As Ferramentas Perdidas Da Aprendizagem

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As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem por Dorothy Sayers [1] Eu, cuja experiência de ensino é extremamente limitada, devo presumir que discutir educação é uma matéria, certamente, que não requer apologia. Isto é uma espécie de comportamento que o presente clima de opinião é inteiramente favorável. Os bispos ventilam suas opiniões sobre economia; biólogos, sobre metafísica; químicos inorgânicos, sobre teologia; as pessoas mais irrelevantes são designadas aos ministérios altamente técnicos; e claro, homens rudes escrevem para os jornais para dizer que Epstein e Picasso não sabem como pintar. Até certo ponto, e desde que as críticas sejam feitas com uma modéstia razoável, essas atividades são recomendáveis. Demasiada especialização não é boa coisa. Há também uma excelente razão porque o amador pode sentir-se com o direito de ter uma opinião sobre a educação. Porque se nem todos nós somos professores profissionais, todos nós temos, em algum tempo ou outro, sidos ensinados. Até se não aprendemos nada – talvez em detalhe se não aprendemos nada – nossa participação para a discussão pode ter um valor potencial. Entretanto, está no mais alto grau de improbabilidade que as reformas que eu proponho, em algum tempo implicarão em efeito. Nem pais, nem treinamento em faculdades, nem bancas examinadoras, nem secretarias de governos, nem os ministros de educação, as encarariam e aprovariam. Pois elas redundam nisto: que se vamos formar uma sociedade de pessoas educada, preparadas para preservar a sua liberdade intelectual no meio das fortes pressões da nossa sociedade moderna, precisamos voltar a roda do progresso até uns quatrocentos ou quinhentos anos atrás, mais ou menos no final da Idade Média, até o ponto em que a educação começou a perder de vista o seu verdadeiro objetivo. Antes que me despeçam com a frase apropriada — reacionária, romântica, medieval, laudator temporis acti [fã do passado], ou qualquer que seja o rótulo que primeiro lhes venha às mãos — eu pedirei que considerem uma ou duas perguntas que ficam escondidas na nuca, talvez, de todos nós; e ocasionalmente apareçam para preocupar-nos.

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Sobre a importância do uso do Trivium clássico na educação

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  • As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem

    por

    Dorothy Sayers [1]

    Eu, cuja experincia de ensino extremamente limitada, devo presumir que discutir educao uma matria, certamente, que no requer apologia. Isto uma espcie de comportamento que o presente clima de opinio inteiramente favorvel. Os bispos ventilam suas opinies sobre economia; bilogos, sobre metafsica; qumicos inorgnicos, sobre teologia; as pessoas mais irrelevantes so designadas aos ministrios altamente tcnicos; e claro, homens rudes escrevem para os jornais para dizer que Epstein e Picasso no sabem como pintar. At certo ponto, e desde que as crticas sejam feitas com uma modstia razovel, essas atividades so recomendveis. Demasiada especializao no boa coisa. H tambm uma excelente razo porque o amador pode sentir-se com o direito de ter uma opinio sobre a educao. Porque se nem todos ns somos professores profissionais, todos ns temos, em algum tempo ou outro, sidos ensinados. At se no aprendemos nada talvez em detalhe se no aprendemos nada nossa participao para a discusso pode ter um valor potencial.

    Entretanto, est no mais alto grau de improbabilidade que as reformas que eu proponho, em algum tempo implicaro em efeito. Nem pais, nem treinamento em faculdades, nem bancas examinadoras, nem secretarias de governos, nem os ministros de educao, as encarariam e aprovariam. Pois elas redundam nisto: que se vamos formar uma sociedade de pessoas educada, preparadas para preservar a sua liberdade intelectual no meio das fortes presses da nossa sociedade moderna, precisamos voltar a roda do progresso at uns quatrocentos ou quinhentos anos atrs, mais ou menos no final da Idade Mdia, at o ponto em que a educao comeou a perder de vista o seu verdadeiro objetivo.

    Antes que me despeam com a frase apropriada reacionria, romntica, medieval, laudator temporis acti [f do passado], ou qualquer que seja o rtulo que primeiro lhes venha s mos eu pedirei que considerem uma ou duas perguntas que ficam escondidas na nuca, talvez, de todos ns; e ocasionalmente apaream para preocupar-nos.

  • Quando pensamos sobre a idade to jovem na qual os rapazes iam para a universidade nos tempos, digamos, da dinastia Tudor; e dali em diante eram considerados capazes de assumir responsabilidade pela conduo dos seus prprios assuntos, ns nos confortamos.

    Quando pensamos sobre a incrvel tenra idade com a qual os jovens iam para a universidade, digamos, nos tempos da dinastia Tudor, e a partir de ento eram tidos como capazes de assumir a responsabilidade pela conduo dos seus prprios atos, de uma maneira geral nos sentimos confortveis com a prolongao artificial da infncia e adolescncia intelectual, que adentra os anos de maturidade fsica, a qual to marcada na nossa prpria poca? O fato de adiar a aceitao de responsabilidade para uma data posterior traz consigo um nmero de complicaes psicolgicas que, enquanto possam ser de interesse para psiquiatras, raramente so de benefcio seja para o indivduo ou para a sociedade. O principal argumento em favor de adiar-se a idade de deixar a escola prolongando o perodo de educao geralmente o de que h hoje em dia muito mais para ser aprendido do que havia na Idade Mdia. Isto em verdadeiro, mas no inteiramente. Muito mais matrias so ensinadas aos meninos e s meninas de hoje em dia mas isto significa que eles realmente sabem mais?

    J lhe ocorreu como estranho, ou lamentvel, que atualmente, quando a proporo de alfabetismo em toda a Europa Ocidental mais alta do que jamais foi, as pessoas devessem tornar-se suscetveis influncia de anncios e de propaganda em massa, em proporo at ento desconhecida, nem imaginada? Voc atribui isto meramente ao fator mecnico de que a imprensa e o rdio e demais meios tm tornado muito mais fcil a distribuio da propaganda numa grande rea? Ou voc algumas vezes incomodado pela suspeita de que o produto dos modernos mtodos educacionais menos bom do que ele ou ele podem ser em distinguir o fato da opinio; e o provado do plausvel?

    Ao acompanhar um debate entre pessoas adultas e presumivelmente responsveis, voc j se sentiu perturbado pela extraordinria incapacidade de um debatedor mdio para referir-se questo, ou para acompanhar e refutar os argumentos dos seus oponentes? Ou voc j parou para pensar sobre a incidncia extremamente alta de assuntos irrelevantes que surgem nas reunies de comits; e sobre a grande escassez de pessoas capazes de agirem como dirigentes de reunies de comits? E quando voc pensa sobre isso, e pensa que a

  • maioria dos nossos assuntos pblicos so solucionados por debates e por comits, voc alguma vez j se sentiu como se seu corao naufragasse?

    Voc j acompanhou uma discusso no jornal ou em qualquer outro lugar e notou o quo freqente os escritores falham em definir os termos que usam? Ou o quo freqente, se algum definir mesmo os seus termos, um outro assumir, na sua resposta, que ele estava usando os termos no sentido exatamente oposto quele no qual ele j os havia definido? Voc j se sentiu tonto com a quantidade de sintaxe descuidada que existe? E se sim, voc se sente incomodado porque deselegante ou porque pode levar a uma incompreenso perigosa?

    Voc acha que as pessoas jovens, ao deixarem a escola, no somente se esquecem muito do que aprenderam (isto somente o esperado), mas tambm se esquecem, ou traem-se por nunca haverem na verdade aprendido, como lidar sozinhos com um assunto novo? Voc se incomoda com freqncia ao encontrar-se com homens e mulheres adultos que parecem incapazes de distinguir entre um livro que seja bom, acadmico and apropriadamente documentado e um que seja, para qualquer olho treinado, notadamente nada daquilo? Ou que no consigam manusear um catlogo de biblioteca? Ou que, quando face a face com um livro de referncia, demonstrem uma curiosa incapacidade de extrair dali as passagens relevantes para o assunto que lhes seja de particular interesse?

    Voc freqentemente depara-se com pessoas para quem, suas vidas todas, um assunto permanece sendo um assunto, separado de todos os demais assuntos como se num compartimento estanque, de maneira que encontram dificuldade muito grande ao tentar uma conexo mental entre, digamos, lgebra e fico policial, entre tratamento de esgoto e o preo de salmo ou, mais geralmente, entre esferas tais do conhecimento como filosofia e economia, ou qumica e artes?

    Perturba-o, ocasionalmente, as coisas escritas por homens e mulheres adultos para mulheres e homens adultos lerem? Um bilogo bem conhecido escreve sobre este assunto num jornal semanal que um argumento contra a existncia de um Criador (acho que ele colocou de forma mais forte, mas j que eu, muito infelizmente, perdi a referncia, colocarei seu raciocnio o mais brando possvel) um argumento contra a existncia de um Criador, que o mesmo tipo de

  • variaes que so produzidas por seleo natural possam ser produzidas vontade, por criadores. Algum pode sentir-se tentado a dizer que isto mais um argumento a favor da existncia de um Criador. Na realidade, claro que no nenhuma das situaes; tudo o que isto prova que as mesmas causas materiais (seja a re-combinao dos cromossomos, sejam os cruzamentos e assim por diante) so suficientes para explicar todas as variaes observveis tanto como as vrias combinaes da mesma dzia de notas so materialmente suficientes para explicar a Sonata ao Luar de Beethoven e os sons produzidos por um gatinho andando sobre as teclas. Mas o fato de o gato andar sobre as teclas do piano no prova nem contesta a existncia de Beethoven; e tudo o que provado pelo argumento do bilogo que ele era incapaz de distinguir entre uma causa material e uma causa final.

    Eis aqui uma frase de fonte no menos acadmica que um artigo de primeira pgina no Suplemento Literrio do jornal Ingls The Times: O Francs Alfred Epinas, afirmou que certas espcies (e.g. formigas e vespas) somente podem encarar os horrores da vida e da morte em associao. No sei o que o Francs realmente disse, o que o Ingls diz que ele disse patentemente sem sentido. No podemos saber se a vida tem algum horror para a formiga, nem em que sentido pode ser dito que aquela vespa que voc mata no peitoril da janela encara ou no encara os horrores da morte. O tema do artigo o comportamento coletivo do homem; e as razes humanas foram inobstrutivamente transferidas da proposio principal para a situao de suporte. Assim o argumento, efetivamente, assume o que deveria provar um fato que se tornaria imediatamente aparente se fosse apresentado num silogismo formal. Este somente um exemplo pequeno e aleatrio, de um vcio que permeia livros inteiros particularmente livros escritos por homens da cincia, sobre temas metafsicos.

    Uma outra citao da mesma edio do Suplemento Literrio do The Times vem muito apropriadamente completar esta despretenciosa coleo de pensamentos inquietantes esta vez da reviso da obra Algumas Tarefas para a Educao escrita por Sir Richard Livingstone: Mais de uma vez o leitor lembrado do valor de um estudo intensivo de pelo menos um tema, de modo a aprender o significado do conhecimento e que preciso e persistncia preciso para alcana-lo. Todavia, h um reconhecimento completo, em toda a volta, do desconfortvel fato de que um homem pode ser um mestre

  • numa determinada rea sem mostrar julgamento melhor que o do seu vizinho em qualquer outro assunto; ele se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como aprendeu.

    Eu chamaria a sua ateno em particular para aquela ltima sentena, a qual oferece uma explicao do que o escritor corretamente chama de fato desconfortvel que as capacidades intelectuais a ns conferidas pela nossa educao no so prontamente transferveis a assuntos outros que no aqueles nos quais ns as adquirimos: ele se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como aprendeu.

    No o grande defeito da nossa educao atual defeito este rastrevel atravs de todos os inquietantes sintomas de problema que mencionei que embora ns muitas vezes obtenhamos sucesso em ensinar assuntos aos nossos alunos, ns falhemos lamentavelmente em ensina-los como pensar: eles aprendem tudo, exceto a arte de aprender. como se embora ensinssemos a uma criana tocar O Ferreiro Harmonioso no piano, mecanicamente, s com a prtica; mas nunca a ensinssemos a escala musical ou como ler uma partitura; de modo que, havendo memorizado O Ferreiro Harmonioso, ele ainda assim no teria a mnima noo de como proceder dali e atacar A ltima Rosa do Vero. Por que eu digo como se embora? Em certas reas das artes, ns fazemos precisamente isto requerendo que uma criana expresse-se com tinta antes de ensinarmo-la como lidar com cores e com o pincel. H uma escola de pensamento que acredita ser esta a maneira correta de se iniciar. Mas observe: este no o mtodo do qual um artista treinado se utilizar para uma nova criao. Ele, tendo aprendido pela experincia a melhor forma de economizar esforos e pegar a coisa pelo lado certo, comear desenhando em rascunhos uma pea qualquer de material, de maneira a sentir a ferramenta.

    O ESQUEMA DE EDUCAO MEDIEVAL

    Observemos agora o esquema medieval de educao o programa das Escolas. No importa, no momento, se foi elaborado para crianas pequenas ou para estudantes mais velhos, ou qual a durao esperada do mesmo. O que importa a luz que ele joga sobre o que os homens da Idade Mdia supunham ser o objeto e a ordem certa do processo educativo.

  • O programa era dividido em duas partes: o Trivium e o Quadrivium. A segunda parte o Quadrivium era constitudo de assuntos; e no momento no precisa nos dizer respeito. O que nos interessa a composio do Trivium, que precedeu o Quadrivium e que era a disciplina preliminar para o mesmo. O Trivium consistia-se de trs partes: Gramtica, Dialtica e Retrica, nesta ordem.

    Agora, a primeira coisa que notamos que dois destes assuntos em qualquer ordem no so o que chamaramos de assuntos: eles so somente mtodos de lidar com assuntos. A Gramtica, de fato, um assunto no sentido de que ela significa definitivamente o aprendizado de um idioma naquela poca, gramtica significava o aprendizado do Latim. Mas em si mesmo, um idioma simplesmente o meio atravs do qual um pensamento expresso. O propsito do Trivium como um todo era, na verdade, ensinar o aluno o uso apropriado das ferramentas do aprendizado, antes que ele comeasse a aplica-las aos assuntos. Primeiro ele aprendia um idioma; no simplesmente como pedir uma refeio num idioma estranho, mas a estrutura de um idioma, e destarte o prprio idiomao que era, como era formado, e como funcionava. Em segundo lugar, ele aprendia como usar o idioma; como definir os seus termos e fazer declaraes acuradas; como construir um argumento e como detectar falcias em um argumento. A Dialtica, equivale dizer, compreendia a Lgica e a Disputa. Em terceiro lugar, ele aprendia como se expressar num idiomacomo dizer o que ele tinha a dizer, elegantemente e com persuaso.

    Ao final do seu curso, requeria-se dele a composio de uma tese sobre algum tema indicado pelos seus mestres ou de sua prpria escolha; e em seguida a defesa de sua tese contra o criticismo da faculdade. Nesta altura, ele teria aprendido ou azar dele no meramente como escrever um ensaio num pedao de papel, mas como falar audvel e inteligentemente numa plataforma, e usar rapidamente sua inteligncia quando questionado. Tambm haveria perguntas, argumentativas e astutas, daqueles que j haviam sido confrontados em debates.

    bem verdade que resqucios da tradio medieval ainda perduram, ou foram revividos, no programa escolar ordinrio de hoje em dia. Algum conhecimento de gramtica ainda requerido no aprendizado de um idioma estrangeiro talvez eu devesse dizer, novamente requerido, pois durante a minha prpria vida, passamos por uma fase

  • quando o ensino de conjugaes e inflexes era tido como mais repreensvel, e era considerado ser melhor que tais coisas fossem pegas conforme avanssemos. Sociedades de debate escolar florescem; ensaios so escritos; enfatiza-se a necessidade de uma auto-expresso; e talvez at mesmo o seja em demasia. Mas estas atividades so cultivadas mais ou menos em separado, como que pertencendo aos temas especiais nos quais elas so andorinha sozinha, ao invs de formando um nico e coerente esquema de treinamento mental no qual todos os temas encontram-se numa relao subordinada. A Gramtica pertence especialmente ao tema de idiomas estrangeiros, e a elaborao de ensaios ao tema chamado Lngua Inglesa; enquanto que a Dialtica veio a estar quase que inteiramente divorciada do restante do currculo, e freqentemente praticada sem qualquer sistemtica e fora do horrio de aulas, como um exerccio em separado, apenas muito pobremente relacionada ao assunto principal do aprendizado. Em muito, a grande diferena da nfase entre as duas concepes: a educao moderna concentra-se no ensino de matrias, deixando o mtodo de pensamento, a argio e a expresso das concluses individuais para serem assimiladas pelo acadmico conforme ele avana pela educao medieval, concentrado em primeiro forjar e aprender a manusear as ferramentas do aprendizado, utilizando qualquer que seja o assunto que lhe venha s mos como uma pea de material para ser modelado, at que o uso da ferramenta se torne uma segunda natureza.

    claro que devem existir matrias de algum tipo. Uma pessoa no pode aprender a teoria da gramtica sem aprender um idioma real, ou aprender argio e oratria sem falar sobre algum tema em particular. Os temas de debates da Idade Mdia provinham em muito da teologia, ou da tica ou da histria da antigidade. fato que, freqentemente, eles tornavam-se estereotipados, especialmente prximo ao final do perodo; e os tremendos absurdos do argumento Escolstico vexaram Milton e proveram combustvel para jocosidade at os dias de hoje. Se eram eles prprios mais banais e fteis do que os temas usuais atualmente apresentados para produo de ensaios, eu no gostaria de dizer: ns podemos cansarmo-nos um pouco de Um Dia nas Minhas Frias e de todo o resto. Mas muito da jocosidade no tem lugar, porque de h muito perdeu-se de vista o assunto e o objetivo das teses de debate.

    Um comentarista sem respeito no Brain Trust [programa e peridico Ingls de stira, tambm com site na web] divertiu sua audincia (e

  • reduziu a memria de Charles Williams a trapos) ao afirmar que na Idade Mdia era uma questo de f saber quantos arcanjos podiam danar na ponta de uma agulha. Eu no preciso dizer, espero, que nunca foi uma questo de f; tratava-se simplesmente de um exerccio de debate, cujo tema proposto era a natureza da substncia angelical: os anjos eram materiais, e se o eram, ocupavam lugar no espao? A resposta usualmente considerada como correta , eu creio, que os anjos so inteligncias puras; no materiais, mas limitados, de modo que eles podem ter localizao no espao, porm no extenso. Uma analogia pode ser traada com o pensamento humano, o qual similarmente no material e similarmente limitado. Assim, se o seu pensamento est concentrado numa coisa digamos, a ponta de uma agulha ele est localizado l, no sentido de que no est em nenhum outro lugar; mas embora ele (o seu pensamento) esteja l, ele no ocupa nenhum lugar, e no h nada que evite que um nmero infinito de pensamentos de diferentes pessoas estejam concentrados na ponta da mesma agulha ao mesmo tempo. O tema apropriado do argumento assim visto como sendo a distino entre localizao e extenso no espao; o assunto no qual o argumento exercido apenas ocorre de ser a natureza dos anjos (embora, como temos visto, poderia muito igualmente ter sido qualquer outra coisa); a lio prtica a ser tirada do argumento no usar palavras tais como l num sentido vago e no cientfico, sem especificar se voc quer dizer localizado l ou ocupando espao l.

    Muito escrnio foi jogado sobre a paixo medieval de separar o cabelo, mas quando olhamos ao desavergonhado abuso, feito tanto por escrito como nas plataformas, de expresses controversas com conotaes ambguas e de duplo sentido, podemos sentir em nossos coraes o desejo de que cada leitor e cada ouvinte tivesse sido to defensivamente armado por sua educao, que pudesse ser capaz de bradar: Distinguo.

    Pois ns permitimos que os nossos jovens, rapazes e moas, saiam desarmados, numa poca em que uma armadura nunca foi to necessria. Por ensin-los a ler, temos deixado-os merc da palavra impressa. Pela inveno do rdio e do filme, temos feito certo de que nenhuma averso leitura os livrar da bateria incessante de palavras, palavras, palavras. Eles no sabem o que as palavras significam; eles no sabem como refut-las, ou como torn-las inofensivas ou como resistir a elas; eles so presas das palavras, nas suas emoes, ao invs de serem os seus mestres, nos seus intelectos. Ns que nos

  • escandalizamos em 1940 quando homens eram enviados para lutar contra tanques armados, no nos escandalizamos quando jovens moas e rapazes so enviados para o mundo para lutar contra propaganda massificada somente com conhecimento superficial de matrias; e quando classes inteiras e naes inteiras tornam-se hipnotizadas pelos estratagemas do livro de feitios, ns temos a impudncia de nos espantarmos. Como esmolas ns pouco trabalhamos pela importncia da educao trabalhamos pouco e, apenas ocasionalmente, gastamos um pouco do nosso dinheiro; ns prorrogamos a idade de finalizar os estudos, e planejamos a construo de escolas maiores e melhores; os professores escravizam-se deliberadamente seja durante ou fora do horrio de aulas; e todavia, tanto quanto eu creio, a devoo de todo esse esforo largamente frustrada, porque ns perdemos as ferramentas do aprendizado, e na falta delas nosso trabalho incompleto e desconjuntado.

    O QUE, ENTO ?

    O que, ento, devemos fazer? No podemos regredir Idade Mdia. Este um lamento ao qual ns nos acostumamos. No podemos voltar ou podemos? Distinguo. Eu gostaria que cada termo na proposio acima fosse definido. O termo voltar quer dizer um retrocesso no tempo, ou a reviso de um erro? A primeira hiptese claramente impossvel per se; a segunda algo que homens sbios fazem todo dia. A expresso No podemossignifica que o nosso comportamento irreversivelmente determinado, ou meramente que uma ao como tal seria muito difcil, em vista da oposio que provocaria? O sculo vinte obviamente no e nem pode ser o sculo catorze; mas se a Idade Mdia for, neste contexto, simplesmente uma frase pitoresca denotando uma teoria educacional em particular, ento a priori no parece haver nenhuma razo porque no devssemos voltar com modificaes da mesma forma como j voltamos, com modificaes, para, digamos, a idia de apresentar peas de Shakespeare como ele as escreveu, e no nas verses modernizadas de Cibber e Garrick, que uma vez pareceram ser a ltima moda em termos de progresso teatral.

    Vamos divertirmo-nos imaginando que to retrocesso progressivo seja possvel. Faamos uma limpeza completa de todas autoridades educacionais, e tomemos uma pequena escola mista, de garotos e garotas, a quem podemos experimentalmente equipar para o conflito

  • intelectual segundo linhas que ns mesmos escolhemos. Dot-los-e-mos com pais excepcionalmente dceis; contrataremos para a nossa escola professores e mestres que sejam perfeitamente familiares com os mtodos e com o objetivo do Trivium; teremos as instalaes fsicas da nossa escola em propores tais que possibilitem as classes serem pequenas o suficiente para ateno adequada; e postularemos uma Banca de Examinadores desejosos e qualificados para testar os produtos que lhes apresentarmos. Assim preparados, tentaremos delinear um programa um Trivium moderno, com modificaes, e veremos aonde chegaremos.

    Mas primeiro: as crianas, que idade devem ter? Bem, se algum educ-los em linhas novelescas, ser melhor que eles no tivessem nada para aprender; alm do mais, ningum pode comear algo cedo demais, e o Trivium por sua natureza no um aprendizado, mas uma preparao para o aprendizado. Vamos, ento, peg-los enquanto jovens, exigindo de nossos alunos somente que eles sejam capazes de ler, de escrever e que conheam nmeros.

    Meus pontos de vista sobre a psicologia infantil so, eu admito, nem ortodoxos nem iluminados. Olhando para o meu prprio passado (uma vez que eu sou a criana que melhor conheo e a nica criana que eu posso fingir conhecer no interior) eu reconheo trs estgios de desenvolvimento. Estes, numa forma simples chamarei o Papagaio, o Arrojado e o Potico este ltimo coincidindo, aproximadamente, com a ocorrncia da puberdade. O estgio Papagaio aquele no qual o aprendizado intuitivo fcil e, como um todo, prazeroso; enquanto que o raciocnio difcil e, como um todo, de pouco prazer. Nesta idade, a pessoa memoriza as formas e as aparncias de coisas com facilidade; gosta de recitar os nmeros das placas de carros; alegra-se com as rimas e os sons guturais de polisslabos ininteligveis; gosta do simples acmulo de coisas. A idade do estgio Arrojado, que se segue quela (e, naturalmente, durante algum tempo mescla-se com ela), caracterizada por contradizer, por responder, por gostar de descobrir erros dos outros (especialmente parentes mais velhos); e pelo gostar de propor charadas. Sua capacidade de incomodar extremamente alta. Usualmente se aquieta mais durante o nvel escolar secundrio. A idade do estgio Potico conhecida popularmente como a idade difcil. Nela o indivduo introvertido, tem forte necessidade de expressar-se; de certa forma torna-se especialista em ser incompreendido; incansvel e tenta alcanar independncia; e, com sorte e um bom direcionamento, deveria mostrar os comeos de

  • criatividade; um esticar-se ao encontro de uma sntese do que j sabe, e uma nsia deliberada de conhecer e de fazer alguma coisa, em preferncia a todas as demais. Agora, a mim me parece que o desenho do Trivium se adapta com singular perfeio a estas trs idades: a Gramtica para a idade Papagaio, a Dialtica para a idade Arrojada e a Retrica para a idade Potica.

    O ESTGIO DA GRAMTICA

    Comecemos, ento, com a Gramtica. Esta, na prtica, significa a gramtica de algum idioma em particular; que deve ser um idioma flexionado. A estrutura gramatical de um idioma no flexionado por demais analtica para ser abordada por algum sem uma prvia prtica em Dialtica. Ademais, as linguagens flexionadas interpretam as no flexionadas, enquanto que as no flexionadas so de pouco proveito interpretando as flexionadas. Direi agora, com bastante firmeza, que o melhor fundamento para a educao a gramtica do Latim. Digo isto, no porque o Latim tradicional e medieval, mas simplesmente porque at um conhecimento rudimentar do Latim reduz o labor e as dores da aprendizagem quase de qualquer outro assunto em pelo menos cinqenta por cento. a chave para o vocabulrio e para a estrutura de todos os idiomas Romnticos, e para a estrutura de todos os idiomas Teutnicos, bem como para o vocabulrio tcnico de todas as cincias e para a literatura de toda civilizao Mediterrnea, juntamente com todos os seus documentos histricos.

    Aqueles cuja preferncia pedante por uma linguagem viva os persuade a privar seus alunos de todas vantagens acima, podem substituir pelo Russo, cuja gramtica ainda mais primitiva que a do Latim. O Russo , certamente, til para com outros dialetos Eslavos. H algo tambm para ser dito pelo Grego Clssico. Porm, minha escolha pessoal o Latim. Tendo assim satisfeito aos Classicistas entre vocs, vou escandaliz-los, ao acrescentar que no acho ser sbio ou necessrio limitar o aluno ordinrio, o aluno mediano, na cama de Procusto da Idade Augusta[2], com as suas artificiais e mui elaboradas formas de verso e oratria. O Latim Ps-Clssico e medieval, que era lngua viva at o fim da Renascena, mais fcil e em alguns aspectos mais cheio de vida; um estudo dele ajuda dissipar a noo disseminada de que o aprendizado e literatura pararam por completo quando Cristo nasceu e somente despertaram novamente quando da Dissoluo dos Mosteiros.

  • O Latim deve comear to cedo quanto possvel em um tempo quando a fala flexionada parece no mais surpreender do que qualquer outro fenmeno em um mundo surpreendente; e quando o cantar de Amo, amas, amat to ritualmente agradvel aos sentimentos como o cantar de eeny, meeny, miney, moe [cantiga infantil muito popular em pases da lngua Inglesa].

    Nesta idade devemos, certamente, exercitar a mente em outras coisas alm da gramtica do Latim, quando a Observao e a Memria so as faculdades mais vivas; e se formos aprender uma lngua estrangeira contempornea, devemos comear agora, antes que os msculos faciais e mentais se tornem rebeldes a entonaes estranhas. Francs ou Alemo falados podem ser praticados lado a lado com a disciplina gramatical do Latim.

    Em Ingls, por enquanto, verso e prosa podem ser aprendidos de ouvido, e a memria do aluno deve ser estocada com estrias de todas espcies mito clssico, lenda Europia, e assim por diante. Eu no acredito que as estrias clssicas e obras primas de literatura antiga devam ser as vtimas nas quais pratiquemos as tcnicas de Gramticas - aquilo foi um erro da educao medieval que no necessitamos perpetuar. As estrias podem ser aproveitadas e relembradas em Ingls e relacionadas sua origem num estgio subseqente. Recitao em voz alta deve ser praticada, individualmente ou em coro; pois no devemos esquecer que ns estamos assentando o alicerce para a Discusso e para a Retrica.

    Eu penso que a gramtica da Histria deve consistir de datas, de eventos, de anedotas, e de personalidades. Um conjunto de datas nas quais algum possa pregar todo conhecimento histrico posterior de enorme ajuda um pouco mais adiante, no estabelecimento da perspectiva da histria. No importa muito quais datas: aquelas dos Reis da Inglaterra servir, desde que sejam acompanhados de figuras de vesturios, de arquitetura e de outras coisas cotidianas, de forma que a simples meno de uma data remeta a um retrato visual muito forte de todo o perodo.

    A Geografia ser similarmente apresentada em seu aspecto factual, com mapas, caractersticas naturais, e apresentao visual de costumes, traje, flora, fauna, e assim por diante; e eu mesma creio que a desacreditada e antiquada memorizao de algumas poucas cidades,

  • rios, cordilheiras, etc., no prejudica. A coleo de selos pode ser encorajada.

    A cincia, no perodo Papagaio, se arranja fcil e naturalmente ao redor de colees a identificao e nomeao de espcimes e, em geral, o tipo de coisa que usualmente chamado filosofia natural. Conhecer o nome e propriedades das coisas , nesta poca, uma satisfao em si mesmo, reconhecer um besouro no jardim imediatamente [3], e assegurar aos tolos mais velhos que, apesar de sua aparncia, ele no pica; ser capaz de escolher Cassiopia e as Pliades, e talvez at saber quem foram Cassiopia e Pliades; estar ciente de que uma baleia no um peixe, e uma morcego no um pssaro todas estas coisas do uma agradvel sensao de superioridade; enquanto que saber diferenciar uma cobra cascavel de uma vbora ou uma cogumelo comestvel de um venenoso uma espcie de conhecimento que tambm tem valor prtica.

    A gramtica da Matemtica comea, certamente, com a tabuada, a qual se no for aprendida agora, com prazer, nunca o ser; e com o reconhecimento de formas geomtricas e conjuntos de nmeros. Esses exerccios conduzem naturalmente realizao de somas simples na aritmtica. Processos matemticos mais complexos podem, e talvez devam, ser postergados, por razes que presentemente aparecero.

    At aqui (exceto, claro, pelo Latim), nosso currculo no contm nada que se distancie muito da prtica comum. A diferena ser sentida mais na atitude dos professores, que devem olhar sobre todas estas atividades menos como matrias em si mesmas, do que como um agrupamento de material para ser usado prxima etapa do Trivium. O que esse material de importncia secundria; mas trata-se de tudo e de qualquer coisa que possa utilmente ser armazenado na memria, neste perodo, seja imediatamente inteligvel ou no. A tendncia moderna tentar e forar explanaes racionais na mente de uma criana numa idade demasiadamente tenra. Perguntas inteligentes, feitas espontaneamente, devem certamente receber respostas imediatas e racionais; mas um grande erro supor que uma criana no pode aproveitar com prazer e lembrar coisas que esto alm do seu poder de analisar particularmente se todas aquelas coisas tm forte um apelo imaginativo (como, por exemplo, Kubla Kahn) [4], um jingle atrativo (como algumas das rimas de memria para o gnero Latim), ou uma abundncia de riqueza, polisslabas ressonantes (como Quicunque vult). [5]

  • Isto me lembra da gramtica de Teologia. Eu devo adicion-la ao currculo, porque Teologia a cincia-mestra sem a qual toda a estrutura educacional estar necessariamente desprovida de sua sntese final. Aqueles que discordam disso, ficaro contentes em deixar a educao de seus alunos ainda cheia de finais imprecisos. Isto importar menos do que poderia, desde que quando as ferramentas da aprendizagem tiverem sido forjadas, o estudante ser capaz de lidar com a Teologia por si mesmo, e provavelmente insistir nisso, e fazendo-o com sentido. Pois bem, bom tambm termos esta matria mo e pronta para ser trabalhada. Na idade da gramtica, portanto, devemos familiarizarmo-nos com a histria de Deus e o Homem em linhas gerais i.e., o Antigo e o Novo Testamentos apresentados em partes, por narrativas completas da Criao, da Rebelio, e da Redeno e tambm com o Credo, a Orao do Pai Nosso, e os Dez Mandamentos. Neste estgio inicial, no importa tanto que estas coisas devam ser compreendidas inteiramente, j que elas devem ser conhecidas e lembradas.

    O ESTGIO DA LGICA

    difcil dizer com que idade, precisamente, deveramos passar da primeira para a segunda parte do Trivium. Falando de maneira geral, a resposta : to logo que o aluno mostre-se pronto para argumentos arrojados e interminveis. Pois assim como na primeira parte as faculdades predominantes so a Observao e a Memria, na segunda parte a faculdade que predomina a Razo Discursiva. Na primeira, o exerccio ao qual o restante do material estava, assim dizendo, ligado, era a gramtica do Latim; na segunda, o exerccio chave ser a Lgica Formal. aqui que o nosso currculo apresenta sua primeira divergncia acentuada para com os padres modernos. A perda de reputao sofrido pela Lgica Formal injustificada; e a sua negligncia a raiz de quase todos os sintomas inquietadores que notamos na constituio intelectual moderna. A Lgica tem sido descreditada, em parte porque passamos a supor que somos quase que totalmente condicionados pelo inconsciente e pelo intuitivo. No h tempo para discutir se tal verdadeiro ou no; eu simplesmente farei a observao de que negligenciar o treinamento apropriado da razo a melhor forma possvel de torn-lo verdadeiro. Uma outra causa do estado de desfavor no qual a Lgica caiu a crena de que ela seja inteiramente baseada em pressuposies universais que so ou improvveis ou redundantes. Isto no verdade. Nem todas

  • proposies so deste tipo. Mas mesmo que fossem, no faria diferena, j que cada silogismo cuja maior premissa esteja no formato Todo A B pode ser reapresentado de forma hipottica. A lgica a arte de argir corretamente: Se A, ento B. O mtodo no invalidado pela natureza hipottica de A. Verdadeiramente, a utilidade prtica da Lgica Formal hoje em dia est no tanto no estabelecimento de concluses positivas, como na deteco imediata e exposio de inferncia invlida.

    Revisemos agora, rapidamente, nosso material e vejamos o quanto ele est relacionado com a Dialtica. Deveremos, agora, no lado da Linguagem, ter nosso vocabulrio e morfologia ao alcance das mos; doravante podemos nos concentrar em sintaxe e em anlise (i.e. a construo lgica do pronunciamento) e na histria da linguagem (i.e. como viemos a arranjar nossa fala como o fazemos, de forma a expressar nossas idias).

    Nossa Leitura progredir de narrativa e lirismo para ensaios, argumento e criticismo; e o aluno aprender a aventurar-se na escrita deste tipo de coisa. Muitas lies em quaisquer que sejam as matrias tero a forma de debates; e no lugar de recitaes, individuais ou em coro, haver desempenhos dramticos, com ateno especial para peas nas quais um argumento seja apresentado de forma dramtica.

    A Matemtica a lgebra, a geometria e os mais avanados tipos de aritmtica entraro agora no programa e tero seu lugar como o que realmente so: no uma matria separada, mas um sub departamento da Lgica. nem mais nem menos que a regra do silogismo em sua aplicao particular a nmeros e medidas; e deveria ser ensinada como tal, ao invs de ser, para alguns, mistrio nebuloso; e, para outros, revelao especial, nem iluminando ou sendo iluminada por qualquer outra parte do conhecimento.

    A Histria, auxiliada por um sistema simples de tica derivado da gramtica da teologia, prover muito material apropriado para discusso: O comportamento deste estadista foi justificado? Qual foi o efeito da promulgao de lei como esta? Quais so os argumentos pr e contra esta ou aquela forma de governo? Conseguiremos assim uma introduo histria constitucional um assunto sem significado algum para crianas pequenas, mas de interesse absorvente para aqueles que encontram-se preparados para argir e debater. A

  • prpria Teologia fornecer material para discusses sobre moral e conduta; e fosse o seu escopo estendido por um simples curso de teologia dogmtica (i.e. a estrutura racional do pensamento Cristo), esclarecendo as relaes entre dogma e tica, e emprestando-se a si mesma quela aplicao de princpios ticos em situaes particulares, o que apropriadamente chamado casusmo. A Cincia e a Geografia, semelhantemente provero material para a Dialtica.

    Mas acima de tudo, no devemos negligenciar o material que to abundante na vida diria do prprio aluno.

    H uma deliciosa passagem no livro de Leslie Paul intitulado The Living Hedge que conta como um grupo de garotos divertiram-se por dias discutindo sobre uma extraordinria chuvarada que cara na sua cidade uma pancada de chuva to localizada que molhou apenas metade da rua principal, a outra metade permanecendo seca. Poderia algum apropriadamente afirmar, eles discutiram, que naquele dia havia chovido na cidade, ou sobre a cidade, ou dentro da cidade? Quantas gotas de gua requeria-se para que se constitusse chuva? E assim por diante. O argumento sobre este tema levou a uma multido de situaes similares, sobre movimento e descanso, sono e viglia, est e non est, e a diviso infinitesimal do tempo. O trecho todo um exemplo admirvel do desenvolvimento espontneo da faculdade de raciocnio e da sede natural e apropriada do despertar da razo, para a definio de termos e para a exatido de enunciados. Todos eventos so alimento para tal apetite.

    A deciso de um juiz num jogo; o grau at o qual algum pode transgredir o esprito de uma regra sem incorrer na penalidade prevista na lei: em questes como estas, as crianas so casustas natos, e a sua natural propenso precisa somente de ser desenvolvida e treinada e especialmente, trazida at um estado de relacionamento inteligvel com os eventos do mundo adulto. Os jornais so repletos de bom material para tais exerccios: decises legais, por um lado, em casos onde o motivo em questo no por demais ambguo; e por outro, raciocnio tendencioso e argumentos confusos e desordenados, com os quais as colunas de correspondncia de certos peridicos, poder-se-ia nomear, so abundantemente estocadas.

    Onde quer que o assunto para a Dialtica seja encontrado, claro que extremamente importante focalizar a ateno sobre a beleza e a economia de uma demonstrao bem feita ou de um argumento bem

  • construdo, pelo medo que a venerao morresse por completo. O Criticismo no deve ser meramente destrutivo; embora professor e alunos devam ao mesmo tempo estar prontos para detectar falcia e tendenciosidade, raciocnio descuidado, ambigidade, irrelevncia e redundncia; e atac-los como gatos sobre ratos. Este o momento quando a incluso de um abstrato (N.T.: resumo, sumrio) pode ser utilmente empregado junto com exerccios tais como a produo de um ensaio, e a reduo do mesmo, quando escrito, por 25 ou 50 porcento.

    A objeo ser feita, indubitavelmente, que encorajar pessoas jovens na idade Arrojada a intimidar, corrigir e argir com mais velhos far com que tornem-se perfeitamente intolerveis. Minha resposta que crianas naquela idade j so intolerveis de qualquer forma; e que a sua capacidade natural de argumentao pode to bem ser canalizada para um bom propsito, quanto ser desperdiada. Pode ser, na verdade, bem tolervel em casa se for disciplinada na escola; e de qualquer forma, pessoas mais velhas que abandonaram o salutar princpio de que crianas devem ser vistas mas no ouvidas, tm a ningum mais a no ser eles prprios para culpar.

    Uma vez mais, o contedo do programa neste ponto pode ser qualquer coisa que voc queira. As assuntos fornecem material; mas deve-se pensar neles todos apenas como gros para o trabalho do moinho da mente. Os alunos devem ser encorajados a ir e procurar sua prpria informao; e ento guiados na direo do uso apropriado dos livros de referncia e das bibliotecas, e ser-lhes mostrado como reconhecer quais fontes so confiveis e de excelncia, e quais no o so

    O ESTGIO DA RETRICA

    Caminhando para o encerramento deste estgio, os alunos provavelmente estaro comeando a descobrir por si prprios que o seu conhecimento e a sua experincia so insuficientes, e que as suas inteligncias treinadas necessitam de muito mais material para digerir. A imaginao usualmente dormente durante a idade Arrojada despertar e os incitar a suspeitar das limitaes da lgica e da razo. Isto significa que esto adentrando idade Potica e que esto prontos para embarcar no estudo da Retrica. As portas do armazm do conhecimento devem agora ser-lhes abertas de par em par para entrarem e fartarem-se o quanto quiserem. As coisas uma vez

  • aprendidas pela repetio agora sero vistas em contextos novos; tudo aquilo uma analisado friamente, formar agora uma sntese inteiramente nova; aqui e ali uma percepo repentina trar tona a mais excitante de todas as descobertas, o dar-se conta de que a verdade bvia verdadeira.

    difcil de mapear qualquer programa geral para o estudo da Retrica: demanda-se um certo grau de liberdade. Na literatura, apreciao deveria ser novamente permitido prevalecer sobre o criticismo destrutivo; e a auto expresso na escrita pode ir adiante, agora com suas ferramentas afiadas para um corte limpo e em justa proporo. A qualquer criana que j apresente uma disposio para se especializar deve lhe ser permitido e incentivado: pois quando o uso das ferramentas tiver sido aprendido bem e verdadeiramente, elas estaro disponveis para qualquer estudo que seja. Seria bom, eu penso, que cada aluno devesse aprender a lidar realmente bem com um, ou dois, assuntos, enquanto ainda tendo algumas aulas em matrias subsidirias, de forma a manter a sua mente aberta ao inter-relacionamento de todo o conhecimento. De fato, neste estgio, a nossa dificuldade ser manter as matrias separadas; pois a Dialtica ter mostrado serem todos os ramos do aprendizado interrelacionados, ento a Retrica tender a mostrar que todo o conhecimento um. Mostr-lo, tanto quanto mostrar porqu o , trata-se de tarefa preeminentemente da cincia mestra. Mas se a teologia ou no estudada, ns deveramos pelo menos insistir que crianas que aparentam estar inclinadas a especializarem-se no lado cientfico e matemtico deveriam ser obrigadas a tomar algumas lies no lado das humanas, e vice-versa. Tambm, neste estgio, a gramtica do Latim, havendo completado seu trabalho, pode ser deixada de lado por aqueles que preferirem continuar seus estudos de idiomas no segmento moderno; enquanto que queles que provavelmente no venham a ter uma grande utilidade ou aptido para matemtica podem tambm ser-lhes permitido descansar, mais ou menos, os seus remos. De maneira geral, o que quer que seja simplesmente aparato, pode agora vir a ficar em segundo plano, enquanto que a mente treinada gradualmente preparada para a especializao em matrias nas quais que, quando o Trivium for completado, ela (a mente) esteja perfeitamente bem equipada para lidar por si mesma. A sntese final do Trivium a apresentao e a defesa pblica de uma tese deveria ser restaurada de alguma forma; talvez como uma espcie de exame final durante o ltimo perodo na escola.

  • O escopo da Retrica tambm depende de se o aluno ser apresentado ao mundo na idade de 16 ou se ele prosseguir para a universidade. Uma vez que a Retrica, realmente, devesse ser abordada mais ou menos na idade de 14, a primeira categoria de alunos estudaria Gramtica a partir da idade de 9 e at 11, e Dialtica dos 12 aos 14; assim os seus dois ltimos anos na escola seriam ento devotados Retrica, a qual, neste caso, seria de um tipo razoavelmente especializado e vocacional, capacitando-o ento a abraar imediatamente alguma carreira prtica. Um aluno da segunda categoria terminaria seu curso em Dialtica na sua escola preparatria, e teria aulas de Retrica durante os primeiros dois anos na sua escola pblica. Aos 16, ele estaria pronto para comear com aquelas matrias as quais so propostas para estudo na universidade: e esta parte da sua educao corresponder ao Quadrivium medieval. Isto equivale dizer que o aluno regular, normal, cuja educao formal termina aos 16, somente ter passado pelo Trivium; enquanto que acadmicos tero ambos, o Trivium e o Quadrivium.

    O TRIVIUM DEFENDIDO

    o Trivium, ento, uma educao suficiente para a vida? Ensinado apropriadamente, eu creio que deveria ser. Ao final da Dialtica, as crianas provavelmente parecero estar muito atrs dos seus contemporneos que foram educados conforme os bons e velhos mtodos modernos, tanto quanto diga respeito a conhecimento detalhado de assuntos especficos. Mas aps a idade de 14 eles deveriam ser capazes de facilmente ultrapassar os outros. Eu no estou de forma alguma certa se um aluno que tenha atingido completa proficincia no Trivium no seja capaz de prosseguir imediatamente para a universidade, com a idade de 16, assim provando ser a igualdade dos seus correspondentes medievais, cuja precocidade nos maravilhou no incio desta discusso. Isto, com certeza, transformaria em forragem o sistema de escola pblica Ingls, e desconcertaria em muito as universidades. Isto faria, por exemplo, com que os barcos de corrida de Oxford e de Cambridge fossem muito diferentes [6].

    Mas no estou aqui para considerar os sentimentos dos corpos acadmicos: eu me preocupo somente com o treinamento correto da mente para encontrar-se e para lidar com a massa formidvel de problemas indigestos que lhe so apresentados pelo mundo moderno. Pois as ferramentas do aprendizado so as mesmas, em cada um e em

  • qualquer assunto; e a pessoa que sabe como us-las comandar, dominar um assunto, uma matria nova com qualquer idade, na metade do tempo e com um quarto do esforo despendido pela pessoa que no tem tais ferramentas sob seu comando. Aprender seis matrias sem lembrar-se como elas foram aprendidas nada faz para facilitar o incio de uma stima; ter aprendido e lembrar-se da arte de aprender faz com que cada nova matria, cada novo assunto seja uma porta aberta.

    Antes de concluir estas sugestes necessariamente muito superficiais, eu devo dizer a razo porque julgo necessrio, nestes dias, voltar a uma disciplina a qual tnhamos descartado. A verdade que nos ltimos trezentos anos mais ou menos, temos vivido do nosso capital educacional. O mundo ps renascentista, confuso e excitado pela profuso de novas matrias lhe oferecidas, apartou-se da velha disciplina (a qual tinha, de fato, se tornado tristemente obtusa e estereotipada na sua aplicao prtica) e imaginou que doravante poderia, como se fosse, divertir-se feliz no seu novo e ampliado Quadrivium sem passar pelo Trivium. Mas a tradio escolstica, embora quebrada e desfigurada ainda persistiu nas escolas pblicas e universidades: Milton, conquanto muito protestasse contra, foi formado por ela o debate dos Anjos Cados e a disputa de Abdiel com Sat tm neles as marcas das Escolas, e podem, incidentemente, figurar positivamente como passagens obrigatrias para os nossos estudos Dialticos. At o sculo dezenove, nossos assuntos pblicos eram em sua maioria conduzidos, e nossos livros e nossos peridicos eram na maior parte escritos por pessoas educadas em casas, e treinadas em lugares, onde aquela tradio ainda estava viva na memria e quase que no sangue. Tanto assim, muitas pessoas atualmente, que so atestas ou agnsticas em termos de religio, so governadas em sua conduta por um cdigo de tica Cristo, o qual tem razes to profundas que nunca ocorreu a eles question-lo.

    Mas ningum pode viver de capital para sempre. Conquanto uma tradio tenha razes firmes, se nunca receber gua ela morre, mesmo que morra firme. E hoje em dia um grande nmero talvez a maioria dos homens e mulheres que so responsveis pelos nossos interesses, que escrevem nossos livros e nossos jornais, que conduzem nossas pesquisas, que atuam em nossas peas e nossos filmes, que nos falam das plataformas e dos plpitos sim, e quem educam nossos jovens tm, mesmo que numa tnue memria, experimentado a disciplina Escolstica. Menos e menos as crianas que tornam-se

  • educadas trazem consigo qualquer daquela tradio. Ns perdemos as ferramentas da aprendizagem o machado e a cunha, o martelo e a serra, o cinzel e a plaina que eram to adaptveis a todas as tarefas. Ao invs deles, temos meramente um conjunto de presilhas complicadas, cada qual servir somente para uma tarefa e nada mais, que para o uso das quais nem o olho nem a mo recebem qualquer treinamento, de modo que ningum jamais v o trabalho como um todo ou v o final da obra.

    Que proveito h no empilhar-se tarefa sobre tarefa e prolongar os dias de labuta, se ao final o objetivo principal no alcanado? No a falha dos professores eles j trabalham muitssimo duramente. A tolice combinada de uma civilizao que se esqueceu das suas prprias razes, est forando-lhes a apoiar o peso cambaleante de uma estrutura educacional que est construda sobre a areia. Eles esto fazendo por seus alunos o trabalho que eles prprios deveriam fazer. Porque o nico e verdadeiro fim da educao este: ensinar os homens como aprender por si mesmos; e qualquer que seja a instruo que falhe em faz-lo, esforo despendido em vo.

    Traduo livre: Eli Daniel, Felipe Sabino de Arajo Neto e Helder Nozima

    [1] - Paul M. Bechtel escreve que Dorothy Leigh Sayers (1893-1967) iniciou rapidamente uma carreira no ensino, depois de se graduar em Oxford. Ele publicou uma srie longa e popular de romances policiais, traduziu a Divina Comdia, escreveu uma srie de radionovelas, e uma defesa da crena Crist. Durante Segunda Guerra Mundial, ela viveu em Oxford, e integrou o grupo que inclua C. S. Lewis, Charles Williams, J. R. R. Tolkein, e Owen Barfield. Por natureza e preferncia, ela foi uma erudita e especialista em Idade Mdia. Neste ensaio, a Srta. Sayers sugere que atualmente ensinamos nossas crianas tudo, exceto como aprender. Ela prope que adotemos uma verso apropriadamente modificada do currculo escolstico medieval, por razes metodolgicas. As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem foi primeiramente apresentada pela Srta. Sayers em Oxford, em 1947. Os direitos autorais so da National Review (150 East 35th Street, New York, NY 10016); e aqui reproduzida com permisso.

    mailto:[email protected]

  • [2] - (N.T.: Procusto - figura da mitologia clssica. A autora alude Cama de Procusto expresso que remete exigncia da aderncia a um prottipo, friamente e sem respeito a quaisquer circunstncias ou opinies que possam ser

    divergentes). [3] - (N.T. devils coach-horse em ingls, nome cientfico staphylinus olens um besouro de jardim, de formato alongado, cor escura e aparncia assustadora). [4] - [N.T.: Kubla Kahn ou, Uma Viso num Sonho - poema escrito por Samuel Taylor Coleridge, escrito no outono de 1797 ou (mais provavelmente na primavera de 1798, publicado pela primeira vez em 1816]

    [5] - [N.T.: Quicunque Vult (ou O Credo de Santo Atansio) apesar do ttulo comum, tal documento reflete uma distinta abordagem teolgica Latina Doutrina Trinitariana]

    [6] - (N.T.: a autora faz aluso s provas de remo entre as duas universidades, notrias rivais, cujos remadores so alunos de porte atltico, certamente mais velhos que 16 anos).