As Formigas (de Seminário dos Ratos) - Lygia Fagundes Telles

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    LygiaFagundesTellesSeminriodos RatosContos

    Nova edio revista pela autora

    posFcio de

    Jos Castello

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    Copyright 1977, 2009 by Lygia Fagundes Telles

    Graa atualizada segundo o AcordoOrtogrco da Lngua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    capa e projeto grFico

    warrakloureirosobre detalhe de Conversa,de Beatriz Milhazes, 2000, acrlica sobre tela,150 x248 cm. Coleo particular.

    Foto da autora

    Adriana Vichi

    preparao

    Cristina Yamazaki/ Todotipo Editorial

    reviso

    Valquria Della PozzaAna Maria Barbosa

    Os personagens e as situaes desta obraso reais apenas no universo da co;no se reerem a pessoas e atos concretos,

    e sobre eles no emitem opinio.

    [2009]Todos os direitos reservados editora schwarcz ltda.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

    04532-002 So Paulo spTeleone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.br

    daos internaonas e catalogao na publao (cip)

    (c b l, sp, b)

    t, l Fs r : c / l F t; f j c. s p : ch l, 2009.

    n isbn 978-85-359-1430-6

    1. c i. c, j. ii. t

    09-09117 cdd-869.93

    :1. c : l 869.93

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    s

    seminrio dos ratos

    As Formigas 9Senhor Diretor 17Tigrela 33Herbarium 41

    A Sauna 49Pomba Enamorada ou Uma Histria de Amor 79wm 87Lua Crescente em Amsterd 99

    A Mo no Ombro 105A Presena 115Noturno Amarelo 123

    A Consulta 139Seminrio dos Ratos 151

    sobre lygia Fagundes telles e este livro 165

    Poscio Lygia na Penumbra, Jos Castello 169Depoimento Pricles Eugnio da Silva Ramos 177

    A Autora 181

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    As Formigas

    Quando minha prima e eu descemos do txi j era quase noi-

    te. Ficamos imveis diante do velho sobrado de janelas ovala-das, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pe-

    drada. Descansei a mala no cho e apertei o brao da prima.

    sinistro.Ela me impeliu na direo da porta. Tnhamos outra esco-

    lha? Nenhuma penso nas redondezas oerecia um preo me-

    lhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o oga-

    reiro no quarto, a dona nos avisara por teleone que podamos

    azer reeies ligeiras com a condio de no provocar incn-

    dio. Subimos a escada velhssima, cheirando a creolina.

    Pelo menos no vi sinal de barata disse minha prima.

    A dona era uma velha baloa, de peruca mais negra doque a asa da grana. Vestia um desbotado pijama de seda ja-ponesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crostade esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encar-

    didas. Acendeu um charutinho. voc que estuda medicina? perguntou soprando aumaa na minha direo.

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    Estudo direito. Medicina ela.A mulher nos examinou com indierena. Devia estar

    pensando em outra coisa quando soltou uma baorada to

    densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atu-lhada de mveis velhos, desparelhados. No so de palhi-nha urada no assento, duas almoadas que pareciam tersido eitas com os restos de um antigo vestido, os bordadossalpicados de vidrilho.

    Vou mostrar o quarto, ca no sto disse ela emmeio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a segus-semos. O inquilino antes de vocs tambm estudava me-dicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui,estava sempre mexendo neles.

    Minha prima voltou-se: Um caixote de ossos?

    A mulher no respondeu, concentrada no esoro de su-bir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acen-deu a luz. O quarto no podia ser menor, com o teto em de-

    clive to acentuado que nesse trecho teramos que entrarde gatinhas. Duas camas, dois armrios e uma cadeira depalhinha pintada de dourado. No ngulo onde o teto quasese encontrava com o assoalho, estava um caixotinho cober-to com um pedao de plstico. Minha prima largou a mala epondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela ala de corda.Levantou o plstico. Parecia ascinada.

    Mas que ossos to miudinhos! So de criana? Ele disse que eram de adulto. De um ano. De um ano? mesmo, a gente v que j esto orma-

    dos... Mas que maravilha, raro bea esqueleto de ano.E to limpo, olha a admirou-se ela. Trouxe na ponta dosdedos um pequeno crnio de uma brancura de cal. Topereito, todos os dentinhos!

    Eu ia jogar tudo no lixo, mas se voc se interessa pode

    car com ele. O banheiro aqui ao lado, s vocs que vousar, tenho o meu l embaixo. Banho quente, extra. Teleo-ne, tambm. Ca das sete s nove, deixo a mesa posta na

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    cozinha com a garraa trmica, echem bem a garraa re-comendou coando a cabea. A peruca se deslocou ligeira-mente. Soltou uma baorada nal: No deixem a porta

    aberta seno meu gato oge.Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvamos o ba-

    rulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse enca-tarrada.

    Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada numcabide que enei num vo da veneziana, prendi na parede,com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu ursode pelcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha pri-ma subir na cadeira, desatarraxar a lmpada raqussimaque pendia de um o solitrio no meio do teto e no lugaratarraxar uma lmpada de duzentas velas que tirou da sa-cola. O quarto cou mais alegre. Em compensao, agora agente podia ver que a roupa de cama no era to alva assim,alva era a pequena tbia que ela tirou de dentro do caixoti-nho. Examinou-a. Tirou uma vrtebra e olhou pelo buraco

    to reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a de-licadeza com que se amontoam ovos numa caixa.

    Um ano. Rarssimo, entende? E acho que no altanenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se nom da semana comeo a montar ele.

    Abrimos uma lata de sardinha que comemos com po,minha prima tinha sempre alguma lata escondida, cos-tumava estudar at a madrugada e depois azia sua ceia.Quando acabou o po, abriu um pacote de bolacha Maria.

    De onde vem esse cheiro? perguntei arejando. Fuiat o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. Voc no estsentindo um cheiro meio ardido?

    de bolor. A casa inteira cheira assim ela disse. Epuxou o caixotinho para debaixo da cama.

    No sonho, um ano louro de colete xadrez e cabelo repar-

    tido no meio entrou no quarto umando charuto. Sentou-sena cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali coumuito srio, vendo-a dormir. Eu quis gritar, Tem um ano

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    no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhadano cho, ainda vestida, minha prima olhava xamente al-gum ponto do assoalho.

    Que que voc est azendo a? perguntei. Essas ormigas. Apareceram de repente, j enturma-

    das. To decididas, est vendo?Levantei e dei com as ormigas pequenas e ruivas que

    entravam em trilha espessa pela resta debaixo da porta,atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinhode ossos e desembocavam l dentro, disciplinadas comoum exrcito em marcha exemplar.

    So milhares, nunca vi tanta ormiga assim. E no temtrilha de volta, s de ida estranhei.

    S de ida.Contei-lhe meu pesadelo com o ano sentado em sua

    cama. Est debaixo dela disse minha prima e puxou para

    ora o caixotinho. Levantou o plstico. Preto de ormiga!

    Me d o vidro de lcool. Deve ter sobrado alguma coisa a nesses ossos e elas

    descobriram, ormiga descobre tudo. Se eu osse voc, leva-va isso l pra ora.

    Mas os ossos esto completamente limpos, eu j disse.No cou nem um apo de cartilagem, limpssimos. Queriasaber o que essas bandidas vm uar aqui.

    Respingou artamente o lcool em todo o caixote. Em se-guida, calou os sapatos e, como uma equilibrista andandono o de arame, oi pisando rme, um p diante do outro natrilha de ormigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigar-ro. Puxou a cadeira. E cou olhando dentro do caixotinho.

    Esquisito. Muito esquisito. O qu? Me lembro que botei o crnio em cima da pilha, me

    lembro que at calcei ele com as omoplatas para no rolar. Eagora ele est a no cho do caixote, com uma omoplata decada lado. Por acaso voc mexeu aqui?

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    Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de ano.

    Ela cobriu o caixotinho com o plstico, empurrou-o como p e levou o ogareiro para a mesa, era a hora do seu ch.

    No cho, a trilha de ormigas mortas era agora uma ta es-cura que encolheu. Uma ormiguinha que escapou da ma-tana passou perto do meu p, j ia esmag-la quando vi quelevava as mos cabea, como uma pessoa desesperada.Deixei-a sumir numa resta do assoalho.

    Voltei a sonhar afitivamente, mas dessa vez oi o anti-go pesadelo com os exames, o proessor azendo uma per-gunta atrs da outra e eu muda diante do nico ponto queno tinha estudado. s seis horas o despertador disparouveementemente. Travei a campainha. Minha prima dormiacom a cabea coberta. No banheiro, olhei com ateno paraas paredes, para o cho de cimento, procura delas. No vinenhuma. Voltei pisando na ponta dos ps e ento entreabrias olhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha de-saparecido. Olhei para o cho: desaparecera tambm a tri-

    lha do exrcito massacrado. Espiei debaixo da cama e no vio menor movimento de ormigas no caixotinho coberto.

    Quando cheguei por volta das sete da noite, minha primaj estava no quarto. Achei-a to abatida que carreguei no salda omelete, tinha a presso baixa. Comemos num silnciovoraz. Ento me lembrei.

    E as ormigas? At agora, nenhuma. Voc varreu as mortas?Ela cou me olhando. No varri nada, estava exausta. No oi voc que varreu?

    Eu?! Quando acordei, no tinha nem sinal de ormi-ga nesse cho, estava certa que antes de deitar voc juntoutudo... Mas ento, quem?!

    Ela apertou os olhos estrbicos, cava estrbica quando

    se preocupava. Muito esquisito mesmo. Esquisitssimo.Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti

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    de novo o cheiro, mas seria bolor? No me parecia um chei-

    ro assim inocente, quis chamar a ateno da minha prima

    para esse aspecto, mas ela estava to deprimida que achei

    melhor car quieta. Espargi gua-de-colnia Flor de Mapor todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e

    ui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que compe-

    tia nas repeties com o tal sonho da prova oral, nele eu

    marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo.

    E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha afio era

    lev-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O se-

    gundo, desta vez, era o ano. Quando s restou o oco de

    silncio e sombra, a voz da minha prima me sgou e me

    trouxe para a supercie. Abri os olhos com esoro. Ela es-

    tava sentada na beira da minha cama, de pijama e comple-

    tamente estrbica.

    Elas voltaram. Quem? As ormigas. S atacam de noite, antes da madrugada.

    Esto todas a de novo.A tri lha da vspera, intensa, echada, seguia o antigo

    percurso da porta at o caixotinho de ossos por onde subiana mesma ormao at desormigar l dentro. Sem cami-nho de volta.

    E os ossos?Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. A que est o mistrio. Aconteceu uma coisa, no en-

    tendo mais nada! Acordei pra azer pipi, devia ser umas trshoras. Na volta, senti que no quarto tinha algomais, estme entendendo? Olhei pro cho e vi a la dura de ormigas,voc se lembra? No tinha nenhuma quando chegamos. Fuiver o caixotinho, todas se tranando l dentro, lgico, masno oi isso o que quase me ez cair pra trs, tem uma coisamais grave: que os ossos esto mesmo mudando de posi-

    o, eu j desconava mas agora estou certa, pouco a poucoeles esto... Esto se organizando. Como, se organizando?

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    Ela cou pensativa. Comecei a tremer de rio, pegueiuma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lenol.

    Voc lembra, o crnio entre as omoplatas, no deixei

    ele assim. Agora a coluna vertebral que j est quase or-mada, uma vrtebra atrs da outra, cada ossinho tomandoo seu lugar, algum do ramo est montando o esqueleto,mais um pouco e... Venha ver!

    Credo, no quero ver nada. Esto colando o ano, isso?

    Ficamos olhando a trilha rapidssima, to apertada quenela no caberia sequer um gro de poeira. Pulei-a com omaior cuidado quando ui esquentar o ch. Uma ormigui-nha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabe-a entre as mos. Comecei a rir e tanto que se o cho noestivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos

    juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando sa paraa primeira aula. No cho, nem sombra de ormiga, mortas evivas desapareciam com a luz do dia.

    Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teveesta. Vim animada, com vontade de cantar, passei da con-ta. S na escada que me lembrei: o ano. Minha primaarrastara a mesa para a porta e estudava com o bule ume-gando no ogareiro.

    Hoje no vou dormir, quero fcar de vigia ela avisou.

    O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. Estou com medo.Ela oi buscar uma plula para atenuar minha ressaca,

    me ez engolir a plula com um gole de ch e ajudou a medespir.

    Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquantono apareceu nenhuma, no est na hora delas, daqui apouco que comea. Examinei com a lupa debaixo da porta,sabe que no consigo descobrir de onde brotam?

    Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo daescada o ano me agarrou pelos pulsos e rodopiou comi-

    go at o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer

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    minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava l-

    vida. E vesga.

    Voltaram ela disse.

    Apertei entre as mos a cabea dolorida. Esto a?Ela alava num tom mido, como se uma ormiguinha

    alasse com sua voz. Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta.

    Quando acordei, a trilha j estava em plena movimentao.Ento ui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...

    O que oi? Fala depressa, o que oi?Ela rmou o olhar oblquo no caixotinho debaixo da

    cama. Esto mesmo montando ele. E rapidamente, entende?

    O esqueleto j est inteiro, s alta o mur. E os ossinhosda mo esquerda, azem isso num instante. Vamos emboradaqui.

    Voc est alando srio?

    Vamos embora, j arrumei as malas.A mesa estava limpa e vazios os armrios escancarados. Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? Imediatamente, melhor no esperar que a bruxa acor-

    de. Vamos, levanta! E para onde a gente vai? No interessa, depois a gente v. Vamos, vista isto, te-

    mos que sair antes que o ano que pronto.Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram to r-

    pidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, en-ei o urso no bolso da japona e omos arrastando as malaspelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto,deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ouoi um grito?

    No cu, as ltimas estrelas j empalideciam. Quando

    encarei a casa, s a janela vazada nos via, o outro olho erapenumbra.