As crônicas de gelo e fogo livro 1 - a guerra dos tronos

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  • 1. AS CRNICAS DE GELOE FOGOLIVRO UMA GUERRA DOS TRONOSTraduoJorge Candeias2010LeYaPrlogo- Deveramos regressar - insistiu Gared quando os bosquescomearam a escurecer ao redor do grupo. - Os selvagensesto mortos.- Os mortos o assustam? - perguntou Sor Waymar Royce comno mais do que uma sugesto de sorriso no rosto.Gared no mordeu a isca. Era um homem velho, com mais decinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir.- Um morto um morto - respondeu. - Nada temos a tratarcom os mortos.

2. - Mas esto mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Queprova temos disso?- Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que esto mortos, prova suficiente para mim.Will j sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo oumais tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.- Minha me disse-me que os mortos no cantam - contouWill.- Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will - respondeuRoyce. - Nunca acredite em nada do que ouvir junto mamade uma mulher. H coisas a aprender mesmo com os mortos -sua voz gerou ecos, alta demais na penumbra da floresta.- Temos perante ns uma longa cavalgada - salientou Gared. -Oito dias, talvez nove. E a noite est para cair.Sor Waymar Royce olhou o cu de relance, com desinteresse.- Isso acontece todos os dias por esta hora. Voc perde avirilidade com o escuro, Gared?Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira s a custoreprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuznegro de seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulhada Noite, em homem e em rapaz, e no estava acostumado aser desvalorizado. Mas era mais do que isso. Will conseguiadetectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho ferido.Era possvel sentir-lhe o gosto: uma tenso nervosa que seaproximava perigosamente do medo.Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava haviaquatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviadopara l, todas as velhas histrias lhe tinham acorrido aocrebro, e suas entranhas se tinham feito em gua. Era agoraum veterano de cem patrulhas, e a escura e infinita terra 3. selvagem a que os sulistas chamavam floresta assombrada jno tinha terrores para si.At aquela noite. Algo era diferente ento. Havia naquelaescurido algo de cortante que lhe fazia eriar os pelos danuca. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, edepois de novo para norte, cada vez para mais longe daMuralha, seguindo sem desvios a trilha de um bando desalteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior.Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava donorte e fazia as rvores sussurrarem como coisas vivas.Durante todo o diaWill tivera uma sensao que era como se alguma coisa oestivesse observando, algo frio e implacvel que no gostavadele. Gared tambm sentira. Will nada desejava com tantafora como cavalgar a toda pressa de volta segurana daMuralha, mas este no era um sentimento que se pudessepartilhar com um comandante.Especialmente com um comandante como aquele.Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antigacom demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado dedezoito anos, de olhos cinzentos, elegante e esbelto como umafaca. Montando em seu enorme corcel de batalha negro, ocavaleiro elevava-se bem acima de Will e Gared, montadosnos seus garranos de menores dimenses. Trajava botasnegras de couro, calas negras de l, luvas negras de pele detoupeira e uma cintilante cota de malha negra e flexvel porcima de vrias camadas de l negra e couro fervido. SorWaymar era um Irmo Juramentado da Patrulha da Noitehavia menos de meio ano, mas ningum poderia dizer que nose preparara para a sua vocao. Pelo menos no que diziarespeito ao guarda-roupa. 4. O manto constitua a consumao da sua glria; zibelina,espessa e negra, suave como pele. "Aposto que foi ele prprioquem as matou todas, ah, pois aposto", dissera Gared nacaserna, entre os vapores do vinho, torceu-lhes as cabecinhase arrancou-as, o nosso poderoso guerreiro". A gargalhada forapartilhada por todos." difcil aceitar ordens de um homem de quem nos rimos decopo na mo", refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorsodo garrano, Gared devia sentir o mesmo.- Mormont nos disse para os encontrarmos, e encontramos -disse Gared. - Esto mortos. No voltaro a nos causarproblemas, Temos uma dura cavalgada nossa frente. Nogosto deste tempo. Se nevar, poderemos levar uma quinzenapara regressar, e a neve o melhor que podemos esperar.Alguma vez viu uma tempestade de gelo, senhor?O nobre pareceu no ouvi-lo. Estudava o crepsculo, o queaprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meiodistrado. Will j cavalgava com o cavaleiro havia temposuficiente para compreender que era melhor no ointerromper quando tinha aquela expresso.- Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. Nodeixe nada de fora,Will fora um caador antes de se juntar Patrulha da Noite.Bem, na verdade fora um caador furtivo. Os cavaleiros livresde Mallister tinham-no apanhado com a boca na botija nosbosques do prprio Mallister, esfolando um dos seus gamos, eapenas pudera escolher entre passar a vestir-se de negro eperder uma mo. Ningum era capaz de se mover pela florestato silenciosamente como Will, e os irmos negros no tinhamdemorado muito tempo para descobrir seu talento.- O acampamento fica duas milhas mais frente, para ldaquela cumeada, ao lado de um crrego - disse Will. - 5. Cheguei o mais perto que me atrevi. Eles so oito, comhomens e mulheres. No vi crianas. Ergueram um abrigocontra a rocha. A neve j o cobriu bem, mas mesmo assimconsegui descortin-lo. No vi nenhum fogo ardendo, mas acova da fogueira ainda estava clara como o dia. Ningum semovia. Observei durante muito tempo. Nunca um homemvivo ficou to quieto.- Viu algum sangue?- Bem, no - admitiu Will.- Viu armas?- Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem tinha ummachado. Com ar de ser pesado, duas lminas, um cruelbocado de ferro. Estava no cho seu lado, junto sua mo.- Prestou ateno posio dos corpos?Will encolheu os ombros.- Um par deles est sentado junto ao rochedo. A maioria estno cho. Como cados.- Ou dormindo - sugeriu Royce.- Cados - insistiu Will. - H uma mulher numa rvore de pau-ferro, meio escondida entre os ramos. Uma olhos-longos - eledeu um tnue sorriso. - Assegurei-me de que no meconseguiria ver. Quando me aproximei, vi que ela tambmno se movia - e sacudiu-se por um estremecimentoinvoluntrio.- Est enregelado? - perguntou Royce.- Um pouco - murmurou Will. - o vento, senhor.O jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem dearmas. Folhas pesadas de geada suspiravam ao passar poreles, e o corcel de batalha movia-se de forma inquieta. 6. - Que lhe parece que possa ter matado aqueles homens,Gared? - perguntou Sor Waymar com ar casual, ajustando aposio do longo manto de zibelina.- Foi o frio - disse Gared com uma certeza frrea. - Vi homenscongelar no inverno passado e no outro antes desse, quandoeu era pequeno. Toda a gente fala de neve com doze metros deprofundidade, e do modo como o vento de gelo chega do norteuivando, mas o verdadeiro inimigo o frio. Aproxima-se emsilncio, mais furtivo do que o Will. A princpio estremece-se eos dentes batem, e bate-se com os ps no cho e sonha-se comvinho aquecido e boas e quentes fogueiras. Ele queima, ah,como queima. Nada queima como o frio. Mas s durantealgum tempo. Ento, penetra no corpo e comea a ench-lo, epassado algum tempo j no se tem fora suficiente paracombat-lo. E mais fcil limitarmo-nos a nos sentar ou aadormecer. Dizem que no se sente dor alguma perto do fim.Primeiro, fica-se fraco e sonolento, e tudo comea a se des-vanecer, e depois como afundar num mar de leite morno.Como que pacfico.- Quanta eloquncia, Gared - observou Sor Waymar. - Nuncasuspeitei que a tivesse dentro de si.- Tambm tive o frio dentro de mim, nobre - Gared puxoupara trs o capuz, oferecendo a Sor Waymar um longo olharsobre os cotos onde as orelhas tinham estado. - Duas orelhas,trs dedos dos ps e o mindinho da mo esquerda. Tive sorte.Encontramos meu irmo congelado no seu posto de vigia comum sorriso no rosto.Sor Waymar encolheu os ombros.- Deveria vestir coisas mais quentes, Gared. 7. Gared lanou ao nobre um olhar feroz, e as cicatrizes em redordas suas orelhas ficaram vermelhas de fria nos locais onde oMeistre Aemon as cortara.- Veremos quo quente poder se vestir quando chegar oinverno - puxou o capuz para cima e arqueou as costas sobreo garrano, silencioso e carrancudo.- Se Gared diz que foi o frio... - comeou Will.- Voc fez alguma vigia nesta ltima semana, Will?- Sim, senhor - nunca havia uma semana em que ele nofizesse uma maldita dzia de vigias. Aonde o homem queriachegar?- E em que estado encontrou a Muralha?- mida - Will respondeu, franzindo a sobrancelha. Agoraque o nobre o fizera notar, via os fatos com clareza. - Eles nopodem ter congelado. Se a Muralha est mida, no podem. Ofrio no suficiente.Royce anuiu.- Rapaz esperto. Tivemos alguns frios ligeiros na semanapassada, e uma queda de neve rpida de vez em quando, mascom certeza no houve nenhum frio suficientemente fortepara matar oito homens adultos. Homens vestidos de peles ecouro, relembro, com um abrigo ali mo e meios para fazerfogo - o sorriso do cavaleiro ressumava confiana. - Will, leve-nos l. Quero ver esses mortos com meus prprios olhos.E a partir desse momento nada mais havia a fazer. A ordemfora dada, e a honra os obrigava a obedecer.Will seguiu frente, com o pequeno garrano felpudoescolhendo com cuidado o caminho por entre a vegetaorasteira. Uma neve ligeira cara na noite anterior, e haviapedras, razes e covas escondidas por baixo da sua crosta, espreita dos descuidados e dos imprudentes. Sor Waymar 8. Royce vinha logo atrs, com o grande corcel negro de batalharesfolegando de impacincia. Aquele cavalo era a montariaerrada para uma patrulha, mas tentem dizer isto ao nobre.Gared fechava a retaguarda. O velho soldado resmungavapara si prprio enquanto avanava.O crepsculo aprofundava-se. O cu sem nuvens tomou umprofundo tom de prpura, a cor de uma velha ndoa negra, edepois se dissolveu em negro. As estrelas comearam a surgir.Uma meia-lua se ergueu. Will estava grato pela luz.- Podemos decerto avanar mais depressa do que isto - disseRoyce depois de a lua se erguer por completo.- Com este cavalo, no - respondeu Will. O medo tornara-oinsolente. - Talvez meu senhor deseje tomar a dianteira?Sor Waymar Royce no se dignou a responder. Em algumlugar nos bosques um lobo uivou.Will levou o garrano para baixo de uma velha e nodosarvore de pau-ferro e desmontou.- Por que parou? - perguntou Sor Waymar.- melhor ir o resto do caminho a p, senhor. O lugar logodepois daquela colina.Royce fez uma pausa momentnea, de olhos presos nadistncia e o rosto pensativo. Um vento frio sussurrou porentre as rvores. O grande manto de zibelina agitou-se nascostas como uma coisa semiviva.- H qualquer coisa de errado aqui - murmurou Gared.O jovem cavaleiro dedicou-lhe um sorriso desdenhoso.- A h?- No o sentiu? - perguntou Gared. - Escute a escurido.Will sentia. Em quatro anos na Patrulha da Noite, nuncaestivera to temeroso. O que era aquilo? 9. - Vento. Rudo de rvores. Um lobo. Que som te apavoratanto, Gared? - como Gared no respondeu, Royce deslizougraciosamente da sela. Atou com segurana o corcel debatalha a uma ramada baixa, bem afastado dos outroscavalos, e retirou a espada da bainha. Jias cintilaram nopunho e o luar percorreu o ao brilhante. Era uma armamagnfica, forjada num castelo e, segundo aparentava,novinha em folha. Will duvidava que tivesse sido alguma vezbrandida em fria.- O arvoredo espesso por aqui - preveniu Will. - Essa espadao atrapalhar, senhor. Uma faca melhor.- Se precisar de instrues, eu as pedirei - disse o jovemsenhor. - Gared, fique aqui. Guarde os cavalos.Gared desmontou.- Precisamos de uma fogueira. Tratarei disso.- Quanta tolice tem nessa cabea, velhote? Se houver inimigosnesta floresta, uma fogueira a ltima coisa que queremos.- H alguns inimigos que uma fogueira manter afastados -disse Gared. - Ursos, lobos gigantes e... e outras coisas...A boca de Sor Waymar transformou-se numa linha dura.- No haver fogo.O capuz de Gared engolia-lhe o rosto, mas Will conseguia vera cintilao dura nos olhos que se fixavam no cavaleiro. Porum momento, temeu que o homem mais velho puxasse aespada. Era uma coisa curta e feia, com o punho desbotadopelo suor e o gume denteado pelo muito uso, mas Will nodaria um pendo de ferro pela vida do nobre se Gared adesembainhasse.Por fim, Gared olhou para baixo.- No haver fogo - murmurou de forma quase inaudvel.Royce tomou aquilo como aquiescncia e virou-se. 10. - Indique o caminho - disse a Will.Will teceu um rumo atravs de um matagal, depois subiu odeclive da colina baixa onde encontrara seu ponto de vigia,por baixo de uma rvore sentinela. Sob a fina crosta de neve osolo estava mido e lamacento, escorregadio, com rochas erazes escondidas, prontas para provocar tropeos.Will no fez nenhum som enquanto subia. Atrs de si ouvia osuave roar metlico da cota de malha do nobre, o restolharde folhas e pragas murmuradas quando ramos espetados seagarravam espada e puxavam o magnfico manto dezibelina do outro homem.A grande rvore estava mesmo no topo da colina onde Willsabia que estaria, com os ramos inferiores no mais que trintacentmetros acima do solo. Will deslizou por baixo, com abarriga apoiada na neve e na lama, e olhou a clareira vaziamais abaixo.O corao parou no seu peito. Por um momento no seatreveu a respirar. O luar brilhava sobre a clareira, sobre ascinzas na cova da fogueira, sobre o abrigo coberto de neve,sobre o grande rochedo, sobre o pequeno riacho meiocongelado. Tudo estava como estivera algumas horas antes.Eles no estavam l. Todos os corpos tinham desaparecido.- Deuses! - ouviu algum dizer atrs de si. Uma espadagolpeou um ramo quando Sor Waymar Royce atingiu o topoda colina. Ficou em p ao lado da rvore, de espada na mo,com o manto a ondular nas costas, soprado pelo vento que selevantava, nobremente delineado contra as estrelas para quetodos o vissem.- Abaixem-se! - segredou Will com urgncia. - H algo deerrado.Royce no se moveu. Olhou para a clareira vazia e deu risada. 11. - Parece que seus mortos levantaram acampamento, Will.A voz de Will o abandonou. Procurou palavras que novieram. No era possvel. Seus olhos percorreram para afrente e para trs o acampamento abandonado e pararam nomachado. Um enorme machado de batalha de duas lminas,ainda cado onde o vira pela ltima vez, intocado. Uma armavaliosa...- De p, Will - ordenou Sor Waymar. - No h ningum aqui.No quero v-lo escondido por baixo de um arbusto.Relutante, Will obedeceu.Sor Waymar olhou-o com aberta desaprovao:- No vou regressar a Castelo Negro com um fracasso naminha primeira patrulha. Vamos encontrar aqueles homens -olhou de relance em volta. - Suba na rvore. Seja rpido.Procure uma fogueira.Will virou-se, sem palavras. No valia a pena argumentar. Ovento movia-se. Trespassava-o. Dirigiu-se para a rvore, umasentinela abobadada cinzenta esverdeada, e comeou a subir.Em breve tinha as mos pegajosas de seiva e estava perdidoentre as agulhas. O medo enchia-lhe o estmago como umarefeio que fosse incapaz de digerir. Murmurou uma preceaos deuses sem nome da floresta e libertou o punhal dabainha. Colocou-o entre os dentes para manter as mos livrespara a escalada. O sabor do ferro frio na boca o confortou.Embaixo, o nobre de repente gritou:- Quem vem l?Will ouviu incerteza na chamada. Parou de escalar; escutou;observou. Os bosques deram resposta: um restolhar de folhas,o correr gelado do riacho, o pio distante de uma coruja dasneves.Os Outros no faziam som algum. 12. Will viu movimento com o canto do olho. Sombras plidasque deslizavam pela floresta. Virou a cabea, viu de relanceuma sombra branca na escurido. Logo depois eladesapareceu. Ramos agitaram-se gentilmente ao vento,coando-se uns aos outros com dedos de madeira. Will abriu aboca para gritar um aviso, mas as palavras pareceramcongelar na garganta. Talvez estivesse errado. Talvez tivessesido apenas uma ave, um reflexo na neve, um truquequalquer do luar. Afinal, o que vira?- Will, onde est? - chamou Sor Waymar. - V alguma coisa? -o homem descrevia um crculo lento, de sbito cauteloso, deespada na mo. Deve t-los pressentido, tal como Will ospressentia. Nada havia para ver. - Responda! Por que estto frio?E estava frio. Tremendo, Will agarrou-se com mais fora aoseu poleiro. Apertou o rosto com fora contra o tronco darvore. Sentia a seiva doce e pegajosa na bochecha.Uma sombra emergiu da escurido da floresta. Parou nafrente de Royce. Era alta, descarnada e dura como ossosvelhos, com uma carne plida como leite. Sua armaduraparecia mudar de cor quando se movia; aqui era to brancacomo neve recm-cada, ali, negra como uma sombra, portodo o lado sarapintada com o profundo cinzento esverdeadodas rvores. Os padres corriam como o luar na gua a cadapasso que dava.Will ouviu a exalao sair de Sor Waymar Royce num longosilvo.- No avance mais - preveniu o nobre. A voz estava quebradacomo a de um rapaz. Atirou o longo manto de zibelina paratrs por sobre os ombros, a fim de libertar os braos para abatalha, e pegou na espada com ambas as mos. O ventoparara. Estava muito frio. 13. O Outro deslizou para a frente sobre ps silenciosos. Na motrazia uma espada que no era como nada que Will tivessevisto. Nenhum metal humano tinha entrado na forja daquelalmina. Estava viva de luar, translcida, um fragmento decristal to fino que parecia quase desaparecer quando visto defrente. Havia naquela coisa uma tnue cintilao azul, umaluz fantasmagrica que brincava com os seus limites, e dealgum modo Will soube que era mais afiada do que qualquernavalha.Sor Waymar enfrentou o inimigo com bravura.- Neste caso, dance comigo.Ergueu a espada bem alto acima da cabea, desafiador. Asmos tremiam com o peso da arma, ou talvez devido ao frio.Mas naquele momento, pensou Will, j no era um rapaz, esim um homem da Patrulha da Noite. O Outro parou. Willviu seus olhos, azuis, mais profundos e mais azuis do quequaisquer olhos humanos, de um azul que queimava comogelo. Will fixou-se na espada que estremecia, erguida, eobservou o luar que corria, frio, ao longo do metal. Duranteum segundo, atreveu-se a ter esperana.Emergiram em silncio, das sombras, gmeos do primeiro.Trs... quatro... cinco... Sor Waymar talvez tivesse sentido ofrio que vinha com eles, mas no chegou a v-los, no chegoua ouvi-los. Will tinha de cham-lo. Era seu dever. E suamorte, se o fizesse. Estremeceu, abraou a rvore e manteve osilncio.A espada clara veio pelo ar, tremendo.Sor Waymar parou-a com o ao. Quando as lminas seencontraram, no se ouviu nenhum ressoar de metal commetal, apenas um som agudo e fino, no limiar da audio,como um animal a guinchar de dor. Royce deteve um 14. segundo golpe, e um terceiro, e depois recuou um passo. Outrachuva de golpes, e recuou outra vez.Atrs dele, para a direita, para a esquerda, em seu redor, osobservadores mantinham-se em p, pacientes, sem rosto,silenciosos, com os padres mutveis de suas delicadasarmaduras a torn-los quase invisveis na floresta. Mas nofaziam um gesto para intervir.Uma vez e outra, as espadas encontraram-se, at Will querertapar os ouvidos, protegendo-os do estranho e angustiadolamento de seus choques. Sor Waymar j arquejava por causado esforo, e a respirao gerava nuvens ao luar. Sua lminaestava branca de gelo; a do Outro danava com uma plidaluz azul.Ento, a parada de Royce chegou um momento tarde demais.A espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo deseu brao. O jovem senhor gritou de dor. Surgiu sangue porentre os aros, correu ao frio, e as gotas pareciam vermelhascomo fogo onde tocavam a neve. Os dedos de Sor Waymaresfregaram o flanco. Sua luva de pele de toupeira veioempapada de vermelho.O Outro disse qualquer coisa numa lngua que Will noconhecia; sua voz era como o quebrar do gelo num lago deinverno, e as palavras, escarnecedoras.Sor Waymar Royce encontrou sua fria.- Por Robert! - gritou, e atacou, rosnando, erguendo comambas as mos a espada coberta de gelo e brandindo-a numgolpe lateral paralelo ao cho, carregado com todo seu peso. Aparada do Outro foi quase displicente.Quando as lminas se tocaram, o ao despedaou-se.Um grito ecoou pela noite da floresta, e a espada quebrou-senuma centena de pedaos quebradios, espalhando osestilhaos como uma chuva de agulhas. Royce caiu de 15. joelhos, guinchando, e cobriu os olhos. Sangue jorrou-lhe porentre os dedos.Os observadores aproximaram-se uns dos outros, como queem resposta a um sinal. Espadas ergueram-se e caram, tudonum silncio mortal.Era um assassinato frio. As lminas plidas atravessaram acota de malha como se fosse seda. Will fechou os olhos. Muitoabaixo, ouviu as vozes e os risos, aguados como pingentes.Quando reuniu coragem para voltar a olhar, um longo tempose passara, e a colina l embaixo estava vazia.Ficou na rvore, quase sem se atrever a respirar, enquanto alua foi rastejando lentamente pelo cu negro. Por fim, com osmsculos cheios de cibras e os dedos dormentes de frio,desceu.O corpo de Royce jazia na neve de barriga para baixo, comum brao aberto. O espesso manto de zibelina tinha sidocortado numa dzia de lugares. Jazendo assim morto, via-secomo era novo. Um rapaz.Will encontrou o que restava da espada a alguns ps dedistncia, com a extremidade estilhaada e retorcida, comouma rvore atingida por um relmpago. Ajoelhou-se, olhouem volta com cautela e a apanhou. A espada quebrada seriasua prova. Gared saberia compreend-la, e, se no soubesse,ento haveria o velho urso do Mormont ou o Meistre Aemon.Estaria Gared ainda espera com os cavalos? Tinha de seapressar.Will endireitou-se. Sor Waymar Royce erguia-se sobre ele.Suas belas roupas eram farrapos, o rosto, uma runa. Umestilhao da espada trespassara a pupila branca e cega do olhoesquerdo.O olho direito estava aberto. A pupila queimava, azul. Via. 16. A espada quebrada caiu de dedos despidos de fora. Willfechou os olhos para rezar. Mos longas e elegantes roaramna sua bochecha e depois se fecharam em volta de suagarganta. Estavam enluvadas na mais fina pele de toupeira epegajosas de sangue, mas seu toque era frio como gelo.BranA manh chegara lmpida e fria, com uma aspereza quesugeria o fim do vero. Partiram ao nascer do dia para ir vera decapitao de um homem, vinte ao todo, e Bran cavalgavacom os outros, nervoso e excitado. Fora a primeira vez que seconsiderara que ele tinha idade suficiente para ir com osenhor seu pai e os irmos ver fazer-se a justia do rei. Era onono ano de vero, e o stimo da vida de Bran.O homem tinha sido capturado no exterior de um pequenopovoado nos montes. Robb pensava que se tratava de umselvagem, com a espada a servio de Mance Rayder, o Rei-para-l-da-Muralha. Pensar nisso fazia a pele de Branformigar. Lembrava-se das histrias que a Velha Ama lhescontava lareira. Os selvagens eram homens cruis, dizia,escravagistas, assassinos e ladres. Faziam amizade comgigantes e vampiros, raptavam meninas pela calada da noitee bebiam sangue por cornos polidos. E suas mulheresdeitavam-se com os Outros durante a Longa Noite e geravamterrveis crianas meio humanas.Mas o homem que encontraram amarrado pelos ps e mos aomuro do povoado, espera da justia real, era velho edescarnado, no muito mais alto do que Robb. Perderaambas as orelhas e um dedo, queimados pelo frio, e vestia-se 17. todo de negro como um irmo da Patrulha da Noite, noestivessem as peles esfarrapadas e besuntadas de gordura.As respiraes de homens e cavalos misturavam-se em nuvensde vapor no ar frio da manh quando o senhor seu paiordenou que cortassem as cordas que prendiam o homem aomuro e o arrastassem at junto do grupo. Robb e Jonsentavam-se, altos e imveis sobre os cavalos, com Bran entreeles, no seu pnei, tentando parecer ter mais do que os seussete anos, e fingindo que j assistira antes a tudo aquilo. Umvento tnue soprava atravs do porto do povoado. Sobresuas cabeas agitava-se o estandarte dos Stark de Winterfell:um lobo gigante cinzento correndo por um campo branco degelo.O pai de Bran sentava-se solenemente sobre o cavalo, comlongos cabelos castanhos a ondular ao vento. A barba bemaparada estava salpicada de branco, fazendo-o parecer maisvelho do que os seus trinta e cinco anos. Hoje tinha umasombra severa sobre os olhos cinzentos, e parecia bemdiferente do homem que se sentava em frente ao fogo, noite,e falava suavemente da era dos heris e das crianas dafloresta. Tirara a cara de pai, pensou Bran, e colocara a deLorde Stark de Winterfell.Houve questes que foram postas e suas respostas dadas ali,ao frio da manh, mas, mais tarde, Bran no recordaria muitodo que fora dito. Por fim, o senhor seu pai deu uma ordem, edois dos seus guardas arrastaram o homem esfarrapado at otoco de pau-ferro no centro da praa. Empurraram-lhe acabea fora contra a madeira dura e negra. Lorde EddardStark desmontou, e seu protegido, Theon Greyjoy,apresentou-lhe a espada. Chamavam Gelo quela espada. Eralarga como uma mo de homem e mais alta ainda do que 18. Robb. A lmina era de ao valiriano, forjado com feitios eescuro como fumo. Nada mantinha o fio como o ao valiriano.O pai de Bran descalou as luvas e as entregou a Jory Cassei,o capito da guarda de sua casa. Pegou Gelo com ambas asmos e disse:- Em nome de Robert da Casa Baratheon, o Primeiro do seuNome, rei dos ndalos e dos Roinares e dos PrimeirosHomens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Domnio, pelavoz de Eddard da Casa Stark, Senhor de Winterfell eGuardio do Norte, condeno-o morte -e ergueu a espadabem alto sobre a cabea.O irmo bastardo de Bran, Jon Snow, aproximou-se.- Mantenha rdea curta sobre o pnei - sussurrou. - E noafaste os olhos. O pai saber se assim fizer.Bran manteve rdea curta sobre o pnei e no afastou osolhos.Seu pai cortou a cabea do homem com um nico golpe, dadocom segurana. O sangue borrifou a neve, to vermelho comovinho de vero,Um dos cavalos empinou-se e teve de ser segurado para queno fugisse. Bran no conseguia tirar os olhos do sangue. Aneve que rodeava o poste bebia-o com sofreguido, ficandocada vez mais vermelha enquanto ele observava.A cabea bateu numa raiz grossa e rolou. Parou perto dos psde Greyjoy. Theon era um jovem esguio e escuro de dezenoveanos que achava tudo divertido. Soltou uma gargalhada, psa bota sobre a cabea e deu-lhe um pontap.- Cretino - resmungou Jon, suficientemente baixo para queGreyjoy no ouvisse. Ps uma mo no ombro de Bran, queolhava o irmo bastardo. - Esteve bem - disse-lhe Jonsolenemente. Jon tinha catorze anos, j era experiente najustia. 19. O tempo parecia mais frio durante a longa viagem de regressoa Winterfell, embora o vento tivesse cado e o sol estivessemais alto no cu. Bran cavalgava junto aos irmos, bemadiantados em relao ao resto dos cavaleiros, com o pneiesforando-se ao mximo para acompanhar o ritmo dosoutros cavalos.- O desertor morreu com bravura - disse Robb. Era grande elargo e crescia dia a dia, com as cores da me, a pele clara, oscabelos vermelho-acastanhados e os olhos azuis dos Tully deCorrerrio. - Tinha coragem, pelo menos.- No - disse Jon Snow calmamente. - No era coragem. Esteestava morto de medo. Podia--se ver em seus olhos, Stark - osde Jon eram de um cinzento to escuro que pareciam quasenegros, mas pouco havia que no vissem. Tinha a mesmaidade que Robb, mas os dois no eram parecidos. Jon eraesguio e escuro, enquanto Robb era musculoso e claro; esteera gracioso e ligeiro; seu meio-irmo, forte e rpido.Robb no estava impressionado.- Que os Outros levem seus olhos - praguejou. - Ele morreubem. Fazemos uma corrida at a ponte?- Fazemos - disse Jon, impulsionando o cavalo em frente.Robb praguejou e seguiu-o, e galoparam pela trilha afora,com Robb aos gritos e assobios, e Jon silencioso econcentrado. Os cascos dos cavalos levantavam nuvens deneve por onde passavam.Bran no tentou segui-los. Seu pnei no era capaz deacompanh-los. Vira os olhos do homem esfarrapado, eestava agora pensando neles. Aps algum tempo, o som dasgargalhadas de Robb atenuou-se e os bosques ficaramsilenciosos novamente. 20. Estava to embrenhado nos seus pensamentos que no ouviuo resto do grupo, at que seu pai ps o cavalo a par com suamontaria.- Est bem, Bran? - perguntou, no sem simpatia.- Sim, pai - disse Bran. Olhou para cima. Envolto em peles ecouros, montado no grande cavalo de guerra, o senhor seu paipairava acima de si como um gigante. - Robb diz que ohomem morreu bravamente, mas Jon disse que ele tinhamedo.- E o que pensa voc? - perguntou-lhe o pai.Bran refletiu sobre o assunto.- Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo?- Esta a nica maneira de um homem ser valente - seu pairespondeu. - Compreende por que o fiz?- Ele era um selvagem - disse Bran. - Eles roubam mulheres evendem-nas aos Outros.Seu pai sorriu.- A Velha Ama tem andado outra vez a lhe contar histrias.Na verdade, o homem era um insurreto, um desertor daPatrulha da Noite. Ningum pode ser mais perigoso. Odesertor sabe que sua vida est perdida se for capturado, epor isso no vacilar perante nenhum crime, por mais vil queseja. Mas voc no me compreendeu bem. A pergunta no erasobre o motivo por que o homem tinha de morrer, mas simpor que eu tive de faz-lo.Bran no tinha resposta para aquilo.- O rei Robert tem um carrasco - respondeu, em tom incerto.- Tem - admitiu o pai. - E os reis Targaryen tambm tiveramantes dele. Mas o nosso costume o mais antigo. O sangue dosPrimeiros Homens ainda corre nas veias dos Stark, e man-temos a crena de que o homem que dita a sentena devemanejar a espada. Se tirar a vida de um homem, deve olh-lo 21. nos olhos e ouvir suas ltimas palavras. E se no conseguirsuportar faz-lo, ento talvez o homem no merea morrer.Um dia, Bran, ser vassalo de Robb, mantendo um domnioseu para o seu irmo e o seu rei, e a justia caber a voc.Quando esse dia chegar, no deve ter nenhum prazer natarefa, mas tampouco dever desviar os olhos. Umgovernante que se esconde atrs de executores pagos depressase esquece do que a morte.Foi ento que Jon reapareceu sobre o cume da colina frentedo grupo. Acenou e gritou-lhes:- Pai, Bran, venham depressa ver o que Robb encontrou! - edepois voltou a desaparecer. Jory ps-se ao lado de Bran e dopai.- Problemas, senhor?- Sem nenhuma dvida - disse o senhor seu pai. - Vamos,vamos ver que velhacaria desenterraram agora os meus filhos- ps o cavalo a trote. Jory, Bran e o resto do grupo seguiram-no.Encontraram Robb na margem do rio, ao norte da ponte,com Jon ainda montado ao seu lado. As neves do fim dovero tinham sido pesadas naquela volta da lua. Robb estavaenterrado em branco at os joelhos, com o capuz atirado paratrs, e o sol brilhava nos seus cabelos. Aconchegava algumacoisa no brao enquanto os rapazes conversavam em vozesexcitadas, mas baixas.Os cavaleiros escolheram o caminho com cuidado atravs dosdetritos empilhados pelo rio, tateando em busca de apoioslido no terreno escondido e irregular. Jory Cassel e TheonGreyjoy foram os primeiros a chegar perto dos rapazes.Greyjoy ria e gracejava enquanto se aproximava. Bran ouviuo flego sair-lhe do peito. 22. - Deuses! - exclamou, lutando por manter o controle do cavaloenquanto levava a mo espada. A espada de Jory j estavana mo.- Robb, afaste-se disso! - gritou, enquanto o cavalo empinavaentre suas pernas.Robb sorriu e ergueu o olhar do volume que tinha nos braos.- Ela no lhe pode fazer mal - disse. - Est morta, Jory.Por aquela altura, Bran j ardia de curiosidade. Teriaesporeado o pnei para avanar mais depressa, mas o pai osfez desmontar junto ponte e aproximar-se a p. Bran saltoudo animal e correu.Tambm Jon, Jory e Theon Greyjoy j tinham desmontado.- O que, pelos sete infernos, isso? - disse Greyjoy.- Uma loba - disse Robb.- Uma aberrao - disse Greyjoy. - Olha o tamanho da coisa.O corao de Bran martelava-lhe no peito enquanto abriacaminho atravs de uma pilha de detritos que lhe alcanava acintura, at que chegou ao lado do irmo.Meio enterrada na neve manchada de sangue, uma formaenorme atolava-se na morte. Em sua desgrenhada pelagemcinzenta formara-se gelo, e um tnue cheiro de putrefaoimpregnava-a como perfume de mulher. Bran viu de relanceos olhos cegos repletos de vermes, uma grande boca cheia dedentes amarelados, Mas foi o tamanho da coisa que o fez ficarde boca aberta. Era maior que seu pnei, com o dobro dotamanho do maior co de caa do canil de seu pai.- No aberrao nenhuma - disse Jon calmamente. - Isso uma loba gigante. Eles crescem mais do que os da outraespcie.Theon Greyjoy disse: 23. - No visto nenhum lobo gigante ao sul da Muralha hduzentos anos.- Vejo um agora - respondeu Jon.Bran desviou os olhos do monstro. Foi ento que reparou nofardo que estava nos braos de Robb. Soltou um grito dedeleite e aproximou-se. O filhote era uma minscula bola depelo cinza-escuro, ainda com os olhos fechados. Batiacegamente com o focinho contra o peito de Robb, procurandoleite nos couros que o cobriam, soltando um pequeno somlamentoso e triste, Bran estendeu uma mo hesitante.- V l - disse-lhe Robb, - Pode toc-lo,Bran fez um afago rpido e nervoso no filhote e depois sevirou quando Jon disse:- Ora, veja aqui - seu meio-irmo ps um segundo filhote nosseus braos. - H cinco ao todo - Bran sentou-se na neve eabraou a cria de lobo, encostando-a ao rosto. O pelo doanimal era suave e morno.- Lobos gigantes solta no reino depois de tantos anos -murmurou Hullen, o mestre dos cavalos. - No me agrada.- um sinal - disse Jory.O pai franziu a sobrancelha.- Isto s um animal morto, Jory - disse, apesar de parecerperturbado. A neve rangia sob seus ps enquanto passeava aoredor do corpo. - Sabemos o que a matou?- H qualquer coisa na garganta - disse Robb, orgulhoso deter encontrado a resposta mesmo antes de o pai terperguntado. - Ali, por baixo da mandbula.O pai ajoelhou-se e tateou sob a cabea do animal. Deu umpuxo e ergueu a coisa para que todos a vissem. Trintacentmetros de um chifre estilhaado de veado, com as pontaspartidas, todo vermelho de sangue. Um silncio sbito caiu 24. sobre o grupo. Os homens olharam inquietos para o corno,mas ningum se atreveu a falar. Mesmo Bran pressentia seumedo, embora no compreendesse.O pai atirou o chifre para o lado e limpou as mos na neve.- Surpreende-me que ela tenha vivido tempo suficiente paraparir - disse, e sua voz quebrou o encantamento.- Talvez no tenha - disse Jory. - Ouvi histrias... talvez aloba j estivesse morta quando os filhotes chegaram.- Nascidos com os mortos - interveio outro homem. - Piorsorte.- No importa - disse Hullen. - No tarda e estaro mortostambm. Bran soltou um grito inarticulado de desalento.- Quanto mais depressa, melhor - concordou Theon Greyjoy epuxou a espada. - D-me o animal, Bran.A criaturinha enroscou-se nele, como se tivesse ouvido ecompreendido.- No! - gritou Bran ferozmente. - meu.- Guarda a espada, Greyjoy - disse Robb, que por ummomento soou to autoritrio como o pai, como o senhor queviria a ser um dia. - Vamos ficar com esses filhotes.- No pode fazer isso, rapaz - disse Harwin, que era filho deHullen.- Ser misericordioso mat-los - disse Hullen.Bran olhou o senhor seu pai em busca de salvao, mas srecebeu um franzir de cenho, uma testa cheia de sulcos.- Hullen fala a verdade, filho. melhor uma morte rpida doque uma lenta, de frio e de fome.- No! - sentia que lgrimas lhe brotavam dos olhos e afastou-se. No queria chorar na frente do pai.Robb resistia com teimosia. 25. - A cadela vermelha de Sor Rodrik pariu de novo na semanapassada - disse. - Foi uma ninhada pequena, s com doiscachorros vivos. Ela ter leite suficiente.- Ela os despedaar quando tentarem mamar.- Lorde Stark - disse Jon. Era estranho ouvi-lo chamar o paiassim, de modo to formal. Bran olhou-o com uma esperanadesesperada. - H cinco crias. Trs machos e duas fmeas.- E ento, Jon?- O senhor tem cinco filhos legtimos - disse Jon. - Trs filhos eduas filhas. O lobo gigante o selo da vossa Casa. Os vossosfilhos esto destinados a ficar com essa ninhada, senhor.Bran viu o rosto do pai mudar e os outros homens trocaremolhares. Naquele momento, amou Jon de todo o corao.Mesmo com seus sete anos, Bran compreendeu o que o irmofizera. A conta estava certa apenas porque Jon se omitira.Inclura as moas e at Rickon, o beb, mas no o bastardoque usava o apelido Snow, o nome que, pelo costume, deviaser dado a todos aqueles que, no Norte, eram suficientementeinfelizes para no possuir um nome seu.O pai tambm o compreendera.- No quer uma cria para voc, Jon? - perguntoubrandamente.- O lobo gigante honra os estandartes da Casa Stark - Jonretrucou. - Eu no sou um Stark, pai.O senhor seu pai o olhou, pensativo. Robb apressou-se apreencher o silncio que ele deixara.- Cuidarei eu prprio dele, pai - prometeu. - Embeberei umatoalha em leite morno e assim lhe darei de mamar.- Eu tambm! - disse Bran num eco.O senhor avaliou os filhos longa e cuidadosamente com osolhos. 26. - fcil dizer, mas difcil fazer. No quero v-losdesperdiando com isto o tempo dos criados. Se querem essesfilhotes, vocs os alimentaro. Entendido?Bran acenou com ardor. O animal contorceu-se nos seusbraos e lambeu-lhe o rosto com uma lngua morna.- Devem trein-los tambm - disse-lhes o pai. - Devem ensin-los. O mestre do canil no vai querer ter nada a ver com essesmonstros, garanto a vocs. E que os deuses os protejam senegligenciarem, maltratarem ou treinarem mal esses animais.Esses no so ces que peam festas ou se esquivem a umpontap. Um lobo gigante capaz de arrancar o brao de umhomem com tanta facilidade como um co mata umaratazana. Tm certeza de que querem isto?- Sim, pai - disse Bran.- Sim - concordou Robb.- Os filhotes podem morrer de qualquer modo, apesar de tudoo que fizerem.- Eles no morrero - disse Robb. - No deixaremos quemorram.- Fiquem ento com eles, Jory, Desmond, recolham osdemais. tempo de regressarmos a Winterfell.Foi s depois de terem montado e de se terem posto acaminho que Bran se permitiu saborear o doce ar da vitria.Nessa altura, seu filhote estava aconchegado entre seuscouros, quente contra seu corpo, a salvo durante a longaviagem para casa. Bran perguntava-se como haveria decham-lo.No meio da ponte, Jon puxou subitamente as rdeas.- Que se passa, Jon? - perguntou o senhor seu pai.- O senhor no ouviu? 27. Bran ouvia o vento nas rvores, o rudo dos cascos nas tbuasde pau-ferro, os lamentos da cria faminta, mas Jon escutavaoutra coisa.- Ali - disse Jon. Fez o cavalo dar meia-volta e galopou pelaponte, pelo caminho por onde viera. Viram-no desmontaronde a loba gigante jazia morta na neve e ajoelhar-se. Ummomento mais tarde, cavalgava de regresso, sorrindo. - Deveter se afastado dos outros - ele disse.- Ou sido afastado - disse o pai, olhando a sexta cria. Apelagem desta era branca, enquanto a do resto da ninhada eracinzenta. Seus olhos eram to vermelhos como o sangue dohomem esfarrapado que morrera naquela manh. Bran achoucurioso que s aquele cachorro tivesse aberto os olhos,enquanto os outros ainda estavam cegos.- Um albino - disse Theon Greyjoy com um perversodivertimento. - Este ainda vai morrer mais depressa do que osoutros.Jon Snow deitou sobre o protegido de seu pai um olhar longoe gelado.- Penso que no, Greyjoy - disse. - Este me pertence.CatelynCatelyn nunca gostara daquele bosque sagrado.Nascera entre os Tully, em Correrrio, mais ao Sul, nasmargens do Ramo Vermelho do Tridente. O bosque sagradoque l havia era um jardim, luminoso e arejado, onde grandesrvores de pau-brasil espalhavam sombras sarapintadas porcrregos que rumorejavam entre as margens, aves cantavamem ninhos escondidos e o ar era perfumado pelo odor deflores. 28. Os deuses de Winterfell mantinham um tipo diferente debosque. Era um lugar escuro e primordial, trs acres defloresta antiga, intocada ao longo de dez mil anos, enquanto ocastelo se levantava a toda sua volta. Cheirava a terra midae a decomposio. Ali no crescia o pau-brasil. Aquele era umbosque de obstinadas rvores sentinelas, revestidas deagulhas cinza-esverdeadas, de poderosos carvalhos, de rvoresde pau-ferro to velhas como o prprio reino. Ali, espessostroncos negros enroscavam-se uns aos outros, enquanto ramosretorcidos teciam um denso dossel elevado e razesdeformadas batalhavam sob o solo. Aquele era um lugar deprofundo silncio e sombras meditativas, e os deuses que aliviviam no tinham nomes.Mas ela sabia que naquela noite encontraria ali seu marido.Sempre que ele tirava a vida de um homem, procurava depoiso sossego do bosque sagrado.Catelyn fora ungida com os sete leos e fora-lhe dado o nomeno arco-ris de luz que enchia o septo de Correrrio. Pertencia F, tal como o pai e o av, e o pai deste antes dele. Seusdeuses possuam nomes, e seus rostos eram-lhe to familiarescomo os de seus pais. O servio religioso era um septo comum turbulo, o cheiro do incenso, um cristal de sete ladosanimado com luz, vozes erguidas em canto. Os Tullymantinham um bosque sagrado, como todas as grandes casas,mas era apenas um lugar para passear, ler ou ficar deitado aosol. A prece pertencia ao septo.Por ela, Ned tinha construdo um pequeno septo onde podiacantar s sete caras de deus, mas o sangue dos PrimeirosHomens ainda corria nas veias dos Stark, e seus deuses eramos antigos, os deuses sem nome nem rosto da mata verde quepartilhavam com os filhos desaparecidos da floresta. 29. No centro do bosque, um antigo represeiro reinava pensativosobre uma pequena lagoa onde as guas eram negras e frias.Ned chamava-lhe "a rvore-corao". A casca do represeiroera branca como osso e suas folhas, vermelhas como ummilhar de mos manchadas de sangue. Uma cara tinha sidoesculpida no tronco da grande rvore, de traos compridos emelanclicos, com os olhos profundamente escavados,vermelhos de seiva seca e estranhamente vigilantes. Aquelesolhos eram velhos; mais velhos do que a prpria Winterfell.Se as lendas falavam a verdade, tinham visto Brandon, oConstrutor, assentar a primeira pedra; tinham visto asmuralhas de granito do castelo crescer sua volta. Dizia-seque os filhos da floresta tinham esculpido as caras nas rvoresdurante os sculos de alvorada, antes da chegada dosPrimeiros Homens, vindos do mar estreito.No sul, os ltimos represeiros tinham sido derrubados ouqueimados havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde oshomens verdes mantinham sua vigilncia silenciosa e ascoisas eram diferentes. Aqui cada castelo possua seu bosquesagrado, e cada bosque sagrado tinha sua rvore--corao, ecada rvore-corao, seu rosto.Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numapedra coberta de musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobreas coxas, e limpava-lhe a lmina naquelas guas, negras comoa noite. Mil anos de hmus jaziam numa grossa camada nosolo do bosque sagrado, engolindo o som dos ps da mulher,mas os olhos vermelhos do represeiro pareciam segui-laenquanto se aproximava.- Ned - ela chamou, com suavidade. Ele ergueu a cabea paraolh-la.- Catelyn - disse. Sua voz era distante e formal. - Onde estoas crianas? Ele sempre lhe perguntava aquilo. 30. - Na cozinha, discutindo nomes para as crias de lobo - elaestendeu o manto sobre o cho da floresta e sentou-se junto lagoa, de costas voltadas para o represeiro. Podia sentir osolhos a observ-la, mas fez o melhor que pde para ignor-los.- Arya j est apaixonada, e Sansa, enfeitiada e apiedada,mas Rickon no est muito seguro.- Tem medo? - Ned perguntou.- Um pouco - admitiu ela. - S tem trs anos. Ned franziu assobrancelhas.- Ele tem de aprender a enfrentar seus medos. No ter trsanos para sempre. E o inverno est para chegar.- Sim - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe umarrepio, como sempre. As palavras Stark. Todas as casasnobres tinham as suas palavras. Lemas de famlia, pedras detoque, espcies de oraes, que alardeavam honra e glria,prometiam lealdade e verdade, juravam f e coragem. Todas,menos a dos Stark. O inverno est para chegar, diziam aspalavras Stark. Refletiu sobre como aqueles nortenhos eramum povo estranho, e j no era a primeira vez que o fazia.- O homem morreu bem, posso lhe assegurar - disse Ned.Tinha na mo um bocado de couro oleado com o qual faziapercorrer com leveza a espada enquanto falava, polindo ometal at soltar um brilho escuro. - Fiquei contente por causade Bran. Teria ficado orgulhosa dele.- Estou sempre orgulhosa de Bran - Catelyn respondeu,observando a espada enquanto ele a esfregava. Conseguia veras ondulaes profundas do ao, onde o metal fora dobradosobre si prprio cem vezes durante a forja. Catelyn no sentiaqualquer amor por espadas, mas no podia negar que Gelopossua sua beleza. Tinha sido forjada em Valria antes de adestruio ter cado sobre a antiga cidade franca, quando os 31. ferreiros trabalhavam seus metais tanto com feitios comocom martelos. Tinha j quatrocentos anos, e era to aguadacomo no dia em que fora forjada. O nome que ostentava eraainda mais antigo, um legado da era dos heris, quando osStark eram reis no Norte.- Foi o quarto este ano - disse Ned sombriamente. - O pobrehomem estava meio louco. Algo lhe incutiu um medo toprofundo que minhas palavras no o alcanaram - suspirou. -Ben escreveu-me dizendo que a fora da Patrulha da Noite jno tem mil homens. No so s deseres. Tem tambmperdido homens nas patrulhas.- So os selvagens? - ela perguntou.- Quem mais poderia ser? - Ned ergueu Gelo e observou o aofrio ao longo de todo seu comprimento. - E s vai piorar. Podechegar o dia em que eu no tenha escolha a no ser reunir osvassalos e marchar para o norte a fim de lidar de uma vez portodas com esse Rei-para-l-da-Muralha.- Para l da Muralha? - a idia fez Catelyn estremecer.Ned viu o terror no seu rosto.- Mance Rayder no nada que devamos temer.- H coisas mais escuras para l da Muralha - ela olhou derelance a rvore-corao s suas costas, a casca clara e osolhos vermelhos, observando, escutando, pensando seuslongos e lentos pensamentos.O sorriso dele era gentil.- Voc ouve em demasia as histrias da Velha Ama. Os Outrosesto to mortos como os filhos da floresta, desaparecidos hoito mil anos. Meistre Luwin lhe diria que nunca sequerchegaram a estar vivos. Nenhum homem vivo alguma vez viuum. 32. - At hoje de manh, nenhum homem vivo tinha visto umlobo gigante - recordou Catelyn.- J devia saber que no se pode discutir com uma Tully - eledisse com um sorriso triste e devolveu Gelo sua bainha. -No veio at aqui me contar histrias de embalar. Sei bemcomo gosta pouco deste lugar. Que se passa, minha senhora?Catelyn tomou nas suas a mo do marido.- Hoje chegaram dolorosas novas, meu senhor. No quisincomod-lo at se ter purificado - no havia maneira desuavizar o golpe, e ela o disse sem rodeios. - Lamento tanto,meu amor. Jon Arryn est morto.Os olhos dele encontraram os dela, e Catelyn viu como lhecustou, como sabia que custaria. Na juventude, Ned tinhasido acolhido no Ninho da guia, e Lorde Arryn, que notinha filhos seus, tinha se tornado um segundo pai para ele epara o seu outro protegido, Robert Baratheon. Quando o ReiAerys n Targaryen, o Louco, exigira suas cabeas, o Senhordo Ninho da guia erguera em revolta os seus estandartes dalua e do falco em vez de entregar aqueles que juraraproteger.E um dia, h quinze anos, seu segundo pai tinha setransformado tambm num irmo, quando ele e Ned sejuntaram no septo de Correrrio para desposar duas irms, asfilhas de Lorde Hoster Tully,-Jon... - Ned disse. - Esta notcia segura?- Trazia o selo do rei, e a carta vinha escrita na caligrafia doprprio Robert. Guardei-a para voc. Diz que Lorde Arrynpartiu depressa. Nem Meistre Pycelle pde fazer algumacoisa, mas trouxe o leite da papoula, para que Jon no ficassepor muito tempo em sofrimento.- Isto foi uma pequena misericrdia, suponho - ele disse.Catelyn via o pesar em seu rosto, mas mesmo nesse momento 33. seu primeiro pensamento era-lhe dedicado. - A sua irm -disse Ned. - E o filho de Jon. Que notcias h deles?- A mensagem dizia apenas que estavam bem e que tinhamregressado ao Ninho da guia - ela respondeu. - Eu preferiaque tivessem ido para Correrrio. O Ninho da guia umlugar alto e solitrio, e sempre foi o lugar de Jon, no deles. Amemria de Lorde Jon assombrar cada pedra. Conheominha irm. Ela precisa do conforto da famlia e dos amigosao seu redor.- Seu tio espera no Vale, no verdade? Ouvi dizer que Jon onomeou Cavaleiro do Porto. Catelyn anuiu com a cabea.- Brynden far por ela e pelo rapaz o que puder. E algumconforto, mas mesmo assim...- V ter com ela - Ned tentou anim-la. - Leva as crianas.Encha aqueles sales de rudo, gritos e risos. Aquele rapazprecisa de outras crianas a sua volta, e Lysa no deve ficars na sua dor.- Gostaria de poder fazer isso - disse Catelyn. - A carta traziaoutras notcias. O rei viaja para Winterfell sua procura.Ned precisou de um momento para ver o sentido daquelaspalavras, mas, quando as compreendeu, a escuridoabandonou seus olhos.- Robert vem para c? - quando ela anuiu, um sorriso abriu-seno seu rosto.Catelyn desejou poder compartilhar da alegria do marido.Mas ouvira o que se dizia pelos ptios; um lobo gigante mortona neve, com um chifre partido na garganta. O terrorretorcia-se no seu interior como uma serpente, mas forou-sea sorrir para aquele homem que amava, aquele homem queno punha f alguma nos sinais. 34. - Sabia que te agradaria - disse. - Deveramos enviar umamensagem ao seu irmo, na Muralha.- Sim, claro - ele concordou. - Ben vai querer estar aqui. Direia Meistre Luwin para enviar sua ave mais rpida - Nedergueu-se e ajudou a esposa a pr-se em p. - Demnios,quantos anos j se passaram? E no nos d mais notcias doque estas? A mensagem dizia quantos homens traz nacomitiva?- Penso que um cento de cavaleiros, pelo menos, com todos osseus servidores, e vez e meia este nmero de cavaleiros livres.Cersei e as crianas viajam com eles.- Robert vir em passo moderado por causa delas - disse Ned.- Ainda bem. Teremos mais tempo para nos preparar.- Os irmos da rainha tambm vm na comitiva - elacompletou.Ao ouvir aquilo, Ned fez um trejeito. Catelyn sabia que poucasimpatia havia entre ele e a famlia da rainha. Os Lannisterde Rochedo Casterly tinham chegado tarde causa deRobert, quando a vitria era praticamente certa, e ele nuncaos perdoara por isso.- Bem, se o preo a pagar pela companhia de Robert umainfestao de Lannister, que seja. Parece que Robert trazmetade da corte.- Aonde o rei vai, o reino segue - ela respondeu.- Ser bom ver as crianas. O mais novo ainda mamava dateta da Lannister da ltima vez que o vi. Agora deve ter oqu? Cinco anos?- O Prncipe Tommen tem sete anos. A mesma idade de Bran.Por favor, Ned, tenha tento na lngua. Lannister nossarainha, e diz-se que seu orgulho cresce a cada ano que passa.Ned apertou-lhe a mo. 35. - Ter de haver um festim, bem-composto, com cantores, eRobert vai querer caar. Enviarei Jory para o sul com umaguarda de honra ao seu encontro, a fim de escolt-los nocaminho at aqui pela estrada do rei. Deuses, como iremosalimentar a todos? Maldito seja o homem. Maldito seja o seureal couro.DaenerysO irmo ergueu o vestido para que ela o inspecionasse.- Isto uma beleza! Toque-o. Vamos. Acaricie o tecido,Dany o tocou. O tecido era to macio que parecia correr-lhepelos dedos como gua. No conseguia se lembrar de algumavez ter usado algo to suave. Assustou-se. Afastou a mo.- mesmo meu?- Um presente de Magster Illyrio - disse Viserys, sorrindo.Seu irmo estava de bom humor naquela noite. - A correalar o violeta dos seus olhos. E voc tambm ter ouro ejias de todos os tipos. Illyrio prometeu, Esta noite deve separecer uma princesa.Uma princesa, pensou Dany. J se esquecera de como aquiloera. Talvez nunca tivesse realmente sabido.- Por que ele nos d tanto? - ela perguntou. - O que quer dens? - h quase meio ano que viviam na casa do magster,comiam da sua comida, eram paparicados pelos seus criados.Dany tinha treze anos, idade suficiente para saber que taispresentes raramente vm sem preo ali, na cidade livre dePentos.- Illyrio no nenhum tolo - Viserys respondeu. Era umjovem magro com mos nervosas e um ar febril nos olhos de 36. um tom claro de lils. - O magster sabe que no esquecerei osamigos quando subir ao trono.Dany no disse nada. Magster Illyrio era um comerciante deespeciarias, pedras preciosas, ossos de drago e outras coisasmenos palatveis. Tinha amigos em todas as Nove CidadesLivres, dizia-se, e mesmo para l delas, em Vaes Dothrak enas terras das fbulas junto ao Mar de Jade. Tambm se diziaque nunca tinha tido um amigo que no fosse capaz de venderalegremente pelo preo justo. Dany escutava o falatrio nasruas e ouvia essas coisas, mas tambm sabia que era melhorno questionar o irmo enquanto tecia suas teias de sonho.Quando era despertada, a ira de Viserys era algo terrvel. Elea chamava "o acordar do drago".O irmo pendurou o vestido ao lado da porta.- Illyrio enviar as escravas para lhe darem banho. Assegure-se de se livrar do fedor dos estbulos. Khal Drogo tem milcavalos e hoje vem procura de um tipo diferente demontaria - estudou-a criticamente. - Ainda tem as costastortas. Endireite-se - ps-lhe as mos nos ombros e puxou-ospara trs. - Deixe-os ver que tem agora a forma de umamulher - os dedos do irmo roaram levemente seus seios emboto e apertaram num mamilo. - No me falhar esta noite.Seno, ser mau para voc. No quer acordar o drago, quer?- os dedos torceram-se, um belisco cruel e duro atravs dotecido grosseiro da tnica. - Quer? - ele repetiu.- No - respondeu Dany docilmente.O irmo sorriu.- timo - tocou-lhe os cabelos, quase com afeio. - Quandoescreverem a histria do meu reinado, minha doce irm, diroque comeou esta noite.Quando ele saiu, Dany foi at a janela e olhou, melanclica,as guas da baa. As torres quadradas de tijolo de Pentos 37. eram silhuetas negras delineadas contra o sol poente. Elaconseguia ouvir os sacerdotes vermelhos cantando, enquantoacendiam as piras noturnas, e os gritos de crianasesfarrapadas que jogavam para l dos muros da propriedade.Por um momento desejou poder estar l fora com elas, de psnus, sem flego e vestida de farrapos, sem passado nem fu-turo, sem banquete para ir na manso de Khal Drogo.Em algum lugar para l do pr do sol, do outro lado doestreito mar, havia uma terra de colinas verdes e planciescobertas de flores e grandes rios caudalosos, onde torres depedra negra se erguiam por entre magnficas montanhas azul-acinzentadas e cavaleiros de armadura cavalgavam para abatalha sob os estandartes dos seus senhores. Os dothrakischamavam a essa terra Rhaesb Andahli, a terra dos ndalos.Nas Cidades Livres, falavam de Westeros e dos Reinos doPoente. O irmo tinha um nome mais simples. Chamava-lhe"nossa terra". Para ele, as palavras eram como uma prece, Seas dissesse o nmero de vezes suficientes, os deusescertamente ouviriam. " nosso direito de sangue, usurpadopor meios traioeiros. No se rouba um drago, ah, no. Odrago se lembra."E o drago talvez recordasse mesmo, mas Dany no. Nuncavira aquela terra que o irmo dizia que lhes pertencia, estedomnio para l do estreito mar. Aqueles lugares de quefalava, Rochedo Casterly e o Ninho da guia, Jardim deCima e o Vale de Arryn, Dorne e a Ilha das Caras, para elaeram apenas palavras. Viserys era um rapaz de oito anosquando fugiram de Porto Real para escapar ao avano dosexrcitos do Usurpador, mas Daenerys no passava de umapartcula de vida no ventre da me.Mesmo assim, por vezes, Dany conseguia visualizar osacontecimentos, tantas tinham sido as ocasies em que ouvira 38. o irmo contar as histrias. A fuga no meio da noite para aPedra do Drago, com o luar cintilando nas velas negras donavio. Seu irmo, Rhaegar, combatendo o Usurpador nasguas sangrentas do Tridente e morrendo pela mulher queamava. O saque de Porto Real por aqueles a quem Viseryschamava os ces do Usurpador, os senhores Lannister eStark. A princesa Elia de Dorne suplicando misericrdiaquando o herdeiro de Rhaegar lhe fora arrancado do seio eassassinado perante seus olhos. Os crnios polidos dos ltimosdrages a olhar sem ver do alto das paredes da sala do tronoquando o Regicida abrira a garganta do Pai com uma espadadourada.Nascera em Pedra do Drago quatro luas depois da fuga,durante a fria de uma tempestade de vero que ameaavadestroar a estabilidade da ilha. Diziam que aquelatempestade tinha sido terrvel. A frota Targaryen foraesmagada enquanto estava ancorada e enormes blocos depedra foram arrancados dos parapeitos e precipitados sobre asguas encapeladas do mar estreito. A me morrera ao d-la luz, e por este fato o irmo Viserys nunca a perdoara.Tampouco se lembrava de Pedra do Drago. Tinham fugidode novo, imediatamente antes de o irmo do Usurpadorzarpar com sua nova frota. Por essa altura, dos Sete Reinosque tinham pertencido aos seus, apenas Pedra do Dragorestava, a antiga sede de sua Casa. Mas no por muito tempo,A guarnio estava preparada para vend-los ao Usurpador,mas, uma noite, Sor Willem Darry e quatro homens leaisinvadiram o quarto das crianas, raptaram-nas e sua ama deleite, e zarparam sob a escurido da noite em busca dasegurana da costa bravosiana.Lembrava-se vagamente de Sor Willem, um homem que maisparecia um grande urso cinzento, meio cego, a rugir e berrar 39. ordens de sua cama de doente. Os criados tinham vividoaterrorizados por causa dele, que sempre fora bondoso paraDany. Chamava a "pequena princesa" e, por vezes, "minhasenhora", e suas mos eram suaves como couro velho. Masnunca deixava a cama, e o cheiro da doena impregnava-o dedia e de noite, com um odor quente, mido, de uma douradoentia. Nessa altura viviam em Bravos, na casa grande deporta vermelha, Dany tinha seu prprio quarto, com umlimoeiro junto janela. Depois da morte de Sor Willem, oscriados roubaram o pouco dinheiro que lhes restava e embreve os irmos foram postos fora da casa grande, Danychorara quando a porta vermelha se fechara s suas costaspara sempre.Desde ento, tinham andado de um lado para outro, deBravos para Myr, de Myr para Tyrosh e da para Qohor,Volantis e Lys, sem nunca ficarem muito tempo no mesmolugar. O irmo no permitia. Insistia que os traidorescontratados pelo Usurpador viriam atrs deles, embora Danynunca tivesse visto nenhum.A princpio, os magsteres, arcontes e prncipes mercadorestinham se sentido felizes por dar as boas-vindas aos ltimosTargaryen s suas casas e mesas, mas, medida que os anosforam passando e o Usurpador continuou sentado no Tronode Ferro, as portas foram se fechando e suas vidas tornaram-se mais pobres. Anos antes, tinham se visto forados a venderos ltimos tesouros, e agora, at o dinheiro que tinham obtidopela coroa da me desaparecera. Nas vielas e tabernas dePentos chamavam o irmo de "rei pedinte". Dany no queriasaber do que a chamavam."Um dia teremos tudo de volta, minha doce irm", prometia-lhe Viserys. s vezes as mos tremiam-lhe quando falavadaquilo. "As jias e as sedas, Pedra do Drago e Porto Real, o 40. Trono de Ferro e os Sete Reinos, tudo o que nos roubaram,teremos tudo de volta." Ele vivia para esse dia. Tudo o queDaenerys queria de volta era a grande casa de porta vermelhacom o limoeiro em frente janela do seu quarto, a infnciaque nunca conhecera.Ouviu-se um suave toque na porta.- Entre - disse Dany, virando as costas janela. As criadas deIllyrio entraram com reverncias e comearam a tratar desuas tarefas. Eram escravas, um presente de um dos muitosamigos dothrakis do magster. A escravatura no existia nacidade livre de Pentos. E, no entanto, elas eram escravas. Amulher mais velha, pequena e cinzenta como um rato, nuncadizia uma palavra, mas a moa compensava. Era a favoritade Illyrio, uma jovem de dezesseis anos, cabelos claros e olhosazuis, que tagarelava sem cessar enquanto trabalhava.Encheram a banheira com gua quente trazida da cozinha eperfumaram-na com leos odorferos. A moa puxou a tnicade algodo grosseiro pela cabea de Dany e a ajudou a entrarna banheira. A gua escaldava, mas Daenerys no hesitounem gritou. Gostava do calor. Fazia-a sentir-se limpa. Almdisso, o irmo dissera-lhe com frequncia que nunca nadaestava quente demais para um Targaryen. "A nossa a Casado drago", dizia. "O fogo est em nosso sangue."A mulher mais velha lavou seus longos cabelosesbranquiados e removeu suavemente os ns com umaescova, sempre em silncio. A moa esfregou-lhe as costas e osps e disse-lhe como tinha sorte.- Drogo to rico que at seus escravos usam colares de ouro.Seu khalasar tem cem mil cavaleiros, e seu palcio em VaesDothrak, duzentos quartos e portas de prata slida - e houvemais do mesmo gnero, muito mais; como o khal era umhomem bonito, alto e feroz, destemido em batalha, o melhor 41. cavaleiro que alguma vez montara um cavalo, um arqueirodemonaco. Daenerys nada disse. Sempre assumira que secasaria com Viserys quando chegasse idade adulta.Durante sculos, os Targaryen tinham se casado irmo comirm, desde que Aegon, o Conquistador, tomara as irmscomo noivas, Viserys dissera-lhe mil vezes que a pureza dalinhagem devia ser mantida, que o sangue real era deles, osangue dourado da antiga Valria, o sangue do drago. Osdrages no acasalavam com os animais dos campos, e osTargaryen no misturavam seu sangue com o de homensmenores. E, no entanto, agora Viserys conspirava paravend-la a um estranho, a um brbaro.Quando ficou limpa, as escravas ajudaram-na a sair da gua esecaram-na com toalhas. A moa escovou-lhe os cabelos atfaz-los brilhar como prata derretida, enquanto a mulhermais velha a untava com o perfume de flores de especiariasdas plancies dothrakianas, um salpico em cada pulso, atrsdas orelhas, na ponta dos seios e, por fim, um refrescante, lembaixo, entre as pernas. Vestiram-lhe a roupa de baixo queMagster Illyrio lhe enviara e depois o vestido, de seda, comum profundo tom de ameixa para realar o violeta dos seusolhos. A moa enfiou-lhe as sandlias douradas nos psenquanto a mulher mais velha lhe fixava a tiara na cabea efazia deslizar pulseiras douradas incrustadas de ametistas emseus pulsos. O ltimo adorno foi o colar, um pesado cordo deouro torcido ornado com antigos glifos valirianos.- Agora, sim, se parece com uma princesa - disse a moa, semflego, quando terminaram. Dany olhou de relance para suaimagem no espelho prateado que Illyrio to previdentementelhe fornecera. Uma princesa, pensou, mas lembrou-se do quea moa dissera, de como Khal Drogo era to rico que at seus 42. escravos usavam colares de ouro. Sentiu um sbito arrepiopercorrer os braos nus.O irmo a esperava na frescura do trio, sentado na margemda fonte, arrastando a mo pela gua. Ps-se em p quandoela surgiu e observou-a com olhos crticos.- Venha aqui - disse. - Vire-se. Sim. timo. Voc tem um ar...- Real - disse Magster Illyrio, entrando por uma arcada.Movia-se com uma delicadeza surpreendente para um homemto corpulento. Sob vestimentas soltas de seda cor de fogo,nuvens de gordura oscilavam enquanto ele caminhava.Pedras preciosas cintilavam em todos os dedos, e seu criadooleara-lhe a barba amarela bifurcada at que brilhasse comoouro verdadeiro.- Que o Senhor da Luz a banhe em bnos neste toafortunado dia, Princesa Daenerys - disse o magster quandolhe tomou a mo. Inclinou a cabea, mostrando um finorelance de dentes amarelos e tortos atravs do dourado dabarba. - Ela uma viso, Vossa Graa, uma viso - exclamou,dirigindo-se a Viserys. - Drogo ficar arrebatado.- magra demais - disse Viserys. Seus cabelos, do mesmo tomlouro-prateado dos dela, tinham sido puxados para trs e bematados com uma presilha de osso de drago. Era um visualsevero que dava nfase s linhas duras e magras de seu rosto.Pousou a mo no punho da espada que Illyrio lhe emprestarae disse: - Tem certeza de que Khal Drogo gosta das suasmulheres assim to novas?- Ela j teve o seu sangue. Tem idade suficiente para o khal -respondeu Illyrio, e j no era a primeira vez que dizia aquilo.- Olhe para ela. Aqueles cabelos louro-prateados, aquelesolhos prpuros... ela do sangue da antiga Valria, semdvida, sem dvida... e bem-nascida, filha do antigo rei, irm 43. do novo, no possvel que no arrebate nosso Drogo -quando Illyrio largou sua mo, Daenerys percebeu que estavatremendo.- Suponho que sim - disse o irmo em tom duvidoso. - Osselvagens tm gostos estranhos. Rapazes, cavalos, ovelhas...- melhor no sugerir isso a Khal Drogo - disse Illyrio.A ira flamejou nos olhos lils de Viserys.- Toma-me por tolo?O magster fez uma ligeira reverencia.- Tomo-o por um rei. Aos reis falta a cautela dos homensvulgares. Minhas desculpas se o ofendi - virou-se e bateupalmas para chamar os carregadores.As ruas de Pentos estavam escuras como breu quando saramna liteira elaboradamente esculpida de Illyrio. Dois criadosiam frente para alumiar o caminho, transportandoornamentadas lanternas a leo com vidraas de um vidroazul-claro, e uma dzia de homens fortes conduziam a liteiraaos ombros. O espao l dentro, por trs das cortinas, eraquente e apertado. Dany conseguia sentir o fedor da carneplida de Illyrio sob seus pesados perfumes.O irmo, esparramado em almofadas a seu lado, nada notava.Sua mente estava longe, do outro lado do mar estreito.- No necessitaremos de todo o seu khalasar - disse Viserys.Os dedos brincavam no punho da lmina emprestada, emboraDany soubesse que ele nunca usara uma espada a srio. - Dezmil sero suficientes, posso varrer os Sete Reinos com dez milguerreiros dothrakis. O domnio se erguer em nome do seurei de direito. Tyrell, Redwyne, Darry, Greyjoy no sentemmais amor pelo Usurpador do que eu. Os homens de Domeardem pela possibilidade de vingar Elia e os seus filhos. E aspessoas simples estaro conosco. Elas choram pelo seu rei -olhou ansioso para Illyrio. - Choram, no verdade? 44. - So o vosso povo, e o amam bastante - disse amavelmenteMagster Illyrio. - Em povoados por todo o territrio, oshomens fazem brindes secretos vossa sade, enquanto asmulheres cosem estandartes do drago e os escondem at odia do vosso regresso do outro lado das guas - encolheu osmacios ombros. - Ou pelo menos o que me dizem meusagentes.Dany no tinha agentes, nenhuma maneira de saber o quealgum estaria fazendo ou pensando do outro lado do marestreito, mas desconfiava das palavras doces de Illyrio domesmo modo que desconfiava de tudo o que dizia respeito aele. Mas o irmo acenava com ardor.- Matarei eu prprio o Usurpador - prometeu, ele que nuncamatara ningum -, tal como ele matou meu irmo Rhaegar. Etambm Lannister, o Regicida, pelo que fez ao meu pai.- Isso ser muito adequado - disse Magster Illyrio. Dany viua minscula sugesto de sorriso que brincava nos lbios cheiosdo homem, mas o irmo no reparou em nada. Acenando, eleafastou uma cortina e perdeu o olhar na noite, e Dany soubeque estava lutando de novo a Batalha do Tridente.A manso de nove torres de Khal Drogo erguia-se junto sguas da baa, com hera de tons claros cobrindo seus grandesmuros de tijolo. Tinha sido oferecida ao khal pelos magsteresde Pentos, Illyrio lhes disse. As Cidades Livres eram sempregenerosas com os senhores dos cavalos.- No que temamos esses brbaros - explicava Illyrio comum sorriso. - O Senhor da Luz poderia defender nossasmuralhas contra um milho de dothrakis, ou pelo menos isso que prometem os sacerdotes vermelhos... Mas para quecorrer riscos quando a amizade deles sai to barata? 45. A liteira em que seguiam foi parada ao porto e as cortinas,puxadas rudemente para trs por um dos guardas da casa.Possua a pele acobreada e os olhos escuros e amendoados deum doth-raki, mas tinha o rosto livre de pelos e usava ocapacete guarnecido de pontas agudas dos Imaculados.Avaliou-os friamente. Magster Illyrio rosnou-lhe qualquercoisa no rude idioma dothraki; o guarda respondeu-lhe nomesmo tom e lhes deu passagem com um gesto atravs dosportes.Dany reparou que a mo do irmo estava cerrada com forano punho de sua espada emprestada. Parecia quase toassustado como ela se sentia.- Eunuco insolente - murmurou Viserys enquanto a liteirasubia aos balanos at a manso. As palavras de MagsterIllyrio eram mel.- Esta noite estaro muitos homens importantes no banquete.Homens assim tm inimigos. O khal deve proteger seusconvidados, vs acima de todos, Vossa Graa. No h dvidasde que o Usurpador pagaria bem pela vossa cabea.- Ah, sim - disse sombriamente Viserys. - Ele tentou, Illyrio,asseguro-lhe. Seus traidores contratados nos seguem paratodo o lado. Sou o ltimo drago, e ele no dormirdescansado enquanto eu viver.A liteira desacelerou e parou. As cortinas foram puxadas e umescravo ofereceu a mo para ajudar Daenerys a sair. Seucolar, reparou ela, era de bronze comum. O irmo a seguiu,com uma das mos ainda cerrada com fora no punho daespada. Foram precisos dois homens fortes para pr MagsterIllyrio de p.Dentro da manso, o ar estava pesado com o cheiro deespeciarias, noz-de-fogo, limo-doce e canela. Foram levadosatravs do trio, onde um mosaico de vidro colorido retratava 46. a Destruio de Valria. leo ardia em lanternas negras deferro dispostas ao longo das paredes. Sob uma arcadacomposta por folhas de pedra interligadas, um eunuco cantoua chegada:- Viserys da Casa Targaryen, o Terceiro de seu Nome - gritounuma voz doce e aguda -, Rei dos ndalos, dos Roinares e dosPrimeiros Homens, Rei dos Sete Reinos e Protetor doTerritrio. Sua irm, Daenerys, Filha da Tormenta, Princesade Pedra do Drago. Seu honorvel anfitrio, Illyrio Mopatis,Magster da Cidade Livre de Pentos.Passaram pelo eunuco e entraram num ptio orlado de pilarescobertos de hera clara. O luar pintava as folhas em tons deosso e prata enquanto os convidados vagueavam por entreelas. Muitos eram senhores dos cavalos dothrakis, grandeshomens de pele vermelho-acastanhada, com os bigodespendentes presos por anis de metal e os cabelos negrosoleados, tranados e atados a campainhas. Mas por entre elesmoviam-se sicrios e mercenrios de Pentos, Myr e Tyrosh,um sacerdote vermelho ainda mais gordo que Illyrio, homenspeludos vindos do Porto de Ibben e senhores das Ilhas doVero com a pele negra como bano. Daenerys olhou a todosmaravilhada... e compreendeu, com um sbito sobressalto demedo, que era a nica mulher ali presente.Illyrio sussurrou-lhes:- Aqueles trs so os companheiros de sangue de Drogo, ali -ele mostrou. - Junto ao pilar est Khal Moro com o filhoRhogoro. O homem de barba verde irmo do Arconte deTyrosh, e o homem que est atrs dele Sor Jorah Mormont.O ltimo nome capturou a ateno de Daenerys.- Um cavaleiro?- Nem mais, nem menos - Illyrio sorriu sob a barba. - Ungidocom os sete leos pelo prprio Alto Septo. 47. - Que faz ele aqui? - ela perguntou.- O Usurpador quis v-lo morto - disse-lhes Illyrio. - Umaafrontazinha qualquer. Vendeu alguns caadores furtivos aum negociante de escravos de Tyrosh em vez de entreg-los Patrulha da Noite. Uma lei absurda. Um homem deve serautorizado a fazer o que bem entenda com seus bens.- Quero falar com Sor Jorah antes do fim da noite - disseViserys.Dany deu por si olhando com curiosidade o cavaleiro. Era umhomem velho, com mais de quarenta anos e perdendo cabelo,mas mantinha-se forte e em forma. Em vez de sedas ealgodo, trajava l e couro. Sua tnica era verde-escura,bordada com a imagem de um urso negro em p sobre duaspatas.Ainda observava aquele estranho homem vindo da ptria quenunca conhecera quando Ma-gster Illyrio colocou a momida em seu ombro nu.- Ali, doce princesa - sussurrou -, est o prprio khal.Dany quis fugir e se esconder, mas o irmo a estavaobservando, e ela sabia que se lhe desagradasse acordaria odrago. Ansiosa, virou-se e olhou o homem que Viserysesperava que pedisse para despos-la antes de a noite acabar.A jovem escrava no se enganara muito, pensou. Khal Drogoera uma cabea mais alto do que o mais alto dos presentes nasala, mas de certo modo leve de ps, to gracioso como apantera que havia na coleo de Illyrio. Era mais novo doque ela pensara, no tinha mais de trinta anos. A pele era dacor de cobre polido, e o espesso bigode estava preso com anisde ouro e bronze.- Devo ir fazer as minhas apresentaes - disse MagsterIllyrio. - Esperem aqui. Eu o trarei at vs. 48. O irmo tomou-lhe o brao quando Illyrio se dirigiu,bamboleante, at o khal, e seus dedos apertaram-na comtanta fora que a machucaram.- V a sua trana, querida irm?A trana de Drogo era negra como a meia-noite, pesada deleo perfumado e repleta de minsculas campainhas quetiniam suavemente quando ele se movia. Chegava-lhe bemabaixo do cinto, at mesmo abaixo das ndegas; a pontaroava-lhe a parte de trs das coxas.- V como longa? - continuou Viserys. - Quando osdothrakis so derrotados em combate, cortam as tranas emdesgraa para que o mundo saiba da sua vergonha. KhalDrogo nunca perdeu um combate. Aegon, o Senhor doDrago regressado, e voc ser a sua rainha.Dany olhou Khal Drogo. Seu rosto era duro e cruel, os olhosto frios e escuros como nix. O irmo s vezes a magoava,quando acordava o drago, mas no a assustava como aquelehomem.- No quero ser sua rainha - ouviu sua voz dizer num tomfraco e agudo. - Por favor, por favor, Viserys, no quero.Quero ir para casa.- Para casa? - ele manteve a voz baixa, mas ela conseguiaouvir a fria na entoao. - Como havemos de ir para casa,minha doce irm? Eles roubaram nossa casa! - levou-a para assombras, para fora da vista dos convidados, com os dedosenterrados em sua pele. - Como havemos de ir para casa? -repetiu, referindo-se a Porto Real, Pedra do Drago e a todoo territrio que tinham perdido.Dany se referira apenas aos seus quartos na propriedade deIllyrio, que certamente no seria uma casa verdadeira, masera tudo o que possuam; no entanto, seu irmo no quisouvir assim, Ali no havia para ele uma casa. Mesmo a casa 49. grande com a porta vermelha no tinha sido uma casa paraele. Seus dedos enterravam-se com fora no brao dela,exigindo uma resposta.- No sei... - Dany disse por fim, com a voz perdendo afirmeza. Lgrimas jorraram-lhe dos olhos.- Mas eu sei - disse ele com voz cortante, - Vamos para casacom um exrcito, minha doce irm. Com o exrcito de KhalDrogo, eis como vamos para casa. E se para isso tiver de secasar com ele e com ele dormir, isto o que far. - sorriu-lhe. -Deixaria que todo o seu khalasar a fodesse se fosse preciso,minha doce irm, todos os quarenta mil homens e tambm osseus cavalos, se isto fosse necessrio para obter o meuexrcito. Fique grata que seja s o Drogo. Com o tempo, podeat aprender a gostar dele. Agora seque os olhos. Illyrio o esttrazendo para c, e ele no vai v-la chorar.Dany virou-se e viu que era verdade. Magster Illyrio, todosorrisos e reverncias, escoltava Khal Drogo em direo aolugar onde se encontravam. Afastou com as costas da mo aslgrimas que no tinham sado dos seus olhos.- Sorria - murmurou Viserys nervosamente, com a mo caindosobre o punho da espada. - E fique ereta. Deixe que ele vejaque voc tem seios. Bem sabem os deuses que os tem bempequenos.Daenerys sorriu e se aprumou.EddardOs visitantes entraram pelos portes do castelo como um riode ouro e prata e ao polido, trezentos homens, um esplendorde vassalos e cavaleiros, soldados juramentados e cavaleiroslivres. Sobre suas cabeas, uma dzia de estandartes dourados 50. abanavam de um lado para outro ao sabor do vento do Norte,adornados com o veado coroado de Baratheon.Ned conhecia muitos dos cavaleiros. Ali vinha Sor JaimeLannister com os cabelos to brilhantes como ouro batido, eali estava Sandor Clegane com a face terrivelmente queimada.O rapaz alto ao seu lado s podia ser o prncipe herdeiro, eaquele homenzinho atrofiado ao lado era certamente oDuende, Tyrion Lannister.Mas o homem enorme que vinha cabea da coluna,flanqueado por dois cavaleiros que usavam os mantos brancoscomo a neve da Guarda Real, pareceu a Ned quase umestranho... At saltar de cima de seu cavalo de guerra com umrugido familiar e o esmagar num abrao de partir ossos.- Ned! Ah, como bom ver essa sua cara congelada - o rei oobservou de cima a baixo e soltou uma gargalhada. - Nomudou nem um bocadinho.Ned gostaria de poder dizer o mesmo. Quinze anos antes,quando tinham cavalgado juntos para conquistar um trono, oSenhor de Ponta Tempestade era um homem sem barba, deolhos claros e musculoso como um sonho de donzela. Quasecom dois metros de altura, erguia-se acima dos outros homense, quando punha a armadura e o grande capacete provido dechifres de sua Casa, transformava-se num autntico gigante.Tambm tinha a fora de um gigante, e sua arma prediletaera um martelo de batalha com ponta aguada que Ned quaseno conseguia erguer do cho. Nesses tempos, o cheiro docouro e do sangue aderia sua pele como perfume.Agora era perfume mesmo que aderia sua pele, e ele tinhauma largura que se equiparava a altura. Ned tinha visto o reipela ltima vez nove anos antes, durante a rebelio de BalonGreyjoy, quando o veado e o lobo gigante tinham se juntadopara acabar com as pretenses do auto-proclamado Rei das 51. Ilhas de Ferro. Desde a noite em que estiveram lado a lado noquartel-general cado de Greyjoy, quando Robert aceitara arendio do senhor rebelde e Ned tomara seu filho Theoncomo refm e protegido, o rei ganhara pelo menos cinquentaquilos. Uma barba to grosseira e negra como fio de ferrocobria-lhe a face, escondendo o duplo queixo e o descaimentodas reais bochechas, mas nada conseguia esconder seuestmago ou os crculos escuros sob os olhos.Mas Robert era agora o rei de Ned, e no apenas um amigo;portanto, limitou-se a dizer:- Vossa Graa. Winterfell vossa.Por essa altura j os outros estavam tambm a desmontar, eavanavam moos de estrebaria para lhes recolher asmontadas. A rainha de Robert, Cersei Lannister, entrou a pcom seus filhos mais novos. A caravana em que tinhamvindo, uma enorme carruagem de dois pisos feita de carvalhountado e metal dourado, puxada por quarenta cavalos detrao pesada, era larga demais para passar pelo porto docastelo. Ned ajoelhou-se na neve a fim de beijar o anel darainha, enquanto Robert abraou Catelyn como a uma irmh muito perdida. Depois as crianas foram trazidas,apresentadas e aprovadas por ambas as partes.Assim que aquelas formalidades de saudao se completaram,o rei disse ao anfitrio:- Leve-me sua cripta, Eddard. Quero apresentar os meusrespeitos.Ned o adorou por isso, por se lembrar ainda dela, depois detantos anos. Gritou por uma lanterna. No foram necessriasmais palavras. A rainha comeara a protestar. Que tinhamviajado desde a madrugada, que estavam todos cansados ecom frio, que decerto deveriam descansar primeiro. Que osmortos podiam esperar. No disse mais que isso; Robert 52. olhou-a, o irmo gmeo Jaime pegou-lhe calmamente nobrao e ela no disse mais nada.Desceram juntos para a cripta, Ned e seu rei, que quase noreconhecia. Os degraus de pedra em espiral eram estreitos.Ned seguiu frente com a lanterna.- J comeava a pensar que nunca mais chegaramos aWinterfell - queixou-se Robert enquanto desciam. - No Sul,do modo como falam dos meus Sete Reinos, um homem seesquece de que a sua parte to grande quanto as outras seisjuntas.- Espero que tenha apreciado a viagem, Vossa Graa. Robertresfolegou.- Lodaais, florestas e campos, e quase sem uma estalagemdecente a norte do Gargalo. Nunca vi um vazio to vasto.Onde esto todas as suas gentes?- Provavelmente estavam muito acanhadas para sair -brincou Ned. Sentia o frio que subia as escadas, a respiraogelada vinda das profundezas da terra. - Os reis so uma visorara no Norte.Robert resfolegou.- O mais certo que estivessem escondidas debaixo da neve.Neve, Ned! - o rei ps a mo na parede para se manter firmeenquanto descia.- As neves do fim do vero so bastante comuns - disse Ned. -Espero que no lhe tenham causado problemas. Sogeralmente suaves.- Que os Outros carreguem as suas neves suaves - praguejouRobert. - Como ser este lugar no inverno? Estremeo s depensar.- Os invernos so duros - admitiu Ned. - Mas os Stark ossuportaro. Sempre os suportamos. 53. - Tem de vir at o Sul - disse Robert. - Precisa experimentar overo antes que ele fuja. Em Jardim de Cima h campos derosas douradas que se estendem at perder de vista. Os frutosesto to maduros que explodem na boca: meles, pssegos,ameixas-de-fogo, nunca saboreou tamanha doura. Ver, eutrouxe algumas. Mesmo em Ponta Tempestade, com aquelebom vento da baa, os dias so to quentes que quase noconseguimos nos mexer. E precisa ver as vilas, Ned! Florespor toda parte, os mercados a rebentar de comida, os vinhosestivais to bons e baratos que podemos nos embebedar s derespirar o ar. Toda a gente gorda, bbada e rica - soltou umagargalhada e deu uma palmada no amplo estmago. - E asmoas, Ned! - exclamou com os olhos faiscando. - Juro, asmulheres perdem toda a modstia ao calor. Nadam nuas norio, mesmo por baixo do castelo. At nas ruas est calordemais para l ou peles, e elas andam por a com aquelesvestidos curtos de seda, se tiverem prata, ou algodo, se notiverem, mas tudo igual quando comeam a suar e o tecidolhes adere pele, como se andassem nuas - o rei riu, feliz.Robert Baratheon sempre fora um homem de enormesapetites, um homem que sabia como conquistar seus prazeres.Essa no era uma acusao que algum pudesse deixar porta de Eddard Stark. No entanto, Ned no podia deixar denotar que esses prazeres estavam cobrando seu preo do rei.Robert respirava pesadamente quando chegaram ao fundodas escadas, e com a cara vermelha luz da lanterna quandopenetraram na escurido da cripta.- Vossa Graa - disse Ned respeitosamente. Moveu a lanternanum largo semicrculo. As sombras moveram-se ebalanaram. A vacilante luz tocou as pedras do cho e roounuma longa procisso de pilares de granito que marchavamem frente a eles, dois a dois, na direo das trevas. Entre os 54. pilares sentavam-se os mortos nos seus tronos de pedraapoiados nas paredes, de costas voltadas para os sepulcrosque continham seus restos mortais. - Ela est l ao fundo,com o Pai e Brandon.Indicou o caminho por entre os pilares e Robert seguiu-o semuma palavra, estremecendo com o frio subterrneo. Ali faziasempre frio. Seus passos soavam nas pedras e ecoavam naabbada que se erguia sobre suas cabeas enquantocaminhavam por entre os mortos da Casa Stark. Os Senhoresde Winterfell viam-nos passar. Suas imagens tinham sidoesculpidas nas pedras que selavam as tumbas. Sentavam-seem longas filas, olhos cegos virados para a escurido eterna,enquanto grandes lobos gigantes de pedra se aninhavamjunto aos seus ps. As sombras mveis faziam com que asfiguras de pedra parecessem mover-se quando os vivospassavam por elas.Seguindo um costume antigo, uma espada de ferro tinha sidocolocada sobre o colo de todos os que tinham sido Senhores deWinterfell, a fim de manter os espritos vingativos em suascriptas. A mais antiga j h muito enferrujara at ainexistncia, deixando apenas algumas manchas vermelhasonde o metal tocara na pedra. Ned perguntou a si prprio seisso significava que aqueles espritos estavam agora livrespara passear pelo castelo. Esperava que no. Os primeirosSenhores de Winterfell tinham sido homens to duros como aterra que governavam. Nos sculos anteriores vinda dosSenhores do Drago do outro lado do mar, no tinham juradofidelidade a ningum, fazendo tratar-se por Reis do Norte.Ned parou, finalmente, e ergueu a lanterna de leo, A criptacontinuava sua frente, mergulhando na escurido, mas paral daquele ponto as tumbas estavam vazias e por selar; 55. buracos negros espera de seus mortos, espera dele e de seusfilhos. Ned no gostava de pensar naquilo.- Aqui - disse ele ao seu rei.Robert acenou em silncio, ajoelhou-se e inclinou a cabea.Havia trs tumbas, dispostas lado a lado. Lorde RickardStark, o pai de Ned, tinha um rosto longo e austero. Oesculpidor conhecera-o bem. Estava sentado com uma calmadignidade, com os dedos de pedra agarrados com fora espada que tinha no colo, mas em vida todas as espadas lhetinham falhado. Em dois sepulcros menores, de ambos oslados, estavam seus filhos.Brandon morrera com vinte anos, estrangulado por ordem doRei Louco Aerys Targaryen, poucos dias apenas antes de secasar com Catelyn Tully de Correrrio. O pai fora obrigado av-lo morrer. Era ele o verdadeiro herdeiro, o mais velho,nascido para governar.Lyanna tinha apenas dezesseis anos, uma menina-mulher deinigualvel encanto. Ned amara-a de todo o corao. Robertamara-a ainda mais. Ela estava destinada a ser sua noiva.- Era mais bela que isto - disse o rei aps um silncio. Seusolhos demoravam-se no rosto de Lyanna, como se pudessetraz-la de volta vida por um esforo de vontade. Por fim,ergueu-se, com o peso a torn-lo desajeitado. - Ah, maldio,Ned, tinha de enterr-la num lugar como este? - sua vozestava enrouquecida com a lembrana do desgosto. - Elamerecia mais que trevas...- Ela era uma Stark de Winterfell - disse Ned calmamente. -Este seu lugar.- Podia estar em algum lugar numa colina, sob uma rvore defruto, com o sol e nuvens acima dela e a chuva para lav-la. 56. - Eu estava com ela quando morreu - lembrou Ned ao rei. -Queria regressar nossa casa para descansar ao lado deBrandon e do Pai - por vezes ainda conseguia ouvi-la.Promete-me, suplicara, num quarto que cheirava a sangue e arosas. Promete-me, Ned. A febre levara-lhe as foras e a vozera tnue como um suspiro, mas quando ele lhe dera suapalavra, o medo sara dos olhos da irm. Ned recordava omodo como ento sorrira, a fora com que seus dedosagarraram os dele quando ela desistira de se agarrar vida, asptalas de rosa que se derramaram de sua mo, mortas enegras. Depois daquilo, no se lembrava de mais nada.Tinham-no encontrado ainda abraado ao seu corpo,silenciado pela dor. O pequeno cranogmano, Howland Reed,retirara a mo dela da dele. Ned nada recordava.- Trago-lhe flores sempre que posso - disse. - Lyanna era...amiga das flores.O rei tocou o rosto da esttua, roando os dedos na pedraspera to suavemente como se fosse carne viva.- Jurei matar Rhaegar pelo que lhe fez.- E foi o que Vossa Graa fez - lembrou-lhe Ned.- S uma vez - disse Robert amargamente.Tinham chegado juntos ao baixio do Tridente enquanto abatalha rugia em seu redor, Robert com seu martelo debatalha e seu grande elmo dos chifres de veado, e o prncipeTargaryen revestido de armadura negra. No peitoral trazia odrago de trs cabeas de sua Casa, todo trabalhado comrubis que relampejavam como fogo luz do sol. As guas doTridente corriam vermelhas sob os cascos de seus cavalos debatalha, enquanto eles andavam em crculos e entrechocavamas armas, uma e outra vez, at que, por fim, um tremendogolpe do martelo de Robert abriu um rombo no drago e no 57. peito que estava por baixo. Quando Ned finalmente chegouao local, Rhaegar jazia morto na corrente, enquanto homensde ambos os exrcitos escarafunchavam as guas rodopiantesem busca de rubis que se tivessem soltado de sua armadura.- Nos meus sonhos mato-o todas as noites - admitiu Robert. -Mil mortes ainda sero menos do que ele merece.No havia nada que Ned pudesse responder quilo. Depois deuma pausa, disse:- Devemos regressar, Vossa Graa. Sua esposa est espera.- Que os Outros carreguem minha esposa - murmurou Robertem tom azedo, mas encaminhou-se com passos pesados nadireo de onde tinham vindo. - E se ouvir mais alguma vez"Vossa Graa", enfio sua cabea num espeto. Somos mais queisso um para o outro.- No me esqueci - respondeu Ned calmamente. - Fale-medejon. Robert sacudiu a cabea.- Nunca vi um homem adoecer to depressa. Organizamos umtorneio no dia do nome do meu filho. Se tivesse visto Jonnesse dia, poderia jurar que viveria para sempre. Umaquinzena depois, estava morto, A doena foi como umincndio em suas tripas. Queimou-o todo por dentro - fez umapausa junto a um pilar, em frente tumba de um Stark hmuito morto. - Adorava aquele velho.- Ambos o adorvamos - Ned fez uma pausa momentnea. -Catelyn teme pela irm. Como Lysa est suportando a dor?A boca de Robert fez um trejeito amargo.- No muito bem, na verdade - admitiu. - Penso que a perdade Jon levou a mulher loucura, Ned. Levou o rapaz de voltapara o Ninho da guia. Contra os meus desejos. Tinhaplanejado cri-lo com Tywin Lannister em Rochedo Casterly. 58. Jon no tinha irmos nem outros filhos. Deveria eu deix-loser educado por mulheres?Ned mais depressa confiaria uma criana a uma vbora do queao Lorde Tywin, mas guardou para si essa opinio. Algumasvelhas feridas nunca chegavam a sarar de verdade, evoltavam a sangrar primeira palavra.- A mulher perdeu o marido - disse cuidadosamente. - Talveza me tema perder o filho. O rapaz muito novo.- Tem seis anos, enfermio e Senhor do Ninho da guia, queos deuses o salvem - praguejou o rei. - Lorde Tywin nuncaantes tinha tomado um protegido. Lysa devia se sentirhonrada. Os Lannister so uma Casa grande e nobre. Elarecusou at ouvir falar do assunto. E, depois, foi-se emborana calada da noite, sem sequer um com-licena. Cersei ficoufuriosa - soltou um profundo suspiro. - O rapaz meuhomnimo, sabias? - "Robert Arryn". Jurei proteg-lo. Comopoderei fazer isso se a me o rapta e o leva?- Posso tom-lo como protegido, se assim desejar - disse Ned.- Lysa certamente consentir. Ela e Catelyn eram prximasquando moas, e ela prpria tambm ser aqui bem-vinda.- Uma oferta generosa, meu amigo - disse o rei -, mas chegoutarde demais. Lorde Tywin j deu seu consentimento. Criar orapaz em outro lugar seria uma grave afronta.- Preocupa-me mais o bem-estar do meu sobrinho que oorgulho de um Lannister - declarou Ned.- Isto porque no dorme com uma Lannister - Robert soltouuma gargalhada, fazendo o som chocalhar por entre assepulturas e ressoar no teto abobadado. - Ah, Ned, continuasrio demais - ps um brao macio em torno dos ombros deNed. - Tinha planejado esperar alguns dias antes de falar 59. contigo, mas agora vejo que no h necessidade. Venha,acompanhe-me.Os dois voltaram por entre os pilares. Olhos cegos de pedrapareciam segui-los quando por eles passavam. O rei manteveo brao ao redor dos ombros de Ned.- Deve estar curioso sobre o motivo que me fez finalmente virpara o norte at Winterfell depois de tanto tempo.Ned tinha suas suspeitas, mas no disse nada.- Pela alegria da minha companhia, certamente - disse, comligeireza. - E h tambm a Muralha. Tem de v-la, VossaGraa, tem de caminhar entre suas ameias e falar com aquelesque a guarnecem. A Patrulha da Noite uma sombra do quej foi. Benjen diz...- Sem dvida que ouvirei o que diz seu irmo muito em breve- respondeu Robert. - A Muralha est ali h, o qu?, oito milanos? Pode esperar mais alguns dias. Tenho preocupaesmais urgentes. Estes so tempos difceis. Necessito de bonshomens ao meu redor. Homens como Jon Arryn. Ele serviucomo Senhor do Ninho da guia, como Protetor do Leste,como a Mo do Rei. No ser fcil substitu-lo.- Seu filho... - comeou Ned.- Seu filho herdar o Ninho da guia e todos os seusrendimentos - disse Robert bruscamente, - Nada mais.Aquilo apanh