As Desigualdades Entre Os Homens

5
1 AS DESIGUALDADES ENTRE OS HOMENS 1 Maria José de Rezende Ao menor contato com a vida social, percebe-se, de imediato, que os indivíduos são diferentes entre si. Essas diferenças se expressam no plano das coisas materiais, da religião, da personalidade, da inteligência, do físico, da raça, do sexo, da cultura, entre outros. As diferenças citadas acima devem ser consideradas como os aspectos elementares da manifestação das desigualdades: que podem ser físicas ou sociais, ou seja, são a forma mais simples de se perceber que os homens não são iguais. A um olhar mais atento à sociedade em que vivemos, logo iremos perceber que há indivíduos que moram em favelas, e outros em mansões. Há pessoas que morrem de fome, de desnutrição, enquanto outras se alimentam em excesso. Há Indivíduos analfabetos que nunca tiveram acesso a escolas e há aqueles que possuem a melhor formação escolar. Cada sociedade gera formas de desigualdade específicas, que são o resultado de como essas sociedades se organizam. As desigualdades se manifestam de um modo diferente no Brasil, nos Estados Unidos, na Índia, nas Filipinas ou na África do Sul. As desigualdades assumem feições distintas porque são constituídas a partir de um conjunto de elementos econômicos, políticos e culturais próprios de cada tipo de organização social. Interpretando as desigualdades No período de transição do feudalismo para o capitalismo, que vai do século XVI ao século XVIII, assiste-se à emergência de profundas transformações vinculadas à produção e ao trabalho e de novas condições políticas, jurídicas e culturais (época renascentista), que fizeram surgir um significativo questionamento sobre os fundamentos das desigualdades entre os homens. As desigualdades sociais não eram produto daquele momento histórico apenas, mas foi naquele período que surgiram os questionamentos sobre elas e as explicações que visavam justificá-Ias. Num primeiro momento, pode-se destacar a discussão que Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704) desenvolveram. Thomas Hobbes, pensador inglês, definia o estado de natureza como um estágio no qual o homem se encontrava entregue às suas próprias paixões (competição, vaidade, desconfiança, etc.), o que o levava a um comportamento anti-social. Estabelecia-se, dessa forma, uma luta incessante de todos contra todos pelo poder, gerando a necessidade de um poder soberano, ou seja, superior a todos os homens. Este, por sua vez, não eliminaria a luta competitiva entre os indivíduos, mas a colocaria sob o controle da lei e da ordem. Na discussão sobre o homem na sua condição natural, Hobbes encontrava argumentos para justificar que todos os homens eram naturalmente iguais, o que tornava possível o estabelecimento de uma luta incansável entre eles. Para que a violência não prevalecesse, era 1 In: TOMAZI, N. Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual, 2000, p. 81-89.

Transcript of As Desigualdades Entre Os Homens

Page 1: As Desigualdades Entre Os Homens

1

AS DESIGUALDADES ENTRE OS HOMENS1 Maria José de Rezende

Ao menor contato com a vida social, percebe-se, de imediato, que os indivíduos são

diferentes entre si. Essas diferenças se expressam no plano das coisas materiais, da religião, da

personalidade, da inteligência, do físico, da raça, do sexo, da cultura, entre outros.

As diferenças citadas acima devem ser consideradas como os aspectos elementares da

manifestação das desigualdades: que podem ser físicas ou sociais, ou seja, são a forma mais

simples de se perceber que os homens não são iguais.

A um olhar mais atento à sociedade em que vivemos, logo iremos perceber que há indivíduos

que moram em favelas, e outros em mansões. Há pessoas que morrem de fome, de desnutrição,

enquanto outras se alimentam em excesso. Há Indivíduos analfabetos que nunca tiveram acesso

a escolas e há aqueles que possuem a melhor formação escolar.

Cada sociedade gera formas de desigualdade específicas, que são o resultado de como essas

sociedades se organizam. As desigualdades se manifestam de um modo diferente no Brasil, nos

Estados Unidos, na Índia, nas Filipinas ou na África do Sul. As desigualdades assumem feições

distintas porque são constituídas a partir de um conjunto de elementos econômicos, políticos e

culturais próprios de cada tipo de organização social.

Interpretando as desigualdades No período de transição do feudalismo para o capitalismo, que vai do século XVI ao século

XVIII, assiste-se à emergência de profundas transformações vinculadas à produção e ao trabalho

e de novas condições políticas, jurídicas e culturais (época renascentista), que fizeram surgir um

significativo questionamento sobre os fundamentos das desigualdades entre os homens.

As desigualdades sociais não eram produto daquele momento histórico apenas, mas foi

naquele período que surgiram os questionamentos sobre elas e as explicações que visavam

justificá-Ias.

Num primeiro momento, pode-se destacar a discussão que Thomas Hobbes (1588-1679) e

John Locke (1632-1704) desenvolveram.

Thomas Hobbes, pensador inglês, definia o estado de natureza como um estágio no qual o

homem se encontrava entregue às suas próprias paixões (competição, vaidade, desconfiança,

etc.), o que o levava a um comportamento anti-social. Estabelecia-se, dessa forma, uma luta

incessante de todos contra todos pelo poder, gerando a necessidade de um poder soberano, ou

seja, superior a todos os homens. Este, por sua vez, não eliminaria a luta competitiva entre os

indivíduos, mas a colocaria sob o controle da lei e da ordem.

Na discussão sobre o homem na sua condição natural, Hobbes encontrava argumentos para

justificar que todos os homens eram naturalmente iguais, o que tornava possível o

estabelecimento de uma luta incansável entre eles. Para que a violência não prevalecesse, era

1 In: TOMAZI, N. Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual, 2000, p. 81-89.

Page 2: As Desigualdades Entre Os Homens

2

preciso que os indivíduos fizessem um acordo visando a própria preservação da vida. A esse

acordo Hobbes chamava de contrato.

Por sua vez, John Locke, outro pensador inglês, também se preocupava com o

estabelecimento de um pacto social. Diferentemente de Hobbes, Locke partia da necessidade de

estabelecer uma sociedade política, baseada num pacto entre homens livres e iguais. Assim,

assiste-se à emergência de uma concepção que justificava as desigualdades como inerentes às

próprias condições de existência social e política dos indivíduos; para Locke, os homens eram

livres e iguais na medida em que tinham propriedades a zelar. Os proprietários somente de sua

força de trabalho não eram considerados aptos a pactuar, dadas as suas condições de existência.

Para Locke, a noção de proprietário não se apresentava vinculada apenas à posse material.

Ser proprietário, na teoria individualista do século XVII, significava ter antes de tudo a propriedade

de si mesmo, o que é plenamente justificado ante a emergência da sociedade capitalista, que

exigia que o indivíduo se apresentasse como proprietário, se não de instrumentos de trabalho,

meios de produção, etc, pelo menos de suas capacidades físicas e mentais (sua força de

trabalho) para negociar com o patrão em condições de igualdade.

Assiste-se, com Locke, ao estabelecimento de um conjunto de artifícios políticos para a

proteção de determinados interesses em nome dos interesses de todos os indivíduos. Surgem leis

para regulamentar a relação contraditória e desigual que florescia com o desenvolvimento do

capitalismo.

Enquanto as desigualdades tornavam-se cada vez mais visíveis no cotidiano da sociedade,

principalmente nas cidades européias, a idéia de igualdade estava ganhando nova dimensão, que

teria sua máxima no postulado do liberalismo do século XVIII de que todos os homens são iguais

perante a lei.

A problemática da desigualdade era o centro das diversas reflexões na Europa do século

XVIII. A discussão girava em torno da relação entre propriedade, liberdade e desigualdade.

Edmund Burke (1729-1797), expoente do liberalismo inglês, afirmava que a propriedade garantia

a liberdade, mas exigia a desigualdade. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), pensador francês,

enfatizava basicamente que a liberdade só tinha sentido se estivesse baseada na igualdade.

Ao discorrer sobre o contrato social, Rousseau afirmava que a igualdade é um princípio

jurídico, pois a desigualdade condena os homens à não-liberdade. Tomava, portanto, a lei como

ponto fundamental de sua teoria e defendia que todos os homens deveriam ser iguais perante ela.

No livro O contrato social, Rousseau afirmava que a condição social do homem leva à

situação de desigualdade, a qual não pode ser explicada por fatores naturais. Admitia a existência

de diferenças naturais entre os homens, mas dizia que elas não são responsáveis pelas

diferenças sociais. A novidade de sua reflexão estava no fato de conceber a desigualdade como

um fenômeno social, ou seja, algo gerado pela própria sociedade.

Rousseau, para quem os homens eram livres e iguais, afirmava que o contrato social era uma

forma de selar o pacto de submissão de todos os indivíduos e dos governantes à vontade geral da

Page 3: As Desigualdades Entre Os Homens

3

sociedade. Começava a se desenvolver, assim, a idéia de bem comum.

Esse pensador preocupava-se com as formas de perpetuação da própria desigualdade - por

isso suas análises destacavam o papel desempenhado pelas instituições sociais no processo de

manutenção e reprodução das condições desiguais.

A questão básica no pensamento de Rousseau referia-se à igualdade moral e legítima, a qual

estabelecia a possibilidade de uma sociedade que tivesse como base a igualdade jurídica de

todos os seus membros.

Desigualdade: a pobreza como fracasso O desenvolvimento da industrialização, a partir do século XVIII, propiciou o crescimento

econômico capitalista, e as relações entre o capital e o trabalho tomaram formas correspondentes

a essa sociedade que se solidificava. O capitalista (o patrão) e o trabalhador assalariado (o

operário) passaram a ser as personagens principais dessa nova organização social.

O liberalismo - que se desenvolveu no século XVIII - foi a justificativa encontrada para o novo

mundo e o novo homem que surgiram com o crescimento do capitalismo. Em outras palavras, o

liberalismo tinha como base a defesa da propriedade privada, a liberdade de comércio, a

igualdade perante a lei. A concepção de sociedade e de homem que vigorava na sociedade

medieval estava sendo absolutamente transformada.

O triunfo do homem de negócios (o capitalista) era exaltado como uma virtude (burguesa), fato

que justificava a necessidade de dar-lhe todas as credenciais, uma vez que ele realizaria a

riqueza para o bem de toda a sociedade. O enriquecimento particular era apresentado como

forma de benefício para todos os indivíduos.

Louvava-se o homem de negócios como a expressão do sucesso e sua conduta servia de

modelo para a sociedade como um todo. A riqueza era mostrada como fruto do trabalho e a todos

acessível por intermédio dele. A pobreza (indicador fundamental das desigualdades), em

contraposição, seria produto do fracasso pessoal, e a sociedade não era responsável por sua

existência.

Os pobres, no entanto, tinham que colaborar para a preservação dos bens dos ricos, uma vez

que eles lhes davam trabalho, e, mais ainda, não deviam se revoltar contra a sua situação para

não criar dificuldades para os patrões, que não eram culpados de ser ricos.

Divulga-se a idéia de que os pobres deviam preservar os bens de seus patrões, tais como

máquinas e ferramentas, e que Deus os vigiava constantemente no seu trabalho. Portanto, perder

tempo na execução de sua tarefa era roubar o patrão que lhes estava pagando por uma jornada

de trabalho.

Ao pobre recomendava-se paciência, religiosidade e seriedade como forma de aceitação das

novas regras morais que se iam estabelecendo. É interessante notar que não era mais apenas

pela ausência da graça divina que se justificava a pobreza, como ocorria até o século XVII.

Combinava-se, agora, o fracasso e a ausência da graça.

Page 4: As Desigualdades Entre Os Homens

4

Edmund Burke, no século XVIII, discutir se o governo e os ricos deviam ou não atender às

necessidades dos pobres, argumentava que ninguém podia ajudá-Ios, uma vez que a providência

divina os havia abandonado.

Deve-se enfatizar ainda que a Reforma Protestante teve papel primordial na justificativa do

conjunto de valores que, em rigor, embasaram a nova concepção de riqueza e de pobreza que se

desenvolveu no século XVIII. Não só a Igreja Protestante, mas também a Igreja Católica

incumbiram-se de inculcar nos indivíduos a idéia de que todos deviam trabalhar incessantemente,

pois essa era uma das formas de se alcançar a salvação eterna. .

A pobreza era apresentada também como necessária, já que sem ela não haveria riqueza; era

justificada como uma situação contra a qual nada podia ser feito, senão aceitá-Ia. A última

condição era básica para que houvesse obediência e disciplina. Thomas Robert Malthus (1766-

1834) afirmava que não resolveria pagar salários maiores aos pobres, pois isso os levaria à

bebedeira e a outros gastos supérfluos, e que, além de não eliminar a pobreza, incentivaria a

desordem e a desobediência.

Voltaire (1694-1778) afirmava que, para que o pobre trabalhasse constantemente, devia ter os

seus ganhos limitados, ou seja, nunca ter um salário acima de suas necessidades básicas, pois,

se isso ocorresse, ele não mais se sujeitaria ao trabalho.

O surgimento dessa concepção de pobreza foi um dos aspectos básicos da nova maneira de

ver o mundo que se desenvolveu no século XVIII, uma vez que a partir dessa visão se justificava

também a riqueza. Os defensores da ordem social capitalista procuravam formas de apresentar as

desigualdades sociais não como decorrentes do conjunto de atividades e condições materiais

vigentes, mas como decisão própria daqueles que não aceitavam se submeter às condições do

próprio trabalho.

A desigualdade como produto das relações sociais No século XIX apareceram várias teorias que iam contra as explicações que até então vinham

sendo desenvolvidas. Inauguraram-se, assim, linhas de pensamento que indagavam sobre as

condições de produção e reprodução das diferenças sociais. A simples colocação da questão

nesses termos já significava a não-aceitação da desigualdade como um fato “natural” ou

“estabelecido por Deus”. Começava-se a investigar as origens das desigualdades.

Desde Platão (427-347 a.c.) e Aristóteles (384-322 a.c.) era enfatizado que a organização da

sociedade estava centrada na busca de uma ordenação das diferenças naturais existentes. Desse

modo, uns nasciam livres e outros escravos; a diferença era, então, produzida naturalmente.

Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274), que se preocuparam, também,

com assuntos sociais, filiavam-se às concepções que enalteciam a idéia de que Deus ordenava as

desigualdades.

No século XIX, floresceram correntes seguindo os escritos de Rousseau, para quem, como foi

dito anteriormente, a desigualdade entre os homens tinha de ser pensada a partir das condições

Page 5: As Desigualdades Entre Os Homens

5

sociais vigentes. A sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens buscava na propriedade privada os elementos definidores da desigualdade, que seria

concebida, a partir de então, como um fenômeno social.

Interpretar as diferenças sociais como resultado da forma como os homens se organizavam

significou um dos grandes avanços no processo de entendimento dos elementos constituintes das

desigualdades. Iniciou-se, assim, um longo caminho que culminou nos escritos de Karl Marx

(1818-1883), um dos pensadores mais expressivos na construção de uma Investigação científica

sobre a desigualdade como fenômeno social.

Segundo Marx, a sociedade é produto do conjunto de atividades humanas, que podem ser

definidas como ações recíprocas dos homens. Essas ações são de natureza diversa e, portanto,

múltiplas, assumindo por isso feições diferentes. Para Marx, as ações recíprocas entre os homens

é que tornam a sociedade possível.

A multiplicidade dessas relações acarreta diferentes formas de organização social, que

definem como a sociedade se constitui, evidenciando que os indivíduos são, essencialmente,

seres sociais, visto que se constituem na ação conjugada de uns com os outros, como Marx

demonstrou no primeiro capítulo da obra A ideologia alemã.

Marx vai interrogar, questionar e refletir para apreender os nexos internos que compõem a

sociedade capitalista. Dessa maneira, sua reflexão sobre a desigualdade social não se restringe

aos aspectos jurídicos. Ele a considera como produto de um conjunto de relações pautado na

propriedade como um fato jurídico, mas também político. Resumindo: a questão da dominação,

que garante a manutenção e a reprodução dessas condições desiguais, embasa suas reflexões. .

As desigualdades sociais - frutos/produtos dessa relação contraditória manifestam-se na forma

de apropriação e dominação, ou, em outras palavras, num sistema de organização social no qual

uma classe produz e outra se apropria do produto desse trabalho. Tornam-se, assim, evidentes as

contradições entre as duas classes fundamentais do modo de produção capitalista - a classe

operária e a classe capitalista - e garante-se a dominação política desta última sobre a primeira.

A vida social produz e reproduz a todo instante e em todos os níveis, não apenas econômicos

mas também políticos e culturais, uma multiplicidade de relações contraditórias que, por sua vez,

são responsáveis pela manutenção das desigualdades sociais.

As diferenciações sociais são fabricadas pelas relações econômicas, sociais, políticas e

culturais. Dessa maneira, as desigualdades não são apenas econômicas, mas também culturais,

pois expressam concepções de mundo diferentes, de acordo com cada classe social.

Participar de uma classe social significa, para o indivíduo, partilhar de múltiplas e diversas

atividades sociais, na escola, na família, no trabalho, etc., que definem uma forma de pensar e de

conceber a si próprio e aos outros.