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Revista Ipsis Libanis http:// icbl.com.br/ipsislibanis/ Ano 1 Número 3 19 As imigrações dos sírios e libaneses em São Paulo, no final do século XIX e início do século XX. Luciano Alves Silva 1 Resumo Este breve artigo se propõe a mostrar a história de grupos migratórios da Síria e do Líbano para a cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o século XX. Através das análises de suas chegadas e estabelecimentos, investigamos as diferenças que motivaram tais grupos à imigração, evidenciadas por seus contextos, suas famílias, amizades, negócios e outras realidades sociais. Também, o trabalho se propõe a levantar algumas hipóteses sobre a sua capilaridade social, analisando o como e o porque essas etnias se espalharam e prosperam pelos lugares em que se estabeleceram, ou por onde passaram. A nossa coleta de dados foi baseada nos principais autores de língua portuguesa sobre o assunto, numa entrevista, em pesquisas de periódicos e de seminários. Palavras-chave: imigração, São Paulo, sírio-libaneses, árabes, século XX Abstract This article is presented as a history of migratory groups from Syria and Lebanon to a city of São Paulo, from the turn of the 19th century to the 20th century. Through analyzes of their arrivals and substitutes, research on motivation groups such as immigration groups, evidenced by their contexts, their families, friendships, business and other social 1 O autor é graduado em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014) e mestrando, também em História, pela mesma universidade; também possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2007) e ainda pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS / 2009); é pesquisador na área de História, com ênfase em Cultura Popular e História Antiga (UNIFESP Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil, [email protected], Lattes: http://lattes.cnpq.br/1036570748473753)

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As imigrações dos sírios e libaneses em São Paulo, no final do século

XIX e início do século XX.

Luciano Alves Silva1

Resumo

Este breve artigo se propõe a mostrar a história de grupos migratórios da Síria e do Líbano

para a cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o século XX. Através das

análises de suas chegadas e estabelecimentos, investigamos as diferenças que motivaram

tais grupos à imigração, evidenciadas por seus contextos, suas famílias, amizades,

negócios e outras realidades sociais. Também, o trabalho se propõe a levantar algumas

hipóteses sobre a sua capilaridade social, analisando o como e o porque essas etnias se

espalharam e prosperam pelos lugares em que se estabeleceram, ou por onde passaram.

A nossa coleta de dados foi baseada nos principais autores de língua portuguesa sobre o

assunto, numa entrevista, em pesquisas de periódicos e de seminários.

Palavras-chave: imigração, São Paulo, sírio-libaneses, árabes, século XX

Abstract

This article is presented as a history of migratory groups from Syria and Lebanon to a

city of São Paulo, from the turn of the 19th century to the 20th century. Through analyzes

of their arrivals and substitutes, research on motivation groups such as immigration

groups, evidenced by their contexts, their families, friendships, business and other social

1 O autor é graduado em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014) e mestrando, também em

História, pela mesma universidade; também possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica

Batista de São Paulo (2007) e ainda pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS / 2009); é

pesquisador na área de História, com ênfase em Cultura Popular e História Antiga (UNIFESP –

Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil, [email protected], Lattes:

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realities. In addition, the paper proposes to raise some hypotheses about its social

capacity, analyzing the how and why these ethnicities spread and thrive in the places

where they belong, or wherever they went. Our data collection was elaborated in the main

authors of the Portuguese language on the contract, in interviews, in periodicals and

seminars.

Keywords: immigration, São Paulo, Syrian-Lebanese, Arabs, twentieth century

Introdução

A cidade de São Paulo na virada do século XIX para o século XX era uma das

maiores cidades de imigração do mundo2. Inicialmente, os que se arriscavam naquela São

Paulo vinham de fora e tinham pouco ou nada a perder. Em sua expressiva maioria se

tratavam de imigrantes originários, sobretudo, da Europa e da Ásia. As guerras e a falta

de trabalho levaram cerca de 50 milhões de pessoas, de modo geral, a procurar o

continente americano entre 1820 até 19143. No Brasil o que contribuiu expressivamente

para a imigração foi a política de mão-de-obra dos fazendeiros de café, que criaram um

mercado capitalista no campo, por meio de um amplo programa de imigração subsidiado

pelos governos do Estado e da nação4, dentro de um contexto de fim de escravidão e com

muita demanda de serviço nos campos e nas fábricas das cidades emergentes do Sudeste

e do Sul. Grosso modo, este era o cenário nacional que transformaria a provinciana cidade

de São Paulo numa grande metrópole. Para muitos dos imigrantes sair dos seus locais de

origem não se tratava de uma oportunidade e sim da única alternativa, diante das

condições de miséria e incertezas nas quais estavam mergulhados seus países.

2 HALL, Michael. Imigrantes na cidade de São Paulo, in Paula Porta (org.) Historia da cidade de São

Paulo: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 121 3 MOURA, Soraya; PAIVA, Odair da Cruz. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e

Terra, 2008, p.13. 4 Op.Cit.; p. 122

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No final do século XIX, devido ao grande fluxo de imigrantes alguns países

construíram hospedarias para recepcionar os grupos de pessoas que fugiam das guerras e

das perseguições. São Paulo, como uma das maiores cidades de imigração do mundo,

construiu a primeira hospedaria para os imigrantes no bairro de Santana em dezembro de

1878, mudando depois para o bairro do Bom Retiro (março de 1882) e, por último, para

o bairro do Brás (maio de 1886)5. Este último endereço tinha capacidade para acomodar

cerca de três mil pessoas, mas em ocasiões específicas chegou a abrigar até oito mil

pessoas6.

Maria Torres comenta que os colonos que paravam inicialmente na hospedaria de

São Paulo, basicamente, eram os que tinham destinos certos para as regiões agrícolas do

estado:

(...) a hospedaria dos imigrantes construída pelo Conde do Parnaíba, com

dormitórios arejados, refeitório, enfermaria e lavanderia, permitia o

alojamento dos colonos em sua chegada do exterior para, em seguida, serem

enviados às regiões agrícolas do interior paulista7.

Este não era, certamente, o caso dos sírio-libaneses, cujas atividades econômicas

eram, marcadamente, o comércio autônomo e a indústria têxtil. Assim, explica-se sua

ausência e seus parcos registros na hospedaria da cidade.

Sabemos que nessa transição do século XIX para o século XX, nem a Síria nem o

Líbano eram Estados independentes, antes estavam sob o domínio francês, domínio este

cedido pelo governo turco-otomano, sob a chancela da Liga das nações8. Assim, por

5 FREITAS, Sônia Maria de. E chegaram os imigrantes: o café e a imigração em São Paulo. São Paulo:

Copyjet, 1999, p.40. 6 MOURA, Soraya; PAIVA, Odair da Cruz. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra,

2008., p.22. 7 TORRES, Maria Celestina Teixeria Mendes. O bairro do Brás: história dos bairros de São Paulo.

São Paulo: Gráfica Municipal, 1969, p. 118. 8 SALIBI, K. Lebanon and the middle eastern question. Papers on Lebanon, Oxford, Vol. 8, p. 5, may

1988.

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conveniência, diante da proximidade cultural e geográfica, e sob a influência política

popularizou-se o termo sírio-libanês quando se referiam aos árabes que eram oriundos

desses países. Neste trabalho algumas vezes usaremos os termos separados: sírios e

libaneses, noutras vezes: sírio-libaneses.

Sobre os árabes e os sírio-libaneses

O termo árabe, etimologicamente, segundo Eugenio Chahuan, refere-se à ação de

se trasladar de forma contínua, estando associado então ao nomadismo9. Por outro lado,

a expressão também pode ser traduzida por clareza, distinguindo-se então de outros

povos, que não árabes, cuja língua não lhes seja clara, compreensível. Sabemos que os

árabes são povos do Oriente Médio e do Norte da África distribuídos em vinte e um

países. O que define um país ou grupo de pessoas como árabe são basicamente o idioma,

a cultura e a religião. A religião árabe do Islã tem como marco fundador a “hijra” – viagem

missionária de Maomé da sua cidade natal, que era Meca, para a cidade de Medina, ambas

na Arábia. Esta peregrinação ocorreu no ano de 622 da era cristã10.

A difusão do islamismo se deu através deste mercador que passou a morar em

Medina e negociar com as caravanas que iam e vinham passando pela região, tendo como

prioridade a propagação de suas ideias religiosas de submissão a Deus (Allá), que se

denominaria mais tarde de Islamismo11. Essas caravanas, além de levar para seus lugares

de origem as mercadorias de Maomé também levavam consigo este novo conceito

religioso. Para Maomé o judaísmo e o cristianismo foram precursores do islamismo12.

Grosso modo, essas três religiões têm características similares: monoteístas, possuidoras

9ARAÚJO, Heloisa Vilhena de. (Org.) Diálogo América do Sul – países árabes. Brasília: Funag, 2005, p.

158. 10 RAHMAN, Fazlur. História das Religiões: O Islamismo. São Paulo: Arcádia, 1960, p. 14. 11 Islã no idioma árabe significa, literalmente, submissão. 12 DOWLEY, T. Atlas vida nova, da bíblia e da história do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1998,

p. 86.

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de um livro sagrado que orienta aos fiéis sobre seus ritos e mandamentos, e tem um

profeta principal, a saber: Abraão para o judaísmo, Jesus para o cristianismo e Maomé

para o islamismo. Esse movimento religioso iniciado por Maomé implicou numa

aculturação dos que lhes eram simpáticos, tornando os mais diferentes países e culturas

variadas em povos árabes.

Geograficamente a Síria e o Líbano são países árabes fronteiriços que ficam no

continente asiático, entre os países Israel e Jordânia, ao sul e a Turquia, ao norte. E ainda

boa parte da população desses países vive em pequenas aldeias e tem uma economia

agropastoril.

As imigrações dos sírios e dos libaneses

Antes da primeira Grande Guerra que foi deflagrada em 1914 parte dos imigrantes

sírio-libaneses, diferentemente dos que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes do Brás,

chegavam autonomamente. Tratavam-se, na sua maioria, de solteiros, que não queriam

estabelecer vínculos operários nas fábricas e encontraram na atividade da mascateação

uma forma de se inserirem nas atividades econômicas do país, sendo sua pretensão uma

emigração temporária, destinada a redimir suas famílias de situações difíceis. Mas, o que

se pretendia provisório acabou permanente e, ao invés do imigrante retornar, a família é

que o acompanhava. E eles trouxeram seus irmãos, irmãs, filhos, filhas, esposas, tios, tias,

primos e primas13.

Os primeiros sírios e libaneses, notadamente como imigrantes, chegaram a São

Paulo a partir de 1871. Como destaca Márcia Maria Cabreira, ainda que existam relatos

de registros da presença de sírio-libaneses no Brasil nos séculos XVI e XVII, não se pode

nomear tais registros como imigração. Líbano e Síria eram ainda partes do império turco-

13 TRUZZI, Oswaldo. Presença árabe na América do Sul. São Leopoldo: RS, Caderno de História.

Unisinos, v. 11, nº 3, 2007, p. 361.

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otomano nas últimas décadas do século XIX. Aquele império dominou o oriente médio

durante quatro séculos, de 1516 a 1914. Além disto, depois da Primeira Guerra Mundial,

houve uma desagregação financeira com a entrada da França e Inglaterra na região.

Dentro deste contexto, especialmente os jovens solteiros conseguiam sair de suas vilas e

aldeias e viam nas Américas uma oportunidade interessante. Os que desembarcavam no

Brasil passaram a ser conhecidos como turcos, pois deixavam seus países utilizando

passaportes turcos. Isto, para sua chateação: a última pessoa com a qual um árabe gostaria

de ser comparado seria a um turco14.

A América para os árabes era uma região confusa e desconhecida. Nas últimas

décadas do século XIX muitos sírios e libaneses cristãos, sob a perseguição turco-

otomana, eram enganados por agentes de viajem que lhes ofereciam passagens para

América. Aqueles, interessados por uma vida melhor, pensando estar destinados aos

EUA, chegavam aos portos brasileiros, especialmente à cidade de Santos, em São Paulo.

Em 1920, 31% da população total Síria do estado paulista, que contemplavam 5.988

pessoas, estavam na cidade de São Paulo15. Os imigrantes árabes presentes no Brasil até

1940 eram, basicamente, cristãos: ortodoxos, católico-romanos e maronitas. Em número

bem menor estavam presentes também outras expressões religiosas, como os druzos e os

muçulmanos16. Como reflexo dessa realidade a primeira mesquita fundada na América

Latina é a Mesquita do Brasil, localizada na Avenida do Estado, às margens do Rio

Tamanduateí próximo à região da antiga Várzea do Campo, onde se estabeleciam os

árabes. Sua construção teve início em 192917, trinta anos depois da chegada destes

primeiros imigrantes.

14 CABREIRA, Marcia Maria. Cultura e Identidade em São Paulo: a imigração sírio-libanesa. São

Paulo: UNINOVE, ECCOS, revista cientifica, nº 1, v. 3, 2001, p. 94. 15 KNOWLTON, Clark S. Sírios e libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi, 1961,

p. 71. 16 HAJJAR, Claude Fahd. Imigração árabe: 100 anos de reflexão. São Paulo: ícone, 1985, p.77 17 Site http://www.arresala.org.br, acessado em maio de 2010.

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Entre 1871 e 1947 entraram no Brasil, oficialmente, 79.509 sírio-libaneses. Nada

se sabe, entretanto, da porcentagem dos que realmente se radicaram no país e nem

tampouco sobre o número daqueles que não foram computados pelas estatísticas

oficiais18. Mas, ainda que não haja estatísticas que revelem a distribuição desses

imigrantes no Brasil, no início do século XX sabe-se que três foram as localidades paras

as quais se destinaram de modo mais intenso: Amazônia, Rio de Janeiro e São Paulo19.

Na Amazônia criaram os regatões às margens dos rios que, com seus barquinhos

cheios de mercadorias, atendiam às necessidades dos seringueiros e ribeirinhos. No Rio

de Janeiro, que fora sede da Capital Federal até 1960, se estabelecem nas adjacências das

Ruas da Alfândega, Senhor dos Passos e Buenos Aires, o que mais tarde se tornou

conhecida como SAARA (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega)

e em São Paulo se estabeleceram na Várzea do Carmo. Região comentada por diversos

autores e ilustrada por diversos pintores quando já a fotografia estava em alta, por conta

da vista bucólica e da beleza existente no local. Ainda sobre os pintores que retrataram a

região, talvez o mais famoso deles tenha sido Benedito Calixto quando, em 1892, retratou

a região inundada20.

Entre 1918 e 1930 outros sírio-libaneses vieram por conta da guerra civil.

Geralmente, estes chegavam de modo diferente. Eles vinham com dinheiro e comprariam

indústrias ou montariam seus próprios negócios e lojas. Eram industriais de tecido, das

fábricas de artefatos de couro e armarinhos.

A capilaridade dos árabes em solo nacional deu-se por conta da própria natureza

dos seus negócios. Especialmente no primeiro momento da imigração os sírios e os

libaneses eram mascates potenciais, assim, por conta da natureza da sua atividade, num

18 Seminário internacional realizado em Brasília, DF, nos dias 06 e 07 de junho do ano de 2000. Relações

entre Brasil e o mundo árabe: construção e perspectivas. Brasilia: Funag, 2001, p.27. 19 TRUZZI, Oswaldo. Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1996, p.303-306. 20 Disponível em <http://www.arquiamigos.org.br/info/info05/>, acessado em 15/05/2017.

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primeiro momento se estabeleciam nas cidades, mas depois se embrenhavam nas vilas,

municípios e outras localidades. Estes iam desde os lugares mais urbanizados até aos mais

remotos vilarejos, ali chegavam vendendo, comprando, negociando, atendendo às

necessidades e, em alguma medida, aos desejos dos seus compradores. Eles passavam nas

porteiras das fazendas de café nos interiores dos estados do Sul e Sudeste, entre os

pescadores do litoral e os ribeirinhos, dentro das vilas e cidadezinhas e, também, em

grandes centros urbanos. Mas, decididamente, sírios e libaneses tiveram mais contatos

com as cidades do que com os campos e, sobretudo, contatos mais diretos com a gente

brasileira do que com a terra e o ambiente geográfico, tropical úmido, desse grande país

Sulamericano21.

Quem virá para São Paulo (ou para a Amrik22) na virada do século XIX para o

século XX será um povo que nada ou pouquíssimo conhece além da sua realidade

cotidiana, que em sua expressiva maioria são analfabetos e que tem uma vida

extremamente simples. Como foi registrado no documentário Que teus olhos sejam

atendidos, produzido pela GNT23, em 1998.

Oswaldo Truzzi comenta que

(...) a oportunidade de fazer dinheiro numa proporção inimaginável para os

padrões locais exerceu um profundo impacto no equilíbrio das aldeias. As

famílias passaram a planejar o envio de seus filhos temporariamente à América

como forma de resolver suas dificuldades financeiras. Aquelas que não o

21 Seminário internacional realizado em Brasília, DF, nos dias 06 e 07 de junho do ano de 2000. Relações

entre Brasil e o mundo árabe: construção e perspectivas. Brasilia: Funag, 2001, p.27 22 Oswaldo Truzzi diz que a expressão Amrik é uma forma aproximada de como os imigrantes árabes

pronunciavam “América”, referindo-se tanto a do norte (EUA) como a do Sul. A última, chamavam-na de

“A outra América”. 23 Este documentário realizado pela GNT (1998), numa coprodução com a Vídeo Filmes e Bang Bang

Filmes, é o resultado de uma viagem do diretor Luís Fernando Carvalho pelo interior do Líbano em busca

da tradição árabe narrada no livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. Nele encontram-se retratos das

aldeias remotas das montanhas do Líbano, o modo simples de viver de seus habitantes que ainda muito nos

fazem lembrar os cenários bíblicos. Que Teus Olhos Sejam Atendidos é uma expressão popular no Líbano

e equivale ao nosso se Deus Quiser. Ao mostrar um país do Oriente Médio que costuma ser retratado quase

sempre como palco de intermináveis conflitos, Luís Fernando Carvalho apresenta as antigas tradições de

mais de oito milhões de brasileiros que possuem ascendência árabe. Diponivel em

<http://www.bangfilmes.com.br/realizacoes/queteusolhos/index.htm>, acessado em 27/05/2010.

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fizessem, perdiam status e prestígio, ficando para trás. Duas circunstâncias

ilustram de forma exemplar tais motivações. A primeira reside na importância

das remessas de dinheiro enviadas pelos imigrantes à terra de origem

endereçadas, sobretudo, à aquisição de mais terras, o que denuncia o desejo de

procurar viabilizar o modo de vida anterior, ampliando-se a propriedade rural

para permitir a sobrevivência de todos. O correio tornou-se a instituição mais

importante das aldeias porque trazia notícias e dinheiro aos que ficaram. A

segunda circunstância complementa a primeira e diz respeito ao caráter

temporário com que foi inicialmente encarada a imigração: o cálculo dos

imigrantes era o de que alguns anos de América seriam suficientes para

assegurar uma vida familiar próspera em suas aldeias. Daí a maior presença de

homens solteiros entre os emigrantes. (...) incidiram também, embora em

menor grau, motivos de natureza mais político-religiosa, ocasionados pela

desagregação do império otomano ou por disputas fomentadas entre frações

religiosas24.

Os sírios e os libaneses em São Paulo

O local de estabelecimento dos primeiros árabes, que desembarcaram em São

Paulo, como temos comentado foi a Várzea do Carmo. Durante anos a várzea foi usada

como um despejo de lixo e dejetos. Essa localização tinha como braços dois rios da

cidade: o Anhangabaú e o Tamanduateí. Em 1849, com a construção do Parque Dom

Pedro II naquela região, houve o desvio do Rio Tamanduateí em direção à várzea e o leito

por onde corria o rio foi transformado numa rua, época em que a zona central de São

Paulo passava por uma reurbanização. A Várzea do Carmo no final do século XIX se

tratava de um dos cartões postais de São Paulo e era considerada o limite da cidade25. Na

ocasião a várzea foi loteada e vários dos compradores eram da colônia árabe que,

aproveitando os preços baixos, construíram ali suas residências e lojas. O leito desviado

do Rio Tamanduateí, que foi transformado em rua, teve antes desse loteamento da região

outros nomes: Rua da Várzea do Glicério, Rua das Sete e Rua de Baixo. Este último nome

por decreto da Câmara Municipal de São Paulo de 1859, que determinava a abertura de

uma rua que ligasse a Ponte do Carmo ao porto de São Bento pela margem esquerda do

24 Seminário internacional realizado em Brasília, DF, nos dias 06 e 07 de junho do ano de 2000. Relações

entre Brasil e o mundo árabe: construção e perspectivas. Brasilia: Funag, 2001, p. 297, 298. 25OLIVEIRA. Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da

urbanização, São Paulo 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005. p. 66

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Rio Tamanduateí. Veio chamar-se Rua 25 de Março em 28 de novembro de 1865, em

homenagem a primeira Constituição Brasileira outorgada por D. Pedro I, em 25 de Março

de 182426.

Outras partes da várzea mais tarde foram drenadas e duas praças foram

construídas, incluindo um mercado. Na Rua 25 de Março casas e pequenos prédios foram

sendo construídos e aos seus arredores, lojas e pequenas fábricas. A constituição

geográfica do ambiente foi sendo, aos poucos, incrementada por novas construções de

mercados e bazares. Nas praças abertas mascates e vendedores de toda espécie ofereciam

suas mercadorias aos transeuntes. Os sírio-libaneses que chegavam depois dessa

urbanização, imigrantes paupérrimos sem dinheiro nem especialização, gravitavam em

torno dos alojamentos próximos do mercado e ao longo da Rua 25 de Março, recorrendo

à mascateação, se tornando parte dos grupos diversificados das praças da daquela

região27.

Os que chegavam primeiro ajudavam aos outros patrícios no início de sua nova

vida na cidade, sendo que pouco tempo depois, em 1901, mais de 500 estabelecimentos

eram de libaneses ou sírios na região28. O mais famoso árabe a se estabelecer em São

Paulo foi Nemi Jafet. Inicialmente na região da várzea, depois no bairro do Ipiranga, como

próspero industrial de tecidos.

A história em duas histórias

Rose Koraicho em seu livro 25 de Março: memória da rua dos árabes, através de

micro-história familiar conta a trajetória do seu pai, Fuad Koraicho. A história dos

26KORAICHO, Rose. 25 de Março: memória da rua dos árabes. São Paulo: Koema, 2004, pp. 92,93. 27 KNOWLTON, Clark S. Sírios e libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi, 1961, p.

111-113. 28 Ibidem, p.114, 144.

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Koraicho endossa o que a historiografia da imigração sírio-libanesa tem constatado. Fuad

Koraicho nasceu no Líbano em 1912, chegando à Gênova e de lá para o Porto de Santos

em 1942.

A princípio morava no porão de um prédio da Rua 25 de Março, conhecido como

“o buraco do rato”. Havia enormes ratazanas que passeavam tranquilamente entre ele e

os companheiros de quarto. Sua rotina era difícil. Tomava dinheiro emprestado com

algum primo que já havia chegado por aqui e de melhores condições; assim, comprava

mercadoria e vendia e com o lucro pagava o primo que havia emprestado o dinheiro e

tinha um dinheirinho para mascatear.

A filha conta que o pai só fazia venda casada: já tendo um comprador certo,

pegava a mercadoria de algum parente, vendia e já pagava a mercadoria e administrava o

lucro. Não se valia de créditos, nem empréstimos. O dinheiro que fazia já pagava sua

dívida e já possibilitava novos negócios. Mas, antes de se tornar um poderoso varejista

da região, foi mascate. Não falava nada em português, tinha poucos parentes aqui,

nenhum dinheiro e desconhecia totalmente a cultura da cidade.

Diferente de uma entrevista que fizemos com Jacques Fuad Kerlakian, libanês de

Beirute, nascido em 1934 e que chegou ao Brasil solteiro em 1959, com vinte e quatro

anos de idade. Aportou com o pai, a mãe e o irmão em Santos, morou durante um mês

num hotel em São Vicente e depois foi morar no Bairro do Jardim São Paulo, na Zona

Norte, num bairro de classe média paulistana. Industriais que eram no Líbano, vieram ao

Brasil fugindo da guerra civil, trazendo consigo dinheiro e especialização.

Aqui se estabeleceram, compraram máquinas e, através de contatos com patrícios

da região da Rua 25 de Março, ofereceram seus serviços de estamparia em tecido e

prosperaram.

Perguntado sobre a questão da língua, disse que sabia árabe, turco, francês, inglês

e aprendeu italiano no navio. Para se virar por aqui, se valia do francês e do italiano,

línguas próximas ao português. Trabalhou duro, mas sem uma vida muito sacrificante.

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Seu Jacques casou-se com uma brasileira, tiveram três filhos, todos estudaram e

se tornaram industriais assim como seus avós e pais. Nem a esposa, nem os filhos falam

o árabe. Ele não frequenta a colônia sírio-libanesa por ter-se casado com uma brasileira

cujos costumes são outros, gosta de carteado, é membro do Rotary Clube, através do qual

ajuda pessoas mais necessitadas. Cristão maronita, pouco frequenta a igreja.

A história de Jacques Fuad ilustra também parte da historiografia vista nessa

pesquisa, que contempla aqueles que migraram em períodos diferentes e por razões

diferentes. Assim, tiveram inícios distintos, alguns com muito mais dificuldades

econômicas e sociais que outros.

Considerações finais

A pesquisa que fizemos revela que os imigrantes sírio-libaneses, ao seu modo,

ajudaram a povoar o Brasil e fincaram raízes nos cantos mais remotos do país. Em São

Paulo, constata-se que eram marcados fortemente pelo trabalho e os que vieram num

primeiro momento chegaram solteiros, casaram-se com brasileiras e os filhos

gradualmente iam perdendo o vínculo com a cultura árabe. Eram educados aqui e

misturavam as culturas, sendo que os netos, dos que primeiro vieram, mantém pouco da

cultura árabe. Os filhos dos primeiros imigrantes estudam, se formam e sob a influência

do pai pensavam no futuro. Mais tarde se tornam parte da elite paulistana e brasileira. São

advogados, engenheiros, médicos e outros importantes profissionais liberais,

abandonando assim o comércio, característica principal da sua origem 29.

Dois exemplos importantes para ilustrar nosso argumento acima são os dos

políticos que ainda estão no cenário nacional em plena atividade. Até recentemente o

29 Patrícios: dinheiro, diploma e voto. Revista Veja. São Paulo: Ed. 1669, 2000. Revista Veja 04/10/2000,

disponível em <http://veja.abril.com.br/041000/p_122.html>, acesso em 20 de maio de 2010.

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prefeito da cidade de São Paulo foi Fernando Haddad30, filho do libanês Khalil Hadad

(que migrou para o Brasil em 1947) e da filha de libaneses nascida no Brasil, Norma

Teresa Goussain. Fernando passou parte da juventude atrás de um balcão de loja de

tecidos na Rua Vinte e Cinco de Março, no comércio da família. Ele estudou na

Universidade de São Paulo e se tornou professor de Ciência Política na mesma

Universidade. Ainda há o exemplo do atual presidente do Brasil, Michel Temer31. Este é

o oitavo (e último) filho de Nakhoul Miguel Elias Temer Lulia e de Marchi Barbar Lulia

(ambos libaneses). Michel nasceu na cidade de Tietê, interior paulista. Michel formou-se

em direito na USP, doutorou-se na PUC e foi professor nesta universidade. A carreira de

ambos, cujos pais eram comerciantes, migrou para a política. No que se refere à religião,

ambas as famílias, tanto os Haddad como os Temer, são cristãos. Os primeiros ortodoxos,

estes maronitas.

Outra realidade é a dos que chegam ao Brasil casados e com filhos. Estes,

geralmente, pertencem a um segundo momento da imigração e seus filhos guardam suas

tradições, falam a língua árabe e muitos deles dão continuidade às atividades paternas.

São os lojistas, os varejistas, atacadistas, os líderes do comércio.

Ainda, existem também aqueles que, depois de estabelecidos aqui no Brasil,

vindos antes da Primeira Guerra Mundial ou depois, voltavam para o Oriente à procura

de uma esposa árabe para constituir família e traziam-na para o Brasil32.

Esses primeiros moradores da região da Rua 25 de março, predominantemente,

assim como outros que se espalharam pela cidade, ajudaram São Paulo a se estabelecer

como metrópole, trazendo para cá seus modos de fazer negócio, de educar os filhos, sua

culinária, sua hospitalidade e sua cultura milenar.

30 Disponível em < http://epoca.globo.com/tudo-sobre/noticia/2016/09/fernando-haddad.html>, acessado

em 20/04/2017. 31 Disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/michel-temer/4f884d31d14d951b1200014c.html,

acessado em 20/04/2017. 32 GATTAZ, André. Do Líbano ao Brasil: história oral de imigrantes. São Paulo: Gandalf, 2005, p.36,

37.

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Por fim, entendemos que as pressões sofridas no passado para que os homens

abandonassem suas terras, seus modos de vida e suas esperanças locais mostram que

migrar, para muitos destes, é como uma sepultura aberta, pois, enquanto saem de suas

terras enterram ali seus sonhos e esperanças, abraçando as incertezas de um mundo

essencialmente diferente dos seus. Mas, ao mesmo tempo, nesse desembarcar em novos

portos, esses estrangeiros de cultura milenar, trazem consigo suas vidas cheias de

experiências únicas que, somadas às realidades locais, possibilitam transformações que

perdurarão.

Assim, é uma constatação óbvia de que este país é outro depois que povos diversos

aqui chegaram. A cultura foi sendo enriquecida pelos valores que lhes foram agregados

e, embora seja dolorido o processo de implantação numa terra estrangeira, uma vez que

esta etapa é vencida, o que se tem é uma colheita boa e frutos únicos que tem alimentado

gerações desse Brasil sem fronteiras.

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