainda que tenha atuado como co-regente de seu pai por

um periacuteodo mais longo787

Um dos elementos centrais da legitimaccedilatildeo desses

governantes foi a difamaccedilatildeo da imagem de Nero Paralelamente operou-se uma

obliteraccedilatildeo da sua memoacuteria no espaccedilo fiacutesico da cidade de Roma realizada a partir

da reconfiguraccedilatildeo de alguns edifiacutecios puacuteblicos e da publicaccedilatildeo de obras literaacuterias

que o representavam por exemplo como tirano cruel matricida e incendiaacuterio788

Com o assassinato de Domiciano Roma passou para as matildeos da dinastia

Antonina composta por sete imperadores Nerva (96-98) Trajano (98-117)

Adriano (117-138) Antonino Pio (138-161) e Marco Aureacutelio (161-180) que

governou juntamente com Luacutecio Vero (161-169) e Cocircmodo (180-192)789

Durante

esses reinados isto eacute no seacuteculo II o Impeacuterio viveu um periacuteodo de relativa paz e

liberdade

As guerras foram reduzidas as proviacutencias desfrutaram de uma

consideraacutevel prosperidade o equiliacutebrio entre o poder civil e o militar foi

787

RODRIGUES 2020 p 111 788

TUCK 2016 p 110 ZISSOS 2016 p 7 789

Para mais informaccedilotildees a respeito dos imperadores Antoninos cf GRIFFIN 2000 p 84-194

209

garantido e uma poliacutetica interna de deferecircncia ao Senado foi empreendida790

Resumindo a vasta extensatildeo do Impeacuterio foi comandada por liacutederes prudentes

fato que contribuiu para a criaccedilatildeo da denominaccedilatildeo ldquoseacuteculo de ourordquo791

Em

especial o respeito ao Senado foi demasiadamente importante porque influenciou

no modo como os imperadores da eacutepoca ndash e tambeacutem os precedentes ndash foram

representados nas produccedilotildees literaacuterias As obras elaboradas nesse contexto como

a de Taacutecito e a de Suetocircnio utilizaram as criacuteticas aos liacutederes preteacuteritos ndash Tibeacuterio

Caliacutegula Nero e Domiciano ndash para louvar as gloacuterias da sua eacutepoca marcada pela

deferecircncia ao Senado Nesse sentido os amigos do Senado foram bem retratados

e os inimigos natildeo792

Eacute claro que cada obra trazia consigo os interesses dos seus

autores mas em geral a criacutetica se mantinha Por exemplo Taacutecito com sua

retoacuterica politicamente carregada criticou a consolidaccedilatildeo do poder imperial

ocorrida durante os Principados Juacutelio-Claacuteudianos vista por ele como a destruidora

da liberdade de expressatildeo e da autonomia do Senado793

Por sua vez Suetocircnio

com seu gosto pelos detalhes condenou os abusos de poder cometidos pelos

imperadores e os seus defeitos de caraacuteter794

Aos Antoninos sucederam os seis imperadores da dinastia Severa que

governaram o Impeacuterio de 193 a 235 Septiacutemio Severo (193-211) Geta (211)

Caracala (211-217) Macrino (217-218) Heliogaacutebalo (218-222) e Severo

Alexandre (222-235)795

Segundo Frighetto esse novo periacuteodo deve ser entendido

sob uma dupla oacutetica por um lado a da continuidade da era paciacutefica promovida

pelos Antoninos e por outro a do agravamento dos problemas militares que

marcavam o mundo romano haacute tempos Dentre os problemas o autor destaca a

ampliaccedilatildeo significativa do territoacuterio imperial a qual resultou no aumento das

invasotildees e no crescimento dos gastos com o exeacutercito Para resolvecirc-los os Severos

790

Durante muito tempo os estudiosos identificaram a dinastia dos Antoninos como a idade de

aacutepice do sistema poliacutetico imperial a idade de paz total Mas no ano 2000 Purcell (2000 p 421)

apresentou um argumento contraacuterio a tal consenso vigente Ele afimou que a paz total eacute uma ideia

enganosa pois a violecircncia permaneceu tanto no campo quanto na cidade Mesmo em Roma onde

os horrores da guerra eram teoricamente distantes o imperador e as pessoas envolviam-se com a

guerra Os espetaacuteculos aludiam agrave guerra ateacute mesmo os jogos nas tabernas eram simulacros de

conflitos Por fim o autor defende tambeacutem que a loacutegica da centralidade do poder dependia do

direito de conquista 791

GIBBON 1989 p 87 GRIMAL 2008 p 103 MENDES 2006 p 46-47 792

GAIA 2020 p 178 GUNDERSON 2017 p 335 793

BENARIO 2012 p 113 MORFORD 1990 p 1599 794

RIVES 2007 p 15-16 795

Sobre a dinastia Severa cf CAMPBELL 2005 p 1-27

210

nomearam mais de um Augusto na tentativa de manter uma presenccedila vigilante no

Impeacuterio aumentaram a concessatildeo da cidadania romana no intuito de

maximizarem a arrecadaccedilatildeo de impostos e a manutenccedilatildeo do exeacutercito e

fortaleceram a aceitaccedilatildeo do princeps pelos soldados oferecendo a eles

determinados benefiacutecios796

Ou seja realizaram muitos gastos militares os quais

consequentemente diminuiacuteram agrave atenccedilatildeo voltada agrave publicaccedilatildeo de obras literaacuterias

ndash situaccedilatildeo que hoje aliaacutes limita nosso conhecimento acerca desse periacuteodo

histoacuterico As fontes comeccedilaram a rarear e a se tornar cada vez mais escassas e as

poucas sobreviventes a exemplo da Historia Romana de Diatildeo Caacutessio tornaram-

se porta-vozes dos interesses senatoriais Dessa forma Diatildeo Caacutessio assim como

Taacutecito e Suetocircnio projetou seu retrato de Nero sob a oacutetica das esferas superiores

da sociedade romana sustentando a concepccedilatildeo de optimus princeps ndash a ideia de

que o soberano deveria ser a encarnaccedilatildeo de virtudes como clementia e iustitia797

Explicaremos melhor as concepccedilotildees de cada um dos autores agrave medida que

adentrarmos no capiacutetulo O importante agora eacute apenas apontar que eles estiveram

inseridos em contextos especiacuteficos que interferiram diretamente na forma como

representaram Nero Tambeacutem eacute essencial evidenciar outra vez que Taacutecito

Suetocircnio e Diatildeo Caacutessio satildeo as figuras que nos oferecem os relatos mais completos

e famosos sobre Nero As histoacuterias inconcebiacuteveis de que o princeps matou a sua

matildee e a sua esposa incendiou Roma e cantou enquanto a cidade queimava satildeo

todas contadas por eles Essas histoacuterias foram transmitidas a noacutes de modo tatildeo

consistente que nunca nos permitiram pensar algo diferente e positivo sobre Nero

Natildeo eacute agrave toa que ele com frequecircncia eacute evocado negativamente na miacutedia Portanto

consideramos que se faz urgente compreender as muitas maneiras pelas quais

Nero foi recebido interpretado e reapropriado pois ao comprendecirc-las

enxergaremos os objetivos dos autores e tambeacutem os elementos das histoacuterias do

796

FRIGHETTO 2012 p 56-91 Muitos autores defenderam que os primeiros Severos foram os

responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de uma monarquia militar por buscarem apoio entre os elementos

militares para ascenderem e permanecerem no poder Essa noccedilatildeo poreacutem tem sido questionada por

autores modernos a exemplo de Gonccedilalves (2006 p 183) e Carrieacute e Rouselle (1999 p 72-75)

que acreditam que Septiacutemio Severo natildeo se baseou unicamente no militarismo De igual modo a

outros imperadores ele pautou sua posiccedilatildeo em um suporte militar mas tambeacutem reconheceu a

necessidade de acomodar os desejos das aristocracias romanas e provinciais 797

GOWING 1997 p 2564-2586

211

princeps que foram suprimidos eou mantidos forjando a imagem nefasta que

temos dele hoje798

Taacutecito Annales

Taacutecito eacute o primeiro autor a ser discutido Sobre sua vida possuiacutemos apenas

algumas informaccedilotildees advindas de suas proacuteprias obras e das cartas do seu amigo

Pliacutenio o Jovem Nem a data e nem o local do seu nascimento satildeo conhecidos e haacute

incertezas ateacute mesmo sobre o seu praenomen ndash se era Caio ou Puacuteblio799

De

qualquer forma predominam entre os estudiosos contemporacircneos as opiniotildees de

que seu nascimento ocorreu em 56 ou 57 na proviacutencia da Gaacutelia Narbonensis e de

que seu pai tenha sido o equestre Corneacutelio Taacutecito procurador da Gaacutelia Beacutelgica800

Eacute provaacutevel que Taacutecito em algum momento da sua juventude tenha ido para

Roma finalizar sua educaccedilatildeo combinando o estudo da retoacuterica com o atendimento

aos tribunais801

Suas primeiras magistraturas vieram durante o Principado de

Vespasiano no qual serviu aos vigintiviri e ao tribunato militar802

Em 77 casou

com a filha de Cneu Juacutelio Agriacutecola renomado cocircnsul fato que para Joly

impulsionou sua carreira puacuteblica803

Entre 79 e 81 no governo de Tito foi

nomeado questor804

e em 88 agrave eacutepoca do Principado de Domiciano tornou-se

pretor e membro do coleacutegio sacerdotal dos xv viri sacris faciundis805

Depois

disso assumiu algum cargo provincial pois ficou afastado de Roma de 89 a 93806

Taacutecito retornou agrave Vrbs apoacutes 97 ocupando o consulado nessa mesma data807

Nos

798

LEVI 1995 p 17-18 799

Essa duacutevida eacute fomentada pelas fontes recopiladas na posteridade Por exemplo Sidocircnio

Apolinaacuterio um bispo do seacuteculo V atribui a ele o praenomen Caio (Sid Ep 4141 222) Em

contrapartida o Coacutedice Mediceus I datado do seacuteculo IX concede a ele o praenomen Puacuteblio

Corneacutelio (SYME 1967 p 59) 800

MARTIN 1989 p 26 GRANT 1956 p 7 801

PAGAacuteN 2012 p 3 Walker (1960 p 162) aponta a possibilidade de Taacutecito ter sido aluno de

Quintiliano com quem aprendeu as artes da oratoacuteria e da eloquecircncia 802

BARRETT 2008 p x Entre os 18 e 20 anos de idade ldquo[] um senador comeccedilava sua carreira

como um dos vinte vigintiviri (literalmente lsquovinte varotildeesrsquo coleacutegio de magistrados responsaacuteveis por

funccedilotildees como manutenccedilatildeo das ruas e estradas policiamento cunhagem e litiacutegios judiciais) Em

seguida ele era designado para uma proviacutencia como comandante militar auxiliar de uma ou

tribuno de uma legiatildeordquo (CAMPOS 2013 p 64-65) 803

Tac Agric 97 JOLY 2004 p 38 804

Eacute a esse acontecimento que ele provavelmente alude quando afirma que sua dignitas foi

ldquoaumentada pelo imperador Titordquo (Tac Hist 11) 805

Tac Ann 11111 Os xv viri sacris faciundis eram um coleacutegio sacerdotal encarregado da

supervisatildeo da religiatildeo romana (MELLOR 2010 p 59) 806

Tac Agric 455 MARTIN 1989 p 28 807

Plin Ep 216

212

anos seguintes representou a proviacutencia da Aacutefrica em uma acusaccedilatildeo de extorsatildeo

contra seu ex-governador Maacuterio Prisco e foi prococircnsul na Aacutesia808

Natildeo sabemos

ao certo quando faleceu Eacute possiacutevel que tenha vivido ateacute os primeiros anos do

reinado de Adriano mas natildeo temos uma data precisa809

Em toda a sua vida Taacutecito escreveu cinco obras A primeira delas De Vita

Iulii Agricolae (Vida de Agriacutecola) foi publicada em 98 e narra a vida de seu sogro

Juacutelio Agriacutecola810

A segunda De Origine et Situm Germanorum (Germacircnia) foi

divulgada tambeacutem em 98 e descreve a geografia da Germacircnia assim como os

costumes as instituiccedilotildees e a cultura dos seus povos A terceira Dialogus de

Oratoribus (Diaacutelogo dos Oradores) sem data precisa de publicaccedilatildeo (102-107)

versa sobre o decliacutenio da eloquecircncia romana811

A quarta Historiae foi lanccedilada

entre 104 e 109 e aborda desde as guerras civis de 68-69 ateacute a morte de

Domiciano em 96812

Por fim a uacuteltima obra Annales dentre as que nos chegaram

foi redigida entre 115 e 120 e descreve os governos dos Juacutelio-Claudianos que

sucederam Augusto Infelizmente os Annales natildeo foram preservados em sua

totalidade sobrevivendo apenas os livros 1 a 4 o iniacutecio do livro 5 todo o 6

metade do 11 e do livro 12 ateacute a metade do 16 Ou seja temos o Principado de

Tibeacuterio os uacuteltimos anos do de Claacuteudio e parte do de Nero813

Tanto os Annales quanto as Historiae definiram Taacutecito como historiador

Haacute que se apresentar entatildeo o modo por meio do qual foi elaborada sua narrativa

Potter e Walker argumentam que ele utilizou uma gama variada de fontes desde

documentos puacuteblicos e privados (acta senatus acta diurna inscriccedilotildees diaacuterios e

biografias)814

ateacute testemunhos orais e obras de autores antigos a exemplo de

Saluacutestio Tito Liacutevio Secircneca Faacutebio Ruacutestico Cluacutevio Rufo entre outros815

Segundo

808

Plin Ep 211 A realizaccedilatildeo do proconsulado estaacute gravada em uma inscriccedilatildeo em Mylasa na Aacutesia Cf DOUBLET 1890 p 603-630 809

MARQUES 2012 p 90 Sobre a biografia de Taacutecito cf BIRLEY 2000 p 230-247 810

HUTTON PETERSON 1914 p 151-152 811

LUCE 1993 p 12 REZENDE 2014 p 17 Para uma discussatildeo acerca da decadecircncia da

eloquecircncia na passagem da Repuacuteblica para o Impeacuterio cf WALLACE-HADRILL 1996 p 284

VARELLA 2008 p 73-75 812

MOORE 1925 p x 813

MARQUES 2010 p 45-46 Para um comentaacuterio detalhado dos livros dos Annales cf

BENARIO 2012 p 104-116 814

ldquoActa significa lsquoas coisas que foram feitasrsquo e tem dois sentidos especializados e sobrepostos na

Histoacuteria romana um eacute diaacuterio o outro satildeo atos oficiais especialmente de um imperadorrdquo (OCD

2012 p 10) 815

POTTER 2012 p 128 WALKER 1960 p 143 Durante muito tempo foi aceito que Taacutecito

teria usado apenas uma fonte para redigir as Historiae e os Annales O principal proponente dessa

213

Woodman a anaacutelise feita por Taacutecito desses escritos foi bem diferente daquela

documental realizada pelos historiadores modernos816

Por exemplo em alguns

momentos ele usou expressotildees como ldquoeacute dito querdquo ldquomuitos autores relataramrdquo e

ldquofoi frequentemente relatadordquo sem se importar em verificar a autenticidade e a

procedecircncia das informaccedilotildees817

Tal atitude nos mostra que sua preocupaccedilatildeo natildeo

foi de construir um relato verdadeiramente criacutetico com a confrontaccedilatildeo de fontes

mas sim de expor o consenso acerca de determinado tema818

Aliaacutes eacute o que ele

mesmo afirma ldquovou seguir o consenso das fontes poreacutem no caso de darem

relatos divergentes os transmitirei sob os nomes dos proacuteprios escritoresrdquo819

Isso demonstra que Taacutecito lidou com o seu material e redigiu a sua

narrativa histoacuterica de acordo com a mentalidade do Mundo Antigo Woodman

sustenta que os gregos e os romanos definiam a escrita histoacuterica em termos de

oratoacuteria e poesia O termo grego historia na Antiguidade natildeo significava o que

hoje entendemos por uma disciplina acadecircmica820

Na Greacutecia antiga Aristoacuteteles

defendeu que a histoacuteria tinha ldquocerta afinidade com a poesiardquo podendo ser

considerada ldquouma espeacutecie de poema em prosardquo821

Tempos depois na Repuacuteblica

romana Ciacutecero alegou que a historia era ldquouma tarefa essencialmente oratoacuteriardquo e

no Impeacuterio Quintiliano declarou que era ldquomais como um poema em prosardquo822

Essas definiccedilotildees nos indicam que na Greacutecia e em Roma a oratoacuteria a poesia e a

histoacuteria eram consideradas atividades retoacutericas cada qual com um tipo de discurso

persuasivo823

Assim a narrativa construiacuteda por Taacutecito passa a fazer sentido seu

uso das fontes nada tinha a ver com a elaboraccedilatildeo de uma narrativa histoacuterica

precisa e sim com a composiccedilatildeo de um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo

literaacuteria dominante Griffin aponta que a verdadeira utilidade da histoacuteria para os

premissa era Philippe Fabia (1893) Hoje a teoria eacute refutada por diversos pesquisadores como

Boissier (1934 p 74-79) 816

WOODMAN 1988 p 176-177 817

Tac Ann 2402 1294 11341 675 1661 818

WOODMAN 2004 p xvii 819

nos consensum auctorum secuturi quae diversa prodiderint sub nominibus ipsorum trademus

(Tac Ann 13202) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 280) 820

Woodman (1988 p 78-116) eacute o principal estudioso a aprofundar a discussatildeo das relaccedilotildees entre

histoacuteria e retoacuterica nas obras taciteanas Adotaremos os seus argumentos por considerarmos que

servem bem ao estudo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero 821

Arist Poet 1451a936 822

Cic de Orat 21562-64 Quint Inst 10131 823

WOODMAN 2004 p xviii

214

historiadores gregos e romanos natildeo era fornecer um arquivo completo mas criar

um relato com ldquomais estilordquo que deleitasse os leitores824

O que de fato concernia agrave histoacuteria era ser magistra vitae (ldquomestra da

vidardquo) como escreveu Ciacutecero em De Oratore ldquo[] Que testemunha o passar dos

tempos lanccedila luz sobre a realidade daacute vida agrave lembranccedila e orientaccedilatildeo agrave existecircncia

humana e traz notiacutecias de tempos antigos []rdquo825

Agrave histoacuteria cabia ensinar por

exemplos de modo que um exemplo anterior agrave vida do leitor pudesse ser usado

como referecircncia para a conduta moral e ciacutevica Em suma a histoacuteria narraria o

passado ao mesmo tempo em que ensinaria o leitor a evitar os erros cometidos

pelos grandes homens

Foi com base em tal loacutegica que Taacutecito compocircs os Annales826

Ao relatar as

accedilotildees dos imperadores Juacutelio-Claudianos preocupou-se em apontar exemplos para

seus leitores827

Eacute assim aliaacutes que o governo e a vida de Nero satildeo descritos

atraveacutes da menccedilatildeo de acontecimentos ora positivos ora negativos Sem mais

delongas vejamos como ele fez isso na praacutetica Tratemos do nascimento de Nero

[] Nero teve uma filha com Popeia [] [e] chamou a crianccedila

de Augusta [] O parto foi em Acircncio onde o proacuteprio soberano havia nascido828

Quando ela [Agripina] consultou os caldeus sobre Nero eles responderam que ele seria o imperador e mataria sua matildee ldquoDeixe que me materdquo respondeu ela ldquocontanto que governerdquo829

Taacutecito nos daacute duas notiacutecias i) o nascimento de Nero ocorreu em Acircncio e

ii) Agripina consultou os astroacutelogos e eles lhe disseram que seu filho governaria e

a mataria Falemos da primeira notiacutecia Com ela o autor reporta um dado

824

GRIFFIN 2009 p 174-175 825

Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra vitae nuntia vetustatis

qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur (Cic de Orat 2936) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Sutton (1942 p 224) 826

MELLOR 2002 p 95 827

RYBERG 1942 p 397 828

Memmio Regulo et Verginio Rufo consulibus natam sibi ex Poppaea filiam Nero ultra mortale

gaudium accepit appelavitque Augustam dato et Poppaea eodem cognomento locus puerperio

colonia Antium fuit ubi ipse generatus erat (Tac Ann 15231) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 349) 829

nam consulenti super Nerone responderunt Chaldaei fore ut imperaret matremque occideret

atque illa ldquooccidatrdquo inquit ldquodum imperetrdquo (Tac Ann 1493) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308)

215

histoacuterico sem atribuir criteacuterio de julgamento O mesmo poreacutem natildeo acontece com

a segunda notiacutecia marcada pelo costume romano da pesquisa astroloacutegica

Segundo Maacutervaacutenyos a partir da consulta ao horoacutescopo de uma pessoa os

astroacutelogos tiravam conclusotildees a respeito de eventos posteriores agrave vida de um

indiviacuteduo e sobre seu caraacuteter830

Foi assim que Agripina descobriu o seu fado e o

de Nero ser assassinada e ter um filho matricida ndash ambos os destinos traacutegicos831

Relembremos que essa relaccedilatildeo entre o matriciacutedio e o nascimento do princeps jaacute

fora construiacuteda por Pliacutenio o Velho o qual disse que Agripina havia infligido ao

mundo e a si mesma uma maldiccedilatildeo venenosa (Nero)832

Taacutecito entatildeo ao

reutilizar a ideia e inserir o novo elemento astroloacutegico fortalece a visatildeo negativa

sobre a matrona e consolida a concepccedilatildeo de que uma mulher ruim soacute geraria um

Nero infausto Em outras palavras o novo item daacute ao historiador um poderoso

argumento para captar a atenccedilatildeo do seu leitor um matricida estava por vir833

Notemos ainda que Nero justifica o assassinato atribuindo a Agripina um

apetite descontrolado pelo poder Esse elemento que seraacute apontado em outros

trechos por Taacutecito eacute aqui recombinado com a desmedida de Nero Isso cria um

retrato que combina dois traccedilos gerados em momentos diferentes um no proacuteprio

principado de Nero e outro no posterior a sua morte Tal combinaccedilatildeo forma um

novo retrato de Nero o qual estaraacute presente em outras fontes dessa eacutepoca como

veremos adiante Contudo queremos desde jaacute destacar esse mecanismo que

coloca em um mesmo tempo a composiccedilatildeo de traccedilos originados em momentos e

em contextos diferentes um retrato natildeo uma descriccedilatildeo de um acontecimento

Depois do nascimento Taacutecito nos fornece poucas informaccedilotildees sobre a

infacircncia de Nero Sabemos que ele direcionou seu ldquoespiacuterito inquietordquo para

interesses variados esculpiu pintou cantou conduziu bigas e compocircs versos834

Percebemos tambeacutem que ele teve Secircneca como tutor835

presenciou o casamento

da matildee com o imperador Claacuteudio836

e foi adotado por este837

Sobre a adoccedilatildeo em

830

MAacuteRVAacuteNYO 2014 p 64-65 831

MARTIN 1983 p 71 832

Plin Nat 2246 833

KENNEDY 1994 p 4 834

Tac Ann 1331 835

Agripina convenceu Claacuteudio a trazer Secircneca de volta do exiacutelio (Tac Ann 1282) 836

Agrave eacutepoca o matrimocircnio foi considerado incesto por alguns senadores pois Claacuteudio e Agripina

eram tio e sobrinha (Tac Ann 122-7) Ginsburg (2006 p 116-120) explica que para os romanos

o incesto constituiacutea um ato imoral e violador da harmonia das relaccedilotildees humanas e divinas Apesar

216

especial o historiador nos diz que foi articulada por Agripina e por Pallas liberto

imperial de Claacuteudio e amante da matrona

[] Pallas [] insistia com Claacuteudio para este pensar no bem do Estado e fornecer proteccedilatildeo para Britacircnico em seus primeiros anos Ele citou o paralelo do deificado Augusto em cuja famiacutelia [] os enteados tiveram um papel proeminente e o caso de Tibeacuterio que teve seus proacuteprios filhos mas tambeacutem adotou

Germacircnico Ele disse a Claacuteudio que ele tambeacutem deveria se munir de um jovem que assumisse algumas de suas responsabilidades Convencido disso Claacuteudio colocou Domiacutecio [] agrave frente do proacuteprio filho fazendo um discurso no Senado [] Os eruditos observaram que aquela era a primeira adoccedilatildeo entre os patriacutecios da famiacutelia Claudiana [] Mesmo assim o imperador foi agradecido e a bajulaccedilatildeo de Domiacutecio foi

particularmente bem construiacuteda sendo aprovada uma lei que previa sua adoccedilatildeo pela famiacutelia Claudiana com o nome Nero838

Aqui eacute necessaacuterio comentar sobre duas questotildees A primeira a adoccedilatildeo eacute

descrita por Taacutecito como fruto sobretudo das ambiccedilotildees de um liberto e de

Agripina e natildeo como um desejo do proacuteprio Claacuteudio839

A atitude manipuladora de

ambos subjugou o imperador e o transformou em um liacuteder sem autoridade

Conforme Faversani e Mancini essa imagem do liacuteder submisso que concedia

liberdade exagerada aos subalternos jaacute circulava nas fontes contemporacircneas ao

governo de Claacuteudio840

Taacutecito entatildeo soacute reforccedilou algo que todos pareciam saber

Eacute essencial contudo esmiuccedilar a concepccedilatildeo negativa sobre Agripina ndash e

neste ponto entramos na segunda questatildeo Azevedo sustenta que o historiador

membro da elite senatorial considerava-a uma mulher transgressora do ideal de

da aprovaccedilatildeo do casamento pelo Senado o enlace deve ter contribuiacutedo para a edificaccedilatildeo do retrato

de Agripina como mulher incestuosa 837

A adoccedilatildeo exigiu uma dispensa teacutecnica da lei porque Claacuteudio jaacute tinha um filho Britacircnico

(BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 2) 838

C Antistio M Suillio consulibus adoptio in Domitium auctoritate Pallantis festinatur qui

obstrictus Agrippinae ut conciliator nuptiarum et mox stupro eius inligatus stimulabat Claudium

consuleret rei publicae Britannici pueritiam robore circumdaret sic apud divum Augustum

quamquam nepotibus subnixum viguisse privignos a Tiberio super propriam stirpem

Germanicum adsumptum se quoque accingeret iuvene partem curarum capessituro his evictus

triennio maiorem natu Domitium filio anteponit habita apud senatum oratione eundem in quem a

liberto acceperat modum adnotabant periti nullam antehac adoptionem inter patricios Claudios

reperiri eosque ab Atto Clauso continuos duravisse Ceterum actae principi grates quaesitiore in

Domitium adulatione rogataque lex qua in familiam Claudiam et nomen Neronis transiret (Tac

Ann 1225 261) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 246-247) 839

MELLOR 2010 p 134 SYME 1967 p 412 840

FAVERSANI MANCINI 2010 p 38 Por exemplo Secircneca na Apocolocyntosis debocha da

subserviecircncia claudiana aos libertos aos secretaacuterios e agraves mulheres (Sen Apoc 62)

217

matrona romana e usurpadora do poder masculino o que o fez representaacute-la a

partir do estereoacutetipo retoacuterico pejorativo da dux femina (ldquomulher comandanterdquo)

usado para caracterizar mulheres que ambicionavam exercer poder como homens

apropriando-se de uma autoridade que natildeo deveriam possuir Por oacutebvio tal

estereoacutetipo acabava recaindo sobre Claacuteudio que por natildeo conseguir controlar a

esposa era fraco e conivente com suas accedilotildees841

Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito recrimina

a ldquofalta de limitesrdquo e a ldquoambiccedilatildeo exageradardquo de Agripina842

ndash criacuteticas tambeacutem

divulgadas na Octauia e no Bellum Judaicum843

Apoacutes a adoccedilatildeo Taacutecito narra que Agripina demitiu centuriotildees e tribunos da

Guarda Pretoriana que pensava favorecer Britacircnico e persuadiu Claacuteudio a

substituiacute-los por Burro comandante do ldquomais alto caraacuteterrdquo e que saberia

reconhecer a quem devia sua posiccedilatildeo844

Em seguida ela fez Claacuteudio agilizar o

casamento de Nero e Otaacutevia ocorrido em 53845

O dia do enlace segundo o

historiador foi infeliz desde o iniacutecio equivalente a um funeral ldquoOtaacutevia [] foi

escoltada ateacute uma casa na qual soacute encontraria tristeza com seu pai sendo retirado

dela por envenenamento e seu irmatildeo [] imediatamente depoisrdquo846

Notemos que

o matrimocircnio eacute retratado de duas formas i) como uma manobra de Agripina e ii)

como um infortuacutenio para Otaacutevia Quanto agrave primeira consideramos que o interesse

da matrona residia no fato de a uniatildeo legitimar a adoccedilatildeo de Nero uma vez que

Otaacutevia pertencia agrave gens Juacutelia e Claacuteudia847

Mordine explica que as mulheres

imperiais sempre foram instrumentos de legitimidade estabelecendo e reforccedilando

o direito do princeps de governar Tal papel feminino de agente legitimador eacute

especialmente importante no caso de Nero pois Otaacutevia lhe asseguraria o lugar na

sucessatildeo de uma famiacutelia que ainda natildeo havia adotado ningueacutem848

Agripina dessa

forma soacute estava garantindo que seu filho ndash e natildeo Britacircnico ndash estivesse pronto

841

AZEVEDO 2012 p 86-87 p 133 Sobre a visatildeo taciteana de Agripina cf GINSBURG 2006

p 106-132 E sobre a visatildeo das mulheres em geral cf WALLACE 1991 p 3556-3574 842

Tac Ann 12572 843

[Sen] Oct 93 Jos BJ 2249 844

Tac Ann 12412 421 Taacutecito afirma que depois da adoccedilatildeo Britacircnico provocava Nero

chamando-o de Domiacutecio (Tac Ann 12413) 845

Tac Ann 12581 846

huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum

haberet erepto per venenum patre et statim fratre tum ancilla domina validior et Poppaea non

nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni exitio gravius (Tac Ann 14633) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 336) 847

GINSBURG 2006 p 30 FAVERSANI 2018 p 3 848

MORDINE 2013 p 107

218

quando a hora chegasse Em relaccedilatildeo ao casamento como um infortuacutenio Taacutecito

delineia um destino de anguacutestias para Otaacutevia ndash anguacutestias a propoacutesito jaacute citadas na

trageacutedia de Pseudo-Secircneca na qual a jovem lamentou ldquo[] Ai de mim desse

tirano beijar meu inimigordquo849

Portanto o historiador usou a narrativa do passado

para construir a imagem de uma Otaacutevia que eacute viacutetima dos intentos da madrasta

louca para botar as matildeos no poder e esposa infeliz do Nero infausto produto da

avidez materna

Eacute essencial comentar ainda que Taacutecito ao descrever os episoacutedios da

adoccedilatildeo e do casamento realizou allelopoiesis e inuentio Nesse sentido fortaleceu

o retrato de Agripina da mulher manipuladora e cruel (presente na Octauia) e ao

mesmo tempo erigiu um novo o da matrona que parecia ter interesses em

comandar o filho e o seu Principado A nosso ver esse novo retrato baseou-se na

visatildeo senatorial negativa do envolvimento de mulheres e de libertos nos assuntos

poliacuteticos Por serem considerados sujeitos desprovidos de legitimidade natildeo lhes

era permitido interferir nas demandas do Estado pois isso entre outras questotildees

evidenciava a desarmonia das relaccedilotildees existentes dentro e fora da domus e a

incapacidade imperial de manter a ordem850

Eacute por essa razatildeo que Taacutecito os

critica851

Em outros termos recrimina a influecircncia de Agripina e por

conseguinte o reflexo dela no caraacuteter e no governo de Nero

Tal influecircncia se torna muito mais notoacuteria quando a matrona comeccedila a

articular a ascensatildeo do filho Taacutecito relata que em 54 Agripina aproveitou a

peacutessima condiccedilatildeo de sauacutede de Claacuteudio para envenenaacute-lo com cogumelos Quando

o imperador estava prestes a morrer ela impediu Britacircnico e suas irmatildes Antocircnia e

Otaacutevia de tomarem uma atitude impedindo-os de saiacuterem dos seus quartos852

849

[] miserae mihi uultus tyranni iungere atque hosti oscula ([Sen] Oct 109-110) Traduccedilatildeo

de Gozo (2016 p 17) 850

AZEVEDO 2012 p 143 851

FUNARI GARRAFFONI 2016 p 125 852

Tac Ann 1266-68 Sobre o assassinato de Claacuteudio cf LEVICK 1990 p 69-80

219

Entatildeo ao meio dia do dia 13 de outubro as portas do palaacutecio

de repente se abriram Nero com Burro o acompanhando se dirigiu agrave coorte que [] estava em serviccedilo de guarda A mando do comandante ele foi aplaudido e colocado em uma liteira Dizem que alguns soldados hesitaram olhando em volta e perguntando onde estava Britacircnico mas natildeo havendo oposiccedilatildeo aceitaram aquele que lhes estava sendo oferecido Nero foi

carregado para o acampamento e apoacutes algumas palavras preliminares adequadas agrave ocasiatildeo prometeu donativos iguais aos que o seu pai Claacuteudio em outros tempos lhes dera e foi saudado como imperador A decisatildeo das tropas foi acatada pelo Senado e pelas proviacutencias A Claacuteudio foram votadas honras divinas e sua cerimocircnia fuacutenebre correspondeu agrave do deificado Augusto []853

Na narrativa percebemos que foram Agripina e Burro os grandes

planejadores da ascensatildeo Como vimos a matrona jaacute vinha preparando o caminho

haacute tempos casando o filho demitindo homens que favoreciam Britacircnico e

escolhendo Burro como Prefeito uacutenico da guarda pretoriana854

De acordo com

Mordine essa escolha demonstra claramente que ela tinha consciecircncia da

centralidade dos pretorianos na aclamaccedilatildeo imperial e que por isso precisava

controlaacute-los Poreacutem o autor acredita que ao dominaacute-los e colocar Burro agrave frente

do comando Agripina gera um problema para si mesma pois se mostra exemplo

do exagero feminino Isso significa que o feiticcedilo volta-se contra o feiticeiro O seu

sucesso inicial passaraacute a ser visto como uma busca desmedida pelo poder a qual

inclusive seraacute utilizada por Nero para justificar o matriciacutedio855

Nas palavras de

OrsquoGorman ldquoo sucesso da imperatriz em viver o suficiente para ver esta

culminaccedilatildeo tambeacutem eacute sua maior fraquezardquo856

Resumindo ela desenvolveu um

excelente esquema para dar o trono ao filho Nero agora era princeps soacute restava

saber se ele a suportaria

853

Tunc medio diei tertium ante Idus Octobris fortibus palatii repente diductis comitante Burro

Nero egreditur ad cohortem quae more militiae excubiis adest ibi monente praefecto faustis

vocibus exceptus inditur lecticae dubitavisse quosdam ferunt respectantis rogitantisque ubi

Britannicus esset mox nullo in diversum auctore quae offerebantur secuti sunt inlatusque castris

Nero et congruentia tempori praefatus promisso donativo ad exemplum paternae largitionis

imperator consalutatur sententiam militum secuta patrum consulta nec dubitatum est apud

provincias caelestesque honores Claudio decernuntur et funeris sollemne perinde ac divo Augusto

celebratur aemulante Agrippina proaviae Liviae magnificentiam (Tac Ann 1269) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008

p 268-269) 854

Tac Ann 12412 855

MORDINE 2013 p 110 Tac Ann 14111 856

OrsquoGORMAN 2006 p 132-133

220

Taacutecito prossegue seu relato dizendo que o jovem iniciou seu governo

demonstrando piedade filial e sobriedade Ele ofereceu um funeral magniacutefico a

Claacuteudio tecendo-lhe elogios a partir de um sofisticado discurso previamente

elaborado por Secircneca857

Na ocasiatildeo os idosos observaram que Nero era o

primeiro soberano a precisar da retoacuterica de outro homem pois Ceacutesar trazia

consigo grandes talentos e Augusto tinha a oratoacuteria apropriada a um imperador858

Encerrada a cerimocircnia fuacutenebre Nero entrou no Senado e delineou os contornos do

Principado vindouro natildeo haveria suborno sob o seu comando o Senado manteria

suas prerrogativas antigas as proviacutencias se dirigiriam aos tribunais dos cocircnsules

ele cuidaria do exeacutercito e conservaria os negoacutecios da sua domus separados dos

interesses da res publica859

O historiador afirma que por algum tempo Nero

cumpriu sua palavra e que Agripina o controlou em vaacuterias oportunidades860

O formato de Principado traccedilado por Nero com a cuidadosa divisatildeo de

competecircncias e de responsabilidades eacute proacuteximo do prescrito por Augusto Como

sabemos este soberano foi considerado o melhor dos imperadores detentor de

proeminentes virtudes romanas como pietas iustitia (justiccedila) e clementia Seu

governo era entendido como um paradigma de accedilotildees e condutas a serem imitadas

reverenciadas e aceitas A associaccedilatildeo com ele portanto ajudaria a criar consensos

acerca do novo imperador os quais por sua vez tornariam aceitaacutevel o

estabelecimento do novo Principado861

A ideia era reavivar o passado para tornaacute-

lo presente ou nos termos de Martins ldquotrazer agrave mente para trazer de voltardquo862

Eacute importante frisar que embora exista um tom elogioso aqui o historiador

critica sutilmente a falta de eloquentia do princeps863

A nosso ver ele insinua que

tanto os bons discursos quanto as boas iniciativas do Principado de Nero seriam

realizados por Secircneca e Burro864

Relembremos duas informaccedilotildees i) a leitura do

discurso no Senado aconteceu em 54 e o De Clementia foi elaborado na

passagem de 55 para 56 ndash ou seja agrave eacutepoca da ascensatildeo Secircneca jaacute trabalhava na

857

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 25 858

Tac Ann 133 859

Tac Ann 134 Taacutecito alega que Nero tambeacutem considerou fazer uma Reforma Fiscal e abolir a

vectigalia (impostos indiretos que incidiam sobre as mercadorias importadas e exportadas) mas

acabou sendo dissuadido por seus conselheiros (Tac Ann 13502-3) 860

Tac Ann 135 861

PRADO 2011 p 15-16 862

MARTINS 2011 p 151-152 863

O papel de Secircneca como compositor dos discursos de Nero aparece duas vezes nos Annales

(Tac Ann 13112 14113) 864

JONES 2000 p 455

221

obra em que delineou um programa de governo para Nero e ii) Taacutecito enxergava

Burro como um general detentor do ldquomais alto caraacuteterrdquo865

Isso indica que para

esse primeiro Nero estava sob o auxiacutelio de dois excelentes conselheiros e cada

um exerceria uma influecircncia positiva Burro traria austeridade Secircneca eloquecircncia

ndash e os dois juntos assegurar-se-iam de que as tentaccedilotildees do soberano

permaneceriam dentro dos ldquolimites da indulgecircncia permissiacutevelrdquo866

Essa eacute uma

ideia corrente diriacuteamos ateacute dominante na historiografia moderna a de que Nero

durante os anos iniciais do seu governo foi controlado por Secircneca e Burro Por

ser muito jovem entende-se que neste primeiro momento havia uma parceria

entre ambos para orientaacute-lo com Secircneca representando os interesses do Senado e

Burro os dos equestres867

Em uacuteltima anaacutelise cabe apontarmos as mudanccedilas e as permanecircncias

observadas nas representaccedilotildees da ascensatildeo neroniana Em primeiro lugar a ideia

da ascensatildeo positiva advinda das fontes contemporacircneas ao princeps manteve-se

Taacutecito reforccedilou os retratos contidos em Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo e Lucano (ao

que tudo indicava) o imperador traria seacuteculos felizes868

Isso mostra que ele

provavelmente teve contato com as obras desses autores e concordou com elas

Mas sua concordacircncia foi parcial pois o bom governo natildeo se pautava no fato de

Nero ser um Nero prodigioso por si mesmo mas no fato de Nero ser um Nero

prodigioso por ter bons conselheiros Em segundo a noccedilatildeo do controle de

Agripina mencionada apenas por Pseudo-Secircneca foi fortalecida Taacutecito reutilizou

certos elementos presentes na Octauia ndash os de que Agripina persuadiu Claacuteudio a

adotar Nero e a priorizaacute-lo na sucessatildeo ndash e os lapidou construindo a nova imagem

do Nero antiprinceps869

Pouco tempo apoacutes a ascensatildeo o princeps precisou lidar com o seu

primeiro inimigo nas fronteiras do Impeacuterio os partas Conforme Taacutecito o jovem

demorou a resolver o conflito tendo dificuldades em estabelecer uma poliacutetica

militar coerente No final de 54 os partas invadiram o territoacuterio da Armecircnia cujo

domiacutenio era romano atraveacutes de um rei-cliente

865

Tac Ann 12421 866

Tac Ann 1321 867

Essa concepccedilatildeo eacute criticada por FAVERSANI 2012 p 136 868

Sen Apoc 41 Calp Ecl 133-44 Luc 160-62 869

[Sen] Oct 139-154

222

Como resultado [] perguntas estavam sendo feitas ldquocomo um

imperador com apenas dezessete anos podia arcar com esse fardo ou evitar a crise Que apoio poderia se esperar de um

homem governado por uma mulherrdquo870

Enquanto essas e outras observaccedilotildees eram feitas Nero enviou para a

Armecircnia alguns reis-clientes e Corbulatildeo ndash general ldquointeligenterdquo e ldquorespeitadordquo ndash

esperando que eles recuperassem o controle da regiatildeo A nomeaccedilatildeo deste uacuteltimo eacute

retratada por Taacutecito como um ato imperial muito positivo por meio da afirmaccedilatildeo

de que as virtudes estavam retornando Entre 55 e 57 Corbulatildeo organizou suas

tropas e atacou o adversaacuterio Em 58 conquistou a rendiccedilatildeo de vaacuterias localidades

incluindo Artaxata capital da Armecircnia Por causa disso871

Nero foi saudado como Imperator [] e apoacutes um decreto

senatorial oraccedilotildees de agradecimento foram realizadas Estaacutetuas arcos triunfais e contiacutenuos consulados foram votados para o soberano []872

Em 61 o confronto irrompeu novamente e sua conduccedilatildeo foi entregue

outra vez a Corbulatildeo que preparou suas legiotildees e invadiu a Armecircnia Em 63

depois de inuacutemeros combates ele convenceu os irmatildeos Tiridates rei da Armecircnia

e Vologeso rei do Impeacuterio Parta a aceitarem um acordo os trecircs com os seus

respectivos exeacutercitos deveriam se encontrar em um local especiacutefico e Tiridates

reverenciaria as estaacutetuas de Nero fingindo ser coroado rei da Armecircnia pelo

princeps depois ele deveria ir pessoalmente ateacute agrave Vrbs jurar lealdade ao

soberano Em resposta a essas accedilotildees Corbulatildeo retiraria suas tropas da Armecircnia

Passados alguns dias os exeacutercitos se encontraram873

870

igitur in urbe sermonum avida quem ad modum princeps vix septem decem annos egressus

suscipere eam molem aut propulsare posset quod subsidium in eo qui a femina regeretur (Tac

Ann 1367) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 272-273) 871

Tac Ann 138-39 872

Ob haec consal[ut]atus imperator Nero et senatus consulto supplicationes habitae statuaeque

et arcus et continui consulatus principi utque inter festos referretur dies quo patrata victoria

(Tac Ann 13414) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 292) 873

Tac Ann 151-25

223

[] De um lado estava a cavalaria parta com os seus esquadrotildees e as suas insiacutegnias tribais do outro estavam as legiotildees romanas organizadas em colunas com aacuteguias brilhantes estandartes e representaccedilotildees dos deuses como em um templo No meio deles havia um tribunal que tinha uma cadeira curul e a cadeira tinha uma estaacutetua de Nero Tiridates foi adiante [] tirou o diadema da sua cabeccedila e colocou-o aos peacutes da imagem

feito que despertou emoccedilotildees profundas em todos os presentes []874

A narrativa de Taacutecito se encerra neste ponto devido agrave perda dos livros

finais dos Annales no processo de transmissatildeo Mas o relato que sobreviveu nos

permite realizar algumas reflexotildees Inicialmente o historiador constroacutei uma

relaccedilatildeo entre a pouca idade e a inexperiecircncia do princeps forjando a ideia de que

ele seria incapaz de resolver o conflito exitosamente De acordo com Johansson

esse eacute um retrato comum nos documentos redigidos pela elite romana e aqui haacute

tambeacutem o agravante do controle materno875

Depois o historiador demarca o

papel de Corbulatildeo na finalizaccedilatildeo dos embates Ao longo da narrativa as accedilotildees

deste satildeo detalhadas e acompanhadas por muitos elogios sendo a paz na Armecircnia

atribuiacuteda totalmente ao seu trabalho Assim Taacutecito ignora outros indiviacuteduos

essenciais no encerramento da guerra a exemplo dos reis-clientes Aristoacutebulo

Antiacuteoco Agripa e Soemo Gowing explica que os reis-clientes eram monarcas natildeo

romanos que em geral estabeleciam relaccedilotildees de amizade com Roma Sua funccedilatildeo

era atender agraves necessidades do Impeacuterio quando solicitados e em troca tinham

seu poder local assegurado Nas fronteiras eram eles muitas vezes que lidavam

com as invasotildees representando o poder pessoal do princeps876

Tais homens satildeo

citados por Taacutecito uma uacutenica vez algo intrigante haja vista que os reinos de

Aristoacutebulo e Antiacuteoco ficavam a poucas milhas da fronteira parta877

ndash ou seja eacute

pouco provaacutevel que eles natildeo tivessem participado das batalhas Nesse sentido

Barrett defende que a omissatildeo foi realizada natildeo porque o historiador natildeo soubesse

874

tum placuit Tiridaten ponere apud effigiem Caesaris insigne regium nec nisi manu Neronis

resumere et conloquium osculo finitum dein paucis diebus interiectis magna utrimque specie inde

eques compositus per turmas et insignibus patriis hinc agmina legionum stetere fulgentibus

aquilis signisque et simulacris deum in modum templi medio tribunal sedem curulem et sedes

effigiem Neronis sustinebat ad quam progressus Tiridates caesis ex more victimis (Tac Ann

15292-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 352-353) 875

JOHANSSON 2016 p 28 876

GOWING 1990 p 316 877

BARRETT 1979 p 469

224

dos fatos mas sim porque ele queria conceder meacuterito completo a Corbulatildeo A

seu ver o general era um homem virtuoso um modelo de comportamento a ser

seguido E a sua maior virtude para aleacutem da destreza militar era a moderatio

imprescindiacutevel a qualquer sujeito que quisesse sobreviver sob o Principado

Notemos que na passagem a gloacuteria da vitoacuteria eacute toda concedida a Nero mesmo o

comandante tendo sido o responsaacutevel por sua conquista Como sabemos durante

o Principado ningueacutem podia se sobressair em meacuteritos ao soberano se outro

homem alcanccedilasse notoriedade poderia ser visto como substituto do imperador e

correr risco de vida Corbulatildeo parecia estar ciente disso pois transferiu o

reconhecimento a Nero o qual foi saudado como imperator878

Resumindo para

Taacutecito a honra natildeo foi dada a quem de fato mereceu-a Nero eacute o mau governante

que aleacutem de natildeo se interessar pelos assuntos militares ignorava as virtudes dos

seus generais e se apossava das suas vitoacuterias879

Ainda sobre esse assunto Aguiar traz um apontamento importante

Decerto Corbulatildeo foi muito competente no comando do seu exeacutercito Poreacutem se

houve uma guerra vencida foi porque Nero tomou as decisotildees poliacuteticas

necessaacuterias para a resoluccedilatildeo dos conflitos Entatildeo de certa forma este uacuteltimo

tambeacutem foi o responsaacutevel pela vitoacuteria Natildeo queremos com isso desmerecer o

trabalho de Corbulatildeo mas mostrar que o soberano natildeo foi um Nero (tatildeo)

antiprinceps assim Precisamos estar atentos ao fato de que a escrita de Taacutecito foi

produzida por um historiador que manipulou a narrativa para alcanccedilar uma

finalidade criar a imagem negativa de Nero880

Os paralelos entre Nero e Corbulatildeo satildeo claros Taacutecito estaacute construindo dois

retratos que mais ou menos se repetem e reforccedilam-se tornando-se familiares para

sua audiecircncia Notemos que as fontes que analisaremos a seguir Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio daratildeo um tratamento muito diferente a Corbulatildeo Suetocircnio sequer o

mencionaraacute e Diatildeo Caacutessio natildeo daraacute ao general a centralidade e o tratamento

detalhado dispensado por Taacutecito Sendo assim o caso de Corbulatildeo torna evidente

de que natildeo eacute apenas cada eacutepoca que produz um novo Nero mas que eles satildeo

diversos e se comunicam de forma sincrocircnica e diacrocircnica

878

AGUIAR 2013 p 75-77 879

AGUIAR 2013 p 79 880

AGUIAR 2013 p 79 Para uma reflexatildeo a respeito da discussatildeo historiograacutefica atual relativa agrave

poliacutetica neroniana no Oriente cf AGUIAR 2014 p 75-80

225

Cabe falar ademais que depois de Estaacutecio essa foi a segunda vez que o

confronto com os partas aparece nas fontes Nas Silvae o poeta diz que Corbulatildeo

assumiu o ldquopapel principal na guerrardquo sugerindo que Roma soacute prevaleceu porque

Nero sabiamente escolheu o general881

Taacutecito reforccedila tal concepccedilatildeo nos

Annales erigindo o retrato de um princeps que natildeo sentia necessidade de estar agrave

frente das suas legiotildees As mudanccedilas de enquadramento e de composiccedilatildeo que vatildeo

sendo operadas para a construccedilatildeo dos retratos de Nero e dependem ndash como

esperamos estar ficando claro ndash do aproveitamento de todo o material jaacute

disponiacutevel anteriormente e conhecido por parte das audiecircncias

Depois de representar Nero como um governante desinteressado pelos

assuntos militares o historiador inicia a construccedilatildeo do retrato do Nero fratricida

Para tanto relata que Agripina viu sua influecircncia sobre o filho enfraquecer pois

ele se apaixonara por Acte uma liberta a quem passa a dedicar muito da sua

atenccedilatildeo A paixatildeo fora despertada porque o princeps abominava a sua esposa

Otaacutevia natildeo obstante a nobreza e a honra dela882

A priori a matrona ignora a

afeiccedilatildeo esperando que o filho se canse da relaccedilatildeo883

Mas a posteriori quando

nota que Acte cada vez mais ganhava autoridade sobre Nero passa a admoestaacute-

lo O problema alega Taacutecito eacute que quanto mais ela o recriminava mais acendia

nele a paixatildeo Entatildeo resolve mudar sua estrateacutegia comeccedila a dizer que Britacircnico

jaacute estava crescido e que o poder estava sendo exercido por um intruso adotado

graccedilas agraves manobras de Agripina Ela tambeacutem ameaccedila levar Britacircnico Secircneca e

Burro ateacute as coortes pretorianas e reclamar o ldquogoverno do mundordquo884

Preocupado

Nero trama um modo de retirar Britacircnico do seu caminho envenenando-o Assim

durante um banquete em 55

881

Stat Silv 535 882

Tac Ann 1312-15 883

Taacutecito fala que Agripina tentou chamar a atenccedilatildeo do filho convidando-o para a intimidade do

seu quarto Poreacutem o jovem natildeo se deixou enganar e seus mais iacutentimos amigos o advertiam para

ter cautela com os ardis de uma mulher atroz e falsa (Tac Ann 13132) 884

Tac Ann 13143

226

Britacircnico recebe uma bebida inoacutecua e tambeacutem muito quente

[] Entatildeo quando ele a recusa por causa da sua temperatura o veneno eacute adicionado em um pouco de aacutegua fria [e misturado agrave bebida] e espalha-se de forma tatildeo eficaz por todo o corpo do menino que ele perde a capacidade de falar e respirar Aqueles que estatildeo sentados ao seu redor alarmam-se e os imprudentes fogem mas os mais espertos permanecem em seus assentos

olhando para Nero Ele [] fingindo natildeo saber de nada observa que se trata de algo relacionado agrave epilepsia de Britacircnico sofrida por ele desde a infacircncia e que sua visatildeo e sentidos voltariam gradualmente Mas de Agripina [] vem um olhar fugaz de pacircnico e confusatildeo dando a entender que ela e [] Otaacutevia sabiam do ocorrido Ela estava comeccedilando a perceber [] que seu uacuteltimo apoio havia sido removido e que

um precedente tinha sido aberto para o assassinato de um membro da famiacutelia Otaacutevia tambeacutem apesar da tenra idade aprendera a esconder a dor o afeto e todas as suas emoccedilotildees E assim apoacutes um breve silecircncio a folia do banquete recomeccedila885

O corpo de Britacircnico eacute enterrado na mesma noite no Campus Martius sob

uma chuva torrencial que eacute interpretada pela plebe como um sinal de raiva divina

Nero conduz o funeral apressadamente argumentando que agora os senadores e

o povo deveriam apoiaacute-lo mais pois ele era o uacutenico sobrevivente de uma famiacutelia

nascida no poder886

Em geral no episoacutedio do fratriciacutedio percebemos que o

historiador desenha um princeps amedrontado pela ameaccedila materna da sua

ilegitimidade887

Esse aspecto bastante evidente na narrativa torna-se ainda mais

claro quando Taacutecito i) alega que Nero se irrita ao ver Britacircnico cantar nas

Saturnaacutelias sobre o roubo do seu direito de primogenitura e ii) quando diz que

885

Mos habebatur principum liberos cum ceteris idem aetatis nobilibus sedentes vesci in adspectu

propinquorum propria et parciore mensa illic epulante Britannico quia cibos potusque eius

delectus ex ministris gustu explorabat ne omitteretur institutum aut utriusque morte proderetur

scelus talis dolus repertus est innoxia adhuc ac praecalida et libata gustu potio traditur Britannico dein postquam fervore aspernabatur frigida in aqua adfunditur venenum quod ita

cunctos eius artus pervasit ut vox pariter et spiritus [eius] raperentur trepidatur a

circumsedentibus diffugiunt imprudentes at quibus altior intellectus resistunt defixi et Neronem

intuentes ille ut erat reclinis et nescio similis solitum ita ait per comitialem morbum quo prima

ab infantia adflictaretur Britannicus et redituros paulatim visus sensusque at Agrippina[e] is

pavor ea consternatio mentis quamvis vultu premeretur emicuit ut perinde ignaram fuisse

[quam] Octaviam sororem Britannici constiterit quippe sibi supremum auxilium ereptum et

parricidii exemplum intellegebat Octavia quoque quamvis rudibus annis dolorem caritatem

omnes adfectus abscondere didicerat ita post breve silentium repetita convivii laetitia (Tac Ann

1316) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 278) 886

Tac Ann 13173 Sobre a plausibilidade do envenenamento descrito por Taacutecito cf MARTIN

1999 p 75-85 887

SHOTTER 2008 p 12

227

Britacircnico era o ldquouacuteltimo vestiacutegio do sangue claudianordquo888

Portanto o historiador

representa Nero como um usurpador como o herdeiro indigno sublinhando sua

ascensatildeo irregular889

Vale lembrar contudo que esse tema do princeps ilegiacutetimo

natildeo eacute exclusivo dos Annales jaacute tendo sido referenciado na Octauia e no Bellum

Judaicum Tanto Pseudo-Secircneca quanto Flaacutevio Josefo citaram o caraacuteter usurpador

da adoccedilatildeo e da ascensatildeo de Nero890

Cientes disso eacute faacutecil compreender o retrato

taciteano Nero foi um liacuteder que alcanccedilou o poder de modo fraudulento ndash devido

agraves artimanhas de sua matildee ndash e Roma teria ficado melhor sem ele(s)

Precisamos tambeacutem discutir outro aspecto do fratriciacutedio Quando o

historiador descreve o banquete ele expotildee as reaccedilotildees dos presentes Por exemplo

anuncia que algumas pessoas se apavoraram e fugiram e que Agripina e Otaacutevia se

horrorizaram e esconderam esse sentimento A referecircncia a tais reaccedilotildees tem

ligaccedilatildeo direta com a dissimulatio Segundo Rudich o Principado trouxe consigo

uma dinacircmica cultural e social amplamente ilusoacuteria A natureza dicotocircmica do

regime ndash uma autocracia com uma aparecircncia republicana ndash criou uma seacuterie de

problemas de comunicaccedilatildeo poliacutetica pautada na ficccedilatildeo da parceria entre o Senado

e o imperador891

Isso resultou em termos de atitude e de comportamento na

criaccedilatildeo da dissimulatio meio dissidente de acomodaccedilatildeo agrave realidade Ou seja os

senadores fingiam viver sob uma Repuacuteblica na qual o poder do soberano natildeo era

superior ao deles e na qual eles possuiacuteam liberdade de iniciativa e o imperador

fingia natildeo ter um poder autocraacutetico Caso os senadores quisessem sobreviver

nunca poderiam mostrar publicamente seu descontentamento com essa situaccedilatildeo O

grande problema de acordo com Rudich eacute que tal fingimento deslocou-se da

esfera puacuteblica para a privada trazendo ambiguidades para todos os niacuteveis de

interaccedilatildeo pessoal com o princeps Inclusive trouxe ambiguidades ateacute para a

produccedilatildeo literaacuteria impossibilitando os escritores de se expressarem livremente892

Natildeo eacute agrave toa que Taacutecito proclama no prefaacutecio dos Annales

888

illum supremum Claudiorum sanguinem (Tac Ann 13172) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 278) 889

SCHUBERT 1998 p 287-440 890

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 891

WINTERLING 2009 p 1-5 892

RUDICH 1997 p 4

228

[] Natildeo faltaram mentes excelentes para registrar o periacuteodo

augustano ateacute que a onda de subserviecircncia os espantou As histoacuterias sobre Tibeacuterio Caliacutegula Claacuteudio e Nero foram distorcidas por causa do medo enquanto eles reinaram e quando morreram foram compostas com oacutedios ainda recentes893

Logo a alusatildeo ao comportamento de Agripina e de Otaacutevia revela que

Taacutecito enxergava Nero como um tirano cujas atitudes despertavam medo O fato

de as duas terem permanecido em silecircncio indica que elas sabiam dissimular para

sobreviver a um Nero fraticida e a um Nero cruel capaz de tratar um assassinato

com normalidade Desse modo concluiacutemos que na concepccedilatildeo de Taacutecito durante

o Principado o que se vecirc natildeo eacute real pois todos fingiam para sobreviver

A [] descriccedilatildeo [taciteana] eacute uma sobreposiccedilatildeo de visotildees possiacuteveis e incertas Cabe ao ouvinte treinar sua capacidade de ver muitas cenas onde existe uma Entre a cena que se vecirc e as muitas que se ocultam cabe a quem vecirc natildeo simplesmente ver

mas tambeacutem compor a cena O Principado natildeo admite testemunhas inocentes de seus acontecimentos [] Cabe ao leitor a indiscriccedilatildeo de ver o que a narrativa natildeo pode colocar diante dos olhos894

Em uacuteltima anaacutelise consideramos que o historiador ao descrever o

assassinato de Britacircnico retoma acusaccedilotildees feitas contra Nero pelas fontes

flavianas ndash como o caraacuteter usurpador da adoccedilatildeo e da ascensatildeo895

ndash e as divulga de

uma forma nova criando um Nero consciente da sua ilegitimidade e disposto a

tudo para assegurar a sua posiccedilatildeo896

Melhor dizendo Taacutecito elabora um novo

Nero com base em elementos comuns do passado erigindo um exemplum de liacuteder

autocrata que melhor se ajustava agrave sua compreensatildeo do Principado Isso nos leva a

perceber que os aspectos positivos de Nero vatildeo perdendo espaccedilo nos relatos e que

os negativos vatildeo se tornando cada vez mais destacados

893

sed veteris populi Romani prospera vel adversa claris scriptoribus memorata sunt

temporibusque Augusti dicendis non defuere decora ingenia donec gliscente adulatione

deterrerentur Tiberii Gaique et Claudii ac Neronis res florentibus ipsis ob metum falsae

postquam occiderant recentibus odiis compositae sunt (Tac Ann 112) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 3) 894

FAVERSANI 2015 p 52 895

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 896

Para uma discussatildeo complementar sobre o assassinato de Britacircnico cf MURGATROYD

2006 p 97-100

229

Dois anos depois em 57 Nero oferece os primeiros espetaacuteculos puacuteblicos

em Roma Sobre o feito Taacutecito escreve

No segundo consulado de Nero e Luacutecio Pisatildeo poucos eventos sucederam dignos de registro a menos que se deseje preencher paacuteginas com elogios aos alicerces e agraves traves que o imperador usou para erguer seu gigantesco anfiteatro no Campus Martius []897

Analisaremos esse episoacutedio em conjunto com os Juvenalia ocorridos em

59 apoacutes o assassinato de Agripina Acreditamos que a leitura contiacutegua

proporcionaraacute um entendimento mais completo do modo como Taacutecito elabora sua

representaccedilatildeo do Nero artista Falemos entatildeo do matriciacutedio898

O historiador

comenta que Nero em meio ao seu poder e ao seu novo amor por Popeia cria

coragem para articular o assassinato da matildee A grande instigadora do crime era

Popeia pois desejosa de se casar com o princeps e fazecirc-lo se divorciar de Otaacutevia

queria se livrar da matrona alegando que ela controlava o filho899

Conforme

Taacutecito a ideia para a execuccedilatildeo do homiciacutedio veio do liberto Aniceto que sugeriu

a construccedilatildeo de um navio desmontaacutevel do qual uma parte se abriria e lanccedilaria

Agripina ao mar Essa ideia logo agradou Nero porque ele sabia que ningueacutem

atribuiria a morte a algueacutem mas agrave conhecida inconstacircncia do mar900

Assim o

princeps chama a sua matildee para se juntar a ele em Baiacuteas Naacutepoles e oferece a ela

um enorme jantar Quando Agripina resolve partir de Baiacuteas Nero a acompanha e

despede-se dela com ternura901

Mas seu navio natildeo vai longe

897

Nerone iterum L Pisone consulibus pauca memoria digna evenere nisi cui libeat laudandis

fundamentis et trabibus quis molem amphitheatri apud campum Martis Caesar exstruxerat

volumina implere cum ex dignitate populi Romani repertum sit res inlustres annalibus talia diurnis urbis actis mandare (Tac Ann 13311) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 285-286) 898

Depois do fratriciacutedio a matrona desaparece da narrativa dos Annales voltando a surgir soacute

agora no iniacutecio do livro 14 Para Barrett Fantham e Yardley (2016 p 55) essa ausecircncia sugere

duas coisas i) que ela teve pouco contato com Nero apoacutes o assassinato de Britacircnico e ii) que

nesse intervalo ela natildeo desempenhou nenhum papel relevante na vida poliacutetica de Roma 899

Tac Ann 141 Taacutecito nos conta que Agripina vendo o amor de Nero por Popeia fica com

medo de ter a sua influecircncia diminuiacuteda Por isso ela tenta manter relaccedilotildees incestuosas com o filho

Essa afirmaccedilatildeo eacute feita pelo historiador com base nos relatos de dois autores Faacutebio Ruacutestico e

Cluacutevio Rufo O primeiro atribui os desejos incestuosos a Nero e o segundo a Agripina Taacutecito

obviamente concorda com o uacuteltimo sustentando que o passado da imperatriz era lascivo (Tac

Ann 1422) 900

Tac Ann 1433 901

Tac Ann 1444

230

Dois escravos domeacutesticos estavam com Agripina Crepereio

Galo [] e Acerrocircnia [] Entatildeo um sinal eacute dado o teto que cobre o local desaba [] e Crepereio eacute imediatamente esmagado Agripina e Acerrocircnia salvam-se debaixo das laterais da cama que se projetava acima delas [] [] A desintegraccedilatildeo do navio natildeo acontece [] Desse modo os marinheiros acham melhor jogar o peso para um lado e virar o navio mas natildeo

conseguem chegar a um consenso [] fazendo com que as viacutetimas caiam no mar A imprudente Acerrocircnia grita que era Agripina e que a matildee do imperador deveria ser socorrida e eacute espancada ateacute a morte com [] quaisquer instrumentos mariacutetimos que estivessem agrave matildeo [dos marinheiros] Agripina permanecendo em silecircncio diminui a chance de reconhecimento [] Nadando ela encontra alguns esquifes que

a levam ao lago Lucrino e de laacute eacute transportada para sua proacutepria vila902

Agripina ao chegar em casa entende o ocorrido e julga prudente fingir

natildeo saber de nada Ao ouvir sobre o salvamento Nero se preocupa declarando

que sua matildee a qualquer momento prepararia uma vinganccedila Entatildeo ele convoca

Secircneca e Burro para ajudaacute-lo e este uacuteltimo afirma que os pretorianos tinham

jurado lealdade agrave casa dos Ceacutesares e por isso natildeo matariam a matrona Aniceto

deveria terminar o que comeccedilou903

Assim

Aniceto isola a vila e arromba a porta Ele se livra dos escravos

encontrados em seu caminho ateacute chegar agrave porta do quarto [de Agripina] [] Ela diz logo que se ele vinha visitaacute-la anunciasse ao princeps que estava recuperada [] Os assassinos se colocam ao redor da cama e Aniceto assume a lideranccedila golpeando-a na cabeccedila com uma clava O centuriatildeo entatildeo desembainha sua espada para desferir o golpe mortal

ldquoGolpeia-me no ventrerdquo ela grita mostrando seu uacutetero E assim morre por feridas de espada904

902

nec multum erat progressa navis duobus e numero familiarium Agrippinam comitantibus ex

quis Crepereius Gallus haud procul gubernaculis adstabat Acerronia super pedes cubitantis reclinis paenitentiam filii et recuperatam matris gratiam per gaudium memorabat cum dato signo

ruere tectum loci multo plumbo grave pressusque Crepereius et statim exanimatus est Agrippina

et Acerronia eminentibus lecti parietibus ac forte validioribus quam ut oneri cederent protectae

sunt nec dissolutio navigii sequebatur turbatis omnibus et quod plerique ignari etiam conscios

impediebant visum dehinc remigibus unum in latus inclinare atque ita navem submergere sed

neque ipsis promptus in rem subitam consensus et alii contra nitentes dedere facultatem lenioris

in mare iactus verum Acerronia imprudentia dum se Agrippinam esse utque subveniretur matri

principis clamitat contis et remis et quae fors obtulerat navalibus telis conficitur Agrippina silens

eoque minus agnita (unum tamen vulnus umero excepit) nando deinde occursu lenunculorum

Lucrinum in lacum vecta villae suae infertur (Tac Ann 145) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 305-306) 903

Tac Ann 1461-71-2 904

Anicetus villam statione circumdat refractaque ianua obvios servorum abripit donec ad fores

cubiculi veniret cui pauci adstabant ceteris terrore inrumpentium exterritis cubiculo modicum

231

Agripina eacute cremada na mesma noite em um funeral insignificante anuncia

Taacutecito905

Os centuriotildees parabenizam Nero por escapar dos perigos da matildee e os

senadores decretam accedilotildees de graccedilas em todos os templos906

Daiacute em diante o

imperador se entrega agraves torpezas estendendo ldquoseus crimes por muitos anosrdquo907

Como pudemos ver Taacutecito representa Nero como um indiviacuteduo aacutevido por

eliminar a matildee devido ao seu controle exacerbado exercido por ela sobre si ndash

efetivado ateacute no acircmbito amoroso contra suas relaccedilotildees com Acte e Popeia Ou

seja o matriciacutedio eacute algo justificaacutevel pois o princeps natildeo a suportava mais Aliaacutes

parece que ningueacutem mais a suportava haja vista que o historiador pontua as

congratulaccedilotildees dadas pelos senadores e centuriotildees Agripina entatildeo ndash e natildeo apenas

o soberano ndash eacute alvo de criacutetica ela natildeo se conformava com o seu papel social

Barrett argumenta que ela provavelmente foi muito influente na poliacutetica romana

da sua eacutepoca sendo sua morte uma forma de os senadores revelarem aquilo que

natildeo estavam dispostos a tolerar Natildeo eacute agrave toa que nenhuma outra mulher teve

espaccedilo no meio poliacutetico por um seacuteculo e meio depois908

Mas apesar da

insatisfaccedilatildeo suscitada pelo controle de Agripina provavelmente ningueacutem pensou

que Nero seria tatildeo desumano a ponto de mandar assassinaacute-la Mesmo com a

justificativa apresentada o crime chocou a todos marcando negativamente ndash e

para sempre ndash a reputaccedilatildeo do imperador como um Nero matricida Desse modo

no final das contas a profecia dos caldeus se cumpriu ele reinou mas a matou909

Ainda sobre esse assunto Mellor nos chama a atenccedilatildeo para uma questatildeo

importante natildeo devemos nos esquecer de que o retrato de Agripina divulgado

nos Annales ndash e em outras fontes ndash estaacute cheio de poderosos estereoacutetipos retoacutericos

lumen inerat et ancillarum una magis ac magis anxia Agrippina quod nemo a filio ac ne Agermus

quidem aliam fore laetae rei faciem nunc solitudinem ac repentinos strepitus et extremi mali

indicia abeunte dehinc ancilla ldquotu quoque me deserisrdquo prolocuta respicit Anicetum trierarcho

Herculeio et Obarito centurione classiario comitatum ac si ad visendum venisset refotam nuntiaret sin facinus patraturus nihil se de filio credere non imperatum parricidium

circumsistunt lectum percussores et prior trierarchus fusti caput eius adflixit iam [in] morte[m]

centurioni ferrum destringenti protendens uterum ldquoventrem ferirdquo exclamavit multisque vulneribus

confecta est (Tac Ann 1482-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 307-308) 905

Taacutecito outra vez recorre a alguns autores (desta vez sem especificaacute-los) e escreve Nero ldquo[]

viu sua matildee depois de morta e louvou as belas formas do seu corpo haacute quem o afirme e quem o

neguerdquo Haec consensu produntur aspexeritne matrem exanimem Nero et formam corporis eius

laudaverit sunt qui tradiderint sunt qui abnuant (Tac Ann 1491) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 308) 906

Tac Ann 14101-2 907

Tac Ann 14132 908

BARRETT 2001 p 195 909

Tac Ann 1493

232

os quais precisam ser questionados Eacute possiacutevel que a competecircncia dela fosse real

afinal ela era temida por muitos indiviacuteduos inclusive por Claacuteudio e Nero A

aristocracia romana ateacute pode ldquo[] ter odiado as matriarcas imperiais mas o

Impeacuterio como um todo encontrou mais paz sob os Juacutelio-Claudianos [] com suas

mulheres extraordinariamente fortes []rdquo do que em qualquer outro momento910

Para aleacutem do retrato do Nero matricida consideramos que Taacutecito tambeacutem

constroacutei aqui o retrato do Nero artista Notemos que o delito eacute descrito de

maneira bem dramaacutetica o navio desmontaacutevel o desabamento do teto a morte da

escrava o nado de Agripina ateacute a praia e o golpe mortal no ventre Esses

elementos nos colocam em um universo artiacutestico sugerindo que o princeps

adorava viver a sua vida em um grande palco O objetivo de Taacutecito em

concordacircncia com Dominik foi criar uma apresentaccedilatildeo convincente das accedilotildees de

Nero Isso quer dizer que ele queria usar todos os argumentos possiacuteveis para

conferir ao imperador um peacutessimo (e provaacutevel) caraacuteter911

fato que se torna mais

notaacutevel quando nos lembramos de que os Annales foram escritos sob uma

sociedade na qual Taacutecito

[] desempenhava um papel significativo e natildeo precisava ser lembrado dos perigos que ameaccedilavam qualquer um que ofendesse [] o imperador Enquanto a tradiccedilatildeo romana [parecia] permitir que um satirista em verso [adotasse] uma persona para expressar as opiniotildees poliacuteticas um pouco

perigosas ou difamatoacuterias sem grandes medos de processo ou retaliaccedilatildeo a posiccedilatildeo de Taacutecito como um historiador era potencialmente menos segura [] [Logo] uma das suas estrateacutegias retoacutericas para expressar seus pontos de vista sem se comprometer com qualquer perspectiva eacute o uso da ecircnfase narrativa o arranjo das causas dos eventos histoacutericos e da motivaccedilatildeo possiacutevel por traacutes das accedilotildees dos vaacuterios personagens912

Para finalizarmos a discussatildeo sobre assassinato de Agripina julgamos

vaacutelido destacar mais duas questotildees A primeira eacute provaacutevel que apoacutes o matriciacutedio

a relaccedilatildeo entre Nero Secircneca e Burro tenha se enfraquecido pois os conselheiros

natildeo quiseram ajudar o jovem a finalizar o crime A segunda para redigir o

episoacutedio o historiador usa elementos da Octauia da Naturalis Historia e dos

910

MELLOR 2010 p 140 911

DOMINIK 2016 p 174 912

DOMINIK 2016 p 181

233

Epigrammata No caso da primeira fonte utiliza a noccedilatildeo de Nero como um liacuteder

que subjugou Roma a uma era decadente uma vez que eacute afirmado que Nero

estendeu seu reinado e crimes por muitos anos depois913

Das duas outras fontes

emprega a concepccedilatildeo de que Agripina mereceu o seu destino porquanto trouxe ao

mundo um governante ruim914

O empreacutestimo desses elementos mostra que os

traccedilos negativos do princeps estatildeo se tornando cada vez mais conectados entre as

narrativas e tambeacutem mais fortes As criacuteticas estatildeo se sucedendo no decorrer do

tempo consolidando a figura do matricida Natildeo podemos dizer se esse era o

objetivo central dos Annales mas com certeza Taacutecito reforccedila a constataccedilatildeo que

se construiu apoacutes o reinado de Nero a de que ele assassinou a matildee e o fez por

seus viacutecios de caraacuteter e natildeo para salvar o Estado (ainda que a criacutetica aos excessos

de Agripina se mantenha) Em outros termos ele por allelopoiesis pegou as

tradiccedilotildees interpretativas que o alcanccedilaram e concedeu a elas tons artiacutesticos

almejando que isso mudasse a forma como as pessoas se propunham a ver Nero

Depois da morte materna Nero comeccedila a dar mais expressatildeo puacuteblica a seu

entusiasmo pelas artes915

Secircneca e Burro inclusive deixam-no promover corridas

de bigas diante de um puacuteblico seleto916

Empolgado ele institui em 59 os jogos

Juvenalia celebrados provavelmente nos jardins da sua casa para os quais houve

inscriccedilotildees generalizadas

Nem o nascimento nobre nem as magistraturas do passado impediram algueacutem de representar um ator grego ou romano e

ateacute de imitar seus movimentos corporais pouco masculinos e sua muacutesica As matronas tambeacutem planejavam realizar desempenhos obscenos [] [] O resultado foi um aumento do comportamento degenerado e escandaloso e nunca nem nos tempos antigos de maior corrupccedilatildeo se viu maior depravaccedilatildeo do que aquela [] Finalmente o proacuteprio homem entrou no palco afinando cuidadosamente sua lira e se preparando [] Uma

coorte de soldados tambeacutem compareceu agrave apresentaccedilatildeo juntamente com centuriotildees tribunos e Burro que chorou e aplaudiu917

913

Tac Ann 132 914

Plin Nat 2246 Mart 463 915

Entusiasmo que jaacute vinha desde a sua infacircncia (Tac Ann 1331) 916

Tac Ann 14145 917

Ne tamen adhuc publico theatro dehonestaretur instituit ludos Iuvenalium vocabulo in quos

passim nomina data non nobilitas cuiquam non aetas aut acti honores impedimento quo minus

Graeci Latinive histrionis artem exercerent usque ad gestus modosque haud viriles quin et

feminae inlustres deformia meditari exstructaque apud nemus quod navali stagno circumposuit

Augustus conventicula et cauponae et posita veno inritamenta luxui dabantur stipes quas boni

234

A descriccedilatildeo dos Juvenalia e da construccedilatildeo do anfiteatro eacute formulada a

partir de dois argumentos centrais i) a corrupccedilatildeo dos costumes e da hierarquia

social e ii) a infacircmia de Nero Na passagem referente ao anfiteatro Taacutecito

assevera que a construccedilatildeo natildeo era digna de registro pois natildeo estava de acordo

com a ldquodignidade do povo romanordquo918

Ou seja para ele o edifiacutecio corrompera a

sociedade Entretanto Schulz comenta que em Roma a edificaccedilatildeo de preacutedios

puacuteblicos era esperada de um imperador uma vez que eles o ajudavam a promover

positivamente a sua imagem e a ganhar apoio sobretudo da plebe A construccedilatildeo

ligava-se agrave ideia de evergetismo praacutetica de conceder presentes agrave comunidade por

meio da constituiccedilatildeo de edifiacutecios da doaccedilatildeo de dinheiro do patrociacutenio de

espetaacuteculos entre outras atividades919

Nero levou tal praacutetica muito a seacuterio

embora Taacutecito natildeo reconheccedila isso Por exemplo Calpuacuternio Siacuteculo menciona o

luxo do anfiteatro erguido no Campus Martius920

E por que Taacutecito natildeo reconhece

a grandeza do edifiacutecio A nosso ver por causa da transgressatildeo social realizada por

Nero no local Sear explica que quando um evento ocorria em um anfiteatro toda

uma hierarquia social precisava ser mantida Como ilustraccedilatildeo para cada grupo

social era designado um assento especiacutefico e as apresentaccedilotildees eram restritas para

os atores e os cantores os quais em geral eram escravos ou libertos921

Eacute aiacute que

entra a criacutetica de Taacutecito O historiador anuncia que nos Juvenalia ndash sucedidos

dois anos depois da edificaccedilatildeo do anfiteatro ndash membros da elite e o proacuteprio

princeps se apresentaram Isso significa que apesar de ter planejado um preacutedio

magniacutefico Nero o usou para promover espetaacuteculos que desrespeitaram os status

sociais O resultado um ldquoaumento do comportamento degenerado e escandalosordquo

como defende Taacutecito Portanto os jogos satildeo representados como uma afronta agrave

honra da aristocracia e agrave dececircncia dos costumes922

A estrateacutegia usada pelo autor

foi se apropriar da imagem de um soberano generoso e propositor de preacutedios

necessitate intemperantes gloria consumerent inde gliscere flagitia et infamia nec ulla moribus

olim corruptis plus libidinum circumdedit quam illa conluvies vix artibus honestis pudor

retinetur nedum inter certamina vitiorum pudicitia aut modestia aut quicquam probi moris

reservaretur postremus ipse scaenam incedit multa cura temptans citharam et praemeditans

adsistentibus ph[on]ascis accesserat cohors militum centuriones tribunique et maerens Burrus ac

laudans (Tac Ann 14151-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 311) 918

Tac Ann 13311 919

SCHULZ 2019 p 70-138 920

Cal Ecl 723-56 921

SEAR 2006 p 2 922

Tac Ann 14152

235

luxuosos ndash exposta nas Eclogae ndash e transformaacute-la na imagem de um soberano

devasso e construtor de edifiacutecios imorais Em siacutentese Nero deixa de ser um

homem comprometido com a inovaccedilatildeo cultural (Nero prodigioso) para se tornar

um liacuteder comprometido com a licenciosidade (Nero antiprinceps e Nero artista)

Outro ponto precisa ser comentado aqui a ausecircncia de uma oposiccedilatildeo

expliacutecita por parte de Secircneca e Burro durante a realizaccedilatildeo da performance

neroniana Conforme Belchior e Devillers essa ausecircncia esteve vinculada ao

fenocircmeno da bajulaccedilatildeo atitude sintomaacutetica de uma sociedade em que o poder

centrava-se em um uacutenico indiviacuteduo923

Isso indica o fato de que os dois tutores ndash

de igual modo aos outros membros da elite romana ndash estavam inseridos em um

jogo de poder no qual muitas vezes ficar calado era essencial agrave sobrevivecircncia

Natildeo nos esqueccedilamos tambeacutem de que era a partir da bajulaccedilatildeo que os senadores e

os equestres adquiriam proeminecircncia magistraturas e honrarias Isso implica que

Secircneca e Burro se desejassem manter suas posiccedilotildees poliacuteticas e sociais natildeo

podiam dizer explicitamente aquilo que pensavam o que explica o aplauso

choroso de Burro

No ano seguinte em 60 o soberano continuou se dedicando aos seus

desejos artiacutesticos instituindo em Roma a primeira ediccedilatildeo dos Neronia festas

quinquenais aos moldes gregos

[] O resultado foi que qualquer coisa capaz de ser corrompida ou de causar corrupccedilatildeo estava agrave vista na cidade e os jovens

estavam se tornando decadentes com os modismos do exterior ndash visitando os ginaacutesios vagabundeando e entregando-se a casos de amor degradantes E o imperador e o Senado eram os responsaacuteveis natildeo apenas aprovavam tais viacutecios mas tambeacutem pressionavam os nobres romanos a se apresentarem no palco sob o pretexto de fazer discursos e poesia [] Os precircmios propostos para os oradores e para os poetas seriam um incentivo

ao talento e nenhum juiz acharia ofensivo emprestar seu ouvido a atividades intelectuais honradas e diversotildees legiacutetimas [] Ningueacutem levou o precircmio de oratoacuteria mas Nero foi declarado o vencedor924

923

BELCHIOR 2016 p 146-147 DEVILLERS 2012 p 174 924

[hellip] nulla cuiquam civium necessitate certandi ceterum abolitos paulatim patrios mores

funditus everti per accitam lasciviam ut quod usquam corrumpi et corrumpere queat in urbe

visatur degeneretque studiis externis iuventus gymnasia et otia et turpes amores exercendo

principe et senatu auctoribus qui non modo licentiam vitiis permiserint sed vim adhibeant [ut]

proceres Romani specie orationum et carminum scaena polluantur quid superesse nisi ut corpora

quoque nudent et caestus adsumant easque pugnas pro militia et armis meditentur an iustitiam

auctum iri et decurias equitum egregium iudicandi munus [melius] expleturos si fractos sonos et

236

Os espetaacuteculos foram uma inovaccedilatildeo em Roma com competiccedilotildees musicais

e de ginaacutestica925

Taacutecito atesta que a populaccedilatildeo manifestou-se positiva e

sobretudo negativamente com alguns afirmando que os gastos foram custeados

pelo princeps e outros falando que os paacutetrios costumes estavam decaiacutedos926

Em

relaccedilatildeo a esta uacuteltima declaraccedilatildeo vemos que eacute fortalecida a ideia da corrupccedilatildeo dos

costumes jaacute apresentada nos Juvenalia Nesse sentido o historiador assevera que

a devassidatildeo podia ser vista por toda a cidade e que o imperador juntamente com

os senadores pressionava os nobres a se apresentarem Tal imposiccedilatildeo eacute muito

demarcada por Taacutecito no excerto o que nos leva a considerar que a seu ver Nero

estava saindo do controle pois aqueles que o regulavam estavam mortos

(Agripina) ou com medo (Secircneca e Burro)

Mais um aspecto a ser destacado na passagem eacute a paixatildeo do soberano

pelas coisas gregas advinda tambeacutem desde os Juvenalia Griffin fornece algumas

explicaccedilotildees para tal sentimento i) as maiores influecircncias familiares sobre Nero o

seu avocirc Germacircnico e o seu tio Caliacutegula viveram na Greacutecia por certo tempo e em

aacutereas de forte influecircncia grega ii) o princeps era um visitante frequente de

Naacutepoles cidade de colonizaccedilatildeo grega que tradicionalmente proporcionava

relaxamento e entretenimento para os romanos e iii) ele encontrou na atitude

helecircnica frente agraves artes e espetaacuteculos um modelo de Principado que trazia uma

noccedilatildeo de monarquia divina927

Notemos que Taacutecito natildeo atribui um tom tatildeo nocivo

a essa paixatildeo mas apenas a aponta Mas Mratschek acredita que a pequena

menccedilatildeo revela seu intento de criticar a atitude imperial de diminuir a importacircncia

da cultura romana e aumentar a da grega ndash isto eacute Taacutecito estaacute insinuando que o

soberano prioriza os festivais e as celebraccedilotildees gregas ao inveacutes das romanas928

dulcedinem vocum perite audissent noctes quoque dedecori adiectas ne quod tempus pudori

relinquatur sed coetu promisco quod perditissimus quisque per diem concupiverit per tenebras

audeat [] oratorum ac vatum victorias incitamentum ingeniis adlaturas nec cuiquam iudici

grave aures studiis honestis et voluptatibus concessis impertire laetitiae magis quam lasciviae

dari paucas totius quinquennii noctes quibus tanta luce ignium nihil inlicitum occultari queat

sane nullo insigni dehonestamento id spectaculum transi[i]t ac ne modica quidem studia plebis

exarsere quid redditi quamquam scaenae pantomimi certaminibus sacris prohibebantur

eloquentiae primas nemo tulit sed victorem esse Caesarem pronuntiatum (Tac Ann 1520-21) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 313-314) 925

CHAMPLIN 2005 p 72 LEIGH 2017 p 24 926

Tac Ann 1520-21 927

GRIFFIN 2001 p 209-215 928

MRATSCHEK 2013 p 45-64

237

Cabe salientar igualmente que Nero natildeo se apresentou nos Neronia nem

mesmo para um puacuteblico seleto como fez nos Juvenalia ao que parece ele soacute

assistiu agraves performances Poreacutem Champlin defende que um resultado infeliz desse

natildeo envolvimento foi o surgimento da praacutetica de lhe conceder precircmios sob

qualquer pretexto Daiacute em diante todas as coroas por tocar lira de todas as

competiccedilotildees seratildeo ofereciadas a ele atitude que para o autor colocaraacute o Nero

artista no caminho de escolhas perigosas929

Um uacuteltimo aspecto eacute o crescente

domiacutenio do jovem imperador sobre as pessoas que realizavam performances no

palco controlando as apresentaccedilotildees de cidadatildeos respeitaacuteveis por meio de

ldquoconvitesrdquo Esse desejo manter-se-aacute na esfera do controle ateacute 64 quando passaraacute a

compor e a cantar suas proacuteprias composiccedilotildees publicamente

Encerrados os jogos o princeps teve que direcionar sua atenccedilatildeo para a

fronteira noroeste do Impeacuterio a fim de resolver os problemas na Britacircnia

Segundo Taacutecito essa rebeliatildeo trouxe uma peacutessima imagem puacuteblica para o

imperador As contendas comeccedilaram no ano 60 quando Prasutago rei iceniano

famoso por sua riqueza nomeia Nero e suas duas filhas como herdeiros pensando

que esse ato de subserviecircncia manteria o seu reino e a sua famiacutelia fora de perigo

Contudo o resultado foi o contraacuterio seu reino eacute saqueado por centuriotildees

romanos sua esposa Boudica eacute accediloitada e suas filhas estupradas Impelido por

esse ultraje Prasutago incita os bretotildees agrave revolta930

Entatildeo Nero solicita a

Suetocircnio Paulino governador da Britacircnia que organize as suas tropas e marche

sobre os inimigos em Londres Ao ver isso Boudica monta em uma carruagem e

profere um discurso para os seus soldados dizendo que vingaria a tortura do seu

corpo e a honra manchada das suas filhas Poreacutem os romanos prevalecem

eliminando quase 80 mil bretotildees Ao final do conflito em 61 Boudica se suicida

e Nero envia o liberto Policlito agrave Britacircnia no intuito de que ele pacifique de vez

a regiatildeo Ao chegar laacute Policlito vira motivo de piada pois os bretotildees natildeo estavam

familiarizados com o poder dos libertos Conforme Taacutecito eles tambeacutem ficaram

surpresos com o fato de que Paulino o general que havia vencido a guerra tivesse

que dar ouvidos a um ex-escravo931

929

CHAMPLIN 2005 p 73 930

Tac Ann 1431-37 931

Tac Ann 14391-3 Para os confrontos na Britacircnia cf DU TOIT 1977 149-158 ROBERTS

1988 p 118-132

238

Nesse relato destacaremos o envio de Policlito agrave Britacircnia O julgamento

de Taacutecito eacute muito claro aiacute a confianccedila imperial em um liberto para pacificar a

situaccedilatildeo expocircs os romanos e um comandante bem-sucedido agrave humilhaccedilatildeo

puacuteblica932

Ao colocar Policlito na cena o historiador critica a distorccedilatildeo da

hierarquia social realizada por Nero haja vista que aqueles que deveriam estar na

base da piracircmide estavam no topo933

Mellor argumenta que Taacutecito desprezava os

soberanos que colocavam os libertos acima dos senadores enxergando-os como

liacutederes fracos e viciosos Assim Nero eacute caracterizado como um antiprinceps

altamente controlado por aqueles que ele deveria controlar934

Apoacutes a resoluccedilatildeo de tais conflitos Taacutecito nos conta que as tribulaccedilotildees do

Estado ficavam a cada dia mais seacuterias tornando-se piores com a morte de Burro

no iniacutecio de 62935

Nas palavras do autor foi grande a saudade que dele teve

Roma tanto pela sua integridade quanto pela infacircmia do comandante que o

substituiu Tigelino um forte instigador dos viacutecios imperiais936

Sem Burro e

incapaz de contar com a guarda pretoriana Secircneca solicita um afastamento Ao ter

o pedido negado muda sua rotina fugindo das comitivas e das visitas e evitando

sair de casa sob o pretexto de problemas de sauacutede ou estudos937

Assim os

homens que aconselharam Nero desde o iniacutecio do seu governo isto eacute por mais de

oito anos afastam-se dando espaccedilo para o poder de Tigelino e as suas maacutes

qualidades crescerem diariamente938

Popeia aproveita desse novo clima para

convencer Nero a se divorciar de Otaacutevia (com a qual ele jaacute estava casado haacute mais

de nove anos) e a casar-se com ela que de acordo com Taacutecito vivia em Roma e

932

GRIFFIN 2001 p 230 933

SAILOR 2008 p 80 934

MELLOR 2010 p 100 935

Taacutecito comenta natildeo saber se a morte foi por doenccedila ou veneno ldquo[] que se tratava de doenccedila

foi deduzido pelo fato de que ele parou de respirar quando havia um inchaccedilo grande em sua garganta e sua traqueia estava fechada Algumas pessoas alegaram que seguindo as instruccedilotildees de

Nero aplicaram um veneno em sua garganta com o pretexto de ser um remeacutedio Burro disseram

percebeu o crime e quando o imperador veio visitaacute-lo desviou o olhar e em resposta agraves perguntas

de Nero disse apenas lsquoestou bemrsquordquo Sed gravescentibus in dies publicis malis subsidia

minuebantur concessitque vita Burrus incertum valetudine an veneno valetudo ex eo

coniectabatur quod in se tumescentibus paulatim faucibus et impedito meatu spiritum finiebat

plures iussu Neronis quasi remedium adhiberetur inlitum palatum eius noxio medicamine

adseverabant et Burrum intellecto scelere cum ad visendum eum princeps venisset adspectum

eius aversatum sciscitanti hactenus respondisse ldquoego me bene habeordquo (Tac Ann 14511) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 328-329) 936

Tac Ann 14512-3 937

Tac Ann 1453-56 938

Tac Ann 14571

239

era bonita lasciva e inteligente sempre direcionando seus afetos a homens muito

ricos Foi assim que se casou com o senador Otatildeo Ele por sua vez seduziu-a

pelo seu estilo de vida luxuoso e pelo fato de ser um amigo proacuteximo de Nero939

O

historiador fala que Otatildeo ficou tatildeo empolgado com a uniatildeo que passou a elogiar

demasiadamente a esposa na frente do imperador Logo natildeo demorou para ele

querer conhececirc-la Ao se encontrar com o princeps Popeia com uma fala doce e

ardilosa finge estar apaixonada mostrando que natildeo podia resistir-lhe Ao

conquistar Nero dizia que era casada e natildeo podia abandonar o marido Natildeo tardou

para o soberano se livrar de Otatildeo nomeando-o governador da proviacutencia da

Lusitacircnia940

Tempos depois Popeia persuade Nero a se casar com ela Para tanto

ela articula um plano induzir um dos familiares de Otaacutevia a acusaacute-la de adulteacuterio

com um escravo As escravas da imperatriz satildeo chamadas e todas defendem a

inocecircncia da ama941

Fracassado o plano Nero separa-se com as aparecircncias de um

divoacutercio legal dando agrave ex-esposa vaacuterios donativos e propriedades942

Sob

influecircncia de Popeia ele alega publicamente que Otaacutevia era esteacuteril e que ele

estava preocupado com o futuro do trono Tal seria a razatildeo da separaccedilatildeo Ao saber

do divoacutercio a plebe derruba as estaacutetuas de Popeia e enfeita as de Otaacutevia com

flores943

Popeia com medo de que a violecircncia puacuteblica provocasse uma mudanccedila

de atitude no amante chama Nero e lhe fala que se fosse do seu interesse deveria

trazer para casa a mulher que o controlava mas por sua proacutepria vontade e natildeo por

coaccedilatildeo Essa fala afirma Taacutecito apavora e irrita Nero que entatildeo decide que a

acusaccedilatildeo de adulteacuterio deveria ser mais bem planejada e feita por algueacutem a quem a

subversatildeo tambeacutem pudesse ser atribuiacuteda E para isso Aniceto parece uma boa

escolha Convocando-o Nero lhe diz que ele precisa admitir um adulteacuterio com

Otaacutevia pelo que caso o fizesse seria recompensado com grandes presentes

Aniceto faz a confissatildeo diante de amigos reunidos pelo imperador e eacute banido para

a Sardenha Em seguida o princeps envia Otaacutevia para a ilha de Pandataacuteria944

939

Popeia deixou Rufo Crispino um equestre para casar-se com Otatildeo (Tac Ann 13454) 940

Tac Ann 13463 941

Taacutecito alega que a pureza de Otaacutevia era tatildeo grande que nem sob tortura as criadas contaram

algo que pudesse prejudicaacute-la (Tac Ann 14601-2) 942

Tac Ann 14604 943

A destruiccedilatildeo das estaacutetuas de Popeia pela plebe eacute apontada na Octavia ([Sen] Oct 794-799) 944

Tac Ann 1460-62

240

[] Depois de alguns dias a ordem de morte eacute dada Ela eacute

acorrentada e suas veias satildeo abertas [] e porque o sangue [] fluiacutea muito devagar sua morte eacute apressada pelo vapor de um banho quente Segue-se um ato de selvageria ainda mais atroz sua cabeccedila eacute cortada e levada a Roma para que Popeia a visse945

Iniciaremos a anaacutelise dos episoacutedios a partir de um ponto defendido por

Barrett a submissatildeo de Nero a mulheres com personalidade forte A primeira foi

sua matildee Agripina que dominou avidamente o iniacutecio da sua vida e do seu governo

E a segunda foi Popeia sua amante e futura esposa Flaacutevio Josefo jaacute havia

apontado que ela era bela e detentora de poderes muito reais a exemplo da

determinaccedilatildeo da soltura de prisioneiros judeus946

Nos Annales sua influecircncia eacute

apresentada por meio da sugestatildeo de que ela instigou tanto o matriciacutedio947

quanto

o divoacutercio de Nero em relaccedilatildeo a Otaacutevia conseguindo despertar a paixatildeo no

soberano e garantir o envio de Otatildeo agrave Lusitacircnia Como jaacute dissemos a ambiccedilatildeo

dessas mulheres era vista pela elite romana como um problema grave pois

revelava que um imperador natildeo conseguia controlar sua domus ndash entidade maior

sobre a qual ele presidia948

E para Taacutecito Nero deixava a ambiccedilatildeo delas desafiar

as restriccedilotildees constitucionais dando espaccedilo para que produzissem intrigas Tal

visatildeo adveacutem da sua concepccedilatildeo de corrupccedilatildeo moral do Principado a qual fazia

com que as mulheres articulassem manobras infinitas visando a preservaccedilatildeo da

sua influecircncia sobre os soberanos Em outros termos Taacutecito acreditava que elas

eram capazes de mandar assassinar rivais apenas pelo medo de perderem suas

posiccedilotildees Tudo valia para assegurar a proximidade e a influecircncia sobre o princeps

Barrett argumenta que precisamos considerar o fato de que agraves vezes Nero se

sujeitava a elas natildeo porque era fraco mas sim porque achava que eram

945

At Nero praefectum in spem sociandae classis corruptum et incusatae paulo ante sterilitatis

oblitus abactos partus conscientia libidinum eaque sibi comperta edicto memorat insulaque

Pandateria Octaviam claudit non alia exul visentium oculos maiore misericordia adfecit

meminerant adhuc quidam Agrippinae a Tiberio recentior Iuliae memoria obversabatur a

Claudio pulsae sed illis robur aetatis adfuerat laeta aliqua viderant et praesentem saevitiam

melioris olim fortunae recordatione adlevabant huic primum nuptiarum dies loco funeris fuit

deductae in domum in qua nihil nisi luctuosum haberet erepto per venenum patre et statim fratre

tum ancilla domina validior et Poppaea non nisi in perniciem uxoris nupta postremo crimen omni

exitio gravius (Tac Ann 14641-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 334-337) 946

Jos Vit 3 947

Tac Ann 141 948

BARRETT 2017 p 63-76

241

inteligentes e tinham boas ideias949

O problema eacute que em algum momento ele

parecia se cansar das intromissotildees Natildeo agrave toa Taacutecito desenha o relacionamento

imperial com elas de modo ldquopsicologicamente complexordquo passando de um

estaacutegio inicial de subserviecircncia para antipatia e violecircncia brutal Havia um padratildeo

de comportamento a submissatildeo sempre desembocava em assassinato Logo o

destino de Popeia mais tarde seraacute o mesmo de Agripina950

Contudo o

assassinato de Otaacutevia natildeo pode ser inserido nessa loacutegica Desde o iniacutecio da sua

narrativa Taacutecito frisa que para ela o matrimocircnio com Nero foi algo funesto e que

o princeps a abominava apesar da (ou ateacute mesmo por) nobreza e honra dela951

Ou seja o historiador mostra que Nero nunca se subordinou agrave filha de Claacuteudio e

sim agrave ambiccedilatildeo de sua matildee que casou os dois com objetivos dinaacutesticos e agrave de

Popeia capaz de fazecirc-lo seguir adiante com acusaccedilotildees falsas

Outro ponto a ser destacado eacute que o princeps soacute se divorciou porque

aqueles que poderiam se opor estavam mortos (Burro e Agripina) ou afastados

(Secircneca) Essa oposiccedilatildeo estaria ligada ao fato de eles saberem que o casamento

com Otaacutevia era o elemento garantidor do trono a Nero o ldquoelo vital com

Claacuteudiordquo952

O divoacutercio entatildeo aumentaria o espectro de rivais e teria sua

legitimidade reduzida Para evitar ambos os cenaacuterios ele precisaria fazer duas

coisas i) eliminar os possiacuteveis rivais e ii) desonrar a imagem de Otaacutevia E ele

assim os fez revela Taacutecito No primeiro caso sancionou os assassinatos de

Rubeacutelio Plauto e Fausto Sula descendentes de Augusto953

E no segundo alegou

que Otaacutevia era esteacuteril e o havia traiacutedo inicialmente com um escravo e depois

com Aniceto Griffin sustenta que Nero sempre temeu a repercussatildeo puacuteblica da

sua separaccedilatildeo o que explicaria o generoso divoacutercio inicial E seus receios

materializaram-se haja vista que a plebe se mostrou bastante insatisfeita com a

decisatildeo Foi por isso que ele sob influecircncia de Popeia fortaleceu a acusaccedilatildeo de

adulteacuterio e envolveu Aniceto ele natildeo podia perder a legitimidade do seu governo

e nem o apoio da turba Na percepccedilatildeo de Griffin Popeia e Nero ficaram

alarmados e as consequecircncias de tais temores foram duras o banimento e a morte

949

BARRETT 2017 p 63-76 950

BARRETT 2017 p 63-76 951

Tac Ann 14633 952

GRIFFIN 2001 p 98-112 953

Tac Ann 1457-59

242

de Otaacutevia954

Como registra Scullard a liberdade de que o Senado gozara graccedilas a

Secircneca e Burro no iniacutecio do reinado estava agora perdida e Nero estava sendo

corrompido pelo poder desenfreado Ao oacutedio do Senado foi adicionado o do povo

de Roma955

Eacute curioso notar ainda que a descriccedilatildeo taciteana de Nero e da filha de

Claacuteudio eacute muito semelhante agrave de Pseudo-Secircneca o princeps eacute um tirano perverso

e movido pelas paixotildees e Otaacutevia eacute uma jovem impassiacutevel que lamenta seu

destino Isso indica que o historiador teve a Octavia como sua fonte primordial de

informaccedilotildees baseando-se no seu enredo traacutegico para montar os Annales A grande

diferenccedila eacute que na Octavia a personagem de Popeia natildeo eacute ardilosa e natildeo tem

todo esse poder sobre Nero ndash laacute o princeps casou-se com ela porque se

apaixonara e natildeo porque ela o dominara Assim vecirc-se que Taacutecito acrescentou

mais drama ao drama adicionando detalhes mais soacuterdidos a uma histoacuteria que jaacute

era soacuterdida956

Consoante Murgatroyd mais um aspecto a ser ressaltado eacute a maneira

eficaz como Taacutecito destaca trecircs protagonistas entrelaccedilados em sua narrativa Em

primeiro lugar existe a ferramenta Nero O insensiacutevel imperador eacute um dos vilotildees

da histoacuteria mas embora tome a decisatildeo de se divorciar de Otaacutevia e ordene a

Aniceto que confesse um adulteacuterio falso ele eacute na verdade um grande fantoche de

Popeia Em segundo existe o motor principal a ardilosa Popeia que estaacute

determinada a eliminar Otaacutevia Ela sugere a acusaccedilatildeo letal de adulteacuterio com

Aniceto e perversamente segura a cabeccedila amputada da ex-esposa Nos Annales

ela eacute oposta a Otaacutevia e sua perversidade contrastante aumenta a simpatia pela

filha de Claacuteudio Em terceiro existe a viacutetima Otaacutevia Ela estaacute quase totalmente

sozinha contra dois oponentes malignos e poderosos e os seus ajudantes e parece

ainda mais pura ao lado de tantas pessoas maacutes957

Sua morte apesar de compor a

menor parte da narrativa eacute motivo de revolta para Taacutecito o qual afirma

954

GRIFFIN 2001 p 98-112 955

SCULLARD 2010 p 260 956

HURLEY 2013 p 36-37 Para mais semelhanccedilas entre os Annales e a Octavia cf BILLOT

2003 p 126-141 957

MURGATROYD 2008 p 264

243

[] Qualquer um que saiba sobre as tribulaccedilotildees daqueles

tempos por mim [] pode dar como certo que sempre que o imperador autorizava o exiacutelio ou o assassinato oraccedilotildees eram feitas aos deuses de modo que aquilo que antigamente era o sinal de puacuteblicas fortunas agora se tornou siacutembolo de desastre puacuteblico E no entanto natildeo devo me calar sobre nenhum decreto senatorial que marcou novos estaacutegios de subserviecircncia ou servilismo958

A localizaccedilatildeo dessa afirmaccedilatildeo ao final do episoacutedio aumenta seu efeito

sobre os leitores Nero eacute condenado natildeo soacute por suas palavras e accedilotildees como

tambeacutem pelo servilismo impingido ao Senado Para Varella o historiador estaacute

insinuando aiacute que a pouca autonomia senatorial existente antes teria desaparecido

completamente O casamento com Popeia eacute o divisor de aacuteguas entre por um lado

um governo que ainda tinha algum aspecto moderado e por outro um governo

dominado pelo medo e pela luxuacuteria O Principado prodigioso de 59 estaacute se

tornando vicioso e exterminador da liberdade e das virtudes De 60 a 62 haacute um

novo arranjo poliacutetico negativo encabeccedilado por Popeia e Tigelino959

Para encerrar entendemos que Taacutecito retrata esses eventos como feitos

criminosos empregando para tanto uma ampla gama de detalhes a fim de

estimular seus leitores a visualizaacute-los sob a mesma luz que ele Por inuentio ele

opera acreacutescimos no seu texto como o domiacutenio de Popeia e a acusaccedilatildeo de

adulteacuterio de modo a possibilitar que os fatos (ou pelo menos sua versatildeo deles) se

tornem tatildeo emotivos a ponto de falarem por si mesmos E por allelopoiesis

transforma o Nero do passado ndash uxoricida e cruel ndash presente na Octavia e lanccedila

uma nova questatildeo sobre ele o controle feminino Dito de outro modo ele usa o

Nero do passado como um legado e ao mesmo tempo toma esse Nero como

mateacuteria de uso pelo presente modificando-o e tornando-o mais rico e complexo

aos nossos olhos No final das contas o princeps continua sendo um Nero cruel

mas deixa de ser um simples Nero uxoricida para se tornar um Nero antiprinceps

958

dona ob haec templis decreta que[m] ad finem memorabimus quicumque casus temporum

illorum nobis vel aliis auctoribus noscent praesumptum habeant quotiens fugas et caedes iussit

princeps totiens grates deis actas quaeque rerum secundarum olim tum publicae cladis insignia

fuisse neque tamen silebimus si quod senatus consultum adulatione novum aut paenitentia

postremum fuit (Tac Ann 14643) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 337) 959

VARELLA 2006 p 1-10

244

Passados dois anos no iniacutecio de 64 Taacutecito relata que Nero realiza os seus

desejos de se apresentar publicamente nos teatros

[] Ateacute aquele ponto ele havia confinado seu canto agrave sua casa ou ao seu jardim durante os jogos da Juvenalia mas agora estava comeccedilando a desdenhar deles pois [] eram muito limitados para ostentarem sua voz Todavia natildeo arriscaria uma estreia em Roma e escolhe Naacutepoles por ser uma cidade grega

Esse seria o seu ponto de partida ele pensa [] Assim reuacutene uma multidatildeo de habitantes da cidade e a eles se juntam aqueles de [] colocircnias e municiacutepios proacuteximos [] Tudo isso lota o teatro de Naacutepoles No teatro ocorre um incidente que a maioria pensa ser um pressaacutegio sinistro mas Nero acha providencial e um sinal de favor divino Depois que o puacuteblico vai embora o teatro vazio desaba sem causar ferimentos Por

conseguinte ele compotildee hinos agradecendo aos deuses e celebrando a boa sorte que acompanhou o colapso recente []960

Na passagem Taacutecito deixa muito claro que Nero escolhe se apresentar

publicamente em uma cidade de colonizaccedilatildeo grega ao inveacutes de uma cidade

romana Mas por quecirc A nosso ver por um uacutenico motivo precauccedilatildeo Fantham

esclarece que as apariccedilotildees de Nero no palco eram em certo sentido vistas pela

elite romana como algo inapropriado Isso significa que o imperador natildeo deveria

gastar quantias extraordinaacuterias de dinheiro em espetaacuteculos ndash que instigavam

devassidatildeo ndash e muito menos assumir o papel de um cantor no palco destinado a

escravos ou libertos Ao contraacuterio ele deveria ser um indiviacuteduo virtuoso em

maior grau do que todos os outros homens apresentando as qualidades de

gravitas dignitas e fides Nesse sentido ao se exibir no teatro de Naacutepoles Nero

assume um papel muito distante daquele reservado a um princeps (pelo menos o

princeps como entendido pelos senadores) Ele deixava de ser o mais nobre dos

960

C Laecanio M Licinio consulibus acriore in dies cupidine adigebatur Nero promiscas scaenas

frequentandi nam adhuc per domum aut hortos cecinerat Iuvenalibus ludis quos ut parum

celebres et tantae voci angustos spernebat non tamen Romae incipere ausus Neapolim quasi

Graecam urbem delegit inde initium fore ut transgressus in Achaiam insignesque et antiquitus

sacras coronas adeptus maiore fama studia civium eliceret ergo contractum oppidanorum vulgus

et quos e proximis coloniis et municipiis eius rei fama civerat quique Caesarem per honorem aut

varios usus sectantur etiam militum manipuli theatrum Neapolitanorum complent Illic plerique

ut arbitra[ba]ntur triste ut ipse providum potius et secundis numinibus evenit nam egresso qui

adfuerat populo vacuum et sine ullius noxa theatrum collapsum est ergo per compositos cantus

grates dis atque ipsam recentis casus fortunam celebrans petiturusque maris Hadriae traiectus

apud Beneventum interim consedit ubi gladiatorium munus a Vatinio celebre edebatur (Tac Ann

1533-34) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 353-354)

245

homens para se tornar o mais ignoacutebil fato que revelava agrave elite sua subordinaccedilatildeo a

um sujeito infame961

E Nero aparentemente tinha consciecircncia do que tal

subordinaccedilatildeo poderia gerar por isso natildeo arrisca estrear em Roma Eacute em uma

cidade de colonizaccedilatildeo grega que ele daacute o passo final e se apresenta diante de um

grande puacuteblico pela primeira vez Cabe salientar em concordacircncia com Lefebvre

que a progressatildeo instaurada por Taacutecito ndash a qual nos leva de um espetaacuteculo privado

perante um pequeno puacuteblico nos Juvenalia para um espetaacuteculo enorme perante

uma multidatildeo ndash objetiva demarcar um escacircndalo a degradaccedilatildeo neroniana que

expotildee uma paixatildeo artiacutestica indevida em vez de escondecirc-la semeando o caos Sua

atuaccedilatildeo portanto eacute lida pelo historiador como uma ofensa um perigo962

Ainda analisando o excerto Mordine ressalta outro ponto A apresentaccedilatildeo

puacuteblica neroniana embora lasciva fazia parte de um caacutelculo poliacutetico racional o

cultivo da plebe como contrapeso a uma elite senatorial cada vez mais hostil Na

verdade como princiacutepio geral as benfeitorias imperiais eram extensotildees do

funcionamento tradicional do sistema patrono-cliente pautado na estrutura social

de lealdade e dependecircncia Assim como os patronos forneciam comida e dinheiro

para seus dependentes tambeacutem os imperadores espalhavam sua generosidade para

todo o puacuteblico romano como se fossem todos seus clientes E Nero amava a

pompa proporcionando entretenimentos extravagantes para o povo e

compartilhando com ele seu prazer ndash a plebe a quem nossos antigos historiadores

de elite consideravam uma raleacute soacuterdida adoradora de comportamentos

permissivos963

Natildeo agrave toa Taacutecito afirma que ela sempre estava pronta para

acreditar no pior964

Antes de encerrarmos esse episoacutedio eacute imprescindiacutevel comentar que a ida

de Nero a Naacutepoles demonstra que um princeps mesmo sendo a maior autoridade

do Impeacuterio natildeo tinha liberdade de fazer o que quisesse ndash ou pelo menos natildeo

quando envolvia desafiar a honra da elite romana Caso a desafiasse as paacuteginas

contendo a sua histoacuteria seriam dominadas por retratos hostis965

Para sintetizar vemos que ateacute aqui Taacutecito delineia quatro contornos

negativos para o retrato do Nero artista i) Nero tinha ambiccedilotildees de tornar puacuteblico

961

FANTHAM 1994 p 83-85 962

LEFEBVRE 2017 p 116 963

MORDINE 2013 p 114-115 964

Tac Ann 15642 965

FANTHAM 1994 p 87-88

246

o seu lado artiacutestico ii) desde os primeiros jogos os membros das altas categorias

sociais apareceram com ele no palco ndash por obrigaccedilatildeo ou por vontade proacutepria

devido a uma provaacutevel recompensa iii) ele via suas atividades artiacutesticas em um

contexto grego e iv) sua paixatildeo inicialmente controlada aos poucos foi

adquirindo reacutedeas mais livres966 Esses contornos negativos satildeo produtos como

bem dissemos das insatisfaccedilotildees de um senador ou seja de um indiviacuteduo que se

utilizou das fontes agrave sua disposiccedilatildeo para erigir o estereoacutetipo retoacuterico de um mau

imperador Afinal o que ele apresenta na sua narrativa e como o faz dependem

diretamente dos seus propoacutesitos literaacuterios

Apoacutes Naacutepoles Taacutecito menciona que no final de 64 e no iniacutecio de 65

aconteceram dois grandes desastres na capital do Impeacuterio o incecircndio e a

construccedilatildeo da Domus Aurea967

Acerca do fogo o historiador anuncia natildeo saber se

foi acidental ou planejado por Nero pois suas fontes traziam ambas as versotildees

Contudo defende que foi a cataacutestrofe mais calamitosa jaacute vivida pelos habitantes

da Vrbs O fogo iniciado nas colinas do Palatino espalhou-se depressa indo das

planiacutecies ateacute os montes O pacircnico instalou-se na cidade e a populaccedilatildeo tentou

combater o fogo poreacutem algumas pessoas atrapalhavam os esforccedilos Estas assim o

fizeram porque segundo Taacutecito estavam sob ordens de Nero968

966

WINTERLING 2012 p 16 967

Eacute importante destacar que antes desse episoacutedio Taacutecito desenvolve uma sequecircncia narrativa

para fortalecer sua construccedilatildeo posterior da imagem negativa de Nero no incecircndio A narrativa

concerne ao torpe banquete ofertado por Tigelino e do casamento do princeps com Pitaacutegoras De

acordo com o historiador Nero ldquocontaminado por atos liacutecitos e iliacutecitos natildeo deixou nenhuma

enormidade inexplorada que pudesse aprofundar sua depravaccedilatildeo []rdquo ipse per licita atque

inlicita foedatus nihil flagitii reliquerat (Tac Ann 15374) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 356) 968

Tac Ann 15387

247

Na eacutepoca Nero estava em Acircncio e natildeo voltou para a cidade ateacute

que o fogo se aproximasse do preacutedio que ele havia feito construir para conectar o palaacutecio com os jardins de Mecenas [Domus Transitoria]969 Entretanto impedir que o fogo consumisse o palaacutecio e tudo na vizinhanccedila provou ser impossiacutevel Contudo para socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitiva Nero abriu o Campo de Marte os monumentos de

Agripa e ateacute seus proacuteprios jardins e ergueu edifiacutecios improvisados para abrigar as multidotildees desamparadas Suprimentos vitais foram enviados de Oacutestia e de municiacutepios vizinhos e o preccedilo dos gratildeos caiu [] Essas medidas [] se revelaram um fracasso terriacutevel pois se espalhou o boato de que no mesmo momento em que a cidade estava em chamas Nero subiu no seu palco privado e cantou sobre a destruiccedilatildeo de Troia

fazendo uma comparaccedilatildeo entre as tristezas do presente e os desastres do passado970

Como pudemos perceber logo no iniacutecio Taacutecito afirma suas incertezas

sobre o incecircndio declarando que suas fontes natildeo esclarecem se o desastre ocorreu

por acidente ou por um esquema de Nero Ele entatildeo ignora as incertezas e

prossegue com a descriccedilatildeo da violecircncia do fogo sem apontar para uma ou outra

direccedilatildeo Mas ele natildeo demora a escolher uma versatildeo dos fatos e faz sua primeira

insinuaccedilatildeo acerca da culpabilidade imperial ningueacutem ousou combater o incecircndio

porque alguns indiviacuteduos ameaccedilavam quem o fizesse dizendo que estavam sob

ordens971

A partir daiacute a narrativa muda de tom Taacutecito diz que o soberano

ausente de Roma soacute retornou quando ouviu que seu novo palaacutecio corria perigo

Trata-se de um comentaacuterio bastante ardiloso argumenta Barrett pois Taacutecito

apresenta os eventos de modo a criar a impressatildeo de que Nero era indiferente aos

sofrimentos dos cidadatildeos e soacute agiu quando seus interesses foram ameaccedilados ndash isto

eacute o motivo do retorno foi pessoal e egoiacutesta Barrett tambeacutem defende que Taacutecito

969

ldquo[] Durante os primeiros anos do seu Principado (entre 54 e 64) Nero supervisionou a construccedilatildeo da Domus Transitoria (Casa de Passagem) cujo nome refletia sua funccedilatildeo de unir as

possessotildees imperiais no Palatino com os Jardins de Mecenas no Esquilinordquo (COARELLI 2007 p

180) 970

Eo in tempore Nero Anti agens non ante in urbem regressus est quam domui eius qua

Palantium et Maecenatis hortos continuaverat ignis propinquaret neque tamen sisti potuit quin

et Palatium et domus et cuncta circum haurirentur sed solacium populo exturbato ac profugo

campum Martis ac monumenta Agrippae hortos quin etiam suos patefacit et subitaria aedificia

exstruxit quae multitudinem inopem acciperent subvectaque utensilia ab Ostia et propinquis

municipiis pretiumque frumenti minutum usque ad ternos nummos quae quamquam popularia in

inritum cadebant quia pervaserat rumor ipso tempore flagrantis urbis inisse eum domesticam

scaenam et cecinisse Troianum excidium praesentia mala vetustis cladibus adsimulantem (Tac

Ann 1539) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Barrett e Yardley (2008 p 357) 971

SCHULZ 2019 p 144

248

omite a explicaccedilatildeo mais oacutebvia pela demora no regresso a de que Nero

provavelmente deixou a resoluccedilatildeo da situaccedilatildeo para seus conselheiros voltando soacute

quando percebeu que o incecircndio era de fato grave972

Ao regressar viu que salvar

o seu palaacutecio era impossiacutevel o que natildeo o impediu de tomar medidas ldquopara

socorrer a populaccedilatildeo desabrigada e fugitivardquo973

Eacute intrigante que Taacutecito natildeo se

delongue nessas medidas positivas alegando que elas foram consideradas vatildes pela

populaccedilatildeo pois circulou o boato de que enquanto a cidade queimava Nero subiu

em seu palco privado e cantou a destruiccedilatildeo de Troia Na visatildeo de Barrett o

historiador inseriu tais boatos nesse ponto do texto com o intuito de fortalecer a

imagem negativa artiacutestica do princeps Lembremo-nos de que em 59 Nero

realizou performances para um puacuteblico restrito nos Juvenalia e em 64

apresentou-se pela primeira vez para um puacuteblico grande em Naacutepoles De acordo

com o autor ambas as apresentaccedilotildees sobretudo a uacuteltima foram as que deram

base para os boatos gerando especulaccedilotildees hostis a respeito do soberano974

Cabe

frisar que Taacutecito natildeo problematiza os boatos apenas os cita ndash atitude ratificadora

de uma afirmaccedilatildeo feita na introduccedilatildeo do capiacutetulo ele utilizava informaccedilotildees de

autores anteriores a ele para compor um relato que dialogasse com a tradiccedilatildeo

literaacuteria dominante Como certifica Woodman Taacutecito eacute retoacuterico e daacute um

tratamento literaacuterio a uma verdade factual para fins de dar vivacidade ao relato

natildeo pretendendo reconstituir uma verdade histoacuterica no sentido almejado por certas

abordagens modernas Isso significa que ele natildeo estava interessado em relatar o

que ldquorealmente aconteceurdquo mas o que ldquopoderia ter acontecidordquo975

Resumindo a

seu ver um imperador que jaacute tinha demonstrado interesses inapropriados em

coisas artiacutesticas obrigando os membros da elite a participarem dos espetaacuteculos e

invertendo a ordem social podia facilmente incendiar uma cidade e se apresentar

enquanto a via queimando

Taacutecito nos informa de que passados seis dias o fogo diminuiu poreacutem

natildeo tardou para ele voltar com toda intensidade nos lugares abertos da Vrbs a

972

BARRETT 2020 p 73 973

Gaia (2010 p 87-88) adiciona que o princeps diminuiu o peso dos aacuteureos (moedas de ouro) e

dos denaacuterios (moedas de prata) reduzindo o teortiacutetulo do metal precioso delas Depois de

Augusto Nero foi o uacutenico soberano a modificar o sistema monetaacuterio do Impeacuterio 974

BARRETT 2020 p 126 975

WOODMAN 1988 p 199

249

exemplo dos poacuterticos976

Daiacute emergiu um novo rumor popular o de que Nero

desejava erigir uma nova Roma dando-lhe o seu nome A esse rumor sucedeu

outro o soberano ordenou o incecircndio para adquirir terrenos para a construccedilatildeo da

sua Domus Aurea um novo palaacutecio que inspiraria

[] admiraccedilatildeo natildeo tanto com pedras preciosas e ouro [] mas com seus campos lagos e bosques [] O arquiteto e o engenheiro responsaacuteveis foram Severo e Ceacuteler que tiveram a genialidade e a audaacutecia de tentar imitar artificialmente a natureza e para tanto abusaram dos recursos do imperador []

Nero sempre buscou o incriacutevel Ele tentou cavar as alturas ao lado do Averno e os vestiacutegios de suas esperanccedilas fuacuteteis permanecem ateacute hoje []977

Vecirc-se que o complexo palaciano eacute figurado como a representaccedilatildeo da

ostentaccedilatildeo e do desperdiacutecio de dinheiro Conforme Beste e Hesberg natildeo haacute razatildeo

para acreditarmos que o imperador tenha induzido o incecircndio no afatilde de

desenvolver seu novo projeto pessoal Todavia independentemente de qualquer

coisa precisamos referenciar o enorme gasto de dinheiro puacuteblico dispendido na

situaccedilatildeo978

Taacutecito inclusive critica veementemente tal atitude falando que a

Itaacutelia foi devastada para aumentar os recursos de Nero e que templos foram

saqueados e proviacutencias foram arruinadas979

Ao inveacutes de seguir um caminho

moderado apoacutes um desastre que arruinou a cidade o princeps seguiu o da

dissipaccedilatildeo e o da extravagacircncia Segundo Kragelund esses excessos ndash que jaacute eram

considerados ruins pela elite romana na esfera privada ndash tornavam-se uma ameaccedila

na esfera puacuteblica gerando uma espiral cada vez mais viciosa de gastos e

976

Com o segundo incecircndio Taacutecito diz que dos 14 distritos em que Roma estava dividida quatro

permaneceram intactos trecircs foram totalmente destruiacutedos e sete ficaram em ruiacutenas (Tac Ann

15411) 977

Ceterum Nero usus est patriae ruinis exstruxitque domum in qua haud proinde gemmae et aurum miraculo essent solita pridem et luxu vulgata quam arva et stagna et in modum

solitudinem hinc silvae inde aperta spatia et prospetus magistris et machinatoribus Severo et

Celere quibus ingenium et audacia erat etiam quae natura denegavisset per artem temptare et

viribus principis inludere namque ab lacu Averno navigabilem fossam usque ad ostia Tibernia

depressuros promiserant squalenti litore aut per montes adversos neque enim aliud umidum

gignendis aquis occirrit quam Pomptinae paludes cetera abrupta aut arentia ac si perrumpi

possent intolerandus labor nec satis causae Nero tamen ut erat incredibilium cupitor effodere

proxima Averno iuga conisus est manentque vestigia inritae spei (Tac Ann 1542) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008

p 358) 978

BESTE HESBERG 2013 p 324 979

Tac Ann 15451 Pliacutenio o Velho alude a um evento em que seis proprietaacuterios de terras

detentores de metade dos terrenos na proviacutencia da Aacutefrica foram executados a mando de Nero para

o confisco dos seus recursos (Plin Nat 187)

250

extorsotildees Ou seja quanto mais dinheiro Nero desembolsasse mais necessidade

sentiria de desembolsar E isso era muito perigoso980

Aleacutem de desaprovar o uso de recursos do Estado para a construccedilatildeo de algo

privado Taacutecito tambeacutem censura Nero por ter edificado a Domus Aurea sob ldquoas

ruiacutenas da paacutetriardquo981

Em outros termos ele o condena por ter usurpado

propriedades privadas e monumentos puacuteblicos para transformaacute-los no seu novo

complexo palaciano982

Essa criacutetica torna-se mais clara se voltarmos ao episoacutedio

da ascensatildeo quando o jovem no discurso inaugural do seu governo disse que os

negoacutecios da sua domus se manteriam independentes dos interesses da res

publica983

Seu projeto portanto contradiz claramente sua promessa anterior

Milnor explica que Taacutecito acreditava que a vida domeacutestica de um imperador

deveria ser separada da sua vida ciacutevica e militar Ele tambeacutem entendia que as

ldquoboas praacuteticas domeacutesticas virtuosasrdquo dos ancestrais romanos foram corrompidas

pela imoralidade trazida agrave esfera puacuteblica com o advento do Principado

Resumindo ele julgava que Nero ndash e outros soberanos ndash foi incapaz de manter

uma distinccedilatildeo adequada entre os negoacutecios puacuteblicos e os privados Natildeo eacute mera

coincidecircncia que nos Annales um dos escacircndalos do seu governo seja a Domus

Aurea O autor quis mostrar que Nero materializou um problema trazido haacute muito

pela dinastia Juacutelio-Claudiana a corrupccedilatildeo da sociedade fruto da ostentaccedilatildeo

realizada por liacutederes que davam agrave vida domeacutestica uma presenccedila exagerada no

palco puacuteblico984

Barrett chama a atenccedilatildeo para outro ponto importante na Roma imperial

os edifiacutecios grandiosos transmitiam uma mensagem ambiacutegua Eles podiam tanto

simbolizar excentricidade ou megalomania do governante quanto representar um

desejo altruiacutesta de fornecer amenidades para a populaccedilatildeo A primeira visatildeo jaacute foi

detectada na narrativa taciteana mas e a segunda O historiador trata pouco sobre

isso anunciando que o espaccedilo remanescente da cidade apoacutes a construccedilatildeo da

Domus Aurea foi ocupado por preacutedios e casas edificados de modo planejado e

regulado985

As novas medidas agradaram ao povo por sua praticidade e pelo

980

KRAGELUND 2000 p 497 981

Tac Ann 15421 982

WARDEN 1991 p 271 983

Tac Ann 1342 984

MILNOR 2012 p 465-473 985

Tac Ann 15431-4

251

embelezamento trazido agrave Vrbs986

No entanto Taacutecito salienta que algumas pessoas

julgaram a antiga configuraccedilatildeo mais saudaacutevel pois a estreiteza das ruas e a altura

dos edifiacutecios tornavam menos penetrantes os raios de sol e por conseguinte o

calor987

Percebe-se entatildeo que embora divulgue os feitos positivos do soberano

o historiador organiza seus argumentos de forma que o leitor fique com a

impressatildeo de que a conduta neroniana sempre foi ultrajante e repreensiacutevel Os

Annales nesse sentido formam um brilhante texto partidaacuterio deixando-nos com a

sensaccedilatildeo de que agraves coisas boas sempre sucediam a peacutessima iacutendole de Nero

Cuidadosamente o historiador posiciona os fatos juntamente com o uso astuto de

rumores criando um retrato cruel de Nero988

Nas palavras de Develin ldquoTaacutecito

acredita nos rumores quando eles se adequam agrave sua causardquo989

Em uacuteltima anaacutelise consideramos que Taacutecito se apropria de algumas ideias

contidas nas narrativas do passado para redigir sobre o incecircndio e a Domus Aurea

No caso do incecircndio reutiliza concepccedilotildees presentes nas obras de Pliacutenio o Velho

Estaacutecio e Pseudo-Secircneca Por exemplo ao descrever as enormes destruiccedilotildees

acarretadas agrave Vrbs embasa-se na Naturalis Historia e nas Siluae as quais nos

informam acerca da queima de aacutervores antigas e do fogo que alcanccedilou os montes

de Roma990

Por sua vez ao indicar o interesse particular de Nero no desastre

pauta-se na sugestatildeo trazida pela Octavia o incecircndio foi usado como ferramenta

pessoal para punir a populaccedilatildeo contraacuteria ao enlace com Popeia991

Por fim retira

das trecircs fontes a culpabilidade do princeps no evento pois todas satildeo muito claras

ao atribuiacuterem a transgressatildeo a Nero independentemente da causa Por oacutebvio a

tais visotildees adiciona as suas proacuteprias como as de que o imperador subiu no palco e

cantou a destruiccedilatildeo de Troia e de queimou Roma para erigir a Domus Aurea Dito

isso eacute possiacutevel entender sua composiccedilatildeo dos retratos do princeps ao Nero

incendiaacuterio do passado une o Nero incendiaacuterio do presente e ambos datildeo origem a

um novo Nero (incendiaacuterio) artista criado a partir da mescla das duas

temporalidades O que jaacute era familiar a todos no passado (o fato de Nero ter

ateado fogo em Roma) se junta ao que era conhecido por todos no presente (o

986

Essas accedilotildees natildeo apenas melhoraram Roma como tambeacutem forneceram o modelo para

planejamentos urbanos posteriores Cf BALLAND 1965 p 349-393 987

Tac Ann 15435 988

BARRETT 2020 p 127 989

DEVELIN 1983 p 78 990

Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 991

[Sen] Oct 825-844

252

amor de Nero pelo mundo artiacutestico) e as duas coisas em simultaneidade

estabelecem um novo retrato para o princeps

No tocante agrave Domus Aurea observamos a reutilizaccedilatildeo taciteana de noccedilotildees

existentes nos textos de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o Velho e Marcial Dos dois

primeiros autores aproveita a criacutetica agrave ostentaccedilatildeo de riqueza do complexo

palaciano De Pliacutenio em especiacutefico recupera a percepccedilatildeo dos abusos perpetrados

agrave natureza pelos romanos porquanto menciona que Nero para efetivar seu

projeto tentou cavar as alturas ao lado do Averno992

Ao seu turno de Marcial

restaura a ideia de usurpaccedilatildeo das propriedades privadas e puacuteblicas realizada para a

construccedilatildeo da Domus Aurea993

Destacamos que nos Annales todas essas

acusaccedilotildees formuladas no passado se mantecircm mas a elas foi adicionada uma

acusaccedilatildeo nova a de que o soberano incendiou Roma porque queria construir sua

casa Isso implica que o historiador usa o retrato do Nero construtor do passado

como um legado e ao mesmo tempo toma esse Nero como mateacuteria de uso pelo

presente mudando e transformando-o no Nero (construtor) incendiaacuterio passado e

presente constroem mutuamente o retrato do soberano por allelopoiesis

Apoacutes narrar sobre o grande incecircndio e insinuar que ele havia sido

provocado por Nero Taacutecito escreve

Para dissipar a fofoca Nero encontrou culpados aos quais infligiu as puniccedilotildees mais exoacuteticas Esses eram pessoas odiadas por suas ofensas vergonhosas a quem a populaccedilatildeo chamava de Cristatildeos [] No iniacutecio [] um grande nuacutemero foi considerado culpado ndash mais por serem inimigos da humanidade do que por

serem incendiaacuterios [] Eles morreram sendo despedaccedilados por catildees [] presos a cruzes e [] queimados [] Nero ofereceu seus jardins como palco para o show e tambeacutem organizou espetaacuteculos circenses misturando-se com a plebe em sua roupa de cocheiro ou de peacute em sua carruagem Dessa forma embora essas pessoas fossem culpadas e merecedoras da puniccedilatildeo exemplar a compaixatildeo para com elas comeccedilou a crescer porque perceberam que elas estavam sendo exterminadas natildeo para o

bem puacuteblico mas para agradar a crueldade de um homem994

992

[Sen] Oct 624-631 Plin Nat 3624 993

Mart Sp 21-10 994

ergo abolendo rumori Nero subdidit reos et quaesitissimis poenis adfecit quos per flagitia

invisos vulgus Chrestianos appellabat auctor nominis eius Christus Tibero imperitante per

procuratorem Pontium Pilatum supplicio adfectus erat repressaque in praesens exitiablilis

superstitio rursum erumpebat non modo per Iudaeam originem eius mali sed per urbem etiam

quo cuncta undique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque igitur primum correpti qui

fatebantur deinde indicio eorum multitudo ingens haud proinde in crimine incendii quam odio

humani generis convicti sunt et pereuntibus addita ludibria ut ferarum tergis contecti laniatu

canum interirent aut crucibus adfixi [aut flammandi atque] ubi defecisset dies in usu[m] nocturni

253

Alguns aspectos deste trecho nos chamam a atenccedilatildeo Em primeiro lugar

Silva e Rezende observam que Taacutecito acusa Nero de ter forjado culpados para o

incecircndio Ora uma posiccedilatildeo consensual na Historiografia moderna hoje eacute a de que

Roma agrave eacutepoca do desastre era uma cidade superpovoada com vaacuterias habitaccedilotildees

muitas de madeira amontoadas as quais constituiacuteam combustiacutevel para as chamas

Assim eacute bem provaacutevel que o fogo tenha comeccedilado acidentalmente995

Poreacutem a

culpa precisava recair em algueacutem pois como esclarece Taacutecito

nem a desenvoltura humana nem a generosidade do imperador

nem as oraccedilotildees e os sacrifiacutecios aos deuses dissipavam a crenccedila no boato difamatoacuterio de que uma ordem para o incecircndio havia sido dada996

Entatildeo a fim de se esquivar dos rumores crescentes Nero escolheu os

Cristatildeos jaacute malvistos pela populaccedilatildeo para serem o bode expiatoacuterio Mas por que

eram malvistos Sherwin-White e Veyne nos concedem duas razotildees i) a

obstinaccedilatildeo deles em natildeo cometerem apostasia e nem sacrificarem agraves divindades

greco-romanas postura vista como contestatoacuteria e ii) sua aversatildeo aos costumes

tradicionais como festas e espetaacuteculos997

Agraves duas razotildees Taacutecito adiciona uma

terceira eram ldquopessoas odiadas por suas ofensas vergonhosasrdquo Segundo

Hamman tais ofensas se relacionavam ao rito cristatildeo da celebraccedilatildeo eucariacutestica

tido pelos romanos como canibalismo998

Contudo De Boni defende que os trecircs

motivos natildeo justificam o despertar de uma animosidade tatildeo grande na populaccedilatildeo

da Vrbs Isso porque em 64 e 65 a comunidade cristatilde ainda era pequena e pouco

conhecida Ateacute mesmo a designaccedilatildeo ldquoCristatildeosrdquo ndash quando mencionada por Taacutecito

ndash parece deslocada dando a entender que no governo de Nero os seguidores de

Cristo ainda natildeo possuiacuteam uma alcunha especiacutefica999

luminis urerentur hortos suos ei spectaculo Nero obtulerat et circense ludicrum edebat habitu

aurigae permixtus plebi vel curriculo insistens unde quamquam adversus sontes et novissima

exempla meritos miseratio oriebatur tamquam non utilitate publica sed in saevitiam unius

absumerentur (Tac Ann 15442-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 359-360) 995

REZENDE SILVA 2011 p 165 996

Sed non ope humana non largitionibus principis aut deum placamentis decedebat infamia

quin iussum incendium crederetur (Tac Ann 15442) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 359) 997

SHERWIN-WHITE 1964 p 25 VEYNE 2009 p 245-246 998

HAMMAN 1997 p 94-95 999

DE BONI 2014 p 144-145

254

Por conseguinte Silva e Rezende sustentam que a antipatia taciteana para

com esse grupo religioso advinha de preocupaccedilotildees com o futuro de Roma cidade

onde a seu ver tudo estava se tornando ldquoabominaacutevelrdquo e ldquovergonhosordquo por conta

da adoccedilatildeo de costumes diversos dos tradicionais Taacutecito ao narrar as perseguiccedilotildees

perpetradas por Nero alega que ldquoum grande nuacutemero de pessoas foi acusadordquo1000

Tal afirmaccedilatildeo nos permite ver o poder de penetraccedilatildeo do cristianismo na cidade

ldquo[] jaacute que apenas cerca de trinta e cinco anos apoacutes a morte de Jesus a nova feacute

havia arrebanhado um grande nuacutemero de pessoas []rdquo1001

O curioso eacute que o historiador mesmo com aversatildeo aos Cristatildeos e julgando

serem merecedores de ldquopuniccedilatildeo exemplarrdquo condena o princeps pela violecircncia nos

castigos aplicados dizendo que esses foram efetivados natildeo para o bem puacuteblico e

sim para agradar a crueldade do soberano A crueldade parecia ser tatildeo grande que

ele chega a falar que Nero ldquoofereceu seus jardins como palco para o showrdquo e

ldquoorganizou espetaacuteculos circensesrdquo1002

Ou seja na sua visatildeo Nero natildeo soacute criou

culpados para livrar-se dos boatos como ainda os matou cruelmente e

transformou o crime num espetaacuteculo artiacutestico Percebe-se portanto que o

historiador une as informaccedilotildees para tornar a imagem de Nero pior do que ateacute

aquele ponto jaacute era Como bem resume Keresztes ao pintar os Cristatildeos como os

sujeitos mais abominaacuteveis da sociedade e ao retratar a puniccedilatildeo deles como algo

satisfatoacuterio para Nero Taacutecito cumpre seu dever de registrar o mal existente nos

homens e suas maacutes accedilotildees1003

Renan complementa o raciociacutenio sustentando que

Taacutecito para construir uma imagem monstruosa de Nero no poacutes-incecircndio elabora

uma histoacuteria atribuidora de carateriacutesticas muito particulares violecircncia

descaramento hipocrisia e crueldade Sua retoacuterica torna-se cada vez mais hostil a

Nero e sua lista de criteacuterios para o que formava um imperador muito cruel eacute

deliberadamente adaptada a Nero (Nero cruel) Taacutecito natildeo deixa espaccedilo para

duacutevidas Nero natildeo media esforccedilos para manter-se no poder e castigar aqueles que

ameaccedilavam sua autoridade1004

1000 Tac Ann 15444 1001

REZENDE SILVA 2011 p 168 1002

Tac Ann 15445 1003

KERESZTES 1984 p 408-409 1004

RENAN 1899 p 89 Para mais anaacutelises sobre a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos cf

CHEVITARESE 2016 p 161-173 MALIK 2020 p 79-126

255

Juntamente agrave perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tambeacutem no ano de 65 teve iniacutecio a

perseguiccedilatildeo aos que foram envolvidos na Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo Conforme Taacutecito

indiviacuteduos de vaacuterios estratos sociais (senadores equestres pretorianos e ateacute

mulheres) rapidamente aderiram a ela tanto por oacutedio a Nero quanto pela

popularidade de Pisatildeo homem virtuoso e de uma reputaccedilatildeo impecaacutevel1005

A

conspiraccedilatildeo comeccedilou devido aos desejos das pessoas de retirarem Nero do poder

cujas maldades eles acreditavam traziam decadecircncia para o Impeacuterio1006

Tais

pessoas comeccedilaram a dizer entre si que o Principado dele estava chegando ao

fim e que era preciso eleger algueacutem para socorrer o Estado enfermo1007

Ao

conquistarem o apoio de Fecircnio Rufo ndash prefeito da guarda pretoriana que

trabalhava para Nero ao lado de Tigelino ndash passaram a articular o lugar e o

momento em que assassinariam o imperador Decidiram mataacute-lo na vila de Pisatildeo

em Baiacuteas durante a celebraccedilatildeo da festa de Ceres1008

Segundo Taacutecito toda a trama

foi mantida em segredo por bastante tempo Mas na veacutespera do golpe o senador

Cevino um dos participantes apresentou atitudes suspeitas que fizeram com que

seu liberto Milicho procurasse Nero Frente a ele contou que Cevino o havia

mandado afiar uma adaga enferrujada tinha selado seu testamento e oferecido

presentes a seus escravos1009

Imediatamente o senador foi chamado a prestar

esclarecimentos e logo seguiram outros indiviacuteduos Natildeo tardou para Nero

descobrir a conjuraccedilatildeo prendendo pessoas por toda a cidade e mantendo os muros

escoltados por unidades militares

E assim colunas interminaacuteveis de prisioneiros algemados eram arrastadas para fora e deixadas esperando perto dos portotildees dos

jardins Entatildeo o simples fato de terem mostrado algum apoio aos conspiradores uma simples conversa ou o comparecimento no mesmo jantar ou espetaacuteculo eram motivos suficientes para inscrevecirc-los na lista de culpados []1010

1005

Tac Ann 15481-2 1006

Principais partidaacuterios Suacutebrio Flaacutevio (tribuno de uma coorte pretoriana ndash sem causa especiacutefica

atribuiacuteda por Taacutecito) Sulpiacutecio Aspro (centuriatildeo ndash sem causa especiacutefica) Plaacuteucio Laterano (cocircnsul

ndash patriotismo ardente) Lucano (poeta ndash Nero o proibiu de recitar seus versos em puacuteblico) Flaacutevio

Cevino (senador ndash sem causa especiacutefica) Afracircnio Quinciano (senador ndash vingar uma saacutetira

difamatoacuteria declamada por Nero) (Tac Ann 1549) 1007

Tac Ann 15501 1008

Tac Ann 15531 1009

Tac Ann 1554 1010

volitabantque per fora per domos rura quoque et proxima municipiorum pedites equitesque

permixti Germanis quibus fidebat princeps quasi externis continua hinc et vincta agmina trahi ac

foribus hortorum adiacere atque ubi dicendam ad causam introissent [non stud]ia tantum erga

coniuratos sed fortuitus sermo et subiti occursus si convivium si spectaculum simul inissent pro

256

Depois que a trama foi descoberta Pisatildeo se suicidou Os partidaacuterios

restantes foram perseguidos exilados eou instados a tambeacutem se suicidarem1011

A

nosso ver esse relato da conspiraccedilatildeo levanta trecircs questotildees importantes A

primeira delas ndash e a mais oacutebvia ndash eacute a construccedilatildeo de uma insatisfaccedilatildeo por Taacutecito

sobretudo dos altos estratos sociais com o governo de Nero Tal insatisfaccedilatildeo eacute

apresentada em diversos pontos da narrativa e de diversas maneiras Por exemplo

ele sugere que as pessoas julgavam Nero desonroso e queriam substituiacute-lo por

algueacutem virtuoso indica que todos viam suas maldades como criadoras de

decadecircncia moral e propotildee que o detestavam por ele ser matricida uxoricida

cocheiro histriatildeo e incendiaacuterio1012

Ateacute mesmo o prefeito da Guarda Pretoriana

sujeito que supostamente deveria apoiar as decisotildees de Nero eacute figurado como

insatisfeito Em suma a conspiraccedilatildeo eacute representada como a grande consequecircncia

das atitudes negativas do Nero princeps no decorrer do seu governo um

desencantamento geral seja pelo comportamento artiacutestico imperial inapropriado

seja pelos crimes ou pelo tratamento autoritaacuterio concedido agraves pessoas1013

A segunda questatildeo se relaciona agrave subordinaccedilatildeo da elite ao imperador

Taacutecito usa a conspiraccedilatildeo para explorar esse assunto em profundidade ndash natildeo agrave toa eacute

o episoacutedio mais longo dos Annales ocupando 27 capiacutetulos do livro 151014

Ao

analisar a estrutura da narrativa Woodman defende que o historiador fundiu o real

e o dramaacutetico dando agrave trama uma coerecircncia que ela natildeo possuiacutea Tal coerecircncia

sustenta-se pelas metaacuteforas da atuaccedilatildeo dispostas no texto sendo os conspiradores

apresentados como atores de um drama Por exemplo Cevino pede a Milicho que

afie sua adaga enferrujada e oferece presentes a seus escravos Em seguida o

liberto traiccediloeiramente conta esses feitos para Nero e o covarde Cevino se

justifica dizendo que a adaga era apenas uma reliacutequia da famiacutelia Taacutecito entatildeo

elogia a ldquofirmeza das palavras de Cevinordquo que teriam persuadido o princeps natildeo

fosse pela confissatildeo de Natalis outro conspirador1015

A partir daiacute o historiador

coloca os conspiradores como rivais cada qual tentando se defender ndash e

sobreviver ndash por meio de estrateacutegias e argumentos especiacuteficos Mas o que esse

crimine accipi [] (Tac Ann 15582-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 367-368) 1011

Tac Ann 15591-5 15601-4 611-4 621-2 631-3 641-4 65 661-2 671-4 681 1012

Tac Ann 15672-3 1013

SHOTTER 2008 p 120-122 1014

HURLEY 2013 p 37 1015

Tac Ann 15554-56 WOODMAN 1993 p 104-120

257

enredo todo significa Segundo Woodman que Taacutecito apresenta a vida puacuteblica

poliacutetica romana sob Nero como uma performance teatral Em outros termos ele

usa a metaacutefora teatral para revelar (e criticar) o mundo louco dos aplausos de Nero

e a submissatildeo resultante dele Ao se inspirar nas faccedilanhas artiacutesticas do princeps

ele constroacutei uma histoacuteria na qual os conspiradores viviam fora da realidade numa

trageacutedia grega Seu intento eacute desmascarar a existecircncia pateacutetica das pessoas sob o

comando de imperadores afinal todos sobretudo os membros da elite tinham

que viver uma vida teatral cotidiana assumindo papeacuteis diariamente1016

A terceira questatildeo repousa na censura agraves represaacutelias efetivadas por Nero

Taacutecito informa que existiam colunas interminaacuteveis de prisioneiros e que motivos

insignificantes eram suficientes para inscrever as pessoas na lista de culpados Ou

seja ele edifica a imagem de Nero cruel como um governante tiracircnico E vai

aleacutem constroacutei o retrato de um liacuteder paranoico que passa a suspeitar de todos

aqueles ao seu redor e a exterminar qualquer possiacutevel ameaccedila Silva e Rezende

explicam bem os propoacutesitos taciteanos devemos nos lembrar de que o historiador

possuiacutea ideais republicanos e que para ele os imperadores sempre buscavam se

manter no poder independentemente de qualquer valor moral o que a seu ver

era despreziacutevel Nero portanto natildeo estava fugindo agrave regra1017

Tambeacutem em 65 ocorreu a segunda ediccedilatildeo dos Neronia Taacutecito nos diz que

o Senado ofereceu ao imperador dois precircmios um de muacutesica e um de eloquecircncia

a fim de evitar uma performance de palco escandalosa

Nero poreacutem ficava dizendo que natildeo precisava da influecircncia ou da autoridade do Senado era tatildeo bom quanto seus concorrentes

e conquistaria os precircmios atraveacutes da decisatildeo imparcial dos juiacutezes Ele comeccedila recitando um poema no palco Em seguida a multidatildeo insiste para que ele ldquoexiba todo o seu repertoacuteriordquo [] e ele volta a entrar no teatro Desta vez ele segue todas as regras prescritas aos tocadores de lira [] Finalmente dobrando o joelho e com um aceno respeitoso para a multidatildeo ele aguarda o veredicto dos juiacutezes com ansiedade E a plebe da cidade [] troveja seu aplauso []1018

1016

WOODMAN 1993 p 104-120 1017

SILVA REZENDE 2011 p 166 1018

Interea senatus propinquo iam lustrali certamine ut dedecus averteret offert imperatori

victoriam cantus adicitque facundiae coronam qua ludicra deformitas velaretur sed Nero nihil

ambitu nec potestate senatus opus esse dictitans se aequum adversum aemulos et religione

indicum meritam laudem adsecuturum primo carmen in scaena recitat mox flagitante vulgo ut

omnia studia sua publicaret (haec enim verba dixere) ingreditur theatrum cunctis citharae

legibus obtemperans ne fessus resideret ne sudorem nisi ea quam indutui gerebat veste

258

Contudo Taacutecito alega que habitantes de cidades distantes ndash onde ainda se

conservava a velha moralidade ndash que estavam por acaso em Roma natildeo

conseguiram tolerar o espetaacuteculo e tambeacutem natildeo puderam dar os vergonhosos

aplausos1019

O relato do historiador evidencia a seriedade com a qual Nero no

final do seu governo tratava os assuntos artiacutesticos No excerto vecirc-se que o

princeps durante sua performance ldquosegue todas as regras prescritas aos tocadores

de lirardquo natildeo se sentou quando se cansou natildeo enxugou o suor com nada aleacutem da

roupa que trajava natildeo assoou o nariz saudou a assembleia e aguardou o veredicto

dos juiacutezes1020

Dito em outros termos ele tratou com absoluta seriedade sua

apresentaccedilatildeo puacuteblica fato que revela segundo Champlin o quanto ele de fato

amava as coisas artiacutesticas e acreditava em seu proacuteprio talento chegando a se ver

enquanto atuava como um general em campanha A segunda ediccedilatildeo dos Neronia

entatildeo marca o uacuteltimo passo na evoluccedilatildeo de Nero como artista ele agora eacute um

competidor profissional e puacuteblico1021

Contudo essa seriedade o fazia assumir

comportamentos tiracircnicos pois ao que Taacutecito sugere ele controlava a todos

durante suas exibiccedilotildees O historiador fala que os soldados espancavam aqueles

que natildeo aplaudiam com entusiasmo suficiente e que vaacuterios equestres morreram

esmagados por tentarem sair do teatro no meio da turba1022

Em siacutentese se ele

tinha tanta devoccedilatildeo agrave sua arte queria que os outros tambeacutem tivessem apreciando-

a do jeito que ele entendia ser o correto e o melhor Em outras palavras o amor

pela arte se faz tirania ao se impor ao conjunto da populaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise cabe afirmar que a visatildeo taciteana negativa sobre o

empenho do princeps nas artes demonstra aquilo que a elite romana natildeo estava

disposta a tolerar um liacuteder que competisse ou exercesse pressatildeo nos nobres para

participarem de espetaacuteculos puacuteblicos Nero rompeu com o esperado tornando-se

um competidor nos teatros Essa sua atitude demonstra vigorosamente por que os

tradicionalistas o odiavam Eles o enxergavam como o liacuteder que violou a res

publica diminuindo o prestiacutegio imperial e o da aristocracia e aumentando em

detergeret ut nulla oris aut narium excrementa viserentur postremo flexus genu et coetum illum

manu veneratus sententias indicum opperiebatur ficto pavore et plebs quidem urbis histrionum

quoque gestus iuvare solita personabat certis modis plausuque composito crederes laetari ac

fortasse laetabantur per incuriam publici flagitii (Tac Ann 1642-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs

eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e Yardley (2008 p 378) 1019

Tac Ann 1651 1020

Tac Ann 1644 1021

CHAMPLIN 2005 p 51-75 1022

Tac Ann 1652-3

259

contrapartida o dos atores Eles achavam que tinham perdido poder e influecircncia

sob o seu governo Para Mouratidis pode ateacute ser que tenham perdido mesmo mas

natildeo devemos nos esquecer de que Nero tambeacutem saiu perdendo afinal os

historiadores romanos posteriores tentaram arduamente tornaacute-lo o imperador mais

infame de todos os tempos ndash e conseguiram Em consequecircncia ele depois de

mais de 20 seacuteculos tem sua imagem para a humanidade quase que integralmente

negativa e ligada a sua incapacidade de se afirmar simultaneamente como artista e

governante Eacute sob tal pano de fundo que devemos compreender o Nero artista1023

Apoacutes o teacutermino da segunda ediccedilatildeo dos Neronia ainda em 65 Taacutecito

noticia que Popeia foi assassinada

[] viacutetima de uma explosatildeo fortuita de raiva do seu marido de quem recebeu um chute durante a gravidez1024 Embora algumas autoridades registrem isso ndash mais por animosidade do que por crenccedila ndash eu natildeo daria creacutedito a histoacuteria de envenenamento Nero queria filhos e tinha uma enorme paixatildeo pela esposa Seu corpo

natildeo foi cremado segundo a praacutetica romana usual Foi embalsamado agrave moda da realeza estrangeira sendo preenchido com especiarias aromaacuteticas e entatildeo levado para o Mausoleacuteu dos Juacutelios Houve no entanto um funeral oficial e o proacuteprio Nero na rostra elogiou Popeia por sua beleza []1025

Taacutecito eacute muito categoacuterico ao afirmar que Nero chutou Popeia e ao rejeitar

os boatos de envenenamento Contudo o proacuteprio autor nos diz que o soberano a

amava muito e desejava ter filhos Natildeo haacute razatildeo tambeacutem para duvidarmos de que

o luto imperial foi intenso sobretudo se olharmos o funeral extravagante

concedido a ela1026

Seu corpo foi embalsamado ao inveacutes de cremado e colocado

intacto no Mausoleacuteu de Augusto no Campo de Marte tratamento bem destoante

do concedido ao corpo de Agripina por exemplo O ritual exoacutetico remetia agrave

realeza heleniacutestica As praacuteticas religiosas estrangeiras parecem ter ofendido os

1023

MOURATIDIS 1985 p 89-90 1024

Taacutecito fala que Popeia e Nero tiveram em 63 uma filha cujo nome era Claacuteudia Augusta mas

ela morreu com quatro meses (Tac Ann 15231-3) Em 65 ela estava graacutevida novamente 1025

Post finem ludicri Poppaea mortem obiit fortuita mariti iracundia a quo gravida ictu calcis

adflicta est neque enim venenum crediderim quamvis quidam scriptores tradant odio magis quam

ex fide quippe liberorum copiens et amori uxoris obnoxius erat corpus non igni abolitum ut

Romanus mos sed regum externorum consuetudine differtum odoribus conditur tumuloque

Iuliormn infertur ductae tamen publicae exequiae laudavitque ipse apud rostra formam eius et

quod divinae infantis parens fuisset aliaque fortunae munera pro virtutibus (Tac Ann 166) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Barrett e

Yardley (2008 p 379) 1026

GRIFFIN 2001 p 269

260

tradicionalistas romanos pois Nero outra vez prioriza a cultura grega em

detrimento da romana1027

Eacute curioso que o historiador tenha comentado tanto

sobre a personalidade nociva de Popeia e tatildeo pouco sobre seus uacuteltimos momentos

Ateacute mesmo na morte dela ele cita a alegria sentida por aqueles que a viam como

promiacutescua e cruel1028

Nesse sentido concordamos com Wood quando alega que

Taacutecito omitiu informaccedilotildees para propositalmente construir o retrato do Nero

uxoricida e do Nero cruel mantendo o padratildeo negativo da sua narrativa1029

Segundo Champlin o autor quis tornar a histoacuteria mais interessante mas acabou

legando algo ldquobom demais para ser verdaderdquo1030

Ademais tal relato de explosatildeo

de brutalidade contra uma esposa graacutevida natildeo eacute o primeiro da histoacuteria da tirania

sustenta Lefebvre De Heroacutedoto aprendemos que o rei persa Cambises tomado de

fuacuteria atingiu sua esposa graacutevida no estocircmago a qual deu agrave luz um bebecirc prematuro

e faleceu A narrativa da morte de Popeia transmitida a noacutes por Taacutecito portanto

parece ser um evento emprestado do repertoacuterio de crimes tradicionalmente

atribuiacutedos a deacutespotas e um meio de equiparar Nero a um tiacutepico tirano1031

Como sabemos ela natildeo foi a primeira viacutetima feminina de Nero Com

Agripina e Otaacutevia jaacute mortas o assassinato de Popeia para Beacutedoyegravere deixou o

princeps exposto Ao eliminar essas mulheres Nero estava aniquilando qualquer

chance de sua dinastia sobreviver a ele Ele evidentemente falhou em observar que

a uacutenica razatildeo pela qual havia uma dinastia era uma notaacutevel sucessatildeo de mulheres

que forneceram as uacutenicas linhas de descendecircncia duraacuteveis1032

A morte de Popeia lamentavelmente eacute o uacuteltimo episoacutedio da vida de Nero

narrado por Taacutecito Devido agrave perda dos livros finais dos Annales no processo de

transmissatildeo natildeo temos acesso aos restantes como o casamento com Messalina a

visita de Tiridates a Roma a turnecirc pela Greacutecia a revolta de Vindex e o suiciacutedio A

ausecircncia dos livros finais contudo natildeo nos impossibilita de perceber que para o

historiador em geral o governo neroniano comeccedilou bem e terminou mal No

iniacutecio o aconselhamento de Secircneca e Burro trouxe um momento de bem-estar

1027

Pliacutenio o Velho afirma que mais especiarias foram queimadas no funeral de Popeia do que a

Araacutebia produzira em um ano (Plin Nat 1241) 1028

Tac Ann 1671 1029

WOOD 2000 p 8-9 1030

CHAMPLIN 2005 p 111 1031

LEFEBVRE 2017 p 185 Uma boa discussatildeo sobre o destino de Popeia eacute realizada por

HOLZTRATTNER 1995 1032

BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 265

261

social para o Impeacuterio com um Principado aos moldes augustanos Houve

melhorias na gestatildeo do tesouro na ordem puacuteblica uma deferecircncia em relaccedilatildeo ao

Senado e uma promessa de separaccedilatildeo entre os interesses da res publica e os

pessoais Esse bom momento refletiu-se inclusive na resoluccedilatildeo do primeiro

conflito externo com os partas o qual embora natildeo tenha contado com a presenccedila

de Nero nos campos de batalha foi um grande sucesso Conforme Taacutecito a

situaccedilatildeo desandou com o assassinato de Britacircnico que expocircs os desejos

exagerados de Agripina de dominar o filho Descontente com o controle materno

e com suas ameaccedilas o princeps eliminou o irmatildeo e mais tarde a matildee a fim de se

emancipar daqueles que o impediam de ser livre Com o matriciacutedio em 59 a

influecircncia negativa de Agripina se esvaiu mas com ela tambeacutem se dissiparam as

influecircncias positivas de Secircneca e Burro sobretudo quando este uacuteltimo faleceu e o

filoacutesofo solicitou afastamento A partir daiacute ascenderam Tigelino e Popeia que

passaram a encorajar os piores viacutecios no soberano Eacute sob o vieacutes da influecircncia de

ambos que Taacutecito desenha o Nero antiprinceps cujos traccedilos foram o artiacutestico o

uxoricida o incendiaacuterio e o cruel Em suma o historiador nos mostra que Nero ao

ver seu caminho livre de controle afasta-se das linhas tradicionais delineadas por

Augusto direcionando-se para o caminho dos prazeres opccedilotildees que despertaram

insatisfaccedilotildees na elite romana nessa visatildeo geral apontada por Taacutecito

Cabe lembrar que ao compor seus retratos imperiais negativos Taacutecito

segue a ideia do caraacuteter exemplar da historia magistra uitae Em outros termos

adota a concepccedilatildeo da utilidade da Histoacuteria a qual deveria instruir por meio do

fornecimento de exemplos baseados na narrativa de acontecimentos em situaccedilotildees

e em descriccedilotildees de personagens Nos Annales Taacutecito retoma diversos exemplos

ceacutelebres do passado no intuito de exaltar as virtudes e criticar os viacutecios dos

cidadatildeos numa tentativa de transmitir uma doutrina moral de preservaccedilatildeo da

sociedade Sob essa perspectiva descreve a seus leitores as condutas malignas e

prejudiciais de um personagem histoacuterico (Nero) e de seus contemporacircneos

esperando que seu puacuteblico adote condutas contraacuterias inseridas na esfera da

virtude1033

O historiador acredita que o imperador deveria ser o primeiro entre os

melhores o chefe leal ao Senado e o comandante firme dos exeacutercitos O princeps

deveria ter um comportamento exemplar melhor do que o de todos os demais

1033

JOLY 2001 p 39

262

indiviacuteduos da sociedade romana E para ele Nero passou longe disso Ao

construir exempla em torno da dissoluccedilatildeo crescente aprofundada por um

Imperador que se tornou progressivamente pior do que a realidade que o cerca

Taacutecito nos mostra como o princeps foi i) um modelo de governante fraco pois

foi controlado por mulheres e libertos ii) um modelo de governante cruel uma

vez que cometeu vaacuterios assassinatos fugindo dos preceitos clementes

senequianos iii) um modelo de governante covarde e preguiccediloso haja vista que

natildeo resolveu os compromissos militares pessoalmente mas os designou a outros

e iv) um modelo de governante infame dado que se dedicou em excesso a

atividades e eventos artiacutesticos Em siacutentese Nero eacute um modelo de mau governante

e todas as boas accedilotildees e iniciativas que tomou se perdem como ele com o tempo

tanto com o passar de seu governo quanto com as geraccedilotildees que se lembram dele

mais por seus viacutecios dominantes no final e ocultos no iniacutecio

Eacute imprescindiacutevel observarmos como tal concepccedilatildeo se difere dos retratos

neronianos dos capiacutetulos anteriores e como haacute uma consolidaccedilatildeo da imagem

negativa Por exemplo no capiacutetulo 2 o das fontes contemporacircneas ao soberano

todos os autores foram unacircnimes em relatar a ascensatildeo prodigiosa de Nero

representando-o como um jovem com um Principado deveras promissor Nesse

momento natildeo houve criacuteticas agrave pessoa do governante ou ao seu reinado Por sua

vez no capiacutetulo 3 o das fontes flavianas o Nero extremamente positivo deu lugar

a um Nero fortemente negativo deixando de ser soacute prodigioso para se tornar

tambeacutem infausto matricida fratricida uxoricida tirano incendiaacuterio e cruel E

aqui nos Annales os negativos continuaram sendo majoritaacuterios mas os motivos e

as accedilotildees do imperador tornaram-se mais detalhados com a inclusatildeo de elementos

que ainda natildeo haviam surgido Eacute curioso ainda que para Taacutecito o retrato do Nero

prodigioso se manteve por algum tempo poreacutem soacute se sustentou enquanto o

princeps teve bons conselheiros e foi controlado Isso significa que o Nero

negativo estaacute se tornando cada vez mais complexo restando do positivo soacute um

resquiacutecio pequenino

Para encerrar natildeo podemos nos esquecer de que a constituiccedilatildeo desses

novos retratos do princeps teve relaccedilatildeo direta com a concepccedilatildeo moralista da

histoacuteria de Taacutecito De acordo com Marques e Joly o historiador acreditava em um

263

processo gradual de deterioraccedilatildeo moral do Principado1034

Herdeiro dos

pressupostos gregos de escrita da Histoacuteria ele tinha uma preocupaccedilatildeo com o

desenvolvimento do Estado romano focado na comparaccedilatildeo dos valores morais do

presente com as virtudes idealizadas do passado Nesse acircmbito elabora os

Annales a partir de uma estrutura narrativa que constroacutei uma progressiva

decadecircncia poliacutetica e moral do Principado indo de Augusto o melhor dos

soberanos a Nero o pior deles ldquoNero seria o ponto maacuteximo da degradaccedilatildeo dos

imperadores Juacutelios-Claacuteudiordquo1035

Portanto haacute uma caracterizaccedilatildeo dos personagens

como uma forma de evidenciar uma determinada sucessatildeo decadente Por

exemplo o esquema Tibeacuterio-Claacuteudio-Nero traz claros indiacutecios da evoluccedilatildeo

degradante do Principado para Taacutecito ldquoTibeacuterio eacute cruel poreacutem ainda eficiente

Claacuteudio natildeo eacute essencialmente cruel [] mas eacute inepto jaacute Nero natildeo soacute eacute cruel

como tambeacutem eacute incapaz de governar absorto em sua devassidatildeordquo1036

Em conclusatildeo nos Annales tivemos as seguintes categorias i) Nero

infausto (nascimento de Nero e casamento com Otaacutevia) ii) Nero prodigioso

(ascensatildeo) iii) Nero fratricida (assassinato de Britacircnico) iv) Nero artista (jogos

no anfiteatro assassinato de Agripina Juvenalia primeira ediccedilatildeo dos Neronia

Naacutepoles incecircndio de Roma e segunda ediccedilatildeo dos Neronia) v) Nero matricida

(nascimento de Nero e assassinato de Agripina) vi) Nero antiprinceps (ascensatildeo

conflito com os partas jogos no anfiteatro Juvenalia conflito na Britacircnia

casamento com Popeia divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia e conspiraccedilatildeo de

Pisatildeo) vii) Nero cruel (assassinato de Britacircnico casamento com Popeia divoacutercio

exiacutelio e assassinato de Otaacutevia perseguiccedilatildeo aos Cristatildeos conspiraccedilatildeo de Pisatildeo e

assassinato de Popeia) viii) Nero tirano (assassinato de Britacircnico) ix) Nero

incendiaacuterio (incecircndio de Roma e construccedilatildeo da Domus Aurea) x) Nero

construtor (construccedilatildeo da Domus Aurea) e xi) Nero uxoricida (assassinato de

Otaacutevia e assassinato de Popeia) Cabe-nos agora analisar as representaccedilotildees de

Nero construiacutedas por Suetocircnio

1034

Vaacuterios historiadores antigos tambeacutem tinham essa visatildeo pessimista a exemplo de Saluacutestio

grande influecircncia de Taacutecito Cf OAKLEY p 195-211 1035

MARQUES 2010 p 54 1036

JOLY 2004 p 112-123

264

Suetocircnio De Vita Caesarum

Sabemos um pouco mais sobre Caio Suetocircnio Tranquilo do que sobre

Taacutecito1037

Algumas cartas de Pliacutenio o Jovem e certos escritos do proacuteprio

Suetocircnio nos trazem informaccedilotildees concisas da sua vida1038

Ele nasceu por volta do

ano 70 na cidade de Hippo Reacutegio no norte da Aacutefrica em uma rica famiacutelia

equestre1039

Seu pai Suetocircnio Laeto serviu como tribuno militar ao lado do

imperador Otatildeo na 13a legiatildeo durante os conflitos civis de 69 nos quais

testemunhou a derrota desse soberano A decepccedilatildeo paterna com as guerras fez

Suetocircnio desinteressar-se pelo ofiacutecio militar e se dedicar aos estudos da gramaacutetica

e da retoacuterica em Roma1040

Ao finalizar os estudos assumiu trecircs postos de

prestiacutegio no serviccedilo imperial a studiis a bibliotechis e ab epistulis1041

O

primeiro lhe foi concedido pelo imperador Trajano (98-117) por volta de 114 e

1151042

e lhe gerou trecircs possiacuteveis funccedilotildees i) pesquisar fatos que dessem a Trajano

um embasamento para tomar decisotildees juriacutedicas ii) selecionar dentre todas as

obras redigidas e dedicadas ao soberano as que realmente lhe interessassem e iii)

elaborar os discursos proferidos pelo princeps1043

O segundo posto tambeacutem lhe

foi conferido por Trajano em 116 ou 117 e se assemelhava ao que entendemos

hoje por um bibliotecaacuterio1044

Para celebrar sua conquista da Daacutecia em 107 o

imperador construiu um novo foacuterum flanqueado por duas bibliotecas (bibliothecae

Ulpiae) cujos arquivos ficaram ao encargo de Suetocircnio O uacuteltimo posto ab

epistulis foi-lhe oferecido por Adriano (117-138) entre 119 e 1221045

Aiacute ficaram

sob sua responsabilidade a redaccedilatildeo de cartas em nome do princeps aos

governadores provinciais a administraccedilatildeo das correspondecircncias militares e o

recolhimento e a organizaccedilatildeo das informaccedilotildees do Impeacuterio a serem transmitidas a

1037

ESTEVES 2015 p 1 1038

Em 1950 foram realizadas escavaccedilotildees na antiga cidade de Hippo Reacutegio atual Argeacutelia Na

ocasiatildeo foi encontrada uma inscriccedilatildeo em maacutermore com todas as magistraturas ocupadas por

Suetocircnio Cf MAREC PFLAUM 1952 p 76-85 1039

ROLFE 1913 p 210 1040

Suet Otho 10 WALLACE-HADRILL 1995 p 3-5 1041

Suetocircnio sempre contou com os favores de Pliacutenio o Jovem Por exemplo ele intermediou a

compra de uma propriedade para Suetocircnio e pediu a Trajano que estendesse o ius trium liberorum

do bioacutegrafo (Plin Ep 124 1094) 1042

TOWNEND 1961 p 103 1043

DACK 1963 p 177-184 MILLAR 1977 p 205 1044

TOWNEND 1961 p 103 1045

BENNETT 2005 p 158 LINDSAY 1994 p 459

265

Adriano1046

Segundo a Historia Augusta Suetocircnio foi demitido dessa uacuteltima

posiccedilatildeo por manter ldquorelaccedilotildees informaisrdquo com Sabina esposa de Adriano1047

Apesar da desonra Edwards afirma que devemos reconhecer a ldquodistinccedilatildeo

literaacuteriardquo do bioacutegrafo pois ele assumiu trecircs postos influentes e importantes

politicamente1048

Apoacutes a demissatildeo natildeo temos mais notiacutecias de Suetocircnio nem em

obras posteriores nem em suas proacuteprias Ateacute mesmo a data da sua morte eacute

desconhecida1049

Foram esses postos que forneceram a Suetocircnio o grosso das informaccedilotildees

necessaacuterias para a composiccedilatildeo do De Vita Caesarum e que o diferenciavam de

outros autores contemporacircneos os quais natildeo tiveram o mesmo acesso a toda essa

documentaccedilatildeo com a qual ele trabalhou no seu dia a dia1050

A obra escrita entre

119 e 122 traz diversos relatos que versam sobre vida dos imperadores e que satildeo

organizados em oito livros de forma temaacutetica1051

A opccedilatildeo por tal abordagem eacute

justificada pelo proacuteprio Suetocircnio que defende que soacute assim o leitor perceberia e

avaliaria os relatos claramente1052

Os seis primeiros livros englobam de Juacutelio

Ceacutesar a Nero sendo cada um destinado a um liacuteder O seacutetimo aborda os trecircs

imperadores de 68-69 (Galba Otatildeo e Viteacutelio) e o oitavo engloba os trecircs Flavianos

(Vespasiano Tito e Domiciano) Em geral os relatos comeccedilam com uma

descriccedilatildeo da famiacutelia e do nascimento do princeps passam para a exposiccedilatildeo do seu

cursus honorum da sua ascensatildeo e do seu governo comentam sobre os seus

aspectos fiacutesicos e comportamentais e terminam com a sua morte1053

O texto do

De Vita Caesarum felizmente foi preservado praticamente em sua totalidade o

que natildeo aconteceu com outras obras de Suetocircnio Apenas parte do De Viris

Illustribus (Sobre Homens Ilustres) foi conservada e outros trabalhos como

tratados sobre festivais romanos e biografias sobre cortesatildes famosas foram

perdidos por completo1054

Cabe comentar ainda que o De Vita Caesarum estaacute inserido no gecircnero

biograacutefico estilo literaacuterio complexo e difiacutecil de definir Essa dificuldade jaacute vem

1046

CROOK 1956-1957 p 18-22 1047

VH 113 1048

EDWARDS 2000 p viii 1049

Sobre a vida de Suetocircnio cf BALDWIN 1975 p 61-70 1050

OSGOOD 2020 p viii 1051

Sobre a dataccedilatildeo do De Vita Caesarum cf GOacuteES 2015 p 24-31 1052

Suet Aug 9 1053

RIVES 2007 p 15-16 HURLEY 2001 p 4-5 1054

EDWARDS 2000 p ix

266

desde os autores claacutessicos e segue com os comentadores modernos que natildeo

entram em consenso sobre determinados aspectos do gecircnero Inicialmente

vejamos o que disseram os claacutessicos Entre os textos antigos que abordaram o

vocaacutebulo biografia o de Plutarco eacute um dos que nos trazem a melhor definiccedilatildeo

Este menciona

Estou escrevendo neste livro as vidas do rei Alexandre e de Ceacutesar [] e a multidatildeo das accedilotildees a serem narradas eacute tatildeo grande que natildeo diremos nada como prefaacutecio [] caso eu natildeo conte todas as accedilotildees famosas desses homens [] peccedilo ao leitor que

natildeo reclame Natildeo estou escrevendo histoacuterias mas vidas e nos feitos mais ilustres nem sempre haacute uma manifestaccedilatildeo de virtude ou viacutecio pois uma coisa ligeira como uma frase ou uma brincadeira muitas vezes faz uma revelaccedilatildeo maior do caraacuteter do que batalhas [] [] Assim como os pintores obtecircm as semelhanccedilas em seus retratos a partir do rosto e da expressatildeo dos olhos [] mas datildeo pouca importacircncia agraves outras partes do

corpo entatildeo se deve permitir que eu dedique-me mais aos sinais da alma dos homens e por meio deles retrate a vida de cada um deixando a outros a descriccedilatildeo de suas grandes lutas1055

Plutarco diz a seu leitor que pretende discutir sobretudo os viacutecios e as

virtudes dos seus biografados (Alexandre e Ceacutesar) Por causa disso alega que natildeo

comentaraacute sobre as batalhas e os demais eventos histoacutericos nos quais as

personagens estiveram envolvidas Isso cabia aos historiadores e natildeo a ele um

bioacutegrafo afinal estava escrevendo vidas natildeo histoacuterias Por estar interessado no

caraacuteter do biografado preocupou-se com fatos aparentemente insignificantes mas

que a seu ver satildeo importantes para revelar o perfil do indiviacuteduo Assim um

ponto se torna evidente aqui a separaccedilatildeo entre biografia (ldquonarrar uma vidardquo ou

ldquoexpor um caraacuteterrdquo) e histoacuteria (ldquoexplicar accedilotildeesrdquo) Mas o que isso significa Que

os dois gecircneros embora sejam epidiacuteticos satildeo distintos estando a biografia

centrada na narrativa do caraacuteter e a histoacuteria no relato das accedilotildees Para Costrino haacute

um ponto evidente aqui a biografia estaacute vinculada ao gecircnero epidiacutetico da retoacuterica

1055

τὸν Ἀλεξάνδρου τοῦ βασιλέως βίον καὶ τοῦ Καίσαρος ὑφ᾽ οὗ κατελύθη Πομπήϊος ἐν τούτῳ τῷ

βιβλίῳ γράφοντες διὰ τὸ πλῆθος τῶν ὑποκειμένων πράξεων οὐδὲν ἄλλο προεροῦμεν ἢ

παραιτησόμεθα τοὺς ἀναγινώσκοντας ἐὰν μὴ πάντα μηδὲ καθ᾽ ἕκαστον ἐξειργασμένως τι τῶν

περιβοήτων ἀπαγγέλλωμεν ἀλλὰ ἐπιτέμνοντες τὰ πλεῖστα μὴ συκοφαντεῖν οὔτε γὰρ ἱστορίας

γράφομεν ἀλλὰ βίους οὔτε ταῖς ἐπιφανεστάταις πράξεσι πάντως ἔνεστι δήλωσις ἀρετῆς ἢ κακίας

ἀλλὰ πρᾶγμα βραχὺ πολλάκις καὶ ῥῆμα καὶ παιδιά τις ἔμφασιν ἤθους ἐποίησε μᾶλλον ἢ μάχαι

μυριόνεκροι καὶ παρατάξεις αἱ μέγισται καὶ πολιορκίαι πόλεων [] (Plut Alex 1) A traduccedilatildeo para

o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Perrin (1919 p 225)

267

no sentido de que ela eacute apontada como um discurso feito para demonstrar os

viacutecios e as virtudes do biografado1056

Outra questatildeo relevante para noacutes nessa apresentaccedilatildeo da biografia por

Plutarco eacute a sua aproximaccedilatildeo com a pintura Ele deixa claro que natildeo trataraacute de

todos os elementos relativos agraves vidas dos biografados mas faraacute uma seleccedilatildeo que

permita uma composiccedilatildeo com o objetivo de estabelecer mais claramente o seu

caraacuteter Com esse propoacutesito procede agrave inuentio e seleciona dentre alguns dos

muitos elementos de um repertoacuterio amplo e jaacute conhecido aqueles que serviriam

para compor o que chamamos de retrato composiccedilatildeo feita pelo autor para um fim

determinado Aqui provavelmente o leitor vai lembrar da ceacutelebre locuccedilatildeo

horaciana ldquocomo a pintura eacute a poesia []rdquo1057

Vale ressaltar contudo que a

expressatildeo de Horaacutecio estaacute associada ao papel fundamental do observador da

narrativa ao contraacuterio do que Plutarco sugere O que Horaacutecio quer dizer eacute que a

mesma poesia poderaacute agradar ou natildeo conforme o acircngulo de observaccedilatildeo do

leitorouvinte A leitura dos versos 361-362 de Horaacutecio deixa essa distinccedilatildeo com o

seu uso vulgar bem clara A preocupaccedilatildeo aqui se move da composiccedilatildeo para a

observaccedilatildeo para a criacutetica Os autores sabiam que as suas obras seriam avaliadas

como pinturas tanto de perto quanto de longe e isso afetaria o efeito que teriam

Daiacute adveacutem o esforccedilo por orientar o olhar do leitorouvinte e tentar obter uma

avaliaccedilatildeo favoraacutevel da posteridade que era fundamental para o destino que teriam

essas obras (como no sentido bem expresso por Tuciacutedides em sua ceacutelebre foacutermula

κτῆμα ἐς αἰεί ndash ldquouma aquisiccedilatildeo para semprerdquo) As biografias deveriam revelar

algo que natildeo fosse obscuro mas que dissesse respeito ao homem de diversas

temporalidades portanto para aleacutem de um tempo especiacutefico (de origem de escrita

e ateacute mesmo de leituraescuta) Caso agradassem a uma soacute possibilidade de ver ou

a de distacircncia perder-se-iam Esse ponto eacute dado quando Horaacutecio afirma ldquoesta [a

poesia] quer ser vista na obscuridade e aquela [a pintura] agrave viva luz por natildeo

recear o olhar penetrante dos seus criacuteticos esta soacute uma vez agradou aquela 10

vezes vista sempre agradaraacuterdquo1058

Como temos insistido e os antigos jaacute

1056

COSTRINO 2014 p 259-260 1057

Vt pictura poesis erit quae si proprius stes te capiat magis et uqaedam si longius abstes

(Hor Ars P 361) Traduccedilatildeo de Fernandes (2012 p 151) 1058

Haec amat obscurum uolet haec sub luce uideri iuducus argutum quae non formidat

acumen haec placuit semel haec deciens repetita placebit (Hor Ars P 363-365) Traduccedilatildeo de

Fernandes (2012 p 151)

268

apontavam para isso a escrita das obras e os puacuteblicos a que se voltavam natildeo

podem ser entendidos como uma categoria geneacuterica e uniforme de ldquofontes

antigasrdquo (como se fossem todas contemporacircneas) tampouco o puacuteblico pode ser

visto de forma simples e uniforme Essa combinaccedilatildeo e integraccedilatildeo de

temporalidades e olhares que constroem os retratos podem ser melhor entendidas

como viemos defendendo em nossa Tese pelo conceito de allelopoiesis

Dito isso passemos aos debates modernos Rolfe argumenta que o texto

suetoniano natildeo eacute nem uma biografia nem uma histoacuteria Natildeo eacute biografia porque a

concepccedilatildeo de biografia como a entendemos hoje ndash construccedilatildeo do retrato fiel de

um indiviacuteduo ao longo da sua vida ndash natildeo existia na Antiguidade1059

E natildeo eacute

histoacuteria porque os grandes acontecimentos satildeo descartados e a cronologia dos

fatos eacute negligenciada exceto para as datas de nascimento e de morte dos

imperadores Por isso Rolfe sustenta que devemos ler Suetocircnio dentro das suas

particularidades quais sejam as de um escritor com acesso a vaacuterios documentos

que ao contraacuterio de um historiador antigo ou de um investigador moderno soacute

desejava entreter seus ouvintes com anedotas1060

Momigliano e Silva tambeacutem contribuem com esse debate Para eles a

histoacuteria e a biografia no mundo antigo natildeo possuiacuteam regras formais e

consolidadas de produccedilatildeo constituindo muito mais estilos de escrita Quando

havia uma separaccedilatildeo entre as duas ela residia em quatro aspectos i) nas formas

de estruturaccedilatildeo do discurso (narrativo-cronoloacutegico ou descritivo-temaacutetico) ii) no

maior ou menor usos de anedotas iii) na explicitaccedilatildeo (ou natildeo) de julgamentos por

parte do bioacutegrafo acerca do caraacuteter do biografado e iv) na maior ou menor

aproximaccedilotildees da narrativa dos toacutepicos discursivos caracteriacutesticos da

historiografia1061

Portanto a diferenccedila entre histoacuteria e biografia natildeo se dava no

plano da oposiccedilatildeo entre a veracidade (do relato historiograacutefico) e a natildeo veracidade

(do relato biograacutefico) mas na forma de se construir o texto1062

Nessa perspectiva Joly sustenta que Suetocircnio elaborou uma estruturaccedilatildeo

especiacutefica para o seu texto a temaacutetica Isso quer dizer que ele reuniu as narrativas

dos Juacutelio-Claacuteudios em temas e em grupos e natildeo em ordem cronoloacutegica Tal

1059

Silva (2008 p 69) esclarece ldquoa palavra lsquobiografiarsquo soacute foi utilizada pela primeira vez no seacuteculo

V d C e lsquoautobiografiarsquo apenas no final do seacuteculo XVIIIrdquo 1060

ROLFE 1913 p 214-221 1061

MOMIGLIANO 1993 p 90-99 SILVA 2008 p 77 1062

SILVA 2008 p 76

269

estruturaccedilatildeo contudo natildeo torna o De Vita Caesarum menos valoroso afirma o

autor Ao contraacuterio a natildeo adoccedilatildeo das balizas cronoloacutegicas leva o historiador

moderno a repensar ldquo[] a posiccedilatildeo hegemocircnica que foi conferida a determinadas

obras histoacutericas a ponto de tornaacute-las como as uacutenicas chaves para se interpretar o

Principado de Nerordquo1063

Ou seja o texto do bioacutegrafo nos ajuda a romper com o

ciacuterculo vicioso historiograacutefico de enxergar os Annales e a Historia Romana como

as uacutenicas fontes fidedignas para se compreender o governo neroniano

Apresentada a organizaccedilatildeo interna da obra e discutidos alguns aspectos do

seu gecircnero literaacuterio passemos agrave investigaccedilatildeo do primeiro episoacutedio da vida de

Nero contido no De Vita Caesarum o seu nascimento descrito no contexto da

genealogia familiar imperial O intento do bioacutegrafo eacute ldquo[] relatar sobre os vaacuterios

membros da famiacutelia para deixar mais claro de que modo Nero desviou-se das

virtudes dos seus ancestrais e reproduziu o legado dos viacutecios de cada umrdquo1064

Assim o bisavocirc de Nero Cneu Domiacutecio Aenobarbo eacute apresentado como um

homem de temperamento selvagem e covarde o avocirc Luacutecio Domiacutecio Aenobarbo

eacute retratado como um sujeito de virtudes e superior ao resto da famiacutelia o pai Cneu

Domiacutecio Aenobarbo eacute exposto como um indiviacuteduo arrogante aduacuteltero cruel e

afeito agraves corridas de bigas e agraves lutas gladitoriais1065

e a matildee Agripina eacute

caracterizada como siacutembolo da falta de moderaccedilatildeo1066

Foi dessa linhagem que

surgiu Nero Ele

[] nasceu em Acircncio [] no dia 15 de dezembro ao amanhecer de modo que foi tocado pelos raios de sol quase antes de ser tocado pela terra Com relaccedilatildeo ao seu horoacutescopo havia muitas prediccedilotildees temerosas feitas por muita gente as quais se juntaram agrave afirmaccedilatildeo nefasta do pai Domiacutecio

proferida entre as felicitaccedilotildees dos amigos de que nada poderia ter nascido dele e de Agripina que natildeo fosse odioso eou um flagelo para o Estado1067

1063

JOLY 2005 p 124-125 A respeito das diferenccedilas entre histoacuteria e biografia cf STADTER

2007 p 540 Sobre a cronologia da vida de Nero em Suetocircnio cf GALLIVAN 1974 p 385-396 1064

Pluris e familia cognosci referre arbitror quo facilius appareat ita degenerasse a suorum

virtutibus Nero ut tamen vitia cuiusque quasi tradita et ingenita rettulerit (Suet Nero 12) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000

p 195) 1065

Suet Nero 2-4 1066

Suet Cl 263 1067

Nero natus est Anti post VIIII mensem quam Tiberius excessit XVIII Kal Ian tantum quod

exoriente sole paene ut radiis prius quam terra contingeretur De genitura eius statim multa et

formidulosa multis coniectantibus praesagio fuit etiam Domiti patris vox inter gratulationes

amicorum negantis quicquam ex se et Agrippina nisi detestabile et malo publico nasci potuisse

270

Como verificamos o bioacutegrafo representa o nascimento do princeps como

um pressaacutegio de maacute sorte Apresenta os astroacutelogos fazendo prediccedilotildees temerosas ndash

a partir do horoacutescopo da crianccedila ndash e o proacuteprio pai de Nero afirmando que nada de

bom viria dele e de Agripina1068

Melhor dizendo ele usa a ancestralidade do

jovem como base para a construccedilatildeo da narrativa de modo que os defeitos de

caraacuteter dos antepassados se transformam em justificativas para os futuros defeitos

de Nero1069

Barrett Fantham e Yardley elucidam que os romanos davam muita

importacircncia para os traccedilos familiares herdados fato que explica por que Suetocircnio

focou tanto nas falhas dos Aenobarbos e de Agripina1070

O que tambeacutem explica

tal foco segundo Rolfe eacute o proacuteprio gecircnero biograacutefico que envolvia um resumo

da vida do sujeito e da histoacuteria da sua famiacutelia Assim um bioacutegrafo destacava as

virtudes e os viacutecios dos ancestrais para legitimar as virtudes e os viacutecios do

governante descrito1071

Resumindo para Suetocircnio Nero eacute ndash e seraacute ndash um liacuteder

infausto porque possuiacutea um pesado fardo geneacutetico natildeo havia como escapar a isso

Esse excerto tambeacutem nos faz pensar que o bioacutegrafo ao contraacuterio de Taacutecito

valoriza as informaccedilotildees pessoais (para a criacutetica moderna em excesso) Ele faz

descriccedilotildees pessoais e muito especiacuteficas isto eacute por uma amplificaccedilatildeo retoacuterica

conduz a uma abordagem bastante visual dos fenocircmenos quase

cinematograacutefica1072

Eacute importante mencionar ainda que essa ideia suetoniana do princeps

como ldquoflagelo para o Estadordquo natildeo eacute nova tendo jaacute sido construiacuteda por Pliacutenio o

Velho Na Naturalis Historia o enciclopedista comenta sobre o peacutessimo caraacuteter

(Suet Nero 61) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 197) 1068

Suetocircnio nos daacute as caracteriacutesticas fiacutesicas de Nero ldquo[] era de estatura mediana corpo

manchado e malcheiroso cabelo quase loiro rosto mais agradaacutevel do que atraente olhos

acinzentados um tanto fracos pescoccedilo grosso barriga saliente pernas finas e sauacutede robusta Na

verdade apesar de sua vida de luxo decadente ele adoeceu apenas 3 vezes durante seu reinado de 14 anos e mesmo assim natildeo seriamente o suficiente para deixar de beber ou manter os seus outros

haacutebitos Em sua aparecircncia e vestimenta ele era tatildeo ultrajante a ponto de ter o cabelo sempre em

camadas []rdquo Statura fuit prope iusta corpore maculoso et fetido subflavo capillo vultu pulchro

magis quam venusto oculis caesis et hebetioribus cervice obesa ventre proiecto gracillimis

cruribus valitudine prospera nam qui luxuriae immoderatissimae esset ter omnino per

quattuordecim annos languit atque ita ut neque vino neque consuetudine reliqua abstineret circa

cultum habitumque adeo pudendus ut comam semper in gradus formatam peregrinatione Achaica

etiam pone verticem summiserit ac plerumque synthesinam indutus ligato circum collum sudario

in publicum sine cinctu et discalciatus (Suet Nero 51) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 225) 1069

GEER 1931 p 57-58 1070

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 3 1071

ROLFE 1913 p 215-224 1072

BOTELHO 2016 p 1939-1949

271

de Agripina citando o nascimento antinatural de Nero e pintando-o como um

futuro ldquoinimigo do gecircnero humanordquo1073

A repeticcedilatildeo de tal ideia pelo bioacutegrafo

mostra-nos que a imagem do Nero infausto natildeo soacute se manteve na virada do seacuteculo

I para o II como tambeacutem se reforccedilou e se tornou mais elaborada passando a

envolver elementos astroloacutegicos e a famiacutelia paterna do imperador para aleacutem da

materna Por allelopoiesis Suetocircnio utiliza algo jaacute existente ndash o caraacuteter negativo

de Nero advindo de Agripina ndash e constroacutei uma configuraccedilatildeo nova e mutuamente

dependente da configuraccedilatildeo do passado ndash o caraacuteter negativo de Nero advindo de

Agripina de Domiacutecio e dos astroacutelogos

Os proacuteximos anos da vida do princeps satildeo bastante conturbados Por

exemplo Suetocircnio comenta que Agripina foi enviada para o exiacutelio e que Nero

fica desse modo sob os cuidados da sua tia Leacutepida a qual o coloca sob a tutoria

de um danccedilarino e de um barbeiro1074

No entanto Claacuteudio ao se tornar

imperador chama-a de volta a Roma e a restabelece em sua posiccedilatildeo social1075

Natildeo demora entatildeo para Agripina se aproveitar dos favores de Claacuteudio e seduzi-

lo convencendo-o a se casar com ela e a adotar Nero1076

Assim

no deacutecimo primeiro ano de vida eacute adotado por Claacuteudio e entregue para ser educado por Aneu Secircneca que jaacute era senador [] Quando apoacutes a sua adoccedilatildeo seu irmatildeo Britacircnico por haacutebito continua a chamaacute-lo de Aenobarbo ele tenta convencer seu pai de que Britacircnico natildeo era realmente seu filho mas um substituto

[] Como se natildeo bastasse [] adotar seu enteado ele repetidamente anuncia que ningueacutem jamais havia sido incluiacutedo na famiacutelia dos Claudii atraveacutes de adoccedilatildeo1077

Notemos que o bioacutegrafo ao contraacuterio de Taacutecito natildeo realccedila tanto o caraacuteter

manipulador de Agripina e de Pallas na adoccedilatildeo ele soacute narra que Claacuteudio priorizou

1073

Plin Nat 78 1074

Suetocircnio tambeacutem afirma que o princeps perdeu o pai aos trecircs anos de idade sendo privado de

um terccedilo da sua propriedade (Suet Nero 63) 1075

Suet Nero 63-4 1076

Suet Cl 26 1077

Undecimo aetatis anno a Claudio adoptatus est Annaeoque Senecae iam tunc senatori in

disciplinam traditus Ferunt Senecam proxima nocte visum sibi per quietem C Caesari

praecipere et fidem somnio Nero brevi fecit prodita immanitate naturae quibus primum potuit

experimentis Namque Britannicum fratrem quod se post adoptionem Ahenobarbum ex

consuetudine salutasset [] Adsciturus in nomen Neronem quasi parum reprehenderetur quod

adulto iam filio priuignum adoptaret identidem divulgavit neminem umquam per adoptionem

familiae Claudiae insertum (Suet Nero 7 Cl 392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 198)

272

Nero em relaccedilatildeo a Britacircnico1078

Ao fazer isso consideramos que ele indica seu

descontentamento com o procedimento legal1079

Segundo Lindsay e Frighetto a

adoccedilatildeo em Roma integrava um sistema que garantia a continuidade da memoacuteria

do nome do poder e da riqueza da famiacutelia1080

A prerrogativa para a adoccedilatildeo

pautava-se ldquoteoricamente no princiacutepio estoico do virtuosismo moral e na

capacidade poliacutetica do adotado revelando dessa forma a escolha daquele que

fosse o mais capacitado para governar []rdquo1081

Assim se a loacutegica era perpetuar a

memoacuteria de uma famiacutelia e selecionar o mais capacitado como um indiviacuteduo

proveniente de uma linhagem tatildeo defeituosa seria uma boa escolha Como Nero

fruto de pai e matildee desonrosos sucederia Claacuteudio digna e virtuosamente Eacute o que

Suetocircnio estaacute sugerindo A sua insatisfaccedilatildeo eacute clara Claacuteudio trouxe indignidade agrave

proacutepria casa ao eleger um Nero infausto como sucessor1082

Depois da adoccedilatildeo Suetocircnio nos conta que o soberano realiza sua primeira

apariccedilatildeo puacuteblica no Foacuterum para receber a toga virilis prometendo presentes para

a plebe e dinheiro para os pretorianos Em seguida o jovem fala no Senado

expressando gratidatildeo ao pai ldquoNatildeo muito apoacutes isso toma Otaacutevia como esposa e

oferece jogos no Circo e espetaacuteculos com animais como oferendas pela sauacutede1083

de Claacuteudiordquo1084

Nero logo se cansa ldquo[] da companhia de Otaacutevia e quando seus

amigos criticam seu comportamento ele responde que ela deveria se contentar

com a insiacutegnia de esposardquo1085

Percebemos aiacute a representaccedilatildeo do liacuteder como um sujeito desmedido e

debochado Cleland et al explicam que as insiacutegnias eram siacutembolos marcadores de

status social entre os romanos podendo variar entre joias broches vestimentas e

ateacute mesmo cores de roupas (clavus e praetexta)1086

Cientes disso entendemos

1078

Palas originalmente um escravo de Antocircnia filha de Claacuteudio se tornou influente sobre Claacuteudio como encarregado das contas (Suet Cl 28) 1079

GOacuteES 2015 p 102 1080

LINDSAY 2009 p 190 1081

FRIGHETTO 2012 p 37 1082

GOacuteES 2015 p 98 1083

Claacuteudio tinha ataques constantes de azia (Suet Cl 31) 1084

Nec multo post duxit uxorem Octaviam ediditque pro Claudi salute circenses et venationem

(Suet Nero 72) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 199) Nas referecircncias Cl 272 e Cl 291 Suetocircnio narra o noivado

entre Otaacutevia e Silano e a morte deste 1085

Octaviae consuetudinem cito aspernatus corripientibus amicis sufficere illi debere respondit

uxoria ornamenta (Suet Nero 351) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215) 1086

CLELAND et al 2007 p 96

273

que Suetocircnio demarca a atitude despreziacutevel do jovem em relaccedilatildeo agrave esposa a qual

soacute receberia uma simples insiacutegnia e natildeo amor Isso eacute intrigante porque

transforma Otaacutevia em uma mulher totalmente passiva agrave espera dos sentimentos

do marido bem diferente da personagem figurada na Octavia e nos Annales Por

exemplo Pseudo-Secircneca comenta sobre a repulsa que ela sentia ao pensar em

beijar o esposo haja vista que ele havia matado o seu pai e Taacutecito declara que ela

viveu triste desde o primeiro dia do casamento pois foi usada como instrumento

de legitimaccedilatildeo dinaacutestica1087

Cada autor desse modo mostra um motivo para a

aversatildeo de Otaacutevia a Nero Aqui nem a primeira nem a segunda razotildees satildeo citadas

Suetocircnio como um bom bioacutegrafo foca soacute no caraacuteter de Nero desenhando-o como

um Nero cruel insensiacutevel

Poreacutem consideramos que embora natildeo tenha citado os porquecircs elaborados

por Pseudo-Secircneca e por Taacutecito Suetocircnio de certa forma apropria-se dos retratos

neronianos desses autores Por exemplo ao construir a imagem do Nero infausto e

do Nero cruel embasa-se em tais narrativas preteacuteritas e daacute a elas um novo valor

eacutetico ligado aos traccedilos pessoais da famiacutelia do jovem e aos do proacuteprio jovem

Assim erige um retrato mais fidegino de Nero correspondente agrave leitura que ele

sabia que os romanos jaacute faziam da pessoa do Ceacutesar1088

Tratemos agora do episoacutedio da ascensatildeo de Nero ocorrida em 54

Suetocircnio alega que tanto o casamento com Agripina quanto a adoccedilatildeo de Nero e o

matrimocircnio do jovem com Otaacutevia foram lamentados por Claacuteudio no fim da sua

proacutepria vida1089

Para reparar os erros cometidos o imperador adianta a concessatildeo

da toga virilis a Britacircnico argumentando que finalmente o povo romano teria um

Ceacutesar verdadeiro Ao perceber esse arrependimento Agripina comeccedila a planejar o

assassinato do marido que eacute executado por meio do uso de cogumelos

envenenados um tipo de comida muito apreciada por Claacuteudio1090

Ele falece em

seu 64deg ano de vida e Agripina faz de tudo para ocultar a sua morte ateacute que os

1087

[Sen] Oct 110 Tac Ann 14633 1088

BRANDAtildeO 2009a p 76 1089

Dorey (1966 p 144-155) discute esse arrependimento no artigo Claudius und seine Ratgeber 1090

Suetocircnio eacute bem enfaacutetico ao afirmar ldquonatildeo haacute algueacutem que duvide do fato de ele ter morrido

envenenado []rdquo Et veneno quidem occisum convenit (Suet Cl 442) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 193)

274

arranjos necessaacuterios para a sucessatildeo sejam feitos1091

E entatildeo Nero que tinha 16

anos aproxima-se dos guardas entre a sexta e a seacutetima hora

Diante da escadaria do Palatino eacute saudado como imperador e

levado de liteira ao acampamento pretoriano onde se dirige aos soldados brevemente antes de ir para o Senado [] De todas as grandes honras que lhe foram conferidas ele recusa apenas uma o tiacutetulo de ldquoPai da Paacutetriardquo que considera inadequado para algueacutem da sua idade1092

Nero proporciona a Claacuteudio um funeral admiraacutevel no qual o declara um

deus1093

Tambeacutem presta grandes homenagens agrave memoacuteria do seu pai Domiacutecio e

permite que sua matildee tenha enorme influecircncia sobre os assuntos puacuteblicos e

privados1094

Para sublinhar a aparecircncia de seu bom caraacuteter afirma que seu

governo seguiria os princiacutepios de Augusto natildeo deixando escapar nenhuma

oportunidade de mostrar sua generosidade amabilidade e clemecircncia Nesse

sentido Suetocircnio declara que ele abole eou reduz alguns impostos indiretos

(vectigalia) distribui 400 sesteacutercios para cada homem da plebe e para cada

senador de alta estirpe que estava na miseacuteria daacute um subsiacutedio mensal de gratildeos aos

pretorianos entre outras medidas O bioacutegrafo ainda conta que Nero quando foi

chamado para assinar o mandado de execuccedilatildeo de um condenado agrave morte diz

ldquocomo gostaria de nunca ter aprendido a ler e a escreverrdquo1095

Por fim Suetocircnio

confessa que sob o governo do princeps muitas praacuteticas condenaacuteveis em

governos anteriores foram reprovadas eou controladas1096

Essa narrativa nos faz refletir sobre cinco questotildees A primeira eacute a

manutenccedilatildeo do papel de Agripina como a principal responsaacutevel pelo assassinato

do marido e pela ascensatildeo do filho O estereoacutetipo da mulher imperial

manipuladora e ambiciosa jaacute erigido por Pseudo-Secircneca e por Taacutecito

1091

Suet Cl 43-45 1092

proque Palati gradibus imperator consalutatus lectica in castra et inde raptim appellatis

militibus in curiam delatus est discessitque iam vesperi ex immensis quibus cumulabatur

honoribus tantum patris patriae nomine recusato propter aetatem (Suet Nero 8) A traduccedilatildeo para

o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 199) 1093

Suetocircnio informa que essa honra depois foi cancelada por Nero e mais tarde restaurada por

Vespasiano (Suet Cl 45) 1094

Suetocircnio comenta que no primeiro dia do seu governo Nero deu ao tribuno da guarda

pretoriana a seguinte contra-senha ldquoa melhor das matildeesrdquo (Suet Nero 9) 1095

ldquoquam vellemrdquo inquit ldquonescire litterasrdquo (Suet Nero 10) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 200) 1096

Suet Nero 15

275

continuou1097

Suetocircnio entatildeo fortalece a imagem negativa da matrona

indicando ao mesmo tempo a fraqueza do reinado de Claacuteudio e a futura fraqueza

do governo de Nero1098

A segunda questatildeo eacute a cumplicidade do jovem no envenenamento de

Claacuteudio Para o bioacutegrafo ele ateacute podia natildeo ter sido o responsaacutevel pelo feito mas

com certeza sabia do ocorrido haja vista que depois passou a elogiar os

cogumelos como a ldquocomida dos deusesrdquo1099

Essa eacute a primeira vez que tal

cumplicidade eacute mencionada nas nossas fontes o que evidencia a visatildeo suetoniana

da falta de pietas de Nero em relaccedilatildeo ao pai1100

A terceira eacute a citaccedilatildeo de uma frase contida no De Clementia Suetocircnio

repete a informaccedilatildeo dada por Secircneca a de que Nero ao assinar uma execuccedilatildeo

fala que gostaria de nunca ter aprendido a ler e a escrever A nosso ver essa

repeticcedilatildeo aleacutem de evidenciar o conhecimento da obra do filoacutesofo pelo bioacutegrafo

indica que ele julgava que Nero tinha um bom conselheiro ao seu lado algueacutem

que lhe ajudaria a seguir o caminho virtuoso da clemecircncia Poreacutem eacute importante

pontuar que Suetocircnio no De Vita Caesarum natildeo desenha o princeps como um

sujeito controlado por Secircneca (como Taacutecito fez) mas sim aconselhado O papel

de Secircneca eacute bastante apagado nesse retrato de Suetocircnio quando comparado com

aquele composto por Taacutecito

A quarta vincula-se agraves medidas adotadas por Nero no iniacutecio do seu

Principado O bioacutegrafo tem uma interpretaccedilatildeo positiva e esperanccedilosa da

administraccedilatildeo de Nero muito semelhante agraves interpretaccedilotildees de Secircneca Calpuacuternio

Siacuteculo e Lucano que divulgaram o retorno da era de ouro e equipararam Nero a

um novo Augusto1101

De igual modo aos trecircs autores Suetocircnio projeta o passado

auspicioso no presente reforccedilando a legitimidade do novo princeps Conforme

Leme tal projeccedilatildeo tem conexatildeo direta com a proacutepria vida de Suetocircnio pois ele

vivenciou a conturbada transiccedilatildeo de poder de Trajano para Adriano O autor

explica que Adriano para se tornar imperador precisou lidar com um forte

movimento de oposiccedilatildeo senatorial o qual fecirc-lo assassinar diversos

1097

[Sen] Oct 139-154 Tac Ann 1266-69 WOOD 2000 p 261 1098

GOacuteES 2015 p 101 1099

Suet Nero 33 1100

GOacuteES 2015 p 119 1101

Sen Apoc 41 Calp Ecl 133-44 Luc 160-62

276

magistrados1102

Esse momento tenso influenciou Suetocircnio na composiccedilatildeo do De

Vita Caesarum que lhe serviu para expor as atitudes imperiais e julgaacute-las de um

ponto de vista moral Assim todos os liacutederes que respeitaram as estruturas

republicanas ndash como por exemplo Augusto ndash foram representados de forma

positiva Em contrapartida todos os que desrespeitaram foram retratados de forma

negativa1103

Nero nesse primeiro momento aproximou-se de Augusto logo foi

figurado positivamente Ou seja Suetocircnio projeta no jovem os ideais praacuteticos do

[] Principado augustano especialmente o princiacutepio de uma

boa relaccedilatildeo com a sociedade poliacutetica ou melhor com os senadores ndash respeitados sempre na ldquoliberdaderdquo caracteriacutestica deles nunca ameaccedilados ou agredidos1104

A quinta e uacuteltima questatildeo se relaciona aos usos das tradiccedilotildees

interpretativas do passado Para descrever a ascensatildeo de Nero Suetocircnio ao

mesmo tempo concede maior peso a um retrato preteacuterito do princeps ndash o de Nero

como um novo Augusto e como algueacutem controlado pela matildee ndash e menor peso a

outro ndash o do Nero dominado por seus conselheiros Nesse retrato entatildeo torna a

imagem do soberano mais rica e complexa aos nossos olhos e aos dos seus

leitores transformando o jovem em um Nero prodigioso porque seguiria Augusto

muito embora tivesse Agripina como matildee1105

Logo apoacutes a ascensatildeo o soberano precisou lidar com dois problemas nas

fronteiras do Impeacuterio afirma Suetocircnio O primeiro foi o conflito com os partas

iniciado em 54 e encerrado em 63 e o segundo foi o confronto na Britacircnia

sucedido em 60 Suetocircnio os aborda em conjunto no De Vita Caesarum dizendo

Aleacutem dos terriacuteveis males causados pelo imperador houve

outros males que atingiram o Impeacuterio por acaso em um outono houve uma praga que acrescentou 30 mil viacutetimas agrave Libitina na Britacircnia um grande desastre aconteceu quando duas das principais cidades sofreram um massacre de cidadatildeos e de aliados e no Oriente houve uma humilhaccedilatildeo quando um exeacutercito foi enviado para proteger a Armecircnia e natildeo conseguiu manter a proviacutencia da Siacuteria1106

1102

LEME 2015 p 133 p 241 1103

LEME 2015 p 133 p 241 1104

LEME 2015 p 210 1105

JOLY 2005 p 116 1106

Accesserunt tantis ex principe malis probrisque quaedam et fortuita pestilentia unius autumni

quo triginta funerum milia in rationem Libitinae venerunt clades Britannica qua duo praecipua

277

Nero nunca foi movido pelo menor desejo ou esperanccedila de estender ou de aumentar o Impeacuterio e ele ateacute considerou a retirada do exeacutercito da Britacircnia mas foi dissuadido pela vergonha em que teria incorrido ao parecer diminuir a gloacuteria conquistada por seu proacuteprio pai []1107

Como notamos a descriccedilatildeo de Suetocircnio eacute bem sinteacutetica Mas isso natildeo nos

impede de perceber sua avaliaccedilatildeo sobre o princeps Por exemplo ele minimiza as

atividades militares desenvolvidas por Nero indicando que ele natildeo se interessava

em expandir o territoacuterio do Impeacuterio Tambeacutem desvaloriza as conquistas militares

sob o governo do soberano sugerindo que todos os confrontos existentes durante

o seu Principado terminaram em derrota o que noacutes sabemos natildeo ser verdade pois

houve vitoacuterias na Armecircnia e na Britacircnia1108

Dito de outra forma Suetocircnio

constroacutei o retrato de um Nero antiprinceps totalmente indiferente aos assuntos

militares Tal retrato eacute muito distinto do retrato neroniano elaborado por Taacutecito e

ao mesmo tempo semelhante a ele Eacute diferente porque Suetocircnio natildeo menciona i)

a pouca idade de Nero e sua inexperiecircncia na eacutepoca em que os problemas com os

partas eclodiram ii) o meacuterito de Corbulatildeo na resoluccedilatildeo dos embates na Armecircnia

iii) o envio de Policlito agrave Britacircnia e iv) o controle dos libertos sobre o imperador

E eacute semelhante porque os dois autores em geral edificam a representaccedilatildeo de um

liacuteder passivo que demandava a gerecircncia da poliacutetica externa a outros Natildeo nos

esqueccedilamos de que essa mesma passividade emergiu de forma geneacuterica nas

Siluae em que foi sugerido que Nero soacute prevaleceu na guerra contra os partas

pois escolheu um excelente general1109

Portanto vemos que o retrato originaacuterio

do Nero antiprinceps consolidou-se Suetocircnio se apossa das narrativas do passado

e omite certos elementos presentes nelas produzindo um retrato neroniano

cristalizado e sinteacutetico Em outros termos em seu retrato reverencia um dado

elemento (a passividade) e atribui maior peso a ele fortalecendo-o Assim cria

oppida magna civium sociorumque caede direpta sunt ignominia ad Orientem legionibus in

Armenia sub iugum missis aegreque Syria retenta (Suet Nero 391) A traduccedilatildeo para o portuguecircs

eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 218) 1107

Augendi propagandique imperii neque voluntate ulla neque spe motus umquam etiam ex

Britannia deducere exercitum cogitavit nec nisi verecundia ne obtrectare parentis gloriae

videretur destitit Ponti modo regnum concedente Polemone item Alpium defuncto Cottio in

provinciae formam redegit (Suet Nero 18) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 203) 1108

LEFEBVRE 2017 p 98-100 1109

Stat Silv 5230-46

278

uma potencialidade de Nero ldquouma remodelagem ativardquo do passado o seu lado

antiprinceps1110

Em 55 um ano apoacutes o iniacutecio do conflito com os partas Nero assassina o

seu irmatildeo Britacircnico1111

De acordo com Suetocircnio o princeps decidiu mataacute-lo por

duas razotildees i) medo de que algum dia ele despertasse compaixatildeo no povo por

causa da memoacuteria do seu falecido pai e ii) ciuacuteme da sua voz pois ela era mais

agradaacutevel do que a sua Por isso Nero chama Locusta e encomenda um

veneno1112

Quando ele fica pronto daacute ordens

[] para que a substacircncia seja levada para a sala de jantar e dada a Britacircnico enquanto janta com ele Quando Britacircnico cai apoacutes a primeira garfada Nero alega para os convidados que ele estava sofrendo de um dos seus ataques epileacutepticos habituais No dia seguinte em meio a fortes tempestades Britacircnico tem um funeral pequeno1113

No excerto vemos que Suetocircnio natildeo associa o fratriciacutedio agraves ameaccedilas de

Agripina a Nero como Taacutecito fez1114

Ele nem cita a intimidaccedilatildeo materna em sua

narrativa explicando o crime a partir das duas razotildees supracitadas Outra atitude

adotada por ele e que natildeo foi adotada por Taacutecito eacute a descriccedilatildeo minuciosa da

fabricaccedilatildeo do veneno No texto o bioacutegrafo menciona todas as etapas de

preparaccedilatildeo do toacutexico indo desde as coaccedilotildees imperiais feitas a Locusta ateacute os

testes aplicados em animais1115

Ao notarmos isso entendemos que o autor

elabora uma histoacuteria seguindo as regras do gecircnero biograacutefico isto eacute redige um

relato voltado agrave caracterizaccedilatildeo do seu biografado (Nero) explorando sobretudo

os traccedilos da sua personalidade Eacute oacutebvio que como destaca Leme para descrever

os comportamentos do princeps ele contextualiza os ambientes poliacutetico social e

cultural nos quais o soberano viveu mas natildeo entra em detalhes Os

1110

DE TOFFOLI 2019 p 169 1111

Suet Nero 354 1112

Suet Nero 331 Suetocircnio tambeacutem alega que Britacircnico chamava Nero pelo nome Aenobarbo

o que irritava o jovem profundamente (Suet Nero 71) 1113

Deinde in haedo expertus postquam is quinque horas protraxit iterum ac saepius recoctum

porcello obiecit quo statim exanimato inferri in triclinium darique cenanti secum Britannico

imperavit Et cum ille ad primum gustum concidisset comitiali morbo ex consuetudine correptum

apud convivas ementitus postero die raptim inter maximos imbres tralaticio extulit funere (Suet

Nero 333) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 213) 1114

Tac Ann 1316 1115

Suet Nero 332-3

279

acontecimentos nesse sentido permeiam a vida em anaacutelise tornando-se

importantes apenas para a criacutetica das accedilotildees de Nero1116

Eacute essencial pontuar esse

aspecto porque eacute isso o que diferencia o seu relato do de Taacutecito Suetocircnio natildeo estaacute

preocupado em comentar sobre as causas dinaacutesticas do fratriciacutedio ou sobre as

influecircncias nocivas de Agripina ao contraacuterio o que ele deseja eacute evidenciar o

caraacuteter cruel do princeps ndash ou melhor dizendo usar o assassinato de Britacircnico

como artifiacutecio para construir a imagem do Nero tirano que utiliza

indiscriminadamente a crudelitas e abandona a clementia1117

Segundo Brandatildeo uma das formas usadas pelos autores antigos para

salientarem a crueldade de um tirano era destacar a sua dedicaccedilatildeo agraves torturas

Nessa loacutegica Suetocircnio evidencia o empenho de Nero na preparaccedilatildeo do veneno

sua indiferenccedila com o sofrimento do irmatildeo e o seu cuidado iacutenfimo com o

funeral1118

Ao ressaltar tais accedilotildees traccedila uma nova representaccedilatildeo do soberano a

do liacuteder tiracircnico em sua essecircncia Isto eacute as explicaccedilotildees para o assassinato tornam-

se totalmente torpes medo e ciuacuteme natildeo havia motivos dinaacutesticos nem controle

materno exacerbado Nero transforma-se no tiacutepico tirano insensiacutevel Para Dunkle

a imagem do tirano na Antiguidade era psicologicamente eficaz em despertar a

indignaccedilatildeo do puacuteblico e por isso o bioacutegrafo a empregou afinal ela o ajudaria a

criar um ldquoarquivilatildeordquo na imaginaccedilatildeo das pessoas1119

Em 57 dois anos depois do fratriciacutedio Nero promove seus primeiros jogos

em um anfiteatro1120

Neles

[] exibe-se como lutador e induz 400 senadores e 600 cavaleiros a lutarem ndash alguns dos quais tinham posiccedilatildeo e

reputaccedilatildeo honrosas Ateacute mesmo aqueles que lutaram contra as feras e serviram como assistentes na arena foram selecionados das ordens senatoriais e equestres1121

1116

LEME 2011 p 8 1117

GOacuteES 2015 p 120 1118

BRANDAtildeO 2008a p 115-137 1119

DUNKLE 1967 p 170 1120

Suetocircnio afirma que esse anfiteatro foi construiacutedo no Campus Martius no periacuteodo de um ano

(Suet Nero 121) 1121

Munere quod in amphitheatro ligneo regione Martii campi intra anni spatium fabricato dedit

neminem occidit ne noxiorum quidem Exhibuit autem ad ferrum etiam quadringentos senatores

sescentosque equites Romanos et quosdam fortunae atque existimationis integrae ex isdem

ordinibus confectores quoque ferarum et varia harenae ministeria (Suet Nero 121) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 200-

201)

280

Suetocircnio diz que o jovem ldquoconvidourdquo senadores e cavaleiros a lutarem Tal

atitude provavelmente causou grande indignaccedilatildeo pois como explica Brandatildeo

uma das obrigaccedilotildees do imperador era defender a ordem moral e social o que

implicava por exemplo preservar a dignidade tradicional das categorias elevadas

E preservar tal dignidade passava longe de colocar esses indiviacuteduos no centro da

arena puacuteblica espaccedilo dedicado aos infames1122

Todavia o foco de Suetocircnio ao

descrever os jogos no De Vita Caesarum natildeo eacute a questatildeo moral mas sim a

quantidade de presentes e de espetaacuteculos ofertados por Nero agrave populaccedilatildeo O

bioacutegrafo alega que o soberano ofereceu alimentos roupas joias escravos e feras

domesticadas bem como promoveu a simulaccedilatildeo de uma batalha naval1123

Ou

seja sua preocupaccedilatildeo eacute narrar a generosidade neroniana e os eventos

proporcionados ao puacuteblico Isso poreacutem natildeo significa que ele tenha aprovado

declaradamente a imposiccedilatildeo imperial sobre a aristocracia significa apenas que ele

natildeo se indignou tanto com os jogos quanto Taacutecito ndash pelo menos natildeo nesse

momento inicial defende Brandatildeo1124

Joly acrescenta que a ausecircncia de uma criacutetica mais severa por parte do

bioacutegrafo pode estar vinculada tambeacutem ao fato de a aristocracia ter concordado

com essas poliacuteticas artiacutesticas do soberano jaacute que foi ele mesmo quem arcou com

os gastos natildeo retirando dinheiro do eraacuterio puacuteblico Tal argumento de Joly nos

leva a refletir sobre outra questatildeo a divisatildeo interna do De Vita Caesarum

Suetocircnio separa a vida e o governo de Nero em duas partes i) um primeiro

momento prodigioso em que predominou a regecircncia de Roma (livros seis a 19) e

ii) um segundo momento infausto no qual prevaleceram os viacutecios imperais (livros

um a cinco e 20 a 38)1125

Seu objetivo com isso eacute construir a progressatildeo da

degradaccedilatildeo moral do princeps O problema eacute que os jogos no anfiteatro estatildeo

inseridos na primeira parte da narrativa ou seja na fase positiva do governo

Logo consideramos que para Suetocircnio o Nero artista ainda eacute contido pois

estava no iniacutecio da sua degradaccedilatildeo moral Natildeo foi agrave toa que ele enfatizou que o

imperador natildeo tomou parte pessoalmente nos espetaacuteculos1126

1122

BRANDAtildeO 2009a p 171 1123

Suet Nero 112-121 1124

BRANDAtildeO 2009a p 161 1125

JOLY 2005 p 115-116 1126

Suet Nero 122

281

Encerrrados os jogos Nero volta sua atenccedilatildeo para o assassinato de

Agripina Segundo Suetocircnio o jovem desde sua ascensatildeo estava bastante irritado

com a matildee que o criticava em tudo que fazia Assim primeiramente tenta

diminuir seu poder priva-a de honras retira-lhe a guarda de soldados e a expulsa

do palaacutecio Mas depois quando ela o ameaccedila decide exterminaacute-la atentando trecircs

vezes contra sua vida por meio de veneno1127

Percebendo que ela havia se

protegido com antiacutedotos ele manda construir um navio especial que desabasse e a

matasse Entatildeo Nero envia-lhe uma carta e a convida para ir a Baiacuteas celebrar a

festa de Minerva com ele1128

Ele a recebe com um enorme banquete que dura ateacute

tarde da noite Quando Agripina decide ir embora de Baiacuteas

[] ele oferece-lhe no lugar da sua embarcaccedilatildeo [] o barco especialmente concebido acompanhando-a alegremente e ateacute beijando seus seios em despedida O resto daquela noite ele fica acordado esperando ansiosamente o cumprimento dos seus planos Mas chegam notiacutecias de que as coisas haviam saiacutedo de

outra forma ndash ela escapara e nadara para um lugar seguro Sem saber o que fazer ele [] ordena [] que sua matildee deveria ser morta para parecer que ela havia tirado a proacutepria vida quando sua trama criminosa fosse descoberta [] No entanto depois disso ele natildeo suporta as dores da consciecircncia ndash embora os soldados o Senado e o povo tentem animaacute-lo com suas felicitaccedilotildees ndash pois ele frequentemente admitia que era

perseguido pelo fantasma da sua matildee e pelos chicotes e pelas tochas ardentes das Fuacuterias1129

A nosso ver a narrativa suetoniana da morte de Agripina eacute espetacular por

trecircs motivos i) pela justificativa dada ao matriciacutedio ii) pelos meios artiacutesticos

usados por Nero e iii) pela imagem criminosa do soberano criada por Suetocircnio

Falemos da justificativa Para o bioacutegrafo ela eacute muito simples o princeps se

defendeu uma vez que Agripina o criticava com frequecircncia Nero ateacute tenta usar

1127

Suet Nero 341 1128

Suet Nero 341-2 1129

[] datoque negotio trierarchis qui liburnicam qua advecta erat velut fortuito concursu

confringerent protraxit convivium repetentique Baulos in locum corrupti navigii machinosum

illud optulit hilare prosecutus atque in digressu papillas quoque exosculatus Reliquum temporis

cum magna trepidatione vigilavit opperiens coeptorum exitum Sed ut diversa omnia nandoque

evasisse eam comperit inops consilii L Agermum libertum eius salvam et incolumem cum gaudio

nuntiantem abiecto clam iuxta pugione ut percussorem sibi subornatum arripi constringique

iussit matrem occidi quasi deprehensum crimen voluntaria morte vitasse [] Neque tamen

conscientiam sceleris quanquam et militum et senatus populique gratulashytionibus confirmaretur

aut statim aut umquam postea ferre potuit saepe confessus exagitari se materna specie

verberibusque Furiarum ac taedis ardentibus (Suet Nero 342-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 213-215)

282

outros meios antes de chegar ao matriciacutedio mas quando sua matildee comeccedila a lhe

ameaccedilar ele acha melhor tirar sua vida pois natildeo estava disposto a aturar esse tipo

de comportamento Ou seja o soberano assassina sua matildee porque natildeo suportava

mais o seu controle Como sabemos essa justificativa jaacute havia sido utilizada por

Taacutecito e sua repeticcedilatildeo acentua ainda mais a imagem negativa da matrona1130

Contudo a principal diferenccedila entre o historiador e o bioacutegrafo pauta-se no foco

dado ao caraacuteter do Nero matricida Em Taacutecito Nero mata sua matildee porque aleacutem

de natildeo suportar mais sua influecircncia foi manipulado por Popeia Aqui o soberano

a mata porque quis por ser um liacuteder vaidoso que soacute desejava ouvir lisonjas ldquo[E]

Agripina era muito proacutexima dele para se entregar a esse tipo de adulaccedilatildeo

nauseante sendo uma matildee que o lembrava sempre do quatildeo imaturo ele era e do

quanto [ele] precisava seguir suas orientaccedilotildeesrdquo1131

Tratemos agora dos meios artiacutesticos Em concordacircncia com Brandatildeo e

Dawson a paixatildeo artiacutestica neroniana eacute empregada por Suetocircnio para construir a

imagem do liacuteder que transpocircs a licentia dos atores usada no palco para a vida

civil Por exemplo algumas accedilotildees relatadas no episoacutedio como o fingimento e o

arrependimento de Nero evidenciam a dramaticidade conferida ao crime ldquo[] Eacute

uma peccedila de teatro perfeitardquo1132

A transmissatildeo da histoacuteria produz uma noccedilatildeo de

progressatildeo indicando que o drama atingiria um fim determinado a morte de

Agripina1133

Eacute curioso observar ainda como tal dramatizaccedilatildeo jaacute vinha sendo

erigida desde a Octavia e dos Annales1134

Dito de outro modo temos mais de um

seacuteculo de difusatildeo de uma narrativa que cada vez mais reforccedila o Nero artista

Poreacutem Suetocircnio ao contraacuterio de Pseudo-Secircneca e de Taacutecito natildeo se alonga

exageradamente na descriccedilatildeo do matriciacutedio mas apenas repete certos detalhes da

Octavia e dos Annales e acentua as accedilotildees de Nero Natildeo nos esqueccedilamos de que

seu propoacutesito foi compor uma biografia e que para tanto precisava focar no

biografado e nos traccedilos do seu caraacuteter Portanto o protagonista foi o biografado e

natildeo o enredo por traacutes da histoacuteria1135

1130

Tac Ann 141 135 1131

BARRETT 2001 p 156 1132

DAWSON 1969 p 261 1133

BRANDAtildeO 2009b p 39 1134

[Sen] Oct 291-372 Tac Ann 148 1135

Sobre a teatralizaccedilatildeo no De Vita Caesarum cf CIZEK 1975 p 480-485

283

Em terceiro lugar temos a imagem criminosa de Nero Suetocircnio declara

que apoacutes o matriciacutedio o princeps foi aterrorizado pelo fantasma da matildee e pelas

tochas ardentes das Fuacuterias A nosso ver a inserccedilatildeo desse assombramento teve por

objetivo confirmar a culpa de Nero e atestar o desfavor divino sobre ele

Lembremo-nos de que Pseudo-Secircneca e Estaacutecio fizeram a mesma referecircncia o

primeiro diz que o fantasma de Agripina trazia as tochas fuacutenebres para o

casamento de Nero e Popeia e o segundo afirma que o imperador viu a matildee no

Taacutertaro com uma tocha nas matildeos1136

Kragelund explica que o elemento das

tochas das deusas vingativas era associado a matriciacutedios mitoloacutegicos e que seu

uso pelos autores antigos visava insinuar que o culpado estava sendo

atormentado pelos democircnios internos da sua consciecircncia1137

Em suma as fuacuterias

simbolizavam a culpa o remorso Natildeo eacute randocircmico o fato de que Suetocircnio afirma

que versos foram pichados nas paredes de Roma associando Nero a Orestes e a

Alcmeatildeo matricidas perseguidos pelas Fuacuterias

[] Nero Orestes Alcmeatildeo mataram suas matildees Um novo caacutelculo Nero assassinou a proacutepria matildee Quem discorda de que Nero seja da grande linhagem de Eneacuteias Um levou embora sua matildee o outro seu pai []1138

Segundo o bioacutegrafo Nero natildeo se deu ao trabalho de procurar os autores

dessas pichaccedilotildees e mesmo quando os encontrou garantiu que natildeo fossem

punidos com severidade1139

Tal atitude indica que ele aceitou natildeo soacute os boatos

espalhados como tambeacutem a associaccedilatildeo da sua imagem com as lendas mitoloacutegicas

Inclusive essa associaccedilatildeo parece ter sido muito apreciada por ele pois como

veremos mais tarde ela seraacute representada no palco1140

Nesse ponto Suetocircnio natildeo

traz o elemento da clemecircncia para o retrato mas o da ineacutepcia para governar

Em uacuteltima anaacutelise a narrativa do assassinato de Agripina contida no De

Vita Caesarum faz-nos refletir sobre como os retratos do Nero matricida satildeo

1136

[Sen] Oct 593-597 Stat Silv 27118-119 1137

KRAGELUND 2016 p 238 1138

[] Νέρων Ὀρέστης Ἀλκμέων μητροκτόνος Νεόψηφον Νέρων ἰδίαν μητέρα ἀπέκτεινε Quis

negat Aeneae magna de stirpe Neronem Sustulit hic matrem sustulit ille patrem [] (Suet

Nero 392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 218) 1139

Suet Nero 392 1140

Suetocircnio atesta que para aplacar o espiacuterito de Agripina Nero faz sacrifiacutecios expiatoacuterios (Suet

Nero 344)

284

mutaacuteveis Desde o final do seacuteculo I eles vecircm sendo construiacutedos remodelados

reconstituiacutedos em cada apropriaccedilatildeo posterior e transmitidos a noacutes por meio de

representaccedilotildees variadas E como bem sabemos cada apropriaccedilatildeo serviu agraves

necessidades do seu autor que integrava elementos jaacute conhecidos em diferentes

combinaccedilotildees e ecircnfases Nesse sentido Suetocircnio retrata um Nero matricida que ao

mesmo tempo foi um Nero artista e um Nero vaidoso No final das contas todo

mundo retira de Nero o que precisa ou deseja1141

Apoacutes o matriciacutedio no final de 59 e no iniacutecio do ano 60 o princeps

proporciona agrave populaccedilatildeo da Vrbs dois eventos os Juvenalia e os Neronia No

primeiro convida homens e mulheres das ordens senatorial e equestre a se

apresentarem1142

No segundo jogos aos moldes gregos institui trecircs modalidades

(muacutesica ginaacutestica e hipismo) e concede a supervisatildeo delas a ex-cocircnsules

escolhidos por sorteio

Depois desce para a orchestra onde os senadores se sentavam

e aceita as coroas da oratoacuteria e da poesia latina que lhes satildeo oferecidas Todos os homens mais ilustres haviam competido mas todos concordam que [as coroas] eram dele Poreacutem quando os juiacutezes lhe oferecem a coroa da lira ele presta reverecircncia e daacute ordens para que ela seja levada como oferenda agrave estaacutetua de Augusto1143

Nero desde os jogos no anfiteatro sucedidos em 57 seguiu

ldquoincentivandordquo os desempenhos ldquovoluntaacuteriosrdquo de cidadatildeos respeitaacuteveis nos

espetaacuteculos1144

Tal atitude poreacutem natildeo pareceu ser um problema para Suetocircnio

pois o imperador ainda natildeo participava de modo ativo nos jogos deixando a

organizaccedilatildeo ao encargo de ex-cocircnsules e sentando-se no teatro ao lado dos

senadores Ademais o bioacutegrafo insinua que os Juvenalia tiveram um caraacuteter mais

1141

HELMRATH 2019 p 141-142 1142

Suet Nero 111 Durante os Juvenalia Nero raspou sua barba pela primeira vez e a depositou

em uma caixa ornada de peacuterolas a qual foi consagrada a Juacutepiter Capitolino (Suet Nero 124) 1143

Instituit et quinquennale certamen primus omnium Romae more Graeco triplex musicum

gymnicum equestre quod appellavit Neronia dedicatisque thermis atque gymnasio senatui

quoque et equiti oleum praebuit Magistros toto certamini praeposuit consulares sorte sede

praetorum Deinde in orchestram senatumque descendit et orationis quidem carminisque Latini

coronam de qua honestissimus quisque contenderat ipsorum consensu concessam sibi recepit

citharae autem a iudicibus ad se delatam adoravit ferrique ad Augusti statuam iussit (Suet Nero

123) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 201) 1144

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 239

285

privado ocorrendo nos jardins de Nero1145

Tambeacutem sugere que o princeps natildeo se

apresentou nos Neronia ganhando coroas sem ter performado Portanto sua

conduta natildeo foi tatildeo repreensiacutevel aqui suas accedilotildees natildeo geraram como para Taacutecito

um aumento do comportamento degenerado e escandaloso1146

O poder imperial

ainda controlava o teatro sendo este utilizado como forma de propaganda e como

um meio eficaz de satisfazer a plebe

Brandatildeo esclarece que os espetaacuteculos constituiacuteam meios de os soberanos

se relacionarem com a plebe e mostrarem sua liberalidade1147

Um dos primeiros

liacutederes a utilizaacute-los sob essa perspectiva foi Augusto que promoveu eventos de

diversos tipos no circo e no anfiteatro com encenaccedilotildees e lutas de gladiadores1148

Augusto levava tatildeo a seacuterio os espetaacuteculos que se associou publicamente agrave figura

de Apolo mandando erigir uma estaacutetua de si mesmo no templo do deus com as

roupas e os atributos da divindade Inclusive quando comemorou os Jogos

Seculares ndash os quais simbolizavam o iniacutecio de uma nova era ndash inseriu Apolo no

centro das cerimocircnias solenes No final do seu governo a imagem apoliacutenica tinha

se tornado tatildeo conhecida que os siacutembolos da divindade como a lira eram

facilmente identificados por todos Eacute aiacute que entra a oferenda neroniana da coroa

liacuterica agrave estaacutetua de Augusto Nero desejava filiar a sua imagem e a do seu

Principado ao seu predecessor e a Apolo e para tanto fez algo que todos

entenderiam1149 Eacute curioso que essa filiaccedilatildeo com Augusto jaacute havia sido citada pelo

bioacutegrafo no episoacutedio da ascensatildeo de Nero no qual lembrou o princeps afirmando

que seguiria os princiacutepios augustanos Agora poreacutem a associaccedilatildeo com o

antecessor sai do acircmbito poliacutetico mais estrito e entra no acircmbito artiacutestico contando

com Apolo Como sabemos a associaccedilatildeo com a divindade natildeo eacute novidade pois jaacute

fora realizada por Calpuacuternio Siacuteculo que compara a beleza do deus agrave de Nero e

exalta os espetaacuteculos ofertados pelo soberano no anfiteatro1150

Suetocircnio revigora

tal concepccedilatildeo ao traccedilar o perfil de um liacuteder fomentador da arte Resumindo o

bioacutegrafo utiliza Augusto natildeo soacute para elogiar o iniacutecio prodigioso do governo de

Nero como tambeacutem para enaltecer seus projetos artiacutesticos adequados ndash os de

1145

Suet Nero 222 1146

Tac Ann 14151 1147

BRANDAtildeO 2009a p 159 1148

Suetocircnio comenta que Augusto tambeacutem empregou cavaleiros romanos em peccedilas teatrais (Suet

Aug 43) 1149

CHAMPLIN 2005 p 142 1150

Cal Ecl 723-72

286

ofertar espetaacuteculos puacuteblicos variados mas sem participar deles Contanto que o

Nero artista se assemelhasse a Augusto ele seria bom

Encerrados esses eventos positivos Suetocircnio comeccedila a delinear o retrato

do princeps tiracircnico Assim narra que em 62 o imperador forccedila Secircneca a

cometer suiciacutedio e envenena Burro e os libertos que tinham o apoiado em sua

adoccedilatildeo e em sua ascensatildeo1151

Tambeacutem fala que Nero passa a planejar o

casamento com Popeia e o divoacutercio de Otaacutevia pois estava cansado desta uacuteltima Eacute

importante frisar que sua descriccedilatildeo do novo matrimocircnio eacute muito diferente da

realizada por Taacutecito pois aqui foi o princeps quem teve papel ativo na uniatildeo e

natildeo Popeia O bioacutegrafo nos conta que Nero depois de se tornar amante de Popeia

indu-la a abandonar o marido Ruacutefrio Crispino e a coloca sob os cuidados de

Otatildeo Este poreacutem apaixona-se tanto que natildeo quer mais dividi-la com o princeps

Furioso o jovem imperador nomeia Otatildeo governador provincial da Lusitacircnia e o

retira do seu caminho1152

Em seguida busca se livrar de Otaacutevia tentando

estrangulaacute-la vaacuterias vezes Mas ao ver suas tentativas frustradas separa-se dela

legalmente alegando sua esterilidade O problema segundo Suetocircnio foi que as

manifestaccedilotildees de desaprovaccedilatildeo da plebe foram tatildeo intensas que ele precisou

retiraacute-la de Roma e enviaacute-la para Pandataacuteria1153

Depois a mata sob uma acusaccedilatildeo de adulteacuterio que era tatildeo obviamente falsa que todos a negam durante o julgamento e Nero tem que subornar [] Aniceto para fazer uma pretensa confissatildeo de que a havia estuprado [] Nero tinha uma grande paixatildeo por Popeia com quem se casou no deacutecimo segundo dia apoacutes o divoacutercio de Otaacutevia []1154

Inicialmente eacute necessaacuterio comentar que esse relato sucinto foi

apresentado no De Vita Caesarum juntamente com outros crimes cometidos por

Nero a exemplo do matriciacutedio do suiciacutedio de Secircneca do envenenamento de

Burro e dos assassinatos decorrentes da conspiraccedilatildeo pisoniana Ou seja Suetocircnio

1151

Suet Nero 355 1152

Suet Otho 31-2 1153

Suet Nero 351-2 1154

Eandem mox saepe frustra strangulare meditatus dimisit ut sterilem sed improbante divortium

populo nec parcente conviciis etiam relegavit denique occidit sub crimine adulteriorum adeo

inpudenti falsoque ut in quaestione pernegantibus cunctis Anicetum paedagogum suum indicem

subiecerit qui fingeret et dolo stupratam a se fateretur Poppaeam duodecimo die post divortium

Octaviae in matrimonium acceptam dilexit unice [] (Suet Nero 352-3) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215)

287

intencionalmente posiciona sua descriccedilatildeo em uma paisagem que lhe permite

fortalecer os retratos do Nero tirano do Nero cruel e do Nero uxoricida os quais

abandonaram por completo a clemecircncia1155

Depois eacute imprescindiacutevel dizer que a

narrativa eacute elaborada de modo a supervalorizar o anseio imperial de casar com

Popeia e a minimizar os possiacuteveis motivos dinaacutesticos que envolveram o uxoriciacutedio

de Otaacutevia Melhor dizendo Suetocircnio nos daacute um governante caprichoso que

reinava conforme os seus iacutempetos sexuais e natildeo de acordo com os princiacutepios da

res publica Dunkle explica que para os romanos sobretudo para a elite

senatorial a libido simbolizava tudo aquilo que se opunha agrave lex conjunto

impessoal de regras aos quais todo cidadatildeo poderia apelar em questotildees de

injusticcedila No entanto se o cidadatildeo estivesse submetido aos caprichos de um

autocrata sob o qual o Estado deixava de ser uma preocupaccedilatildeo puacuteblica natildeo

conseguia recorrer agraves leis e por conseguinte permanecia em uma situaccedilatildeo de

injusticcedila1156

Tal foi o caso de Otaacutevia acusada impiamente de adulteacuterio foi

enviada para o exiacutelio e executada

Por fim consideramos que Suetocircnio para compor os retratos dos Neros

tirano cruel e uxoricida reforccedila e reformula informaccedilotildees contidas nas esferas de

referecircncia (Annales e Octavia) Por um lado reforccedila-as na medida em que repete

os elementos da passionalidade e da crueldade do princeps1157

por outro

reformula-as no sentido de que cria um Nero autocircnomo e libidinoso Em siacutentese

as imagens neronianas erigidas pelo bioacutegrafo evidenciam o seu cuidado de

transmitir as histoacuterias jaacute aceitas pela tradiccedilatildeo fato que para Barrett eacute um enorme

desperdiacutecio pois Suetocircnio como secretaacuterio de Adriano tinha acesso a inuacutemeros

materiais incluindo registros puacuteblicos Ele poderia por exemplo ter usado tais

materiais para problematizar os retratos legados pelas fontes mas preferiu pegar

algumas informaccedilotildees acerca de Nero e repassaacute-las sob a mesma luz negativa1158

Firmado o enlace com Popeia Nero estreia sua voz nos palcos puacuteblicos de

Naacutepoles em 64 De acordo com o bioacutegrafo a decisatildeo de fazer tal estreia adveio

1155

DUNKLE 1967 p 169 1156

DUNKLE 1967 p 168-169 1157

([Sen] Oct 899-959 1158

BARRETT 2020 p 14

288

da declamaccedilatildeo de um proveacuterbio grego feita pelo proacuteprio soberano ldquo[] de nada

vale muacutesica agraves escondidasrdquo1159

Ao chegar laacute

[] canta com frequecircncia e durante muitos dias E mesmo

depois de fazer uma pequena pausa para descansar a sua voz natildeo suporta ficar separado do puacuteblico Apoacutes banhar-se volta ao teatro onde janta no meio da orchestra com uma grande multidatildeo presente Falando em grego promete que assim que bebesse um pouco daraacute a eles algumas cantigas animadas1160

Aqui Suetocircnio claramente demonstra que os intentos artiacutesticos neronianos

se intensificaram1161

Contudo eacute importante destacar que a decisatildeo imperial de ir

ateacute Naacutepoles natildeo foi instantacircnea mas sim fruto de um longo processo de

dedicaccedilatildeo Por exemplo o bioacutegrafo afirma que depois de assumir o poder o

princeps designou Terpno um tocador de lira como seu professor seguindo todos

os seus conselhos a fim de melhorar a sua voz deitava-se de costas e colocava

um prato de chumbo sobre o peito usava uma seringa para injetar aacutegua no seu

corpo e vomitar e evitava ingerir frutas e alimentos prejudiciais agrave voz1162

Ou

seja Nero ao ir ateacute Naacutepoles desejava mostrar agraves pessoas os resultados do seu

empenho Mas por que ele escolheu Naacutepoles Por duas razotildees defendem Schulz e

Wallace-Hadrill i) por ser uma localidade com tradiccedilatildeo de competiccedilotildees musicais

e de poesia e ii) pelo fato de o soberano saber que a aristocracia da capital natildeo

aceitaria um priacutencipe musical1163

Essa uacuteltima razatildeo para Suetocircnio acabou se

justificando pois Nero violou os papeacuteis adequados a um imperador afinal ao

subir no palco ele abandonou a ciuilitas augustana e assumiu o ofiacutecio dos atores

os quais eram frequentemente associados a crimes como perturbaccedilatildeo da ordem

puacuteblica e devassidatildeo1164

Eacute assim que o bioacutegrafo erige a degradaccedilatildeo moral do

princeps desenhando o seu caraacuteter exibicionista e acentuando sua busca cada vez

1159

[] occultae musicae nullum esse respectum (Suet Nero 201) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1160

Et prodit Neapoli primum ac ne concusso quidem repente motu terrae theatro ante cantare

destitit quam incohatum absolveret nomon Ibidem saepius et per complures cantavit dies sumpto

etiam ad reficiendam vocem brevi tempore impatiens secreti a balineis in theatrum transiit

mediaque in orchestra frequente populo epulatus si paulum subbibisset aliquid se sufferti

tinniturum Graeco sermone promisit (Suet Nero 202) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1161

BRANDAtildeO 2009a p 163 1162

Suet Nero 201 1163

SCHULZ 2019 p 284-285 WALLACE-HADRILL 1995 p 182 1164

Como argumenta Gyles (1962 p 197) Nero se comportou como uma pessoa privada natildeo

como um imperador

289

maior por reconhecimento artiacutestico1165

Natildeo eacute agrave toa que ele nos diz que o Nero

artista selecionou jovens para ensinaacute-los ldquo[] diferentes meacutetodos de aplausos []

que deveriam ser empregados vigorosamente quando ele cantasse []rdquo1166

Ainda nesse acircmbito natildeo podemos deixar de comparar a representaccedilatildeo do

Nero artista de Suetocircnio com a do Nero artista de Taacutecito Fica niacutetida a repeticcedilatildeo

de algumas concepccedilotildees dos Annales aqui no De Vita Caesarum a exemplo da

ambiccedilatildeo imperial de tornar puacuteblica a sua muacutesica a participaccedilatildeo ldquovoluntaacuteriardquo de

membros das altas categorias sociais nos espetaacuteculos e a valorizaccedilatildeo da cultura

grega Ficam evidentes tambeacutem a omissatildeo de uma ideia contida nos Annales ndash as

censuras de Agripina agrave dedicaccedilatildeo neroniana agraves artes ndash e a criaccedilatildeo de uma nova

concepccedilatildeo ndash a associaccedilatildeo entre NeroApoloAugusto Tais seleccedilotildees feitas por

Suetocircnio indicam que o autor ao compor o seu texto natildeo distingue a vida puacuteblica

da privada mas sim o bem do mal Para ele o princeps era um todo indivisiacutevel e

natildeo apenas uma figura poliacutetica1167

Suetocircnio em contrapartida a Taacutecito natildeo se

preocupa em narrar as relaccedilotildees entre o imperador e o Senado ou a tensatildeo entre

liberdade (libertas) e escravidatildeo (seruitus)1168

seu propoacutesito foi de relatar de que

modo Nero abandonou as virtudes dos seus ancestrais e reproduziu os viacutecios de

cada um1169

E para tanto usa os retratos taciteanos como potencialidades

incitadoras relendo-os e reconstruindo-os agrave sua maneira ndash assim elabora um Nero

exibicionista tiracircnico helenista e citaredo sob um vieacutes eacutetico moralizador

No final do mesmo ano o comportamento neroniano jaacute considerado

inadequado passa a ser ainda mais malvisto devido ao incecircndio de Roma e agrave

construccedilatildeo da Domus Aurea Suetocircnio defende que o princeps ateou fogo na

cidade sob o pretexto de que queria reconstruiacute-la e de que suas ruas eram estreitas

e tortuosas1170

Nas palavras do bioacutegrafo ele incendiou a Vrbs tatildeo

escancaradamente que alguns ex-cocircnsules viram seus proacuteprios servos em suas

1165

BRANDAtildeO 2009a p 159-173 1166

Neque eo segnius adulescentulos equestris ordinis et quinque amplius milia e plebe

robustissimae iuventutis undique elegit qui divisi in factiones plausuum genera condiscerent ndash

bombos et imbrices et testas vocabant ndash operamque navarent cantanti sibi insignes pinguissima

coma et excellentshyissimo cultu puris ac sine anulo laevis quorum duces quadringena milia

sestertia merebant (Suet Nero 203) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo

do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 204) 1167

BRANDAtildeO 2009a p 357 1168

JOLY 2005 p 114 1169

Suet Nero 12 1170

Suet Nero 381

290

propriedades com tochas nas matildeos Por seis dias e sete noites a destruiccedilatildeo

alastrou-se levando as pessoas a se abrigarem em monumentos e em tuacutemulos1171

Nero assistiu ao incecircndio da torre de Mecenas encantado com o que chamou de ldquoa beleza das chamasrdquo e cantou com seu traje de teatro ldquoA queda de Troiardquo E para que natildeo perdesse qualquer oportunidade de obter espoacutelios ele se comprometeu a limpar os cadaacuteveres e as ruiacutenas agraves suas proacuteprias custas []1172

A descriccedilatildeo de Suetocircnio eacute bastante resumida Em comparaccedilatildeo com Taacutecito

que despende vaacuterios capiacutetulos do Annales ele explana o episoacutedio em poucas

linhas Em concordacircncia com Barrett isso demonstra que ele estava menos

preocupado em tratar do desastre como um fenocircmeno em si mesmo do que em

apontar a responsabilidade de Nero1173

Para frisar esta responsabilidade insere

trecircs elementos na sua narrativa i) a inquestionabilidade da culpa imperial ii) a

apresentaccedilatildeo musical do soberano e iii) o interesse neroniano nos espoacutelios e em

construir a Domus Aurea O primeiro fica bastante evidente logo no iniacutecio ele

afirma acintosamente que o princeps ldquoateou fogo em Romardquo eliminando qualquer

possibilidade de duacutevida Tal atitude difere da adotada por Taacutecito que apesar de

natildeo simpatizar com Nero pelo menos duvidou da sua responsabilidade atraveacutes da

menccedilatildeo dos rumores do seu envolvimento1174

Nesse sentido o bioacutegrafo natildeo

constroacutei um relato amplo do desastre mas apenas fixa a culpa de Nero alegando

que ele incendiou a Vrbs porque estava cansado da sua arquitetura1175

Em outros

termos o que ele faz eacute elaborar um relato hostil para exibir o caraacuteter insensiacutevel do

Nero incendiaacuterio Como resumiu Champlin a acusaccedilatildeo de Suetocircnio eacute

contundente parece que o soberano de fato foi o responsaacutevel desde o iniacutecio1176

1171

Suet Nero 381-2 1172

Hoc incendium e turre Maecenatiana prospectans laetusque ldquoflammaerdquo ut aiebat

ldquopulchritudinerdquo Halosin Ilii in illo suo scaenico habitu decantavit Ac ne non hinc quoque

quantum posset praedae et manubiarium invaderet pollicitus cadaverum et ruderum gratuitam

egestionem nemini ad reliquias rerum suarum adire permisit conlashytionibusque non receptis

modo verum et efflagitatis provincias privatorumque census prope exhausit (Suet Nero 382-3)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards

(2000 p 217) 1173

BARRETT 2020 p 96 1174

Tac Ann 1538 1175

A Historiografia moderna tende a rejeitar essa visatildeo do Nero incendiaacuterio Cf

WARMINGTON 1969 p 123-124 BESTE VON HESBERG 2013 p 324 DRINKWATER

2019 p 235-236 1176

CHAMPLIN 2005 p 185

291

Fixada a culpa imperial a crenccedila de que Nero cantou ldquoA queda de Troiardquo

enquanto a cidade ardia seguiu quase como uma coisa natural Como o princeps

tinha acabado de voltar de Naacutepoles e todos em Roma jaacute sabiam da sua paixatildeo

pela muacutesica a performance tornou-se plausiacutevel1177

Aqui outra vez deparamo-

nos com uma discrepacircncia em relaccedilatildeo aos Annales Taacutecito demonstra duacutevidas

acerca da apresentaccedilatildeo de Nero durante o incecircndio citando a existecircncia de boatos

ndash embora natildeo os tenha problematizado1178

Por sua vez Suetocircnio ignora

totalmente tais rumores tratando a performance como um feito Ou seja ele natildeo

daacute ao soberano qualquer benefiacutecio da duacutevida Longe disso assevera sua

culpabilidade dizendo em apenas uma frase que ele cantou enquanto Roma

pegava fogo Logo o terriacutevel fato de Nero ser um incendiaacuterio torna-se ainda pior

ele eacute um incendiaacuterio artista1179

O crime foi agravado pela crueldade de um

imperador que cantou enquanto via a destruiccedilatildeo do que ele proacuteprio havia causado

portanto Suetocircnio concedeu a Nero um cenaacuterio realista e terriacutevel O espetaacuteculo do

incecircndio inspirou um horror real e foi esse o objetivo do bioacutegrafo1180

Soma-se a isso o interesse imperial nos espoacutelios e na construccedilatildeo da Domus

Aurea O bioacutegrafo afirma que como Roma jaacute estava destruiacuteda soacute restava a Nero

aproveitar a situaccedilatildeo para realizar saques Suetocircnio natildeo concede que Nero

estivesse querendo ajudar as viacutetimas do incecircndio mas se concentra apenas no

socorro e na reconstruccedilatildeo como roubo e desmando Atraveacutes dos saques aliaacutes o

imperador parece ter obtido recursos para a edificaccedilatildeo da sua nova moradia a

Domus Aurea a qual possuiacutea uma estaacutetua sua de 120 peacutes de altura e paredes

[] cobertas de ouro e incrustadas de joias e madrepeacuterola []

A principal cacircmara de banquetes tinha uma cuacutepula que girava continuamente de dia e de noite como a proacutepria Terra [] Quando a casa foi concluiacuteda [] ele se contentou em expressar sua aprovaccedilatildeo declarando que finalmente havia comeccedilado a viver como um ser humano1181

1177

FRAZER JR 1966 p 17 1178

Tac Ann 1539 1179

FRAZER JR 1966 p 17 1180

BRANDAtildeO 2009a p 192 1181

In ceteris partibus cuncta auro lita distincta gemmis unionumque conchis erant cenationes

laqueatae tabulis eburneis versatilibus ut flores fistulatis ut unguenta desuper spargerentur

praecipua cenationum rotunda quae perpetuo diebus ac noctibus vice mundi circumageretur

balineae marinis et albulis fluentes aquis Eius modi domum cum absolutam dedicaret hactenus

comprobavit ut se diceret quasi hominem tandem habitare coepisse (Suet Nero 312) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 211)

292

Para Suetocircnio o incecircndio de 64 ofereceu uma excelente oportunidade para

Nero desenvolver seu projeto arquitetocircnico dissipador1182

Seu palaacutecio foi

visivelmente divulgado como o cuacutemulo da extravagacircncia1183

A ecircnfase na

profusatildeo de ouro nas peacuterolas e no tamanho dos aposentos confirma isso

sobretudo se considerarmos a brevidade do seu relato1184

Outros elementos que

tambeacutem confirmam o exagero do edifiacutecio satildeo a declaraccedilatildeo neroniana ldquode

finalmente viver como um homemrdquo e a sugestatildeo de que a Domus Aurea estava

dominando a cidade ldquoRoma estaacute se tornando uma casa fujam para Veios

cidadatildeos A menos que essa casa tome conta de Veios tambeacutemrdquo1185

Em

especiacutefico este uacuteltimo elemento ilustra a tirania do soberano o qual deixa de

considerar a cidade como um espaccedilo puacuteblico1186

Eacute importante demarcar esse

ponto porque ele eacute particularmente realccedilado por Suetocircnio na medida em que ele

desvaloriza as mudanccedilas positivas desenvolvidas por Nero em Roma apoacutes o

incecircndio Nesse sentido o fato de o princeps ter delimitado novos formatos para

os preacutedios da cidade e erguido galerias na frente dos edifiacutecios a fim de evitar

futuros incecircndios eacute referenciado em poucas linhas e em outro momento do De

Vita Caesarum isto eacute fora do contexto do desastre1187

Assim o que Suetocircnio

quis foi deixar para a sua audiecircncia a impressatildeo negativa do Nero construtor que

provavelmente jaacute natildeo causava mais espanto uma vez que a cidade estava bem

transformada pela atividade ediliacutecia tanto dos Flaacutevios (Coliseu) quanto de Trajano

(novo Foacuterum)1188

Em uacuteltima anaacutelise natildeo podemos nos esquecer de que o bioacutegrafo ldquofabricardquo

o seu princeps em consonacircncia com suas leituras das fontes do passado realizadas

a partir de seus proacuteprios interesses Por ser um bioacutegrafo ele se interessou

sobretudo pelas questotildees relativas agrave personalidade de Nero Dessa forma ao

descrever o incecircndio ignora alguns elementos do passado ndash como a ideia do

incecircndio como ferramenta para punir a plebe contraacuteria ao casamento com Popeia

1182

Suet Nero 381 1183

MORFORD 1968 p 158-179 1184

Blaison (1998 p 621-624) argumenta que a descriccedilatildeo de Suetocircnio pertence ao gecircnero literaacuterio

da eacutecfrase de uma residecircncia luxuosa 1185

Roma domus fiet Veios migrate Quirites Si non et Veios occupat ista domus (Suet Nero

392) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 218) 1186

BRANDAtildeO 2009a p 216 1187

Suet Nero 161 1188

BLAISON 1998 p 619

293

presente na Octavia a notiacutecia da queima das aacutervores contida na Naturalis

Historia e a informaccedilatildeo de que o fogo atingiu os montes de Roma existente nas

Siluae ndash e repete outros ndash como a performance de Nero durante o incecircndio

tomada como fato inquestionaacutevel mas abordada nos Annales como rumor1189

Ao

seu turno ao relatar sobre a Domus Aurea omite certos itens ndash a exemplo dos

abusos perpetrados contra a natureza expostos na Naturalis Historia ndash e reforccedila

outros ndash como a ostentaccedilatildeo de riqueza inclusa na Octavia a usurpaccedilatildeo das

propriedades apresentada nos Liber Spectaculorum e a queima da cidade para a

construccedilatildeo do novo palaacutecio citada nos Annales1190

Resumindo Suetocircnio tenta

legar para os seus leitores uma imagem de Nero que ele mesmo tinha a de um

liacuteder que teve momentos positivos que soacute serviam para mascarar uma natureza

tiracircnica dada pela geneacutetica e uma falta de interesse em exercer o poder que ele

aliaacutes jamais buscou sendo obra das ambiccedilotildees maternas Suetocircnio eacute um bioacutegrafo

e portanto seu relato busca fixar um caraacuteter (negativo bem claro) que eacute

analisado por meio de episoacutedios cuidadosamente selecionados e apresentados

Eacute intrigante que apesar de Suetocircnio ter denunciado a culpabilidade de

Nero no incecircndio ele manteacutem o silecircncio sobre a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

efetivada no contexto imediato Aliaacutes ele nem insere essa accedilatildeo no cenaacuterio do

desastre mas sim entre vaacuterias decisotildees imperiais estabelecidas para a

manutenccedilatildeo da ordem puacuteblica Por exemplo menciona a criaccedilatildeo de um limite

para as despesas a expulsatildeo dos atores de pantomimos de Roma e a imposiccedilatildeo de

puniccedilotildees aos Cristatildeos ndash ldquoadeptos de uma nova e perigosa supersticcedilatildeordquo1191

A

nosso ver essa sua atitude eacute muito significativa Diferentemente de Taacutecito que

afirma que Nero usou os cristatildeos como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo para dissipar as

fofocas a seu respeito o bioacutegrafo natildeo cita a provaacutevel culpa desses indiviacuteduos1192

ndash

e ao fazer isso elimina a possibilidade de os Cristatildeos estarem implicados no

incecircndio criminoso fixando inequivocamente a responsabilidade de Nero1193

1189

[Sen] Oct 825-844 Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 Tac Ann 1539 1190

Plin Nat 3624 [Sen] Oct 624-631 Mart Sp 21-10 Tac Ann 1542 1191

Suet Nero 162 1192

Tac Ann 1544 1193

BARRETT 2020 p 163

294

Mas de acordo com Suetocircnio Nero acaba encontrando uma forma de

exteriorizar sua crueldade O pretexto a conspiraccedilatildeo de Pisatildeo ocorrida em 651194

Ao ouvir sobre o complocirc ele manda assassinar muitos homens de uma vez soacute

Depois disso ele natildeo mostra discriminaccedilatildeo nem moderaccedilatildeo em condenar agrave morte quem quisesse sob qualquer alegaccedilatildeo [] E muitas vezes ele dava indiacutecios inconfundiacuteveis de que natildeo pouparia nem mesmo os senadores restantes mas eliminaria toda a ordem enviando cavaleiros romanos e libertos para governarem as proviacutencias e comandarem os exeacutercitos1195

Eacute interessante notar que Suetocircnio natildeo fornece um relato detalhadiacutessimo e

extenso da Conspiraccedilatildeo como Taacutecito faz O episoacutedio eacute apenas referido de

passagem em breves linhas Para Baldwin essa atitude explica-se pelo gecircnero

biograacutefico centrado na figura imperial Em outros termos Suetocircnio natildeo se

interessava por questotildees poliacuteticas seacuterias ndash a menos que elas lanccedilassem luz sobre a

personalidade do biografado ndash nem era motivado pelo tipo de hostilidade

profunda que envolveu Taacutecito1196

ndash o que natildeo significa que sua descriccedilatildeo natildeo

possua um propoacutesito Ao contraacuterio como argumentam Wallace-Hadrill Schulz e

Griffin a sua narrativa da conspiraccedilatildeo demarca a crueldade de Nero assinalando

que ele se aproveitou da trama para exterminar todos os seus possiacuteveis rivais1197

Se esse era o plano neroniano nunca saberemos1198

ele natildeo chegou a ser

implementado Mas natildeo podemos negar que aqui o bioacutegrafo foi criativo na

construccedilatildeo do retrato do Nero cruel

Depois da conspiraccedilatildeo o soberano promove a segunda ediccedilatildeo dos

Neronia alega Suetocircnio Ele os promoveu porque a plebe suplicou por sua ldquovoz

divinardquo e ele queria agradaacute-la Assim exibiu-se cantando Niobe

ininterruptamente ateacute a deacutecima hora Tambeacutem cantou trageacutedias usando maacutescaras

1194

Suet Nero 361-2 1195

Nullus posthac adhibitus dilectus aut modus interimendi quoscumque libuisset quacumque de

causa [] Elatus inflatusque tantis velut successibus negavit quemquam principum scisse quid

sibi liceret multasque nec dubias significationes saepe iecit ne reliquis quidem se parsurum

senatoribus eumque ordinem sublaturum quandoque e re p ac provincias et exercitus equiti R ac

libertis permissurum (Suet Nero 362-37) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 216-217) 1196

BALDWIN 1983 p 178-179 1197

WALLACE-HADRILL 1995 p 17 SCHULZ 2019 p 284-315 GRIFFIN 2001 p 179 1198

Julgamos importante destacar um comentaacuterio de Winterling (2012 p 15) o verdadeiro eacute que

ldquo[] sob Nero a organizaccedilatildeo poliacutetica da antiga res publica perdia crescentemente importacircncia

frente agraves novas estruturas de organizaccedilatildeo que haviam surgido na corte imperial e na administraccedilatildeo

das financcedilas imperiais e que consistia principalmente de libertos e cavaleirosrdquo

295

de deuses e de heroacuteis gregos feitas agrave sua semelhanccedila eou agrave semelhanccedila das

mulheres por quem ele havia se apaixonado Dentre as vaacuterias trageacutedias existentes

escolheu ldquoCanace em trabalho de partordquo ldquoOrestes o matricidardquo ldquoA cegueira de

Eacutedipordquo e o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo1199

Segundo Champlin essa descriccedilatildeo do bioacutegrafo deve ser analisada levando

em consideraccedilatildeo duas questotildees i) as histoacuterias por traacutes das trageacutedias selecionadas

e ii) a justificativa imperial para cada escolha Expliquemos entatildeo as histoacuterias

Niobe se casa com Anfiacuteon filho de Zeus e tem 14 filhos com ele Um dia

orgulhosa da sua prole gaba-se de ser melhor do que a deusa Leto pois essa soacute

havia gerado dois filhos Apolo e Aacutertemis Insultados os filhos de Leto se vingam

terrivelmente de Niobe matando todos os filhos dela diante dos seus olhos1200

Conforme Champlin a escolha de tal mito por Nero natildeo foi mero acaso ldquocantar

as desgraccedilas de Niobe era cantar o temiacutevel poder de Apolordquo1201

E ao mostrar o

poder de Apolo o princeps automaticamente mostrava o seu isto eacute uma

autoridade forte o suficiente para eliminar aqueles que o afrontassem

Por sua vez a histoacuteria de Canace eacute a seguinte ela era filha de Eacuteolo rei dos

ventos e irmatilde de Camareu de quem engravida Eacuteolo furioso e envergonhado

com a situaccedilatildeo acompanha o parto de Canace e promete mataacute-la quando ela

terminasse de dar agrave luz Finalizado o processo ele ordena que o bebecirc seja lanccedilado

aos animais selvagens e que entregassem uma espada para Canace Ao receber o

objeto ela despede-se de Macareu e pede-lhe que coloque os seus restos e os do

seu filho em uma urna1202

Entre todas as trageacutedias essa talvez seja a mais

tocante A ideia de cantar sobre uma matildee que deu agrave luz e depois perdeu o seu filho

esteve vinculada agrave morte de Claacuteudia Augusta filha do princeps e de Popeia Para

acentuar o drama de tal situaccedilatildeo Suetocircnio comenta que o imperador usou uma

maacutescara com as feiccedilotildees da esposa enquanto cantava Isso mostra a relevacircncia

pessoal da canccedilatildeo para Nero1203

O problema eacute que a elite romana provavelmente

natildeo via o governante do Impeacuterio Romano atuando e cantando uma trageacutedia sobre

uma mulher em parto como algo proacuteprio a algueacutem de posiccedilatildeo elevada Isso com

1199

Suet Nero 21 1200

GRIMAL 2005 p 331-332 1201

CHAMPLIN 2005 p 116 1202

GRIMAL 2005 p 73 1203

CHAMPLIN 2005 p 106

296

certeza foi visto como uma atitude inadequada e que tornava ilegiacutetima a sua

condiccedilatildeo de Imperador1204

Sobre Orestes a histoacuteria se resume assim Agamenon rei de Micenas eacute

morto por Clitemnestra sua esposa e Egisto amante dela Ao saber do crime

Orestes filho de Agamenon e Clitemnestra assassina Egisto e sua matildee Ao ver o

filho prestes a mataacute-la ela desnuda o seio que o nutrira1205

Eacute faacutecil entender a

opccedilatildeo neroniana por Orestes ele era um matricida justificado Orestes mata sua

matildee natildeo soacute porque a morte do seu pai clamava por vinganccedila mas porque o povo

de Micenas sofria sob a tirania de Clitemnestra Ou seja Nero assassinara

Agripina para preservar o Impeacuterio de uma mulher que havia ultrapassado seu

papel feminino e aspirava ao poder supremo1206

A histoacuteria da ldquocegueira de Eacutedipordquo deve ser examinada juntamente com a

de Orestes Um dia Eacutedipo filho do rei de Tebas consulta o oraacuteculo de Delfos e

descobre que havia sido amaldiccediloado pelos deuses casar-se-ia com a sua matildee

Jocasta teria quatro filhos com ela e mataria o seu pai Laio Apavorado com a

notiacutecia Eacutedipo tenta contornar a maldiccedilatildeo mas no final acaba cumprindo a

profecia do oraacuteculo Ao perceber o ocorrido ele fica envergonhado e perfura seus

proacuteprios olhos passando a vagar pelo mundo guiado por sua filha Antiacutegona1207

Para entendermos a escolha imperial de tal lenda precisamos evocar uma citaccedilatildeo

de Suetocircnio na qual ele menciona que Nero andava na liteira com Agripina e

satisfazia seus desejos sexuais com ela1208

Dito isso notemos que o bioacutegrafo

afirma que eacute Nero quem escolhe cantar sobre Eacutedipo ou seja eacute ele quem decide

publicizar os boatos acerca do seu incesto com a sua matildee Como defende

Champlin ele proacuteprio convida o puacuteblico a ver os aspectos mais escandalosos da

sua vida privada Ao mitificar a si mesmo ele tenta justificar o matriciacutedio

mostrando que natildeo era culpado mas amaldiccediloado1209

A uacuteltima trageacutedia o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo possui o seguinte enredo

Heacutercules levado agrave loucura pela deusa Hera mata seus filhos sua matildee e sua

esposa Megara filha de Creonte rei de Tebas O oraacuteculo de Delfos entatildeo o

1204

FRAZER JR 1971 p 215 1205

GRIMAL 2005 p 338-340 1206

CHAMPLIN 2005 p 97-98 1207

GRIMAL 2005 p 127-129 1208

Suet Nero 282 1209

CHAMPLIN 1998 p 101-102

297

castiga ordenando que ele sirva a Euristeu rei de Micenas o qual o manda

realizar 12 trabalhos Ao retomar a sanidade o heroacutei se vecirc amarrado a uma coluna

e cercado pelos cadaacuteveres da sua famiacutelia percebendo para seu horror que ele era

o assassino1210

Para Champlin a histoacuteria de Heacutercules eacute o artifiacutecio usado por Nero

para explicar os seus delitos ele matara o seu irmatildeo e a sua matildee porque estava

enlouquecido Semelhantemente a Heacutercules ele agredira sua famiacutelia porque

estava sofrendo de loucura divina Nas palavras do autor o soberano pretendeu

mostrar ao seu puacuteblico que as histoacuterias do matriciacutedio e do fratriciacutedio ateacute poderiam

ser verdadeiras mas que ele era inocente1211

Apoacutes abordarmos as histoacuterias por traacutes das trageacutedias selecionadas por Nero

eacute essencial comentarmos sobre os objetivos de Suetocircnio ao descrever o soberano

escolhendo-as A nosso ver eles satildeo quatro Em primeiro lugar o bioacutegrafo quis

insinuar que Nero nessa altura do seu governo jaacute tinha assumido o seu lado

artiacutestico mostrando-se publicamente como um ator independentemente das

possiacuteveis insatisfaccedilotildees Em segundo desejou indicar que Nero confundia a

realidade com o teatro1212

Em terceiro almejou sinalizar que Nero era um artista-

criminoso1213

E em quarto tentou sugerir que tais mitos poderiam estar na base

dos comportamentos reais de Nero1214

Resumindo Suetocircnio utilizou o Nero

artista de Taacutecito ndash um competidor profissional ndash e o transformou no Nero artista

em vida1215

Encerrados os Neronia Nero assassina outra mulher da sua vida Popeia

Conforme Suetocircnio ele a chuta ldquo[] quando ela estava graacutevida e doente porque

ela o repreendeu quando ele voltou tarde das corridas de bigasrdquo1216

Como

sabemos a informaccedilatildeo do chute natildeo eacute nova tendo jaacute sido mencionada nos

Annales Outra notiacutecia tambeacutem referenciada por Taacutecito eacute o funeral extravagante e

luxuoso concedido a ela o que indica certo luto por parte do princeps1217

Contudo esse uacuteltimo dado foi ignorado pelo bioacutegrafo fato que revela a sua

1210

GRIMAL 2005 p 222-223 Para detalhes cf MARCHIORI 2008 p 8-55 1211

CHAMPLIN 2005 p 107 1212

CURRY 2014 p 197 EDWARDS 1994 p 92-93 1213

FRAZER JR 1966 p 20 1214

BRANDAtildeO 2009a p 163 1215

BARTON 1994 p 58 Sobre a atuaccedilatildeo de Nero de modo geral cf BARTSCH 1994 p 36-

50 SLATER 1996 p 33-40 1216

[] et tamen ipsam quoque ictu calcis occidit quod se ex aurigatione sero reversum gravida et

aegra conviciis incesserat (Suet Nero 353) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 215) 1217

Tac Ann 166

298

intenccedilatildeo de reforccedilar o lado cruel de Nero Ateacute agora o De Vita Caesarum eacute a

uacutenica fonte a sugerir que Popeia com suas reclamaccedilotildees instigou os atos violentos

do soberano Poreacutem sua atitude ndash isso se acreditarmos que ela realmente a

realizou ndash natildeo justifica a desproporccedilatildeo da ldquorespostardquo imperial Nesse sentido

vemos que Suetocircnio tenta erigir a imagem de um imperador cada vez mais

instaacutevel e insensiacutevel Isso se torna ainda mais evidente quando ele relata que logo

apoacutes o uxoriciacutedio Nero manda assassinar a filha de Claacuteudio Antocircnia pois queria

se casar com ela e ela natildeo aceita1218

e tambeacutem manda assassinar o filho de

Popeia Ruacutefrio Crispino porque ele gostava de brincar de governar1219

Depois de narrar o chute Suetocircnio nos lembra de que o princeps jaacute havia

tido uma filha com Popeia Claacuteudia Augusta cujo falecimento foi repentino1220

De acordo com Griffin a espera dessa crianccedila eacute vista por Nero como uma chance

de dar continuidade legiacutetima agrave dinastia Juacutelio-Claacuteudia uma vez que Otaacutevia natildeo

tinha lhe dado filhos1221

Desse modo a morte da crianccedila representa a interrupccedilatildeo

desse projeto Mas a segunda gestaccedilatildeo de Popeia ndash citada na passagem ndash reacende

tal possibilidade O problema eacute que a personalidade do princeps construiacuteda pelo

bioacutegrafo o faz eliminar a sua uacuteltima chance de ter um herdeiro legiacutetimo ndash ou seja

eacute o proacuteprio soberano que aniquila a sua famiacutelia E por famiacutelia entendemos natildeo soacute

aquelas que lhe dariam filhos a exemplo de Otaacutevia e Popeia como tambeacutem

aqueles que o sucederiam ou lhe dariam apoio como Britacircnico e Agripina Em

suma Nero leva a dinastia para o tuacutemulo com diferentes accedilotildees tomadas ao longo

do seu governo1222

Com a morte de Popeia Nero tenta encontrar outra esposa de linhagem

nobre para conseguir um herdeiro Desse modo contrai matrimocircnio com Estatiacutelia

Messalina agrave eacutepoca jaacute casada com o cocircnsul Aacutetico Vestino Para se unir a ela

precisa cometer outra crueldade mandar matar o seu marido1223

Percebemos

entatildeo que tanto o assassinato de Popeia quanto o enlace com Messalina foram

1218

De acordo com o bioacutegrafo ele a condenou agrave morte alegando seu envolvimento na conspiraccedilatildeo

Pisoniana (Suet Nero 354) Bradley (1977 p 79-82) e Bauman (1994 p 206) explicam que

devido ao fato de Antocircnia ser a uacutenica sobrevivente da famiacutelia imperial era a candidata preferida de

Nero a forma de reparar a brecha que havia sido criada com o seu divoacutercio de Otaacutevia 1219

Suet Nero 354-5 1220

Suet Nero 353 O nascimento da crianccedila eacute comentado por Taacutecito (Tac Ann 15231-3) 1221

GRIFFIN 2001 p 165 1222

BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 2 1223

Suet Nero 351 Ao contraacuterio de Suetocircnio Taacutecito diz que Nero natildeo se casou com Messalina

mas era amante dela Ele tambeacutem informa que Vestino se suicidou (Tac Ann 1568-69)

299

descritos sob a mesma oacutetica a tirania e a desmedida de Nero ndash perspectiva

inclusive seguida por Taacutecito nos Annales Suetocircnio reafirma elementos presentes

no Nero construiacutedo pelo historiador e o transforma em um soberano mais

desumano e impiedoso ao dar um novo tratamento a esses traccedilos comuns1224

Aleacutem disso como temos destacado Suetocircnio elimina alguns traccedilos presentes em

outras obras e acrescenta outros Ao adicionar os elementos da admoestaccedilatildeo de

Popeia e do ataque de fuacuteria imperial por exemplo torna a histoacuteria mais real

aumentando as chances de o seu leitor fixar o Nero uxoricida e do Nero cruel

No ano seguinte em 66 Nero proporciona um enorme espetaacuteculo em

Roma para receber Tiridates rei da Armecircnia e confirmar o acordo com os partas

Suetocircnio afirma que o imperador havia fixado uma data especiacutefica para a chegada

do rei mas em funccedilatildeo do tempo nublado reagenda-a para um dia ensolarado Ao

chegar agrave cidade Tiridates vecirc o princeps sentado proacuteximo aos rostra vestindo

roupas triunfais e cercado por estandartes e bandeiras militares Quando se

aproxima de Nero cai a seus peacutes e faz um discurso suplicante1225

Entatildeo

[] Nero tira o turbante de sua cabeccedila e o substitui por um

diadema Depois o rei eacute conduzido do Foacuterum para o teatro [de Pompeu] onde outra vez suplica e Nero o coloca em um assento agrave sua direita Aclamado imperator por isso Nero oferece louros no Capitoacutelio e fecha os portotildees do templo de Jano [] no intuito de mostrar natildeo haver mais guerras []1226

O episoacutedio da recepccedilatildeo de Tiridates na Vrbs eacute registrado pelo bioacutegrafo

entre os espetaacuteculos de Nero1227

Desse modo eacute descrito de maneira bem

dramaacutetica por meio da transformaccedilatildeo de um evento militar em uma peccedila teatral

Ou seja Suetocircnio sublinha o caraacuteter militar do evento enquanto insinua que a

gloacuteria militar foi substituiacuteda por valores artiacutesticos1228

A criacutetica a tal inversatildeo eacute

acentuada quando ele anuncia que o soberano ldquo[] gastou oitocentos mil

1224

GRASSI 1972 p 153 1225

Suet Nero 131-2 1226

Et primo per devexum pulpitum subeuntem admisit ad genua adlevatumque dextra exosculatus

est dein precanti tiara deducta diadema inposuit verba supplicis interpretata praetorio viro

multitudini pronuntiante perductum inde in theatrum ac rursus supplicantem iuxta se latere

dextro conlocavit Ob quae imperator consalutatus laurea in Capitolium lata Ianum geminum

clausit tamquam nullo residuo bello (Suet Nero 132) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 201-202) 1227

Suet Nero 131 1228

CHAMPLIN 2005 p 228-229 DEVILLERS 2009 p 67

300

sesteacutercios por dia com Tiridates e em sua partida presenteou-o com mais de cem

milhotildeesrdquo1229

Nero assim o fez porque pensava natildeo haver ldquo[] outra maneira de

desfrutar de riquezas e de dinheiro do que por extravagacircncia desenfreada []rdquo1230

Cabe pontuar que esses gastos desenfreados jaacute haviam sido condenados por

Pliacutenio o Velho que censurou o uso desmedido de ouro feito por Nero no Teatro

de Pompeu para receber Tiridates1231

Percebemos entatildeo que Suetocircnio aleacutem de

recriminar o caraacuteter artiacutestico da recepccedilatildeo do rei da Armecircnia tambeacutem censura a

utilizaccedilatildeo excessiva de dinheiro a liberalidade deixara de ser uma preocupaccedilatildeo

com o bem puacuteblico e se transformara em puro narcisismo1232

A menccedilatildeo ao

elemento teatral e agraves despesas financeiras eacute realizada para fortalecer um elemento

do retrato jaacute conhecido como vimos anteriormente elaborado por Pliacutenio que eacute

recombinado e transformado no novo Nero artista e tirano1233

Apoacutes a visita de Tiridates Nero se entrega de vez aos espetaacuteculos declara

Suetocircnio Por exemplo viaja a Oliacutempia na Greacutecia para participar de competiccedilotildees

artiacutesticas sendo a maior parte delas musicais1234

O bioacutegrafo alega que enquanto

o soberano cantava ningueacutem podia sair do teatro nem mesmo por razotildees

urgentes Ele levava as apresentaccedilotildees muito a seacuterio exibindo-se em concordacircncia

com todas as regras temendo o veredicto dos juiacutezes e caluniando e subornando

seus rivais1235

Ao final das competiccedilotildees musicais era ele mesmo quem

proclamava sua vitoacuteria e para que a memoacuteria de outros vencedores natildeo

permanecesse ordenava que suas estaacutetuas e bustos fossem derrubados e lanccedilados

em latrinas1236

Suetocircnio tambeacutem comenta que Nero participou de corridas de

bigas e que ganhou a coroa da vitoacuteria dos juiacutezes Quando deixou a Greacutecia o

princeps presenteava toda proviacutencia com a liberdade e os juiacutezes com a cidadania

1229

In Tiridatem quod vix credibile videatur octingena nummum milia diurna erogavit

abeuntique super sestertium milies contulit (Suet Nero 302) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 210) 1230

Divitiarum et pecuniae fructum non alium putabat quam profusionem [] (Suet Nero 301)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards

(2000 p 210) 1231

Plin Nat 3316 1232

BRANDAtildeO 2009a p 371 Baldwin (1983 p 273) defende que a recepccedilatildeo de Tiridates

arruinou o eraacuterio puacuteblico 1233

DE TOFFOLI 2019 p 175 1234

Nero fez os festivais acontecerem em um uacutenico ano (Suet Nero 231) 1235

Suet Nero 231-3 1236

Suet Nero 241

301

romana e uma grande soma de dinheiro1237

Ao entrar em Roma usou a mesma

carruagem que Augusto tinha usado para comemorar seus triunfos militares

[] vestindo uma tuacutenica puacuterpura e um manto grego adornado

com estrelas de ouro trazendo na cabeccedila a coroa oliacutempica e na matildeo direita o Piacutetio sendo precedido por uma procissatildeo que exibia suas outras coroas [] Em seguida entrou no Circus Maximus onde um arco foi derrubado atravessou o Velabro e o Foacuterum ateacute [] o Templo de Apolo Ao longo de todo o percurso [] as ruas foram borrifadas com perfume [] Ele colocou as coroas sagradas em seus aposentos ao redor dos sofaacutes [] Depois disso longe de restringir sua paixatildeo ansioso

para preservar sua voz nunca se dirigiu aos soldados exceto por carta ou por discursos proferidos por outros []1238

A narrativa suetoniana da viagem de Nero agrave Greacutecia nos leva a refletir

sobre trecircs questotildees Em primeiro lugar sobre a seriedade artiacutestica do princeps O

bioacutegrafo insinua que o imperador ficava tatildeo preocupado com o resultado das suas

apresentaccedilotildees que temia a decisatildeo dos juiacutezes e subornava seus rivais aleacutem de

derrubar as estaacutetuas de outros vencedores e natildeo deixar ningueacutem sair do teatro

enquanto cantava1239

Em segundo ponderamos a extravagacircncia atribuiacuteda ao

soberano A menccedilatildeo da concessatildeo da liberdade a toda a Greacutecia ndash natildeo referenciada

em nenhuma outra fonte ateacute aqui ndash indica a idolatria imperial pela cultura

helecircnica que apesar de compartilhada pelos liacutederes anteriores eacute apontada como

tendo ultrapassado os limites do aceitaacutevel1240

Griffin explica que ao oferecer tal

liberdade Nero isenta a proviacutencia de seus pagamentos tributaacuterios diminuindo por

1237

Suet Nero 242 1238

Reversus e Graecia Neapolim quod in ea primum artem protulerat albis equis introiit

disiecta parte muri ut mos hieronicarum est simili modo Antium inde Albanum inde Romam sed

et Romam eo curru quo Augustus olim triumphaverat et in veste purpurea distinctaque stellis

aureis chlamyde coronamque capite gerens Olympiacam dextra manu Pythiam praeeunte pompa

ceterarum cum titulis ubi et quos quo cantionum quove fabularum argumento vicisset sequentibus currum ovantium ritu plausoribus Augustianos militesque se triumphi eius

clamitantibus Dehinc diruto Circi Maximi arcu per Velabrum Forumque Palatium et Apollinem

petit Incedenti passim victimae caesae sparso per vias identidem croco ingestaeque aves ac

lemnisci et bellaria Sacras coronas in cubiculis circum lectos posuit item statuas suas

citharoedico habitu qua nota etiam nummum percussit Ac post haec tantum afuit a remittendo

laxandoque studio ut conservandae vocis gratia neque milites umquam nisi absens aut alio verba

pronuntiante appellaret neque quicquam serio iocove egerit [] (Suet Nero 251-3) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 207-

208) 1239

Mulheres deram agrave luz durante as apresentaccedilotildees e algumas pessoas tiveram que pular os muros

e fingirem-se de mortas para serem levadas para o enterro (Suet Nero 232) 1240

WALLACE-HADRILL 1995 p 188 O discurso proferido por Nero no qual concedeu a

liberdade sobrevive hoje numa inscriccedilatildeo de maacutermore fixada na parede da Igreja de Satildeo Jorge na

Beoacutecia Cf Inscriptiones Latinae Selectae (ILS) 8794

302

consequecircncia a arrecadaccedilatildeo fiscal do Impeacuterio Isso revela para todos sobretudo

para a elite romana que ele havia perdido qualquer traccedilo do senso financeiro que

outrora possuiacutea1241

E em terceiro lugar destacamos a construccedilatildeo por Nero de

uma paroacutedia do triunfo militar O bioacutegrafo alega que o princeps entra em Roma

subvertendo o triunfo em um desfile de atletas vitoriosos Ou seja ele propotildee que

a cerimocircnia natildeo contou com um general retornando agrave Itaacutelia cujo trajeto se

encerraria no Templo de Juacutepiter Capitolino e sim com um artista seguindo o

costume dos gregos vitoriosos cujo caminho terminaria no Templo de Apolo1242

Ainda sobre esse assunto Suetocircnio afirma que o soberano entra em Roma

utilizando a carruagem de Augusto Conforme Lefebvre tal afirmaccedilatildeo foi

realizada com dois propoacutesitos i) aproximar Nero de Augusto mostrando que este

respeitava aquele e queria imitaacute-lo e ii) distanciar os dois liacutederes denotando que

Nero ao contraacuterio de Augusto natildeo respeitava os ritos romanos Como argumenta

Lefebvre o bioacutegrafo um adorador do binaacuterio bom versus mau junta Nero e

Augusto em uma uniatildeo antiteacutetica a qual encarna as duas faces do poder o

governo ideal versus o mais terriacutevel1243

Natildeo eacute agrave toa que apoacutes relatar a viagem agrave

Greacutecia passa a exemplificar as deficiecircncias de caraacuteter neronianas a saber

petulacircncia libertinagem luxuacuteria avareza e crueldade defeitos que se

contrapunham agraves virtudes de Augusto1244

Por uacuteltimo eacute imprescindiacutevel mencionar a anaacutelise de Joly a respeito desse

episoacutedio Para o autor o bioacutegrafo centra-se excessivamente na personalidade de

Nero como se ele agisse de forma autocircnoma independentemente dos grupos que

lhe davam sustentaccedilatildeo poliacutetica em Roma Ao fazer isso ele ndash embora natildeo de

modo expliacutecito ndash segue a mesma oacutetica de Taacutecito na avaliaccedilatildeo de Nero a de que o

governo de um princeps soacute seria legiacutetimo se ele legislasse considerando todos os

grupos poliacuteticos sobretudo o Senado Em outras palavras Suetocircnio ao apresentar

Nero agindo a fim de satisfazer os seus proacuteprios interesses artiacutesticos compartilha

um pressuposto da historiografia taciteana o da imagem imperial desvinculada da

ideologia senatorial do senatus populusque romanus1245

Ao ponderarmos tal

1241

GRIFFIN 2001 p 206 1242

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 243 CIZEK 1982a p 21 CHARLES-

PICARD 1962 p 230-232 1243

LEFEBVRE 2017 p 262 1244

JOLY 2005 p 122 1245

JOLY 2005 p 122

303

raciociacutenio vemos que o soberano deixa de ser um Nero artista que exagera em

seu amor pela arte para se transformar em um Nero antiprinceps que perde o

equiliacutebrio entre a carreira musical e o governo

Os uacuteltimos episoacutedios da vida de Nero narrados por Suetocircnio satildeo a revolta

de Vindex e o suiciacutedio A descriccedilatildeo dos dois se inicia da seguinte maneira ldquotendo

suportado um governante deste tipo por pouco menos de 14 anos o mundo

finalmente o expulsa e os gauleses datildeo o primeiro passo sob a lideranccedila de Juacutelio

Vindex []rdquo1246

Conforme o bioacutegrafo o princeps estava em Naacutepoles quando

soube da revolta nas proviacutencias gaulesas Por oito dias trata o caso com

indiferenccedila sem mandar uma comissatildeo ou decidir algo Seu liberto Heacutelio deixado

no controle de Roma durante sua ausecircncia envia-lhe vaacuterias cartas solicitando seu

retorno e ele as ignora por completo1247

Ele soacute volta agrave Vrbs quando ouve

proclamaccedilotildees insultuosas de Vindex as quais o intitulam de Aenobarbo e peacutessimo

tocador de lira E mesmo de volta natildeo se dirige pessoalmente ao Senado e nem

ao povo reunindo apenas um conselho dos principais cidadatildeos1248

Agraves notiacutecias da rebeliatildeo Suetocircnio adiciona alguns ldquoplanos crueacuteisrdquo de Nero

assassinar os comandantes dos exeacutercitos e das proviacutencias degolar os gauleses e os

exilados presentes em Roma entregar as Gaacutelias ao saque dos exeacutercitos envenenar

o Senado inteiro entre outros Contudo alega que ele absteve-se dos planos mais

pela impossibilidade de executaacute-los e menos por arrependimento1249

Em seguida

o bioacutegrafo comenta que Nero decide organizar uma expediccedilatildeo contra os

revoltosos e para custeaacute-la impotildee com arrogacircncia novas taxas a todas as

categorias sociais aumentando o oacutedio contra si1250

Tal expediccedilatildeo natildeo sai

vitoriosa pois os exeacutercitos se juntam aos legionaacuterios revoltosos intensificando o

movimento Diante dessa notiacutecia Nero comeccedila a articular a fuga do seu liberto

Faonte para a uilla localizada a cerca de seis quilocircmetros da cidade

1246

Talem principem paulo minus quattuordecim annos perpessus terrarum orbis tandem destituit

initium facientibus Gallis duce Iulio Vindice qui tum eam provinciam pro praetore optinebat

(Suet Nero 401) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o

inglecircs de Edwards (2000 p 218) 1247

Em resposta agraves cartas de Heacutelio o imperador escreveu ldquo[] antes de aconselhar e desejar meu

retorno raacutepido vocecirc deveria aconselhar e desejar que eu volte digno de Nerordquo ldquo[] Quamvis

nunc tuum consilium sit et votum celeriter reverti me tamen suadere et optare potius debes ut

Nerone dignus revertarrdquo (Suet Nero 231) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na

traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 206) 1248

Suet Nero 404-41 1249

Suet Nero 431 1250

Suet Nero 442 451

304

[] Exatamente como estava descalccedilo e com sua tuacutenica coloca um manto desbotado cobre a cabeccedila e [] monta em um cavalo na companhia de quatro criados [] [] Quando chegam a um atalho que conduzia agrave uilla soltam os cavalos que caminham por [] um matagal de junco ateacute a parede dos fundos da casa [] [] E depois de esperar um pouco ateacute que uma entrada secreta para a uilla pudesse ser feita pega na matildeo um pouco de

aacutegua para beber de um lamaccedilal proacuteximo dizendo ldquoeis a aacutegua fervida de Nerordquo Em seguida [] rasteja por uma passagem estreita que eles cavaram ateacute que esteja dentro da uilla [] Entatildeo como cada um dos seus companheiros o incita a salvar-se [] das indignidades que o ameaccedilavam ordena a eles que cavem uma cova [] proporcional ao tamanho de sua proacutepria pessoa e ao mesmo tempo tragam aacutegua e lenha para se

livrarem do seu cadaacutever Enquanto cada uma dessas coisas eacute feita ele chora e diz repetidas vezes ldquoque artista morre comigordquo Nesse momento uma carta eacute trazida a Faonte por um dos seus mensageiros Nero arrancando-a de sua matildeo lecirc que havia sido declarado inimigo puacuteblico pelo Senado e que o procuravam para puni-lo [] Naquele instante alguns cavaleiros se aproximam com a ordem de capturaacute-lo vivo Ao ouvi-los [] crava a adaga em sua garganta com a ajuda do seu secretaacuterio Epafrodito1251

Nero morreu com 32 anos de idade sendo enterrado em um funeral que

custou 200 mil sesteacutercios afirma Suetocircnio Suas cinzas colocadas em uma urna

de maacutermore e poacuterfiro foram depositadas na tumba da famiacutelia Domitii no topo da

Colina dos Jardins1252

No relato de Suetocircnio temos reaccedilotildees diacutespares agrave notiacutecia da

1251

[] ut erat nudo pede atque tunicatus paenulam obsoleti coloris superinduit adopertoque

capite et ante faciem optento sudario equum inscendit quattuor solis comitantibus inter quos et

Sporus erat [] Ut ad deverticulum ventum est dimissis equis inter fruticeta ac vepres per

harundineti semitam aegre nec nisi strata sub pedibus veste ad aversum villae parietem evasit Ibi

hortante eodem Phaonte ut interim in specum egestae harenae concederet negavit se vivum sub

terram iturum ac parumper commoratus dum clandestinus ad villam introitus pararetur aquam

ex subiecta lacuna poturus manu hausit et ldquoHaec estrdquo inquit ldquoNeronis decoctardquo Dein divolsa

sentibus paenula traiectos surculos rasit atque ita quadripes per angustias effossae cavernae

receptus in proximam cellam decubuit super lectum modica culcita vetere pallio strato

instructum fameque et iterum siti interpellante panem quidem sordidum oblatum aspernatus est aquae autem tepidae aliquantum bibit Tunc uno quoque hinc inde instante ut quam primum se

impendentibus contumeliis eriperet scrobem coram fieri imperavit dimensus ad corporis sui

modulum componique simul si qua invenirentur frusta marmoris et aquam simul ac ligna

conferri curando mox cadaveri flens ad singula atque identidem dictitans ldquoQualis artifex

pereordquo Inter moras perlatos a cursore Phaonti codicillos praeripuit legitque se hostem a senatu

iudicatum et quaeri ut puniatur more maiorum interrogavitque quale id genus esset poenae et

cum comperisset nudi hominis cervicem inseri furcae corpus virgis ad necem caedi conterritus

duos pugiones quos secum extulerat arripuit temptataque utriusque acie rursus condidit

causatus nondum adesse fatalem horam [] Iamque equites appropinquabant quibus praeceptum

erat ut vivum eum adtraherent Quod ut sensit trepidanter effatus ldquoππων μrsquo ὠκυπόδων ἀμφὶ

κτύπος οὔατα βάλλειrdquo ferrum iugulo adegit iuvante Epaphrodito a libellis (Suet Nero 481 483-

4 491-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de

Edwards (2000 p 223-225) 1252

Suet Nero 501

305

morte de Nero Para alguns tamanha foi a alegria com sua morte que vestiram

pileus da liberdade e correram por toda a cidade Outros ao contraacuterio decoraram

seu tuacutemulo com flores e agraves vezes postaram seus decretos como se ele ainda

estivesse vivo e logo fosse voltar para se vingar dos seus inimigos1253

O relato de Suetocircnio dos uacuteltimos eventos da vida de Nero eacute ateacute hoje

admirado por sua vivacidade e legibilidade Townend caracteriza a narrativa como

a histoacuteria de ldquomaior sucessordquo do De Vita Caesarum e outros estudiosos a

exemplo de Baldwin concordam com ele1254

Townend observa que o sucesso do

relato estaacute vinculado ao que ele intitula de ldquolei da relevacircncia biograacuteficardquo segundo

a qual os detalhes do enredo foram apresentados com o intuito de reforccedilar os

retratos neronianos jaacute erigidos ao longo do texto1255

A nosso ver o primeiro retrato reforccedilado foi o do Nero antiprinceps O

bioacutegrafo ao mencionar a negligecircncia do soberano com a revolta nas Gaacutelias

retoma a ideia veiculada nos episoacutedios dos conflitos na Armecircnia e na Britacircnia de

que o liacuteder natildeo se interessava pelos assuntos militares A tal ideia acrescenta outro

retrato o do Nero artista cujo amor pelas artes era tatildeo intenso a ponto de fazecirc-lo

retornar a Roma haja vista que se sentiu ofendido por Vindex Dito isso o

bioacutegrafo afirma que Nero mesmo de volta agrave Vrbs natildeo se reuniu com o Senado e

nem com suas tropas convocando apenas um conselho privado de cidadatildeos

Mais um retrato fortalecido pelo bioacutegrafo foi o do Nero cruel Notemos

que juntamente agrave exposiccedilatildeo dos episoacutedios ele insere ldquoplanosrdquo que evidenciam o

desejo imperial de exterminar os revoltosos Na visatildeo de Brandatildeo o apontamento

de tal vontade indica natildeo soacute o peacutessimo caraacuteter de Nero como tambeacutem a

degradaccedilatildeo da sua impiedade Os crimes cometidos dentro do ciacuterculo familiar

palaciano como os assassinatos de Britacircnico Agripina Otaacutevia e Popeia

alargaram-se para pessoas de fora da casa imperial gerando um leque arbitraacuterio de

viacutetimas e de pretextos Ou seja se a personalidade de Nero jaacute era desumana ndash e

despertava horror e indignaccedilatildeo nos leitores ndash aqui se tornou mais ainda No final

das contas entatildeo o De Vita Caesarum nos lega a imagem de um ser

desmesuradamente insensiacutevel que representava perigo para a vida de todos1256

1253

Suet Nero 571 1254

TOWNEND 1967 p 93 BALDWIN 1983 p 174-175 1255

TOWNEND 1967 p 95 1256

BRANDAtildeO 2008a p 118

306

Outro retrato revigorado foi o do Nero tirano Suetocircnio alega que o

princeps para custear a campanha militar contra os gauleses fixa impostos de

modo arrogante sem se importar se os indiviacuteduos poderiam pagaacute-los Por oacutebvio

essa accedilatildeo gerou insatisfaccedilatildeo e o bioacutegrafo insiste em comentar sobre os modos

como as pessoas a demonstraram publicamente durante a noite depredaram suas

estaacutetuas e ldquo[] escreveram nas colunas que ele havia incitado ateacute os gauleses com

seu cantordquo1257

Em outros termos sua atitude autoritaacuteria fez com que aqueles que

o amavam retirassem seu apoio deixando-o sozinho na gerecircncia do Impeacuterio E

seria assim que viveria seus uacuteltimos dias afinal precisava sofrer as consequecircncias

dos seus atos tiracircnicos

O uacuteltimo retrato consolidado foi outra vez o do Nero artista Nas palavras

de Brandatildeo as aspiraccedilotildees artiacutesticas de Nero influenciaram muito Suetocircnio na

redaccedilatildeo dessa parte do De Vita Caesarum Nesse ponto o bioacutegrafo narra

milimetricamente cada passo do soberano acentuando o aspecto teatral de cada

momento Ao colocar Nero dizendo que morria como artifex Suetocircnio criou um

liacuteder que desempenhou sua proacutepria trama real isto eacute que finalmente conseguiu

unir a vida real agrave arte

Antes de finalizar precisamos discutir acerca do dispendioso funeral do

princeps e das emoccedilotildees variadas que sua morte despertou No tocante ao enterro

Suetocircnio parece utilizaacute-lo como instrumento para concretizar a luxuacuteria desmedida

de Nero E quanto agraves emoccedilotildees mostra que nem todos ficaram felizes Esse fato a

nosso ver indica ainda haver uma disputa em torno da imagem de Nero que

predominaria Apesar de toda a desmoralizaccedilatildeo sofrida pelo soberano ateacute ali sua

imagem negativa ainda natildeo imperava sozinha Suetocircnio apresenta alguns

indiviacuteduos inclusive que vatildeo seguir acreditando que ele natildeo havia morrido De

fato 20 anos apoacutes o seu falecimento em 88 surge um aventureiro dizendo ser

Nero1258

Suetocircnio natildeo silencia sobre isso mostrando que era necessaacuterio mostrar a

apreciaccedilatildeo positiva que seguia existindo ainda no seu tempo

Finalmente apoacutes investigarmos os retratos de Nero contidos no De Vita

Caesarum tivemos as seguintes categorias i) Nero infausto (nascimento e

1257

Ascriptum et columnis etiam Gallos eum cantando excitasse (Suet Nero 452) A traduccedilatildeo

para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Edwards (2000 p 221-

222) 1258

Suet Nero 572

307

adoccedilatildeo de Nero) ii) Nero cruel (casamento com Otaacutevia casamento com Popeia

divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia conspiraccedilatildeo de Pisatildeo assassinato de

Popeia casamento com Messalina e revolta de Vindex) iii) Nero prodigioso

(ascensatildeo) iv) Nero antiprinceps (conflito com os partas jogos no anfiteatro

Juvenalia conflito na Britacircnia turnecirc artiacutestica pela Greacutecia e revolta de Vindex)

v) Nero fratricida (assassinato de Britacircnico) vi) Nero tirano (assassinato de

Britacircnico casamento com Popeia divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia ida de

Tiridates a Roma e revolta de Vindex) vii) Nero artista (jogos no anfiteatro

assassinato de Agripina Juvenalia primeira e segunda ediccedilotildees dos Neronia

Naacutepoles ida de Tiridates a Roma turnecirc artiacutestica pela Greacutecia revolta de Vindex e

suiciacutedio) viii) Nero matricida e Nero vaidoso (assassinato de Agripina) ix) Nero

incendiaacuterio (incecircndio de Roma) x) Nero construtor (construccedilatildeo da Domus

Aurea) e xi) Nero uxoricida (assassinatos de Otaacutevia e de Popeia)

Por intermeacutedio delas pudemos ver que a maneira de Suetocircnio representar

o soberano foi diferente da utilizada por autores anteriores a ele ainda que

preservasse muitos dos traccedilos jaacute observados em novos arranjos Sua biografia foi

elaborada por meio de uma organizaccedilatildeo temaacutetica construiacuteda a partir da seleccedilatildeo

daquilo que mais lhe interessou mostrar para seu leitor que Nero natildeo tardou em

revelar o seu verdadeiro e pior lado Como vimos o bioacutegrafo comeccedilou seu texto

abordando o peacutessimo caraacuteter imperial herdado dos Domiacutecios e de Agripina Tal

caraacuteter figurado no Nero infausto foi brevemente neutralizado pelo Nero

prodigioso cuja ascensatildeo trouxe o despertar das antigas virtudes augustanas

(clemecircncia generosidade amabilidade entre outras) Estas constituiacuteram as

melhores qualidades de Nero senatildeo as uacutenicas Juntamente ao Nero prodigioso

Suetocircnio delineou o Nero artista que no iniacutecio promoveu espetaacuteculos incriacuteveis

mas depois perdeu o senso da realidade Ao Nero artista ele tambeacutem acrescentou

os Neros tirano cruel matricida uxoricida incendiaacuterio e construtor os quais

concretizaram a degradaccedilatildeo moral que ele acreditava ter o imperador vivido

Nesse cenaacuterio emergiu uma lista de viacutecios cuja extensatildeo foi bem maior do que a

da lista das virtudes petulacircncia libido luxuacuteria extravagacircncia

insensibilidade1259

1259

HURLEY 2013 p 19

308

Enfim Suetocircnio colocou sua proacutepria marca na histoacuteria de Nero julgando o

que achou certo ou errado Isso significa que sua escrita deve ser entendida como

uma manifestaccedilatildeo consciente das suas concepccedilotildees morais e poliacuteticas que em

geral seguiram o eixo da criacutetica ao poder absoluto Natildeo foi agrave toa que ele

demonstrou um claro sentimento de aversatildeo em relaccedilatildeo aos comportamentos

autoritaacuterios de Nero

Por fim cabe dizer que o argumento de Joly se sustentou a narrativa do

bioacutegrafo natildeo se afastou tanto assim da dos Annales1260

Ficou claro que os traccedilos

constituintes fundamentais do Nero de Suetocircnio satildeo novos e simultaneamente

velhos Ou seja de formas direta e indireta o bioacutegrafo reforccedilou a criacutetica taciteana

preteacuterita de um governo autoritaacuterio e deu a ela seus tons proacuteprios Tal

compreensatildeo soacute foi possiacutevel em funccedilatildeo do conceito de allelopoiesis o qual nos

permitiu avaliar o repertoacuterio dos vaacuterios Neros criados pelas fontes que se

transforma em um indiviacuteduo presente em diversas temporalidades e ao mesmo

tempo modifica as formas como as entendemos As novas formas construiacutedas

motivadas por novos contextos levavam a se pensarem ou a se recomporem

novos traccedilos para o desenho de Nero mas os traccedilos eram fundamentalmente de

mateacuteria jaacute conhecida Simultaneamente esses novos retratos de Nero geravam a

compreensatildeo da sua proacutepria eacutepoca de um modo novo pela exemplaridade que

trazia e pela capacidade de interferecircncia em uma realidade na qual

paradoxalmente o imperador natildeo vivia mas se fazia presente como

exemplaridade multifacetada e disputada O exame de Nero nos retratos muacuteltiplos

de Suetocircnio e de Taacutecito entatildeo mostra como eacute simplificadora a noccedilatildeo de que cada

eacutepoca produz o seu proacuteprio Nero no final os Neros satildeo sempre muitos ndash e

prometem ainda serem muitos1261

Diatildeo Caacutessio Historia Romana

E como podem ser muitos vejamos os (re)tratados por Diatildeo Caacutessio

Cocceiano Ele nasceu em uma famiacutelia de senadores na cidade de Niceia

1260

JOLY 2005 p 125 1261

FAVERSANI 2020 p 390

309

proviacutencia da Bitiacutenia entre os anos de 155 a 1641262

Tal proviacutencia localizava-se no

noroeste da Aacutesia Menor na parte oriental do Impeacuterio Romano ou seja era uma

regiatildeo de cultura predominantemente grega1263

Seu pai Caacutessio Aproniano

assumiu postos poliacuteticos importantes em vida tanto no consulado quanto no

Senado1264

Apoacutes a morte do progenitor Diatildeo Caacutessio resolve ir para Roma em

torno do ano 180 para finalizar sua formaccedilatildeo retoacuterica jaacute iniciada em Niceia1265

Terminados os estudos comeccedila o cursus honorum servindo em magistraturas

mais baixas ateacute alcanccedilar o Senado De acordo com as obras do proacuteprio autor soacute

podemos precisar com certeza os seguintes cargos a pretura (sem data

precisa)1266

dois consulados a curatoria em Peacutergamo e em Esmirna

possivelmente durante o governo de Macrino e por fim o governo provincial da

Aacutefrica da Dalmaacutecia e da Panocircnia superior sendo esse provavelmente sob

Severo Alexandre1267

Apoacutes o governo de tal imperador natildeo temos mais

informaccedilotildees sobre Diatildeo Caacutessio o que nos leva a conjeturar que ele deve ter

falecido pouco depois1268

Em sua vida Diatildeo Caacutessio compocircs duas obras A primeira foi o livro Sobre

sonhos e pressaacutegios dedicado e enviado ao imperador Septiacutemio Severo em

1931269

E a segunda foi a Historia Romana um ambicioso projeto de 80 livros

elaborado entre 211 e 235 em que relata a histoacuteria de Roma dos seus primoacuterdios

ateacute o governo de Alexandre Severo Das composiccedilotildees resta-nos hoje apenas a

segunda e mesmo assim de forma fragmentaacuteria dos 80 livros temos soacute 25

preservados graccedilas aos epiacutetomes elaborados pelos monges bizantinos Xifilino e

Zonara1270

De acordo com Harrington para produzir a sua Historia Romana Diatildeo

Caacutessio leu e reuniu diversos materiais por um periacuteodo de quase 10 anos A

1262

CARY 1914-1927 p ix ldquoApesar de ser nativo de uma regiatildeo na porccedilatildeo oriental do Impeacuterio e

de ter o grego e natildeo o latim como idioma nativo Diatildeo Caacutessio se encontrava identificado com a

aristocracia senatorial romana considerando-se a si proacuteprio romanordquo (CORREcircA 2019 p 28) 1263

AALDERS 1986 p 302 1264

Dio 7272-4 RICH 1990 p 1 1265

MILLAR 1964 p 14-15 1266

De acordo com Coneglian (2012 p22) os pretores eram os responsaacuteveis pela aplicaccedilatildeo da

justiccedila e podiam ser divididos em pretores urbanus (cuidavam dos processos entre os cidadatildeos) e

pretores peregrinus (cuidavam dos litiacutegios civis ou criminais que envolvessem estrangeiros) Eram

eleitos anualmente 1267

Dio 73122 7621 7813-5 7974 8052 1268

CARY 1914-1927 p xii Sobre a biografia de Diatildeo Caacutessio cf MILLAR 1964 p 5-27 1269

GONCcedilALVES 2013 p143 1270

DE BLOIS FUNKE HAHN 2006 p 270

310

redaccedilatildeo da obra foi norteada pelo seu interesse de enaltecer o governo de Septiacutemio

Severo o que o levou a interpretar as fontes a partir de uma oacutetica pessoal e

enviesada por seus interesses especiacuteficos de honrar o governante de seu tempo

Harrington indica que Diatildeo Caacutessio se aproximou da perspectiva histoacuterica

moralizante de Ciacutecero e de Plutarco mas tambeacutem da perspectiva de

instrumentalizaccedilatildeo das fontes Tucidideanas1271

Ademais Diatildeo Caacutessio por ter

vivido em um periacuteodo de guerras civis e trocas de imperadores privilegiou os

eventos militares fazendo descriccedilotildees bem detalhadas de combates e de taacuteticas de

guerra Nesse sentido elogiou os generais e os soberanos que se preocupavam

com os assuntos militares e condenou aqueles que os ignoravam1272

Para aleacutem dessa visatildeo militar ele tambeacutem tinha uma visatildeo poliacutetica dos

fatos haja vista que na maior parte do tempo testemunhou o caos aflorar

enquanto sentado na cadeira de senador Assim apresentou o sistema poliacutetico do

Impeacuterio como algo em crise com os senadores perdendo suas posiccedilotildees

privilegiadas de que gozavam haacute seacuteculos e com suas responsabilidades sendo

transferidas gradualmente para os equestres1273

A seu ver a ordem das coisas soacute

seria restabelecida ndash isto eacute os privileacutegios do Senado soacute seriam assegurados ndash com

o estabelecimento de uma monarquia estaacutevel E para tanto era imprescindiacutevel

que o monarca possuiacutesse um rol de virtudes especiacuteficas como liberalitas

prudentia e clementia caso contraacuterio se o governo caiacutesse nas matildeos de um

monarca inadequado a paz e a estabilidade nunca seriam alcanccediladas Resumindo

Diatildeo Caacutessio considerava que o equiliacutebrio advindo de um governo absoluto era

maior e mais importante do que a liberdade poliacutetica dos senadores poreacutem o

imperador jamais poderia almejar o poder individual exclusivo e ignorar por

completo a autoridade dos senadores1274

Eacute aiacute que entra a sua representaccedilatildeo de

Nero O seu princeps foi descrito dentro dessa loacutegica do que um liacuteder deveria ou

natildeo fazer para garantir a harmonia no Impeacuterio Em outros termos Nero foi lido

como um bom ou como mau exemplum conforme suas atitudes em relaccedilatildeo agraves

instituiccedilotildees poliacuteticas e conforme se aproximasse ou se afastasse do ideal de

princeps que Diatildeo Caacutessio imaginou para sua proacutepria eacutepoca

1271

HARRINGTON 1977 p 160-162 1272

HARRINGTON 1977 p 160-162 1273

MADSEN 2020 p 2 1274

MADSEN 2020 p 117

311

Dada essa introduccedilatildeo tratemos entatildeo do primeiro episoacutedio descrito por

Diatildeo Caacutessio o nascimento do soberano O historiador conta a chegada do

imperador ao mundo com as seguintes palavras

O que se segue foram pressaacutegios do futuro governo de Nero

Quando ele nasceu raios de luz o cercaram pouco antes do amanhecer embora natildeo viessem de nenhuma luz solar observaacutevel Com base nisso e pelo movimento das estrelas daquela eacutepoca [] um astroacutelogo fez duas profecias sobre ele ele governaria e mataria sua matildee Quando Agripina ouviu isso ficou [] tatildeo perturbada que gritou [] ldquodeixe que ele me mate contanto que governerdquo embora mais tarde ela lamente

amargamente essa fala [] No entanto no que diz respeito agrave imoralidade e agrave lasciacutevia de Nero seu pai Domiacutecio viu-as chegando e natildeo por profecia mas por seu proacuteprio caraacuteter e pelo de Agripina ldquoEacute impossiacutevelrdquo disse ele ldquoque qualquer homem bom nasccedila de mim e desta mulherrdquo1275

Eacute possiacutevel perceber que Diatildeo Caacutessio elabora seu relato com base nas obras

de Taacutecito e Suetocircnio No caso dos Annales ele repete a personagem do astroacutelogo

e as profecias do futuro governo e do matriciacutedio E no caso do De Vita Caesarum

reutiliza a consulta ao astroacutelogo o lamento de Domiacutecio e as falhas do caraacuteter

deste de Agripina e por conseguinte de Nero Mas Diatildeo Caacutessio ao contraacuterio dos

dois autores eacute mais hostil natildeo se contentando em dizer que Nero assassinaria a

matildee ou seria um imperador infausto Ele vai aleacutem especifica a imoralidade e a

lasciacutevia do jovem Ou seja eacute menos hesitante em expressar sua hostilidade

demarcando e singularizando desde o princiacutepio o peacutessimo caraacuteter do

soberano1276

Segundo Kemezis esse destaque dado aos viacutecios relaciona-se com a

forma como Diatildeo Caacutessio redigiu sua narrativa histoacuterica a saber a partir de um

modelo de imperador e de Principado Para ele o liacuteder ideal deveria ser algueacutem

orientado pelas virtudes e natildeo pelas paixotildees O Principado demandava regras de

1275

σημεῖα δ᾽ αὐτῷ τῆς αὐταρχίας τάδε ἐγένετο ἀκτῖνες γὰρ τικτόμενον αὐτὸν ὑπὸ τὴν ἕω ἐξ

οὐδεμιᾶς τοῦ ἡλίου φανερᾶς προσβολῆς περιέσχον καί τις ἀστρολόγος ἔκ τε τούτων καὶ ἐκ τῆς τῶν

ἀστέρων φορᾶς τῆς ἐν ἐκείνῳ τῷ χρόνῳ καὶ πρὸς ἀλλήλους ὁμιλίας δύο ἅμα περὶ αὐτοῦ

ἐμαντεύσατο ὅτι τε βασιλεύσει καὶ ὅτι τὴν μητέρα φονεύσει ἀκούσασα δὲ ταῦθ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα

παραυτίκα μὲν οὕτως ἐξεφρόνησεν ὡς καὶ αὐτὸ τοῦτο ἀναβοῆσαι lsquoἀποκτεινάτω με μόνον

βασιλευσάτωrsquo ὕστερον δὲ καὶ πάνυ μετανοήσειν ἐπὶ τῇ εὐχῇ ἔμελλεν ἐς γὰρ τοῦτο μωρίας

ἀφικνοῦνταί τινες ὥστε ἄν τι προσδοκήσωσιν ἀγαθὸν κακῷ μεμιγμένον λήψεσθαι εὐθὺς μὲν

ἐπιθυμίᾳ τοῦ κρείττονος καταφρονεῖν τοῦ χείρονος ἐπειδὰν δὲ καὶ ἐκείνου ὁ καιρὸς ἔλθῃ

δυσκολαίνειν καὶ μὴ ἂν μηδὲ τὸ βέλτιστον (Dio 61b21-3) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 37) 1276

HURLEY 2013 p 32

312

comportamento para seus liacutederes e bons imperadores deveriam conter seus viacutecios

se quisessem viver em harmonia com a sociedade sobretudo com a elite

senatorial1277

Em siacutentese um bom Principado dependia do bom caraacuteter do

governante o que nos leva a concluir que para Diatildeo Caacutessio do Nero infausto soacute

viria um governo infausto Cabe frisar que o controle do imperador por terceiros

que governassem externamente agrave Casa Imperial no seacuteculo III jaacute parecia algo

menos tangiacutevel por parte de membros da elite senatorial A visatildeo de um governo

mais fechado na Casa Imperial predomina em Diatildeo Caacutessio como uma visatildeo de seu

tempo aplicada ao seacuteculo I A partir dessa visatildeo constroacutei um Nero que serviraacute de

exemplo para entender seu tempo por allelopoiesis

Eacute vaacutelido dizer tambeacutem que a Historia Romana foi escrita mais de um

seacuteculo depois dos Annales e do De Vita Caesarum A distacircncia temporal entre as

composiccedilotildees adicionada agrave permanecircncia de alguns elementos evidencia a tradiccedilatildeo

negativa sobre o nascimento de Nero Isso significa que no seacuteculo III as

narrativas jaacute natildeo eram mais tatildeo independentes umas das outras e que certos temas

seguiam um padratildeo esperado tanto para a escolha quanto para a avaliaccedilatildeo dos

episoacutedios Diatildeo Caacutessio seleciona julgamentos acerca de Nero que eram anteriores

a ele e que tinham sido construiacutedos a partir de um ponto de vista especiacutefico ndash

tratava-se de um repertoacuterio jaacute estabelecido atraveacutes de geraccedilotildees Tal accedilatildeo o faz

ignorar determinados aspectos e se concentrar em outros mais conhecidos

produzindo um Nero que ganha forccedila entre um puacuteblico amplo o Nero ruim desde

o nascimento1278

13 anos depois Agripina casa-se com Claacuteudio e o faz adotar Nero

Os libertos zelosamente ajudam a realizar esse casamento pois Agripina tinha um filho Domiacutecio que jaacute se aproximava da idade de ingressar na carreira puacuteblica e ela queria criaacute-lo como sucessor de Claacuteudio [] Assim que Agripina vai morar no palaacutecio ela assume o controle total sobre Claacuteudio Na verdade ela era muito inteligente em aproveitar ao maacuteximo as

oportunidades [] [Ela] faz com que seu filho Britacircnico seja criado como se fosse um mero ningueacutem [] Ela faz com que Claacuteudio [] adote Domiacutecio Enquanto Nero eacute promovido Britacircnico natildeo recebe honra e nem atenccedilatildeo Ao contraacuterio Agripina remove [] aqueles que lhe eram devotados []1279

1277

KEMEZIS 2014 p 90-149 1278

MANUWALD 1979 p 45-56 FAVERSANI 2020 p 391 1279

ἐκείνης δ᾽ οὕτω διαφθαρείσης τὴν Ἀγριππῖναν τὴν ἀδελφιδῆν ἔγημε σπουδῇ τῶν ἀπελευθέρων

ὅτι τὸν Δομίτιον ἐς προσήβους ἤδη τελοῦντα εἶχεν υἱόν ὅπως ἔφεδρον αὐτὸν τῇ ἀρχῇ ὡς δ᾽ ἅπαξ ἐν

313

Aqui Diatildeo Caacutessio enfatiza o controle de Agripina sobre Claacuteudio

pintando-a como uma mulher manipuladora que forccedilou o imperador a adotar

Nero Essa representaccedilatildeo evoca elementos presentes no texto de Taacutecito Nos

Annales a adoccedilatildeo tambeacutem eacute retratada como um objetivo pessoal da matrona e

natildeo como uma poliacutetica dinaacutestica adotada pelo proacuteprio Claacuteudio Contudo na

Historia Romana de modo diverso dos Annales o foco reside apenas em

Agripina natildeo havendo outros agentes (como Pallas) Ela eacute a uacutenica responsaacutevel

por preparar o caminho para Nero Somemos a isso o fato de que os romanos em

geral natildeo adotavam quando jaacute havia uma linha clara de sucessatildeo As exceccedilotildees

notaacuteveis foram Tibeacuterio que adotou Germacircnico quando jaacute tinha o filho Druso e

Claacuteudio que adotou Nero contra os interesses de Britacircnico Isso se explica porque

as adoccedilotildees fora da linha de sucessatildeo costumavam provocar insatisfaccedilatildeo na elite

senatorial1280

Poreacutem a astuacutecia de Agripina era tatildeo grande que ela faz seu marido

ignorar os possiacuteveis descontentamentos e escolher Nero pois sua sede pelo poder

era enorme Portanto entendemos que a adoccedilatildeo eacute figurada por Diatildeo Caacutessio como

uma trama de Agripina natildeo havendo participaccedilatildeo do princeps o que resulta na

impossibilidade de categorizar o episoacutedio

Mais tarde Claacuteudio adoece afirma Diatildeo Caacutessio Nero dominado pela

matildee entra no Senado e promete uma corrida de bigas caso ele melhore Enquanto

isso Agripina convence Claacuteudio a escrever uma carta agrave Cuacuteria informando que se

ele morresse Nero poderia administrar os negoacutecios do Estado Em consequecircncia

seu nome circula na boca de todos e o de Britacircnico fica esquecido com muitos o

chamando de louco e epileacuteptico pois Agripina assim dizia Quando Claacuteudio se

τῷ βασιλείῳ ἡ Ἀγριππῖνα ἐγένετο τόν τε Κλαύδιον ἐσφετερίσατο δεινοτάτη που οὖσα πράγμασι

χρῆσθαι καὶ τούς τινα αὐτοῦ εὔνοιαν ἔχοντας τὰ μὲν φόβῳ τὰ δὲ εὐεργεσίαις ᾠκειώσατο καὶ τέλος

τὸν Βρεττανικὸν τὸν παῖδα αὐτοῦ ὡς καὶ τῶν τυχόντων τινὰ τρέφεσθαι ἐποίει ὁ γὰρ ἕτερος ὁ καὶ τὴν τοῦ Σεϊανοῦ θυγατέρα ἐγγυησάμενος ἐτεθνήκει τόν τε Δομίτιον τότε μὲν γαμβρὸν τῷ Κλαυδίῳ

ἀπέδειξεν ὕστερον δὲ καὶ ἐσεποίησεν ἔπραξεν δὲ ταῦτα τὸ μέν τι διὰ τῶν ἀπελευθέρων ἀναπείσασα

τὸν Κλαύδιον τὸ δὲ καὶ τὴν γερουσίαν καὶ τὸν δῆμον τούς τε στρατιώτας ἐπιτήδειόν τι ἀεί ποτε ἐς

αὐτὰ συμβοᾶν ὅτι ἡ Ἀγριππῖνα τὸν υἱὸν ἐς τὸ κράτος ἐξήσκει καὶ παρὰ τῷ Σενέκᾳ ἐξεπαίδευε

πλοῦτόν τε ἀμύθητον αὐτῷ συνέλεγεν οὐδὲν οὔτε τῶν σμικροτάτων οὔτε τῶν ἀτιμοτάτων ἐπ᾽

ἀργυρισμῷ παραλείπουσα ἀλλὰ πάντα μὲν καὶ τὸν ὁπωσοῦν εὐποροῦντα θεραπεύουσα πολλοὺς δὲ

καὶ δι᾽ αὐτὸ ὁπότε δὲ ὁ Κλαύδιος τὸν Νέρωνα τὸν υἱὸν αὐτῆς ἐσεποιήσατό τε καὶ γαμβρὸν

ἐποιήσατο τὴν θυγατέρα ἐς ἕτερόν τι γένος ἐκποιήσας ἵνα μὴ ἀδελφοὺς συνοικίζειν δοκῇ τέρας οὐ

μικρὸν ἐγένετο καίεσθαι γὰρ ὁ οὐρανὸς τὴν ἡμέραν ἐκείνην ἔδοξεν ὅτι ὁ μὲν Νέρων ηὔξετο

Βρεττανικὸς δὲ οὔτε τινὰ τιμὴν οὔτε ἐπιμέλειαν εἶχεν ἀλλ᾽ ἡ Ἀγριππῖνα τούς τε ἄλλους τοὺς

περιέποντας αὐτὸν τοὺς μὲν ἐξέβαλε τοὺς δὲ καὶ ἀπέκτεινε καὶ τὸν Σωσίβιον [] (Dio 60318

321-3 3322 325) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 17-21) 1280

LINDSAY 2009 p 145

314

recupera Nero conduz a corrida de bigas e casa-se com Otaacutevia1281

No dia do

enlace ldquo[] ocorre um poderoso pressaacutegio O ceacuteu parecia estar em chamas

naquele diardquo1282

Notemos que o casamento tambeacutem eacute divulgado com ecircnfase na habilidade

de Agripina em manipular tanto os que estavam em torno de Claacuteudio quanto as

circunstacircncias necessaacuterias para o avanccedilo de Nero Vagarosamente ela vai

construindo a imagem do futuro soberano na mente da populaccedilatildeo de modo que

seu filho eacute visto como o uacutenico sucessor possiacutevel1283

Para Schulz a atitude de

Diatildeo Caacutessio em relaccedilatildeo a ela natildeo eacute nada benevolente pois ele entendia que o

domiacutenio excessivo dela representava uma ameaccedila agrave ordem do Estado 1284 Fischler

Beacutelo e Funari explicam que a elite senatorial romana acreditava que os bons

principes deveriam ter mulheres e matildees controlaacuteveis e conscientes dos seus

limites Nesse sentido Agripina ao dominar Claacuteudio evidenciava que o poder

natildeo residia no imperador mas nela1285

e por conseguinte mostrava tambeacutem que o

poder natildeo residiria em Nero quando ele assumisse o trono Portanto temos uma

clara insinuaccedilatildeo de que natildeo havia a possibilidade de existir um bom governo

enquanto a transgressora dos papeacuteis sociais estivesse por perto Natildeo agrave toa Diatildeo

Caacutessio afirma que no dia do matrimocircnio o ldquoceacuteu parecia estar em chamasrdquo eacute um

poderoso pressaacutegio negativo do Nero infausto e de tudo o que estava por vir

Ainda sobre esse episoacutedio consideramos que o autor atraveacutes da inuentio

que privilegiava o interior da Casa Imperial e suas intrigas natildeo soacute fortalece a

imagem negativa de Agripina ndash jaacute existente nos textos de Pseudo-Secircneca Pliacutenio o

Velho Taacutecito e Suetocircnio ndash como acrescenta a ela um elemento novo o de uma

mulher capaz de dar ordens diretas ao marido A nosso ver Diatildeo Caacutessio incorpora

um aspecto da esfera de referecircncia do passado ndash o retrato ambicioso da matrona ndash

1281

Dio 60339 Em 60337-8 Diatildeo Caacutessio relata que quando foi decidido o casamento

Agripina e Viteacutelio convenceram Claacuteudio a matar Silano jaacute noivo de Otaacutevia alegando que este

estava conspirando contra aquele 1282

τὴν θυγατέρα ἐς ἕτερόν τι γένος ἐκποιήσας ἵνα μὴ ἀδελφοὺς συνοικίζειν δοκῇ τέρας οὐ μικρὸν

ἐγένετο καίεσθαι γὰρ ὁ οὐρανὸς τὴν ἡμέραν ἐκείνην ἔδοξεν (Dio 613322) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 31) 1283

GINSBURG 2006 p 34-35 1284

SCHULZ 2019 p 205 1285

FISCHLER 1994 p 127-128 BEacuteLO FUNARI 2017 p 82 Treggiari (1996 p 125)

argumenta que as mulheres imperiais comeccedilaram a ganhar mais independecircncia na transiccedilatildeo do

final da Repuacuteblica para o iniacutecio do Impeacuterio tomando a frente em assuntos do Estado O problema

era quando elas violavam o que era visto como funccedilotildees primaacuterias do imperador provocando uma

mudanccedila na natureza de governar (FISCHLER 1994 p 125-127)

315

e modifica a esfera de recepccedilatildeo criando o retrato de uma matrona com uma

ambiccedilatildeo puacuteblica que se construiacutea no ambiente da domus Tal processo culmina na

elaboraccedilatildeo da imagem de um Nero muito mais fraco e controlado do que os Neros

preteacuteritos cujo casamento consequentemente tambeacutem se tornou mais

infausto1286

O proacuteximo episoacutedio eacute a ascensatildeo de Nero Diatildeo Caacutessio afirma que nada

mais satisfazia Agripina Embora privileacutegios e honras tivessem sido dados a ela a

ponto de ela exercer quase que o mesmo poder que Claacuteudio ela seguia desejando

o tiacutetulo imperial1287

Assim este comeccedila a se enfurecer com a esposa observando

todas as suas manipulaccedilotildees sobretudo as relacionadas a Britacircnico Agrave vista disso

ele aumenta os afetos para com o filho e inicia os preparativos para tornaacute-lo

herdeiro do trono1288

Vendo tal atitude Agripina fica alarmada e resolve

assassinar Claacuteudio colocando um veneno em um cogumelo1289

O imperador logo

sente os efeitos falecendo durante a noite1290

[] E assim Nero tendo primeiramente destruiacutedo o testamento de Claacuteudio e tendo-o sucedido como mestre de todo o Impeacuterio

coloca Britacircnico e suas irmatildes fora do caminho [] [] Ele

tinha dezessete anos quando comeccedilou a governar Entra primeiramente no acampamento e depois de ler para os soldados o discurso que Secircneca havia escrito para ele promete a eles tudo o que Claacuteudio havia lhes dado Diante do Senado lecirc um discurso semelhante tambeacutem redigido por Secircneca []1291 Os senadores portanto preparam-se para desfrutar de um bom reinado []1292

1286

BERGEMANN 2019 p 9 1287

Dio 603312 1288

Dio 60341 1289

Dio 60342 1290

Dio 60343 Nesta ocasiatildeo Diatildeo Caacutessio comenta que Secircneca escreveu a Apocolocyntosis

ridicularizando Claacuteudio seu governo e sua deificaccedilatildeo (Dio 60353) 1291

Diatildeo Caacutessio (Dio 6131) registra que esse discurso foi tatildeo aclamado que o Senado ordenou

que fosse inscrito em uma coluna de prata e lido anualmente 1292

ἀποθανόντος δὲ τοῦ Κλαυδίου κατὰ μὲν τὸ δικαιότατον ἡ ἡγεμονία τοῦ Βρεττανικοῦ ἦν ῾γνήσιος

γὰρ τοῦ Κλαυδίου παῖς ἐπεφύκει καὶ τῇ τοῦ σώματος ἀκμῇ καὶ ὑπὲρ τὸν τῶν ἐτῶν ἀριθμὸν ἤνθεἰ ἐκ

δὲ δὴ τοῦ νόμου καὶ τῷ Νέρωνι διὰ τὴν ποίησιν ἐπέβαλλεν ἀλλ᾽ οὐδὲν γὰρ [] ἑπτὰ δὲ καὶ δέκα ἔτη

ἦγεν ὅτ᾽ ἦρξεν ἔς τε τὸ στρατόπεδον ἐσῆλθε καὶ ἀναγνοὺς ὅσα ὁ Σενέκας ἐγεγράφει ὑπέσχετο

αὐτοῖς ὅσα ὁ Κλαύδιος ἐδεδώκει τοσαῦτα δὲ καὶ πρὸς τὴν βουλήν πρὸς τοῦ Σενέκου καὶ αὐτὰ

γραφέντα ἀνέγνω ὥστε καὶ ἐς ἀργυρᾶν στήλην ἐγγραφῆναι καὶ ἐν ταῖς νέαις τῶν ἀεὶ ὑπάτων ἀρχαῖς

ἀναγινώσκεσθαι ψηφισθῆναι καὶ οἱ μὲν ἐκ τούτων ὡς καὶ κατὰ συγγραφήν τινα καλῶς

ἀρχθησόμενοι παρεσκευάζοντο (Dio 6111 6131) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 35-39)

316

Primordialmente Secircneca e Burro satildeo descritos por Diatildeo Caacutessio como

homens sensatos e justos que regeram o Estado Nero segundo o historiador natildeo

se interessava pelo governo preferindo viver ocioso e se dedicar aos prazeres1293

Os dois conselheiros entatildeo tomam a frente dos assuntos puacuteblicos criando novas

leis e abolindo alguns impostos o que permite ao princeps se entregar aos desejos

por completo1294

Como os negoacutecios seguiam bem Nero passa a oferecer jantares

e festividades de forma moderada e privada bebendo e divertindo-se com

amores1295

Mas Diatildeo Caacutessio alega que os banquetes logo passaram para o cenaacuterio

puacuteblico fato que foi visto como um grande infortuacutenio pelo povo romano1296

Assim na concepccedilatildeo do historiador o Principado neroniano comeccedilou bem e

rapidamente decaiu estando esse bom periacuteodo vinculado agraves influecircncias de Secircneca

e Burro Quando as iniciativas pessoais de Nero satildeo apresentadas por Diatildeo Caacutessio

eacute difiacutecil saber se esse primeiro estava seguindo os conselhos dos tutores ou se

estava de fato governando De qualquer modo o importante eacute que a prioridade

do governo foram o bem-estar e a prosperidade econocircmica do Impeacuterio1297

Resta

determinar por quanto tempo o domiacutenio dos ldquoparceiros no poderrdquo continuaria1298

Aqui Nero eacute representado como um sujeito mais inclinado agrave libertinagem do que

aos assuntos poliacuteticos o que indica que Diatildeo Caacutessio acreditava numa duraccedilatildeo

efecircmera do bom governo Nesse sentido julgamos que ele consolida o retrato do

Nero infausto e reforccedila o do Nero antiprinceps Desse modo corrobora a tradiccedilatildeo

interpretativa taciteana ndash a do Nero prodigioso que soacute era prodigioso porque tinha

bons conselheiros ndash e enfraquece a tradiccedilatildeo interpretativa suetoniana e a dos

autores contemporacircneos ao princeps ndash a do Nero prodigioso que seguiu Augusto

Ao fazer isso daacute novo sentido agrave imagem de Nero erigindo o retrato de um liacuteder

vicioso que abandonou o Principado nas matildeos de pessoas capacitadas Nesse

sentido Secircneca e Burro natildeo governavam por meio de Nero mas dirigiam porque

o Imperador tinha abandonado a esfera puacuteblica para tratar dos seus interesses e

das suas vontades privadas

1293

Dio 6141 1294

Dio 6142 1295

Dio 6143 1296

Dio 6151-2 1297

SCULLARD 2010 p 258 1298

GRIFFIN 2001 p 67

317

Apoacutes a ascensatildeo Nero recebe notiacutecias de conflitos irrompidos na Armecircnia

Sem demora envia Corbulatildeo para lidar com a situaccedilatildeo confiando que ele

subjugaria os ldquobaacuterbarosrdquo Diatildeo Caacutessio noticia que o general natildeo foge agraves

expectativas toma Artaxata e arrasa a cidade muito embora tenha entristecido a

todos com sua lealdade ao princeps pois queriam colocaacute-lo no lugar de Nero1299

Corbulatildeo tambeacutem realiza outro ato glorioso alega o historiador estabelece um

acordo com Vologeso e Tiridates no qual o primeiro retiraria suas tropas da

Armecircnia e o segundo seria coroado rei contanto que os partas retornassem ao

domiacutenio romano1300

O general fixa ainda que Tiridates deveria prestar

homenagens agraves estaacutetuas de Nero e depois ir ateacute a Vrbs para ser coroado pelas

matildeos do imperador Dessa forma no dia acertado os exeacutercitos se encontram e

Tiridates cumpre sua palavra1301

Uma plataforma eacute erguida e nela satildeo colocadas

as estaacutetuas do princeps Tiridates se aproxima e presta reverecircncia tirando o

diadema da sua cabeccedila e colocando-o aos peacutes das estaacutetuas Em honra a tal evento

Nero eacute saudado como imperator e conquista um triunfo1302

Ao descrever o conflito Diatildeo Caacutessio parece mais entusiasmado com

Corbulatildeo do que Taacutecito1303

Nos Annales vimos que a vitoacuteria na Armecircnia foi

atribuiacuteda agraves accedilotildees do general sendo Nero retratado como um imperador

indiferente aos assuntos externos1304

Aqui tais accedilotildees segundo Schulz satildeo

reforccediladas por uma razatildeo devido ao interesse particular de Diatildeo Caacutessio de

confrontar bons e maus liacutederes1305

A autora explica que o historiador

indiretamente contrapotildee Corbulatildeo com o princeps no intuito de ldquoiluminarrdquo as

deficiecircncias militares deste uacuteltimo1306

A ideia eacute mostrar que Corbulatildeo tem as

qualidades ausentes em Nero isto eacute revelar ao leitor o papel que o imperador

deveria desempenhar e desconsiderava Eacute por isso que Diatildeo Caacutessio elogia a

ldquointeligecircnciardquo a ldquobravurardquo o ldquosenso de justiccedilardquo e a ldquoprudecircnciardquo do general1307

Eacute

tambeacutem pelo mesmo motivo que critica a ausecircncia fiacutesica do soberano na resoluccedilatildeo

1299

Dio 6219 1300

Dio 62201-212 1301

Dio 62221-3 1302

Dio 6223 1303

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 91-92 1304

Tac Ann 1367 1341 1305

SCHULZ 2019 p 202-244 1306

O poder de Corbulatildeo eacute citado por Diatildeo Caacutessio jaacute nos livros relativos ao governo de Claacuteudio

nos quais ele afirma que esse imperador chamou o general de volta pois temia sabendo do seu

valor e da disciplina do seu exeacutercito que ele se tornasse muito poderoso (Dio 60304) 1307

Dio 62192 236

318

dos conflitos insinuando que Tiridates precisou reverenciar estaacutetuas de Nero

porque este natildeo foi ao campo de batalha Em suma o historiador representa o

jovem como um governante inapto militarmente que conquistava vitoacuterias agrave custa

dos trabalhos dos outros1308

Natildeo fortuitamente diz que todos detestavam Nero

por completo e queriam tornar Corbulatildeo imperador1309

Eacute intrigante como esse retrato do Nero antiprinceps erigido por Diatildeo

Caacutessio reforccedila os elaborados pelas fontes do passado Tanto as Siluae quanto os

Annales e o De Vita Caesarum explicitam a gestatildeo militar incompetente do

imperador O historiador entatildeo apossa-se de uma tradiccedilatildeo que jaacute vinha sendo

construiacuteda desde o final do seacuteculo I e a consolida delineando um Nero que a

partir desse ponto seraacute transmitido como o princeps que natildeo se preocupou com o

comando dos exeacutercitos Esse Nero passivo inclusive tornar-se-aacute conhecido por

todos alcanccedilando a contemporaneidade ndash independentemente dos elementos

acrescentados eou omitidos na narrativa No caso da narrativa de Diatildeo Caacutessio a

centralidade se manteacutem mais uma vez na Casa Imperial Toda a gloacuteria alcanccedilada

por Corbulatildeo eacute usurpada por Nero pela Casa Imperial agrave qual Corbulatildeo de igual

modo a Secircneca e Burro natildeo pertenciam mas serviam

Terminada a descriccedilatildeo desse conflito Diatildeo Caacutessio passa para o assassinato

de Britacircnico narrando-o em poucas linhas Ele noticia que Agripina angustia-se

com sua perda de poder sobre Nero devido ao amor do filho por Acte De acordo

com o historiador esta era muito mais amada pelo soberano do que Otaacutevia sua

nobre esposa1310

Agripina entatildeo indignada com a nova relaccedilatildeo e com a perda da

sua influecircncia recrimina filho mas natildeo vendo resultados diz a ele lsquoldquofui eu quem

te fiz imperadorrsquo ndash como se tivesse o poder de tirar a soberania dele []rdquo1311

1308

SCHULZ 2019 p 202-244 1309

Dio 62235 Sobre a figura de Corbulatildeo em Diatildeo Caacutessio cf TOWNEND 1961 p 227-248 1310

Dio 6171-2 1311

lsquoαὐτῷ ὅτι lsquoἐγώ σε αὐτοκράτορα ἀπέδειξαrsquo ὥσπερ ἀφελέσθαι τὴν μοναρχίαν αὐτοῦ δυναμένη

(Dio 6173) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 49)

319

Nero assassina Britacircnico de maneira traiccediloeira por

envenenamento e entatildeo quando a plebe fica chocada pela accedilatildeo do veneno ele unta o corpo com gesso Mas agrave medida que o funeral vai sendo realizado no Foacuterum uma forte chuva que cai enquanto o gesso ainda estaacute uacutemido lava tudo de forma que o crime fica conhecido natildeo soacute pelo que as pessoas ouviram mas tambeacutem pelo que viram1312

O assassinato de Britacircnico eacute o primeiro cliacutemax da Historia Romana isto eacute

o primeiro ato nefasto de Nero Diatildeo Caacutessio de maneira similar a Taacutecito e a

Suetocircnio manteacutem a ideia do fratriciacutedio por envenenamento Todavia ao contraacuterio

dos dois ele natildeo despende muito tempo nas ameaccedilas de Agripina e nem na

preparaccedilatildeo do veneno Seu foco reside no fato de Nero ter untado o corpo de

Britacircnico com gesso e no de as pessoas terem percebido isso Em concordacircncia

com Schulz essa preocupaccedilatildeo do historiador revela que quando ele escreveu o

seu relato a tradiccedilatildeo negativa de Nero jaacute era tatildeo forte que para ele o princeps

natildeo precisava mais esconder os seus crimes o seu peacutessimo caraacuteter jaacute era tatildeo

conhecido que todos assumiriam que ele era o culpado pelo fratriciacutedio logo natildeo

necessitava omiti-lo Ademais Diatildeo Caacutessio enfatiza que embora Nero tenha

tentado ocultar o crime cobrindo o corpo de Britacircnico com gesso a fim de

camuflar a descoloraccedilatildeo produzida pelo veneno tal tentativa foi frustrada haja

vista que a chuva lava tudo Depois disso o soberano natildeo receava mais ser punido

pelos seus atos se o ultraje viria agrave tona natildeo lhe importava1313

Portanto vemos

que Diatildeo Caacutessio estaacute bastante interessado em evidenciar o comportamento

violento de Nero Isso porque como porta voz dos interesses senatoriais ele

possuiacutea certa concepccedilatildeo de optimus princeps baseada naquilo que um bom

imperador deveria ser Nessa perspectiva demonstra que o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano

era totalmente incapaz de governar Roma devido ao seu caraacuteter ndash e tambeacutem ao

seu gosto pelo teatro e agrave sua falta de virilidade1314

Natildeo nos esqueccedilamos de que

Diatildeo Caacutessio tal qual Taacutecito e Suetocircnio descreve os feitos de Nero atraveacutes do

filtro das proacuteprias experiecircncias vividas ndash no seu caso as tiranias de Cocircmodo e de

1312

τὸν δὲ Βρεττανικὸν φαρμάκῳ δολοφονήσας ὁ Νέρων ἐπειδὴ πελιδνὸς ὑπὸ τοῦ φαρμάκου

ἐγενήθη γύψῳ ἔχρισεν ὑετὸς δὲ διὰ τῆς ἀγορᾶς αὐτοῦ διαγομένου πολύς ὑγρᾶς ἔτι οὔσης τῆς

γύψου ἐπιπεσὼν πᾶσαν αὐτὴν ἀπέκλυσεν ὥστε τὸ δεινὸν μὴ μόνον ἀκούεσθαι ἀλλὰ καὶ ὁρᾶσθαι

(Dio 6174) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 49) 1313

SCHULZ 2019 p 193 1314

GOWING 1997 p 2561-2577

320

Heliogaacutebalo Assim ao denunciar os abusos cometidos pelos liacutederes do seu

tempo utiliza Nero como exemplum transformando-o no predecessor de todos os

tiranos1315

Dessa maneira constroacutei uma leitura sua do Nero fratricida pautada na

leitura do Nero fratricida de Suetocircnio1316

a qual enrobustece ainda mais a

personalidade feroz do princeps reduzindo o peso das visotildees que trazem um

soberano amedrontado de perder o trono1317

Dois anos apoacutes o fratriciacutedio Nero homenageia a sua matildee ao celebrar um

extravagante festival no anfiteatro Diatildeo Caacutessio nos fala que as festas duraram

vaacuterios dias e contaram com a exibiccedilatildeo de animais exoacuteticos1318

Mas o acontecimento mais vergonhoso e terriacutevel foi quando

homens e mulheres tanto da ordem equestre quanto da senatorial apresentaram-se [] como se fossem de categorias sociais baixas e desonradas Alguns tocavam flauta e danccedilavam pantomimas ou atuavam em trageacutedias e comeacutedias ou cantavam com a lira [] alguns de boa vontade e outros de maacute Assim os homens daquela eacutepoca viram as grandes famiacutelias [] paradas laacute embaixo e fazendo coisas a que eles anteriormente nem mesmo assistiam quando eram realizadas por outros1319

Em seu relato Diatildeo Caacutessio enfatiza a pressatildeo coercitiva de Nero sobre a

elite romana Para Newbold assim o faz porque via os jogos mais como uma

instituiccedilatildeo poliacutetica do que como um fenocircmeno social Por ser um senador Diatildeo

Caacutessio preocupava-se com o crescimento do comportamento autocraacutetico imperial

Nesse sentido considerava importante que o princeps mantivesse e confirmasse o

alto status social de certos indiviacuteduos atraveacutes da concessatildeo de honrarias e

privileacutegios Por consequecircncia julgava essencial tambeacutem que o soberano natildeo

desvalorizasse os seus pares O poder do imperador deveria servir para preservar a

honra da aristocracia nunca para rebaixaacute-la Resumindo para ele o imperador

1315

GOWING 1997 p 2561-2577 1316

Suet Nero 331-3 1317

[Sen] Oct 150-168 Jos BJ 2249 Tac Ann 1316 1318

Dio 61172 1319

ἐκεῖνο δὲ δὴ καὶ αἴσχιστον καὶ δεινότατον ἅμα ἐγένετο ὅτι καὶ ἄνδρες καὶ γυναῖκες οὐχ ὅπως

τοῦ ἱππικοῦ ἀλλὰ καὶ τοῦ βουλευτικοῦ ἀξιώματος ἐς τὴν ὀρχήστραν καὶ ἐς τὸν ἱππόδρομον τό τε

θέατρον τὸ κυνηγετικὸν ἐσῆλθον ὥσπερ οἱ ἀτιμότατοι καὶ ηὔλησάν τινες αὐτῶν καὶ ὠρχήσαντο

τραγῳδίας τε καὶ κωμῳδίας ὑπεκρίναντο καὶ ἐκιθαρῴδησαν ἵππους τε ἤλασαν καὶ θηρία ἀπέκτειναν

καὶ ἐμονομάχησαν οἱ μὲν ἐθελονταὶ οἱ δὲ καὶ πάνυ ἄκοντες καὶ εἶδον οἱ τότε ἄνθρωποι τὰ γένη τὰ

μεγάλα τοὺς Φουρίους τοὺς Ὀρατίους τοὺς Φαβίους τοὺς Πορκίους τοὺς Οὐαλερίους τἆλλα πάντα

ὧν τὰ τρόπαια ὧν οἱ ναοὶ ἑωρῶντο κάτω τε ἑστηκότας καὶ τοιαῦτα δρῶντας ὧν ἔνια οὐδ᾽ ὑπ

ἄλλων (Dio 61173-4) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para

o inglecircs de Cary (1914-1927 p 75)

321

sempre deveria tratar os membros dos altos extratos sociais com deferecircncia pois

essa atitude o relembraria de que ele era o primeiro entre os iguais Caso os

desrespeitasse deveria fazecirc-lo no acircmbito privado jamais na esfera puacuteblica como

Nero fez afinal a afronta privada natildeo fazia a humilhaccedilatildeo ser ldquotestemunhada pelo

mundo em geralrdquo ao passo que a puacuteblica a exemplo da ocorrida nos jogos

claramente fazia1320

Portanto Nero ao colocar os senadores e equestres na arena

puacuteblica natildeo soacute os depreciou como tambeacutem revelou agrave plebe que aquilo que

sustentava a alta posiccedilatildeo social deles podia ser questionado e ignorado Nas

palavras de Newbold a conduta tiracircnica e arrogante de Nero e de outros

soberanos desperta indignaccedilatildeo em Diatildeo Caacutessio ele esperava decoro e natildeo

desrespeito intencional da dignidade da elite1321

Em outros termos ele ansiava

por um liacuteder que realizasse o seu papel mas acabou tendo um Nero tirano

Aqui como em outros momentos eacute imprescindiacutevel comentar sobre o uso

dos documentos do passado Entendemos que a seleccedilatildeo de materiais feita pelo

historiador esteve focada por completo no registro das condutas neronianas

inaceitaacuteveis o que o leva a negligenciar certos itens Por exemplo das trecircs

narrativas jaacute elaboradas acerca dos jogos no anfiteatro Diatildeo Caacutessio se concentra

naquelas que citavam o ataque agrave honra da elite (Annales e De Vita Caesarum)

marginalizando a que elogiou o luxo do anfiteatro (Eclogae)1322

Ou seja ele

concede um tratamento estreito mas ao mesmo tempo intensificado dos aspectos

destacados do objeto de referecircncia (o Nero tirano) Ao agir assim gera um novo

retrato do princeps ofuscando outros possiacuteveis e cria uma nova interpretaccedilatildeo do

Nero antigo que se tornaraacute base para os autores posteriores

Terminados os jogos Nero passa a se dedicar a um novo amor Popeia a

esposa do futuro imperador Otatildeo Agripina entatildeo preocupada com a

possibilidade de o filho se casar com tal mulher elabora um plano lisonjear Nero

e dar-lhe beijos imodestos para reconquistaacute-lo1323

Cientes de tal plano Popeia e

Secircneca persuadem o princeps a se livrar da matrona alegando que ela conspirava

1320

NEWBOLD 1985 p 589-604 1321

NEWBOLD 1985 p 589-604 Gastar somas enormes de dinheiro tambeacutem natildeo era admirado

por Diatildeo Caacutessio Nero aliaacutes eacute condenado por isso (Dio 61181) 1322

Tac Ann 14152 Suet Nero 121 Cal Ecl 723-56 1323

Diatildeo Caacutessio declara natildeo saber se o incesto de fato ocorreu ou se foi inventado para se ajustar

ao caraacuteter de Nero e Agripina Ele apenas repete tal informaccedilatildeo argumentando que ela era do

conhecimento de todos (Dio 61114)

322

contra ele1324

Incapazes de eliminaacute-la por envenenamento ndash haja vista que ela

tomava precauccedilotildees extremas contra isso ndash escolhem um navio desmontaacutevel1325

Quando este fica pronto Nero convida a matildee para ir a Baiacuteas com ele pois natildeo

queria assassinaacute-la em Roma por medo de que o crime se tornasse conhecido Ao

chegar laacute o soberano oferece enormes banquetes para a matildee entretendo-a com

muito afeto Quando ela resolve partir ele beija-lhe os olhos e as matildeos e a leva

para o navio projetado1326

Mas o mar natildeo suportaria a trageacutedia que estava para acontecer

[] e assim embora o navio tenha se partido em pedaccedilos e Agripina tenha caiacutedo na aacutegua ela natildeo morre Apesar de estar escuro e de ela estar embriagada e os marinheiros usarem os remos contra ela a ponto de matarem Acerrocircnia Pola sua companheira de viagem ela consegue atingir a praia em seguranccedila Quando chega em casa finge natildeo perceber que aquilo era uma conspiraccedilatildeo e fica quieta [] enviando para o seu filho um relatoacuterio da ocorrecircncia chamando-a de acidente e

transmite a ele as boas novas [] de que estava segura Ao ouvir isso Nero natildeo se conteacutem [] e logo despacha Aniceto com os marinheiros contra sua matildee pois ele natildeo confiava nos pretorianos para mataacute-la Quando ela os vecirc sabe a que tinham vindo e pulando da sua cama rasga suas roupas expondo seu ventre e grita ldquogolpeie-me aqui Aniceto golpeie-me aqui pois daqui nasceu Nerordquo1327

Eacute assim que Agripina morre pelas matildeos do filho a quem ela havia dado a

soberania atesta Diatildeo Caacutessio O historiador comenta que em seguida Nero deu

dinheiro para os pretorianos e enviou uma carta ao Senado na qual dizia que sua

matildee era culpada por diversos delitos e que conspirava contra ele Ao saber da

morte a plebe se alegra pensando que finalmente a destruiccedilatildeo de Agripina

estava assegurada Quanto aos senadores fingiram regozijar-se com o evento

votando medidas pelas quais pensariam ganhar o favor imperial1328

Segundo Diatildeo

Caacutessio quando Nero entra em Roma apoacutes o assassinato as pessoas o

1324

Diatildeo Caacutessio diz que Secircneca convenceu o soberano por dois motivos i) por desejo de silenciar

os rumores contra seu proacuteprio nome e ii) por desejo de fazer Nero destruir sua imagem como

princeps (Dio 61121) 1325

Segundo o historiador a ideia do navio adveio de um dia em que eles estavam no teatro e

viram um navio se desmontar soltar alguns animais e depois se recompor para navegar (Dio

61122) 1326

Dio 61131-2 1327

Dio 61133-5 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 65) 1328

Dio 61151-2

323

reverenciavam em puacuteblico e o condenavam em particular1329

A plebe derruba

todas as estaacutetuas de Agripina deixando apenas uma em peacute sobre a qual escreve

ldquolsquoestou envergonhado e vocecirc natildeo se envergonharsquo Em muitos lugares [tambeacutem]

podia-se ler a inscriccedilatildeo lsquoOrestes Nero Alcmeatildeo todos matricidasrsquordquo1330

Diatildeo Caacutessio fornece praticamente o mesmo relato do matriciacutedio de Taacutecito

e de Suetocircnio Mas ao mesmo tempo em que repete os traccedilos principais tambeacutem

adiciona as suas proacuteprias pinceladas Por exemplo ele aponta que Popeia foi a

maior instigadora do assassinato Poreacutem tal instigaccedilatildeo natildeo proveacutem do seu

interesse de apressar o casamento com Nero ou de se livrar do controle de

Agripina como sugerido nos Annales e no De Vita Caesarum1331

ela proveacutem da

acusaccedilatildeo de que Agripina estava tramando contra o filho Aqui outra vez a

tradiccedilatildeo literaacuteria representa um evento com importantes implicaccedilotildees poliacuteticas

como uma competiccedilatildeo entre mulheres em certo sentido a rivalidade entre

Agripina e Popeia eacute uma repeticcedilatildeo daquela ocorrida anteriormente entre Agripina

e Acte1332

Simultamente a tradiccedilatildeo tambeacutem repete a figura de Nero como um

liacuteder fraco e imerso nessa competiccedilatildeo incapaz de controlar sua amante e sua matildee

Outra pincelada conferida por Diatildeo Caacutessio ao episoacutedio eacute a participaccedilatildeo de

Secircneca Na visatildeo do historiador o filoacutesofo ndash visto por vaacuterios autores precedentes

como um homem respeitaacutevel ndash juntamente com Popeia acusa Agripina de

conspiraccedilatildeo A nosso ver essa inserccedilatildeo de Secircneca pode estar relacionada com

uma informaccedilatildeo transmitida por Diatildeo Caacutessio logo apoacutes o assassinato de Britacircnico

a de que o filoacutesofo estava sendo acusado de ter relaccedilotildees improacuteprias com

Agripina1333

Portanto para Secircneca eliminaacute-la seria uma forma de eliminar

tambeacutem os boatos Contudo de igual modo a Ginsburg consideramos a

motivaccedilatildeo pouco convincente suspeitando de que talvez ela tenha sido

forjada1334

Diatildeo Caacutessio tem uma visatildeo muito hostil de Secircneca e sempre o julga

chamando-o de incoerente bajulador e mentiroso1335

1329

Dio 61161 1330

(Dio 61162) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 73) 1331

Tac Ann 141 Suet Nero 342-4 1332

GINSBURG 2006 p 52 1333

Dio 61101 1334

GINSBURG 2006 p 53 1335

Dio 61102

324

Mais uma pincelada de Diatildeo Caacutessio eacute o foco no desdobramento na esfera

puacuteblica do assassinato O historiador ao contraacuterio de Taacutecito e de Suetocircnio que

estatildeo preocupados em mostrar um Nero que teatraliza a vida estaacute interessado em

evidenciar as atitudes do soberano apoacutes o crime Por exemplo Diatildeo Caacutessio

descreve como os senadores fingiram estar felizes e como algumas pessoas

condenavam o princeps no acircmbito privado e o elogiavam no espaccedilo puacuteblico

Segundo Bartsch essas informaccedilotildees mostram que o historiador representa um

Nero totalmente consciente dos sentimentos dos seus subordinados Isto eacute ele

sabia que a plebe o Senado e os pretorianos viviam sob medo e sob dissimulaccedilatildeo

Logo o soberano sabia que ningueacutem teria a coragem de lhe dizer a ldquoverdaderdquo ou

de acusaacute-lo de um crime e por isso tratou o matriciacutedio com normalidade natildeo se

esforccedilando para escondecirc-lo ou fazecirc-lo passar despercebido1336

Parece que o

assassinato natildeo passou despercebido mesmo uma vez que foram inscritas nos

muros de Roma pichaccedilotildees associando Nero a Orestes e a Alcmeatildeo ndash as quais

inclusive jaacute haviam sido mencionadas por Suetocircnio1337

Em concordacircncia com

Bartsch a repeticcedilatildeo de tal referecircncia indica que as pessoas acabaram encontrando

uma forma de dizer o ldquoindiziacutevelrdquo O matriciacutedio aparentemente colocara o

princeps na imaginaccedilatildeo popular em peacute de igualdade com os famosos matricidas

do mito grego Mas Diatildeo Caacutessio e Suetocircnio fazem mais do que apenas apontar

essa semelhanccedila entre o crime imperial e os homiciacutedios cometidos pelas

personagens mitoloacutegicas eles convidam os seus leitores a expandirem a

associaccedilatildeo para a realidade na medida em que sugerem que Nero performava as

trageacutedias no teatro Melhor dizendo convidam seus leitores a entender que Nero

era um ator a todo o momento tanto nos bastidores da sua vida ao realizar os

feitos dos matricidas mais famosos quanto no palco puacuteblico ao representar as

personagens agraves quais a imaginaccedilatildeo popular jaacute o havia comparado1338

Desse

modo Diatildeo Caacutessio ao reiterar a comparaccedilatildeo insinua que Nero finalmente

transporta o drama real da sua vida para a estrutura do teatro ldquoDepois de uma

vida toda se exibindo no palco o local da atuaccedilatildeo foi de fato transferido para a

vidardquo Nero fez a passagem do teatro para a vida1339

1336

BARTSCH 1994 p 26 1337

Suet Nero 392 1338

BARTSCH 1994 p 38-44 1339

BARTSCH 1994 p 38-44

325

Por fim consideramos que Diatildeo Caacutessio ao relatar o assassinato de

Agripina constroacutei novos retratos do Nero matricida e do Nero artista Ao

construiacute-los se embasa nas famosas descriccedilotildees dos seus antecessores Taacutecito e

Suetocircnio e as enriquece com suas pinceladas forjando imagens ainda mais

deploraacuteveis de Nero as de um liacuteder completamente controlado por sua amante

ciacutenico e dramatizador Mas por mais que ele tenha erigido o seu retrato de Nero

vemos que o princeps continua preservando alguns traccedilos jaacute bem conhecidos Dito

de outro modo ele adquire uma espeacutecie de atemporalidade sendo evocado de

maneira recorrente e privilegiada quando necessaacuterio e recombinado com

elementos do momento Os autores passam a usaacute-lo como ferramenta para

transmitir seus proacuteprios medos seus ressentimentos e suas desilusotildees colocando-

o assim no comando de suas preocupaccedilotildees contemporacircneas Em suma como

afirma Lefebvre Nero se torna uma figura ajustaacutevel1340

Na nossa perspectiva

contudo ganha destaque a combinaccedilatildeo dos elementos novos com aqueles jaacute

tradicionais Nero se faz pois tanto uma figura que pertence ao passado quanto

ao momento de sua apropriaccedilatildeo Por allelopoiesis o novo olhar de Diatildeo Caacutessio

permite fazer novas reflexotildees sobre o passado (nesse caso dando ecircnfase para o

papel de uma aristocracia impotente frente ao Imperador) e tambeacutem sobre o

presente se a passividade da aristocracia eacute escalada para a tirania do Imperador

abre-se uma crise com graves consequecircncias para o proacuteprio princeps e tambeacutem

para os aristocratas aviltados em sua dignidade e mesmo atacados em sua

integridade fiacutesica Diatildeo entatildeo opera a allelopoiesis nesse caso para produzir

uma nova forma de pensar o passado e fazendo-o permite ver seu presente de

uma forma diversa e lanccedilar uma advertecircncia a seus contemporacircneos Esse

mecanismo se faz pelo uso de Nero como exemplum A exemplaridade estaacute

construiacuteda a partir de uma tradiccedilatildeo e um Nero inteiramente novo e adequado de

forma muito direta e imediata aos conflitos do seacuteculo III natildeo faria qualquer

sentido para os leitores do historiador Cada momento natildeo constroacutei um novo Nero

de forma completa mas o produz recuperando e reorganizando os traccedilos e as

ecircnfases dados no repertoacuterio jaacute reconhecido na tradiccedilatildeo

Depois do matriciacutedio em 59 e 60 Nero como sabemos promove dois

festivais em Roma O primeiro foi os Juvenalia instituiacutedo para celebrar a

1340

LEFEBVRE 2017 p 266-269

326

raspagem da barba do princeps1341

Diatildeo Caacutessio relata que todos os membros das

famiacutelias mais nobres foram obrigados a participar apresentando algum tipo de

talento1342

Durante as performances Nero natildeo os deixou usarem maacutescaras pois

queria que fossem reconhecidos pela populaccedilatildeo O cliacutemax do evento foi a

exibiccedilatildeo do princeps na qual usou o traje de tocador de lira e cantou uma peccedila

chamada ldquoAs Bacantesrdquo1343

ldquoAo lado dele estavam Burro e Secircneca []

instigando-o e eles agitavam seus braccedilos e togas a cada pronunciaccedilatildeo dele e

levavam os outros a fazerem o mesmordquo1344

No ano seguinte Nero oferece o

segundo festival os Neronia1345

Nele tomou para si a coroa das competiccedilotildees

com a lira eliminando os adversaacuterios sob o pretexto de serem indignos de vitoacuteria

Apoacutes esse feito Diatildeo Caacutessio afirma que todas as outras coroas concedidas como

precircmios por tocar lira em todos os concursos foram enviadas a ele como o uacutenico

artista digno de vitoacuteria1346

Notemos que o historiador fortalece o retrato do Nero tirano ndash jaacute exposto

no relato dos jogos no anfiteatro ndash e fornece os primeiros traccedilos do Nero artista

No caso do Nero tirano reforccedila-o a partir de duas accedilotildees i) ao mencionar que o

soberano natildeo deixava a elite utilizar maacutescaras no decorrer das apresentaccedilotildees e ii)

ao dizer que Secircneca e Burro aplaudiram (e instigaram os aplausos) A nosso ver

tais menccedilotildees natildeo soacute enrobustecem a imagem do liacuteder que desrespeitava os

cidadatildeos proeminentes como tambeacutem rememoram a figura taciteana do princeps

que os aterrorizava Nos Annales vimos que o assassinato de inimigos reais ou

imaginaacuterios era uma realidade poliacutetica do governo de Nero fato que levava

muitos indiviacuteduos a dissimularem suas opiniotildees e a se submeterem agrave vontade

1341

Diatildeo Caacutessio adiciona que os pelos da barba foram colocados em um pequeno globo dourado e

oferecidos a Juacutepiter Capitolino (Dio 61191) 1342

Por exemplo Diatildeo Caacutessio diz que Eacutelia Catella uma mulher proeminente natildeo apenas por causa

da sua famiacutelia e riqueza mas tambeacutem por sua idade avanccedilada (ela era uma octogenaacuteria) danccedilou

uma pantomima (Dio 61191-2) 1343

Dio 61193-201 Diatildeo Caacutessio comenta que Nero tinha uma voz suave e rouca (Dio 61202) 1344

καὶ αὐτῷ καὶ ὁ Βοῦρρος καὶ ὁ Σενέκας καθάπερ τινὲς διδάσκαλοι ὑποβάλλοντές τι

παρειστήκεσαν καὶ αὐτοὶ τάς τε χεῖρας καὶ τὰ ἱμάτια ὁπότε φθέγξαιτό τι ἀνέσειον καὶ τοὺς ἄλλους

προσεπεσπῶντο ἦν μὲν γάρ τι καὶ ἴδιον αὐτῷ σύστημα ἐς πεντακισχιλίους στρατιώτας

παρεσκευασμένον (Dio 61203) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do

grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 81) 1345

Diatildeo Caacutessio alega que em honra a tal festival Nero mandou erigir no ano 60 o Gymnasium

Neronis isto eacute uma ldquoescola de muacutesicardquo Taacutecito e Suetocircnio em contrapartida postulam a data da

construccedilatildeo em 62 (Tac Ann 1447 Suet Nero 123) Para detalhes cf ASHBY PLATNER

1929 p 249 1346

Dio 61212

327

imperial1347

Aqui a situaccedilatildeo se repete o liacuteder coloca a elite em uma posiccedilatildeo na

qual ela eacute obrigada a dissimular Assim consideramos que Diatildeo Caacutessio constroacutei

uma narrativa proacutexima agrave de Taacutecito na medida em que recrimina a atitude de Nero

em relaccedilatildeo agrave aristocracia Seu discurso mostra que o imperador ultrapassou o

limite quebrando as regras bem estabelecidas de deferecircncia ao Senado Cabe

frisar poreacutem que sua concordacircncia com Taacutecito natildeo se aplica ao sistema poliacutetico

do Principado como um todo Diatildeo Caacutessio natildeo possui um pensamento pessimista

sobre o governo de um liacuteder soacute e nem acredita que o Senado deveria desempenhar

um papel ativo no governo Ao contraacuterio por ter vivido em uma eacutepoca marcada

por muitas trocas de liacutederes ele acredita que a paz soacute existiria se o princeps

reinasse sozinho pois a divisatildeo de poder com o Senado aumentaria a instabilidade

poliacutetica Contudo o soberano sempre deveria pedir conselhos aos magistrados

tornando a troca de ideias de fato uma realidade Aleacutem disso cabia ao imperador

distribuir dignidades e as posiccedilotildees de governo para aqueles aristocratas que

fossem merecedores O proacuteprio Diatildeo Caacutessio como vimos foi agraciado com

vaacuterias dessas dignidades e magistraturas Resumindo Diatildeo Caacutessio aceitava a

monarquia contanto que o imperador fosse um sujeito justo e modesto no seu

trato com a elite algo que Nero natildeo teria sido1348

Falemos agora do retrato do Nero artista Para aleacutem da referecircncia agrave

apresentaccedilatildeo musical e agrave obtenccedilatildeo das coroas o historiador cita a performance

imperial das ldquoBacantesrdquo De maneira sucinta a histoacuteria dessa trageacutedia euripidiana

eacute a seguinte o deus Dioniso retorna agrave cidade de Tebas para ser reconhecido como

uma divindade por seus parentes que governam o local Diante da resistecircncia do

rei Penteu ele manifesta seu poder maacutegico punindo as pessoas e colocando-as em

uma espeacutecie de frenesi extaacutetico que envolve a danccedila e o comportamento

imprevisiacutevel No final Penteu aceita o poder de Dioniso e eacute morto pelas matildeos de

sua proacutepria matildee Agave1349

Para Baldwin e Brandatildeo a conexatildeo entre a trageacutedia e

Nero eacute muito sutil e denota os gostos histriocircnicos do princeps Mas em Diatildeo

Caacutessio o enredo eacute invertido natildeo eacute a matildee (Agave) que sem saber mata o filho

(Penteu) eacute o filho (Nero) que conscientemente elimina a matildee (Agripina)1350

1347

Tac Ann 14152 1348

MADSEN 2020 p 49-52 1349

JUacuteNIOR 2016 p 8 1350

BALDWIN 1979 p 380-381 BRANDAtildeO 2005 p 173

328

Dessa forma a menccedilatildeo de tal apresentaccedilatildeo nos parece natildeo soacute intencional ndash

visando erigir a imagem do Nero artista ndash como tambeacutem demonstrativa da crenccedila

no retrato do Nero matricida Lembremo-nos de que Diatildeo Caacutessio escreveu a

Historia Romana na primeira metade do seacuteculo III Ou seja nessa eacutepoca a certeza

de que Nero tinha exterminado a matildee jaacute era tatildeo grande que natildeo havia mais a

necessidade de se detalhar os fatos A simples alusatildeo agraves ldquoBacantesrdquo jaacute faria todos

entenderem Eacute essa eliminaccedilatildeo dos detalhes ndash e por conseguinte da

contextualizaccedilatildeo ndash que gera a cristalizaccedilatildeo de Nero como um assassino afirma

Lefebvre O imperador sofreu sob a pena dos autores posteriores a ele o

esvaziamento de pormenores da sua vida o converteu na encarnaccedilatildeo da crueldade

Em outras palavras Nero tornou-se o matricida ldquosempre provaacutevel de

aparecerrdquo1351

Enquanto esses ldquojogos infantisrdquo aconteciam em Roma um terriacutevel desastre

ocorre na Britacircnia anuncia Diatildeo Caacutessio Duas cidades satildeo saqueadas 80 mil

romanos e seus aliados perecem e a ilha eacute perdida Segundo o autor toda essa

ruiacutena fora trazida aos romanos por Boudica uma mulher possuidora de ldquogrande

inteligecircnciardquo fato que causou ldquoa maior vergonhardquo Ela havido reunido um

exeacutercito de cerca de 120 mil homens e proferido o seguinte discurso1352

ldquoVocecircs aprenderam por experiecircncia real como a liberdade eacute diferente da escravidatildeo [] Vocecircs aprenderam o grande erro que cometeram ao preferir um despotismo importado a seu modo de vida ancestral [] [] Eu natildeo governo como [] Nero (que embora seja um homem eacute na verdade uma mulher

como demonstram o seu canto a sua lira e o embelezamento de sua pessoa) eu governo como os bretotildees homens que [] satildeo totalmente versados na arte da guerra [] [] Essa senhora Domiacutecia-Nero natildeo pode mais reinar sobre mim ou sobre vocecircs homens deixem-na cantar e dominar os romanos pois eles certamente merecem ser escravos de tal mulher depois de terem se submetido a ela por tanto tempo []rdquo1353

1351

LEFEBVRE 2017 p 93-94 1352

Dio 621-2 1353

ldquoπέπεισθε μὲν τοῖς ἔργοις αὐτοῖς ὅσον ἐλευθερία τῆς δουλείας διαφέρει ὥστ᾽ εἰ καὶ πρότερόν τις

ὑμῶν ὑπὸ τῆς τοῦ κρείττονος ἀπειρίας ἐπαγωγοῖς ἐπαγγέλμασι τῶν Ῥωμαίων ἠπάτητο ἀλλὰ νῦν γε

ἑκατέρου πεπειραμένοι μεμαθήκατε μὲν ὅσον ἡμαρτήκατε δεσποτείαν ἐπισπαστὸν πρὸ τῆς πατρίου

διαίτης προτιμήσαντες ἐγνώκατε δὲ ὅσῳ καὶ πενία ἀδέσποτος πλούτου δουλεύοντος []οὐρανὸν

ἀνατείνασα εἶπε lsquoχάριν τέ σοι ἔχω ὦ Ἀνδράστη καὶ προσεπικαλοῦμαί σε γυνὴ γυναῖκα οὐκ

Αἰγυπτίων ἀχθοφόρων ἄρχουσα ὡς Νίτωκρις οὐδ᾽ Ἀσσυρίων τῶν ἐμπόρων ὡς Σεμίραμις ῾καὶ γὰρ

ταῦτ᾽ ἤδη παρὰ τῶν Ῥωμαίων μεμαθήκαμεν᾽ οὐ μὴν οὐδὲ Ῥωμαίων αὐτῶν ὡς πρότερον μὲν

Μεσσαλῖνα ἔπειτ᾽ Ἀγριππῖνα νῦν δὲ καὶ Νέρων ῾ὄνομα μὲν γὰρ ἀνδρὸς ἔχει ἔργῳ δὲ γυνή ἐστι

σημεῖον δέ ᾄδει καὶ κιθαρίζει καὶ καλλωπίζεταἰ ἀλλὰ ἀνδρῶν Βρεττανῶν γεωργεῖν μὲν ἢ

329

Terminado o discurso ela lidera seu exeacutercito contra os inimigos estando

estes sob o comando do general Paulino Ao final dos confrontos os romanos

prevalecem e Boudica adoece e morre1354

O relato de Diatildeo Caacutessio dos conflitos

na Britacircnia eacute bem extenso ocupando 12 capiacutetulos do livro 62 da Historia

Romana No decorrer da narrativa Nero aparece pouquiacutessimas vezes sendo

sempre referenciado em contraposiccedilatildeo a Boudica A nosso ver tal atitude

evidencia dois pensamentos do historiador O primeiro ele via o princeps como

um imperador que natildeo se interessava pelas tarefas militares Nero natildeo vai ateacute a

Britacircnia resolver o problema assim como tambeacutem natildeo vai ateacute a Armecircnia Ele fica

ausente o tempo todo Inclusive Diatildeo Caacutessio natildeo comenta nem que o princeps

escolhe um general para lidar com a situaccedilatildeo ndash Paulino por exemplo apenas

surge no texto Aqui parece que o miacutenimo esforccedilo feito pelo imperador existente

nos conflitos com os partas desaparece O que Nero desejava era se dedicar

totalmente aos seus jogos e aos seus crimes Natildeo eacute agrave toa que Diatildeo Caacutessio coloca

Boudica afirmando ldquodeixem-a cantar e dominar os romanosrdquo1355

O segundo pensamento do historiador envolve uma criacutetica agrave masculinidade

de Nero Notemos que Boudica em seu discurso retrata o soberano como uma

mulher artista que governa romanos servis e contrasta estes com os bretotildees viris

Tal discurso conforme Adler e Beacutedoyegravere eacute o meio utilizado por Diatildeo Caacutessio para

rebaixar a imagem do princeps e a dos romanos os quais aceitavam serem

governados por uma mulher ou seja por um soberano fraco Eacute por essa razatildeo que

ele representa Boudica como o exato oposto de Nero a guerreira possuidora das

caracteriacutesticas essenciais a um liacuteder e que comandou uma rebeliatildeo inteira ndash algo

que Nero natildeo conseguia fazer pela manutenccedilatildeo da ordem1356

Como destaca

Gillespie Diatildeo Caacutessio quase natildeo insere figuras femininas em sua obra e as

δημιουργεῖν οὐκ εἰδότων πολεμεῖν δὲ ἀκριβῶς μεμαθηκότων καὶ τά τε ἄλλα πάντα κοινὰ καὶ

παῖδας καὶ γυναῖκας κοινὰς νομιζόντων καὶ διὰ τοῦτο καὶ ἐκείνων τὴν αὐτὴν τοῖς ἄρρεσιν ἀρετὴν

ἐχουσῶν τοιούτων οὖν ἀνδρῶν καὶ τοιούτων γυναικῶν βασιλεύουσα προσεύχομαί τέ σοι καὶ αἰτῶ

νίκην καὶ σωτηρίαν καὶ ἐλευθερίαν κατ᾽ ἀνδρῶν ὑβριστῶν ἀδίκων ἀπλήστων ἀνοσίων εἴ γε καὶ

ἄνδρας χρὴ καλεῖν ἀνθρώπους ὕδατι θερμῷ λουμένους ὄψα σκευαστὰ ἐσθίοντας οἶνον ἄκρατον

πίνοντας μύρῳ ἀλειφομένους μαλθακῶς κοιμωμένους μετὰ μειρακίων καὶ τούτων ἐξώρων

καθεύδοντας κιθαρῳδῷ καὶ τούτῳ κακῷ δουλεύοντας μὴ γάρ τοι μήτ᾽ ἐμοῦ μήθ᾽ ὑμῶν ἔτι

βασιλεύσειεν ἡ Νερωνὶς ἡ Δομιτία ἀλλ᾽ ἐκείνη μὲν Ῥωμαίων ᾄδουσα δεσποζέτω ῾καὶ γὰρ ἄξιοι

τοιαύτῃ γυναικὶ δουλεύειν ἧς τοσοῦτον ἤδη χρόνον ἀνέχονται τυραννούσησ᾽ ἡμῶν δὲ σύ ὦ

δέσποινα ἀεὶ μόνη προστατοίηςrsquordquo (Dio 6231 62-5) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com

base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 87-95) 1354

Dio 62125-6 1355

SCHULZ 2019 p 206-207 1356

ADLER 2008 p 193 BEacuteDOYEgraveRE 2018 p 21

330

poucas adicionadas satildeo as que representam modelos positivos1357

Portanto

Boudica evidencia a real opiniatildeo do historiador sobre Nero um jovem inadequado

que tinha prioridades (artiacutesticas) distorcidas

Em uacuteltima anaacutelise precisamos explanar a apropriaccedilatildeo e a transformaccedilatildeo

realizada por Diatildeo Caacutessio dos Neros do passado Observemos que ele usa

elementos da esfera de referecircncia e simultaneamente acrescenta mudanccedilas neles

Por exemplo apreende o Nero antiprinceps de Taacutecito ndash que envia um liberto a

Britacircnia para pacificar a situaccedilatildeo e acaba expondo os romanos agrave humilhaccedilatildeo

puacuteblica ndash e o de Suetocircnio e o recaracteriza como um Nero artista e como um Nero

antiprinceps fraco e feminino1358

Assim combina as abordagens preteacuteritas e cria

novas dimensotildees de significados as quais soacute podem existir agrave luz do passado com

base em uma tradiccedilatildeo jaacute consolidada como exemplaridade que natildeo manteacutem essa

tradiccedilatildeo inalterada como se os exempla fossem prontos e acabados prescritivos

Como viemos apontando a exemplaridade eacute maleaacutevel e precisa ser interpretada e

colocada frente a eventos diversos da sua origem fazendo Nero ao mesmo

tempo contemporacircneo da narrativa no que se refere aos problemas enfocados e

antigo pois eacute objeto de uma tradiccedilatildeo jaacute consolidada e conhecida

Encerradas as contendas na Britacircnia Nero se divorcia e assassina Otaacutevia

afirma Diatildeo Caacutessio Ele assim o fez apesar de toda a oposiccedilatildeo de Burro o qual

francamente lhe dizia ldquo[] bem entatildeo devolva-lhe o doterdquo []1359

Em vista

disso Nero envenena Burro e coloca em seu lugar Tigelino homem de caraacuteter

licencioso e violento De acordo com o historiador a grande instigadora da

separaccedilatildeo e do uxoriciacutedio eacute Popeia que contava com o apoio de quase todos os

servos de Otaacutevia os quais a bajulavam ndash devido agrave sua influecircncia sob o princeps ndash

e diziam que a filha de Claacuteudio estava infeliz1360

O caraacuteter resumido da narrativa

1357

GILLESPIE 2018 p 77 1358

Tac Ann 14391-3 Suet Nero 391 1359

[hellip] ldquoπερὶ ὧν ἂν ἅπαξ τι εἴπω μηκέτι μου αὖθις πύθῃrdquo [] (Dio 62132) A traduccedilatildeo para o

portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 105) Diatildeo

Caacutessio aponta a franqueza como uma qualidade louvaacutevel de Burro (Dio 62132) 1360

Dio 62133-4 Sobre Popeia Diatildeo Caacutessio informa ldquoesta Sabina era tatildeo dada ao luxo

extravagante (como seraacute plenamente demonstrado no mais breve espaccedilo) que mandou calccedilar as

mulas que puxavam sua carruagem com sapatos dourados e tinha 500 burros receacutem-nascidos

ordenhados todos os dias para que pudesse se banhar no leiterdquo ἡ δὲ δὴ Σαβῖνα αὕτη οὕτως

ὑπερετρύφησεν ῾ἐκ γὰρ τῶν βραχυτάτων πᾶν δηλωθήσεταἰ ὥστε τάς τε ἡμιόνους τὰς ἀγούσας αὐτὴν

ἐπίχρυσα σπαρτία ὑποδεῖσθαι καὶ ὄνους πεντακοσίας ἀρτιτόκους καθ᾽ ἡμέραν ἀμέλγεσθαι (Dio

62281) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de

Cary (1914-1927 p 137)

331

de Diatildeo Caacutessio nos faz recordar de um argumento elaborado por Lefebvre o do

processo de esquematizaccedilatildeo Para a autora as histoacuterias da vida do princeps

sofreram um processo de esquematizaccedilatildeo que envolveu a omissatildeo eou o resumo

dos contextos existentes por traacutes das suas histoacuterias e a repeticcedilatildeo de certos

ldquomotivosrdquo imperiais Tal processo iniciado com Flaacutevio Josefo no final do seacuteculo

I comeccedila a se consolidar com Diatildeo Caacutessio fazendo com que alguns crimes a

exemplo do uxoriciacutedio cimentem a ldquocarreirardquo e o caraacuteter de Nero1361

Dessa

maneira o princeps deixa de ser um indiviacuteduo com visotildees proacuteprias de mundo

para se tornar uma figura tiacutepica Ao usar uma narrativa geneacuterica para tratar do

assassinato de Otaacutevia Diatildeo Caacutessio faz de Nero natildeo um personagem

historicamente datado que cometeu um crime especiacutefico contra uma pessoa mas

um monstro tiacutepico jaacute conhecido haacute muito tempo por todos E eacute precisamente essa

passagem do estatuto de indiviacuteduo para o de tipo que permite a Diatildeo Caacutessio

ldquodesencarnarrdquo Nero1362

Mas a esquematizaccedilatildeo como proposta por Lefebvre a

nosso ver natildeo eacute uma mera simplificaccedilatildeo narrativa Longe disso pela via da

exemplaridade Nero se torna transtemporal reunindo conflitos e dramas de

eacutepocas diversas sendo ao mesmo tempo contemporacircneo da narrativa e pela

tradiccedilatildeo um homem do passado em que as coisas natildeo se passavam como hoje A

alteridade e a proximidade natildeo satildeo polos opostos binaacuterios mas se relacionam

dialeticamente produzindo siacutenteses novas exempla que satildeo mobilizadas e

colocadas como instrumentos simultaneamente de memoacuteria do passado e de

compreensatildeo e de intervenccedilatildeo do presente

Ainda assim mesmo nos oferecendo uma histoacuteria condensada Diatildeo

Caacutessio faz questatildeo de demarcar o envenenamento de Burro e a manipulaccedilatildeo de

Popeia Esses comentaacuterios segundo Madsen e Mallan indicam-nos como o

historiador projetava a figura imperial ideal um princeps justo saacutebio e habilidoso

poliacutetica e militarmente forte Para conquistar estes dois uacuteltimos atributos o

soberano entre outras atitudes deveria manter a deferecircncia em relaccedilatildeo ao Senado

e aos outros membros proeminentes da sociedade e preservar a hierarquia social

deixando os subalternos em seus lugares Mas Nero natildeo parece disposto a isso Ao

contraacuterio ignora o conselho do seu chefe da guarda pretoriano e assassina a

esposa a mando de uma mulher Assim Diatildeo Caacutessio o representa como um liacuteder

1361

LEFEBVRE 2017 p 86-88 1362

LEFEBVRE 2017 p 93

332

autoritaacuterio que natildeo lida com opiniotildees divergentes da sua e como um imperador

fraco que natildeo estaacute no controle nem das proacuteprias decisotildees1363

E ao adotar essas

visotildees de Nero o historiador compotildee seu retrato incorporando as informaccedilotildees

contidas nos Annales na Octavia e no De Vita Caesarum e as repetindo

instituindo a tradiccedilatildeo do Nero uxoricida1364

Ao repeti-las cria um novo Nero

tirano e antiprinceps reforccedilando determinados aspectos do velho Nero que nunca

deixa de estar presente

Concretizados o uxoriciacutedio e o novo casamento as fontes no caso os

Annales e o De Vita Caesarum comentam que Nero foi para Naacutepoles fazer uma

apresentaccedilatildeo puacuteblica Poreacutem Diatildeo Caacutessio natildeo referencia tal evento na sua

Historia Romana Em vista disso passaremos para o proacuteximo episoacutedio citado por

ele o incecircndio da Vrbs O historiador inicia seu relato com as seguintes palavras

Nero colocou seu coraccedilatildeo em algo que haacute muito tempo desejava fazer a saber

destruir toda a cidade Para tanto enviou homens fingindo estarem becircbados para

atearem fogo em determinados locais Todos na cidade ficaram perplexos quando

notaram o fogo se espalhando sem saberem se a calamidade havia comeccedilado por

acaso ou intencionalmente Diatildeo Caacutessio afirma que vaacuterias casas foram destruiacutedas

sendo algumas incendiadas pelas proacuteprias pessoas que apareciam para ajudar Os

homens enviados por Nero estavam focados em saquear e natildeo em apagar o fogo

O desastre foi tatildeo grande que todo o monte Palatino e cerca de dois terccedilos do resto

da cidade arderam em chamas havendo tambeacutem uma perda de vidas incalculaacutevel

1365 Enquanto essas coisas estavam acontecendo Nero

[] subiu ao ponto mais alto do seu palaacutecio de onde a maior

parte da conflagraccedilatildeo podia ser mais bem-vista e vestindo sua roupa de tocador de lira cantou o que chamou de ldquoA Destruiccedilatildeo de Troiardquo mas que na verdade foi percebido como ldquoA Destruiccedilatildeo de Romardquo [] Natildeo houve uma maldiccedilatildeo que o povo

natildeo proferisse contra Nero e apesar de natildeo ser citado o seu nome maldiziam-se ldquoaqueles que incendiaram a cidaderdquo [] Ele agora cobrava enormes quantias de dinheiro tanto de cidadatildeos privados quanto das comunidades agraves vezes agrave forccedila usando o fogo como desculpa e agraves vezes por meio de contribuiccedilotildees voluntaacuterias Quanto aos residentes de Roma ele os privou da distribuiccedilatildeo gratuita de gratildeos1366

1363

MADSEN 2020 p 54 MALLAN 2016 p 292 1364

([Sen] Oct 899-959 Tac Ann 1460-63 Suet Nero 352-3 1365

Dio 62161-2 171 182 1366

ὅθεν μάλιστα σύνοπτα τὰ πολλὰ τῶν καιομένων ἦν ἀνῆλθε καὶ τὴν σκευὴν τὴν κιθαρῳδικὴν

λαβὼν ᾖσεν ἅλωσιν ὡς μὲν αὐτὸς ἔλεγεν Ἰλίου ὡς δὲ ἑωρᾶτο Ῥώμης ldquoδιεφθάρησαν ὁ μέντοι

333

Diatildeo Caacutessio escreve essa narrativa mais ou menos um seacuteculo depois de

Suetocircnio e parece recorrer sumariamente a ele1367

Como o bioacutegrafo ele acredita

na responsabilidade do princeps pelo incecircndio oferecendo-nos um relato

altamente antineroniano1368

Por exemplo aponta o desejo imperial de destruir

Roma assinala o comportamento ultrajante do soberano de enviar homens para

queimar a cidade e frisa o saque dos soldados Eacute intrigante que ele lanccedila tais

afirmaccedilotildees no texto como se elas fossem veriacutedicas sem se dar ao trabalho de

problematizaacute-las tampouco de considerar versotildees alternativas Para Barrett assim

o faz porque provavelmente natildeo encontrou um bom motivo para Nero natildeo ser o

culpado Ou seja Diatildeo Caacutessio cria uma ligaccedilatildeo entre os excessos pessoais do

princeps ndash expostos ateacute aquele momento por esse primeiro e por outras fontes ndash e

o desastre representando-os como as realizaccedilotildees de um homem ruim Em suma o

fogo eacute o resultado do (jaacute conhecido por todos) peacutessimo caraacuteter do soberano e de

seus notoacuterios interesses privados com relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo da Domus Aurea

Dessa forma o relato suetoniano da culpabilidade de Nero que jaacute era fraacutegil

torna-se ainda mais pois Diatildeo Caacutessio natildeo separa o plausiacutevel do imaginaacuterio Ao

contraacuterio apropria-se das informaccedilotildees agrave sua disposiccedilatildeo e utiliza-as de modo a

criar uma impressatildeo negativa irresistiacutevel de Nero apesar de natildeo existirem

evidecircncias convincentes da sua responsabilidade afinal ele sabia que nenhuma

pessoa razoaacutevel acreditaria que Nero natildeo era o causador do desastre pois jaacute havia

uma forte tradiccedilatildeo o condenando de forma uniacutessinona1369

O retrato era coerente e

verossiacutemil mesmo que natildeo fosse verdadeiro

O aacutepice da narrativa eacute a famosa atuaccedilatildeo do imperador com a lira da

ldquoDestruiccedilatildeo de Troiardquo a qual foi interpretada pela populaccedilatildeo como ldquoA Destruiccedilatildeo

δῆμος οὐκ ἔστιν ὅ τι οὐ κατὰ τοῦ Νέρωνος ἠρᾶτο τὸ μὲν ὄνομα αὐτοῦ μὴ ὑπολέγων ἄλλως δὲ δὴ τοῖς τὴν πόλιν ἐμπρήσασι καταρώμενοι καὶ μάλισθ᾽ ὅτι αὐτοὺς ἡ μνήμη τοῦ λογίου τοῦ κατὰ τὸν

Τιβέριόν ποτε ᾀσθέντος ἐθορύβει ἦν δὲ τοῦτο lsquoτρὶς δὲ τριηκοσίων περιτελλομένων ἐνιαυτῶν

Ῥωμαίους ἔμφυλος ὀλεῖ στάσιςrsquordquo ldquoἐπειδή τε ὁ Νέρων παραμυθούμενος αὐτοὺς οὐδαμοῦ ταῦτα τὰ

ἔπη εὑρέσθαι ἔλεγε μεταβαλόντες ἕτερον λόγιον ὡς καὶ Σιβύλλειον ὄντως ὂν ᾖδον ἔστι δὲ τοῦτο

lsquoἔσχατος Αἰνεαδῶν μητροκτόνος ἡγεμονεύσειrsquo καὶ ἔσχεν οὕτως εἴτε καὶ ὡς ἀληθῶς θεομαντείᾳ τινὶ

προλεχθέν εἴτε καὶ τότε ὑπὸ τοῦ ὁμίλου πρὸς τὰ παρόντα θειασθέν τελευταῖος γὰρ τῶν Ἰουλίων τῶν

ἀπὸ Αἰνείου γενομένων ἐμονάρχησεrdquo ldquoχρήματα δὲ ὁ Νέρων παμπληθῆ καὶ παρὰ τῶν ἰδιωτῶν καὶ

παρὰ τῶν δήμων τὰ μὲν βίᾳ ἐπὶ τῇ προφάσει τοῦ ἐμπρησμοῦ τὰ δὲ καὶ παρ᾽ ἑκόντων δῆθεν

ἠργυρολόγησεν καὶ τῶν Ῥωμαίων αὐτῶν τὸ σιτηρέσιον παρεσπάσατο (Dio 62181 183-5) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 116-118) 1367

Suet Nero 381-3 1368

BARRETT 2020 p 137-140 1369

BARRETT 2020 p 137-140 CHAMPLIN 2005 p 183

334

de Romardquo Suetocircnio tambeacutem comenta sobre essa performance alegando que o

imperador subira ateacute a Torre de Mecenas1370

Eacute importante observar que ambos os

autores outra vez consideram a apresentaccedilatildeo como um fato concreto Isso mostra

que a cautela taciteana ndash ou qualquer cautela ndash para tratar desse feito foi

completamente abandonada1371

Natildeo haacute mais duacutevidas aqui os boatos satildeo

verdadeiros e afirmam o que natildeo podia ser dito abertamente na eacutepoca Nero eacute um

incendiaacuterio artista Essa eacute uma situaccedilatildeo notaacutevel argumenta Barrett Diatildeo Caacutessio

embora esteja compondo uma histoacuteria eacute em muitos aspectos bastante biograacutefico

tratando seu material com ecircnfase no caraacuteter das personagens e natildeo nos eventos

histoacutericos Ele eacute tatildeo propenso a focar nos viacutecios dos indiviacuteduos quanto Suetocircnio

por essa razatildeo concede-nos um relato extremamente hostil quanto a Nero

fortalecendo a peacutessima iacutendole imperial que jaacute circulava naquela altura1372

Essas reflexotildees nos levam a concluir que o retrato do Nero incendiaacuterio e

do Nero artista se consolidou A crenccedila na capacidade do imperador de realizar

atos abominaacuteveis e a narrativa dos seus crimes eram tatildeo presentes na mentalidade

dos leitores que natildeo havia mais a necessidade de se detalharem as notiacutecias Assim

os elementos da Octavia (incecircndio como ferramenta para punir a populaccedilatildeo

contraacuteria ao enlace com Popeia) da Naturalis Historia (queima de aacutervores) das

Siluae (fogo que atingiu os montes de Roma) dos Annales e do De Vita

Caesarum satildeo condensados em um uacutenico relato1373

Os diversos Neros do passado

satildeo integrados em uma narrativa mais simples no presente mas cuja existecircncia eacute

totalmente dependente do Nero do passado O imperador eacute um artista que natildeo

distingue o palco e a vida ele quer contruir uma residecircncia magniacutefica e para

tanto precisa colocar fogo na cidade ndash o que ele faz Eacute um tirano megalomaniacuteaco

desconectado da realidade e sem noccedilatildeo das suas responsabilidades ou das

consequecircncias dos seus atos e omissotildees A imagem Nero-lira-fogo se consolida e

ao longo do tempo vai ser associada com inuacutemeras outras situaccedilotildees e conflitos

que renovam o Nero da tradiccedilatildeo e o fazem presente sempre que aparece na

histoacuteria algueacutem ldquocomo Nerordquo1374

Dito de outra forma os Neros da esfera de

recepccedilatildeo soacute existem por causa dos da esfera de referecircncia os quais por sua vez

1370

Suet Nero 382-3 1371

Tac Ann 1539 1372

BARRETT 2020 p 15 1373

[Sen] Oct 825-844 Plin Nat 171 Stat Silv 2760-61 Suet Nero 381-3 Tac Ann 1539 1374

FAVERSANI 2020 p 380

335

foram encapsulados em uma grande e aparentemente uacutenica representaccedilatildeo1375

que

se desdobra em muitas por conta da sua exemplaridade da sua releitura e da

reinterpretaccedilatildeo disputada nas lutas em torno da rememoraccedilatildeo neroniana agrave luz de

novos eventos personagens e contextos Tal encapsulamento cria um princeps

facilmente reconheciacutevel pelas geraccedilotildees posteriores inclusive pela nossa embora

esteja tatildeo distante temporalmente Como defende Faversani

[] basta colocar algueacutem em vestimentas que lembrem vagamente a toga romana com uma lira em suas matildeos e o fogo a sua volta que imediatamente o puacuteblico reconheceraacute o Nero original []1376

A siacutentese das narrativas sobre o princeps ndash fruto da longa tradiccedilatildeo negativa

ndash tambeacutem eacute usada por Diatildeo Caacutessio para narrar o episoacutedio da edificaccedilatildeo da Domus

Aurea Ao falar a respeito do palaacutecio imperial o historiador parece pressupor que

seus leitores jaacute sabiam das caracteriacutesticas luxuosas da moradia e do caraacuteter

vaidoso do princeps Por isso descreve o edifiacutecio em poucas linhas

[] nem mesmo a Casa Dourada de Nero poderia satisfazer

Viteacutelio Pois embora ele admirasse e elogiasse o nome a vida e todas as praacuteticas de Nero ainda assim ele o culpava por viver em uma casa tatildeo miseraacutevel escassa e mesquinhamente equipada1377

Notemos que a nova residecircncia eacute usada por Diatildeo Taacutecito como instrumento

de criacutetica ao futuro imperador Viteacutelio homem viciado em ldquoluxordquo e em

ldquolicenciosidaderdquo1378

O historiador o recrimina por natildeo se satisfazer com a

magnificecircncia da Domus Aurea neroniana Isso nos mostra que a moradia e a sua

suntuosidade jaacute eram tatildeo renomadas que viraram paracircmetros de maacutexima elevaccedilatildeo

do viacutecio e da desmedida Assim natildeo eacute mais necessaacuterio citar os abusos perpetrados

agrave natureza para a construccedilatildeo do palaacutecio (contidos na Naturalis Historia) a

ostentaccedilatildeo da riqueza (existente na Octavia) e a usurpaccedilatildeo das propriedades

1375

BERGEMANN L et al 2019 p 14 1376

FAVERSANI 2020 p 378 1377

Dio 6541 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs

de Cary (1914-1927 p 227) 1378

Dio 6521

336

(disposta nos Liber Spectaculorum)1379

Estaacute tudo aiacute dito de forma impliacutecita Cabe

pontuar ainda que para Diatildeo Caacutessio o simples fato de Viteacutelio admirar Nero e

suas accedilotildees o transforma automaticamente em um peacutessimo liacuteder Ou seja a

imagem do soberano como um mau governante tambeacutem se cristalizou gerando

outro paracircmetro de comparaccedilatildeo Dessa maneira se algueacutem se aproxima de Nero eacute

considerado um liacuteder ruim e se algueacutem se afasta eacute visto como um bom liacuteder ndash

dito em outros termos Nero se tornou um sinocircnimo de antiprinceps1380

Em meio a esse contexto do incecircndio e da construccedilatildeo da Domus Aurea

Diatildeo Caacutessio de igual modo a Suetocircnio natildeo alude agrave perseguiccedilatildeo dos Cristatildeos

Segundo Barrett seu propoacutesito com a omissatildeo eacute demonstrar inequivocamente que

Nero foi o culpado pelo desastre Para tanto natildeo faria sentido ldquo[] turvar as aacuteguas

sobre a sua responsabilidade []rdquo e atribuiacute-la a terceiros1381

Contudo isso natildeo o

impede de criticar o princeps pois salienta a antipatia generalizada da populaccedilatildeo

em relaccedilatildeo a ele manifesta em forma de maldizeres

Eacute curioso que natildeo soacute a plebe demonstrou sua insatisfaccedilatildeo como tambeacutem a

aristocracia Diatildeo Caacutessio afirma que apoacutes o incecircndio Secircneca Rufo (prefeito da

guarda pretoriana) e alguns homens proeminentes formaram uma conspiraccedilatildeo

contra Nero pois natildeo podiam mais suportar seu comportamento vergonhoso sua

licenciosidade e sua crueldade Segundo o historiador eles queriam se livrar dos

males trazidos pelo princeps e livrar o proacuteprio Nero da sua personalidade

nefasta1382

Poreacutem a conspiraccedilatildeo natildeo foi adiante informaccedilotildees foram apresentadas

contra esses homens e eles acabaram sendo punidos1383

Observemos que a

descriccedilatildeo de Diatildeo Caacutessio eacute bem mais sucinta do que a feita por Taacutecito ndash perdendo

apenas em concisatildeo para o relato de Suetocircnio realizado em apenas um

paraacutegrafo1384

Nos Annales a narrativa ocupou 27 capiacutetulos do livro 15 aqui

ocupa somente 41385

Isso implica que o ponto em que o incidente era

extremamente bem documentado tornou-se mais de um seacuteculo depois

assustadoramente resumido Essa reduccedilatildeo das informaccedilotildees nos leva a relembrar

1379

Plin Nat 3624 [Sen] Oct 624-631 Mart Sp 21-10 1380

LEFEBVRE 2017 p 271-272 1381

BARRETT 2020 p 163 1382

Dio 62241-2 1383

Diatildeo Caacutessio comenta sobre as diversas execuccedilotildees incluindo a de Secircneca (Dio 62241 251-

3) 1384

Suet Nero 362-37 1385

Tac Ann 1548-74

337

da ideia proposta por Lefebvre a da esquematizaccedilatildeo1386

Aqui haacute uma

cristalizaccedilatildeo do retrato do Nero antiprinceps a qual envolve um niacutetido

esvaziamento de detalhes acerca da trama Assim explicar as razotildees dos

conspiradores e o andamento da trama torna-se algo totalmente dispensaacutevel Nero

jaacute eacute unanimemente concebido pelo menos no ciacuterculo senatorial como um

peacutessimo governante que natildeo sabe lidar com oposiccedilotildees e que mata seus suacuteditos

Resumindo Nero virou um tirano tiacutepico que comete violecircncia contra todos

aqueles que o enfrentam1387

Para encerrar eacute importante dizer que o incecircndio desestabilizou as relaccedilotildees

entre o imperador e os membros da elite romana A partir daqui como veremos

as relaccedilotildees natildeo seratildeo mais as mesmas e a atmosfera de suspeita e desconfianccedila se

fortaleceraacute Nos termos de Barrett os eventos seguintes vatildeo pavimentar o

caminho para a vitoacuteria de Vindex e para o suiciacutedio de Nero1388

Apoacutes a breve exposiccedilatildeo da Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo temos a segunda ediccedilatildeo

dos Neronia Contudo Diatildeo Caacutessio cita esse evento de forma bastante nebulosa

deixando-nos em duacutevida se estaacute de fato referindo-se ao festival No livro 62 da

Historia Romana ele comenta que em um espetaacuteculo puacuteblico Nero desce para a

orquestra do teatro e recita alguns de seus proacuteprios poemas chamados Troica1389

Em concordacircncia com Champlin a imprecisatildeo do trecho resulta na dificuldade de

investigaacute-lo e por conseguinte na impossibilidade de o enquadrarmos em uma de

nossas categorias de anaacutelise1390

Passemos entatildeo para o proacuteximo episoacutedio o do assassinato de Popeia

Diatildeo Caacutessio o descreve no contexto da Conspiraccedilatildeo pisoniana com as seguintes

palavras ldquoSabina tambeacutem morreu nesta eacutepoca por um ato de Nero ele acidental

ou intencionalmente saltou sobre ela com os peacutes enquanto ela estava graacutevidardquo1391

Notemos que o uxoriciacutedio sofre a mesma esquematizaccedilatildeo da conspiraccedilatildeo

havendo a alusatildeo a poucos elementos do crime Mas aqui eacute essencial demarcar

um ponto o reforccedilo da crueldade de Nero Tanto nos Annales quanto no De Vita

Caesarum (e agora na Historia Romana) a histoacuteria eacute a mesma Nero seja de

1386

LEFEBVRE 2017 p 86-88 1387

LEFEBVRE 2017 p 91-93 1388

BARRETT 2020 p 242-245 1389

Dio 62291 1390

CHAMPLIN 2005 p 290 1391

(Dio 62 274) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 137)

338

forma acidental seja de forma proposital chutou sua esposa enquanto ela estava

graacutevida Eacute importante apontar como essa repeticcedilatildeo simultaneamente fortalece a

personalidade violenta do soberano e constroacutei um caraacuteter desequilibrado

transferindo a brutalidade do acircmbito puacuteblico para a domus1392

Inclusive tal

brutalidade eacute usada por Diatildeo Caacutessio para narrar o luto de Nero pois ele diz que o

princeps sentiu tanto a falta da mulher que ao saber da existecircncia de um liberto

parecido com ela mandou castraacute-lo e se casou com ele1393

Ou seja aqui o

historiador ao inveacutes de pontuar como Taacutecito que o imperador concedeu um

funeral extravagante agrave esposa mostrando publicamente a sua dor atesta que ele

castrou um liberto e se voltou a uma ldquoresoluccedilatildeordquo domeacutestica dessa ausecircncia Essa

notiacutecia tambeacutem eacute dada por Taacutecito1394

Conforme Baughman essa reaccedilatildeo de Nero

foi usada por Diatildeo Caacutessio para enrobustecer a ideia de que Nero era um liacuteder

vaidoso volaacutetil e degenerado que havia perdido completamente a noccedilatildeo das

restriccedilotildees fixadas ao seu papel de imperador1395

Por fim quando lemos a histoacuteria do assassinato de Popeia atraveacutes dos

olhos de Diatildeo Caacutessio vemos que Nero se transforma em um tiacutepico uxoricida Por

oacutebvio isso se deve ao processo de (re)apropriaccedilatildeo dos seus retratos o qual se

torna cada vez mais seletivo cria um novo Nero sempre mais e mais cruel em

uma narrativa mais simples e foca na esfera privada Se olharmos de uma

perspectiva ampla perceberemos que as semelhanccedilas entre as fontes suplantam as

diferenccedilas preservando a concepccedilatildeo negativa do princeps que ateacute hoje continua

a determinar nossa compreensatildeo sobre ele

Depois do uxoriciacutedio Diatildeo Caacutessio natildeo menciona o casamento de Nero e

Messalina o que nos leva para o proacuteximo episoacutedio o da ida de Tiridates a Roma

para firmar o acordo previamente estabelecido com os partas De acordo com o

historiador a chegada de Tiridates agrave Vrbs foi um acontecimento de ldquogrande

gloacuteriardquo e tambeacutem de ldquoprofunda desgraccedilardquo1396

ldquoDe grande gloacuteriardquo porque ele se

apresenta em Roma trazendo consigo uma procissatildeo triunfal magnificente e de

ldquoprofunda desgraccedilardquo porque Nero celebra um triunfo no Circus toca a lira e se

1392

BEacuteDOYERE 2018 p 264 1393

Dio 62282 1394

Tac Ann 166 1395

BAUGHMAN 2014 p 3 1396

Dio 6311

339

apresenta publicamente como um cocheiro1397

Tiridates eacute descrito por Diatildeo

Caacutessio como um homem de famiacutelia rico bonito e inteligente ao passo que Nero eacute

representado como um liacuteder que soacute pensa em entretenimentos artiacutesticos1398

Tal

preocupaccedilatildeo imperial inclusive eacute materializada na proacutepria decoraccedilatildeo de Roma e

do teatro luzes guirlandas e muito ouro a ponto de as pessoas denominarem o

dia de ldquodia douradordquo1399

Enfim quando Tiridates entra na Vrbs multidotildees podem

ser vistas em todos os lugares sobretudo no Foacuterum afirma Diatildeo Caacutessio Ateacute os

telhados dos edifiacutecios proacuteximos estavam totalmente ocupados Entatildeo Nero

vestindo o traje triunfal e acompanhado pelo Senado e pelos pretorianos entra no

Foacuterum e sobe nos rostra1400

Em seguida Tiridates se aproxima e com muita

humildade diz ao princeps

ldquo[] Mestre sou descendente de Aacutersaces irmatildeo dos reis

Vologeso e Paacutecoro e teu escravo E vim a ti meu deus para te adorar como faccedilo a Mitras O destino que propusestes seraacute meu pois tu eacutes minha fortuna e meu destinordquo Nero responde-lhe ldquoFoi bom que tenhas vindo ateacute aqui pessoalmente para que me encontrasse face a face e desfrutasse da minha presenccedila Pois que eu te conceda aquilo que nem teu pai te deixou e nem teus irmatildeos te deram e preservaram Rei da Armecircnia eu agora te declaro para que tanto tu como eles possam compreender que eu tenho poder para tirar reinos e concedecirc-losrdquo1401

Ao final dessas palavras o soberano coloca o diadema na cabeccedila de

Tiridates Com isso haacute uma enorme festa no teatro e Nero canta com a lira e

dirige uma biga usando o traje dos Verdes e um elmo de cocheiro Isso deixa

Tiridates com ldquoantipatiardquo dele mas natildeo o impede de elogiar Corbulatildeo general em

quem ele encontrou apenas uma falha tolerar tal mestre1402

1397

Dio 6312 1398

Dio 6321 31 1399

Dio 6341 61 Para sustentar esse luxo 800 mil sesteacutercios eram necessaacuterios diariamente

(Dio 6322) 1400

Dio 6342 1401

[] ldquoἐγώ δέσποτα Ἀρσάκου μὲν ἔκγονος Οὐολογαίσου δὲ καὶ Πακόρου τῶν βασιλέων ἀδελφός

σὸς δὲ δοῦλός εἰμι καὶ ἦλθόν τε πρὸς σὲ τὸν ἐμὸν θεόν προσκυνήσων σε ὡς καὶ τὸν Μίθραν καὶ

ἔσομαι τοῦτο ὅ τι ἂν σὺ ἐπικλώσῃς σὺ γάρ μοιrdquo ldquoκαὶ μοῖρα εἶ καὶ τύχηrsquo ὁ δὲ Νέρων ἠμείψατο

αὐτὸν ὧδε lsquoἀλλ εὖ τοι ἐποίησας αὐτὸς δεῦρο ἐλθών ἵνα καὶ παρὼν παρόντος μου ἀπολαύσῃς ἃ

γάρ σοι οὔτε ὁ πατὴρ κατέλιπεν οὔτε οἱ ἀδελφοὶ δόντες ἐτήρησαν ταῦτα ἐγὼ χαρίζομαι καὶ βασιλέα

τῆς Ἀρμενίας ποιῶ ἵνα καὶ σὺ καὶ ἐκεῖνοι μάθωσιν ὅτι καὶ ἀφαιρεῖσθαι βασιλείαςrdquo (Dio 6352-3)

A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 144-145) 1402

Dio 6354 61-4

340

Ao descrever o episoacutedio Diatildeo Caacutessio mostra um interesse particular em

confrontar a imagem de Nero com a de Tiridates Nesse sentido seu objetivo eacute

bastante diferente dos de Pliacutenio o Velho e de Suetocircnio que criticaram o uso

desmedido de ouro por Nero e insinuaram que a gloacuteria militar do evento foi

substituiacuteda por valores artiacutesticos1403

O propoacutesito de Diatildeo Caacutessio eacute evidenciar que

o rei da Armecircnia era virtuosamente superior ao princeps1404

Para tanto torna a

comparaccedilatildeo entre os dois o centro da histoacuteria de modo que de um lado Tiridates

eacute o natildeo romano inteligente humilde e detentor de uma procissatildeo triunfal

magnificente e de outro Nero eacute o liacuteder arrogante cocheiro e tocador de lira1405

Conforme Lefebvre ao escolher o caraacuteter de um estrangeiro como contraponto a

Nero Diatildeo Caacutessio revela ainda mais a sua hostilidade ao princeps ateacute um natildeo

romano podia exibir mais nobreza virilidade e sabedoria do que o imperador1406

A autora tambeacutem defende outro ponto importante A seu ver o relato

particularmente laudatoacuterio da pompa triunfal de Tiridates feito pelo historiador eacute

influenciado pela memoacuteria que ele tem da entrada triunfal de Septiacutemio Severo em

Roma durante sua ascensatildeo em 193 a qual ele caracteriza como ldquoa mais incriacutevel

de todasrdquo1407

Isso significa que Diatildeo Caacutessio natildeo estaacute apenas comparando

Tiridates a Nero mas construindo o paralelo a partir do filtro de experiecircncias

vividas por ele Desse modo o uacuteltimo Juacutelio-Claudiano natildeo eacute soacute a antiacutetese de

Tiridates mas sobretudo a antiacutetese do optimus princeps Septiacutemio Severo1408

No final entatildeo voltamos agrave mesma questatildeo de sempre Nero eacute uma figura

usada com frequecircncia pelos autores para a construccedilatildeo de reflexotildees sobre o

presente Melhor dizendo ele eacute o pano de fundo das narrativas sobre as coisas

consideradas dignas de nota E precisamente por ser o pano de fundo natildeo existe

uma preocupaccedilatildeo com a descriccedilatildeo fidedigna dos seus atos Nero eacute e sempre seraacute

apresentado conforme as intenccedilotildees do autor e do governo no qual este estaacute

inserido mas tal natildeo se daacute independentemente do que o soberano fez ou deixou de

fazer Tais retratos natildeo se datildeo por uma criaccedilatildeo livre totalmente produzida pelo

presente muito do que se afirma estaacute ligado agrave tradiccedilatildeo e a margem para se

1403

Plin Nat 3316 Suet Nero 131 1404

SCHULZ 2019 p 202-212 1405

CHAMPLIN 2005 p 227 1406

LEFEBVRE 2017 p 230-264 1407

Dio 7514 1408

LEFEBVRE 2017 p 264

341

escapar dela eacute pequena sob pena inclusive de um Nero absolutamente novo natildeo

ser nem mesmo reconhecido pela audiecircncia Essa tradiccedilatildeo remete a eventos que

ocorreram originalmente no Principado de Nero (para exemplos de que tratamos

exaustivamente matriciacutedio uxoriciacutedio incecircndio apresentaccedilotildees artiacutesticas

conspiraccedilotildees suiciacutedio) Os retratos mesclam traccedilos diversos para relatar de forma

nova eventos antigos Natildeo se trata de algo novo totalmente portanto Assim o

imperador eacute explorado de maneira exaustiva por diferentes vieses marcas e

testemunhos das lutas de diversas eacutepocas que elaboram os retratos de Nero

contribuindo para o desenvolvimento e a durabilidade da lenda negativa que

supera sua marca original de origem particular e eacute generalizada em uma

multiplicidade de situaccedilotildees novas A narrativa se torna mais simples poreacutem cada

vez mais humana e capaz de ser percebida em qualquer eacutepoca ou lugar quando

livre dos detalhes particulares que marcam o acontecimento histoacuterico Em

particular no caso de Diatildeo Caacutessio e do episoacutedio da ida de Tiridates a Roma

temos a assimilaccedilatildeo de Nero como um antiprinceps tragicamente inapropriado

Depois desse evento Nero vai para a Greacutecia a fim de dirigir bigas tocar

lira fazer proclamaccedilotildees e atuar em trageacutedias Segundo Diatildeo Caacutessio Roma jaacute natildeo

lhe bastava tampouco o teatro de Pompeu e o Circus Maximus pois ele desejava

ser o vencedor da ldquogrande turnecircrdquo1409

No entanto como algueacutem poderia suportar ndash ateacute mesmo ouvir e quanto mais ver ndash um romano um senador um patriacutecio um

sumo sacerdote um Ceacutesar e um imperador um Augusto junto aos competidores treinando sua voz praticando canccedilotildees usando cabelos longos [] olhando com antipatia para os seus oponentes e constantemente proferindo comentaacuterios zombeteiros para eles []1410

Pois foi exatamente assim que Nero agiu segundo o retrato de Diatildeo

Caacutessio Ele ainda ldquose livrou da sua dignidaderdquo para atuar no palco como Eacutedipo

1409

Dio 6381-3 1410

καὶ εἰ μὲν μόνα ταῦτα ἐπεπράχει γέλωτα ἂν ὠφλήκει καίτοι πῶς ἄν τις καὶ ἀκοῦσαι μὴ ὅτι

ἰδεῖν ὑπομείνειεν ἄνδρα Ῥωμαῖον βουλευτὴν εὐπατρίδην ἀρχιερέα Καίσαρα αὐτοκράτορα

Αὔγουστον ἔς τε τὸ λεύκωμα ἐν τοῖς ἀγωνισταῖς ἐγγραφόμενον καὶ τὴν φωνὴν ἀσκοῦντα μελετῶντά

τέ τινας ᾠδάς καὶ τὴν μὲν κεφαλὴν κομῶντα (Dio 6391-2) A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa

com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-1927 p 151-152)

342

Tiestes Heacutercules Alcmeatildeo e Orestes Ou seja Nero fez tudo aquilo considerado

improacuteprio para um imperador1411

Enfim quando retornou a Roma em 67

[] uma parte do muro foi derrubada e uma seccedilatildeo dos portotildees arrombada porque alguns afirmavam que essas coisas eram habituais no retorno dos vencedores coroados em jogos Entraram primeiro [na cidade] os homens que carregavam as coroas que ele havia ganhado e depois deles outros com paineacuteis de madeira erguidos em lanccedilas nos quais estavam inscritos os

nomes dos jogos o tipo de competiccedilatildeo e uma declaraccedilatildeo de que Nero Ceacutesar [] havia vencido Em seguida veio o proacuteprio vencedor em um carro triunfal aquele em que Augusto havia celebrado suas muitas vitoacuterias Ele estava usando uma coroa de oliva e uma veste puacuterpura coberta com lantejoulas de ouro [] Depois de passar pelo Circo e pelo Foacuterum [] Nero foi para o Capitoacutelio e dali procedeu para o palaacutecio A cidade toda estava enfeitada com guirlandas e iluminada por luzes e cheirando a

incenso e toda a populaccedilatildeo sobretudo os proacuteprios senadores gritava em coro ldquosalve vitorioso Oliacutempico Salve vencedor Piacutetico Augusto Augusto Saudaccedilotildees a Nero nosso Heacutercules Saudaccedilotildees a Nero nosso Apolo O uacutenico vencedor da grande turnecirc o uacutenico desde o iniacutecio do tempo de Augusto Augusto Oacute voz divina Bem-aventurados aqueles que te ouvemrdquo1412

Podemos ler essa narrativa de Diatildeo Caacutessio como uma tentativa de limitar a

representaccedilatildeo de Nero a uma imagem especiacutefica a de um mau imperador O

historiador edifica um soberano que parece natildeo ter nenhuma noccedilatildeo de qual era o

seu papel como princeps ou seja um liacuteder explicitamente inadequado1413

Para

tanto acentua com irritaccedilatildeo o fato de ldquoum Ceacutesar e um imperadorrdquo estarem junto

dos competidores e salienta com deboche o disparate do triunfo de Nero No

1411

Dio 6393-6 1412

καὶ ἤλπισαν αὐτὸν ἀπολεῖσθαι ἐπεὶ δ᾽ οὖν ἐς τὴν Ῥώμην ἐσήλασε τοῦ τε τείχους τι καθῃρέθη

καὶ τῶν πυλῶν περιερράγη νενομίσθαι τινῶν λεγόντων ἑκάτερον τοῖς ἐκ τῶν ἀγώνων

στεφανηφόροις γίνεσθαι καὶ ἐσεφοίτησαν πρῶτοι μὲν οἱ τοὺς στεφάνους οὓς ἀνῄρητο κομίζοντες

καὶ μετ᾽ αὐτοὺς ἕτεροι σανίδια ἐπὶ δοράτων ἀνατείνοντες ἐφ᾽ οἷς ἐπεγέγραπτο τό τε ὄνομα τοῦ ἀγῶνος καὶ τὸ εἶδος τοῦ ἀγωνίσματος ὅτι τε Νέρων Καῖσαρ πρῶτος πάντων τῶν ἀπὸ τοῦ αἰῶνος

Ῥωμαίων ἐνίκησεν αὐτό ἔπειτα αὐτὸς ἐφ᾽ ἅρματος ἐπινικίου ἐν ᾧ ποτε ὁ Αὔγουστος τὰ πολλὰ

ἐκεῖνα νικητήρια ἐπεπόμφει ἁλουργίδα χρυσόπαστον ἔχων καὶ κότινον ἐστεφανωμένος τὴν Πυθικὴν

δάφνην προτείνων καὶ αὐτῷ ὁ Διόδωρος ὁ κιθαρῳδὸς παρωχεῖτο καὶ οὕτω διά τε τοῦ ἱπποδρόμου

καὶ διὰ τῆς ἀγορᾶς μετά τε τῶν στρατιωτῶν καὶ μετὰ τῶν ἱππέων τῆς τε βουλῆς διελθὼν ἐς τὸ

Καπιτώλιον ἀνέβη καὶ ἐκεῖθεν ἐς τὸ Παλάτιον πάσης μὲν τῆς πόλεως ἐστεφανωμένης καὶ

λυχνοκαυτούσης καὶ θυμιώσης πάντων δὲ τῶν ἀνθρώπων καὶ αὐτῶν βουλευτῶν ὅτι μάλιστα

συμβοώντων ldquoὈλυμπιονῖκα οὐᾶ Πυθιονῖκα οὐᾶ Αὔγουστε Αὔγουστε Νέρωνι τῷ Ἡρακλεῖ Νέρωνι

τῷ Ἀπόλλωνι ὡς εἷς περιοδονίκης εἷς ἀπ᾽ αἰῶνος Αὔγουστε Αὔγουστε ἱερὰ φωνή μακάριοι οἵ σου

ἀκούοντεςrdquo τί γὰρ δεῖ περιπλέκειν καὶ οὐκ αὐτὰ τὰ λεχθέντα δηλοῦν οὐδὲ γὰρ οὐδ᾽ αἰσχύνην τινὰ τῇ

συγγραφῇ τὰ ῥηθέντα ἀλλὰ καὶ κόσμον τὸ μηδὲν αὐτῶν ἀποκρυφθῆναι φέρει (Dio 63201-5) A

traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o inglecircs de Cary (1914-

1927 p 169-170) 1413

SCHULZ 2019 p 196

343

caso particular deste uacuteltimo feito ressalta a sua inadequaccedilatildeo pois a seu ver os

triunfos eram reservados para os imperadores que tinham de fato conquistado

vitoacuterias militares e natildeo para os imperadores que haviam ganhado vitoacuterias falsas a

exemplo de Nero1414

Para Diatildeo Caacutessio o soberano natildeo obteve triunfos mas

dirigiu bigas tocou lira e ateou no palco ndash tal foi o seu ldquogrande triunfordquo O

historiador portanto estaacute zombando de Nero e das suas conquistas vazias isto eacute

dos seus tiacutetulos recebidos na Greacutecia1415

Sobre esse assunto destacamos outro ponto importante a maneira como

Diatildeo Caacutessio mistura o triunfo militar com as vitoacuterias artiacutesticas subordinando o

primeiro agrave segunda Por exemplo ele coloca o Nero vencedor em cima da

carruagem de Augusto desenha o soberano portando uma coroa oliva em vez de

uma coroa de louros usadas pelos generais e o retrata sendo saudado pelos

senadores como Apolo ao inveacutes de Marte Resumindo o historiador o representa

como o liacuteder que fez a arte prevalecer sobre o triunfo Como observa Gowing

Diatildeo Caacutessio teve o cuidado de criar um Nero que desprezou as virtudes

tradicionais romanas ele trocou a coragem e a gloacuteria militar tatildeo querida aos olhos

da aristocracia senatorial por uma paixatildeo vergonhosa deixando assim o papel

vago de liacuteder do Impeacuterio e dos exeacutercitos1416

Natildeo eacute agrave toa entatildeo que o historiador

assevera que ele ldquose livrou da sua dignidaderdquo

O triunfo de 67 eacute a uacuteltima realizaccedilatildeo artiacutestica de Nero jaacute registrada pelas

fontes histoacutericas Mas se olharmos para traacutes e relembrarmos os seus feitos dos

jogos no anfiteatro ateacute esse ponto perceberemos como a concepccedilatildeo neroniana de

triunfo se encaixa perfeitamente com a dramatizaccedilatildeo que ele concedia agrave sua

existecircncia e ao seu governo Por exemplo no De Vita Caesarum vimos como ele

foi um princeps que performou os proacuteprios crimes no palco o assassinato de

Britacircnico de Agripina e de Otaacutevia por meio da trageacutedia o ldquoFrenesi de Heacuterculesrdquo

o matriciacutedio a partir de ldquoOrestesrdquo e de ldquoAlcmeatildeordquo e o incesto com a matildee atraveacutes

de ldquoEacutedipordquo1417

E aqui quase um seacuteculo depois ele continua sendo apropriado

como mateacuteria de retrato como um soberano que mesclou a realidade com a arte e

perdeu a dimensatildeo do seu lugar no mundo Em suma Nero se transformou em um

1414

BEARD 2007 p 271 1415

LANGE 2016 p 112 1416

GOWING 1997 p 2570-2579 1417

Suet Nero 21

344

lugar de convergecircncia de todos os topoi relativos agrave paixatildeo desmedida pela arte e

pela extravagacircncia Melhor dito tornou-se o siacutembolo da inadequaccedilatildeo imperial o

pessimus princeps A partir daqui todos os autores que objetivarem criticar o mau

governo de um liacuteder utilizaratildeo Nero Eacute claro que a forma como iratildeo usaacute-lo variaraacute

conforme suas obras e seus projetos literaacuterios mas em geral ele seraacute sempre

desenhado da mesma forma como o Nero artista1418

Apoacutes explanar sobre a turnecirc de Nero pela Greacutecia Diatildeo Caacutessio comeccedila a

relatar como esse primeiro ldquocaiu do poderrdquo1419

Assim conta-nos que enquanto o

princeps ainda estava na Greacutecia Juacutelio Vindex um liacuteder ldquoforterdquo ldquointeligenterdquo e

ldquocorajosordquo instiga uma revolta sob os argumentos de que o imperador tinha

saqueado o mundo romano havia destruiacutedo o Senado aleacutem de dizer que a matildee de

Nero natildeo mantinha uma aparecircncia de soberania1420

Entatildeo Vindex reuacutene os

gauleses e lhes diz

ldquo[] Algueacutem [] chamaraacute tal pessoa de Ceacutesar de imperador e

de Augusto Nunca Que ningueacutem abuse desses tiacutetulos sagrados Eles foram mantidos por Augusto e por Claacuteudio ao passo que este sujeito poderia ser mais apropriadamente denominado Tiestes Eacutedipo Alcmeatildeo ou Orestes pois esses satildeo os personagens que ele representa no palco e satildeo esses tiacutetulos que ele assumiu no lugar dos outros Portanto levantem-se agora finalmente contra ele []rdquo1421

Essas palavras foram aprovadas por todos segundo Diatildeo Caacutessio Nero fica

sabendo da revolta enquanto assistia a uma competiccedilatildeo de ginaacutestica em Naacutepoles

mas longe de mostrar qualquer preocupaccedilatildeo pula de sua cadeira e comeccedila a

competir com algum atleta Segundo o historiador ele nem mesmo retorna a

Roma enviando apenas uma carta ao Senado na qual pede desculpas por sua

ausecircncia e diz que cantaria para eles quando a crise passasse1422

Por conseguinte

Nero continua com as suas praacuteticas luxuosas soacute tomando alguma providecircncia

quando ouve que Vindex havia conquistado o apoio de Galba e sido proclamado

1418

LEFEBVRE 2017 p 267-272 1419

Dio 632211 1420

Dio 63221-2 1421

Dio 63225-6 A traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute nossa com base na traduccedilatildeo do grego para o

inglecircs de Cary (1914-1927 p 175-176) 1422

Dio 63261

345

imperador pelos gauleses e pelos soldados romanos1423

Por causa disso Diatildeo

Caacutessio alega que Nero volta a Roma Ao chegar laacute e ver que os seus proacuteprios

guardas pessoais tinham o abandonado ele resolve fugir Para tanto veste roupas

velhas monta em um cavalo e cavalga a noite toda em direccedilatildeo agrave vila do seu

liberto Faonte por quem aleacutem de Epafrodito e Esporo eacute acompanhado1424

Apoacutes

algum tempo chega a uma caverna e sentindo fome come um patildeo estragado e

bebe uma aacutegua suja

Tal foi o papel traacutegico que Nero desempenhou e esse versiacuteculo

constantemente passava por sua mente ldquoTanto a minha esposa quanto o meu pai desejaram que eu morresse cruelmenterdquo [] Enquanto ele estava nessa situaccedilatildeo o povo romano oferecia sacrifiacutecios e enlouquecia de alegria Alguns ateacute usavam pileus da liberdade significando que agora estavam livres [] Para o proacuteprio Nero instituiacuteram uma busca em todas as direccedilotildees [] Quando eles finalmente souberam [onde ele estava] enviaram cavaleiros contra ele Ele entatildeo percebendo que eles estavam

se aproximando [] matou-se apoacutes proferir aquela observaccedilatildeo frequentemente citada ldquoJuacutepiter que artista morre comigordquo E enquanto ele se demorava em sua agonia Epafrodito deu-lhe o golpe final Ele viveu 30 anos e 9 meses dos quais governou 13 anos e 8 meses1425

Sobre a descriccedilatildeo dos uacuteltimos momentos do soberano destacamos trecircs

pontos Em primeiro lugar pontuamos a contraposiccedilatildeo entre Vindex e Nero Diatildeo

Caacutessio contrasta os dois indiviacuteduos a partir da menccedilatildeo de expressotildees elogiosas ao

primeiro e vituperiosas ao segundo Por exemplo o gaulecircs eacute retratado como um

liacuteder ldquoforterdquo ldquointeligenterdquo e ldquocorajosordquo e o princeps como um indiviacuteduo

ganancioso e desrespeitoso em relaccedilatildeo ao Senado e ao seu proacuteprio papel (um

antiprinceps) Tal contraste se torna ainda mais acentuado no momento em que

Diatildeo Caacutessio apresenta o discurso de Vindex com as principais justificativas da

revolta extorsatildeo do Impeacuterio performances artiacutesticas improacuteprias e uso indevido

dos tiacutetulos sagrados Nesse sentido como argumenta Schulz Vindex eacute a

ferramenta utilizada pelo historiador para divulgar ao seu puacuteblico a sua proacutepria

opiniatildeo sobre Nero O autor se intromete na histoacuteria para colocar palavras na boca

1423

Dio 63263 271-1ordf 1424

Dio 63273 1425

Dio 63284 291-3

346

do seu personagem fazendo Vindex dizer o que ele mesmo desejava dizer Nero

natildeo era digno de ser chamado nem de Ceacutesar e nem de Augusto1426

Em segundo salientamos o papel artiacutestico de Nero Diatildeo Caacutessio de igual

modo a Suetocircnio retrata o princeps como um liacuteder que tanto se apresenta no

teatro indevidamente que acaba deixando o palco para atuar na proacutepria vida

Melhor dizendo o papel teatral prevalece sobre o papel imperial Mas natildeo

prevalece de qualquer maneira e sim de modo desonroso Nero eacute um pobre ator

abandonado procurado e forccedilado a se suicidar Seu fim eacute despreziacutevel e

aterrorizante1427

No final das contas a impressatildeo que fica eacute que o proacuteprio

historiador elaborou aquilo que considerava ser um fim digno do Nero artista

Em terceiro lugar destacamos a evocaccedilatildeo de alguns dos crimes do

princeps No final da narrativa da vida de Nero Diatildeo Caacutessio relembra aos seus

leitores certos delitos imperiais a exemplo do matriciacutedio do assassinato de

Otaacutevia das atuaccedilotildees no palco e da destruiccedilatildeo do Senado A nosso ver sua escolha

por tais crimes representa aquilo que ele queria que ficasse guardado na memoacuteria

das pessoas Nero foi um imperador indigno que envergonhou a si mesmo e aos

romanos ndash ldquoisso foi o que ele julgou importante e interessante preservarrdquo1428

Como afirma Gowing o Nero de Diatildeo Caacutessio eacute um exibicionista e natildeo uma

figura poliacutetica1429

Assim ao final percebemos que os escassos resquiacutecios do bom Nero

surgidos nesse capiacutetulo desaparecem completamente em Taacutecito e em Suetocircnio

Diatildeo Caacutessio transforma Nero no tiacutepico tirano que natildeo se importa com o

funcionamento do Estado nem mesmo para atrapalhar tomar maacutes decisotildees de

governo ndash essa eacute sua mensagem mais importante Natildeo eacute fortuitamente que coloca

Nero ignorando a revolta de Vindex de um lado e a populaccedilatildeo mais tarde

comemorando a sua morte de outro Natildeo nos esqueccedilamos de que para construir

essa mensagem o autor se baseia nas suas experiecircncias pessoais durante os

governos de Cocircmodo Septiacutemio Severo Caracala e Heliogaacutebalo um periacuteodo de

conturbaccedilotildees advindas das raacutepidas trocas de imperadores Ao viver essa realidade

Diatildeo elabora uma Historia Romana na qual a monarquia era a forma superior de

1426

SCHULZ 2019 p 202-214 1427

DRINKWATER 2019 p 86-87 1428

HURLEY 2013 p 32 1429

GOWING 1997 p 2559

347

governo e traria estabilidade poliacutetica para o Impeacuterio ou seja o princeps seria o

responsaacutevel por salvar os romanos da destruiccedilatildeo Para tanto ele precisava ser natildeo

soacute um bom imperador assumindo a responsabilidade de liderar com prudecircncia e

com respeito aos membros da elite mas tambeacutem uma boa pessoa modesta e

humilde Foi exatamente aiacute na concepccedilatildeo de Diatildeo Caacutessio que Nero falhou Ele

natildeo soacute natildeo abandonou o seu trabalho como ainda tentou se beneficiar do proacuteprio

tiacutetulo1430

Nero morreu em junho de 68 e desse modo desistiu da sua existecircncia

terrena Como vimos a sua vida e o seu governo foram lidos de modos muito

diferentes o que criou uma imagem multifacetada desse imperador Concluiacutedos os

estudos desses trecircs autores passemos agraves consideraccedilotildees finais

1430

MADSEN 2020 p 115-120

348

Consideraccedilotildees Finais

Em 2009 a escritora nigeriana Chimamanda Adichie proferiu uma palestra

no programa TEDTalk na qual comentou sobre O perigo de uma histoacuteria uacutenica

Nela alertou sobre os riscos de ouvirmos e nos acomodarmos com uma uacutenica

versatildeo de uma histoacuteria pois isso aleacutem de natildeo assimilar a complexidade e a

diversidade dos povos e indiviacuteduos gera preconceitos e estereoacutetipos Eacute claro que

na eacutepoca a autora estava se referindo agrave construccedilatildeo de estereoacutetipos feitos pela

literatura moderna ocidental sobretudo a que envolve a Aacutefrica e os africanos

Todavia a ideia central da sua palestra se encaixa muito bem aqui Os perigos de

uma histoacuteria uacutenica natildeo se limitam agrave contemporaneidade e podem com certeza ser

aplicados a Nero Em um trecho do seu discurso Adichie afirma [] ldquoeacute assim

que se cria uma uacutenica histoacuteria mostre um povo como uma uacutenica coisa como

somente uma coisa vaacuterias vezes e isso seraacute o que ele se tornaraacuterdquo Ou seja natildeo

haveraacute mais a possibilidade de ele ser outra coisa porque sua histoacuteria teraacute se

transformado em algo definitivo Foi exatamente isso o que aconteceu com Nero e

com o seu Principado Sua imagem foi tatildeo (re)elaborada e (re)contada de modo

tatildeo negativo e sistemaacutetico que ficou impossiacutevel vecirc-lo de outra forma seja na

proacutepria Antiguidade seja nos dias atuais A tradiccedilatildeo literaacuteria para usarmos as

palavras de Adichie ldquosuperficializourdquo e ldquonegligenciourdquo muitas outras histoacuterias de

Nero dando-nos um mau imperador que na verdade eacute incompleto ndash e portanto

viacutetima de uma histoacuteria uacutenica1431

Concordamos com a visatildeo de Chimamanda Adichie mas tambeacutem

consideramos ao longo desta tese que essa histoacuteria uacutenica natildeo eacute tatildeo uacutenica assim

Apesar de existir uma clara hegemonia que permite o reconhecimento de Nero a

partir de traccedilos muito simples como a associaccedilatildeo de um homem laureado com a

lira em um cenaacuterio em chamas a hegemonia se reflete em contextos muito

diversos e em um uso plural dessa mesma narrativa predominante Como

defendemos cada contexto que definimos em blocos arbitraacuterios denominados

conceitualmente de forma coloca nossos conflitos em pauta e cria novas formas

1431

ADICHIE 2009 Informaccedilotildees disponiacuteveis em

httpswwwtedcomtalkschimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_storytranscriptl

anguage=pt-

br~text=Uma20C3BAnica20histC3B3ria20de20catC3A1strofeuma20co

nexC3A3o20como20humanos20iguais Acesso em 02 mai 2021

349

de pensar a tradiccedilatildeo Essas lutas levam a novas seleccedilotildees no repertoacuterio disponiacutevel

na tradiccedilatildeo no caso da Antiguidade atraveacutes da inuentio dos autores Por meio da

seleccedilatildeo de tais elementos mormente jaacute conhecidos do puacuteblico elabora-se a

construccedilatildeo de uma imagem que mescla elementos relativos a diversas

temporalidades por exemplo os eventos ocorridos no proacuteprio governo de Nero e

as suas releituras e recomposiccedilotildees feitas atraveacutes do tempo bem como os eventos

do tempo da proacutepria composiccedilatildeo dessa imagem pelo autor

A mescla desses elementos jaacute conhecidos e pertencentes a temporalidades

diferentes gera um novo registro que eacute perfeitamente reconheciacutevel pela audiecircncia

por trazer elementos jaacute familiares Opera por essa composiccedilatildeo o que chamamos

de retratos de Nero Esses retratos satildeo construiacutedos como foi indicado pelo

tratamento de elementos transmitidos pela tradiccedilatildeo do passado e por temas atuais

que estejam na base dos conflitos que levam a uma retomada desse passado

Por allelopoiesis vemos de forma recorrente esse procedimento ocorrer

na construccedilatildeo dos sucessivos Neros o presente lanccedila novas questotildees para o

passado gerando novas formas de vecirc-lo e interpretaacute-lo e reciprocamente as

novas formas de ver o passado por alteridade permitem ver o presente de uma

forma nova Assim por allelopoiesis passado e presente se constroem

mutuamente sem que o primeiro determine o segundo como um legado

incontornaacutevel nem o segundo domine o primeiro manipulando-o livremente para

gerar uma visatildeo totalmente nova do passado adequada a cada contexto ou geraccedilatildeo

Esses Neros satildeo utilizados como exemplum ajustando-se a diferentes

temporalidades pois trazem um conteuacutedo humano geral transtemporal e tecircm

capacidade de auxiliar os contemporacircneos a entender e agir em seu proacuteprio tempo

Nero por sua exemplaridade pertence simultaneamente a diversos passados e

presentes os quais se sucedem apresentando conflitos que podem ser observados

tendo o imperador como referecircncia

Assim nosso estudo de Nero permitiu evidenciar que i) a relaccedilatildeo entre

passado e presente eacute mais complexa sendo multidimensional transtemporal e

multifacetada ii) cada geraccedilatildeo ou contexto comporta disputas e conflitos e

portanto natildeo haacute um Nero uacutenico para cada uma delas (ainda que ocorram

consensos crescentes quanto aos seus traccedilos centrais ao longo do tempo) iii) a

composiccedilatildeo das imagens de Nero natildeo se daacute como mera repeticcedilatildeo dos elementos

350

conhecidos o procedimento eacute de recomposiccedilatildeo dos elementos conhecidos como

retrato iv) o meacutetodo de seleccedilatildeo dos elementos usados para a composiccedilatildeo do

retrato natildeo se daacute pela criaccedilatildeo livre do autor mas se coloca em relaccedilatildeo direta e

necessaacuteria com a tradiccedilatildeo a partir da qual opera o procedimento de seleccedilatildeo ou

inuentio e v) o uso de Nero como exemplum reforccedila a noccedilatildeo da utilidade dessa

experiecircncia humana para muacuteltiplas temporalidades quase como um heroacutei traacutegico

que ao mesmo tempo em que eacute apresentado como uma figura do passado

transmitida por uma rica tradiccedilatildeo eacute uma figura contemporacircnea por sua

exemplaridade por servir para lidar com indiviacuteduos que a cada novo contexto satildeo

julgados negativamente como ldquoNerosrdquo

Nesta tese dedicamo-nos agrave investigaccedilatildeo dessa histoacuteria neroniana

multifacetada e disputada que tende a se tornar cada vez mais simplificada e

concentrada em poucos traccedilos apontando para a unicidade Em outros termos

estudamos a parcela inicial e fundamental do processo de consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo

literaacuteria negativa sobre o princeps e sobre o seu reinado Nesse sentido

trabalhamos com a seguinte hipoacutetese a de que a tradiccedilatildeo negativa se consolidou a

partir de julgamentos sobre Nero e o seu governo feitos em contextos histoacutericos e

literaacuterios especiacuteficos diversos e em disputa que por mudarem ao longo do

tempo geraram por um lado o apagamento dos traccedilos positivos do liacuteder e do seu

reinado e por outro a manutenccedilatildeo dos negativos Pudemos demonstrar que temos

transformaccedilotildees importantes ao longo do periacuteodo e que tratar Nero como uma

unidade implica um problema metodoloacutegico a ser evitado Na verdade como

percebemos isso justifica a opccedilatildeo de privilegiar algumas fontes em detrimento de

outras pelo fato de essas primeiras serem supostamente portadoras de uma

autoridade mais elevada em desconsideraccedilatildeo de outras ou finalmente por

atenderem melhor as visotildees preconcebidas dos autores que as utilizam

Por oacutebvio para comprovaacute-la noacutes tambeacutem fizemos algumas escolhas e

realizamos certos procedimentos Em relaccedilatildeo agraves escolhas optamos por trabalhar

apenas com a tradiccedilatildeo literaacuteria porque a nosso ver de todas as existentes como a

numismaacutetica a epigraacutefica ou mesmo outras ligadas agrave cultura material ela eacute a mais

longa e dominante influenciando na posteridade de forma mais determinante do

que outras Tambeacutem fixamos uma baliza cronoloacutegica entre os seacuteculos I e III a

qual nos pareceu suficiente para percebermos a construccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria

351

negativa sobre Nero e sobre seu governo haja vista que parte relevante de tal

tradiccedilatildeo surgiu e se consolidou nesse intervalo de tempo Como deve ter restado

claro essa amostra selecionada gerou um conjunto de transformaccedilotildees conflitos

disputas construccedilatildeo de consensos mais do que suficientes para nossos propoacutesitos

Ao mesmo tempo selecionamos os episoacutedios da vida e do Principado neroniano

mais recorrentemente citados nos textos antigos e elaboramos um complexo

divisoacuterio com 12 categorias Juntamente a isso ainda decidimos utilizar para a

leitura das fontes os eixos diacrocircnico e sincrocircnico sendo o primeiro empregado

na apreciaccedilatildeo cronoloacutegica dos eventos sociais poliacuteticos econocircmicos e culturais

de cada eacutepoca e o segundo na comparaccedilatildeo entre eventos ocorridos em

temporalidades distintas Por fim delimitamos nosso aporte teoacuterico pautado nos

conceitos de forma tradiccedilatildeo inuentio retrato allelopoiesis e exemplum que

nos auxiliou tanto na organizaccedilatildeo da tese fundamentando a divisatildeo dos capiacutetulos

quanto na leitura do corpus textual No que diz respeito aos procedimentos

desenvolvidos analisamos cada fonte agrave luz das estrateacutegias discursivas do seu

proacuteprio gecircnero literaacuterio e dos interesses dos seus autores tentando compreender

como essas questotildees interferiram nas produccedilotildees das narrativas acerca do

soberano Concomitantemente a tais leituras e agrave compreensatildeo dos propoacutesitos dos

autores fomos enquadrando os relatos dos episoacutedios nas nossas categorias de

anaacutelise o que nos permitiu verificar natildeo soacute as mudanccedilas e as permanecircncias nas

apropriaccedilotildees das imagens de Nero como tambeacutem a consolidaccedilatildeo da sua imagem

negativa e os mecanismos operados nesse processo

Vejamos como essas escolhas e esses procedimentos ocorreram na praacutetica

Relembremos de um episoacutedio investigado na tese a ascensatildeo de Nero Secircneca no

iniacutecio do seacuteculo I isto eacute na contemporaneidade do imperador louvou

vigorosamente tal ocasiatildeo representando o princeps como um liacuteder que repudiaria

a guerra e instauraria a paz no Impeacuterio Como vimos o filoacutesofo se aproveitou do

falecimento de Claacuteudio e da imagem autocraacutetica desse soberano para elaborar a

Apocolocyntosis saacutetira que escarneceu o antigo governo e exaltou o novo De

igual modo ele se embasou nesse momento de troca de imperadores e na sua

proacutepria posiccedilatildeo senatorial para redigir o De Clementia assegurando a todos que

Nero possuiacutea a virtude necessaacuteria (clementia) para fazer um bom reinado Em

meio agrave percepccedilatildeo desses interesses de Secircneca e das especificidades literaacuterias das

352

suas obras notamos o seu uso da inuentio realizado na criaccedilatildeo de situaccedilotildees

extraordinaacuterias que provocaram e satirizaram a verdade (Apocolocyntosis) e na

representaccedilatildeo de Nero como um soberano que trouxe verossimilhanccedila ao seu

modelo de Estado (De Clementia) Em suma Nero foi lido por Secircneca como um

imperador prodigioso que promoveria a paz o retorno agrave Idade de Ouro

Ainda no final do seacuteculo I esse elogio foi apropriado por Pseudo-Secircneca e

convertido em um vitupeacuterio Na Octavia ao seguir os propoacutesitos de legitimaccedilatildeo

poliacutetica dos Flaacutevios o autor transformou a ascensatildeo de um liacuteder paciacutefico na

ascensatildeo de um liacuteder violento fruto de uma matildee ambiciosa o qual reinaria

segundo o seu proacuteprio plano de governo ndash e natildeo segundo o que lhe havia sido

dado por Secircneca no De Clementia Ademais destacamos como Pseudo-Secircneca se

aproveitou das estrateacutegias argumentativas da trageacutedia praetexta para expor as

queixas de Otaacutevia contra o princeps erigindo um Nero que defendia a autocracia

o uso das armas e o extermiacutenio dos inimigos Logo o princeps bom passou a ser

visto como mau Por allelopoiesis e inuentio Pseudo-Secircneca se apossou dos

argumentos positivos sobre a ascensatildeo de Nero contidos na Apocolocyntosis e no

De Clementia e os reorganizou em concordacircncia com os interesses flavianos da

sua eacutepoca desmantelando a imagem prodigiosa de Nero

Por sua vez no iniacutecio do seacuteculo II a representaccedilatildeo da ascensatildeo de Nero

sofreu outra transformaccedilatildeo A imagem totalmente prodigiosa elaborada no iniacutecio

do seacuteculo I e a imagem nefasta composta no final do mesmo seacuteculo foram

(re)apropriadas e alteradas por Taacutecito Como mostramos o historiador redigiu a

maior parte das suas obras incluindo os Annales durante os governos de Nerva e

de Trajano os quais eram considerados por ele como reinados da liberdade nos

quais se podia dizer o que se pensava Nesse aspecto ele representou os

Principados dos Juacutelio-Claacuteudios sobretudo o de Nero como periacuteodos de tirania

em que os membros proeminentes da sociedade romana tinham que se humilhar e

dissimular suas opiniotildees para sobreviverem Conjuntamente ele seguiu a noccedilatildeo

do caraacuteter exemplar da historia magistra uitae descrevendo a partir da inuentio

as condutas malignas do soberano no intuito de convencer seu puacuteblico a evitaacute-las

Tendo em vista essas questotildees Taacutecito se apossou dos relatos da ascensatildeo de Nero

anteriores a ele e os reformatou dando-nos uma ascensatildeo positiva mas positiva

natildeo por causa do proacuteprio Nero e sim por causa de Secircneca e de Burro

353

Resumindo para ele enquanto Nero respeitasse e ouvisse os seus tutores homens

dos altos extratos sociais as coisas ficariam bem Portanto Taacutecito atraveacutes da

allelopoiesis construiu sua nova versatildeo da ascensatildeo utilizando mutuamente o

passado e o presente usou o primeiro porque manteve e reforccedilou os traccedilos

positivos e usou o segundo porque pontuou a importacircncia da deferecircncia imperial

ao Senado e agrave elite

Continuamente Suetocircnio ao compor o seu De Vita Caesarum na segunda

metade do seacuteculo II tambeacutem fez seus proacuteprios usos das tradiccedilotildees interpretativas

do passado Como vimos o bioacutegrafo por ter vivenciado a conturbada ascensatildeo de

Adriano redigiu uma obra na qual julgou de um ponto de vista moral as atitudes

imperiais Assim todos os liacutederes que respeitaram as estruturas republicanas a

exemplo de Augusto foram representados por ele de forma positiva e todos os

que desrespeitaram foram retratados de forma negativa Nesse sentido Nero foi

figurado de modo positivo haja vista que em sua ascensatildeo afirmou que seu

governo se aproximaria dos ideais do Principado augustano Portanto o bioacutegrafo

concedeu menor peso ao retraho taciteano de Nero ndash o do liacuteder controlado por

seus conselheiros ndash e forneceu maior peso ao retraho de Secircneca Calpuacuternio Siacuteculo

e Lucano ndash o do soberano que traria de volta a Idade de Ouro

Ao seu turno Diatildeo Caacutessio ao escrever a sua Historia Romana na primeira

metade do seacuteculo III tambeacutem encontrou formas novas de se apropriar das

representaccedilotildees da ascensatildeo de Nero Como destacamos ele de igual modo a

Taacutecito foi um senador romano e enxergava o mundo por meio das lentes de tal

posiccedilatildeo social Quando produziu a sua obra o Impeacuterio estava enfrentando um

momento de grave crise poliacutetica com muitas guerras e constantes trocas de

liacutederes questotildees que o levaram a defender a concepccedilatildeo de optimus princeps

Dessa forma usou a inuentio para demonstrar como Nero fugiu do modelo

augustano de imperador e tambeacutem como ele era inapto para governar Roma Essa

inaptidatildeo foi apontada jaacute na ascensatildeo do soberano quando eacute insinuado que o bom

governo existiria enquanto o princeps continuasse tendo bons parceiros no poder

(Secircneca e Burro) Notemos entatildeo que por allelopoiesis Diatildeo Caacutessio manteve e

consolidou a representaccedilatildeo taciteana da ascensatildeo de Nero ao mesmo tempo em

que ignorou as representaccedilotildees positivas construiacutedas no iniacutecio do seacuteculo I Do

historiador em diante tal imagem do soberano ndash um liacuteder que comeccedilou bem e

354

terminou mal ndash se tornou ainda mais fonte chegando agrave contemporaneidade como

uma das imagens mais conhecidas do princeps

Essa digressatildeo dos exemplos da ascensatildeo de Nero objetivou natildeo apenas

evidenciar a maneira como as nossas escolhas e os nossos procedimentos se

efetivaram durante a tese mas tambeacutem salientar a maior contribuiccedilatildeo do nosso

trabalho os resultados das aplicaccedilotildees do conceito de allelopoiesis para o estudo

da consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre o imperador e sobre o seu

Principado Demonstramos que as narrativas e o entendimento delas ao longo do

tempo foram se alterando conforme os interesses em voga o que por

conseguinte fez com que tanto as narrativas quanto o entendimento delas

ganhassem novas versotildees e novos elementos Poreacutem mesmo com esses novos

aspectos vimos que de forma direta ou indireta houve uma certa permanecircncia de

algumas versotildees e elementos ocorrida devido agraves suas repeticcedilotildees pelos autores

antigos ou devido agraves suas complementaccedilotildees (por exemplo o caraacuteter de Nero foi

inserido em episoacutedios variados para dar verossimilhanccedila a um fato) A

identificaccedilatildeo de tal permanecircncia foi justamente o que comprovou a nossa hipoacutetese

da consolidaccedilatildeo da tradiccedilatildeo negativa No decorrer dos seacuteculos ainda que o

repertoacuterio dos relatos sobre Nero e sobre seu governo tenha se tornado mais rico e

maleaacutevel inclusive permitindo aos autores que misturassem cronologias e eventos

descritos em contextos distintos os feitos negativos imperiais sempre estiveram

presentes E natildeo soacute estiveram presentes como se tornaram mais resumidos e

consolidados a ponto de os autores nem precisarem mais contar toda a histoacuteria

pois os seus leitores ou jaacute a conheciam ou a captariam com poucas palavras

Desse modo a ideia de allelopoiesis nos permitiu perceber que a construccedilatildeo da

tradiccedilatildeo literaacuteria negativa acerca de Nero se deu atraveacutes de temporalidades

conflitos e visotildees de mundo muacuteltiplos os quais foram relidos e recombinados a

partir de usos variados E a cada vez que foram recombinados foram produzidos

novos Neros no presente que dialogaram com os Neros do passado os quais

reciprocamente fortaleceram a tradiccedilatildeo interpretativa negativa

Dado tal fortalecimento natildeo eacute de se admirar que o imperador tenha se

tornado cada vez mais objeto de estudos acadecircmicos ndash apontados inclusive no

primeiro capiacutetulo desta tese com uma frequecircncia maior os autores modernos tecircm

investigado as fontes antigas a fim de entenderem de que maneira Nero foi lido e

355

apropriado Contudo como vimos ao realizarem tal investigaccedilatildeo nem sempre se

preocupam com a ldquobagagemrdquo cultural social e poliacutetica dos claacutessicos o que resulta

na construccedilatildeo de interpretaccedilotildees enviesadas do soberano e do seu governo Por

exemplo certos autores a exemplo de Mommsen e Fini tenderam a seguir os

planos narrativos e as estrateacutegias argumentativas de Taacutecito Suetocircnio e Diatildeo

Caacutessio dando-nos a figura de Nero como mau imperador (devido agrave sua fraca

atuaccedilatildeo militar por exemplo) eou como bom imperador (devido agrave era paciacutefica

instaurada no Impeacuterio) Tambeacutem tivemos aqueles que se embasaram nos trecircs

autores sobretudo em Taacutecito e compuseram obras que reforccedilaram a ideia do Nero

fantoche isto eacute do liacuteder bom ou mau conforme as influecircncias recebidas Aiacute se

inseriram Weigall e Griffin em uma parte do seu livro Em contraposiccedilatildeo a tais

autores tivemos ndash e temos tido cada vez mais ndash aqueles que consideraram a

ldquobagagemrdquo dos claacutessicos e buscaram as contradiccedilotildees dos seus relatos visando a

erigir um retrato mais real de Nero Nesse ponto contamos por exemplo com

Cizek e Champlin que problematizaram as representaccedilotildees do Nero artista com

Griffin Levi e Belchior que criticaram os retratos de Nero como bom e mau

imperador e com Lefebvre e Ketterij que mostraram de que modo as

representaccedilotildees do soberano foram alteradas conforme a mudanccedila dos contextos

Independentemente das maneiras como Nero foi ndash e vem sendo ndash estudado pelos

autores modernos uma coisa eacute certa ele eacute sempre instigante ou para citar

Barrett Fantham e Yardley ldquoirresistiacutevelrdquo1432

Natildeo eacute a toa que estimula jornalistas

literatos e ateacute museus a produzirem diversos materiais a exemplo do Museu

Britacircnico que estaacute preparando uma exposiccedilatildeo com mais de 200 artefatos sobre o

imperador1433

Para finalizarmos gostariacuteamos de frisar que esta tese de doutorado foi

desenvolvida sem bolsa de fomento em meio agrave busca pela nossa manutenccedilatildeo

financeira e emocional agravada ainda mais neste uacuteltimo ano com a pandemia da

Covid-19 Por oacutebvio isso trouxe consequecircncias diretas para o trabalho como a

falta de aprofundamento em algumas questotildees que nos ajudariam a entender

melhor a consolidaccedilatildeo do Nero negativo exemplar e allelopoieacutetico Poreacutem

mesmo com essas dificuldades julgamos ter desenvolvido uma tese que traz

relevantes contribuiccedilotildees cientiacuteficas e sociais Por exemplo cooperamos

1432

BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 284 1433

Cf ADDLEY 2021

356

cumulativamente com a comunidade claacutessica de seis formas i) adicionamos ao

estudo da tradiccedilatildeo literaacuteria negativa sobre Nero e sobre o seu governo o exame

das fontes contemporacircneas ao princeps que tendem em geral a ser ignoradas ii)

realizamos uma investigaccedilatildeo do Principado neroniano baseada nos conceitos de

forma tradiccedilatildeo inuentio retrato exemplum e allelopoiesis os quais lanccedilaram

um novo olhar sobre um tema muito debatido ndash em especial este uacuteltimo conceito

aleacutem de ser complexo eacute ainda pouco utilizado nos estudos nacionais e

internacionais iii) criamos quatro formas para analisarmos as fontes

contemporacircneas e posteriores ao soberano iv) propusemos uma nova opccedilatildeo

metodoloacutegica a partir da abordagem sincrocircnica e diacrocircnica que colocadas em

conjunto criaram uma visatildeo mais completa da consolidaccedilatildeo de Nero como um

mau imperador e v) produzimos uma tese que pela primeira vez reuniu em um

soacute estudo em liacutengua portuguesa fontes de diferentes temporalidades e gecircneros

literaacuterios que tratam dos feitos de Nero (ou daqueles atribuiacutedos a ele) vi)

contribuiacutemos com o treinamento e a qualificaccedilatildeo em alto niacutevel graccedilas agrave

Universidade Puacuteblica e ao trabalho coletivo do LEIR-UFOP de uma nova

pesquisadora em Estudos Claacutessicos especialmente em Histoacuteria Antiga subaacuterea

ainda muito carente de profissionais que possam atuar no campo e desafiar todos

os perigos de diversas histoacuterias uacutenicas que se alicerccedilam em leituras da

Antiguidade e refletem os princiacutepios da exclusatildeo e da opressatildeo produzidos pelo

estaacutegio atual do capitalismo internacional aos quais nos opomos

Outro aspecto a considerar nestas consideraccedilotildees finais satildeo as

possibilidades de pesquisas futuras geradas pelo nosso trabalho A nossa

utilizaccedilatildeo dos conceitos e a forma que deles lanccedilamos matildeo para dar organizaccedilatildeo

agraves fontes podem ser (re)aproveitadas por qualquer pesquisador que queria estudar

a construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo interpretativa acerca de uma personagem ndash quer seja

ela fruto da tradiccedilatildeo literaacuteria e proveniente da Antiguidade quer natildeo Em suma

nossa abordagem pode ser (re)aplicada em qualquer pesquisa de Nero ateacute a

contemporaneidade

Quanto agraves contribuiccedilotildees sociais colaboramos com a sociedade brasileira e

com os debates poliacuteticos modernos que a compotildeem atraveacutes da reflexatildeo do que

caracteriza um governante tiracircnico Tal debate como sabemos tem se feito

bastante atual especialmente nos uacuteltimos tempos em que vemos um

357

fortalecimento de grupos e de discursos antidemocraacuteticos no Brasil e no mundo

Isso faz com que a imagem de Nero seja atemporal e seja sempre retomada a

partir da sugestatildeo de que determinado liacuteder estaacute agindo como o imperador ou de

que possui os defeitos de caraacuteter do princeps Como explicitou Faversani

ldquoenquanto houver tiranos incendiaacuterios egoacutelatras e assassinos no poder Nero

estaraacute entre noacutesrdquo1434

No final das contas entatildeo o importante natildeo eacute que as pessoas

saibam quem de fato foi Nero mas o que foi feito dele e o que ele simboliza

para assim poderem lutar contra a tirania a opressatildeo e a destruiccedilatildeo dos

patrimocircnios da humanidade

1434

FAVERSANI 2020 p 391

358

Referecircncias

Fontes

ARISTOTLE LONGINUS DEMETRIUS Poetics Longinus On the Sublime

Demetrius On Style Translated by Stephen Halliwell W Hamilton Fyfe

Doreen C Innes and W Rhys Roberts Loeb Classical Library 1 ed Cambridge

Harvard University Press 1995

AUGUSTO E SUETOcircNIO A Vida e os Feitos do Divino Augusto Traduccedilatildeo de

Matheus Trevizam Paulo Seacutergio Vasconcellos e Antocircnio Martinez de Rezende 1

ed Belo Horizonte Editora UFMG 2007

CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo Beato 1 ed Lisboa Verbo

1996

CASSIUS DIO The Roman History Trans by Earnest Cary Loeb Classical

Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1914-1927

CICERO De oratore Trans by E W Sutton Loeb Classical Library 1 ed

Cambridge Harvard University Press 1942 v1

______ Rhetorica ad Herennium Trans by Harry Caplan Loeb Classical

Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1954

EacuteSQUILO Sete Contra Tebas de Eacutesquilo Trad de Trajano Vieira 1 ed Satildeo

Paulo Editora 34 2018

FLAVIUS JOSEPHUS The Complete Works of Josephus 1 ed Trans by

William Whiston New York BIGELOW BROWN amp CO 1800- 180- v1-3

______ The Jewish War Trans by H St J Thackeray Loeb Classical Library

1 ed Cambridge Harvard University Press 1927-1928 v 1-3

______ The Life Against Apion Trans by H St J Thackeray 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1926

GELLIUS Attic Nights Trans by J C Rolfe Loeb Classical Library 1 ed

Cambridge Harvard University Press 1927 v 3

HISTORIA AUGUSTA Hadrian Aelius Antoninus Pius Marcus Aurelius

L Verus Avidius Cassius Commodus Pertinax Didius Julianus Septimius

Severus Pescennius Niger Clodius Albinus Trans by David Magie Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1921 v 1

HORAacuteRIO Arte Poeacutetica Trad de R M Rosado Fernandes 4 ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012

359

JUVENAL PERSIUS The Satires Trans by G G Ramsay 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1918

LUCANO Farsaacutelia Cantos de I a V Trad de Brunno V G Vieira 1 ed

Campinas Editora da Unicamp 2011

MARTIAL Epigrams Spectacles Trans by D R Shackleton Bailey Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1993 v 1-3

SEcircNECA Apocolocintose do Divino Claacuteudio Trad de Frederico de Souza

Silva 2008 145 f Tese (Doutorado em Letras Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

______ Tratado sobre a Clemecircncia Trad de Ingeborg Braren 1 ed Petroacutepolis

Vozes 2013

PLINY THE ELDER Natural History Trans by H Rackham 1 ed Loeb

Classical Library Cambridge Harvard University Press 1938-1962 v 1-10

PLINY THE YOUNGER Letters Trans by B Radice 1 ed Loeb Classical

Library Cambridge Harvard University Press 1969 v 1

PSEUDO-SEcircNECA A Praetexta Octavia e o Pensamento de Secircneca 2016 94

f Trad de Fernanda Vieira Gozo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) ndash

Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro

2006

STATIUS Silvae Thebaid I-IV Trans by J H Mozley Loeb Classical Library

1 ed Cambridge Harvard University Press 1928

SUETONIUS Lives of the Caesars Trans by Catharine Edwards 1 ed Oxford

Oxford University Press 2000

TAacuteCITO Diaacutelogo dos Oradores Trad de Antocircnio Martinez de Rezende e Juacutelia

Batista Castilho de Avellar 1 ed Satildeo Paulo Autecircntica 2014

TACITUS Tacitus The Annals the Reigns of Tiberius Claudius and Nero

Trans by A A Barrett and J C Yardley 1 ed Oxford Oxford University Press

2008

______ The Histories Trans by Clifford H Moore Loeb Classical Library 1

ed Cambridge Harvard University Press 1925-1931 v 1-2

THUCYDIDES History of the Peloponnesian War Trans by C F Smith

Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1919 v 1

VACA Vitae M Annaei Lucani Trans by Karl Friedrich Weber 1 ed

Marburgi Typis Academicis Elwerti 1856

360

VIRGIacuteLIO Eneida Brasileira Trad de Manuel Odorico Mendes 1 ed

Campinas Editora da UNICAMP 2008

Obras de referecircncia

GLARE P G W (Ed) Oxford Latin Dictionary 1 ed Oxford Oxford

University Press 1968

GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana 5 ed Rio de Janeiro

Bertrand 2005

HORNBLOWER S SPAWFORTH A (Eds) Oxford Classical Dictionary 4

ed Oxford Oxford University Press 2012 v 1-2

INSCRIPTIONES LATINAE SELECTAE Ed by Hermann Dessau 1 ed Berlin

Weidmann 1906 v 2

MORWOOD J TAYLOR J (Eds) Oxford Classical Greek Dictionary 2 ed

Oxford Clarendon Press 2002

SARAIVA F R dos S Dicionaacuterio Latino-Portuguecircs 12 ed Belo Horizonte

Livraria Garnier 2006

SUTHERLAND C H V The Roman Imperial Coinage From 31 BC to 69 1

ed London Spink and Son Ltd 1984

Livros Capiacutetulos e Artigos

ABBOTT F F A History and Description of Roman Political Institutions 1

ed Boston Ginn amp Company 1901

ABBOTT J History of Nero 1 ed New York Harper amp Brothers Publishers

1958

ADDIS F Fiddling while America burns Trump is Todayrsquos emperor Nero

CITYAM London 17 September 2018 Politics Disponiacutevel em

httpswwwcityamcomfiddling-while-america-burns-trump-todays-emperor-

nero Acesso em 02 set 2019

ADDLEY E Was Nero cruel British Museum offers hidden depths to Roman

emperor The Guardian London 22 April 2021 Art Disponiacutevel em

httpswwwtheguardiancomculture2021apr22was-nero-cruel-british-

museum-offers-hidden-depths-to-roman-

emperorCMP=Share_AndroidApp_Other Acesso em 06 mai 2021

361

ADICHIE C N The danger of a single story TEDTalk July 2009 Disponiacutevel

em

httpswwwtedcomtalkschimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_s

torytranscriptlanguage=pt-

br~text=Uma20C3BAnica20histC3B3ria20de20catC3A1st

rofeuma20conexC3A3o20como20humanos20iguais Acesso em 02

mai 2021

ADLER E Boudicarsquos Speeches in Tacitus and Dio The Classical World v

101 n 2 p 173-195 2008

AGNOLON A O Cataacutelogo das Mulheres Os Epigramas Misoacuteginos de Marcial

1 ed Satildeo Paulo Humanitas 2010

AGUIAR M A de A poliacutetica de Nero eacute a poliacutetica do Impeacuterio In

FAVERSANI F JOLY F D (Orgs) As formas do Impeacuterio Romano 1 ed

Mariana UFOP 2014 p 75-80

AHL F M Lucan An Introduction 1 ed New York Cornell University Press

1976

ALFOumlLDY G A Histoacuteria Social de Roma Trad de Maria do Carmo Cary 1

ed Lisboa Editorial Presenccedila 1989

AALDERS G J D Cassius Dio and the Greek World Mnemosyne v 39 n 34

p 282-304 1986

ALLEN JR W et al Martial Knight Publisher and Poet The Classical

Journal v 65 n 8 p 345-357 1970

ALMEIDA J C S Secircneca e a Saacutetira ao Imperador Claacuteudio Argumentos v 6

n 12 p 61-70 2014

ALMEIDA P A F Iliacuteada Latina A Adaptaccedilatildeo Resumida da Iliacuteada de Homero

Organon Porto Alegre v 29 n 56 p 297-312 2014

ALPERS P A The Eclogue Tradition and the Nature of Pastoral College

English v 34 p 352-371 19721973

AMAT J Introduction In CALPURNIUS SICULUS Bucoliques Pseudo-

Calpurnius Eacuteloge de Pison Texte Eacutetabli et Traduit par Jacqueline Amat 1 ed

Paris Les Belles Lettres 1991 p vii-lvi

ARNAR A S Encyclopedism from Pliny to Borges 1 ed Chicago The

University of Chicago Library 1990

ASHBY T PLATNER S B A Topographical Dictionary of Ancient Rome

1 ed Oxford Oxford University Press 1929

362

AUGUET R CAZENAVE M Os Imperadores Loucos Ensaio de Mito-

anaacutelise Histoacuterica Trad de Alberto Paes Salvaccedilatildeo 1 ed Lisboa Editorial

Inqueacuterito 1995

AVELINE J The Death of Claudius Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v

53 n 4 p 453-475 2004

AZEVEDO S F L de Histoacuteria Retoacuterica e Mulheres no Impeacuterio Romano

Um Estudo sobre as Personagens Femininas e a Construccedilatildeo da Imagem de Nero

na Narrativa de Taacutecito 1 ed Ouro Preto Editora UFOP 2012

BAKHTIN M Problemas da Poeacutetica de Dostoieacutevski 1 ed Trad de Paulo

Bezerra Rio de Janeiro Editora Forense-Universitaacuteria 1981

BALDWIN B Roman Emperors in the Elder Pliny Scholia v 4 p 56-78 1995

______ Suetonius 1 ed Amsterdam Hakkert 1983

______ Suetonius Birth disgrace and death Acta Classica v 18 p 61-70

1975

BALLAND A ldquoNova Urbs et lsquoNeapolisrsquo Remarques sur les Projets

Urbanistiques de Neacuteronrdquo Meacutelanges drsquoArcheacuteologie et drsquoHistoire de lrsquoEacutecole

Franccedilaise de Rome v 77 n 2 p 349-393 1965

BARENGHI F The Temple of Janus on Roman Coins 19992016 Disponiacutevel

em httpswwwmoruzziitlang2the_temple_of_janushtml Acesso em 02 jul

2020

BARRETT A A Agrippina Mother of Nero 1 ed London Routledge 1996

______ Agrippina Sex Power and Politics in the Early Empire 1 ed London

Routledge 2001

______ Annals 1426 and the Armenian Settlement of AD 60 The Classical

Quarterly v 29 n 2 p 465-469 1979

______ Introduction In TACITUS The Annals The Reigns of Tiberius

Claudius and Nero Trans by A A Barrett and J C Yardley 1 ed Oxford

Oxford University Press 2008 p ix-xxix

______ Nero Caesar Augustus Emperor of Rome London Pearson Education

Limited 2008 Resenha de SHOTTER David The American Historical

Review v 114 n 3 p 812-813 2009

______ Nerorsquos Women In BARTSCH S FREUDENBURG K

LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1

ed New York Cambridge University Press 2017 p 63-76

363

______ Rome is Burning Nero and the Fire that Ended a Dynasty 1 ed

Princeton Princeton University Press 2020

______ FANTHAM E YARDLEY J (Eds) The Emperor Nero A Guide to

the Ancient Sources 1 ed Princeton Princeton University Press 2016

BARTLETT J R Jews in the Hellenistic World Josephus Aristeas The

Sibylline Oracles Eupolemus 1 ed Cambridge Cambridge University Press

1985

BARTON T The inventio of Nero Suetonius In ELSNER J MASTERS J

(Eds) Reflections of Nero Culture History amp Representation 1 ed Chapel

Hill The University of North Carolina Press 1994 p 48-66

BARTSCH S Actors in the audience Theatricality and doublespeak from Nero

to Hadrian 1 ed Cambridge Harvard University Press 1994

______ Ideology in Cold Blood A Reading of Lucanrsquos Civil War 1 ed

Massachusetts Harvard University Press 1997

______ FREUDENBURG K LITTLEWOOD C Introduction In ______

(Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero New York Cambridge

University Press 2017 p 1-17

BAUGHMAN K E Poppaea Sabina Jewish Sympathies and the Fire of Rome

Women in Judaism A Multidisciplinary Journal v 11 n 2 p 1-18 2014

BAUMAN R A Women and Politics in Ancient Rome 1 ed London

Routledge 1994

BEAGON M Roman Nature The Thought of Pliny the Elder 1 ed Oxford

Oxford University Press 1992

BEARD M The Roman Triumph 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2007

BEATO J Biografia In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo

Beato 1 ed Lisboa Verbo 2000a p 3

______ Calpuacuternio Siacuteculo Um Poeta Pobre ou um Pobre Poeta HVMANITAS

v 47 p 617-627 1995

______ Comentaacuterio criacutetico In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo

Beato 1 ed Lisboa Editora Verbo 1996 p 102-138

______ Introduccedilatildeo In CALPUacuteRNIO SIacuteCULO Bucoacutelicas Trad de Joatildeo Beato

1 ed Lisboa Editora Verbo 1996 p 11-56

______ Nero 1 ed Lisboa Inqueacuterito 2000b

364

BEacuteDOYEgraveRE G D L Domina The Women Who Made Imperial Rome 1 ed

New Haven Yale University Press 2018

BELCHIOR Y K Nero Bom ou Mau Imperador Retoacuterica Poliacutetica e Sociedade

em Taacutecito (54 a 69 dC) 1 ed Curitiba Editora Prismas 2016

BEacuteLO T P FUNARI P P A As romanas e o poder nos Anais de Taacutecito

Revista Classica v 30 n 2 p 75-90 2017

BENARIO H W The Annals In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to

Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 101-122

BENNETT J Trajan Optimus Princeps A Life and Times 1 ed London

Routledge 2005

BENOIST S Neronia V Neacuteron Histoire et Leacutegende Actes du Ve

Colloque

International de la SIEN Lrsquoantiquiteacute Classique v 70 p 472-475 2001

BERGEMANN L et al Transformation A Concept for the Study of Cultural

Change In BAKER P HELMRATH J KALLENDORF C (Eds) Beyond

Reception Renaissance Humanism and the Transformation of Classical

Antiquity 1 ed Berlin De Gruyter 2019 p 9-26

BERNARD W Henderson Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyBernard-W-Henderson Acesso em 22

fev 2020

BERNSTEIN N W Fashioning Crispinus through his Ancestors Epic Models in

Statius Silvae 52 Arethusa p 183-196 2007

BESTE H-J HESBERG H V Buildings of an Emperor ndash How Nero

Transformed Rome In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to

the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 314-331

BILDE P Flavius Josephus between Jerusalem and Rome His Life His

Works and Their Importance 1 ed Sheffield Sheffield Academic Press 1988

BILLOT F Tacitus Responds Annals 14 and the Octavia In WILSON M

(Ed) The Tragedy of Nerorsquos Wife Studies on the Octavia Praetexta 1 ed

Auckland Polygraphia 2003 p 126-141

BIRLEY A R The Life and Death of Cornelius Tacitus Historia n 49 p 230-

247 2000

BISHOP J Nero The Man and the Legend 1 ed London Robert Hale Ltd

1964

BLAISON M Sueacutetone et lrsquoekphrasis de la Domus Aurea (Sueacutet Nero 31)

Latomus v 57 n 3 p 617-624 1998

365

BLAacuteZQUEZ J M DEL CASTILLO A ROLDAacuteN J M Historia de Roma

Tomo II El Imperio Romano (Siglos I-III) 1 ed Madrid Ed Catedra 1989

BLOCH M Apologia da Histoacuteria ou o Ofiacutecio do Historiador Trad de Andreacute

Telles 1 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002

BOISSIER G Tacite 1 ed Paris Hachette 1934

BOSTOCK J RILEY H T The Life and Writings of Pliny In PLINY THE

ELDER The Natural History of Pliny Trans by J Bostock and H T Riley 1

ed London Henry G Bohn 1855 v 1 p vii-xxi

BOTELHO J M Um breve questionamento sobre Ficccedilatildeo e Histoacuteria em

Suetocircnio Revista Philologus v 22 n 66 p 1936-1955 2016

BOYCE M Zoroastrians Their Religious Beliefs and Practices 1 ed London

Routledge 2001

BOYLE A J Introduction In PSEUDO-SENECAN Octauia Attributed to

Seneca Trans by A J Boyle 1 ed Oxford Oxford University Press 2008 p xi-

lxxxix

BRADLEY K R Nero and Claudia Antonia Symbolae Osloenses v 52 n 1 p

79-82 1977

______ Slavery and Society at Rome 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 1994

BRAMBLE J C Lucan In CLAUSEN W V KENNEY E J (Eds) The

Cambridge History of Classical Literature 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 1982 v 2 p 533-557

BRANDAtildeO J L Estereoacutetipos de tirania Humanitas v 60 p 115-137 2008a

______ Galba Otatildeo e Viteacutelio A Crise e Experiecircncias de 68-69 In ______

OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e

Romanidade Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p

97-110

______ Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralidade nas Vidas suetonianas 1

ed Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2009a

______ Paacuteginas de Suetocircnio A morte de Agripina matildee de Nero Boletim de

Estudos Claacutessicos v 52 p 37-42 2009b

______ Suetocircnio e drama Da Trageacutedia ao Mimo Humanitas v 57 p 159-194

2005

366

______ LEAtildeO D O Principado de Augusto In ______ OLIVEIRA F (Eds)

Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade

Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 13-46

BRAREN I Introduccedilatildeo In SEcircNECA Tratado sobre a Clemecircncia Trad de

Ingeborg Braren 1 ed Petroacutepolis Vozes 2013 p 9-36

______ O Mausoleacuteu de Augusto e a Apocolocintose de Secircneca Classica n 78

p 165-170 19941995

BRAUND S Introduction In SENECA De Clementia Trans by Susanna

Braund 1 ed Oxford Oxford University Press 2009 p 1-91

______ Seneca Multiplex The Phases (and Phrases) of Senecarsquos Life and Works

In BARTSCH S SCHIESARO A (Eds) The Cambridge Companion to

Seneca 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2015 p 15-28

______ JAMES P Quasi Homo Distortion and Contortion in Senecarsquos

Apocolocyntosis Arethusa v 31 n 3 p 285-308 1998

BRIAN H Warmington Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyBrian-H-Warmington Acesso em 20 fev

2020

BRIGHTON M The Sicarii in Josephusrsquos Judean War Rhetorical Analysis

and Historical Observations 1 ed Atlanta Society of Biblical Literature 2009

BRISSET J Les Ideacutees Politiques de Lucain 1 ed Paris Les Belles Lettres

1964

BRYAN J Neronian Philosophy In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 134-

150

BUCKLEY E Nero Insitiuus Constructing Neronian Identity in the Pseudo-

Senecan Octavia In GIBSON A G G (Ed) The Julio-Claudian Succession

Reality and Perception of the ldquoAugustan Modelrdquo 1 ed Leiden Brill 2013 p

133-154

BUENO T S L Formaccedilatildeo Moral e Accedilatildeo Poliacutetica em Secircneca Entre o Saacutebio e

o Princeps 2016 207 f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia

Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2016

CALDER W M A History of the Ancient World In Two Volumes The

Classical Review v 42 p 174-175 1928

CAMBRIDGE Statutes and Ordinances of the University of Cambridge

Cambridge Cambridge University Press 2008

367

CAMERON A Circus factions Blues and Greens at Rome and Byzantium 1

ed Oxford Clarendon Press 1976

CAMPBELL B The Severan dynasty In BOWMAN A K CAMERON A

GARNSEY P (Eds) The Cambridge Ancient History The Crisis of Empire

AD 193-337 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2005 v 12 p 1-27

CAMPOS R da C Entre Roma e Capri O afastamento de Tibeacuterio Ceacutesar como

ponto de inflexatildeo poliacutetica durante seu Principado (14-37 dC) 2013 308 f Tese

(Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013

CARDANO G Book of My Life Trans by Jean Stoner 1 ed New York E P

Dutton amp Co 2002

CARDOSO Z de A A Literatura Latina 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes

2011

CARRIEacute J M ROUSELLE A LrsquoEmpire Romain en Mutation des Seacutevegraveres agrave

Constantin 1 ed Paris Seuil 1999

CARY E Introduction In CASSIUS DIO The Roman History Trans by

Earnest Cary Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University

Press 1914-1927 p ix- xxxii

CARVALHO L H R de A Elementos de Permanecircncia do Gecircnero Silva da

Antiguidade Romana agrave Modernidade Espanhola Estaacutecio e Quevedo (seacutecs I-

XVII) 2018 160 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais Universidade

Federal do Espiacuterito Santo Vitoacuteria 2018

CARVALHO M M de OMENA L M de Morte e Gecircnero em Secircneca Um

diaacutelogo com os vestiacutegios da cultura material Claacutessica Revista Brasileira de

Estudos Claacutessicos v 27 n 1 p 223-244 2014

CARVALHO R N B de Metamorfoses em traduccedilatildeo 2010 158 f Relatoacuterio

Final (Poacutes-Doutorado) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas

Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo 2010

CASALI S The Bellum Civile as an Anti-Aeneid In ASSO P (Ed) Brillrsquos

Companion to Lucan 1 ed Leiden Brill 2011 p 81-110

CAZENAVE M Michel Cazenave Michelcazenavefr 2019 Biographie

Disponiacutevel em httpwwwmichelcazenavefrbiographie Acesso em 24 fev

2020

CHAMPLIN E Edward Champlin Princeton Classics 2020 Biography

Disponiacutevel em httpsclassicsprincetonedupeoplefacultyemeritae-iedward-

champlin Acesso em 24 fev 2020

368

______ Nero 1 ed Cambridge Harvard University Press 2005

______ Nero Apollo and the Poets Phoenix v 57 n 34 p 276-283 2003

______ Nero Reconsidered New England Review v 19 n 2 p 97-108 1998

______ The Life and Times of Calpurnius Piso Museum Helveticum v 46 n 2

p 101-124 1989

______ The Life and Times of Calpurnius Siculus The Journal of Roman

Studies v 68 p 95-110 1978

CHARLES-PICARD G Auguste et Neacuteron Le Secret de LrsquoEmpire 1 ed New

York Hachette 1962

CHARTIER R A Beira da Faleacutesia A Histoacuteria entre Incertezas e Inquietudes

Trad de Patriacutecia Chittoni Ramos 1 ed Porto Alegre Ed UFRGS 2002

______ A Histoacuteria Cultural Entre Praacuteticas e Representaccedilotildees Trad de Maria

Manuela Galhardo 1 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1990

CHEVITARESE A L Cristianismo e Impeacuterio Romano In MENDES N M

SILVA G V (Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva

Socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2006 p 161-173

CHILTON C W The Roman Law of Treason under the Early Principate The

Journal of Roman Studies v 45 p 73-81 1955

CHILVER G E F Cisalpine Gaul Social and Economic History from 49 BC to

the Death of Trajan 1 ed Oxford The Clarendon Press 1941

CITRONI M Poetry in Augustan Rome In KNOX P E (Ed) A Companion

to Ovid 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2009 p 8-25

CITRONI MARCHETTI S Plinio il Vecchio e la Tradizione del Moralismo

Romano 1 ed Pisa Giardini 1991

CIZEK E Lrsquoexpeacuterience Neacuteronienne Reacuteforme ou reacutevolution Revue des Eacutetudes

Anciennes v 84 n 1-4 p 105-115 1982a

______ Neacuteron 1 ed Paris Librairie Arthegraveme Fayard 1982b

CLELAND L et al Greek and Roman Dress From A to Z 1 ed Londres

Routledge 2007

CLOSS V G While Rome Burned Fire Leadership and Urban Disaster in the

Roman Cultural Imagination 2013 338 f Dissertation (Doctorate in Philosophy)

ndash Department of Classical Studies University of Pennsylvania 2013

369

COARELLI F Rome and Environs An Archaeological Guide 1 ed Los

Angeles University of California Press 2007

CONEGLIAN S M G G Dos Deveres de Marco Tuacutelio Ciacutecero e o processo

formativo do cidadatildeo romano 2012 106 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Educaccedilatildeo) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Estadual

de Maringaacute Maringaacute 2012

CONTE G B Il Proemio della Pharsalia Maia v 18 p 42-53 1966

______ Latin Literature A History Trans by Joseph B Solodow 2 ed

Baltimore Johns Hopkins University Press 1999

CORADINI H Fato Mito e Razatildeo na Composiccedilatildeo Dramaacutetica da Pretexta Otaacutevia

Letras Claacutessicas n 1 p 77-96 1997

CORASSIN M L Secircneca entre a Colaboraccedilatildeo e a Oposiccedilatildeo Letras Claacutessicas

n 3 p 275-285 1999

CORREcircA A G As perspectivas elaboradas por Diatildeo Caacutessio e Herodiano

sobre as praacuteticas poliacutetico-culturais do Imperador Heliogaacutebalo (Seacutec III dC)

2019 146 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Poacutes Graduaccedilatildeo em Histoacuteria

Faculdade de Ciecircncias Humanas e Sociais Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio

de Mesquita Filhordquo Franca 2019

COSTRINO A De Rhetoribus de Suetocircnio Classica ndash Revista Brasileira de

Estudos Claacutessicos v 27 n 2 p 257-270 2014

CROISILLE J M Caton et Seacutenegraveque Face au Pouvoir Lucain Pharsale 2234-

235 9186-217 Actes du II Colloque de la SIEN p 75-82 1982

______ Neacuteron a tueacute Agrippine 1 ed Bruxelles Complexe 1994

______ MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia V Neacuteron Histoire et

Leacutegende Actes du Ve Colloque International de la SIEN Bruxelles Latomus

1999

CROOK J A Law and Life of Rome 1 ed New York Cornell University

Press 1967

______ Nero The Man and the Legend The Classical Review v 15 p 364-

365 1965

______ Suetonius ab epistulis Proceedings of the Cambridge Philological

Society v 184 n 4 p 18-22 1956-1957

CRUM R H Petronius and the Emperors I Allusions in the Satyricon The

Classical Weekly v 45 n 11 p 161-168 1952

370

CURRY S A Nero Quadripes Animalizing the Emperor in Suetoniusrsquos Nero

Arethusa v 47 n 2 p 197-230 2014

DACK E V A studiis a bibliothecis Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte

v 12 n 2 p 177-184 1963

DANESI H FRANCcedilOIS M Picard Gilbert Eacutetienne Charles dit Gilbert Charles-

Picard Comiteacute des Travaux Historiques et Scientifiques 2015 Biographie

Disponiacutevel em httpcthsfransavantphpid=100348 Acesso em 24 fev 2020

DARWALL-SMITH R H Emperors and Architecture A Study of Flavian

Rome 1 ed Bruxelles Latomus 1996

DAVIS P J Structure and Meaning in the Eclogues of Calpurnius Siculus

Ramus v 16 n 1-2 p 32-54 1987

DE BLOIS L FUNKE P HAHN J The Impact of Imperial Rome on

Religions Ritual and Religious Life in The Roman Empire 1 ed Leiden

Brill 2006

DE BONI L A O estatuto juriacutedico das perseguiccedilotildees dos cristatildeos no Impeacuterio

Romano TransFormAccedilatildeo v 37 p 135-168 2014

DEGAN A As Laacutegrimas e o Historiador Uma Leitura de Guerra Judaica

Histoacuteria da Historiografia n 5 p 21-32 2010

______ Judaiacutesmo em Suspensatildeo O Judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo 2013 292 f

Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013

DrsquoENCARNACcedilAtildeO J A Epiacutegrafe Latina como Elemento Didaacutectico Cursus

Honorum Senatorial Boletim Estudos Claacutessicos v 48 p 99-103 2007

DE TOFFOLI I La transformation de lrsquoAntiquiteacute Greacuteco-Romaine dans les

romans de Claude Simon Association des lecteurs de Claude Simon v 14 p

167-179 2019

DEVELIN R Tacitus and Techniques of Insidious Suggestion Antichthon v

17 p 64-95 1983

DEVILLERS O Forms of Historical Persuasion in the Histories (11-49) In

PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell

2012 p 162-186

______ Observations sur la repreacutesentation de la politique spectaculaire de Neacuteron

Pour une comparaison entre Tacite Sueacutetone et Dion Cassius In POIGNAULT

R (Eacuted) Preacutesence de Sueacutetone Clermont-Ferrand Centre de Recherches A

Piganiol Preacutesence de lAntiquiteacute 2009 p 61-72

371

DEWAR M Laying it on with a Trowel The Proem to Lucan and Related Texts

The Classical Quarterly v 44 p 199-211 1994

DIAS M Q Imperador ou Tirano Comunicaccedilatildeo e Formas Sociopoliacuteticas

sob(re) o Principado de Domiciano (81-96) 2019 274 f Tese (Doutorado em

Histoacuteria) ndash Instituto de Ciecircncias Humanas e Sociais Universidade Federal de

Ouro Preto Mariana 2019

DIETRICH J S Dead Woman Walking Jocasta in the Thebaid In DOMINIK

W J NEWLANDS C E GERVAIS K (Eds) Brillrsquos Companion to Statius

1 ed Leiden Brill 2015 p 307-324

DILKE O A W Lucanrsquos Political Views and the Caesars In DUDLEY D R

(Ed) Neronians and Flavians Silver Latin 1 ed London Routledge 1972 p

62-82

DIMACCO M II Colosseo Funzione Simbolica Storica Urbana 1 ed Rome

Biblioteca di Storia Dellrsquoarte 1971 v 5

DINTER M T Anatomizing Civil War Studies in Lucanrsquos Epic Technique 1

ed Ann Arbor The University of Michigan Press 2013

DOMINIK W K Epigram and Occasional Poetry Social Life and Values in

Martialrsquos Epigrams and Statiusrsquo Silvae In ZISSOS A (Ed) A Cambridge to

the Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p

412-433

______ GARTHWAITE J ROCHE P A Visions of Gold Hopes for the New

Age in Calpurnius Siculusrsquo Eclogues In _____ (Eds) Writing Politics in

Imperial Rome 1 ed Leiden Brill 2009 p 307-322

DOMINIK W J Ecircnfase narrativa e a colocaccedilatildeo dos eventos histoacutericos nos Anais

de Taacutecito Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios n 55 p 166-182 2016

DOODY A Literature of the World Senecarsquos Natural Questions and Plinyrsquos

Natural History In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the

Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 288-301

______ Plinyrsquos Encyclopedia The Reception of the Natural History 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2010

DOREY T A Claudius und seine Ratgeber Altertum v 12 p 144-155 1966

DOUBLET G Inscriptions de Carie Bulletin de correspondance helleacutenique v

14 p 603-630 1890

DRINKWATER J F Nero Emperor and Court 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2019

372

DUBUISSON M Neacuteron by Eugen Cizek Latomus v 46 n 1 p 241-243

1987

DUFF J D Introduction In LUCAN The Civil War Trans by J D Duff

Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1962 p ix-

xv

DUNKLE J R The Greek Tyrant and Roman Political Invective of the Late

Republic Transactions and Proceedings of the American Philological

Association v 98 p 151-171 1967

DU TOIT L A Tacitus and the rebellion of Boudicca Acta Classica v 20 p

149-158 1977

DYSON S L PRIOR R E Horace Martial and Rome Two Poetic Outsiders

Read the Ancient City Arethusa v 28 n 23 p 245-263 1995

EDEN P T Introduction In SENECA The Apocolocyntosis Trans by P T

Eden 1 ed Cambridge Cambridge University Press 1984 p 1-23

EDMONDSON J Introduction Flavius Josephus and Flavian Rome In ______

MASON S RIVES J (Eds) Flavius Josephus and Flavian Rome 1 ed

Oxford Oxford University Press 2005 p 1-33

EDWARDS C Beware of Imitations Theatre and the Subversion of Imperial

Identity In ELSNER J MASTERS J (Eds) Reflections of Nero Culture

History amp Representation Chapel Hill The University of North Carolina Press

1994 p 83-97

______ Catharine Edwards Birkbeck University of London London 2018

Biography Disponiacutevel em httpwwwbbkacukhistoryour-staffacademic-

staffprofessor-catharine-edwards Acesso em 24 fev 2020

______ Introduction In SUETONIUS Lives of the Caesars Trans by C

Edwards 1 ed Oxford Oxford University Press 2000 p vii- xxxviii

______ Miriam Griffin Obituary The Guardian London 19 June 2018

Culture Disponiacutevel em

httpswwwtheguardiancomeducation2018jun19miriam-griffin-obituary

Acesso em 23 fev 2020

______ The Politics of Immorality in Ancient Rome 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 2002

EHRENKROOK J V Sculpting Idolatry in Flavian Rome (An)Iconic

Rhetoric in the writings of Flavius Josephus 1 ed Atlanta Society of Biblical

Literature 2011

EHRHARDT C Nero Lancaster pamphlets BMCR v 9 n 18 p 1-5 1997

373

EHRHARDT M L ldquoVir Virtutisrdquo A Construccedilatildeo da Imagem do Priacutencipe

Perfeito nos Escritos de Lucius Secircneca 2001 147 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal do

Paranaacute Curitiba 2001

ELSNER J MASTERS J (Ed) Introduction In ______ Reflections of Nero

Culture History amp Representation London Duckworth 1994 p 1-10

EPSTEIN J Hail Mommsen A German Historianrsquos Tribute to Rome

Claremont Review of Books 2018 Disponiacutevel em

httpsclaremontreviewofbookscomhail-mommsen Acesso em 23 fev 2020

ERASMO M Roman Tragedy Theatre to Theatricality 1 ed Austin

University of Texas Press 2004

ESTEVES A de A M Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em

suas obras Principia n 30 p 1-7 2015

______ Nero nos Annales de Taacutecito 2010 164 f Tese (Doutorado) ndash Programa

de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Rio de Janeiro 2010

EUGEN Cizek Les Belles Lettres Biographie Disponiacutevel em

httpswwwlesbelleslettrescomlivreeugen-cizek Acesso em 24 fev 2020

FAGAN G Bathing in Public in the Roman World 1 ed Ann Arbor The

University of Michigan Press 2002

FANTHAM E A controversial life In ASSO P (Ed) Brillrsquos Companion to

Lucan 1 ed Leiden Brill 2011 p 3-20

______ The Performing Prince In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 17-

28

______ Women in the Classical World Image and Text 1 ed Oxford Oxford

University Press 1994

FAVERSANI F Clavdia Octavia Praise and criticism of a woman In

EURYKLEIA WOMEN WHO MATTER GENDER amp DIGITAL

CLASSICS Universiteacute Paris 2018 Paris

______ Eacutekphrasis e as fronteiras da descriccedilatildeo em Taacutecito Letras Claacutessicas v 19

n 1 p 43-53 2015

______ Entre a Repuacuteblica e o Impeacuterio Multiplicidade de Fronteiras Mare

Nostrum n 4 p 146-152 2013

374

______ Estado e Sociedade no Alto Impeacuterio Romano Um Estudo das Obras

de Secircneca 1 ed Ouro Preto EDUFOP 2012

______ Tirano Louco e Incendiaacuterio BolsoNero Anaacutelise da Constituiccedilatildeo da

Assimilaccedilatildeo entre o Presidente da Repuacuteblica do Brasil e do Imperador Romano

como Allelopoiesis Histoacuteria da Historiografia v 13 n 33 p 375-395 2020

______ JOLY F Alexandre em Quinto Cuacutercio e o Principado Romano

Phoicircnix Rio de Janeiro no prelo 2021

______ Os Juacutelio-Claacuteudios In BRANDAtildeO J L OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria

de Roma antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade Hispacircnica 1 ed

Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 79-96

______ MANCINI W Laudationes et Iniuriae Debate sobre um Aspecto da

Construccedilatildeo da Imagem do Governante em Secircneca Nuntius Antiquus Belo

Horizonte n 6 p 29-40 2010

FEAR A T Laus Neronis The Seventh Eclogue of Calpurnius Siculus

Prometheus v 20 p 269-277 1994

FERREIRA P S M Contributo para o Estudo das Relaccedilotildees entre a

Historiografia e a Saacutetira Menipeia Cadmo n 18 p 181-191 2008

FERRI R Commentary In PSEUDO-SENECA Octavia A Play Attributed to

Seneca Trans by Rolando Ferri 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2003 p 119-406

______ Introduction In PSEUDO-SENECA Octavia A Play Attributed to

Seneca Trans by Rolando Ferri 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2003 p 1-82

______ Octavia In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to

Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p 521-530

FINI M Massimo Fini massimofiniit 2020 Biografia Disponiacutevel em

httpwwwmassimofiniit Acesso em 22 fev 2020

______ Nero ndash O Imperador Maldito Dois Mil Anos de Mentiras Trad de

Meacutercia Justum e Alessandro Giannini 1 ed Satildeo Paulo Scritta 1993

FISCHLER S Social Stereotypes and Historical Analysis The case of the

Imperial Women at Rome In ARCHER L FISCHLER S WYKE M (Eds)

Women in Ancient Societies 1 ed New York Routledge 1994 p 115-133

FRANZERO C M Vida e Eacutepoca de Nero Trad de Geir Campos e Moacyr

Werneck de Castro 1 ed Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1958

375

FRAZER JR R M Nero the Artist Criminal The Classical Journal v 62 n 1

p 17-20 1966

______ Nero the singing animal Arethusa v 4 n 2 p 215-218 1971

FREUDENBURG K Senecarsquos Apocolocyntosis Censors in the Afterworld In

BARTSCH S SHIESARO A (Eds) The Cambridge Companion to Seneca

1 ed Cambridge Cambridge University Press 2015 p 93-108

FRIGHETTO R A Antiguidade Tardia Roma e as monarquias Romano-

Baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (Seacuteculos II-VIII) 1 ed Curitiba Juruaacute

2012

FUNARI P P A GARRAFFONI R S Historiografia Saluacutestio Tito Liacutevio e

Taacutecito Campinas Editora Unicamp 2016

GAIA D V As financcedilas privadas na Roma de 64 dC O incecircndio da Vrbs e a

desvalorizaccedilatildeo da moeda Phoicircnix v 16 n 1 p 84-96 2010

______ Os Antoninos O apogeu e o fim da pax romana In BRANDAtildeO J L

OLIVEIRA F (Eds) Histoacuteria de Roma Antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e

Romanidade Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p

175-216

GALIMBERTI A The Emperor Domitian The Emperor Domitian In ZISSOS

A (Ed) A Cambridge to the Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden

Wiley-Blackwell 2016 p 92-108

GALLIVAN P A Historical Comments on Suetonius ldquoNerordquo Latomus v 33

n 2 p 385-396 1974

______ WILKINS P Familial Structures in Roman Italy A regional approach

In RAWSON B WEAVER P (Eds) The Roman Family in Italy 1 ed

Oxford Oxford University Press 1999 p 239-255

GARSON R W The Pseudo-Senecan Octavia A Plea for Nero Latomus v

34 n 3 p 754-756 1975

GEER R M Nero the Singing Emperor of Rome by Arthur Weigall The

Classical Journal v 27 n 1 p 51-52 1931

______ Notes on the Early Life of Nero Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 62 p 57-67 1931

GIANCOTTI F Il Posto della Biografia nella Problematica Senechiana IV l

Sfondo storico e data del De Clementia RAL v 9 p 329-344 1954

GIBBON E Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano Trad de Joseacute Paulo Paes 1

ed Satildeo Paulo Companhia das Letras 1989

376

GIBSON B Commentary In STATIUS Siluae 5 Trans by B Gibson 1 ed

Oxford Oxford University Press 2006 p 71-433

______ General Introduction In STATIUS Siluae 5 Trans by B Gibson 1 ed

Oxford Oxford University Press 2006 p xvii-lii

GILLESPIE C Boudica Warrior Woman of Roman Britain 1 ed Oxford

Oxford University Press 2018

GINSBERG L D A Tale of Two Waters Agrippinarsquos Death in Flavian Poetry

In AUGOUSTAKIS A LITTLEWOOD R J (Eds) Campania in the Flavian

Poetic Imagination 1 ed Oxford Oxford University Press 2019 p 25-41

GINSBURG J Representing Agrippina Constructions of Female Power in the

Early Roman Empire 1 ed New York Oxford University Press 2006

GOacuteES G C A Famiacutelia como construccedilatildeo de Memoacuteria O uso da imagem da

Famiacutelia em De Vita Caesarum de Suetocircnio e a construccedilatildeo da Memoacuteria de Nero

(seacuteculos I e II dC) 2015 167 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Programa

de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes Goiacircnia 2015

GOacuteMEZ L P La Tragedia In CODONtildeER C (Ed) Historia de la Literatura

Latina 1 ed Madrid Caacutetedra 1997 p 567-578

GONCcedilALVES A T M A noccedilatildeo de propaganda e sua aplicaccedilatildeo nos estudos

claacutessicos O caso dos imperadores romanos Septiacutemio Severo e Caracala 1 ed

Jundiaiacute Paco Editorial 2013

______ Os Severos e a Anarquia Militar In SILVA G V MENDES N M

(Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e

cultural 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2006 p 175-192

______ Uma Anaacutelise da Obra De Clementia de Secircneca A Noccedilatildeo de Virtude

Phoinix Rio de Janeiro v 5 p 51-74 1999

GOODENOUGH E R The Political Philosophy of Hellenistic Kingship 1 ed

New Haven Yale University Press 1928

GOODMAN M A Classe Dirigente da Judeacuteia As Origens da Revolta Judaica

contra Roma (66-77 dC) Trad de Alexander e Elizabeth Lissovsky 1 ed Rio

de Janeiro Imago 1994

GOWING A M Cassius Dio on the Reign of Nero ANRW II v 34 n 3 p

2558-2590 1997

______ Tacitus and the Client Kings Transactions of the American

Philological Association v 120 p 315-331 1990

377

GRACcedilA I Marcial e os Banhos em Roma In PIMENTEL C S LEAtildeO D F

BRANDAtildeO J L (Coords) Toto notus in orbe Martialis Celebraccedilatildeo de Marcial

1900 Anos apoacutes a sua Morte 1 ed Coimbra Instituto de Estudos

ClaacutessicosCentro de Estudos Claacutessicos 2004 p 117-136

GRAMMATICO G Silencio y furor en la Apokolokynthosis de Seacuteneca Letras

Claacutessicas n 3 p 109-127 1999

GRANT M Introduction In TACITUS The Annals of Imperial Rome 1 ed

Harmondsworth Penguin Books 1956 p 7-26

______ Nero Emperor in Revolt 1 ed New York American Heritage Press

1970

GRASSI C Svetonio (Antologia della letteratura latina) 1 ed Brescia

Paideia 1972

GRIFFIN M T Nero The End of a Dynasty 1 ed London Routledge 2001

______ Nerva to Hadrian In BOWMAN A K GARNSEY P RATHBONE

D (Eds) The Cambridge Ancient History The High Empire AD 70-192 1

ed Cambridge Cambridge University Press 2000 v 11 p 84-131

______ Seneca A Philosopher in Politics 1 ed Oxford Oxford University

Press 1992

______ Tacitus as a historian In WOODMAN A J (Ed) The Cambridge

Companion to Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2009 p

168-183

GRIMAL P Histoacuteria de Roma Trad de Maria Leonor Loureiro 1 ed Lisboa

Ediccedilotildees Texto amp Grafia 2008

______ Lrsquoeacuteloge de Neacuteron au Deacutebut de la Pharsale Est-il Ironique REL v 38 p

296-305 1960

GRISET E Lucanea III Lrsquoanticesarismo IV Lrsquoelogio Neroniano V

Lrsquouniversalismo Rivista di Studi Classici v 3 p 56-61 p 134-138 p 203-238

1955

GRUEN E S Polybius and Josephus on Rome In MOR M PASTOR J

STERN P Flavius Josephus Interpretation and History 1 ed Leiden Brill

2011 p 149-162

GUARINELLO N L Nero o Estoicismo e a Historiografia Romana Boletim do

CPA n 1 p 53-61 1996

______ Uma Morfologia da Histoacuteria As Formas da Histoacuteria Antiga Politeia v

3 n 1 p 41-61 2003

378

GUNDERSON E The Flavian Amphitheatre All the World as Stage In

BOYLE A J DOMINIK W J (Eds) Flavian Rome Culture Image Text 1

ed Leiden Brill 2003 p 637-658

GUNDERSON E The Neronian ldquoSymptomrdquo In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion

to the Age of Nero 1 ed New York Cambridge University Press 2017 p 333-

353

GYLES M F Nero Qualis Artifex The Classical Journal v 57 n 5 p 193-

200 1962

HABINEK T Imago suae Vitae Senecarsquos Life and Career In DAMSCHEN G

HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed

Leiden Brill 2014 p 3-32

HADAS-LEBEL M Flaacutevio Josefo O Judeu de Roma 1 ed Rio de Janeiro

Imago 1991

HAMMAN A-G A vida cotidiana dos primeiros cristatildeos (95-197) 1 ed Satildeo

Paulo Paulus 1997

HANKEY J A Passion for Egypt A Biography of Arthur Weigall 1 ed

London I B Tauris 2001

HARDIE P Lucanrsquos Bellum Civile In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 225-

240

HARRILL J A Coming of Age and Putting on Christ The Toga Virilis

Ceremony Its Paraenesis and Pauls Interpretation of Baptism in Galatians

Novum Testamentum v 44 n 3 p 252-277 2002

HARRINGTON D Cassius Dio as a Military Historian Acta Classica v 20 p

159-165 1977

HARRISON G W M Seneca on the Fall of Troy In ______ (Ed) Brillrsquos

Companion to Roman Tragedy 1 ed Leiden Brill 2015 p 118-150

HARTOG F A Histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad de Jacyntho Lins

Brandatildeo 1 ed Belo Horizonte Ed UFMG 2001

______ Regimes de Historicidade Presentismo e Experiecircncias do Tempo Trad

de Andreacutea S de Menezes Bruna Beffart Camila R Moraes Maria Cristina de A

Silva e Maria Helena Martins 1 ed Belo Horizonte Autecircntica 2014

HAUSTEINER E M HUHNHOLZ S WALTER M Imperial Interpretations

The Imperium Romanum as Category of Political Reflection Mediterraneo

Antico v 13 n 1-2 p 11-16 2010

379

HELMRATH J Transformations of Antiquity A Berlin Concept Aegyptiaca v

4 p 139-151 2019

HENDERSON B W The Life and Principate of the Emperor Nero 1 ed

London Methuen amp Co 1903

HENDERSON J Lucan The Word at War Ramus v 16 n 1 p 122-164

1987

HERINGTON C J Octavia Praetexta A Survey The Classical Quarterly v

11 n 1 p 18-30 1961

HIGHET G Petronius the Moralist Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 72 p 176-194 1941

HINE H M Rome the Cosmos and the Emperor in Senecarsquos Natural Questions

The Journal of Roman Studies v 96 p 42-72 2006

______ Seneca and his World In SENECA Natural Questions Trans by

Harry M Hine Chicago University of Chicago Press 2010 p vii-xxvi

HOLLAND R Nero The Man Behind the Myth 1 ed Stroud Sutton

Publishing 2000

______ Richard Holland Richardhollandwritercouk 2002 Biography

Disponiacutevel em wwwrichardhollandwritercouk Acesso em 22 fev 2020

HOLMES N Nero and Caesar Lucan 133-66 Classical Philology v 94 n 1

p 75-81 1999

HOLZTRATTNER F Neronis potens Die Gestalt der Poppaea Sabina in den

Nerobuumlchern des Tacitus Mit einem Anhang zu Claudia Acte 1 ed Horn F

Berger u Soumlhne 1995

HURLEY D W Biographies of Nero In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A

Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 29-

44

______ Introduction In SUETONIUS Divus Claudius Trans by D W Hurley

1 ed Cambridge Cambridge University Press 2001 p 1-28

HURT C Nero Fiddles while Trump Burns The Washington Times New York

18 September 2018 Politics Disponiacutevel em

httpswwwwashingtontimescomnews2018nov18nero-fiddles-while-trump-

burns Acesso em 02 set 2019

HUTTON M PETERSON W Introduction to Agricola In TACITUS

Agricola Germania Dialogue on Oratory Trans by M Hutton and W

380

Peterson Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press

1914 p 149-160

ISAGER J Pliny on Art and Society The Elder Plinys Chapters on The History

Of Art 1 ed London Routledge 2006

JACOB C Athegravenes-Alexandrie In SCHAER R (Ed) Tous les Savoirs du

Monde Encyclopeacutedies et Bibliothegraveques de Sumer au XXIe Siegravecle Paris

Flammarion 1996

JENKINSON J R Sarcasm in Lucan 133-66 CR v 24 p 8-9 1974

JENNISON G Polar Bears at Rome CR v 36 p 73 1922

JOHANSSON B S Boys will be Boys The Portrayal of Youthful Emperors in

Roman Imperial Histories and Biographies 2016 199 f Thesis (Mastership in

Philosophy) ndash Department of Historical and Philosophical Inquiry University of

Queensland 2016

JOLY F D Espaccedilo Poder e Escravidatildeo no De Re Rustica de Columella Rev

Bras Hist v 23 n 45 p 281-299 2003

_______ Suetocircnio e a Tradiccedilatildeo Historiograacutefica Senatorial Uma Leitura da Vida

de Nero Histoacuteria v 24 n 2 p 111-127 2005

_______ Taacutecito e a metaacutefora da escravidatildeo Um Estudo de Cultura Poliacutetica

Romana 1 ed Satildeo Paulo EDUSP 2004

______ Teleologia e Metodologia Histoacutericas em Taacutecito Histoacuteria Revista v 6

n 2 p 25-50 2001

JONES B W Agrippina and Vespasian Latomus v 43 n 3 p 581-583 1984

_______ The Emperor Domitian 1 ed London Routledge 1992

JONES C Nero Speaking Harvard Studies in Classical Philology v 100 p

453-462 2000

JORDAN M A Spirit of True Learning The Jubilee History of the University

of New England 1 ed New South Wales UNSW Press Book 2004

JOYCE J W Glossary In LUCAN Pharsalia Trans by Jane Wilson Joyce 1

ed Ithaca Cornell University Press 1993 p 287-330

_______ Introduction In LUCAN Pharsalia Trans by Jane Wilson Joyce

Ithaca Cornell University Press 1993 p ix-xxvi

JUNIOR B I R Para Aleacutem da Heteronormatividade Uma Anaacutelise dos

Eunucos Representados por Estaacutecio Marcial e Suetocircnio (Roma 80-121 dC)

381

2016 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Histoacuteria Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Assis 2016

JUacuteNIOR W M de S A Trageacutedia ldquoAs Bacantesrdquo de Euriacutepides sob a oacutetica dos

Estudos de Gecircnero Penteu e as Fronteiras do Masculino e do Feminino Revista

Cantareira v 24 p 5-17 2016

KARAKASIS E T Calpurnius Siculus A Pastoral Poet in Neronian Rome 1

ed Berlim De Gruyter 2016

KEENE C H The Bucolics of Calpurnius and Nemesianus Hermathena v 5

n 11 p 362-388 1885

KEMEZIS A M Greek Narratives of the Roman Empire under the

Severans Cassius Dio Philostratus and Herodian 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2014

KENNEDY G A A new History of Classical Rhetoric 1 ed New Jersey

Princeton University Press 1994

KENNEY E J The First Satire of Juvenal Proceedings of the Cambridge

Philological Society v 8 p 29-40 1962

KERESZTES P Nero the Christians and the Jews in Tacitus and Clement of

Rome Latomus v 43 n 2 p 404-413 1984

KETTERIJ V D G Gertrude van de Ketterij University of Applied Sciences

2020 Biographie Disponiacutevel em httpshznlonderzoekersgertrude-van-de-

ketterij Acesso em 26 fev 2020

______ The Development of the Image of Nero as Murderer Arsonist and

Persecutor of Christians 2009 60 f Thesis (Mastership in Ancient History) ndash

Department of History University of Leiden 2009

KRAGELUND P Historical Drama in Ancient Rome Republican flourishing

and Imperial decline Symbolae Osloenses v 73 p 5-51 2002

______ Roman Historical Drama The Octavia in Antiquity and Beyond 1 ed

Oxford Oxford University Press 2016

LAEHN T R Plinys Defense of Empire 237 f 2010 Dissertation (Doctorate

in Philosophy) ndash Department of Political Science Louisiana State University

Baton Rouge 2010

LAMOUR D Flaacutevio Josefo 1 ed Satildeo Paulo Estaccedilatildeo Liberdade 2006

382

LANGE C H Mock the Triumph Cassius Dio Triumph and Triumph-Like

Celebrations In ______ MADSEN J M (Eds) Cassius Dio Greek

Intellectual and Roman Politician 1 ed Leiden Brill 2016 p 92-116

LAURENS P Martial et Lrsquoeacutepigramme Grecque du Ier

Siegravecle ap J-C REL v

43 p 315-341 1965

LEACH E W Corydon Revisited An Interpretation of the Political Eclogues of

Calpurnius Siculus Ramus v 2 n 1 p 53-97 1973

LEFEBVRE L Laurie Lefebvre Universiteacute de Lille 2020 Biographie

Disponiacutevel em httpsuniv-lilleLaurieLefebvreCurriculumVitae Acesso em 26

fev 2020

______ Le Mythe Neacuteron La Fabrique drsquoun Monstre dans la Litteacuterature Antique

(Ier

-Ve s) 1 ed Villeneuve drsquoAscq Presses Universitaires du Septentrion 2017

LE GLAY M et al A History of Rome 1 ed Cambridge Blackwell 2009

LE GOFF J Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas UNICAMP 2003

LEIGH M Nero the Performer In FREUDENBURG K LITTLEWOOD C

(Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1 ed New York

Cambridge University Press 2017 p 21-33

LEITE L R A Farsaacutelia de Lucano como obra historiograacutefica ArtCultura v

21 n 38 p 59-72 2019

______ Marcial e o Livro 1 ed Vitoacuteria EDUFES 2013

______ O Patronato em Marcial 2003 83 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras

Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade

Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

LEME A L O pensamento poliacutetico de Suetocircnio em A Vida Dos Doze Ceacutesares

(Seacutec II dC) A criacutetica ao poder absoluto do priacutencipe romano 2015 264 f Tese

(Doutorado) ndash Universidade Federal do Paranaacute Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Histoacuteria Curitiba 2015

______ Sobre as caracteriacutesticas do gecircnero biograacutefico e sua possibilidade de

interpretaccedilatildeo na Roma do seacuteculo II dC A Vida dos Doze Ceacutesares de Suetocircnio

Anais da X Jornada de Estudos Antigos e Medievais Maringaacute p 1-10 2011

LENDERING J Theodor Mommsen Liviusorg 23 April 2020 Biography

Disponiacutevel em httpswwwliviusorgarticlespersonmommsen Acesso em 20

fev 2020

LERER S Tradition A Feeling for the Literary Past 1 ed Oxford Oxford

University Press 2016

383

LEVI M A LrsquoImpero Romano 1 ed Milano Instituto Editorial Cisalpino

1949a

______ Nerone e i Suoi Tempi 1 ed Milano Biblioteca Universale Rizzoli

1949b

LEVICK B Claudius 1 ed London Yale University Press 1990

LIBERMAN G Introduction In PSEUDO-SEacuteNEgraveQUE Octavie 1 ed Paris

Les Belles Lettres 1998 p vii-xxv

LINDSAY H Adoption in the Roman World 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2009

______ Suetonius as ab epistulis to Hadrian and the Early History of the 157

Imperial Correspondence Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 43 n 4 p

454-468 1994

LOBATO M No Tempo de Nero 1 ed Rio de Janeiro Globinho 2013

LUCARINI C M La Praetexta Octavia e Tacito Giornale Italiano di

Filologia n 57 p 263ndash284 2005

LUCE T J Reading and Response in the Dialogus In ______ WOODMAN

A J (Eds) Tacitus and the Tacitean Tradition 1 ed New Jersey Princeton

University Press 1993 p 11-38

MADSEN J M Cassius Dio 1 ed London Bloomsbury Academic 2020

MAIER H O Nero in Jewish and Christian Tradition from the First Century to

the Reformation In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the

Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 385-404

MALAMUDE M A Happy Birthday Dead Lucan (P)Raising the Dead in

Silvae 27 Ramus v 24 n 1 p 1-30 2014

MALASPINA E De Clementia In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos

Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p

175-180

MALIK S The Nero-Antichrist Founding and Fashioning a Paradigm 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2020

MALITZ J Nero Trans by Allison Brown 1 ed Oxford Blackwell Publishing

2005

MALLAN C Parrhecircsia in Cassius Dio In LANGE C H MADSEN J M

(Eds) Cassius Dio Greek Intellectual and Roman Politician 1 ed Leiden Brill

2016 p 258-275

384

MANUWALD B Cassius Dio und Augustus Philologische Untersuchungen zu

den Buumlchern 45-56 des dionischen Geschichtswerkes 1 ed Wiesbaden Franz

Steiner 1979

MARCHETTI A M Sapientiae Facies Eacutetude sur les Images de Seacutenegraveque 1 ed

Paris Les Belles Lettres 1989

MARCHIORI L A B S Estudo introdutoacuterio In ______ Heacutercules furioso de

Secircneca Estudo introdutoacuterio traduccedilatildeo e notas 2008 165 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado

em Letras Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008 p 8-55

MAREC M E PFLAUM M H-G Nouvelle inscription sur la Carriegravere de

Sueacutetone lrsquoHistorien Comptes-rendus des seacuteances de lrsquoAcadeacutemie des

Inscriptions et Belles-Lettres v 96 n 1 p 76-85 1952

MARQUES J B Estruturas narrativas nos Anais de Taacutecito Histoacuteria da

Historiografia n 5 p 44-57 2010

______ Puacuteblio (Gaio) Corneacutelio Taacutecito In PARADA M (Org) Os

Historiadores Claacutessicos da Histoacuteria 1 ed Rio de Janeiro PUC-RioVozes

2012 v 1 p 88-106

MARSHALL C W The Works of Seneca the Younger and Their Dates In

DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos Companion to Seneca Philosopher

and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p 33-44

MARTI B M Senecarsquos Apocolocyntosis and Octavia A Diptych The

American Journal of Philology v 73 n 1 p 24-36 1952

______ The Meaning of the Pharsalia AJP v 66 p 352-376 1945

MARTIN B Calpurnius Siculus New Aurea Aetas Acta Classica v 39 p 17-

38 1996

MARTIN D Michael Grant Who Wrote Histories of the Ancient World Is Dead

at 89 The New York Times New York 25 October 2004 Culture Disponiacutevel

em httpswwwnytimescom20041025obituariesmichael-grant-who-wrote-

histories-of-the-ancient-world-is-deadhtml Acesso em 23 fev 2020

______ Similarities between the Silvae of Statius and the Epigrams of Martial

CJ v 34 n 8 p 461-470 1939

MARTIN J-P Neacuteron et le pouvoir des astres Pallas v 30 p 63-74 1983

MARTIN R Les reacutecits taciteacuteens des crimes de Neacuteron sont-ils fiables In

CROISILLE J M MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia V Bruxelles

Latomus 1999 p 75-85

385

______ Tacitus 1 ed London Bristol Classical Press 1989

MARTINDALE C The Politician Lucan Greece amp Rome v 31 n 1 p 64-79

1984

MARTINS P Imagem e poder Consideraccedilotildees sobre a representaccedilatildeo de Otaacutevio

Augusto 1 ed Satildeo Paulo EDUSP 2011

MAacuteRVAacuteNYO K Astrologia et crimen Four cases with astrological relevance

during Tiberiusrsquo rule In BAJNOK D NEacuteMETH G (Eds) Proceedings of the

first Croatian-Hungarian PHD Conference on Ancient History 1 ed

Budapest Debrecen 2014 p 63-78

MASON S Josephusrsquos Judean War In CHAPMAN H H RODGERS Z

(Eds) A Companion to Josephus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 13-

35

MASTERS J Poetry and Civil War in Lucanrsquos Bellum Civile 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 1992

MAXWELL-STUART P G Studies in the Career of Pliny the Elder and the

Composition of his Naturalis Historia 422 f 1995 Dissertation (Doctorate in

Philosophy) ndash University of St Andrews St Andrews 1995

MAYER R Latin Pastoral after Virgil In FANTUZZI M PAPANGHELIS T

(Eds) Brillrsquos Companion to Greek and Latin Pastoral 1 ed Leiden Brill

2006 p 453-464

MELLOR R Tacitusrsquo Annals 1 ed Oxford Oxford University Press 2010

______ The Roman historians 1 ed London Routledge 2002

MENDES N M O Sistema Poliacutetico do Principado In SILVA G V MENDES

N M (Orgs) Repensando o Impeacuterio Romano Perspectiva Socioeconocircmica

Poliacutetica e Cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 21-51

MENDICK R THOMPSON J Emperor Nero the Nice Guy Who only Wanted

to Entertain Independent London 24 September 2000 Culture Disponiacutevel em

httpswwwindependentcoukarts-entertainmentbooksnewsemperor-nero-the-

nice-guy-who-only-wanted-to-entertain-701698html Acesso em 22 fev 2020

MIKHAIL Ivanovich Rostovtzeff Britannica Biography Disponiacutevel em

httpswwwbritannicacombiographyMikhail-Ivanovich-Rostovtzeff Acesso

em 20 fev 2020

MILLAR F A Study of Cassius Dio 1 ed Oxford Clarendon Press 1964

386

______ Last Year in Jerusalem Monuments of the Jewish War in Rome In

EDMONDSON J MASON S RIVES J (Eds) Flavius Josephus and Flavian

Rome 1 ed Oxford Oxford University Press 2005 p 101-128

______ The Emperor in the Roman World (31 BC-AD 337) 1 ed London

Duckworth 1977

MILNOR K Women and Domesticity In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion

to Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 458-475

MOMIGLIANO A De Paganos Judiacuteos y Cristianos 1 ed Meacutexico Fondo de

Cultura Econoacutemica 1984

______ Ensayos de Historiografiacutea Antigua y Moderna 1 ed Meacutexico Fondo

de Cultura Econoacutemica 1987

______ Literary Chronology of the Neronian Age CQ v 38 p 96-100 1944

______ The development of Greek Biography 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 1993

MOMMSEN T A History of Rome under the Emperors Trans by Clare

Krojzl 3 ed London Routledge 2005

MOORE C H Introduction In TACITUS The Histories Trans by Clifford H

Moore Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press

1925 v 1 p vii-xviii

MORDINE M J Domus Neroniana The Imperial Household in the Age of Nero

In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the Neronian Age 1

ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 102-117

MORFORD M P Nerorsquos Patronage and Participation in Literature and the Arts

ANRW v 32 n 3 p 2003-2031 1985

______ Tacitusrsquo Historical Methods in the Neronian Books of the Annals

ANRW II v 33 n 2 p 1582-1627 1990

______ The distortion of the Domus Aurea tradition Eranos v 66 p 158-179

1968

MOURA A R de A Otaacutevia Uma Trageacutedia Romana Letras Curitiba n 49 p

183-200 1998

MOURATIDIS J Nero The Artist the Athlete and His Downfall Journal of

Sport History v 12 n 1 p 5-20 1985

387

MOZLEY J H Introduction In STATIUS Siluae Trans by J H Mozley Loeb

Classical Library 1 ed Cambridge Harvard University Press 1967 v 1 p vii-

xxxii

MRATSCHEK S Nero the Imperial Misfit Philhellenism in a Rich Manrsquos

World In BUCKLEY E DINTER M (Eds) A Companion to the Neronian

Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2013 p 45-64

MURGATROYD P Tacitus on the Deaths of Britannicus and Claudius Eranos

v 103 p 97-100 2006

______ Tacitus on the Death of Octavia Greece amp Rome v 55 n 2 p 263-

273 2008

MURPHY T Pliny the Elderrsquos Natural History The Empire in the

Encyclopedia 1 ed Oxford Oxford University Press 2004

MUSTI D LEVI Mario Attilio Treccani 1993 Biographie Disponiacutevel em

httpwwwtreccaniitenciclopediamario-attilio-levi_28Enciclopedia-

Italiana29 Acesso em 24 fev 2020

NAGLE B R Introduction In STATIUS The Silvae of Statius Trans by Betty

Rose Nagle 1 ed Indianapolis Indiana University 2004 p 1-33

NAUTA R Poetry for Patrons Literary Communication in the Age of

Domitian 1 ed Leiden Brill 2002

NEWBOLD R F Cassius Dio and the Games LrsquoAntiquiteacute Classique v 44 n

2 p 589-604 1985

NEWLANDS C Statiusrsquo Silvae and the Poetics of Empire 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 2002

NOCK A D The proem of Lucan The Classical Review v 40 n 1 p 17-18

1926

OAKLEY S P Style and language In WOODMAN A J (Ed) The

Cambridge Companion to Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2009 p 195-211

OLIVEIRA F de Os Imperadores Loucos Ensaio de Mito-anaacutelise Histoacuterica

Recensotildees 1996 Disponiacutevel em

httpswwwucptfluceclassicospublicacoeshumanitas48recensoespdf

Acesso em 15 jul 2017

OLIVEIRA L de Secircneca e a Clementia no poder HYPNOE v 5 n 6 p 109-

117 2000

388

OrsquoGORMAN E Irony and Misreading in the Annals of Tacitus 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2003

OMENA L M de A Centralizaccedilatildeo do Poder nas Obras De Clementia e Divi

Clavdii Apocolocyntosis de Secircneca 2002 110 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Estadual de

Campinas Campinas 2002

OSGOOD J How to be a bad Emperor An ancient guide to truly terrible

Leaders 1 ed Princeton Princeton University Press 2020

______ Georgetown360 2019 Biography Disponiacutevel em

httpsgufaculty360georgetowneduscontact6000014RXQYAA4josiah-

osgood Acesso em 24 fev 2020

______ Nero and the Senate In BARTSCH S FREUDENBURG K

LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion to the Age of Nero 1

ed New York Cambridge University Press 2017 p 34-47

______ The Vox and Verba of an Emperor Claudius Seneca and Le Prince Ideal

The Classical Journal v 102 n 4 p 329-353 2007

PAGAacuteN V E Introduction In ______ (Ed) A Companion to Tacitus 1 ed

Malden Wiley-Blackwell 2012 p 1-12

PESAVENTO S J (Org) Histoacuteria amp Histoacuteria cultural 1 ed Belo Horizonte

Autecircntica 2004

PITA L F D A praetexta Octavia e o Pensamento de Secircneca 2006 86 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) ndash Faculdade de Letras Universidade

Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2006

PLESSIS F La poesie latine 1 ed Paris Klincksieck 1909

POE J P Octavia Praetexta and its Senecan Model The American Journal of

Philology v 110 n 3 p 434-459 1989

POSTGATE J P The Comet of Calpurnius Siculus The Classical Review v

16 n 1 p 38-40 1902

POTTER D S Tacitusrsquo sources In PAGAacuteN V E (Ed) A Companion to

Tacitus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2012 p 125-140

PRADO J B T Eacute ver para (fazer) crer In MARTINS P Imagem e poder

Consideraccedilotildees sobre a representaccedilatildeo de Otaacutevio Augusto 1 ed Satildeo Paulo

EDUSP 2011 p 13-28

389

______ TEIXEIRA F D A Construccedilatildeo do Discurso Histoacuterico na Trageacutedia

Pretexta Octauia Terra Roxa e Outras Terras Revista de Estudos Literaacuterios

v 6 p 44-63 2005

PRATES J P Nero Brasileiro Bolsonaro Joga Gasolina em vez de Apagar

Incecircndios Carta Capital Satildeo Paulo 29 de agosto de 2019 Poliacutetica Disponiacutevel

em httpswwwcartacapitalcombropiniaonero-brasileiro-bolsonaro-joga-

gasolina-em-vez-de-apagar-incendios Acesso em 30 ago 2019

PUCCI G Nerone Superstar In REA R TOMEI M A (Cur) Nerone

Catalogo della Mostra Roma Electa 2011 p 62-75

PURCELL N Rome and Italy In BOWMAN A K GARNSEY P

RATHBONE D (Eds) The Cambridge Ancient History The High Empire

AD 70-192 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2000 v 11 p 405-

443

RAJAK T Josephus the Historian and his Society 1 ed London Duckworth

2002

RAMAGE E S Denigration of Predecessor under Claudius Galba and

Vespasian Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 32 n 2 p 201-214 1983

RATHBONE D Foreword In SCULLARD H H From the Gracchi to Nero

A History of Rome from 133 BC to AD 68 1 ed London Routledge 2010 p

xxiv-xxviii

REA R TOMEI M A (Cur) Nerone Catalogo della Mostra 1 ed Roma

Electa 2011

REBELLO I da S O Engajamento Poliacutetico-social na Poesia Bucoacutelica de

Virgiacutelio Calpuacuternio e Nemesiano SOLETRAS v 4 n 7 p 70-85 2004

REBOUL O Introduccedilatildeo agrave Retoacuterica Trad de Ivone Castilho Benedetti 2 ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2004

REINHOLD M Historian of the Classic World A Critique of Rostovtzeff

Science amp Society v 10 n 4 p 361-391 1946

RELIHAN J C On the Origin of Menippean Satire as the Name of a Literary

Genre Classical Philology v 79 n 3 p 226-229 1984

REZENDE A M de Apresentaccedilatildeo In TAacuteCITO Diaacutelogo dos Oradores Trad

de Antocircnio Martinez de Rezende e Juacutelia Batista Castilho de Avellar 1 ed Belo

Horizonte Autecircntica 2014 p 13-18

______ Rompendo o Silecircncio A Construccedilatildeo do Discurso Oratoacuterio em

Quintiliano 1 ed Belo Horizonte Crisaacutelida 2010

390

RICH J W Cassius Dio The Augustan Settlement (Roman History 53-55) 1

ed Warminster Aris and Philips 1990

RIMELL V Martialrsquos Rome Empire and the Ideology of Epigram 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 2009

RIPOLL F Aspects et Fonction de Neacuteron dans la Propagande Impeacuteriale

Flavienne In CROISILLE J M MARTIN R PERRIN Y (Eds) Neronia

V Bruxelles Latomus 1999 p 137-151

RIVES J B Introduction In SUETONIUS The Twelve Caesars Transby

Robert Graves 1 ed London Penguin Books 2007 p 12-21

ROBERTS M The Revolt of Boudicca (Tacitus Annals 1429-39) and the

Assertion of Libertas in Neronian Rome The American Journal of Philology v

109 n 1 p 118-132 1988

ROCHA PEREIRA M H Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Cultura

Romana 1 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1984

ROCHE P Nero by Edward Champlin Bryn Mawr Classical Review p 1-4

2006

RODRIGUES N S Os Flaacutevios In BRANDAtildeO J L OLIVEIRA F (Eds)

Histoacuteria de Roma antiga Impeacuterio Romano do Ocidente e Romanidade

Hispacircnica 1 ed Coimbra Universidade de Coimbra 2020 v 2 p 111-142

ROLFE J C Suetonius and his Biographies Proceedings of the American

Philosophical Society v 52 n 209 p 206-225 1913

ROLLAND Auguet IdRef Biografia Disponiacutevel em

httpswwwidreffr026696401 Acesso em 24 fev 2020

ROLLER M Constructing Autocracy Aristocrats and Emperors in Julio-

Claudian Rome 1 ed Princeton Princeton University Press 2001

ROMAN L Martial and the City of Rome The Journal of Roman Studies v

100 p 88-117 2010

ROSSO E Le Destins Multiples de la Domus Aurea Lrsquoexploitation de la

Condamnation de Neacuteron dans Lrsquoideacuteologie Flavienne In BENOIST S

DAGUET-GAGEY A (Eds) Un Discours en Images de la Condamnation de

Meacutemoire 1 ed Metz Centre Reacutegional Universitaire Lorrain drsquoHistoire site de

Metz 2008 p 43-78

RICHARDS F T The Life and Principate of the Emperor Nero The Classical

Review v 18 p 57-61 1904

391

RICHARDSON J S Augustan Rome 44 BC to AD 14 The Restoration of the

Republic and the Establishment of the Empire 1 ed Edinburgh Edinburgh

University Press 2012

RONCALI R Apocolocyntosis In DAMSCHEN G HEIL A (Eds) Brillrsquos

Companion to Seneca Philosopher and Dramatist 1 ed Leiden Brill 2014 p

673-688

ROSTOVTZEFF M Histoacuteria de Roma Trad de Waltensir Dutra 5 ed Rio de

Janeiro Jorge Zahar 1983

ROYO M LrsquoOctavie entre Neacuteron et les Premiers Antonins Revue des Etudes

Latines v 61 p 189-200 1983

RUDICH V Dissidence and Literature under Nero The price of

rhetoricization 1 ed London Routledge 1997

______ Political Dissidence under Nero The price of dissimulation 1 ed New

York Routledge 2005

RYBERG I S Tacitusrsquo art of Innuendo Transactions and Proceedings of the

American Philological Association v 73 p 383-404 1942

SAILOR D Writing and Empire in Tacitus 1 ed Cambridge Cambridge

University Press 2008

SALLER R P Personal Patronage under the Early Empire 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 1989

SALMON E T Nerone e i Suoi Tempi by Mario Attilio Levi Classical

Philology v 47 n 1 p 55-56 1952

SANTOS F M Q Estrutura da Poesia Bucoacutelica de Nemesiano 2003 102 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Liacutenguas e Literaturas) ndash Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo

em Liacutenguas e Literaturas Universidade de Aveiro Aveiro 2003

SCHMIDT J Nero Monstro Sanguinaacuterio ou Imperador Visionaacuterio Trad de

Heacutelder Viccediloso 1 ed Lisboa Texto amp Grafia 2011

SCHOFIELD M Seneca on Monarchy and the Political Life De Clementia De

Tranquillitate Animi De Otio In BARTSCH S SHIESARO A (Eds) The

Cambridge Companion to Seneca 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2015 p 68-81

SCHUBERT C Studien zum Nerobild in der lateinischen Dichtung der

Antike 1 ed Leipzig Stuttgart 1998

SCHULZ V Deconstructing Imperial Representation Tacitus Cassius Dio

and Suetonius on Nero and Domitian 1 ed Leiden Brill 2019

392

SCHWARTZ D R Many Sources but a Single Author Josephusrsquos Jewish

Antiquities In CHAPMAN H H RODGERS Z (Eds) A Companion to

Josephus 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 36-58

SCULLARD H H From the Gracchi to Nero A History of Rome from 133

BC to AD 68 1 ed London Routledge 2010

SEAGER R Nero The End of a Dynasty The Classical Review v 36 p 98-

100 1986

SEAR F Roman theatres An architectural study 1 ed Oxford Oxford

University Press 2006

SEGURADO E CAMPOS J A A Trageacutedia Octaacutevia A Obra e a Eacutepoca 1 ed

Lisboa Imprensa Nacional 1972

SHACKLETON BAILEY D R S Introduction In MARTIAL Epigrams

Trans by D R S Bailey Loeb Classical Library 1 ed Cambridge Harvard

University Press 1993 v 1 p 1-9

SHAKESPEARE W Hamlet Prince of Denmark 2 ed Cambridge

Cambridge University Press 2003

SHERWIN-WHITE A N Why were the Early Christians persecuted ndash An

amendment Past and Present n 27 p 23-27 1964

SHOTTER D Nero Trad de Rui Miguel Oliveira Duarte 1 ed Lisboa Ediccedilotildees

70 2008

______ Professor David Shotter Lancaster University 2002 Biography

Disponiacutevel em httpswwwlancasteracukarts-and-social-sciencesabout-

uspeopledavid-shotter Acesso em 23 fev 2020

SILVA B da Bolsonaro Imita Nero Miacutedia Ninja Satildeo Paulo 30 de agosto de

2019 Poliacutetica Disponiacutevel em httpsmidianinjaorgbeneditadasilvabolsonaro-

imita-nero Acesso em 01 set 2019

SILVA F de S Comentaacuterio criacutetico In SEcircNECA Apocolocintose do Divino

Claacuteudio 2008 145 f Tese (Doutorado em Letras Claacutessicas) ndash Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008 p

15-139

SILVA S C Os galli sacerdotes de Cibele Representaccedilotildees literaacuterias femininas e

possibilidades sobre as praacuteticas de castraccedilatildeo ritual Notandum v 24 p 1-22

2021

______ REZENDE W B O imperador Nero e as perseguiccedilotildees aos Cristatildeos no I

seacuteculo dC Um estudo da obra Annales de Taacutecito Linguagem Acadecircmica v 1

n 1 p 157-172 2011

393

SILVA U G da A escrita biograacutefica na Antiguidade Uma tradiccedilatildeo incerta

Politeia Hist e Soc v 8 n 1 p 67-81 2008

SLATER N W Nerorsquos Mask Classical World v 90 v 1 p 33-40 1996

SMITH J A Flavian Drama Looking Back with Octavia In BOYLE A J

DOMINIK W J (Eds) Flavian Rome Culture Image Text 1 ed Leiden

Brill 2003 p 391-430

STADTER P History and Biography In MARINCOLA J (Org) A

Companion to Greek and Roman Historiography 1 ed Malden Wiley-

Blackwell 2007 v 1 p 528-540

STAR C Roman Tragedy and Philosophy In HARRISON G W M (Ed)

Brillrsquos Companion to Roman Tragedy 1 ed Leiden Brill 2015 p 238-259

______ The Empire of the Self Self-command and Political Speech in Seneca

and Petronius 1 ed Baltimore Johns Hopkins University Press 2012

STEEL C Divisions of Speech In GUNDERSON E (Ed) The Cambridge

Companion to Ancient Rhetoric 1 ed Cambridge Cambridge University

Press 2009 p 77-91

STEINWENTER A Ius liberorum RE v 10 p 1919 p 1281-1285

STRECKER M Bolsonaro Queima o Brasil para o Mundo Istoeacute Satildeo Paulo 30

de agosto de 2019 Poliacutetica Disponiacutevel em httpsistoecombrbolsonaro-

queima-o-brasil-para-o-mundo Acesso em 01 set 2019

SULLIVAN D L Attitudes Toward Imitation Classical Culture and the Modern

Temper Rhetoric Review v 8 n 1 p 5-21 1989

SULLIVAN J P Assrsquos Ears and Attises Persius and Nero The American

Journal of Philology v 99 n 2 p 159-170 1978

______ Literature and Politics in the Age of Nero 1 ed Ithaca Cornell

University Press 1985

______ Martial The Unexpected Classic A Literary and Historical Study 1 ed

Cambridge Cambridge University Press 1991

______ Petronius Seneca and Lucan A Neronian Literary Feud Transactions

and Proceedings of the American Philological Association v 99 p 453-467

1968

SYME R Domitius Corbulo The Journal of Roman Studies v 60 p 27-39

1970

394

______ Pliny the Procurator Harvard Studies in Classical Philology v 73 p

201-236 1969

______ Tacitus 1 ed Oxford Oxford University Press 1967 v 1-2

THACKERAY H St J Josephus The Man and the Historian 1 ed New York

KTAV Publishing House 1967

THOMPSON L Lucanrsquos apotheosis of Nero Classical Philology v 59 n 3 p

147-153 1964

TIKKANEN A Jacob Abbott Britannica 16 October 2012 Biography

Disponiacutevel em httpswwwbritannicacombiographyJacob-Abbott Acesso em

20 fev 2020

TODMAN D Childbirth in Ancient Rome From Traditional Folklore to

Obstetrics The Australian and New Zealand Journal of Obstetrics and

Gynecology v 47 n 2 p 82-85 2007

TOWNEND G B Augustus and Nero The Secret of Empire by Gilbert Charles-

Picard The Journal of Roman Studies v 57 n 12 p 248-249 1967

______ Calpurnius Siculus and the Munus Neronis The Journal of Roman

Studies v 70 p 166-174 1980

______ Suetonius and his influence In DOREY T A (Ed) Latin Biography

1 ed London Routledge 1967 p 79-111

______ The Hippo Inscription and the Career of Suetonius Historia Zeitschrift

fuumlr Alte Geschichte v 10 n 1 p 99-109 1961

______ Traces in Dio Cassius of Cluvius Aufidius and Pliny Hermes v 89 n

2 p 227-248 1961

TREGGIARI S Women in the Roman Society In KLEINER D E E

KLEINER E E MATHESON S B (Eds) I Claudia Women in Ancient

Rome 1 ed New Haven University of Texas Press 1996 p 116-125

TUCK S L Imperial Image-making In ZISSOS A (Ed) A Cambridge to the

Flavian Age of Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 109-

128

VANDENBERG P Nero Trad de Flaacutevio Paulo Meurer 1 ed Satildeo Paulo

Ciacuterculo do Livro 1987

VARELLA F F A proximidade feminina e a imagem Imperial Nero Taacutecito amp

os Anais Cadernos de Histoacuteria v1 n 1 p 1-12 2006

395

______ Sine ira et Studio Retoacuterica tempo e verdade na Historiografia de Taacutecito

Histoacuteria da Historiografia n 1 p 71-87 2008

VARNER E Nerorsquos Memory in Flavian Rome In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C (Eds) The Cambridge Companion

to the Age of Nero 1 ed New York Cambridge University Press 2017 p 237-

258

VERDIEgraveRE R Calpurnius Siculus et le Culte de la Personnaliteacute Helmantica

Revista de Filologiacutea Claacutesica y Hebrea v 43 n 130-131 p 31-40 1992

VERVAET F J Domitius Corbulo and the Rise of the Flavian Dynasty

Historia Zeitschrift fuumlr Alte Geschichte v 52 n 4 p 436-464 2003

VEYNE P Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In ______ O

Impeacuterio Greco-Romano Trad Marisa Motta 1 ed Rio de Janeiro Elsevier

2009 p 245-246

______ Seneca The Life of a Stoic 1 ed London Routledge 2003

VIEIRA B V G Introduccedilatildeo In LUCANO Farsaacutelia Cantos de I a V Trad de

Brunno V G Vieira 1 ed Campinas Editora da Unicamp 2011 p 13-71

VIEIRA H O D Introduccedilatildeo In LUCANO Guerra Civil Livro I Trad de

Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira 1 ed Joatildeo Pessoa Ideia 2018 p 5-22

VIZENTIM M Imagens do Poder em Secircneca Estudo sobre o De Clementia 1

ed Cotia Ateliecirc Editorial 2005

WALBANK F W Howard Hayes Scullard Gnomon v 2 n 56 p 189-191

1984

WALKER B The Annals of Tacitus A study in the writing of history 1 ed

Manchester Manchester University Press 1960

WALLACE K G Women in Tacitus 1903-86 ANRW v 33 n 5 p 3556-3574

1991

WALLACE-HADRILL A Pliny the Elder and Manrsquos Unnatural History Greece

amp Rome v 37 n 1 p 80-96 1990

______ Suetonius 1 ed Londres Bristol Classical Press 1995

______ The Imperial Court In BOWMAN A K CHAMPLIN E LINTOTT

A The Cambridge Ancient History The Augustan Empire 43 BC-AD 69 1

ed Cambridge Cambridge University Press 1996 v 10 p 283-308

WANKENNE J Faut-il Reacutehabiliter Lrsquoempereur Neacuteron Les Etudes Classiques

v 49 p 135-152 1981

396

WARDEN P G The Domus Aurea Reconsidered Journal of the Society of

Architectural Historians v 40 n 4 p 271-278 1981

WARMINGTON B H Nero Reality and Legend 1 ed London Chatto amp

Windus 1969

WEIGALL A Nero Emperor of Rome 1 ed London Thornton Butterworth

Ltd 1930

WES M A Before the Revolution Russians in America Americans in Russia

In ______ Michael Rostovtzeff Historian in exile 1 ed Stuttgart Steiner

1990 p 5-11

WHITTON C L Seneca Apocolocyntosis In BUCKLEY E DINTER M

(Eds) A Companion to the Neronian Age 1 ed Malden Wiley-Blackwell

2013 p 151-169

WIEDEMANN T E J From Nero to Vespasian In BOWMAN A K

CHAMPLIN E LINTOTT A The Cambridge Ancient History The

Augustan Empire 43 BC-AD 69 1 ed Cambridge Cambridge University Press

1996 v 10 p 256-282

WILLIAMS G D Change and Decline Roman Literature in the Early Empire

1 ed Berkeley University of California Press 1978

______ Lucanrsquos Civil War in Nerorsquos Rome In BARTSCH S

FREUDENBURG K LITTLEWOOD C A J (Eds) The Cambridge

Companion to the Age of Nero 1 ed Cambridge Cambridge University Press

2017 p 93-106

______ Nero Seneca and Stoicism in the Octavia In ELSNER J MASTERS

J (Eds) Reflections of Nero Culture History amp Representation 1 ed London

Duckworth 1994 p 178-195

WINTERLING A Loucura Imperial na Roma Antiga Histoacuteria (Satildeo Paulo) v

31 n 1 p 4-26 2012

______ Politics and Society in Imperial Rome 1 ed London

Wiley‐Blackwell 2009

WISEMAN T P Calpurnius Siculus and the Claudian Civil War Journal of

Roman Studies v 72 p 57-67 1982

WISEMAN T P Cliosrsquos Cosmetics Three Studies in Greco-Roman Literature

1 ed Leicester Leicester University Press 1979

WITKE C Persius and the Neronian Institution of Literature Latomus v 43 n

4 p 802-812 1984

397

WOOD S E Imperial Women A study in public images 40 BC-AD 68 1 ed

Leiden Brill 2000

WOODMAN A J Amateur Dramatics at the Court of Nero Annals 1548-74 In

LUCE T J ______ (Eds) Tacitus and the Tacitean Tradition 1 ed New

Jersey Princeton University Press 1993 p 104-128

______ Introduction In TACITUS The Annals Trans by A J Woodman 1

ed Cambridge Hackett Publishing Company 2004 p ix-xxviii

______ Rhetoric in Classical Historiography Four studies 1 ed Portland

Areopagitica Press 1988

WRAY D Wood Statiusrsquo Silvae and the Poetic of Genius Arethusa v 40 p

127-143 2007

YEGUumlL F Baths and Bathing in Classical Antiquity 1 ed Cambridge

Cambridge University Press 1942

ZANKER P By the Emperor for the People ldquoPopularrdquo Architecture in Rome

In EDWALD B C NORENtildeA C F (Eds) The Emperor and Rome Space

Representation and Ritual 1 ed Cambridge Cambridge University Press 2010

p 45-87

______ The Power of Images in the Age of Augustus 1 ed Ann Arbor

University of Michigan Press 1988

ZISSOS A Introduction In ______ (Ed) A Cambridge to the Flavian Age of

Imperial Rome 1 ed Malden Wiley-Blackwell 2016 p 1-14

398

APEcircNDICE

399

Apecircndice A Cronologia da vida de Nero

Data Episoacutedios

37 Nascimento de Luacutecio Domiacutecio Aenobarbo (Nero)

39-41 Exiacutelio de Agripina matildee de Nero

40 Morte de Cneu Domiacutecio Aenobarbo pai de Nero

41 Ascensatildeo de Claacuteudio

Retorno de Agripina do exiacutelio

49 Casamento de Claacuteudio e Agripina

Noivado de Nero e Otaacutevia

50 Adoccedilatildeo de Nero por Claacuteudio

53 Casamento de Nero com Otaacutevia

54 Assassinato de Claacuteudio

Ascensatildeo de Nero

54-63 Conflito com os partas

55 Assassinato de Britacircnico

57 Realizaccedilatildeo de jogos no anfiteatro erguido por Nero

59 Assassinato de Agripina

Promoccedilatildeo dos Juvenalia

60 Promoccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo dos Neronia

Rebeliatildeo na Britacircnia

62 Casamento de Nero com Popeia Sabina

Divoacutercio exiacutelio e assassinato de Otaacutevia

64 Apresentaccedilatildeo artiacutestica puacuteblica de Nero em Naacutepoles

Incecircndio de Roma

65

Iniacutecio da construccedilatildeo da Domus Aurea

Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

Conspiraccedilatildeo de Pisatildeo

Promoccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo dos Neronia

Assassinato de Popeia

66 Casamento de Nero com Estatiacutelia Messalina

Ida de Tiridates a Roma

66-68 Turnecirc artiacutestica de Nero pela Greacutecia

68 Revolta de Vindex

Suiciacutedio de Nero

400

ANEXOS

401

Anexo A Aacutervore genealoacutegica da dinastia Juacutelio-Claacuteudia

Fonte BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p xix

402

Anexo B Mapa do Impeacuterio Romano durante o governo de Nero

Fonte BARTSCH FREUDENBURG LITTLEWOOD 2017 p xx

403

Anexo C Mapa da Roma neroniana

Fonte BARRETT FANTHAM YARDLEY 2016 p 150

  • 65767452bd6d13c717c09305821bfa726f26a8f6979bbca670bc5560e7a2ef5cpdf
  • f904cfb29b842cad39cb70faed6f73668c522b4e773cdbaad733dbeae96f6e4cpdf
  • 65767452bd6d13c717c09305821bfa726f26a8f6979bbca670bc5560e7a2ef5cpdf
Page 3: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 4: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 5: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 6: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 7: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 8: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 9: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 10: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 11: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 12: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 13: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 14: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 15: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 16: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 17: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 18: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 19: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 20: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 21: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 22: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 23: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 24: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 25: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 26: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 27: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 28: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 29: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 30: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 31: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 32: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 33: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 34: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 35: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 36: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 37: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 38: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 39: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 40: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 41: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 42: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 43: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 44: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 45: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 46: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 47: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 48: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 49: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 50: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 51: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 52: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 53: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 54: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 55: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 56: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 57: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 58: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 59: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 60: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 61: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 62: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 63: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 64: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 65: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 66: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 67: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 68: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 69: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 70: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 71: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 72: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 73: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 74: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 75: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 76: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 77: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 78: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 79: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 80: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 81: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 82: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 83: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 84: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 85: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 86: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 87: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 88: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 89: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 90: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 91: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 92: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 93: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 94: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 95: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 96: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 97: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 98: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 99: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 100: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 101: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 102: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 103: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 104: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 105: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 106: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 107: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 108: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 109: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 110: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 111: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 112: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 113: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 114: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 115: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 116: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 117: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 118: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 119: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 120: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 121: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 122: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 123: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 124: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 125: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 126: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 127: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 128: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 129: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 130: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 131: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 132: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 133: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 134: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 135: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 136: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 137: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 138: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 139: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 140: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 141: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 142: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 143: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 144: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 145: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 146: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 147: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 148: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 149: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 150: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 151: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 152: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 153: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 154: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 155: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 156: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 157: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 158: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 159: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 160: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 161: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 162: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 163: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 164: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 165: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 166: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 167: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 168: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 169: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 170: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 171: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 172: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 173: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 174: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 175: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 176: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 177: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 178: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 179: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 180: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 181: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 182: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 183: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 184: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 185: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 186: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 187: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 188: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 189: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 190: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 191: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 192: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 193: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 194: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 195: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 196: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 197: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 198: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 199: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 200: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 201: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 202: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 203: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 204: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 205: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 206: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 207: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 208: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 209: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 210: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 211: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 212: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 213: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 214: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 215: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 216: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 217: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 218: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 219: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 220: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 221: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 222: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 223: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 224: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 225: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 226: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 227: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 228: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 229: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 230: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 231: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 232: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 233: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 234: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 235: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 236: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 237: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 238: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 239: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 240: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 241: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 242: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 243: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 244: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 245: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 246: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 247: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 248: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 249: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 250: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 251: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 252: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 253: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 254: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 255: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 256: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 257: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 258: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 259: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 260: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 261: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 262: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 263: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 264: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 265: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 266: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 267: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 268: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 269: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 270: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 271: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 272: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 273: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 274: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 275: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 276: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 277: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 278: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 279: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 280: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 281: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 282: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 283: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 284: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 285: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 286: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 287: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 288: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 289: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 290: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 291: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 292: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 293: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 294: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 295: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 296: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 297: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 298: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 299: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 300: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 301: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 302: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 303: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 304: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 305: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 306: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 307: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 308: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 309: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 310: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 311: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 312: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 313: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 314: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 315: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 316: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 317: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 318: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 319: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 320: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 321: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 322: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 323: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 324: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 325: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 326: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 327: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 328: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 329: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 330: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 331: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 332: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 333: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 334: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 335: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 336: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 337: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 338: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 339: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 340: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 341: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 342: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 343: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 344: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 345: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 346: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 347: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 348: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 349: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 350: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 351: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 352: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 353: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 354: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 355: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 356: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 357: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 358: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 359: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 360: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 361: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 362: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 363: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 364: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 365: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 366: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 367: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 368: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 369: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 370: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 371: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 372: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 373: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 374: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 375: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 376: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 377: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 378: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 379: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 380: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 381: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 382: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 383: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 384: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 385: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 386: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 387: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 388: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 389: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 390: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 391: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 392: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 393: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 394: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 395: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 396: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 397: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 398: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 399: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 400: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 401: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 402: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...
Page 403: As metamorfoses de Nero: Um estudo da construção da ...