As Elites Imperiais e a Adoção Do Sistema Métrico No Brasil

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Artigo sobre as movimentações políticas que levaram a implementação do Sistema Métrico Decimal no Brasil em 1872.

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  • A MEDIDA DO PROGRESSO As elites imperiais e a adoo do sistema mtrico no Brasil 1

    Carlos Eduardo Barbosa Sarmento Pesquisador do CPDOC - FGV

    Mestre em Histria Social pelo PPGHIS/IFCS/UFRJ Doutorando em Histria Social no PPGHIS/IFCS/UFRJ

    Em maio de 1790, o delegado do clero na Assemblia Nacional da Frana

    revolucionria, o prncipe Talleyrand-Prigod, bispo de Autun, encaminhou

    apreciao dos representantes dos Estados Gerais uma proposta de uniformizao das

    unidades de medida para a nao que ento se constitua. Rompendo com o monoplio e

    o arbtrio das medidas e dos padres feudais, era ento sugerido que se adotasse como

    unidade bsica de um novo sistema um parmetro tido como natural, considerado

    portanto uniforme e invarivel, baseado na oscilao pendular verificada latitude de

    45. Iniciava-se assim formalmente o processo de elaborao e implementao do

    sistema mtrico decimal. A Academie des Sciences de Paris seria incumbida da

    formulao deste sistema, que desde ento passou a ser pensado como universal,

    recrutando para tal empresa algumas das figuras mais brilhantes do panorama cientfico

    francs do sculo XVIII como Lavoisier, Laplace, Lagrange. A iniciativa oficial do

    novo regime, estabelecido aps os acontecimentos de 1789, daria concretude a um

    longo processo de discusso, travada nos meios acadmicos e cientficos franceses, a

    respeito da proposta originalmente apresentada por Gabriel Mouton em 1670. Em seu

    tratado Observaes sobre o dimetro do sol e da lua seguidas por breve dissertao

    SARMENTO, Carlos Eduardo. A medida do progresso: as elites imperiais e a adoo do sistema mtrico no Brasil. Rio de Janeiro: CPDOC, 1997.

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    sobre as idias de novas medidas geomtricas, Mouton versava sobre um sistema de

    unidades de medida de base decimal e cujo padro bsico deveria ser tomado da

    natureza, mais precisamente da medida da circunferncia da Terra. Almejava-se ento, e

    com o apoio da representao constitucional do pas, dar uma forma precisa a este longo

    debate cientfico, consubstanciando-se as bases de um sistema de medida

    completamente novo, desprovido de toda e qualquer arbitrariedade dos antigos poderes

    constitudos, e que deveria ser o baluarte dos progressos da razo humana.

    A ascenso ao poder dos jacobinos, em abril de 1793, obstaculizou os

    trabalhos da comisso cientfica, provocando a cassao, o exlio e mesmo a

    condenao pena capital de alguns dos cientistas que se dedicavam ao projeto do

    sistema mtrico. A sucesso de crises polticas, alm da resistncia de alguns setores da

    burguesia comercial francesa, interfeririam significativamente no processo de

    implementao das novas medidas. Somente em 4 de julho de 1837 foi estabelecido por

    lei o uso compulsrio das unidades do sistema mtrico na Frana, consolidando assim

    um projeto que havia alcanado o consenso nos meios cientficos.2 Mais do que a

    praticidade do novo sistema, era ento louvado o carter cientfico e racional de sua

    formulao, uma prova indelvel do progresso cientfico e, mais precisamente, do

    glorioso pavilho da civilizao francesa no limiar de um novo mundo. A mensagem do

    metro era a da vitria das luzes e do projeto poltico-cultural que lhe era associado.

    Aps o turbulento perodo revolucionrio, a Frana se apresentava como o espelho do

    mundo civilizado, a vitrine mais bem acabada do processo de desenvolvimento da

    humanidade. Refulgia no horizonte do mundo ocidental como o referencial teleolgico

    da marcha histrica dos povos, fazendo do novo sistema de medidas um parmetro

    universal de civilidade e progresso, viso sistematizada correntemente nos discursos da

    poca e que pode ser percebida na declarao do ministro Champagny, em sua

    mensagem apresentada na abertura das sesses legislativas de 1806:

    1 O presente trabalho sistematiza alguns dos resultados obtidos no projeto de pesquisa Histria do INMETRO e da Metrologia no Brasil, coordenado pelo pesquisador Jos Luciano Dias (CPDOC) e realizado atravs do convnio institucional INMETRO-CPDOC/FGV. 2 MILANEZ,Jos Frazo.Histrico do sistema mtrico.Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1942. p.49.

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    Uma das instituies da Revoluo, cuja utilidade, evidentemente, mais apreciada o estabelecimento de pesos e medidas, esta obra da cincia, cuja causa dever imperar por sobre a populao ilustrada. Esta instituio ser duradoura e definitiva, desde que o governo se ocupe em estender crescentemente o uso das novas medidas. 3

    Em diferentes pases, as chamadas populaes ilustradas procuraram

    compreender e assimilar a idia preconizada pelo metro. Alm disto, era importante se

    definir com certa urgncia o efetivo carter de universalidade das medidas,

    principalmente no que se referia ao estabelecimento de padres de intercmbio

    comercial entre os principais entrepostos europeus. No dia 12 de junho de 1830 foi

    apresentada no parlamento do Imprio do Brasil a proposta do jovem deputado gacho

    Cndido Batista de Oliveira para a adoo imediata das unidades mtricas do sistema

    francs no pas.4 Apregoando a necessidade de compra e distribuio imediata pelo

    governo imperial de centenas de padres das novas unidades, Oliveira no buscava

    justificar sua proposio na necessidade de adequar a legislao alfandegria da jovem

    nao dos trpicos a uma tendncia do comrcio internacional. A questo no passava

    pelo mbito da discusso econmica e da necessidade de insero do pas nas rotas e

    mercados europeus. Para o promissor matemtico e parlamentar brasileiro o problema

    era de adequao do Imprio s mais significativas tendncias polticas e

    organizacionais do velho continente. Tal fato pode ser observado na apresentao de

    seu projeto, que recorre a um texto de Laplace como forma de justificar perante seus

    pares o critrio que o teria levado a propor tais medidas para o Brasil.

    Cumpre portanto esperar que um dia este systema, que reduz todas as medidas e os seus calculos escala e s operaes mais simples da arithmetica decimal ser to geralmente adoptado, quanto o tem sido o systema de numerao, de que elle o complemento, o qual sem duvida teve que vencer os mesmos obstaculos que o poder do habito oppe actualmente introduco das novas medidas, mas uma vez vulgarisadas, sero essas medidas sustentadas por esse mesmo poder que, junto ao da razo, assegura s instituies humanas uma durao permanente. 5

    3 apud KULA, Witold. La medida y los hombres. Mxico, Siglo XXI, 1980. p.414 4 Anais da Assemblia Geral Legislativa do Imprio. Volume 1830. p. 390-391. 5 apud Jornal do Commercio - 12/12/1859 - p.1

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    Razo e poder, nao e civilizao. Os termos do discurso so bastante

    elucidativos da tnica da proposta encaminhada por Cndido Batista de Oliveira:

    conduzir o Brasil ao rumo da civilizao, adotando como referencial de progresso as

    naes europias, em especial a Frana. O mais surpreendente que a proposta

    anterior consolidao do sistema em seu prprio pas de origem, no havendo ainda,

    portanto, um resultado prtico da eficcia de suas medidas. Este aspecto refora o ponto

    que pretendemos discutir neste texto, o fato de que o processo de adoo do sistema

    mtrico no Brasil do sculo XIX evidencia o projeto de estabelecimento de uma

    perspectiva civilizatria, de europeizao da nascente ptria, gestada por uma elite que

    desejava construir no Novo Mundo uma Nova Europa. O universo intelectual e cultural

    dos elementos da burocracia e da poltica imperial conformaram a construo

    imaginria de uma nao constituda sobre as bases econmicas do perodo colonial,

    mas que almejava instituir uma boa sociedade calcada nos valores das Luzes do sculo

    XVIII. Desta maneira, todo o itinerrio que procuraremos observar neste trabalho, da

    primeira proposta de metrificao das unidades de medida consolidao do sistema no

    Brasil, pode ser compreendido como um esforo de inveno de uma nao enquanto

    espelho da civilizao do alm-mar.

    Embora o projeto para a adoo imediata do novo sistema de unidades de

    medida, apresentado em 1830, tenha permanecido fora dos debates parlamentares, a

    proposta viria a chamar a ateno do deputado mineiro Cndido Jos de Arajo Vianna,

    Marqus de Sapuca. Assim como Cndido de Oliveira, Sapuca estudara em Coimbra e

    estava intimamente vinculado s tendncias iluministas que norteavam algumas das

    mais importantes cabeas da administrao imperial. Aps a abdicao de Pedro I,

    Sapuca deixou a presidncia da provncia do Maranho para assumir o Ministrio da

    Fazenda, trazendo consigo a idia de aprofundar o debate em torno da questo levantada

    anteriormente por Oliveira. Atravs do decreto de 8 de janeiro de 1833 o Ministrio

    institua uma comisso encarregada de preparar um relatrio sobre as possibilidades de

    melhoramento do sistema de pesos, medidas e moedas do Imprio. Para tal tarefa seriam

    convocados Igncio Ratton, Francisco da Silva Torres e Cndido Batista de Oliveira.

    Inicialmente aventou-se a possibilidade de implementao da proposta anteriormente

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    encaminhada ao parlamento, mas as resistncias adoo imediata de um novo sistema

    radicalmente inovador logo se fizeram notar.

    Baseando-se no trabalho do presidente norte-americano John Quincy Adams

    sobre o mesmo tema, Silva Torres proporia que a questo da adoo completa do

    sistema mtrico no Brasil fosse tratada com mais parcimnia, levando em conta os

    macios investimentos necessrios e a consolidao das antigas unidades pelos sculos

    de uso na Amrica Portuguesa e na antiga metrpole. Embora reunisse argumentos

    elogiosos perfeio de mtodo e ao carter filosfico do sistema francs, o relatrio

    apresentado apreciao do ministro recomendaria uma mais rigorosa padronizao das

    unidades em uso no pas. No entanto, a relao com as unidades mtricas no seria

    negligenciada. Cndido de Oliveira apresentaria no texto final uma tbua de

    equivalncia entre a vara, o marco, a libra e as demais unidades de medida que vigiam

    no Brasil, ento estabelecidas em seus padres legais, com as respectivas unidades do

    sistema mtrico. Para o proponente original da metrificao no Imprio o objetivo era

    fixar o sistema francs como padro de converso com as unidades adotadas nas demais

    naes, estabelecendo-se assim uma perspectiva de adoo gradativa das unidades

    mtricas no Brasil.6

    Mesmo o conservadorismo do relatrio final encaminhado ao parlamento

    causaria reaes extremadas diante das novas definies das antigas unidades de

    medida. Em 1836 Francisco Vieira Goulart, especialista em medies e arqueaes de

    origem lusitana, publicaria uma memria contestando tecnicamente os valores das

    medidas apresentados pelo texto da comisso.7 Para Goulart seria uma completa

    impreciso estabelecer diferenas, mnimas que fossem, entre as varas em uso em

    Portugal e no Brasil. Ainda mais equivocada seria a denominao de Vara Brasileira,

    vista pelo autor como um arbtrio insustentvel criado pelos integrantes da comisso. A

    partir deste ponto suas acusaes vo ganhando um sentido mais definido,

    principalmente ao acusar os aferidores da alfndega de criar as novas varas apenas

    6 Relatrio sobre o melhoramento do systema de pezos e medidas e monetario, apresentado ao Ilm e Exm Senhor Candido Jos de Arajo Viana, Ministro e Secretrio dEstado da Repartio de Fazenda; pela comisso para este fim nomeada por decreto de 8 de janeiro de 1833. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1834. 7 GOULART, Francisco Vieira. Memoria sobre os defeitos que se encontro no systhema metrologico que se organisou para o Brasil pela comisso nomeada pelo decreto de 8 de janeiro de 1833. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1836.

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    retirando das antigas as armas da coroa portuguesa. A resposta a estes ataques seria

    dada pelo ingls Joseph Ewbank que anteriormente analisara a diversidade de medidas

    em um trabalho encomendado pela embaixada inglesa. Alm de confirmar os termos

    das medies apresentadas no relatrio de 1834, Ewbank definiria a posio de Goulart

    como um sentimento rancoroso e impuro de retaliao contra o novo estatuto poltico do

    Brasil independente.8

    Esboava-se ento um novo campo no qual a discusso acerca das unidades

    de medida ganhava um significado poltico mais bem definido. O sistema de medio

    adotado por um governo era, ele tambm, um dos marcos referenciais de identidade de

    uma nao. Desta forma, definir um sistema de caractersticas brasileiras era uma das

    maneiras de se estabelecer a ruptura com o estatuto colonial. A prtica do novo sistema,

    mesmo no sendo ele extremamente distinto do anteriormente empregado, levava

    integrao das populaes pela comunho e o uso de unidades comuns e uniformes. A

    difuso do sistema, principalmente pela marca brasileira nos nomes das unidades, era

    um dos eixos de agregao e de instituio da nacionalidade. Embora a inovao do

    sistema mtrico tivesse encontrado arraigadas resistncias para a sua definitiva

    implementao no perodo regencial, algumas de suas bases filosficas definiriam os

    termos da identificao da metrologia com os vetores bsicos de constituio e

    afirmao da unidade de um modelo nacional.

    Afastada do proscnio das decises polticas imperiais, a discusso em torno

    da metrificao das medidas brasileiras continuaria motivando alguns esteremetras,

    engenheiros e matemticos da corte. Homens como Cndido de Oliveira, Pedro

    Belegarde e Giacomo Raja Gabaglia realizavam experincias nas escolas militares e nos

    gabinetes da Escola Politcnica que tinham por objeto o exame das diferentes unidades

    de medida em uso no Brasil e os padres provisrios das unidades mtricas decimais:

    O Dr. Raja Gabaglia foi o primeiro que pessoalmente se encarregou de trazer, e que obteve authenticados pelo distincto physico Sr. Lilbermannn e o mecanico Dellenil alguns tipos de metro e nos trabalhos da

    8 EWBANK, Joseph. Analyse da memoria do Senhor Francisco Vieira Goulart.

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    seco que dirige reune sempre par das medidas officiaes as correspondentes metricas 9

    Aproximando-se dos meios cientficos brasileiros e mantendo uma

    constante correspondncia com alguns expoentes das cincias europias, o imperador

    Pedro II no tardaria em ser motivado pelo debate em torno do metro. Em 1855 o

    monarca nomearia uma comisso para acompanhar a Exposio Universal de Paris,

    tendo por objetivo bsico travar conhecimento com os principais progressos mundiais

    no campo da agricultura. Os matemticos Giacomo Raja Gabaglia e Guilherme Schuch

    de Capanema e o poeta e humanista Antnio Gonalves Dias apresentaram memrias a

    respeito de suas observaes no continente europeu, relatando tambm o resultado da

    peculiar reunio presidida pelo Baro de Rotschild da qual haviam tomado parte durante

    a Exposio:

    A metrificao fra definitivamente abraada por uma reunio de 150 membros pertencentes a este ultimo congresso, os quaes, sob a presidncia do baro J. de Rotschild, tomro a deliberao seguinte:

    Os abaixo assignados, afim de cooperarem efficazmente a bem da realizao da ida em questo, determinro mediante a approvao dos seus respectivos governos, formar uma associao internacional, composta de membros escolhidos de todos os paizes civilisados, os quaes se comprometero em seus paizes, por meio de commisses ahi creadas, a promover a adopo de um systema uniforme e decimal de pesos e medidas, e sendo possivel tambem um systema monetario nas mesmas condies. 10

    A adoo do sistema mtrico passava a fazer parte da pauta poltica de

    diversas naes, havendo o governo brasileiro, por intermdio de seus representantes,

    assumido o compromisso de envidar esforos para a concretizao da transformao de

    seu sistema de pesos e medidas. Uma vez mais, a demanda originria de elementos

    vinculados pesquisa cientfica colocava para o Imprio o problema poltico de

    substituio de seu sistema de unidades. Desta vez, no entanto, o contexto para a

    9 Parecer de Antonio Gonalves Dias, Giacomo Raja Gabaglia e Guilherme Schuch de Capanema sobre um novo sistema de pesos e medidas. Cear, maio de 1860. Manuscrito - BN 10 apud Jornal do Commercio - 12/12/1859 - p.1

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  • 8

    retomada deste debate estava balizado pelo irrestrito apoio do monarca tropical s

    iniciativas de carter marcadamente cientfico, principalmente se avalizadas pelos meios

    cientficos europeus. Estava ento sendo definida na reunio parisiense uma pauta para

    o governo imperial. O caminho para a civilizao era medido por unidades mtricas

    decimais e caberia ao imperador, entusiasta das cincias, promover o investimento

    efetivo para que tais propostas fossem definitivamente implementadas.

    O autor da proposta de 1830 de adoo irrestrita e imediata do novo sistema

    no pas seria ento chamado pelo ministro da Fazenda Silva Ferraz para a elaborao de

    um novo parecer sobre a implantao das unidades mtricas. Cndido de Oliveira

    comentaria ento sua experincia na dcada de 30, ressaltando a dificuldade de

    aceitao de uma poltica que era considerada perdulria e que traria enormes prejuzos

    para os comerciantes. Estes teriam sido os argumentos bsicos que haviam prejudicado

    a tramitao da proposio no perodo regencial. Considerava ento como principal

    produto de seu trabalho o estabelecimento das correlaes das antigas unidades com as

    do sistema mtrico, embora julgasse que a transio gradual para o novo sistema no

    poderia ocorrer de forma natural, mas somente atravs de um ato do imperador. A

    posio final que sugere ao ministro justamente a de implementao do novo sistema

    atravs de uma lei que estabelecesse prazos rgidos para a gradativa adoo das novas

    medidas, colocando o Brasil no compasso do desenvolvimento das principais naes

    civilizadas.11

    Enquanto o debate cientfico em torno do sistema francs ganhava espao na

    corte, os comissrios brasileiros na Exposio Universal de Paris encontravam-se no

    serto cearense conduzindo a Expedio Cientfica de Explorao. Considerando que

    no poderiam permanecer margem desta discusso, de cuja reinsero no cenrio

    poltico imperial haviam sido os elementos responsveis, Raja Gabaglia, Gonalves

    Dias e Capanema escreveriam ao imperador sugerindo os passos para a definitiva

    metrificao das unidades de medida imperiais. Este documento, remetido das

    consideradas fronteiras brbaras do Imprio, traz um dos mais significativos arranjos do

    imaginrio acerca da necessidade do progresso rumo civilizao no Brasil do sculo

    XIX. A f inabalvel no potencial construtivo da cincia, em sua perspectiva

    11 A ntegra do memorial de Cndido Batista de Oliveira foi publicado pelo Ministrio da Fazenda na edio de 12 de dezembro de 1859 do Jornal do Commercio.

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  • 9

    regeneradora, e no carter progressista das iniciativas civilizatrias perpassa o texto que

    se atm a descrever detalhadamente as possveis etapas que deveriam ser cumpridas at

    a implementao definitiva do metro:

    Como se v, a opinio dos membros brasileiros da sociedade internacional para a adopo de um systema unanime de pesos e de medidas em todos os paizes civilisados do globo, he que se adopte pura e simplesmente o systema e nomenclatura francezes (...) Ponderando-se na realidade de nossas circunstancias ptrias, na morosidade das comunicaes, na conveniencia de dar tempo ao tempo para obter um resultado solido e effetivo, aconselhariamos que se marcasse o praso de cinco annos, a datar do primeiro de janeiro seguinte, a publicao do decreto para a completa transformao e introduco do novo systema.12

    Esboava-se a preocupao nos efeitos da sincronia entre progresso e atraso,

    civilizao e barbrie no processo de implementao das novas medidas. Era esta a

    percepo, de homens da cincia metidos nos confins do pas, da dicotomia bsica que

    caracterizava o Imprio. Uma corte e uma elite com pretenses europeizantes definindo

    os possveis rumos de uma populao extremamente atrasada, em estado considerado

    como quase selvagem. No entanto, apesar das possveis adequaes que tivessem que

    ser feitas no processo proposto, estas constataes justificavam a necessidade de uma

    ao macia do governo imperial em investimentos que pudessem alavancar o conjunto

    da nao em construo na direo progressiva da civilizao. O metro seria assim o

    padro do progresso, o estalo pedaggico da consolidao do Imprio e da evoluo da

    nao. Deveria ento ser adotado como smbolo da perspectiva civilizatria, referencial

    do caminho a ser percorrido. Sua propagao era compreendida como de importncia

    fundamental para o aprimoramento das relaes sociais e para o desenvolvimento geral

    das populaes:

    Em todas as praas do mercado, e pelo menos em uma praa de cada povoado se ter gravado sobre uma lage o comprimento de um metro com as suas divises em decimetros.(...) Se deveria ter em vista a necessidade de bem

    12 Parecer de Antonio Gonalves Dias, Giacomo Raja Gabaglia e Guilherme Schuch de Capanema sobre um novo sistema de pesos e medidas. Cear, maio de 1860. Manuscrito-BN

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  • 10

    ensinar as classes menos adiantadas as relaes dos pesos novos com os antigos: a usura e a especulao sempre se prevalecem de taes occasies para abusar da ignorancia dos compradores. Os sacerdotes, os delegados e todos os homens honestos devero ser convidados para auxiliarem o Governo Imperial em taes circunstancias. 13

    O metro, na concepo dos comissrios enviados a Paris, era o smbolo do

    desenvolvimento e da prpria unio do Imprio. Ganhava ento real importncia a

    discusso nos meios polticos e tcnicos sobre a necessidade de se promover a mudana

    definitiva das unidades de medida em uso no pas. Nos principais centros acadmicos e

    cientficos, nas esferas regulatrias das atividades comerciais e no parlamento, a partir

    de 1860, o sistema mtrico passa a ser tema de estudos meticulosos e debates rigorosos.

    Em questo estava no apenas o carter moderno e mais progredido do sistema francs,

    mas tambm a aplicabilidade prtica de suas medidas e o custo significativo que

    implicava sua adoo em todo o territrio brasileiro. Enquanto um projeto de confiana

    da coroa tramitava pelo Senado e pela Cmara, as mais distintas vozes procuraram se

    fazer ouvir em torno desta discusso, bem representando o variado espectro do debate

    que se constitua em torno da iminente adoo do sistema no Brasil. Figuras de destaque

    dos meios polticos imperiais, como Tavares Bastos, demonstravam suas desconfianas

    quanto necessidade da medida proposta pelo monarca. Embora no questionasse o

    projeto de modernizao que estava subjacente metrificao, Tavares Bastos temia o

    impacto das transformaes nos setores produtivos e o custo efetivo de tal empreitada

    para os cofres imperiais:

    Nem eu sei, nem meus nobres colegas sabem quanto podem custar estes padres. Tambm no sabemos que dispndio ocasionar a substituio gradual do sistema adotado, nem o ensino do novo sistema nas escolas de instruo primria. Igualmente ignoramos o que pode custar a confeco destas tabelas comparativas de que trata a ltima parte do artigo.14

    Acompanhando o debate poltico da lei que regulamentava o novo sistema,

    diversos matemticos e tcnicos alfandegrios trataram de elaborar e publicar tratados 13 Idem.

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  • 11

    de metrologia que servissem como guia, para o comrcio e para as escolas, das mincias

    do chamado sistema francs.15 Tal fato d a medida do nvel de compreenso que

    determinados setores tinham da irreversibilidade do processo em curso. Pela vontade da

    coroa, preparava-se para alterar todo o arraigado sistema de pesos e medidas vigente.

    Tal medida, no entanto, encontraria muito mais vozes para saud-la do que clamores

    oposicionistas. As elites pareciam estabelecer assim um consenso em torno do papel

    simblico que o metro viria a desempenhar como elo de unio, controle e modernizao

    do Imprio. Benjamin Constant, ento professor do Imperial Instituto dos Meninos

    Cegos, sintetizaria a viso quase messinica do papel que o novo sistema deveria

    desempenhar em terras brasileiras:

    Depois da Revoluo Franceza, quando dissipadas as nuvens que por tanto tempo lhe toldaro o horizonte, entre as importantes emprezas em que a Frana tomou sempre uma brilhante iniciativa, a creao de um systema de pesos, medidas e moedas, fundado nos princpios os mais prprios a dar-lhe um caracter de universalidade, que o approximasse mais que qualquer outro dessa uniformidade theorica ou ideal, que se procura para taes systemas (...) o que simplifica extremamente os calculos, com uma nomenclatura curta e simples, elegante e mnemnica, derivada das linguas grega e latina, sendo um tal systema por todas estas razes emminentemente proprio ao uso de todas as provas, foi mais um raio de luz brilhante, que a Frana dirigiu ao mundo civilisado, foi mais um passo seguro que ella deo no caminho do verdadeiro progresso. 16

    A Lei Imperial n 1.157, estabelecendo o carter oficial e nico do sistema

    mtrico decimal em todo o Imprio do Brasil, foi promulgada no dia 26 de junho de

    1862. De texto extremamente conciso, o instrumento legal determinava a adoo do

    novo sistema de unidades e prescrevia um prazo de dez anos para a transio definitiva

    14 Anais da Assemblia Geral Legislativa do Imprio.Volume 1862. pg 23. 15 Dentre os mais significativos tratados metrolgicos publicados poca podemos mencionar as obras de Antnio Jos Amaral, Systema metrico comparado por meio de tabellas com o systema de medidas usado no Brasil, pelo capito de artilharia a p Antonio Jos do Amaral. Rio de Janeiro, Laemmert, 1862.; de Eduardo de S Pereira de Castro. Compendio de metrologia,. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1863.; e a de Pedro Lisboa, Systema metrico nacional apropriado instruco primaria por Pedro DAlcantara Lisboa, engenheiro, professor de mathematica da Escola Normal da provncia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia de Candido Augusto de Mello, 1862. 16 Ofcio de Benjamin Constant ao Diretor do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, apresentando-lhe o seu parecer sobre as tabelas de reduo de pesos e medidas. Rio de Janeiro, 09/10/1862. Manuscrito-BN

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  • 12

    e completa entre o antigo e o novo sistema. Refletia-se assim, na legislao metrolgica,

    algumas das propostas encaminhadas por Gonalves Dias, Raja Gabaglia e Capanema

    dois anos antes. A compreenso da diversidade de povos que compunham o Imprio,

    aliada necessidade de se fazer representar em todo o territrio brasileiro, forara o

    Imprio a tomar medidas de tolerncia, flexibilizando o processo, tendo em vista a

    necessidade de melhor preparar, educar e estabelecer a relao entre a populao e as

    novas medidas. A regulamentao definitiva do sistema mtrico no Brasil foi

    promulgada em dezembro de 1872, quando ento o governo imperial j se encontrava

    em condies de despachar para as municipalidades os padres oficiais do novo

    sistema. Acompanhando, uma vez mais, as sugestes encaminhadas pelos comissrios

    de 1855, a coroa mandara confeccionar conjuntos completos dos padres das medidas

    mtricas para o uso nas provncias. Observando a documentao pertinente ao processo

    de envio deste material para os mais distantes pontos do territrio, constatamos o grau

    de engajamento da coroa na definitiva metrificao das unidades de medida. Guilherme

    Capanema, ento ministro da coroa, assinaria as circulares de remessa de padres s

    Cmaras Municipais das comarcas, tendo o rigor de prescrever uma srie de cuidados

    em relao conservao dos estales e das balanas que compunham cada um dos

    conjuntos. 17

    Em finais da dcada de 1940, o diretor da Seo de Metrologia do Instituto

    de Pesquisas Tecnolgicas do Estado de So Paulo, Dr. Francisco Barros de Campos,

    encontraria em perfeitas condies de conservao alguns dos conjuntos de padres

    imperiais, enviados em 1872, na sede de vrias prefeituras do interior paulista.18

    Examinando o material, Campos apresentaria um relato fascinante da preciso e da

    beleza dos estales, assim como a constatao de que tais peas possivelmente jamais

    haviam sido efetivamente utilizadas. Idealizadas como elo de uma cadeia de

    metrificao do pas, as caixas de padres metlicos reluzentes foram para as

    comunidades do interior brasileiro, desde o momento mesmo de sua chegada, nada mais

    que venerveis peas de museu. Guardados com esmero em seus estojos, os padres no

    contribuam para adoo do sistema francs no Brasil, deparando-se com tradies

    muito bem consolidadas e de difcil ruptura. Os brases imperiais, soberbamente 17 Circular de Remessa de Padres. Rio de Janeiro, Typographia Apostolo, 1872.

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  • 13

    marcados em cada pea da coleo de padres de unidades, no conseguiram

    consolidar-se no uso cotidiano das populaes. Estudos realizados pelo Ministrio da

    Agricultura nas dcadas de 1930 e 1940 confirmavam o baixo grau de aplicabilidade

    das medidas mtricas em comunidades afastadas dos grandes centros urbanos. Ento

    prevaleciam ainda a libra, a toesa, o martelinho e uma infinidade de unidades de

    medida de valores os mais variados.19

    A proposta de adoo integral do sistema mtrico no Imprio do Brasil pode

    ser entendida como um projeto de construo, por parte das elites nacionais, de uma

    nao ideal, calcada em rgidos referenciais europeus. O grau de vinculao, que

    pudemos at aqui analisar, do governo imperial a este projeto d muito bem esta medida

    da confiana que a coroa depositava no potencial civilizatrio do metro. Por um lado,

    aproximava-se o Brasil do padro das naes mais progredidas, atualizando-o em

    termos metrolgicos e colocando-o mesmo na vanguarda deste processo internacional.

    Por outro lado, acreditava-se que tal iniciativa poderia vir a firmar as bases de uma

    nao de carter moderno e civilizado no Imprio em construo. Poder-se-ia resumir

    esta idia central na proposta de construir e unir a nao por intermdio do metro,

    smbolo mximo do desenvolvimento e do progresso, que deveria ter um santurio em

    toda vila e cidade do interior, cravado em laje eterna, conforme propunham os

    comissrios brasileiros enviados Exposio de Paris. Tal proposta coadunava com o

    projeto saquarema de centralizao governamental e administrativa do Imprio, sendo

    tambm um dos marcos indelveis da presena do aparato estatal em todo o territrio. A

    sntese perfeita destes vetores que tangenciavam o metro pode ser observada na clebre

    premissa do Visconde de Uruguai, pela qual a centralizao o mais poderoso

    instrumento de civilizao.20 Era preciso erigir o slido panteo dos smbolos da

    nacionalidade e da administrao imperial com um instrumental terico e simblico que

    representasse por si s o carter do projeto a ser desenvolvido. O metro era a prpria

    medida do progresso, parte integrante de um projeto nacional de contornos bastante

    ntidos. Em torno de seu referencial orbitavam os caros conceitos de razo, progresso,

    18 CAMPOS, Francisco Barros de. Padres pblicos de medir no Brasil. So Paulo, IPT, 1952. (Boletim IPT n 45) 19 Ministrio da Agricultura. Servio de Estatstica da Produo. Relatrio: Unidades de Peso e Capacidade no decimais em uso no Brasil. Rio de Janeiro, 1944. 20 Visconde de Uruguai. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1960. pp. 344-345.

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    civilizao, centralizao, unio, universalidade, controle, educao e desenvolvimento,

    matrias primas da edificao do Estado-Nao moderno.

    Quando em 1874 e 1875 vrias cidades do nordeste brasileiro e algumas

    comunidades que habitavam a corte e a provncia fluminense se sublevaram contra a

    adoo das medidas mtricas, um claro sinal dos limites do projeto civilizatrio e de

    conformao do Estado-Nao pretendido pelas elites imperiais foi evidenciado.21 A

    fria dos Quebra-Quilos explicitava a ambigidade das propostas de edificao da

    nacionalidade em um panorama to agudamente marcado pela dicotomia e pela

    incongruncia do quadro social brasileiro. No entanto, tais fenmenos no pareciam

    comprometer seriamente a formulao e o encaminhamento das propostas sustentadas

    pelas elites tropicais. O outro civilizacional, o interlocutor direto dos projetos

    conduzidos, no se encontrava no interior dos limites do Imprio. Era sempre em

    direo Europa que os olhos se voltavam em busca dos sinais evidentes do caminho a

    ser trilhado. A construo do Estado nacional no se dava pelo dilogo estreito com as

    foras constitutivas da sociedade brasileira, mas sim pelo reflexo no espelho do outro. O

    ritmo, direo e sentido dos processos era ditado pela tentativa constante de

    compreenso e adequao aos principais movimentos e linhas-de-fora que

    perpassavam o mundo visto como civilizado, o continente europeu. Digno de figurar

    entre as naes mais modernas e progredidas que compunham a Comunidade do

    Metro, o Imprio brasileiro parecia ter consolidado, atravs da epopia da metrificao,

    o seu ingresso definitivo no seleto rol dos pases que simbolizavam os faris do mundo.

    O itinerrio, no entanto, abruptamente alterado em finais da dcada de

    1870. Mesmo aps ter tomado assento e firmado o texto final da Conveno

    Diplomtica do Metro, realizada em Paris no ms de maro de 1875, o governo imperial

    deixaria de enviar representaes para as conferncias mtricas anuais seguintes,

    culminando com a no ratificao do acordo original em 1889.22 Desta maneira, o

    Brasil, que havia sido uma das quinze naes mundiais a acordar a criao do Bureau

    Internacional de Pesos e Medidas, deixava de figurar entre as naes oficialmente

    reconhecidas como mtricas, no usufruindo do direito de acesso aos padres primrios

    oficiais das unidades mtricas e da participao efetiva no BIPM. Embora tal alterao 21 Ver Souto-Maior, Armando. Quebra-Quilos: Lutas sociais no outono do Imprio. So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978.

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  • 15

    no percurso da metrificao do Imprio possa parecer extremamente paradoxal, tendo

    em vista o engajamento completo e o alto investimento da coroa na insero do pas no

    itinerrio civilizatrio do metro, julgamos que tal posicionamento pode ser

    compreendido como emblemtico das relaes estabelecidas entre as elites brasileiras e

    os referenciais estrangeiros. Podemos analisar este processo a partir de uma fonte

    extremamente profcua para as reflexes acerca das relaes Brasil-Europa no sculo

    XIX: a correspondncia do imperador Pedro II, mais especificamente o epistolrio

    trocado entre o monarca e o ento diretor do Conservatrio de Artes e Ofcios de Paris,

    general Arthur Morin.23 Morin, que fora um dos entusiastas da adoo do sistema

    mtrico no Brasil e que chegara a representar a coroa na conveno diplomtica de

    1875, iria gradativamente esboando em suas cartas uma preocupao com os rumos do

    movimento internacional de adoo do novo sistema. Basicamente, o cientista francs

    temia a perda de controle por parte do corpo tcnico e diplomtico francs do processo

    de estabelecimento de organismos internacionais de padronizao e difuso das

    unidades mtricas. Em carta datada de outubro de 1872 tais sinais j eram perceptveis:

    Quelques membres allemands, suisses et russes voudraient fonder Paris un Bureau International du mtre, indpendant de tous les gouvernements qui en feraient les frais, et qui serait charg de toutes les oprations, lesquelles seraient excutes par un personnel pay, tranger la commission, mais nomm par elle. Ce serait une petite rpublique mtrique o l'on serait pay pour ne rien faire, ou peu de choses. J'ai eu le mauvais got de dire que l'on voulait payer des Chanoines du mtre, un autre a dit des vestales du mtre...Malgr cela, on tient bon, et nous serons obligs de concder quelque chose sur le terrain, sauf voir avorter le projet, quand il sera soumis aux gouvernements qui devront payer. Mais, ce que nous ne concderons pas, c'est que le travail qui incombe la commission soit fait par des personnes prises en dehors d'elle. Dj, l'on recule sur ce point. 24

    Aps a celebrao da Conveno do Metro, Morin recomendaria ao

    imperador maior cuidado em relao aos rumos do recm criado Bureau Internacional,

    22 Milanez, Op. Cit. pp. 66-68. 23 Sobre o tema ver o interessante artigo de Patrick Petitjean La correspondance entre Arthur Morin et Pedro II, publicado em Le cahier de lhistoire de CNAM. Paris, n 5, 1996. 24 apud PETITJEAN, Patrick. Op. Cit. Anexos.

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    sugerindo que deixasse de apoiar esta iniciativa com o intuito de boicotar as bases de

    sua proposta. Tal discurso estaria presente em suas cartas at a sua morte, em 1880,

    sendo que nas ltimas mensagens enviadas a Pedro II havia ainda a esperana de que os

    franceses conseguissem recuperar a primazia e a hegemonia sobre o organismo

    internacional criado cinco anos antes. Por intermdio das sugestes de Arthur Morin ao

    imperador brasileiro, as iniciativas mtricas do sculo XIX entrariam em uma fase de

    flagrante retrocesso. Toda a articulao que havia sido construda em torno do potencial

    progressista e unificador do metro encontrava ento o seu limite. No foram as tenses

    internas, nem a resistncia dos setores economicamente produtivos que contriburam

    para o arrefecimento da marcha da metrificao no pas. Uma mera querela, impregnada

    de fortes doses de interesses e vaidades inconfessveis, estabelecida entre figuras de

    destaque do cenrio cientfico e diplomtico europeu imporia as definitivas barreiras

    para a consolidao do sistema e a insero do Brasil nos fruns privilegiados de

    intercmbio tcnico e cultural internacional. Evidencia-se assim o carter provinciano e

    paternalista de uma elite que se supunha cosmopolita e moderna.

    Podemos finalmente inquirir se a idia do metro poderia ser interpretada

    como um dos claros exemplos das exticas importaes efetuadas pelas elites

    brasileiras ao longo dos sculos. Seria o metro um cone perfeito da inconseqente

    circulao das idias fora do seu locus especfico de aplicabilidade? 25 Julgamos que

    observar todo este itinerrio a partir deste prisma pode vir a resultar em uma percepo

    extremamente reducionista dos fenmenos, condicionando-os a um modelo

    interpretativo estril e pouco refinado frente s necessidades das investigaes acerca da

    Histria Intelectual no Brasil. Devemos pensar constantemente no efetivo lugar destas

    idias dentro das diferentes estratgias discursivas e das articulaes culturais e

    intelectivas dos diferentes atores no interior da sociedade abordada. No caso especfico

    do debate em torno da adoo do sistema mtrico no Brasil, pudemos evidenciar, ao

    longo deste texto, a proposio interpretativa de que as idias importadas,

    aparentemente inconciliveis com a realidade brasileira, desempenhavam um papel

    claro e especfico dentro de uma proposta fundamentada para o desenvolvimento e o

    25 Sobre o tema ver o texto original de Roberto Schwarz As idias fora do lugar in Ao vencedor as batatas: forma literria e processo social nos incios do romance brasileiro. So Paulo, uas Cidades, 1977. , e as formas que assumiram as crticas sua proposta sistematizadas por Roberto Ventura em seu livro Estilo tropical: Histria Cultural e polmicas literrias no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1991.

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    progresso da nao brasileira. Responsveis diretos pela construo de um modelo

    organizativo para o Imprio, as elites nacionais negociaram e compactuaram um projeto

    poltico e cultural, revestido tambm de uma forte carga simblica, que buscava em

    referenciais tidos como mais elevados e progredidos a reafirmao de suas propostas.

    Longe de ser uma bizarria, a proposta de metrificao das unidades imperiais evidencia

    a formulao destas idias bsicas para a organizao nacional, calcadas em conceitos

    que integravam o universo cultural destas elites. Investigar sua articulao e os limites

    impostos sua efetivao nos propicia condies de compreenso do quadro social e

    cultural do Brasil poca, contribuindo assim para o debate historiogrfico sobre as

    formas assumidas pelo processo de construo do Estado-Nao no sculo XIX.

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