As comunidades cristãs da primeira geração - Ildo Bohn Gass

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AS COMUNIDADES CRJSTâS DA PRIMEIRA ÇEZAÇAO

lido Bokn ôass

PAULUS

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Uma introdução à BíbliaAs comunidades cristãs da primeira

geração

SEGUNDO TESTAMENTOA serviço da leitura libertadora da

Bíblia

V o l u m e 7

lido Bohn Gass

Digitalizado por: jolosa

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Elaboração: Udo Bohn Gass

Revisão: Franciso Orofino, José Edmilson Schinelo, Monika Ottermann, Sebastião Armando Gameleira Soares e Tea Frigerio

Projeto Gráfico e impressão: Contexto Gráfica

Reimpressão: 2010

Tiragem: 1.000

ISBN: 85-89000-65-6

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índice

Apresentação.............................................................................................. 5

Parte I: As primeiras com unidades.................................................. ,7Introdução.................................................................................................. 7Um pouco de história............................................................................... 11A experiência com Jesus ressuscitado................................................... 16Releitura das Escrituras............................................................................ 26Comunidades do Discípulo Amado...................................................... 42Comunidades de Marcos.......................................................................... 51Comunidades de Jerusalém..................................................................... 58Comunidades helenistas........................................................................... 68Concilio de Jerusalém............................................................................... 88Conclusão da V parte............................................................................... 91Para orar e aprofundar.............................................................................. 93Sugestões de leitura................................................................................... 93

Parte II: Paulo e as comunidades he len istas............................... 95Introdução.................................................................................................. 95Um pouco de história............................................................................... 98

A resistência judaica contra o Império........................................... 101A vida de Paulo depois do concilio de 4 9 ........................................... 105

Segunda viagem de Paulo (50-52).................................................... 106Terceira viagem de Paulo (53-57)..................................................... 110Paulo prisioneiro é transferido para Roma.................................... 111O Paulo de Atos e o Paulo das Cartas........................................... 112

A estratégia pastoral da equipe de Paulo............................................. 115A globalização da Boa-Nova de Jesus............................................ 115Uma rede de comunidades solidárias............................................. 118As comunidades como corpo de Cristo........................................ 120

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Uma equipe em missão....................................................................... 122Paulo e o trabalho manual.................................................................. 124Duas preocupações básicas dos helenistas.................................... 126

( Conflitos que Paulo teve que enfrentar................................................ 129Com autoridades judaicas................................................................... 129Com judeus-cristãos............................................................................ 129Com cidadãos gregos........................................................................... 131Com o poder econômico e político................................................. 131A cruz de Jesus..................................................................................... 132

I ,ibertando-nos de preconceitos............................................................. 133Paulo e as mulheres............................................................................. 134Paulo e a opressão romana................................................................. 141Paulo e a escravidão ............................................................................ 145Paulo e o moralismo............................................................................ 147

As cartas autênticas de Paulo e sua equipe.......................................... 149Chaves de leitura para as cartas........................................................ 151Primeira Carta aos Tessalonicenses................................................. 152Primeira Carta aos Coríntios.............................................................. 154Segunda Carta aos Coríntios.............................................................. 158Carta aos Gaiatas................................................................................. 160Carta aos Filipenscs............................................................................. 162Carta a Filemon e comunidade......................................................... 163Carta aos Romanos.............................................................................. 165

Conclusão da 2a parte............................................................................... 168Para orar c aprofundar.............................................................................. 170Sugestões de leitura.................................................................................... 170

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Apresentação

O volume sete desta Introdução à Bíblia está dividido em duas par­tes.

A primeira é uma introdução aos vinte anos iniciais da vida das comunidades cristãs primitivas, desde a primeira experiência com Jesus ressuscitado até o Concilio de Jerusalém em 49.

A segunda parte deste volume trata da missão de Paulo e de sua equipe pastoral nas comunidades helenistas, a partir do Concilio de Jerusalém, bem como de seus escritos pastorais.

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Parte I:As primeiras comunidades

Introdução

A primeira parte deste volume é dedicado ao estudo dos 20 pri­meiros anos da vida das comunidades cristãs primitivas. Esse período vai mais ou menos do ano 30, quando [esus foi crucificado, até pelo ano49, quando foi realizada a primeira assembléia em Jerusalém. Esse é apenas o início de uma longa caminhada.

Nos volumes anteriores, vimos como o Judaísmo era diversifica­do e até antagônico, já antes de Jesus e também em seu tempo. Não eraapenas uma diferença entre as comunidades judaicas da dispersão emrelação às da Palestina. Eram também várias as tendências dentro do Judaísmo palestinense.

Algumas jovens igrejas cristãs se organizaram a partir das comu­nidades em torno das sinagogas e do templo. Outras surgiram na Gali- léia e ainda em regiões mais afastadas. Por isso, é natural que a diversi­dade de correntes no Judaísmo também tenha entrado nas igrejas nas­centes.

Havia muita diversidade, sem preocupação com a uniformidade.Havia autonomia na forma como vi­ver e celebrar sua fé. Porém, as comu­nidades insistiam em conservar as pa­lavras e os gestos de Jesus. Por isso mesmo viviam o amor fraterno, o acolhimento e o diálogo. Precisamos, pois, superar a visão romântica a respeito das igrejas primitivas, como

"No essencial, unidade. No discutido, liberdade.

Em tudo, a caridade." (Agostinho de Hipona)

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se fossem a perfeita uniformidade na fé, na liturgia, na cristologia e na missão.

Tal como fora a diversidade nas origens da formação de Israel, como vimos no volume 2 desta Jnlrodução, também o movimento cris- lão primitivo era multiforme. Com variadas experiências originárias, havia, no entanto, um ponto de união entre as comunidades. Era a pes­soa de Jesus, o Cristo.

Desde o início da oficialização do Cristianismo como religião do Império Romano no início do 4° século, tem-se difundido uma visão unitária e universal das primeiras igrejas. Tentou-se apresentar as co­munidades primitivas como se não tivessem peculiaridades e até dife­renças importantes. Neste estudo, pretendemos resgatar as riquezas da diversidade dos primeiros grupos que tentaram colocar em prática a missão que Jesus lhes confiara.

I louve vários ciclos na difusão do evangelho nas primeiras déca­das do Cristianismo. O primeiro é o da Palestina. Nesse período, pode­mos situar, por um lado, as jovens igrejas mais ao norte, isto é, as da

'Galiléia. Aqui, estudaremos as comunidades que estão na origem do Kvangclho de João, bem como as igrejas que estão por trás do Evange­lho de Marcos. Por outro lado, tentaremos uma aproximação às primei­ras comunidades da Judeia, em torno de Jerusalém.

Um segundo ciclo é a época em que os judeus-cristàos de origem helenista, isto é, de influência cultural grega, começam a romper espe­cialmente com o modelo da Judeia, ainda muito vinculado às sinagogas c ao templo de Jerusalém. A partir do capítulo 6 do Livro de Atos, eles estão representados pelos Sete, conhecidos como diáconos (At 6,5). E o ciclo da abertura da Boa- Nova de Jesus a quem não pertencia à religião judaica. São dessas igrejas helenistas as comunidades em torno de Antio- quia, a capital da província romana da Síria. Sempre que nos referimos às igrejas helenistas ou gregas, estamos falando das comunidades abertas a judeus da diáspora c a pessoas do mundo cultural greco-romano.

Certamente, a unidade na variedade das jovens igrejas nos ajuda­rá hoje a trilhar com mais coragem os caminhos do ecumenismo e uma convivência democrática não somente dentro de nossas pequenas co- fhunidades e nossas denominações cristãs, mas também em relação às

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demais igrejas que confessam jesus como o Cristo e Senhor. E mais. Estamos num caminho irreversível na busca de um macroecumcnismo em que, além das diferenças, nos unimos a todas as religiões e grupos na luta em defesa da vida. Nessa caminhada, as desigualdades devem ser combatidas, mas as diferenças valorizadas.

As três primeiras gerações do Cristianismo primitivoQuando falamos cm comunidades cristãs primitivas, referimo-

nos às primeiras comunidades desde sua origem após a paixão, morte e ressurreição de Jesus até a redação do último escrito do Segundo Testa­mento, em torno do ano 130. Todo esse tempo pode ser dividido em três etapas.

A primeira é conhecida como época apostólica. E a primeira geração de seguidoras e seguidores de )esus de Nazaré. São aqueles que conhe­ceram Jesus ou que aderiram a ele ainda nos primeiros anos do movi­mento cristão. A época apostólica vai desde o ano 30 até em torno de 67, quando provavelmente os primeiros seguidores dc Jesus já haviam morrido ou haviam sido mortos.

Embora se costume chamar esse período dc apostólico, foram, na verdade, poucos os apóstolos que se sobressaíram nessa época, ao menos pelas informações dos livros que compõem o Segundo Testa­mento. Conforme os evangelhos, apenas os dois pares de irmãos - .Pe­dro c André, Tiago e João - aparecem freqüentemente na companhia dc Jesus (Mc 1,16.29; 5,37; 9,2; 13,3; 14,33). Tiago foi executado por Herodes Agripa I em torno do ano 43 (At 12,1-2). João aparece somen­te como coadjuvante de Pedro em algumas cenas (At 3,1-4.1 1; 4,13; 8,14; G12,9). No capítulo 5 de Atos, além dc Pedro, faz-se uma ivlerên- cia vaga aos apóstolos.

Dos Doze resta, portanto, apenas Simão Pedro. Paulo costuma­va chamardhe Cefas. Temos bastantes notícias a respeito de sua atua­ção. Além de ter maior destaque nos evangelhos, onde representa os Doze, aparece também com destaque no Livro de Atos (] ,13.15; 2,14ss; 3,1 ss; 4,1-22; 5,1 ss; 8,14-25; 9,32ss; 10,1-11,18; 12,1-19; 15,7-12). Paulo também faz referência a ele em suas cartas (ICor 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; G11,18; 2,1-14).

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Além desses apóstolos, precisamos lembrar ainda outros como Paulo, que faz questão de defender seu título de “apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus” (Rm 1,1; ICor 1,1; 2Cor 1,1), Júnia e Andrônico (Km 16,7).

Segundo a tradição, Paulo e Pedro foram mortos em Roma na rpoca da perseguição do imperador Nero, por volta do ano 65. Assim M-udo, passados uns 30 anos da morte de Jesus, os únicos apóstolos de quem se tem maiores informações já estão todos mortos.

Este período apostólico (entre 30 e 67) pode ser dividido em .1. .is momentos claramente distintos. O primeiro é o anterior à assem­bléia de Jerusalém em 49, também conhecida por concilio de Jerusa­lém. Tal como do tempo de Jesus, não temos nenhum escrito bíblico desse período. O que sabemos, além das informações do historiador judeu Flávio Josefo, vem de escritos posteriores. O segundo momento da época apostólica vai desde o concilio de Jerusalém até em torno de 67.1 \ (> tempo áureo da missão de Paulo e sua equipe pastoral. Será o tema da segunda parte deste volume.

O segundo período das comunidades primitivas é a chamada épo- si/bapostólica. E o tempo da segunda geração de cristãos. Esse tempo

corresponde aos anos que vão desde, mais ou menos, 67 até por volta dc ()7, quando então inicia o período pós-apostólico, isto é, a terceira geração dc comunidades cristãs. Estes dois períodos serão o assunto do oitavo v< ilume desta Introdução à Bíblia.

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Um pouco de história

“Há algum tempo surgiu Tendas, que afirmava ser alguém, e aliciou

mais ou menos quatrocentos homens. Foi morto e todos os que o haviam seguido debandaram e foram reduzidos a nada. ”

(At 5,36)

34: Morte de Herodes Filipe. Sua tetrarquia é anexada à província da Síria.

Em torno de 34 e 35: Martírio de Estêvão e Conversão de Paulo.Anos 30 e 40: Somente tradições orais nas primeiras comunidades. 35: Pôncio Pilatos massacra samaritanos no monte Garizim.37: Marcelo, procurador.37-41: Calígula, imperador. Marulo, procurador.37-100: Vida do historiador judeu Flávio Josefo.Em tomo de 38: Fundação das comunidades de Antioquia. 41-44: Herodes Agripa I, neto de Herodes Magno, é o último rei

sobre toda a Palestina.A partir de 44, a Palestina passa a ser novamente governada por procuradores.41-54: Cláudio, imperador.43: Herodes Agripa I persegue a igreja e executa o apóstolo Tiago,

irmão de João (At 12,1-19).44-46: Fado, procurador romano, mata o profeta Teudas (At 5,36). 46-48: Primeira viagem da equipe de Paulo: Antioquia, Chipre,

Perge, Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe (At 13 14). 46-48: Tibério Alexandre, procurador romano na Palestina.49: Concilio de Jerusalém (At 15,1-29).49: O imperador Cláudio expulsa os judeus dc Roma (At 1H,] -2).

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Antes de nos ocuparmos com a vida das primeiras comunidades, lembramos alguns fatos importantes da história do Império Romano que têm relação com a Palestina.

Nos 20 anos que aqui estudaremos, a realidade siro-palestinense sob os romanos continua praticamente a mesma descrita na segunda parte do volume. O interesse do império nas regiões conquistadas é recolher tributos, cobrar taxas, impor o culto ao imperador e às divin­dades imperiais, em resumo: manter a “paz romana”. Essa prática le­vou a uma escravização crescente dos povos dominados e a um acúmu­lo de luxo em Roma. Os governantes eram romanos, mas a cultura que difundiam continuava helenista.

Em 34, morre Herodes Filipe. Como não tinha herdeiro, sua te- trarquia, que ficava ao norte da Galiléia, foi subordinada diretamente à província da Síria, pelo imperador Tibério César. Em 37, Herodes AgripaI, neto dc Herodes Magno, é posto como rei sobre essa tetrarquia.

Terá sido cm torno do ano 35 que ocorreu o martírio de Estêvão e a perseguição aos helenistas de Jerusalém, conforme nos relata At

' 7,55-8,3. Não podemos deixar de lembrar que foi em torno desse mes­mo ano que Paulo de Tarso passou por um processo de conversão, deixando de ser um perseguidor das comunidades para transformar-se em apóstolo dc Jesus Cristo.

Ainda em 35, um profeta samaritano convoca o povo para o monte Garizim, prometendo revelar onde Moisés havia escondido os utensílios do templo. Foi massacrado por Pilatos.

Em torno de 38, foi fundada a comunidade de Antioquia (At ■ 11,19-30).

Depois da ditadura sangüinária de Tibério, Calígula tornou-se imperador cm seu lugar. Governou Roma de 37-41. Foi um imperador tirano e cruel. Tomava atitudes que evidenciam sinais de loucura. Como exemplo, lembramos que chegou a dar a seu cavalo o título de cônsul. xVlém disso, exigiu para si honras divinas, fazendo-se chamar “deus vivo”. É a ideologia da filiação divina do rei. Sua decisão de intensificar o culto ao imperador tinha em vista a unificação do império. Todos os povos dominados eram obrigados a colocar sua estátua nos templos. Em 39, tenta colocar sua imagem no santuário de Jerusalém como Zeus encar-

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nado, gerando revolta entre os judeus. Para eles, isso cra uma verdadeira abominação. A resistência dos camponeses judeus, que pararam com todos os seus trabalhos agrícolas, levou ao adiamento dessa tentativa, que morreu junto com o assassinato do imperador.

Ainda em 39, Calígula desterra Flerodes Antipas c, no começo do ano 40, dá a sua tetrarquia, isto é, a Galiléia e a Peréia, para I lerodcs Agripa I, sobrinho de Antipas.

Tibério acumulara muitos tesouros. Calígula os esbanjou. Foi as sassinado em 41, e Cláudio assumiu em seu lugar.

Agripa fora criado em Roma e ajudara o imperador Cláudio na subida ao posto máximo do império. Por isso, viu seu território scr ampliado ao receber de presente do novo imperador as regiões da Sa- maria e da Judéia.

Dessa forma, Herodes Agripa I governou de 41 a 44 sobre a Galiléia, a Samaria e a Judéia. Foi, na verdade, o último rei sobre toda a Palestina.

De 44 em diante, a Palestina passa a ser novamente governada por procuradores romanos, a partir de Cesaréia Marítima. Mais uma vez, representantes diretos do impé­rio estavam bem próximos. Essa mu­dança na conjuntura reacendeu o sen­timento anti-romano no povo judeu.

Herodes Agripa I, como fiel capacho dos romanos, reprimia qual­quer movimento estranho à sua polí­tica. Por isso, em torno de 43, perse­guiu as comunidades cristãs, matando o apóstolo Tiago e colocando na prisão a Pedro. Você pode ler a respei­to em At 12,1-19. Herodes morreu subitamente em 44. Segundo At 12,20-23, a sua morte foi interpretada pelos cristãos como conseqüên­cia de sua tentativa de se apresentar como divino.

O imperador Cláudio governou de 41 a 54, ano em que foi enve­nenado por uma de suas mulheres. Foi o penúltimo imperador da dinas­tia júlio-Cláudia inaugurada por Augusto César (31 a.C. — 14 d.C.). O último soberano dessa dinastia foi Nero (54-68), como veremos adiante.

"Naquele mesmo tempo, começou o rei Herodes

a maltratar alguns membros da Igreja,

mandando matar com uma espada a Tiago,

irmão de João."

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Além do movimento cristão, outros grupos de resistência conti­nuavam a existir. E o caso dos batistas (seguidores de João Batista), que continuaram sendo um movimento paralelo ao dos seguidores de Jesus durante muito tempo. Flávio Josefo informa que o procurador Fado (44-46) decapitou Teudas, que se dizia profeta e reunia muita gente (At 5,36). Como seu grupo representava uma ameaça aos interesses do império, tratou logo de eliminá-lo.

Os protestos contra os romanos continuavam. Para reprimi-los, o procurador Tibério Alexandre (46-48) mandou crucificar Tiago e Si- mâo, filhos de Judas, o galileu, que fora morto por Flerodes Antipas (4a.C. — 39 d.C.) no início de seu governo (cf. At 5,37).

Em 49, Cláudio expulsa os judeus de Roma. A respeito disso, você pode ler em At 18,1-2. Entre os cristãos de origem judaica que tiveram que deixar a capital do império, encontravam-se Priscila e Aquila. Foram evangelizar em Corinto. Quando, mais tarde, Paulo chegou a esta cidade, tornou-se colaborador desse casal missionário.

Foi também em seu governo que houve uma seca muito grande na região, gerando muita fome em todo o império. Segundo At 11,27­30, foram as comunidades da Judéia que mais sentiram os efeitos da seca. As igrejas dc Antioquia foram solidárias e fizeram coleta para ali­viar a fome das irmãs c dos irmãos pobres que moravam na Judéia.

E provável que a primeira viagem da equipe missionária enviada pela comunidade de Antioquia tenha sido entre 46 e 48. Paulo fazia parte dessa missão.

Antioquia foi um centro importante em que se desenvolveram comunidades cristãs. Segundo Atos 11,26, foi em Antioquia que as pes­soas que seguiam a Jesus começaram a ser chamadas de cristãs. Elas fo­ram pioneiras em acolher em suas comunidades pessoas que não eram judias. Acolhiam-nas sem que tivessem que se submeter à lei judaica, especialmente à da circuncisão. Dessa prática, vieram as primeiras ten­sões com as comunidades de Jerusalém. E que Jerusalém era outro cen­tro importante de igrejas cristãs. Mas havia uma diferença fundamental. Eram comunidades de origem judaica observantes dos costumes judeus. E não só observavam a lei judaica. Queriam que os estrangeiros conver­tidos a Jesus também passassem a cumprir as exigências da Lei de Moisés.

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Conforme At 15,1-29, foi esse o motivo principal que levntt a uma grande assembléia de comunidades em Jerusalém. Isso deverá ter acontecido pelo ano 49.

A partir de agora, passaremos a analisar esses primeiros 20 anos do movimento cristão primitivo.

Nós estudaremos o Lávro ckAios dos Apóstolos no próximo volu­me. No entanto, antes de seguir adiante, fica um lembrete: não po­demos ler esse livro ao pé da letra, como se fosse historiografia. Mais do que isso, ele é uma teologia da igreja judeu-helenista, elabo­rada nos anos 80, segundo os critérios das comunidades de Lucas. Fundamentalmente, ele reduz o início das comunidades cristãs aos apóstolos e a Jerusalém. Sua perspectiva teológica é mostrar como Jerusalém é o ponto de partida do evangelho que é levado por Pau­lo até os confins do mundo com a força do Espírito (At 1,8).

Atos não faz nenhuma referência à evangelização na Galiléia, que merece apenas uma pequena nota (At 9,31). Só isso já nos faz perceber que há uma grande lacuna, uma vez que o movimento de Jesus surgiu na Galiléia e lá, antes de tudo, terá continuado depois de sua morte. Não se refere também à evangelização fora do Impé­rio Romano, como na África, na Arábia, na Mesopotâmia e na ín ­dia.

Lucas escreve para pessoas do mundo greco-romano e seu in­teresse principal é mostrar como a equipe de Paulo levou o Evange­lho aos gentios, que pouco ou nada conheciam da Galiléia. Jerusa­lém, no entanto, lhes era conhecida. E nessa perspectiva que preci­samos entender a lógica do Livro de Atos.

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A experiência com Jesus ressuscitado

“E eles narraram os acontecimentos do caminho e como o haviam reconhecido na partilha do pão. ”

(Lc 24,35)

Depois de um período de crise, o caminho é retomadoComo vimos no volume anterior, Jesus foi morto por autorida­

des judaicas e romanas , pelo ano 30. E provável que o grupo que o seguia desde a Galiléia tenha se dispersado por algum tempo. A morte violenta de Jesus na cruz gerou uma crise em quem punha nele suas esperanças. A execução do mestre foi um duro golpe para o grupo que se formara ao seu redor (Lc 24,13-24).

O poder de morte que eliminou Jesus matou também a esperan­ça em quem o seguia. E pior, espalhou o medo, de modo que se tran­cassem atrás das portas (Jo 20,19). Fugiram e se dispersaram (Mc 14,27.50). Voltaram a ser pescadores comuns (Jo 21,2-4). Seus olhos se fecharam e não perceberam sua presença no meio deles (Lc 24,16). Os onze apóstolos haviam perdido a fé a tal ponto que, nem mesmo quan­do as mulheres já haviam feito a experiência com Jesus ressuscitado, acreditaram nelas (Mc 16,11; Lc 24,11; Jo 20,1-10). Houve muitas dúvi­das se Jesus de fato estava vivo (Mt 28,17; Mc 16,14). Outros demora­ram para crer (Jo 20,25). Como podemos ver, a fé na ressurreição foi um longo processo de amadurecimento.

As mulheres são as primeiras a crer na ressurreiçãoAos poucos, no entanto, alguns grupos, es­

pecialmente as discípulas, voltaram a se articular para levar adiante o projeto que Jesus de Nazaré iniciara. E seus olhos foram se abrindo (Lc 24,31). Todos os evangelhos testemunham que foram pri­meiro as mulheres a crer na presença de Jesus res­

suscitado. Nos quatro evangelhos, foram elas que descobriram o túmu- " lo vazio e recebem a Boa-Notícia de que não adiantava “procurar entre os

"Deus está realmente no meio de nós!" (1 Cor 14,25)

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mortos aquele que está vivo” (cf. Lc 24,5). Você pode conferir isso em Ml28,1-8; Mc 16,1-8; Lc 24,1-11; Jo 20,1-2. Entre essas mulheres estavam Maria Madalena, Salomé, Joana e Maria, mãe de Tiago, além de outras. Foram as mulheres que melhor haviam experimentado a presença amo­rosa de Deus nos gestos libertadores de Jesus. Haviam sentido a liber­dade frente à teologia do templo, da qual elas eram as maiores vítimas.

Segundo três dos quatro evangelhos, embora haja consenso na pesquisa de que Mc 16,9-20 seja um acréscimo posterior, Jesus ressus­citado também apareceu primeiro a mulheres. Em Mt 28,1.9-10, Jesus se encontrou com Maria Madalena e a outra Maria. Em Jo 20,11-18 e no acréscimo de Marcos (Mc 16,9-10), é citada somente Maria Madale­na. Foram essas mulheres, lideradas certamente por Madalena, que não permitiram que a mecha que ainda fumegava em seus corações se apa­gasse de vez (cf. Mt 12,20b).

Paulo omite essa primeira aparição a Maria Madalena (1 Cor 15,5­8). E provável que a catequese que Paulo recebeu da igreja helenista não fizesse citação do testemunho de Maria Madalena. Em Lucas, já há uma intenção de diminuir a memória dela e da presença das mulheres no movimento de Jesus e das igrejas nascentes, como ainda veremos.

As primeiras comunidades se organizam na GaliléiaQuanto ao local do encontro dos discípulos com o ressuscitado,

dois evangelistas o situam na Galiléia (Mt 28,7.10.16; Mc 14,28; 16,7). Também o acréscimo ao 4o Evangelho (Jo 21) fala de uma aparição junto ao lago de Tiberíades (Jo 21,1).

E m jo 20,19ss, supõe-se que o encontro seja em Jerusalém, pois a aparição foi na tarde do primeiro dia da semana, isto é, logo depois daquela festa da Páscoa. Em Lucas, o primeiro encontro acontece a dois discípulos no caminho de Emaús, perto de Jerusalém (Lc 24,13­35). Quando vão anunciar a Boa-Notícia a um grupo mais amplo, reu­nido em Jerusalém, ficam sabendo que também já aparecera a Simão (Lc 24,33-34). Em seguida, realiza-se um encontro com o grande grupo (Lc 24,36-43).

A intenção teológica dos autores de Lucas é mostrar que Jerusa­

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lém é o ponto de chegada para Jesus e o ponto de partida para as igrejas (At 1,8). Por isso, é mais provável que a rearticulação do movimento de Jesus tenha ocorrido na Galiléia, conforme testemunham os autores dos evangelhos segundo Marcos e Mateus, bem como João, em seu acréscimo. Depois de um período de crise e de desarticulação do movi­mento de Jesus por causa de sua morte violenta, aos poucos foram novamente se reorganizando, sob o protagonismo de mulheres, a partir da Galiléia, sua terra de origem, pois Atos testemunha que os primeiros discípulos de Jesus todos eram galileus (At 2,7).

Vida comunitária e certeza da presença de JesusAs novas relações que o nazareno propunha não podiam morrer

com ele na cruz. E os discípulos e as discípulas foram se reagrupando. Tomaram consciência de que agora eles é que tinham de levar adiante a revelação do amor de Deus e seu projeto de vida em Jesus de Nazaré.

Relendo as Escrituras, encontraram luzes para retomar, com co­ração ardente, a mesma prática que haviam experimentado durante a convivência com seu mestre (Lc 24,25-27).

Passaram a se reunir nas casas para, a partir da memória do que Jesus realizara, continuar vivendo novas relações de partilha, de solida­riedade. Seus olhos foram se abrindo. E foi crescendo o sentimento de que Jesus continuava vivo lá onde os grupos se reuniam em seu nome para viver seu projeto (Mt 18,20). E, ao partilhar o pão, veio a certeza de sua presença (Lc 24,28-32). Assim, já não era possível falar de morte para ele. Sua entrega na cruz era interpretada como a revelação supre­ma do que é a vida.

As jovens igrejas têm a convicção de que o Cristo ressuscitado é o mesmo Jesus de Nazaré de antes da cruz. E expressam essa certeza, falando dele como quem ainda tinha as marcas da tortura (Lc 24,39-40; Jo 20,20.27), como quem tomava as refeições com as comunidades reu­nidas (Lc 24,41-42) ou na sua presença em uma pescaria (Jo 21,1-14), mantendo seus mesmos gestos de partilha (Lc 24,30.35; Jo 21,13) e a mesma voz (Jo 20,16).

Se, por um lado, é o mesmo Jesus, por outro, ele também é dife­

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rente. Entra na casa totalmente fechada (Jo 20,19.26), já não eslá mais de forma visível como antes (Jo 20,29b) e é reconhecido em quem par­tilha o pão (Lc 24,30-31). Jesus ressuscitado foi exaltado junto do Pai (Mc 16,19; Lc 24,51;At 1,9), mas continua presente no Espírito, como advogado e força para quem o segue pelo caminho (Jo 14,16; Mt 28,20; Lc 24,49).Na luta pela defesa da vida e da justiça, con­tra todas as formas de morte e de opressão, podemos dizer com Paulo: “Deus está realmen­te no meio de «ór”(lCor 14,25). Na ceia do Senhor, a comunidade celebra essa certeza (ICor 11,23-26).

Jesus foi exaltado para o mesmo nível de Deus. Está sentado à sua direita. Tudo o que falou enquanto caminhava com seu grupo era Palavra de Deus. Era o Espírito-do próprio Deus quem nele agia, a tal ponto de seus sentimentos serem os mesmos sentimentos do Pai. Acre­ditar em Jesus ressuscitado era crer que ele é divino. Ele era infinita­mente mais humano que as pessoas comuns. Sua profunda humanida­de é a sua divindade (Jo 5).

A força que vem de Deus conduz a PalavraA “força do alto” (Lc 24,49), que conduz a Palavra no caminho do

seguimento, é o Espírito Santo.Segundo Mt 28,16-20, o Espírito e a missão foram dados às igre­

jas da Galiléia um tempo depois dos acontecimentos de Jerusalém. Em Jo 20,20-23, Jesus recria a humanidade, doando em Jerusalém o Espíri­to no mesmo dia da ressurreição. Também é na capital que Lucas loca­liza a doação do Espírito (At 2,1-13). Mas diferentemente de Mateus e João, a situa 50 dias depois, durante a festa judaica de Pentecostes.

Nessa festa, os judeus celebravam a doação da Lei no Sinai. Ao fazer coincidir as duas festividades, os autores da obra lucana (Lc-At) querem deixar claro que não é mais a lei quem conduz o “novo Israel”, mas a força que vem de Deus. O Espírito substitui a lei como orienta­ção e, na linguagem do Evangelho de João, como caminho, como ver-

"Jesus se aproxima, toma o pão e o

distribui entre eles. E faz o mesmo com o peixe."

(Jo 21,1 3)

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dade e como luz. Nesse sentido, o Espírito prolonga e continua a mis­são de Jesus.

Com essa certeza da presença de Jesus no seu Espírito, assumi­ram a missão com coragem e entusiasmo, colocando novamente os pés no mesmo caminho que Jesus trilhara. Anunciaram sua ressurreição e o Reino de Deus que ele pro­clamara e vivera, curando doentes e expul­sando as forças do mal (Lc 24,33-35). Fo­ram percebendo o valor, a força e a trans­cendência das práticas e princípios deixa­

dos por seu mestre. Começam a rcelaborar sua compreensão a respeito dele, anunciando-o como o Messias e Filho de Deus, como o salvador do mundo.

A fé, primeiro das mulheres e depois também dos homens, fez com que a prática do mestre continuasse viva em seu Espírito, a força do alto.

' Graças a essa experiência com o Senhor ressuscitado, seu movi­mento continuou. Seu projeto permanecia vivo. Era Jesus mesmo quem continuava vivo c permanece ainda hoje presente em quem adere ao seu programa de vida.

Há uma diferença entre outros movimentos populares daquela época. Quando o líder de um grupo morria ou era morto, outra lideran­ça assumia em seu lugar. Foi diferente com o movimento de Jesus. Mesmo após a morte do nazareno, ele continuou sendo o líder e a inspiração de seus seguidores. Apesar de sua morte, Jesus continuou guiando seu m ov im en to através do Espírito de Deus (2Cor 3,17-18). Ninguém podia substituí-lo.

Uma nova prática incomodaO centro da experiência das primeiras comunidades foi uma nova

prática. Tal como o modo de agir de Jesus, também o das igrejas seguiu gerando conflitos. Dentro dessa prática, ou até como justificativa dela, é que vem o anúncio de Jesus como Messias. Se ele é o Messias, é o Senhor,

"Pois o S en h or é Espírito, e ,

o n d e s e a ch a o Espírito d o Senhor,

aí e s tá o lib erdad e." (2Cor 3,1 7)

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então, sua maneira de ser, seu jeito de agir e sua palavra são para as comu­nidades a norma de vida. O que se viu nele e dele se escutou permanecem para quem o segue como revelação do caminho indicado por Deus para a vida humana. Por isso, seguimos fazendo o que ele fazia.

A grande ênfase está na mesa do pão partilhado nas casas (At 2,42.46), na refeição solidária chamada ágape, que precedia ou era en­volta pelo ritual do pão e do vinho. Uma memória disso ficou nas pala­vras da eucaristia até hoje (Mc 14,22-25). Os discípulos de Emaús reco­nheceram sua presença no pão partilhado em torno da mesa (Lc 24,30­31). Também se manifestou aos “Onze” durante a refeição (Mc 16,14). Segundo os evangelhos, o sinal da partilha do pão foi o ponto alto para revelar de maneira mais clara qual é o centro da missão de Jesus (Mc 6,30-44; 8,1-10; Jo 6).

Portanto, o centro do Cristianismo nascente foi a prática da mesa da partilha, aberta às pessoas pobres, doentes, impuras e estrangeiras, e a quem se solidarizava e partilhava com esta gente. A esse gesto Jesus vinculou a revelação de sua presença continuada entre nós: “Isto é o meu corpo”. Em torno da mesa, realizava-se o que se lê em G13,28 e todos os textos paralelos (Rm 10,12; ICor 12,13; Cl 3,11). Foi essa prática, que revelava a verdade do anúncio, que fez o Cristianismo crescer a ponto de amedrontar o Império Romano. A memória de Jesus se mantinha viva em torno dessa mesa e o anúncio da ressurreição mostrava sua eficácia através dessa nova prática. Veja em At 4,32-37 como o anúncio da ressurreição (v. 33) está entre as referências à vida de partilha comu­nitária.

E importante resgatar a prática do pão partilhado como o centro do Cristianismo, principalmente em nosso tempo de milhões de famin­tos, de crucificados.

Pregação central das jovens igrejasA palavra grega kirygma quer dizer proclamação, pregação, Cer­

tamente, o mais antigo anúncio das comunidades foi o kerygma da Boa Nova da presença atuante de Jesus ressuscitado e dc seu Espírito no movimento cristão.

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Citemos, como exemplo, dois textos em que está bem claro que < > núcleo da profissão de fé, o credo central das igrejas primitivas, era a nfirmação da morte na cruz e ressurreição de Jesus.

Um deles é ICor 15,3-4. Confira!Você pôde ler que o próprio Paulo afirma já ter recebido dos

primeiros cristãos aquilo que tinha o primeiro lugar em sua pregação (v. 3a). E qual era o primeiro anúncio de Paulo e, de resto, de toda a igreja primitiva? O ponto central da confissão de fé era: “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras ” (w. 3b-4).

O centro da pregação é a morte e ressurreição de Jesus, o Cristo. Sua morte na cruz expia os pecados, reconciliando-nos com Deus. A .sua fidelidade ao Pai e ao povo vence todo pecado. Já não é mais preci­so oferecer sacrifícios de expiação no altar do templo de Jerusalém. O sepultamento confirma sua morte. Porém a ressurreição é a vitória da vida. E as aparições atestam que a vida venceu a morte (w. 5-8).

Embora Paulo, nesses versículos, não cite as mulheres como tes­temunhas da ressurreição, todos os evangelhos, como já vimos, reco­nhecem que foram elas as primeiras a fazerem a experiência da presen­ça de Jesus depois da sua execução na cruz.

O outro texto que aqui lembramos é o primeiro discurso que Pedro faz, em nome dos apóstolos, depois de Pentecostes (At 2,14-36). At 2 nos revela que o discurso não vem em primeiro lugar. Antes dele, veio a nova prática das comunidades movidas pelo Espírito. Era uma prática fraterna e de abertura a todas as culturas dispostas a ouvir e a acolher o Evangelho de Jesus.

Conforme esse primeiro discurso de Pedro, os pontos centrais do anúncio fundamental da pregação cristã primitiva podem ser assim resumidos:

• Em Jesus de Nazaré, realizam-se as esperanças de Israel, con­forme as Escrituras (2,16-21.25-28.34-35);

• Jesus de Nazaré é o homem através do qual Deus deu testemu­nho por meio de sinais e milagres (2,22);

• Deus o ressuscitou, depois de ter sido crucificado por autorida­des judaicas e romanas, os ímpios (2,23-24.32);

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• Deus o exaltou à sua direita e enviou o Espírito Santo (2,33);• Deus constituiu o crucificado Cristo e Senhor (2,36).

Jesus ressuscitado é o Cristo e é nosso SenhorComo vimos no volume anterior, o centro do anúncio de Jesus

foi a pregação da vinda do Reino de Deus. Depois da sua Páscoa, o movimento cristão tinha como tema fundamental a proclamação do Reino realizado em Jesus como “Cristo” e “Senhor”.

Isso não significa que o anúncio do Reino de Deus pelo nazare­no e a proclamação de Jesus pelas comunidades sejam duas coisas dife­rentes. O fato é que o anúncio de Jesus coincide com o anúncio sobre Jesus. Anunciar sua ressurreição e a glorificação era, ao mesmo tempo, atualizar a sua prática libertadora, seja em relação a doenças ou à opres­são religiosa, cultural, social e de gênero.

No Segundo Testamento, temos muitos testemunhos de que o movimento cristão primitivo fazia questão de apresentar Jesus de Na­zaré como o Cristo (At 2,36.38; 3,6.18.20). Esse é o título menos usado por ele mesmo e mais usado pelos cristãos. Aparece mais de 500 vezes no Segundo Testamento, especialmente nos escritos paulinos. Chamar Jesus de Cristo de ungido de Deus era, de um lado, reconhecer nele a realização da esperança profética na vinda do Mes­sias como servo sofredor. De outro lado, era uma contestação da divindade do im­perador que se dizia filho de Deus.

Mas não somente o título de Cristo era muito querido para as comunidades. Apresentavam também Jesus como o Senhor (At 1,6.21; 2,36; Rm 10,9). Antes de continuar seu estudo, leia atentamente o hino de F1 2,6-11!

Provavelmente, esse hino é anterior a Paulo e este o inseriu cm sua Carta aos Filipenses. Nele, jovens igrejas expressam sua fé na encar­nação divina em Jesus de Nazaré (v. 6), na sua condição humana c dc servo (v. 7) e na sua obediência até a morte na cruz (v. 8). Elxpressam também a fé na glorificação de Jesus como “o Senhor” (w. 9-11). Knlrc

"Deus constituiu Senhor e Cristo a esse Jesus

que vós crucificastes." (At 2,36)

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outras, podemos propor pelo menos três reflexões a partir desse título.Para não pronunciar o nome de Deus, YHWH, os judeus chama­

vam-lhe Senhor (Adonay, em hebraico). As primeiras comunidades ex­perimentaram em Jesus ressuscitado a presença viva e encarnada do Deus libertador que se revelara na experiência do Exodo. Nesse senti­do, Jesus é o Senhor que liberta, em oposição ao Deus manipulado pela religião oficial no templo de Jerusalém.

Por outro lado, também o imperador de Roma se apresentava como o único senhor do mundo (kyrios, em grego), a quem todos os povos conquistados deviam se submeter. As igrejas primitivas reconhe­cem em Jesus seu único Senhor. Ele recebeu de Deus “o” nome, isto é,o nome real de “o” Senhor (F1 2,9.11). Portanto, ao confessar o senho­rio de Jesus, as comunidades primitivas estão, ao mesmo tempo, con­testando a manipulação de Deus pelo templo, bem como o poder polí­tico do império e de seu monarca.

Mas há ainda um terceiro aspecto a observar, quando se afirma que Jesus é o Senhor. A sociedade de então era escravocrata. Havia senhores e escravos. Apresentando Jesus crucificado como o Senhor, fazia-se uma crítica à estrutura que condenava milhares de pessoas à escravidão, ao sofrimento, a uma condição desumana. Afirmava-se, de outro lado, que todas as pessoas na comunidade eram escravas de um mesmo Senhor, Jesus Cristo. Dessa forma, eliminava-se qualquer pos­sibilidade de alguém se tornar senhor de outrem. E Jesus era um Se­nhor diferente. Era ele quem servia (Jo 13,1-17), dando sua vida em favor de seus amigos. Veja que Jesus não chamou a quem o seguia de escravos, mas de amigos (Jo 15,13-15). Como servos, ou melhor, como amigos desse Senhor, vivemos novas relações não somente com Deus, mas também com as demais pessoas da comunidade e do círculo de nossa convivência. Justamente porque, para as comunidades cristãs, ele era o Cristo e o Senhor, é que elas davam seqüência à sua prática. A prática ocupava o centro da vida de Jesus, sua pregação era para defen­dê-la e legitimá-la. Com as primeiras comunidades terá sido do mesmo modo.

Se reconhecemos Jesus como nosso Senhor e Salvador, então nossas vidas se renovam. Procuramos viver do mesmo jeito que ele

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viveu, organizando nossas vidas conforme os valores pelos quais lutou e deu sua própria vida.

Qual é a experiência com Jesus ressuscitado em nossas comuni­dades e em sua vida?

A esperança no retorno de JesusComo já vimos no volume anterior, a mentalidade apocalíptica

era muito forte desde a guerra dos macabeus e ainda no tempo de Jesus e das primeiras comunidades. Vimos também que o movimento apoca­líptico esperava uma intervenção transformadora de Deus na vida dos pobres. Da mesma forma, muitas igrejas também respiravam ares apo­calípticos. Interpretaram o evento Jesus a partir dessa maneira de com­preender a vida.

Aguardavam seu retorno para breve, ainda para aquela primeira geração. Muitos ainda estariam vivos. Até mesmo Paulo pensava que iria presenciar a volta gloriosa de Jesus. Sua vinda seria precedida por sinais bem reconhecíveis. Veja, por exemplo, Mc 9,1; 13,30; lTs 4,15­17; 2Ts 2,1-10!

Jesus voltaria para dar um fim a esta história de opressão e sofri­mento, dando início a uma nova história, em sua fase última e definiti­va. Seria um novo céu e uma nova terra. Nas primeiras décadas, essa expectativa deve ter sido geral nas igrejas nascentes.

E provável que foi a esperança na sua vinda iminente que levou muitas pessoas a vender tudo e colocar o dinheiro em comum nas igre­jas (At 4,36-37). No entanto, Jesus não voltou como era esperado, o dinheiro acabou e a fome chegou. Não teria sido melhor partilhar a terra e trabalhá-la de forma comunitária?

Em Tessalônica, havia até pessoas que não trabalhavam mais, esperando a sua volta. Para que trabalhar se ele vai voltar logo? Paulo questiona essa postura (cf. lTs 5,1-11; 2Ts 2,12).

Porém, como ele não voltava, muitas comunidades foram reela- borando sua compreensão a respeito da sua vinda. Passaram a compre­ender que não apareceria de acordo com as categorias apocalípticas. Compreenderam que a forma de ele continuar presente era aquela mcs-

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ma que haviam experimentado com o forasteiro que acolhiam em casa (I x 24,13-29; Mt 25,35), no pão que repartiam (Lc 24,30-32; Mt 25,35), na partilha da ceia do Senhor (ICor 11,23-26), na comunidade que se reunia (Mt 18,20), nos doentes e presos que visitavam (Mt 25,36), na força do Espírito. Assim compreenderam que Jesus estava no meio deles (Mt 28,20). A vida das primeiras igrejas, portanto, continuava centrada na prática solidária e de partilha que Jesus vivia.

Mas nem todas as comunidades fizeram essa reelaboração. Ou­tras continuavam esperando a vinda de Jesus. E, por exemplo, o caso das comunidades que escreveram a Segunda Carta de Pedro em torno do ano 130. Confira 2Pd 3,1-10!

E hoje, não há também quem ainda aguarde sua vinda gloriosa, sem perceber que ele está no meio de nós, vivendo relações de partilha? Ou ainda quem o busque nas coisas grandiosas e tenha dificuldades de percebê-lo nas coisas simples, pobres e pequenas da vida cotidiana?

Releitura das Escrituras

Má muita insistência nos escritos do Segundo Testamento de que aquilo que se realizou emjesus dc Nazaré c nas primeiras comunidades foi “segundo as Escrituras” ÇlCor 15,3-4), ou foi para “cumprir as Escrituras” (cf. Mt 26,54.56; Lc 4.21; Jo 13,18; 17,12), ou ainda para “cumprir o que fora dito pelo... "(cf. Mt 1,22; 2,15.17.23; 4,14; 8,17).

Por isso, convém que nos detenhamos um pouco na releitura dasI òscrituras feita pelas igrejas primitivas. É que um novo olhar sobre elas permitiu a fé emjesus como Messias esperado. As jovens igrejas passa­ram a reler o Primeiro Testamento à luz da experiência com Jesus de Nazaré. Desta releitura foram surgindo novos livros que formarão mais larde o Segundo Testamento.

Os antigos profetas, decepcionados com a monarquia, anuncia­ram dias melhores a serem instaurados por um governante justo e fiel que traria a libertação para o povo pobre. Veja alguns exemplos: Is 9,1- (>; 11,1-5; j r 23,5-6; Ez 34,23-24; 37,23-25; Mq 5,1-3; Zc 9,9-10!

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C om o vimos no volume anterior, a maioria dos grupos de judeus do tempo de Jesus, com base nessa esperança profética, esperavam um Messias que trouxesse a libertação da dominação romana, restaurando a monarquia davídica.

As primeiras comunidades viram essa esperança na vinda de um Messias tornar-se realidade em Jesus de Nazaré. Seria bom que você relesse, no volume anterior (p. 174-176), como Jesus frusta a maioria das expectativas messiânicas de seu tempo e como o movimento cris­tão primitivo o apresentou como um Messias diferente daquelas expec­tativas. Ele é o Messias servo que passa pela cruz-ressurreição.

As Escrituras e o evento Jesus se iluminam mutuamentePor um lado, as Escrituras judaicas jogam luzes sobre o evento

Jesus de Nazaré, possibilitando a fé na ressurreição. Por outro, a partir da experiência da ressurreição, elas passam a ter um novo sentido para as igrejas nascentes. São reinterpretadas a partir da vida de Jesus.

As primeiras comunidades relêem as Escrituras, buscando nelas textos que pudessem contribuir cm seu argumento central a respeito de Jesus como cumprimento da esperança messiânica. Esses textos confir­mavam sua fé de que, de fato, Jesus era o Messias anunciado, porém, na perspectiva do servo sofredor do 2o Isaías. E mais. Essa releitura dos textos sagrados passou a ser um forte instrumento para convencimen­to de judeus, a fim de aderirem a Jesus nas comunidades.

Segundo o Livro de Atos, em seu primeiro discurso ao povo, Pedro já lembra três textos do Primeiro Testamento para iluminar sua fala. Em primeiro lugar, afirma que a experiência do Espírito é cumpri­mento do que fora dito pelo profeta Joel. Compare J1 3,1-5 (Almeida = 2,28-32) com At 2,16-21!

Depois, lembra o Salmo 16 para jogar luzes sobre a ressurreição. Compare SI 16,8-11 com At 2,25-28!

Por fim, para falar da exaltação de Jesus à direita de Deus, busca respaldo nas Escrituras, citando o SI 110,1. Compare com At 2,34-35!

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Jesus passa a ser o critério para reler as EscriturasPoderíamos analisar muitos textos como, por exemplo, o discur­

so de Estêvão (At 7,2-53) e outros mais.Mas tomemos, aqui, a passagem da transfiguração como texto

exemplar nos evangelhos, no que diz respeito ao cumprimento das Es­crituras emjesus de Nazaré (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36). Confira um dos textos citados!

Na leitura que fez, você pôde perceber que, além das testemu­nhas Pedro, Tiago e João, duas outras personagens também aparecem. São Elias e Moisés.

Ao falar em Moisés, os evangelistas querem se referir à Lei, isto é, ao Pentateuco, de quem ele era considerado autor (Lc 24,27).

Ao apresentar Elias, querem falar de todos os profetas, sejam os anteriores (Js, Jz, l-2Sm e l-2Rs), sejam os posteriores (desde Isaías até Malaquias).

Apresentar Jesus falando com Moisés e Elias, portanto, é uma forma de dizer que ele está em diálogo com toda a Escritura. Que ele

não somente é o novo libertador e profeta, mas que nele se cumpre a esperança de Israel contida no Primeiro Testamento.

Jesus passa a ser o critério para interpretá-lo. Tudo aquilo que nas Escrituras coincide com sua mensagem, sua vida e morte, continua tendo vali­

dade. No entanto, aquilo que não coincide com sua Boa-Nova não tem mais validade, caducou. Em outras palavras, é o Primeiro Testamento que está subordinado a Jesus e não o inverso. Nesse sentido, não se pode partir dele para entender Jesus como o Messias, mas partir deste para avaliar as variadas compreensões messiânicas presentes na cami­nhada de Israel.

Ao anunciar que Jesus é o filho amado do Pai e que é a ele que devemos escutar (Mc 9,7), as comunidades querem deixar muito claro que, sendo ele o filho, encontra-se acima de Elias e Moisés, isto é, das Escrituras. Dessa forma, relativizam tudo o que foi escrito antes. O que é absoluto é Jesus. Pode-se até “escutar” o Primeiro Testamento, mas na medida em que Jesus seja o critério de sua interpretação.

"Este é o meu Filho amado.

Escutai-o!" (Mc 9,7)

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Nos próximos itens, veremos, de um lado, alguns aspectos da religião de Israel que Jesus e as comunidades cristãs valorizaram. I ><• outro, veremos como tradições são relativizadas. Por fim, oulros aspa: tos ainda foram considerados caducos, superados.

Que valores das Escrituras permanecem?1. Entre os valores permanentes do Primeiro Testamento c reto­

mados com vigor por Jesus e as primeiras comunidades está o resgate do tema do Éxodo, a construção de novas relações baseadas na justiça e na liberdade. A prática de Jesus mostra que ele veio para trazer a liber­tação em todas as relações, com o sagrado, consigo mesmo, com outras pessoas ou com a natureza, em nível econômico, social, político, de gênero, classe, etnia, geração e religião. A teologia do Êxodo está pre­sente em todos os evangelhos e nos demais escritos do Segundo Testa­mento, especialmente no Livro do Apocalipse.

Entre as principais imagens do processo libertador do Êxodo que as comunidades recuperam e aplicam a Jesus, podemos encontrar as que seguem:

• Da mesma forma como Moisés é salvo da matança de crianças, também Jesus, segundo as comunidades de Mateus, escapa do massacre promovido por Herodes Magno, apresentando-o como o novo liberta­dor, tal como fora Moisés (Ex 2,1-10; Mt 2,1-18).

• Assim como YHWH é um Deus que está junto com Moisés e os hebreus (Ex 3,7-8.12), Jesus é o novo Emanuel, isto é, o Deus co­nosco (Mt 1,23), a tal ponto de as comunidades de João lhe chamarem da mesma forma como YHWH se apresenta a Moisés (compare Ex 3,14 com Jo 8,24.28.58!).

• O cordeiro da Páscoa, memorial na libertação do Êxodo (Ex12,1-6), passa a ser Jesus, porém, como um cordeiro que liberta do peca­do do mundo (compare Lv 14,10-20 comjo 1,29.36; ICor 5,7; Ap 5,12!).

• As primeiras igrejas relêem o evento de libertação dos hebreus diante do Império Egípcio junto ao mar e apresentamjesus como quem veio atualizar essa memória no contexto do Império Romano (Ex 14,15­31; Mc 5,1-20).

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. • Além de interpretar o maná como figura, ainda limitada, da ceiado Senhor (Ex 16,1-36; Jo 6,26-58), as comunidades e Jesus viram em seu significado um dos temas centrais do evangelho, isto é, resolver o problema da fome do povo, partilhando o pão (Mc 6,30-44; 8,1-10).

• Assim como Moisés teve que aprender a descentralizar o poder e organizar o povo (Ex 18,13-27; cf. v. 21), da mesma forma Jesus tra­balha seus discípulos (Mc 10,35-45), e as igrejas nascentes aprendem a partilhar as funções, os diferentes serviços (At 6,1-6; cf. v. 3).

• Se Moisés é o legislador da aliança de Deus com os hebreus em processo de libertação junto ao monte Sinai (Ex 19,1; 20,2-17), os pri­meiros cristãos apresentam Jesus como o novo legislador no monte (Mt 5).

• Através de Moisés, Deus entregara o dom da lei, para criar um povo livre e comunitário, renascido a partir da vitória sobre a morte, no Êxodo (Ex 14-15). Através de Jesus, Deus dá o Espírito (Jo 1,17-18), que será agora a nova Lei a guiar o povo na caminhada e, como nova espada de fogo (Ex 3,2-3; At 2,3), o animará no vitorioso combate que é a proclamação do evangelho.

• Tal como o sangue oferecido por Moisés selara a aliança do Sinai (Ex 24,8), assim o sangue de Jesus sela a nova aliança realizada em sua vida que passa pela cruz (Mt 26,28).

• Por fim, também Jesus faz a caminhada libertadora do Êxodo pelo deserto (Mt 2,15); nele permanece, não durante 40 anos, mas du­rante 40 dias, vencendo as tentações do poder, da riqueza e da manipu­lação de Deus (Mt 4,1-11).

2. Outro tema que permanece forte é o da teologia da criação, cuja centralidade é a vida. E não é qualquer vida. É vida em harmonia com a natureza, com as demais pessoas, inclusive nas relações de gêne­ro, consigo e com o próprio criador. Várias vezes, Jesus chama a Deus de Pai, isto é, o doador de vida, o criador que comunica sua própria vida. A comunidade do Evangelho de João apresenta Jesus participan­do da criação desde o princípio (Jo 1,1-4) e recriando homens e mulhe­res da mesma forma como haviam sido criados no começo. Compare Jo 9,6 e 20,22 com Gn 2,7! Além disso, o projeto de gerar vida plena perpassa toda a obra joanina e está sintetizada em Jo 10,10.

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3. Um terceiro aspecto importante do Primeiro Testamento que Jesus e as comunidades resgatam é o Reino de Deus. Para Israel, falar em reinado de Deus era uma forma de se referir à terra prometida. Isso era especialmente válido para a época tribal, quando não podia ter outr< > rei além de YHWH (Jz 8,22-23; ISm 8,7; 12,12). A monarquia israelita acabou com o projeto fraterno das tribos e destronou YHWH, o único rei. Substituiu um modelo social mais justo por uma estrutura de opres­são, como deixam muito claro os profetas em suas fortes denúncias das injustiças cometidas pela corte e todas as instituições do reinado.

No período do exílio, o projeto do Reino de Deus foi redimensio- nado para uma perspectiva universal, porém, ainda centrado em Israel (Is 42,6; 49,6).

No pós-exílio, o segundo templo elabora a teocracia, o reinado de Deus centrado no poder sacral do santuário de Jerusalém e baseado no sistema de sacrifícios, na lei do puro e do impuro, na doutrina da retribui­ção e na teologia de pureza étnica, excluindo novamente outros povos. A prática deste sistema tinha como conseqüência a exclusão. Jesus e as pri­meiras comunidades mudam esse enfoque do Reino de Deus, reinterpre- tando-o. Nele tem vez justamente aquelas pessoas que não tinham lugar na teocracia sacerdotal do segundo templo: as pessoas mais pobres, do­entes e estrangeiras, bem como as mulheres. Agora, a palavra de ordem é inclusão. O Reino de iguais é universal em todos os níveis.

4. Por fim, Jesus e as igrejas primitivas retomaram com força a profeáa, lutando em defesa do direito dos pobres e denunciando as injus­tiças. Jesus mesmo é apresentado como o profeta (Jo 6,14; 7,40-41). No entanto, diferentemente da crítica da profecia e de Jesus ao pecado estru­tural, os primeiros cristãos destacam mais o pecado individual. E as co­munidades seguem fazendo profecia (At 11,27; 13,1; 21,9-10; ICor 14,1).

Que sinal profético o Cristianismo representa para o mundo hoje?

Que valores das Escrituras são provisórios?1. Emjesus, se renova a primeira aliança de Deus feita com toda

a humanidade no início, simbolizada pelo clã de Noé (Gn 9,8-17). Essa aliança é universal, como também o fora a aliança de Deus com todas

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as tribos de Israel, abertas aos mais variados grupos, unidos em torno de um projeto alternativo ao dos monarcas da época.

No decorrer da história de Israel, no entanto, a aliança de Deus passou a ser interpretada como exclusiva com Israel, representado por Abraão (Gn 17), passando a excluir outras culturas.

Por isso, pode-se dizer que Jesus retoma o projeto igualitário das tribos, renovando a aliança de Deus feita sem discriminação com todos os grupos oprimidos no sistema das cidades-estado egípcias e cananéi- as (Ex 24,8). Na pessoa de Jesus, que doa sua própria vida até a morte, celebra-se a retomada da aliança universal de Deus com toda a humani­dade (Mc 14,24; Jo 2,1-12).

2. A Lti, como código de moral e de busca da perfeição, já não tem mais sentido. Jesus opõe a ela as bem-aventuranças e a radicalidade na vivência da vontade de Deus (Mt 5). Resgata dela o essencial e o aprofunda. Afirma o amor universal de Deus e retoma da lei antiga o

mais importante, isto é, o amor a Deus de todoo coração e o amor ao próximo como a si mes­mo (Mc 12,29-31; Rm 13,8-10; Dt 6,4-5; Lv19,18). Para as jovens igrejas, esse amor tem tal intensidade como o amor do próprio Jesus que, de tanto nos amar, deu a sua vida por seus ami­gos (Jo 15,12-13.17).

Jesus está acima da lei (Mc 2,23-28). Tudo da lei que estiver de acordo com o Evangelho de Jesus continua válido. Porém, tudo o que estiver em desacordo com a promoção da vida, perde sua razão de ser.

A posição de Paulo, no entanto, é ainda mais radical. Para ele, a antiga lei está superada. Já cumpriu sua função (G13,24-25). Em vez de liberdade, gerava escravidão (G1 5,1). Embora fosse boa em si (Rm 7,12.16), a lei dava a consciência do pecado (Rm 3,20; 7,7). Em vez de gerar vida, gerava morte. E o Espírito, através de quem Jesus continua agindo nas comunidades, passa a substituir a lei, pois esse é quem dá a vida (2Cor 3,6).

"... pois a letra mata e o Espírito comunica vida."

(2Cor 3,6)

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Que valores do Judaísmo oficial já caducaram?1. As leis discriminatórias são inadmissíveis na prática dc Jesus e

de seu movimento. Contra a lei de pureza étnica, as comunidades hclenis- tas, isto é, abertas à cultura grega, resgatam a luta de Rute e dos autores de Jonas pela inclusão de pessoas estrangeiras. Descobrem que a Boa- Nova de Jesus tem a ver com toda a humanidade. O movimento cristão se opõe ao nacionalismo exclusivista e propõe a universalidade do Rei ­no de Deus (At 10; 11,20; G1 2,1-10; 3,28). Nenhum povo tem privilé­gio sobre outro. Retomam também a missão universal de Abraão, de ser bênção para todos os povos (Gn 12,1-3; Mt 28,19).

2. Contra a lei do puro e do impuro, Jesus e as comunidades primitivas recuperam a luta das mu­lheres e dos pobres por cidadania, luta essa expres­sa especialmente em Cantares e Rute. Nas igrejas das casas, diferentemente do templo e das sinago­gas, as mulheres têm espaço igual ao dos homens (At 12,12; Rm 16,1-7; ICor 7; 11,5; G1 3,28). Po­bres e pessoas doentes, que eram discriminados no Judaísmo ortodoxo, passam a ter sua dignidade reconhecida nas comunidades (At 2,42-47;3,1-10; 4,32-37).

3. Contra o sistema de sacrifícios como meio de reconciliação com Deus, as comunidades retomam a teologia da misericórdia de Deus defendida já no Primeiro Testamento, por exemplo, pelos autores do livrinho de Jonas (Jn 4,2). Quem é pecador passa a ser reconciliado gratuitamente, por pura graça (Rm 3,21-26).

4. Contra a doutrina da retribuição, elas reafirmam a resistência de Jó contra as instituições, representadas pelos “amigos”, que o acusam de ser pobre e doente como conseqüência do castigo de Deus. O 2o templo promovia a imagem de um Deus “comerciante”. Se você prati­ca a lei, ele lhe dá sua bênção. Se você não cumpre a lei, em troca lhe dáo castigo merecido. A teologia da retribuição perde seu valor diante da teologia da gratuidade tão fortemente defendida pelas comunidades he­lenistas, das quais fazia parte o apóstolo Paulo (At 15,11; Rm 3,24).

"Não chames impuro o que Deus declarou

puro!"(At 10,15)

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|(\sus c as primeiras igrejas resgatam a religião da gratuidade. Deus é dom, é graça. Acolhe-nos em sua justiça sem fazer discriminação. Im­porta aderir a seu projeto pela fé e não pela observância rigorosa da lei (Rm 1,16-17).

5. Contra a sacralidade do templo, as igrejas resgatam a comunidade, a vida e os corpos como sagrados (Rm 8,1-13; ICor 3,16; 6,19; 2Cor 6,16). Jesus mesmo é a manifestação de Deus, substituindo o templo de Jerusalém (Jo 2,13-22). Sua cruz-ressurreição de­sautoriza os sacrifícios no altar do santuário (Mc 15,38). Os templos já não têm mais sentido e o

verdadeiro culto passa a ser em espírito e fidelidade (Jo 4,21.23).

6. Contra o sacerdócio como instituição intermediária entre o fiel eI )cus, a comunidade propõe Jesus como único caminho ao Pai (MtI l,27;Jo 14,6). Ele é o Deus conosco (Mt 1,23; Is 7,14). Esse caminho de Jesus passa pela comunidade (Mt 18,20) e pela solidariedade (Mt 25,31-46). Nesse sentido, a comunidade mesma substitui o sacerdócio do templo e passa a ser um reino de sacerdotes (lPd 2,9; Ap 1,6; 5,10).

7. Contra a concepção de um Deus violento e vingativo que exige a morte de pessoas (Dt 20,10-14) e que se vinga dos inimigos de Israel (SI 'i8,7-9; 109,6-15; 137,9), Jesus e seu movimento excluem o rancor (Mt 5,21-26) e a vingança (Mt 5,38-42). Em vez de violência, propõem a oração e o amor pelos inimigos (Mt 5,43-44). Proclamam a não-violên- cia ativa como método para vencer os violentos (Mt 5,39; 26,52).

8. Contra a esperança na vinda de um Messias de descendência davídica, Jesus e as comunidades desautorizam os escribas, pois ele é o Messias servo (Mc 12,35-37; Mt 12,15-21). Foge da multidão, quando esta o quer aclamar rei (Jo 6,15). Além de ser o Messias servo, seu messianis­mo também está na linha de Moisés, o libertador dos hebreus no Egito.

9. Contra o patriarcalismo que marcou a cultura e a religião do judaísmo, Jesus e muitas comunidades viveram novas relações de gêne­ro, No entanto, nas gerações seguintes, essa prática foi abandonada por muitas igrejas.

"Nós é que somos o templo do Deus vivo..."

(2Cor ó, 1 ó)

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O grande valor do Primeiro TestamentoApesar de o Primeiro Testamento conter estes e outros aspectos

já superados, ele tinha para as igrejas primitivas, um grande valor como “instrução para proporcionar perseverança, consolação e esperança” (cf. Rm 15,4). Ou ainda, como instrumento útil “para instruir, refutar, corrigir, educar na

justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e qualificado para toda boa obra” (cf. 2Tm 3,16). Portanto, não podemos deixar de reconhecer o valor das Escrituras de Israel, que relatam sua caminhada histórica ori­entada pela luz da fé em YHWH.

Em sua Primeira Carta aos Coríntios, Paulo lembra que as Escri­turas são úteis porque fazem memória dos erros do passado. Querem mostrar para nós exemplos do passado, a fim de não repeti-los (ICor 10,6-11).

Simplificando, poderíamos dizer, por um lado, que a religião ofi­cial em Israel, não só durante a monarquia mas de modo especial du­rante o 2o templo, desenvolveu uma teologia de acordo com os interes­ses de quem detinha o poder. Primeiro, para legitimar o reinado, sua violência e opressão. Depois, para estabelecer a teocracia no pós-exíüo, desenvolvendo a teologia da pureza étnica, a lei do puro e do impuro, o sistema de santidade do templo, bem como aprofundando a doutrina da retribuição.

Por outro lado, muitas comunidades populares, especialmente as do campo, resistiam bravamente contra o uso da religião de YHWH libertador para justificar a opressão do estado. Fruto dessa resistência éo movimento profético que vem em defesa da vida do povo em nome da religião libertadora da época das tribos, do Êxodo.

A religião popular resiste também à imposição da teologia oficial do 2o templo. Fruto dessa resistência é, por exemplo, a luta dos autores dos livrinhos de Rute, de Jonas, de Jó, de Cantares, de Eclesiastes e dc muitos Salmos.

Jesus de Nazaré retoma e aprofunda a teologia de YHWFI do Êxodo, da profecia e da resistência dos pobres contra o poder sacral do santuário pós-exílico. Organiza um grupo para levar adiante seu proje­to do Reino de Deus, levando os pequeninos a uma nova consciência.

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I '.ss-.i prática contrariou interesses, estremeceu os fundamentos da reli­gião oficial. Incomodou aqueles que detinham o poder, seja ele econô­mico, político ou religioso, manipulando o povo. Por isso, atraiu sobre si o ódio de lideranças políticas e religiosas. E o crucificaram. Seus dis­cípulos e suas discípulas, no entanto, o experimentam vivo, ressuscita- di >, no continuarem, nas comunidades, a prática de partilha e fraternida­de que seu mestre lhes ensinara.

Nesse sentido, até para sermos hoje fiéis a Jesus e às igrejas pri­mitivas, é importante resgatar, no Primeiro Testamento, justamente os valores e aspectos que Jesus valorizou. É a época da formação de Israel rm que viveram de forma tribal de acordo com o projeto de YHWH, oI )eus libertador. É a resistência popular expressa pela profecia durante0 reinado, o exílio e o pós-exílio, além da literatura alternativa à teologia do 2” templo, como Jó, Jonas, Rute e outros. E, de resto, é ler todo o Primeiro Testamento, tendo Jesus e seu projeto de vida como critério dc interpretação para nossa prática de fé.

Ter Jesus como chave das Escrituras é interpretá-las a partir da experiência de Deus como Pai doador de vida que ele nos comunica. E iulcrpretá-las como ele próprio e as comunidades as interpretaram, bus-1 ando nelas luzes e esperança para iluminar a vida, como é o caso junto aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Você já leu a respeito desse texto nas páginas 11 a 16 do primeiro volume desta Introdução. Jesus deixa se mover pelo espírito profético das Escrituras. Veja, por exem­plo, Lc 4,16-19! Como vimos acima, interpretar as Escrituras como Jesus e as primeiras comunidades é, por um lado, denunciar e desmas­carar os aspectos discriminatórios e excludentes que nelas existem. Por outro, é resgatar e aprofundar os valores fundamentais em defesa da vida. E preciso observar que, dentro da própria Bíblia, nós achamos os critérios para interpretar e até criticar e superar esses aspectos discrimi­natórios. Como Lutero nos lembrou, e os Pais da Igreja já o faziam, é o conjunto das Escrituras que nos faz compreender cada passagem parti- vulnr, e tudo tem de ser lido em referência a Cristo e à luz da sua expe­riência, isto é, à luz de seu Espírito (cf. 2Cor 3).

Todo o Segundo Testamento é uma releitura do Primeiro feita a partir da experiência das comunidades primitivas com o Jesus histórico

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e de modo especial com Jesus ressuscitado, como revelação amorosa de Deus. Daí por que também é essencial conhecermos o Primeiro Testa­mento e o jeito como foi relido pelas igrejas nascentes.

Deus precisa que seu filho morra para reconciliar-se com a humanidade?

Mas falta ainda um ponto importante. Os escritos dos primeiros cristãos falam da morte de Jesus como se ela estivesse já prevista pelas Escrituras (ICor 15,3-4) e como se fosse até necessária e uma exigência do Pai (At 4,27-28). Como entender isso?

Teria Deus premeditado a morte de Jesus na cruz? Se um pai não é capaz de sacrificar um filho seu, teria o Deus de amor a capacidade para exigir a exe­cução de seu próprio filho? Teria ele in­vertido a experiência que haviam feito os discípulos de Isaías (Is 49,15)? São per­guntas fortes que muitos de nós levanta­mos. Como entender essa interpretação feita pelas primeiras comunidades (Lc 18,31; 24,25-27.44; At 2,23; 8,30­35; 26,22-23)? E onde encontrar no Primeiro Testamento textos que mostram Deus querendo a morte de seu ungido?

Para início de conversa, mais algumas perguntas. Na mentalidade dos judeus, não era considerado um maldito por Deus quem morresse enforcado numa árvore (Dt 21,22-23)? Não era um escândalo para os judeus alguém morrer numa árvore transformada em cruz? Ou ainda, uma loucura para os gentios (ICor 1,23; At 17,32)? Como anunciar que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, se ele fracassou numa cruz? Como pode ser o salvador de outros se nem foi capaz de salvar-se da própria morte (Mc 15,29-32)?

Para o movimento cristão primitivo, a interpretação da cruz como fazendo parte do plano de Deus foi de fundamental importância para acreditar emjesus ressuscitado. Para compreender a cruz, reieram tex­tos das Escrituras e os aplicaram à vida do nazareno.

"Pode uma mulher esquecer seu bebê,

deixar de querer bem ao filho de suas

entranhas? Mesmo que alguma esquecesse,

eu não te esqueceria!" (Is 49,15)

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Em primeiro lugar, é preciso dizer que, no seu contexto original, os textos relidos pelos primeiros cristãos não se referiam diretamente a Jesus, mas a pessoas e grupos concretos do tempo em que foram pro­duzidos. E, por exemplo, o caso de Is 52,13-53,12 que fala do servo sofredor. Para o movimento de Jesus, este foi o texto principal para entender o mistério de sua morte. No contexto do exílio e em todo o 2o Isaías (Is 40-55), o servo é sempre um grupo de judeus exilados na Babilônia. A esse grupo, o 2o Isaías oferece um projeto de esperança na libertação, no retorno para a Judéia. Isso também é válido para os demais textos reinterpretados a partir do acontecimento de Jesus de Nazaré.

Em segundo lugar, convém não esquecer que todos os evange­lhos testemunham que ele foi eliminado por causa dos interesses de ,quem controlava o poder e c o n ô m ic o e religioso judaico, bem c o m o o poder político da Galiléia, isto é, a corte de Herodes, e o poder político do Império Romano. Mas não só os evangelhos afirmam que Jesus foi executado a mando de quem detinha o poder. Também Paulo reconhe­ce que a responsabilidade pela morte de Jesus não foi de Deus, mas dos poderosos, os príncipes deste mundo (ICor 2,8). A cruz foi uma impo­sição dos poderosos e não de Deus.

Em terceiro lugar, devemos reconhecer que é importante a inter­pretação cristológica das Escrituras, isto é, sua leitura em função de |csus Cristo. E importante porque permitiu a seus seguidores compre­ender o acontecimento do Calvário, superando, aos poucos, o senti­mento de fracasso. Foram percebendo que é justamente na fraqueza que se manifesta a força de Deus (cf. 2Cor 12,9). Interpretaram a cruz como gesto extremo do amor de Deus pela humanidade e de fidelidade radical de Jesus à sua opção de vida e de luta. E isso não é fracasso. Isso revela a grandeza de Jesus. Por isso, foi vitorioso seu gesto livre de fidelidade aos pobres de Deus. A cruz, na verdade, é a vitória sobre a morte e sobre aqueles que o crucificaram. Jesus continua vivo no Espí- rilo da verdade (Jo 15,26). Seu projeto continua naqueles que ainda hoje levam adiante a sua missão de denunciar toda e qualquer estrutura de morte, anunciando e vivenciando um novo jeito de conviver.

Em quarto lugar, precisamos dizer que, desde cedo, as comuni- dailes entenderam a morte de Jesus na cruz como mediação para re­

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conciliar a humanidade com Deus (Rm 5,6.10; 14,15; ICor 8,11; 2Cnr5,18-19), libertando-nos da lei (G1 3,13). A fórmula pronunciada sobreo vinho, durante as celebrações da ceia, também vai na mesma linha (ICor 11,25; Mc 14,24). Como já vimos acima, “dando sua vida por seus amigos” (cf. Jo 15,13), ele sela com sangue a derradeira aliança, da mes ma forma como Moisés selara a aliança entre Deus e os hebreus a cami nho da vida livre nas origens do Israel tribal (Ex 24,5-8).

Aparentemente, essa leitura parece confirmar a teologia da retri­buição. Segundo essa doutrina, quando pecamos rompemos com Deus. A forma de nos reconciliar com ele é oferecer sacrifícios de reparação pelo nosso pecado através da mediação do sacerdote. Conforme as pri­meiras comunidades, a morte de Jesus na cruz substitui todos os sacri­fícios.

Porém, diferentemente dos sacrifícios do templo, as primeiras comunidades interpretaram a cruz-ressurreição de Jesus como reconci­liação definitiva e gratuita com Deus (Ef 5,2; Hb 9,26; 10,11-12). Isto é, não é o “sangue do sacrifício” de Jesus que “satisfaz” a “ira” de Deus e por isso nos reconcilia. O que salva é que Jesus, por sua entrega total ao propósito de amor de Deus, por sua dedicação à obra restauradora de Deus em favor das pessoas necessitadas, por essa obediência total e radicalmente amorosa, nos ensinou e nos abriu um novo caminho, ca­paz de criar felicidade na vida humana. A vida de Jesus (sua morte é o extremo gesto de vida!) nos revela que a felicidade humana (uma nova vida), o xalôm de Deus, é possível, se construirmos sobre o fundamento do amor. Portanto, a doutrina da retribuição está definitivamente supe­rada. O movimento cristão propõe, como Jó, uma nova imagem de Deus, uma nova experiência com o sagrado. Não mais na base da retri­buição, mas da graça. Não mais da troca, mas do dom de amor.

Não é demais lembrar que a prática de Jesus de Nazaré desauto­rizou totalmente os sacrifícios de reparação. Ele perdoava longe do tem ­plo e sem exigir a oferta de sacrifícios. E mais. Perdoava gratuitamente. A maioria da população não tinha recursos para ir ao templo e olerecer sacrifícios sobre o altar. Além de oferecer o perdão dc Deus numa rela­ção direta com as pessoas, Jesus foi crítico aos sacrifícios. Para ele, são mais importantes a misericórdia e o amor (Mt 9,13; Os 6,6; Mc 12,33).

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)esus mesmo não concordou com quem interpretava a cegueira desde o nascimento como fruto do castigo de Deus por algum pecado (Jo 9,1-3). Pava ele, o sofrimento de alguém é ocasião para agir com amor.

A seguir, relacionamos os principais textos das Escrituras que lonim relidos pelas igrejas primitivas a partir do que acontecera com Jesus em Jerusalém. Confira em sua Bíblia, como elas deram um outro sentido a antigos textos!

Dt 21,22-23//G1 3,13 SI 16,8-11//At 2,25-28 SI 22,2//Mt 27,46 SI 22,9//Mt 27,43 SI 22,19//Mt 27,35 SI 31,6//Lc 23,46 SI 34,21 //Jo 19,36 SI 69,22//Mt 27,34.48 SI 110,l//Mt 22,44 Is 52,15//Rm 15,21 Is 53,4//Mt 8,17 Is 53,7-8//At 8,32-33 Is 53,9//lPd 2,22 Is 53,12//Lc 22,37 Zc ll,12-13//Mt 27,9-10 Zc 12,10//Jo 19,37 Zc 13,7//Mt 26,31.

A “leitura cristológica” se baseia no sentido de história que tem o povo bíblico, isto é, na idéia de “promessa”, na compreensão escatoló- gicíi da história. Emjesus, as comunidades reconheceram o “princípio” da realização desse horizonte. Por isso, tudo o que se referia a isso, em última análise, diz respeito a Jesus: o rei, o ungido^ o libertador, o profe­ta, o justo, o sacerdote, o templo... a própria humanidade, a própria criação.

Até este ponto, vimos alguns temas centrais para a fé das jovens igrejas. A partir de agora, passaremos a analisar mais de perto as princi-

„pRÍs experiências das comunidades nas origens cristãs.

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Comunidades do Discípulo Amado

“Aquele discípulo que Jesus amava disse então a Pedro: ‘E o Senhor!’ ” (Jo 21,7)

Como vimos acima, depois de um período de crise por causa da morte de Jesus, seus seguidores e seguidoras voltaram a se organizar a partir da Galiléia. Essa era a terra de origem deles e de seu mestre. Era0 local onde haviam acompanhado o movimento do nazareno. Por isso, laz sentido que primeiro nos ocupemos com as igrejas nascentes da ( Saliléia, algum tempo depois da morte de seu líder.

Comecemos com a tentativa de aproximação das comunidades que estão na origem do Evangelho de João para, no próximo capítulo, nos deter nas igrejas que nos legaram o Evangelho de Marcos.

As comunidades do Discípulo Amado estão por trás da literatura do Segundo Testamento que é atribuída ao apóstolo João, irmão de Tiago: o evangelho e as três cartas. E verdade que esses livros ficaram prontos em torno do ano 100, isto é, já na terceira geração cristã. No entanto, por trás deles há uma longa história. E não somente a história de Jesus. Neste evangelho, e também nos demais, a trajetória de Jesus vem misturada com a história das igrejas que está muito presente no lexto. E parte dessa história das comunidades joaninas que pretende­mos resgatar neste capítulo.

Chamamos essas igrejas primitivas de “comunidades do Discípulo -■\mado”, porque há no evangelho um discípulo, representando todas essas comunidades, que é chamado várias vezes como “o discípulo que Jesus amava”. Veja as seguintes citações: Jo 13,23; 19,26; 20,2; 21,7.20! Km Jo 11,5.36, ainda afirma que Jesus amava Marta, Maria e Lázaro.

Desse grupo de igrejas, o Livro de Atos não fala. São as comuni­dades que se organizam de forma igualitária, em grande parte em torno das discípulas de Jesus. Os autores de Atos tinham fortes razões para "esquecer” as comunidades joaninas. Como veremos adiante, a obra de1 aicas já é um espelho do processo de patriarcalização e hierarquização tias comunidades na época da segunda geração cristã nos anos 80. Por

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isso, não lhes interessa fazer referência a igrejas com forte liderança feminina.

No entanto, para nós é importante resgatar essa experiência, da qual temos como belíssima herança os escritos atribuídos ao apóstolo João.

Uma das mulheres, que estão na origem dessas comunidades, é Maria Madalena. Antes de mais nada, gostaríamos de lhe dizer que, no decorrer da história da igreja ocidental, Madalena sofreu intencional­mente um processo de marginalização. Mas antes disso, já a obra de Lucas a considera possuída por sete demônios (Lc 8,2). Possivelmente, para diminuir sua forte presença nesse grupo de comunidades. E a tra­dição se encarregou de identificá-la com a mulher pecadora de Lc 7,36­50. No entanto, nas igrejas orientais, ela é venerada como apóstola dos apóstolos.

Outra mulher que sc destaca é Marta. Diferentemente do que nos demais evangelhos, está na sua boca a profissão de fé no messianis­mo de Jesus (Jo 11; cf. v. 27). Se em Lucas ela é criticada (Lc 10,38-42), também não será para diminuir sua liderança nesse grupo de comuni­dades?

Já vimos acima como Madalena era discípula fiel a Jesus, desde a Galiléia até a cruz e a sepultura. Ela estava entre aquelas que encontra­ram o túmulo vazio e que primeiro fizeram a experiência com Jesus ressuscitado. No Evangelho de João, ela está sozinha nessa experiência que deu origem ao Cristianismo. Por isso, não é exagero concluir que são elas e, de modo especial Maria Madalena, que organizaram as mais antigas comunidades de discípulas e discípulos de Jesus, seja na Gali­léia, na Samaria e no Sul da Síria.

Há uma outra razão para entender as origens dessas igrejas a partir daquelas que fizeram a primeira experiência com o ressuscitado. É porque isso nos ajuda a retomar um modelo de comunidade mais democrática no exercício do poder, bem como mais igualitária na ques­tão de gênero.

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O protagonismo das mulheresCai na vista o protagonismo das mulheres nos escritos joaninos.

Isso confirma sua forte liderança naquelas jovens igrejas. Elas estão pre­sentes em momentos-chave da estrutura do 4o Evangelho. Veja a seguir!

• E uma mulher quem introduz Jesus de Nazaré na vida pública, levando-o a realizar seu primeiro sinal (Jo 2,1-12; cf. v. 4). Também é uma mulher que fecha a sua missão junto à cruz (Jo 19,25-27; cf. v. 26).

• Para as comunidades joaninas, quem leva a Boa-Nova de Jesus às aldeias da Samaria é uma mulher samaritana (Jo 4,1-42). No Evange­lho de João, é ela a primeira pessoa que reconhece emjesus o Messias esperado (w. 25-30).

• Jo 8,1-11, embora seja provavelmente um acréscimo, nos mos­tra que Jesus desmascara a hipocrisia legalista de fariseus e escribas, justamente em relação a uma mulher adúltera.

• A profissão de fé no messianismo de Jesus sai da boca de Mar­ta, diferentemente dos demais evangelhos, onde está na boca de Pedro, representante dos apóstolos (Jo 11; cf. v. 27).

• Logo no capítulo seguinte, temos Maria, irmã de Marta e Lázaro, ungindo os pés de Jesus. Dessa forma, representando a comunidade, ela é a verdadeira discípula, profetisa e serva do Senhor. E a serva que ante­cipa o lava-pés de Jesus, modelo do poder-serviço (Jo 13,1-17). E esposa do Cordeiro da aliança que Deus renova com a humanidade. Antecipa lambém a unção de Jesus para sua morte e para sua vida que permanece.

• Por fim, temos a aparição do ressuscitado a Maria Madalena no jardim onde renasce a nova vida (Jo 20,11-18). Ela é enviada, isto é, ela é a apóstola que anuncia a novidade da ressurreição aos seus irmãos (vv. 17-18).

Além das mulheres, três outros discípulos devem ter aderido a esse modelo de comunidades. Filipe e André marcam forte presença nessas igrejas. No evangelho, podemos encontrá-los em momentos im­portantes:

• Estão entre os primeiros discípulos que foram chamados (Jo 1,35-48);

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•Jesus pede a sua colaboração por ocasião da partilha dos pães (Jo 6,1-15; cf. w . 5-9);

• Integram na comunidade um grupo de gregos tementes a Deus (Jo 12,21-22);

• Um questionamento de Filipe leva Jesus a revelar que ele é n “cara do Pai”: ‘‘Quem me viu, viu o Pai. ” (Jo 14,8-10).

Quanto a Tomé, você pode encontrá-lo nas seguintes situações:• Ao contrário de Pedro nos demais evangelhos (cf. Mc 8,31-33),

Tomé está disposto a morrer com Jesus (Jo 11,15-16);• Uma pergunta de Tomé leva Jesus a dizer: “Eu sou o caminho, a

verdade e a vida... ” (Jo 14,5-6);• Em jo 20,24-29, Tomé reconhece, em meio à comunidade (na

“casa” — v. 26), que Jesus é “Senhor e Deus” (cf. v. 28), levando-o a afir­mar: “Felizes os que não viram e creram!”. Essa bem-aventurança revela que a maioria dos membros dessas igrejas não haviam conhecido Jesus de Nazaré em sua vida pública.

Quem está na origem dessas comunidades?Ao olharmos atentamente o Evangelho do Discípulo Amado,

podemos nele encontrar informações sobre as origens das comunida­des que, mais tarde, nos transmitiram esse precioso documento.

São pelo menos quatro grupos que participaram na formação das igrejas joaninas.

1. Galileus. Jesus era galileu e todos os discípulos eram galileus! A base da comunidade era de galileus que aceitaram outros grupos (Jo 1,43-45). As pessoas da Galiléia eram marginalizadas por aqueles ju­deus da capital que se consideravam os “puros” (Jo 1,46; 7,41.49.52). A partir da experiência da ressurreição, viram suas expectativas messiâni­cas realizadas emjesus como o mestre, o Messias, o Filho de Deus e o rei de Israel (Jo 1,45.49). Por isso, muitos galileus terão aderido às co­munidades lideradas por Marta e Maria Madalena.

2. Batistas. As evidências do evangelho indicam que essas comu­nidades tiveram muitos adeptos dentre os discípulos de João Batista (Jo

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1,19). No volume anterior, vimos que, num primeiro momento, Jesus loi seu discípulo, deixando-se batizar por ele. Depois da execução de Jnào por Herodes Antipas, Jesus seguiu um caminho próprio. E muitos ilos seus companheiros no seguimento ao Batista passaram, a partir de então, a aderir a Jesus, formando um novo movimento. Nesse momen-lo, a comunidade joanina começa a ser gestada. É o que você pode ler cm jo 1,35-39.

Tanto os galileus como os batistas não tinham condições de ob­servar regularmente os atos de culto e de purificação exigidos pelo Tem­plo de Jerusalém. De um lado, porque não tinham condições econômi­cas. De outro, porque moravam geograficamente mais longe, separa­dos pela Samaria. Era do templo que partia a doutrina que legitimava sua discriminação. Era lá que se comercializava a misericórdia de Deus. O grupo que mandava no templo, os saduceus, eram os que se aliaram à dominação romana. Por tudo isso, batistas e galileus tinham uma pos­tura muito crítica em relação ao santuário e tudo o que ele representava (Jo 2,13-22).

3. Samaritanos. Segundo o Livro de Atos, a evangelização das al­deias da Samaria é feita por Filipe, um dos Sete (At 6,5; 8,4-25). Ele contou, nesse trabalho, com a colaboração de suas filhas, que eram profetisas. Outra informação de Atos o situa em Cesaréia Marítima, que ficava justamente na região da Samaria (At 21,8-9).

No entanto, cm João, são as próprias mulheres samaritanas que organizam comunidades. A entrada de aldeias samaritanas nas igrejas joaninas é, na verdade, o nascimento das comuni­dades do Discípulo Amado (Jo 4,1-42). Os samaritanos são fortemente excluídos pelo Judaísmo oficial do templo (cf. Eclo 50,25-26; Lc 10,29-37). Mas as igrejas jo­

aninas os acolhem. E eles acolhem Jesus como o Cristo e Salvador do mundo (Jo 4,29.42). De modo especial, são as mulheres da Samaria queo acolhem. São elas as evangelizadoras. E por causa delas que acredita­ram nele (Jo 4,39).

"Muitos samaritanos daquela cidade creram

nele por causa das palavras da mulher."

(Jo 4,39)

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E não acreditaram no Messias como descendente de Davi. Este é citado apenas uma vez em todo o evangelho e ainda na boca dos judeus que esperavam um Messias davídico (Jo 7,42). Os samaritanos o reco­nhecem como o Messias libertador tal como o profeta que Moisés anun­ciara (Jo 6,14; Dt 18,15.18). Emjo 12,13, quando os redatores finais adap­tam Mc 11,9-10, omitem intencionalmente o nome de Davi. É que sua dinastia, além de explorar as antigas tribos do norte localizadas na região da Samaria, as rotulou como idólatras, como impuras (2Rs 17,24-41).

A adesão de samaritanos ao evangelho, com sua esperança mes­siânica própria, e de modo especial a liderança das mulheres foram res­ponsáveis pela compreensão de Jesus tão diferente das demais igrejas primitivas. Foram eles que deram um colorido tão original ao 4o Evan­gelho.

4. Gregos. Além de batistas, galileus e samaritanos, ainda temos outro grupo que aderiu às jovens igrejas do Discípulo Amado e que também era rejeitado pelo Judaísmo oficial. Eram os gregos, isto é, pessoas não judias que provavelmente já simpatizavam com o monote- ísmo judaico, mas que não aderiram a ele através do cumprimento da lei. Nas comunidades joaninas, eram bem acolhidos. Ali, podiam aderir a uma fé monoteísta, cujos valores centrais são a promoção da vida e da liberdade, do amor e da justiça, sem passar pela circuncisão e pelas prescrições culturais sobre alimentos e outras coisas (Jo 7,35; 12,20-32).

Projeto das comunidades joaninasReunidos nas comunidades joaninas, esses grupos mais margina­

lizados pelas instituições judaicas experimentaram o amor de Deus que se revelou emjesus de Nazaré. Ele veio realizar a definitiva aliança (Jo2,1-12). Sentiam sua presença viva no Espírito enviado pelo Pai. Era ele a autoridade nas igrejas. Por isso, não permitiram que suas comunida­des se hierarquizassem. O poder-serviço era a forma de exercer a auto­ridade 0o 13,1-17). O amor era a única lei. Era o critério que orientava as novas relações nessas comunidades de iguais (Jo 13,34-35). Anunci­aram Jesus como a encarnação do Deus criador da vida (Jo 1,1-4.14), o Deus do Êxodo que veio novamente trazer vida abundante e livre para

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kcu povo (Jo 10,10; 8,24.28.32). Esse Jesus é o Cristo, o Filho de Deus que gera vida em quem nele acredita, aderindo ao seu programa (cf. Jo

( '.onflitos dentro das comunidadesMas nem tudo ia às mil maravilhas. O evangelho também critica

pessoas das próprias comunidades que não assumiam publicamente sua f é cm Cristo, talvez por causa da perseguição das autoridades. Embora (> evangelho queira se referir a problemas posteriores à época que aqui estamos estudando, mesmo assim lembremos que as igrejas joaninas consideraram essa fé ainda insuficiente. Veja algumas dessas citações: jo 2,23-25; 6,60-66; 7,5.13; 12,42-43! É também o caso de Nicodemos (Jo 3,1-21; 19,39) e de José de Arimatéia (Jo 19,38-42).

A insistência de Jesus na unidade é sinal de que havia divisões na comunidade (Jo 17,11.20-23).

Conflitos com outras comunidadesJá vimos que o movimento batista continuou depois da morte de

seu fundador (At 18,25; 19,1-7). O Evangelho dejoão insiste junto aos discípulos dejoão Batista para que se integrem nas suas comunidades. () Discípulo Amado também era um deles. Daqueles dois citados em |o 1,35, deve ser aquele que não recebe nome (Jo 1,36-40). Por um lado, este evangelho desqualifica João Batista. Ele não é a luz, mas somente dá testemunho da luz (Jo 1,7-8). Jesus já existia antes dele (Jo 1,15.30). Ele não é Elias, nem o profeta e Messias esperado (Jo 1,19-23). Não sendo o noivo 0o 3,29), ele deve diminuir 0o 3,30). Nunca fez milagres (jo 10,41-42). Por outro lado, apresenta os discípulos de Batista se quei­xando que muitos de seus companheiros debandaram para as comuni­dades cristãs (3,22-26).

Um segundo conflito com outras comunidades é em relação às igrejas de Jerusalém. Como veremos adiante, as comunidades da capital foram fundadas por apóstolos e familiares de Jesus. Pedro é o represen­tante dos apóstolos fundadores daquelas igrejas. As igrejas do Discípu­lo Amado avaliam que nas lideranças de Jerusalém há muito amor ao

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poder e uma fé insuficiente. E a forma de questioná-las é narrar a dis­puta de Pedro com o Discípulo Amado.

Mas antes de passarmos a esses textos, lembramos ainda que, neste evangelho, somente uma vez é citada a palavra apóstolo (Jo 13,16). E ainda com o sentido de “enviado”, “mensageiro”, sem nenhuma co­notação de título de autoridade. Será por acaso? Ou será por que as igrejas joaninas têm outra experiência no exercício da autoridade e na compreensão da presença dc Jesus ressuscitado?

Vamos então aos textos. Pegue sua Bíblia e perceba como as co­munidades do discípulo que )csus amava são críticas às autoridades apos­tólicas de Jerusalém representadas por Pedro.

• 1,35-42: O discípulo que não tem nome e segue Jesus é uma provável referência àquele que ele amava (cf. w . 37.40). Em 1,42, o naza­reno não convida Pedro a segui-lo. Somente no acréscimo ao evangelho (Jo 21,19), depois de Pedro jurar que o ama, ele o convida (21,15-17).

• 13,1-17: Pedro não aceita que aquele que tem autoridade (cf. v. 13) a exerça como poder-serviço. Quando parece aceitá-lo, quer privilé­gios em relação aos demais a quem Jesus lavara somente os pés.

• 13,23-26: Pedro está distante de Jesus e somente tem acesso a ele através do Discípulo Amado.

• 18,10-11: Como em Mc 8,32, Pedro não aceita o Messias da cruz, querendo impedir a prisão de Jesus.

• 18,15-16: Pedro consegue presenciar o julgamento de Jesus so­mente com a ajuda do Discípulo Amado.

• 18,17-27: Pedro nega Jesus.• 19,25-27: Na cruz, o Discípulo Amado estava lá. Onde estava

Pedro?• 19,35; 21,24: O testemunho do Discípulo Amado é verdadeiro.• 20,1-10: O Discípulo Amado chega primeiro ao túmulo vazio.

Pedro entra e somente vê. O discípulo que Jesus amava entra, vê e acredita.

•21,1-7: Como em 13,23-26 e 18,15-16, mais uma vez, Pedro somente chega a Jesus com a ajuda do Discípulo Amado.

• 21,15-19: A comunidade joanina parece colocar em dúvida o amor de Pedro pelo mestre. Antes, ele dissera que daria sua vida por

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(esus. Mas não cumpriu a palavra (13,36-38). E somente depois de ter a certeza de que é amado por ele, Jesus lhe confere o pastoreio de seu rebanho (v. 17) e o vocaciona ao seguimento (v. 19).

• 21,20-23: Pedro quer pastorear sozinho. Daí o seu ciúme doI )iscípulo Amado. E Jesus o repreende.

Essa crítica às autoridades de Jerusalém também era feita pelas comunidades que mais tarde produziram o Evangelho de Marcos, como veremos logo adiante.

O exemplo dessas comunidades nos ajuda hoje também a supe­rar o apego ao poder, seja ele econômico, político ou religioso. Ajuda- nos a lutar contra nossos preconceitos, deixando-nos guiar pelo Espíri­to de Jesus. Essas comunidades continuam sendo um modelo muito mais vivo para as nossas comunidades eclesiais de hoje.

Conflitos com o Judaísmo e com o impérioAs igrejas joaninas sofreram forte perseguição por parte das au­

toridades judaicas das sinagogas. E verdade que esse conflito descrito no evangelho reflete a perseguição dos anos 80, quando os cristãos loram expulsos das sinagogas. Mas é certo também que ela já deve ter começado naqueles anos e se agravado décadas mais tarde.

Em torno de 70 vezes, o evangelho se refere aos judeus, para falar do conflito especialmente com os fariseus. Confira algumas dessas cita­ções: Jo 1,19; 2,18; 5,10.15-18; 8,48; 10,31!

Mais de 70 vezes, o evangelho usa a palavra mundo. Ela tem diver­sos sentidos. Pode ser uma referência ao mundo físico (Jo 17,5.24), a (oda a humanidade (Jo 3,16-17; 8,12) ou a um grupo humano numero­so (Jo 12,19).

Mas aqui queremos destacar que, ao se referir ao mundo, a co­munidade do Discípulo Amado também está fazendo uma crítica às autoridades judaicas e romanas. Mas não só. Esse conflito é travado com toda a estrutura social e religiosa excludente do Judaísmo e dos romanos. Leia algumas das citações que seguem: Jo 8,23; 11,48; 14,27;IS,18-16,4a; 17,6.14.16; 18,36!

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Comunidades de Marcos

“Mas ide di^er aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galiléia.

Im o vereis como vos tinha dito. ” (Mc 16,7)

Além das comunidades do Discípulo Amado, podemos perceber também outras igrejas que se organizam na mesma região. São os gru­pos que nos brindarão com o Evangelho de Marcos pelo ano 70.

Os autores de Marcos estão interessados em animar as comuni­dades galiléias a se manterem vigilantes e firmes na fé, apesar das perse­guições durante a guerra judaico-romana (Mc 13). Querem também esti­mulá-las a perseverarem firmes na mesma prática de Jesus (Mc 6,7-13).

Por trás desse evangelho, podemos perceber vários elementos da experiência que deu origem às comunidades que, anos mais tarde, re­solveram colocar por escrito seu testemunho.

Inicialmente, lembramos que as comunidades marcanas também organizaram sua missão nos mesmos moldes do movimento de Jesus. Em equipes missionárias, saíam pelas aldeias curando doentes e expul­sando demônios, isto é, procurando libertar de todas as forças que eram contra o Reino de Deus (Mc 6,7.13). Anunciavam a todos que se con­vertessem e cressem no evangelho (Mc 6,12). Como Jesus, eram missio­nárias itinerantes que viviam com simplicidade e desapego (Mc 6,8-9).

Mais do que um movimento urbano, continuava sendo uma ex­periência majoritariamente rural.

Tentemos compreender melhor como terão sido esses missioná­rios itinerantes e essas comunidades nas casas das aldeias.

Jesus, um Messias terapeuta que passa pela cruzPor um lado, as comunidades marcanas reconhecem o poder dc

Jesus que, junto com a fé e confiança das pessoas, promovia a recupera ção da saúde de muita gente doente. Na página 182 do volume anterior, você pode conferir a lista das curas que promoveu.

Por outro lado, Marcos insiste na necessidade dc não alardear

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uns quatro ventos esse seu poder terapêutico. Confira algumas dessasi ilações: Mc 1,34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,26!

Ao exigir segredo, Marcos tem como intenção não mostrar um |csus triunfalista e todo-poderoso. Quer, sim, apresentar o Messias que passa pela cruz (Mc 9,9-10; 15,39). Nesse sentido, a teologia da cruz em Marcos tem o mesmo peso como nas comunidades helenistas, que ain­da veremos adiante, onde Paulo exercerá um papel central.

Ao mesmo tempo que promove a fidelidade das suas igrejas à fé no Cristo da cruz-ressurteição, Marcos também está criticando outras experiências de comunidades que supervalorizavam Jesus como um tau- maturgo quase mágico. Ainda hoje, muitas pessoas esperam uma ação mágica de Jesus. A teologia das igrejas marcanas certamente tem muito a nos ajudar na superação dessa compreensão cristológica. Deus certa­mente age em nossas vidas. Mas é preciso que também demos a nossa parte, pois o agir divino se encarna na ação humana.

Com essa crítica, é provável que essas comunidades estejam que­rendo chamar a atenção de outros grupos que não davam o devido valor à cruz.

Jesus é mais do que um Messias sábio e mestreNa pesquisa bíblica, existe uma hipótese de que houve na Gali­

léia uma corrente cristã que apresentava Jesus como um Messias sábio e mestre. Essa tendência valorizava seus ditos, suas palavras e seu ensi­no. Não davam tanto valor à sua paixão, morte e ressurreição. Seria um movimento ligado a círculos sapienciais que, apesar de seu radicalismo nn seguimento itinerante ao mestre, apresentam um Jesus que não in- c< >moda as instituições opressivas da época.

Segundo a hipótese, e há evidências literárias para isso, essa cor­rente cristã teria produzido o documento “Q”. E assim chamado, por­que esta é a primeira letra da palavra alemàQuelle (fonte). Até hoje, pelo menos, nada a respeito foi encontrado. Se existiu, está perdido. Essa fonte seria o segundo documento usado por Mateus e Lucas ao escre­verem seus evangelhos nos anos 80. O primeiro foi o Evangelho de

• Marcos cujo material já era conhecido há uns 15 anos. O conteúdo da fonte “Q” seriam os textos comuns a Mateus e Lucas, porém ausentes

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em Marcos. Voltaremos a nos referir a essa questão, quando tratarmos dos evangelhos de Lucas e Mateus no próximo volume.

Pelo que podemos concluir do uso que Mateus e Lucas fizeram de “Q”, esta coleção não apresentou os enfrentamentos de Jesus com as autoridades judaicas que controlavam a tradição legalista do templo (saduceus, isto é, sumos sacerdotes, anciãos e sacerdotes) e das sinago­gas (fariseus e escribas). Também não faria referência ao enfrentamen- to com o poder romano, deixando de falar da cruz-ressurreição, tão central no ksrygma das igrejas primitivas. Nesse sentido, se esse docu­mento existiu, ele viria na mesma linha do Evangelho apócrifo de Tomé, que também não relata a paixão morte e ressurreição de Jesus. A ênfase dele está nas parábolas e nos pequenos ditos de Jesus.

Diante da insistência em apresentar Jesus como Messias mestre e sábio, podemos nos questionar. Por que evitar a centralidade da cruz- ressurreição no anúncio de sua Boa-Nova? Por que colocar em segun­do plano o seu enfrentamento com os poderes econômico, político e religioso? A quem interessaria, naquele tempo e ainda hoje, apresentar um Jesus não tão crítico a todos os sistemas de opressão?

Se existiu essa tendência no Cristianismo primitivo, podemos ver nas comunidades de Marcos uma forte crítica a essa compreensão limi­tada a respeito de Jesus de Nazaré. Não será por isso que a desconhe­ceu totalmente?

Para Marcos, quem não compreende o Messias da cruz, também não compreende sua missão. E cego. Não é por acaso que insiste tanto na cegueira de seus familiares (Mc 3,20-21; 6,4-6), das autoridades (Mc2,1-3,6) e dos discípulos (Mc 6,49-52; 7,17-18; 8,14-21; 8,22-10,52).

Para as igrejas de Marcos, o conflito entre o projeto do nazareno e os poderes a serviço da opressão é inevitável. O enfrentamento entre as forças do Reino e as forças do demônio são como um eixo que perpassa todo o evangelho. Jesus combate o poder do mal com o poder de Deus. Veja a seguir, não esquecendo de conferir em sua Bíblia!

• 1,12-13: em sua primeira ação no evangelho, Jesus enfrenta e vence Satanás;

• 1, 21-28: a primeira cura que realiza é expulsar espíritos impu­ros, revelando uma autoridade diferente da dos escribas;

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• 1,33.34.39; 3,11-12: expulsar demônios faz parte essencial da sua prática;

• 3,15; 6,7.13; 16,17: combater as forças de opressão, expulsando demônios, é central também na missão dos apóstolos;

• 3,22-30: a missão de Jesus consiste em “amarrar o fo r t e” (v. 27), representado pelo sistema de Jerusalém que envia os escribas para acu­sar Jesus (v. 22);

• 5,1-20: a possessão romana sobre o povo e suas terras tira a consciência das pessoas (5,15);

• 7,24-30: a lei de pureza étnica possui, ocupa a mentalidade ju­daica, levando à discriminação de outros povos;

• 8,33: Pedro, representando os apóstolos, se opõe ao messianis­mo que passa pela cruz;

( • 9,14-29: o sistema legal (escribas; cf. v. 14) impede que se diga a própria palavra e se escute com seus próprios ouvidos (w. 17.25);

• 9,38: combater as forças do mal não é monopólio exclusivo dos apóstolos;

• 11,15-19: as forças do mal se materializam na opressão econô­mica e religiosa do templo.

Divergências com as comunidades de Jerusalém...Nesse item, precisamos analisar dois aspectos que chamam a aten­

ção nas comunidades de Marcos. Um é sua forte crítica às instituições da religião judaica. E o outro é a forma negativa como apresentam as autoridades das igrejas de Jerusalém.

... através da crítica às instituições judaicas...O primeiro ponto é a crítica às instituições da religião judaica.

Como ainda veremos adiante, as primeiras comunidades que foram or­ganizadas em Jerusalém e seus arredores eram igrejas ainda muito liga­das às sinagogas e ao templo. Eram mais uma tendência dentro do Judaísmo, cuja característica fundamental era a fé em Jesus como o Messias que Israel esperava. Nesse sentido, é certo perceber que, ao fazer duras críticas às principais instituições do Judaísmo oficial, as co­

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munidades marcanas querem também questionar a fidelidade das igre­jas da capital à prática tradicional judaica. Veja, em algumas dessas cita­ções, a postura de Jesus e das comunidades de Marcos cm relação às instituições religiosas do Judaísmo!

• o templo: 11,15-19; 12,33; 13,1-2; 15,38;-sumos sacerdotes: 8,31; 10,33; 11,18.27; 14,1.43.53; 15,1.3.10 I I;— saduceus: 12,18;— anciãos: 8,31; 11,27; 14,43.53; 15,1;

• a tradição e os fariseus: 2,16.18.24; 3,6; 7,1.3.5; 8,11.15; 10,2;12,13;

• a lei e os escribas: 1,22; 2,6; 3,22; 9,11.14; 12,28.32.34.38-40;— com fariseus: 7,1.5; 2,16; 9,11;— com sumos sacerdotes e anciãos: 8,31; 10,33; 11,18.27;

14,1.43.53; 15,1.31.

... e através da apresentação negativa dos apóstolos e familiares de Jesus

O segundo aspecto é a forma negativa como as comunidades marcanas apresentam as autoridades das igrejas de Jerusalém que, se gundo a linguagem de Paulo, são consideradas as “colunas” daquelas comunidades (G1 1,18-19; 2, 6-9.11-12). Nesse ponto, precisamos dis­tinguir a crítica a dois grupos. Um é o dos apóstolos, representados por Pedro e João. E o outro é formado pelos familiares de Jesus, represen­tados por Tiago, o irmão do Senhor (G11,19).

Já vimos que a comunidade do Discípulo Amado se refere a eles citando somente Pedro, o representante dos apóstolos. Também Lucas destaca a importância dos três. Pedro e João aparecem juntos na pri­meira reunião da igreja de Jerusalém mencionada em Atos (At 1,13), na cura do aleijado na entrada do templo (At 3,1-10), no primeiro discurso que Pedro dirige aos judeus no pórtico do templo (At 3,1 lss), como prisioneiros diante do sinédrio (At 4,1-22; cf. w . 13.19) e na confirma­ção dos samaritanos (At 8,4-24; cf. v. 14).

Tiago, o irmão do Senhor, é citado por Lucas três vezes. Uma é quando Pedro manda dizer a Tiago que vai embora de Jerusalém, dc-

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pois de ter conseguido fugir da prisão (At 12,17). A outra é no concilio de 49, quando ele impõe restrições aos gregos convertidos ao evange­lho (At 15,13-21). Por último, é em sua casa que Paulo participa de uma reunião com as lideranças das igrejas de Jerusalém (At 21,18).

Portanto, as autoridades dessas comunidades são apóstolos e fa­miliares de Jesus. Por isso mesmo, não podemos deixar de ver uma crítica a essas autoridades na forma negativa como, mais tarde, as igre­jas marcanas trataram os apóstolos e, dentre eles, de modo especial a Pedro e João. Suas críticas vão na mesma linha das que as comunidades do Discípulo Amado também faziam. Veja a seguir!

• Não compreendem o Projeto de Jesus, são cegos (Mc 6,49-52; 7,17-18; 8,14-21; 9,32);

• Por resistir ao seguimento que passa pela cruz, Pedro é acusado por Jesus de estar possesso do demônio (8,32-33);

• Lutam por poder (9,33-34);•João quer manter o controle sobre outras comunidades, talvez

as de Marcos e do Discípulo Amado (9,38-40);• Querem impedir que Jesus brinque com as crianças (10,13-14);• foão e seu irmão lutam para conseguir os primeiros cargos no

poder (10,35-37);• Estão fascinados com a beleza do templo que freqüentam re­

gularmente (13,1; At 2,46);• Pedro, Tiago e João dormem, enquanto Jesus sofre no Getsê-

mani (14,33-40);• Na hora da prisão, todos o abandonam, fogem (14,50);• No julgamento, Pedro o trai, o nega três vezes (14,66-72);• Na morte, nem olhando de longe estão, como o faziam as mu­

lheres (15,40-41).

Da mesma forma, não podemos deixar de ver uma crítica às au­toridades das igrejas de Jerusalém na forma negativa como as comuni­dades de Marcos tratam os familiares de Jesus, representados por Tiago na direção daquelas igrejas. Veja a seguir!

• Acusam Jesus de louco (3,21);• As comunidades que não estão sob o controle dos familiares de

Jesus se consideram, na verdade, a sua verdadeira família (3,31-35);

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• Têm pouca fé emjesus (6,1-6);

A casa como lugar do nascimento das comunidadesJá vimos no volume anterior que Jesus não deu ao templo a im

portância que o Judaísmo lhe dava.O santuário de Jerusalém era lugar de discriminação. Somente

dnha acesso a ele um determinado grupo de homens, os sacerdotes. E no núcleo mais sagrado, era permitida somente a entrada do sumo sa­cerdote em um dia do ano, na festa da expiação. Na medida em que se afastava desse centro puro e sagrado, vinham os homens israelitas, se­guidos pelas suas mulheres e, por último, pelos incircuncisos. Dessa forma, o templo legitimava a exclusão. Além disso, era um centro de exploração econômica, nas palavras de Jesus, “um covil de ladrões” (Mc11,18). Não é por acaso que ele se opõe corajosamente a essa institui­ção que se transformara em idolatria.

Jesus preferiu a casa em vez do templo. No lugar do altar, esco­lheu a mesa. E em vez do sacerdócio oficial, optou pela família. Para ele, o perdão era oferecido gratuitamente nas casas, longe dos sacrifíci­os que custavam caro para o povo simples. Nas casas, convivia com o povo. Mais do que o templo, esse era o novo lugar da presença do sagrado. Confira essa prática de Jesus em algumas das citações que se­guem: Mc 1,29; 2,1.15; 3,20; 5,38; 7,17.24; 9,28.33; 10,10; 14,3!

Fiéis a essa prática de Jesus, as comunidades da Galiléia também se reuniam nas casas, fazendo do cotidiano o espaço do sagrado. A partir do início do 4o século, quando os imperadores romanos oficiali­zaram a religião cristã, o espaço sagrado foi cada vez mais sendo sepa­rado da vida. Foi novamente sendo reduzido para dentro dos grandes templos, das catedrais e dos seus administradores. E a vida? Esta foi perdendo seu valor na mesma medida em que cargos e prédios iam sendo divinizados. Temos ainda hoje conseqüências disso? Como se manifestam na religião popular?

Na cultura greco-romana, dominante na época, e também na tra­dição judaica, a casa tinha vários significados. Podia ser uma referência

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ao espaço físico da moradia, à sua organização enquanto unidade eco­nômica e política, bem como às pessoas que viviam em determinada moradia. A família da casa não eram apenas os parentes próximos ou mesmo distantes. Eram também todos os dependentes do “dono” da casa, o pai de família. Eram os escravos e as escravas, os demais traba­lhadores, bem como as pessoas amigas.

A palavra grega para designar casa é oikos. Dela derivam, por exemplo, as palavras ecumenismo (casa comum, de todos), economia (lei, organização da casa), ecônomo (administrador da casa), paróquia (espaço para quem está fora da casa) e ecologia (estudo e cuidado da casa). Como você percebeu, oikos também pode ser uma referência ao planeta Terra.

Que ensinamentos as comunidades de Marcos deixam para nóshoje?

Comunidades de Jerusalém

“Dia após dia, unânimes, freqüentavam assiduamente o templo e partiam o pão pelas casas,

tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. ”(At 2,46)

Jesus e seu projeto não foram bem aceitos cm jerusalém, como já vimos no volume anterior. Mas é certo também que nem toda a po­pulação, especialmente a mais pobre, estivesse de acordo com o sistema do templo. Por isso, setores terão sido favoráveis ao movimento do nazareno, quando este promoveu um ataque à exploração que se fazia no santuário em nome de Deus. Muitos, inclusive sacerdotes e fariseus, terão aderido às jovens igrejas de Jerusalém, não concordando com a condenação de Jesus à morte e reconhecendo nele o Messias esperado por Israel (At 2,41.47; 4,4; 5,14; 6,1.7; 15,5).

Segundo o Livro de Atos, desde cedo se formaram comunida­des também em Jerusalém e arredores. Seus líderes eram apóstolos gali-

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leus de um lado e, de outro, familiares de Jesus. At 1,12-14 cita, reunidos em uma casa, os apóstolos de Jesus, junto com os irmãos dele e algumas mulheres. Depois estavam todos novamente reunidos, quando fizeram a forte experiência da presença do Espírito Santo (At 2,1-13). Como vimos acima, a partir daí, somente Pedro e João têm algum destaque.

Além desses dois, representando os apóstolos, aparece outra li­derança importante naquelas comunidades. É Tiago, conhecido tam­bém como o “irmão do Senhor” (Mc 6,3; At 12,17; G1 1,19). Paulo sc encontra com ele por ocasião de sua primeira subida a Jerusalém em torno do ano 38 (G11,18-19). Dez anos depois, encontra-se novamente com ele durante o concilio (G1 2,1-10; cf. v. 9), onde Tiago tem partici­pação decisiva (At 15,13-21). Algum tempo depois, Tiago envia obser­vadores para as comunidades de Antioquia, inibindo a liberdade e a verdade do evangelho, conforme a linguagem de Paulo (G1 2,4.11-14). Mais tarde, é em sua casa que se reúne a comunidade quando Paulo chega de sua 3a viagem missionária (At 21,17-26). Em 62, é apedrejado a mando do sumo sacerdote Anã.

Vimos acima as críticas das comunidades da Galiléia às lideran­ças das igrejas de Jerusalém, expressas nos Evangelhos do Discípulo Amado e de Marcos. Provavelmente, se devem ao fato de os familiares de Jesus e os apóstolos se considerarem os verdadeiros herdeiros da tradição do nazareno. Em Mc 9,38-40, o apóstolo João, uma das “colu­nas” das comunidades de Jerusalém (G1 2,9), manifesta seu ciúme em relação a outras igrejas que também levavam adiante a prática liberta­dora de Jesus. A crítica das comunidades de Marcos ao apóstolo desau­toriza sua ciumeira e sua tentativa de monopolizar a tradição de Jesus, defendendo o direito de também outras comunidades fazerem sua cami­nhada de forma autônoma. E nisso elas têm o apoio de Jesus. Confira!

Por outro lado, como os questionamentos vêm de igrejas mais abertas, parecem criticar as lideranças de Jerusalém por estarem ainda muito presas às tradições judaicas das sinagogas e do templo.

Pedro terá atuado em Jerusalém e arredores por alguns anos e depois provavelmente tomou outro rumo, anunciando a Boa-Nova em outros lugares, como missionário itinerante (At 12,17). Duas devem ler sido as causas da saída de Pedro dessas igrejas. De um lado, foi a perse

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guição do sinédrio. Sua retirada se dá justamente depois de Herodes Agripa I matar o apóstolo Tiago e tentar também matar Pedro (At 12,1­16). De outro lado, é provável que Pedro tenha rompido com Tiago, o irmão do Senhor. E que Simão Pedro participava, embora com reser­vas, de comunidades abertas aos gregos (G1 2,11-14). Os enviados de Tiago vêm inibir essa sua participação. Isso não só levou a uma crise com Paulo, mas pode ter tensionado também a relação com Tiago.

A partir de então, o “irmão do Senhor” passa a ser o principal responsável pelas jovens igrejas na cidade que matara Jesus.

A casa como lugar de reunião das comunidadesAcima, já falamos das casas como lugar do nascimento das igre­

jas. No entanto, devido à sua importância, voltamos a destacar o papel desempenhado pela casa nas igrejas primitivas.

Chama a atenção que, segundo o relato de Atos dos Apóstolos, a primeira reunião da comunidade de Jerusalém se realiza em uma casa, não no templo. Isso revela a importância que a casa exercerá na vida das primeiras comunidades.

Em Atos, além dessa primeira referência à comunidade reunida (1,13-14), você pode ainda conferir outros acontecimentos centrais das igrejas de Jerusalém nas casas:

• a experiência da presença do Espírito Santo em meio à comu­nidade (2,1-13; cf. w . 1-2);

• a partilha do pão com alegria e simplicidade de coração (2,46);• o anúncio da Boa-Nova de Jesus Cristo, tal como no templo

(5,42); ^• a reunião da comunidade (8,3);• a conversão de Paulo para uma nova visão e o batismo no Espí­

rito Santo (9,10-18);• conforme o programa teológico de Lucas, é a hospitalidade de

Simão, cuja profissão era considerada impura, que abre as portas para os estrangeiros (9,43; 10,9-17);

• a Boa-Nova entra na casa de um incircunciso (10,1-11,18; cf. 10,22-48);

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• a comunidade reunida em oração acolhe Pedro, o prisioneiro fugitivo (12,12-17).

A casa como espaço de novas relaçõesEra nas casas, como a de dona Maria, mãe de João Marcos, que

as comunidades de Jerusalém costumavam se reunir.Na casa, se experimenta uma nova relação com o divino presente, não

mais escondido e distante do povo atrás do véu do templo, mas na vida cotidiana e na comunidade reunida nas famílias. E um novo espaço de relação com o sagrado, com intensa experiência da presença do Espíri ­to de Jesus ressuscitado (At 2,1-13; 4,31).

A nova experiência de Deus se traduz em novas relações econômicas, Fiel ao que Jesus ensinara por palavras e gestos, a comunidade continua partilhando o pão e seus bens (At 2,44-46). Desse modo, superava-se a fome e a miséria (At 4,32-35).

Na prática de Jesus, a acolhida de pesso­as discriminadas, consideradas impuras, de modo especial as doentes, era uma das marcas de sua solidariedade c compaixão. Assim também, as comunidades praticam novas relações sociais, não de exclusão, mas de acolhida, permitindo às pessoas excluídas um novo espaço, reintegração na convivência social (At 3,1-10; 5,12-16).

Da mesma forma como Jesus resgatara a dignidade da mulher, At 12,12-13 nos revela uma mudança significativa nas relações de gênero. Além de estarem lado a lado com homens na comunidade reunida em oração e na experiência do Espírito Santo (1,13-14; 2,1-4), as mulheres são coordenadoras de comunidades que elas acolhem em suas casas. Um espaço de igualdade para a mulher era possível somente no contex­to da casa. Não do templo, nem na sinagoga, nem da vida pública, pois estes eram os espaços privilegiados dos homens. A casa era o espaço principalmente da mulher. Embora ainda submetida ao marido, ali ela tinha direitos que fora não tinha. E o exemplo de Maria, mãe de João Marcos, nos mostra que as mulheres também exerciam a liderança nas comunidades que se reuniam em suas casas. Eram as igrejas domésticas,

"Todos os fiéis, unidos, tinham

tudo em comum." (At 2,44)

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Na Palestina, as leis religiosas de impureza garantiam a discrimi­nação das mulheres judias. Estavam afastadas do espaço público. Nas sinagogas, tinham lugar separado. No templo, tinham lugar limitado. Seu lugar é a casa e seu papel era ser esposa, mãe e dona de casa. Na cultura greco-romana, quem comandava a casa era o pai de família. Ele mandava na esposa, nos filhos e nos escravos.

No entanto, embora a mulher tivesse conquistado um espaço maior nas igrejas domésticas, as comunidades de Jerusalém ainda ti­nham muito da cultura patriarcal judaica. Ainda estavam muito ligadas às sinagogas e ao templo. E aí as mulheres judias tinham posição infe­rior. Diferentemente das comunidades do Discípulo Amado, elas fo­ram excluídas na liderança da igreja de Jerusalém, que ficou restrita a homens.

Veja, por exemplo, em At 1,21-23, onde a palavra dita por Pedro é “varões”\ Embora houvesse mulheres que seguiram Jesus desde a Ga- liléia e que testemunharam sua ressurreição, como os autores da obra mesmo reconhecem (Lc 8,1-3; 24,1-8), elas foram excluídas da possibi­lidade de substituir Judas, e assim, fazer parte dos Doze. Veremos adi­ante que havia apóstolas nas comunidades helenistas.

Pelas críticas das comunidades da Galiléia, como vimos acima, as relações internas de poder não devem ter sido fáceis em Jerusalém. Além disso, as lideranças dos apóstolos e dos familiares de Jesus queriam ter o controle sobre as demais experiências com Jesus ressuscitado. Confi­ra At 8,14-17; 11,22; G1 2,4-5.11-14! ’

E possível que nos primeiros anos dessas comunidades, o poder não fosse ainda tão centralizado. Certamente havia lideranças que exer­ciam autoridade, e a hierarquia deve ter sido ainda incipiente. Sobre a hierarquização das igrejas, voltaremos a falar no próximo volume, quando tratarmos das comunidades a partir dos anos 70.

Partilhando o pão, acolhendo as pessoas doentes, vivendo novas relações de gênero e de poder, as primeiras comunidades experimenta­ram uma nova relação com o sagrado presente no dia-a-dia de suas vidas. Eram modelos de convivência social e religiosa. Modelos de in­clusão e de solidariedade. Essas pequenas células de convivência frater­na eram, ao mesmo tempo, denúncia de estruturas sociais injustas e

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anúncio de um mundo onde novas relações se aproximam do ideal do Reino de Deus.

Igreja, comunidades reunidas nas casasConvém que reflitamos um pouco mais sobre as comunidades

como núcleos que se reúnem nas casas.Certamente foi desde muito cedo que os primeiros cristãos en­

tenderam seus grupos, suas reuniões como assembléia. Em grego, essa palavra é ekklesia. Normalmente, ela vem traduzida por igreja. Veja, por exemplo: At 5,11; 8,1.3!

No hebraico (qahal), esse termo era usado para se referir à antiga assembléia do povo (At 7,38; Ex 12,16; Lv 23,3; Dt 4,10; Js 18,1). Na Septuaginta, essa palavra foi traduzida para ekklesia. Provavelmente, as raízes do uso deste termo nas jovens igrejas vêm dessa tradução.

No mundo grego, faziam parte da ekklesia o s cidadãos. Quem eram os cidadãos na Antiga Grécia? Eram os varões livres. A maioria deles eram proprietários de terra e de escravos. Também faziam parte da ekklesia os intelectuais, como os filósofos e os líderes religiosos. A ekklesia tomava as decisões para toda a sociedade. Daí nasce o conceito de democracia, que significa “poder do povo”. Nessa “democracia” grega, a grande maioria da população, composta de escravos, artesãos e mulheres, não tinha aces­so à ekklesia.

E verdade que as assembléias do antigo Israel eram mais democráticas que as gregas.Nesse sentido, as jovens igrejas retomam o ideal de participação cidadã das tribos.

No entanto, em relação à ekklesia grega, há uma grande novidade nas comunidades cristãs. Elas se compreen­dem como assembléia. Mas uma assembléia diferente daquela organi­zada pelas elites gregas. Na assembléia cristã há espaço para todas as pessoas que aderiam à Boa-Nova de Jesus. Podiam ser livres ou escravas, adultas ou crianças. Convivia-se solidariamente, como irmãos e irmãs.

Porém, as igrejas em torno de Jerusalém, como estavam ainda

"Enquanto Pedro estava na prisão,

a igreja não cessava de fazer

~ I noraçao por ele. (At 12,5)

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muito ligadas à tradição judaica, não estavam abertas a pessoas de ou­tras etnias. Eram comunidades compostas apenas de judeus-cristãos. Mais adiante, veremos que o primeiro concilio de Jerusalém foi justa­mente por causa da abertura das igrejas helenistas de Antioquia a pes­soas de outras culturas.

Mas você poderia objetar e dizer que também na assembléia gre­ga se convivia de forma democrática. Isso é correto. No entanto, essa convivência era entre iguais, entre as elites da sociedade, que excluíam a grande maioria do povo. Este não tinha vez. Diferente, porém, era na assembléia cristã. Aí tinha vez quem aceitasse o Projeto de Jesus, com­prometendo-se com ele. Não importava se tinha posses ou não, se era homem ou mulher, se era criança ou. velho.

No mundo greco-romano, havia uma propagação de “associa­ções” e de “clubes” para fins de atividades relacionadas com o culto, com banquetes ou refeições regulares, entre outras finalidades, O in­gresso nessas associações era livre, tanto para mulheres como para ho­mens, fossem livres ou escravos. No entanto, eram clubes formados por pessoas da mesma profissão ou ofício. Em relação a essas associa­ções, as assembléias cristãs também inovaram. Nelas, podiam partici­par pessoas de diferentes origens profissionais e sociais. Os clubes eram formados por pessoas socialmente homogêneas, ao passo que as co­munidades eram compostas por pessoas socialmente heterogêneas.

O novo jeito de se relacionar n.esses núcleos nas casas converte corações e mentes, gerando uma nova consciência e transformando as estruturas do mundo, tal como o fermento leveda a massa.

No Livro de Atos, ekklesia tem vários sentidos e pode ser uma referência:

• às igrejas de Jerusalém (8,1; 111,22; 12,1.5; 15,4; 18,22);• às comunidades da Judéia, Galiléia e Samaria (9,31);• às comunidades entre os gentios (11,26; 13,1; 14,23.27; 15,3.41;

16,5; 20,17);• às assembléias das cidades gregas (19,30-40);• a toda a Igreja (5,11; 20,28).

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As igrejas de Jerusalém e o temploQuando lemos At 8,1, logo nos perguntamos por que os apósto­

los não foram perseguidos pelo sinédrio da mesma forma como os cristãos helenistas?

Buscando uma resposta a essa pergunta, descobrimos que uma das razões fundamentais terá sido sua fidelidade ao templo. Conforme At 2,46, os primeiros cristãos de Jerusalém, “diariamente e unânimes, fr e ­qüentavam assiduamente o templo Isso significa que iam para as orações da manhã e das três horas da tarde. Cumpriam também as purificações rituais, os sacrifícios, os jejuns e a observância do sábado. Eram, por­tanto, fiéis à lei judaica. A única diferença em relação aos demais judeus, é que não esperavam mais um Messias, pois, para eles, esse era Jesus. Freqüentavam o templo e também as igrejas nas casas como, por exem­plo, na casa de Maria, mãe de João Marcos (At 12,12).

Diante dessa prática não é difícil compreender que o sinédrio os tenha deixado em paz, quando promoveu violenta perseguição aos ju- deus-cristãos de origem helenista. Estes eram críticos ao templo e à lei, como veremos adiante.

Além disso, os cristãos de Jerusalém também eram fiéis às nor­mas alimentares judaicas. É o que se pode deduzir das exigências que essas igrejas fazem às comunidades que praticavam a comunhão de mesa com os gregos (At 15,19-20).

Conflitos nas comunidadesSerá que nas igrejas de Jerusalém também havia problemas?É verdade que algumas comunidades podem ter chegado a viver

novas relações, tal como Jesus as propu­nha. Mas é verdade também que o próprio Livro de Atos relata inúmeras dificuldades.

Ao descrever o ideal de vida comu­nitária, os autores de Atos não querem, em primeiro lugar, descrever como foi o dia- a-dia da vida das igrejas de Jerusalém. Querem nos apresentar a comu­nidade como modelo a ser sempre buscado. Querem nos dizer como

"No serviço cotidiano, as viúvas helenistas eram esquecidas."

(cf. At 6,1)

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deve ser nossa prática em nossos dias, projetando o futuro no passado.Na verdade, houve muitos problemas que as jovens igrejas de

Jerusalém tiveram que enfrentar, não só na convivência interna, mas também nas suas relações com outras formas de viver o Evangelho de Jesus. Confira no que segue!

• Havia quem compreendia de forma errada o messianismo de Jesus e o Reino de Deus (At 1,6-8);

• Um casal, Ananias e Safira, são sinal de que havia quem usava a comunidade para ter mais prestígio (At 5,1-10);

• Há discriminação na partilha do pão em relação às viúvas de judeus-cristãos vindos da diáspora (At 6,1-6);

• Há conflito de lideranças hebraicas com helenistas (At 6);• Há dificuldades para aceitar que as igrejas helenistas façam co­

munhão de vida, admitindo em suas comunidades pessoas incircunci- sas e entrando em suas casas (At 11,3; 15,1-2);

• Fariseus convertidos querem que todos observem a Lei de Moi­sés (At 15,5-6);

• Cristãos de Jerusalém impõem restrições aos gregos converti­dos (At 15,19-20).

Conflitos com autoridades judaicasPor um lado, os mesmos grupos que condenaram Jesus à morte

perseguem também os judeus-cristãos helenistas (At 6,1-8,3). Por ou­tro lado, perseguem igualmente as lideranças das igrejas em Jerusalém mais vinculadas à tradição judaica.

É que estas continuam a prática libertadora de seu mestre (At 3,6-8.16; 5,15-16), organizando comunidades (At 3,42-47; 4,32-37). Essa nova prática era feita em nome de Jesus. Primeiramente, incomodava as autoridades judaicas o fato de os apóstolos anunciarem como Messias, justamente aquele que elas haviam mandado matar. Em nome dele, con­tinuavam promovendo a vida da mesma forma como Jesus fizera. Em segundo lugar, a nova prática das comunidades fez com que elas cres­cessem dia-a-dia. Essa popularidade alcançou dimensões invejáveis para o pessoal do templo. As autoridades estavam perdendo espaço. O con­

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trole sobre o povo estava fugindo de suas mãos. Confira, no que segue, alguns conflitos com as autoridades judaicas!

• Atribuem a ação do Espírito Santo à embriaguez (At 2,13);• Os sacerdotes, o chefe do templo e os saduceus tentam silenciar

o anúncio e a vivência da Boa-Nova de Jesus, prendendo Pedro, João c os demais apóstolos (At 4,1-22; 5,17-42);

• O sinédrio decide matar os apóstolos, mas somente os chico teiam (At 5,33.40).

Conflitos com autoridades romanasEm torno do ano 43, Herodes Agripa I, que representa o poder

do império, mata o apóstolo Tiago e manda prender Pedro (At 12,1-3). E possível que esse conflito com Roma seja uma das razões que leva­ram as igrejas de Jerusalém a observar fielmente a circuncisão, como forma de se manter fiéis às leis judaicas, que eram permitidas pelo im­pério.

As igrejas de Jerusalém não tiveram vida longaAs primeiras comunidades de Jerusalém, que também eram co­

nhecidas por igreja da circuncisão (At 10,45; 11,2), não tiveram vida longa. Duraram somente um pouco menos de 40 anos. Em 70, quando as tropas romanas destruíram o templo e Jerusalém, muitos cristãos terão morrido na guerra ou então fugiram para outros lugares. E possí­vel que, depois da guerra, algumas comunidades tenham se reorganiza­do, mas a igreja de Jerusalém havia perdido totalmente sua importância no contexto das demais comunidades. Com o fim das igrejas de Jerusa­lém, o Cristianismo, ainda muito cedo, perdeu uma importante referên­cia. E comunidades de outras cidades do império passaram a adquirir maior importância, como foi o caso de Antioquia e de Èfeso.

No próximo volume, veremos que a ruptura entre essas igrejas ainda vinculadas ao Judaísmo e às sinagogas somente ocorreu nos anos 80.

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Comunidades helenistas

Nos primeiros 20 anos das igrejas cristãs, o anúncio da Boa-Nova dc Jesus se espalhou rapidamente na Palestina e na Síria, chegando in­clusive à Ásia Menor. Não temos notícias da organização de comunida­des na Síria oriental e na África, exceto a referência de At 8,26-40.

A expansão acima referida se deve especialmente à atividade de missionários e missionárias itinerantes e de origem judaica. Como a organização de igrejas domésticas era o início da atividade missionária cm determinado lugar, podemos supor que as casas eram centrais para o desenvolvimento do Cristianismo primitivo.

Nessa tarefa, as igrejas missionárias abertas à cultura grega foram as principais protagonistas. Por isso, não poderíamos deixar de dar uma olhada nessas comunidades helenistas no início do movimento cristão.

Você pode encontrar os principais textos que se referem a elas, no período que estamos estudando, nos capítulos 6 a 8, na segunda metade do capítulo 11 (v. 19ss) e nos capítulos 13 a 15, do Livro de Atos, naturalmente na perspectiva de Lucas.

Os helenistas atuam com independênciaDe acordo com Atos, a missão dos Doze era continuar a prática

de Jesus, isto é, expulsar demônios, promover curas, anunciar o Reino de Deus e batizar (At 2,38-41; 3,1-26; 5,12-16; 6,2.4). Enquanto isso, segundo At 6,1-6, a missão dos Sete helenistas seria dedicar-se somente ao serviço das mesas, até para liberar os apóstolos para o serviço da Palavra.

No entanto, encontramos os Sete exercendo a mesma missão dos Doze. Também fazem curas (At 6,8; 8,6-7.13), expulsam demônios (8,7), anunciam o Reino de Deus (6,10; 8,4-5.12.35; 11,19-21), batizam (8,12.38) e organizam comunidades (11,19ss).

O que significa isso? Teriam eles abandonado a missão que lhes iora dada? Teriam ocupado o lugar dos Doze? Ou os helenistas repre­sentam uma outra forma de viver a experiência com o ressuscitado e conseqüentemente do apostolado?

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Historicamente, os helenistas terão atuado de forma indepen­dente em relação a apóstolos e familiares de Jesus sediados em Jerusa­lém. Sua forma de viver a fé em Jesus e de evangelizar era autônoma, assim como também era a caminhada das comunidades da Galiléia c arredores.

As comunidades de Jerusalém eram fiéis às tradições de Israel c ao templo. Os helenistas, ao contrário, eram críticos ao santuário e à lei. Não deixe de ler At 6,8-15; 7,44-50!

Com essa forma diferente de viver o Evangelho de Jesus, com­praram briga especialmente com quem controlava a lei no templo. Erao sinédrio, composto por anciãos, sacerdotes, escribas, entre outros (At 6,12.15; 7,1). Segundo Atos, livro teológico dos cristãos helenistas dos anos 80, não é por acaso que o primeiro mártir do movimento cristão primitivo seja dos helenistas (At 7,54-60).

Sua prática é de abertura a outras etnias, ao acesso universal à Boa-Nova do Nazareno. Para que isso fosse possível, era fundamental derrubar as barreiras que impediam ou dificultavam essa caminhada. No Judaísmo oficial, o principal obstáculo era o sistema legalista imposto pelo templo. Nesse sentido, em suas denúncias proféticas, os helenistas vão direto ao ponto central, da mesma forma como Jesus fizera.

No entanto, é preciso dizer que, ao inculturarem o evangelho no mundo greco-romano, os helenistas fizeram adaptações importantes na mensagem de Jesus. E o caso, por exemplo, do Reino de Deus. Jesus quer o Reino como perdão das dívidas. Os helenistas querem apenas como perdão dos pecados.

Porém, mais do que ficar criticando, eles põem mãos à obra. Todoo capítulo 8 descreve como os helenistas, re­presentados por Filipe, tinham como meta le­var a fé emjesus como o Cristo e Senhor a ou­tras culturas. Organizam comunidades em al­deias de samaritanos, um dos povos mais dis­criminados pelo Judaísmo ortodoxo (At 8,5-13).Também evangelizam povos africanos, repre­sentados pelo etíope (At 8,26-40). Como Is 56,3-8, os helenistas questio­nam a lei judaica que excluía estrangeiros e eunucos (Dt 23,2).

"Deus não habita em moradas

feitas por mãos de homem."

(At 7,48)

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Não é por acaso que são críticos ao templo e à lei. O santuário era o principal responsável pela exclusão de samaritanos, de incircunci- sos e de impuros segundo a lei. Nas comunidades dos helenistas, toda essa gente tinha vez, recuperava sua cidadania. Logo adiante, estudare­mos as razões que tornaram as igrejas helenistas uma alternativa viável para outros povos, sem que fosse necessário passar pela circuncisão.

Junto com as comunidades do Discípulo Amado e de Marcos, os missionários e as missionárias helenistas foram responsáveis pela fun­dação de igrejas na Samaria (At 8,5-13; Jo 4,1-42) e na Síria (At 9,1-30). Chegaram, inclusive, à África (At 8,26-40) e a Antioquía (At 11,19ss;13,1-3).

Os helenistas têm muito em comum com as igrejas de Marcos. Tanto uns quanto outros são críticos à lei, ao templo e aos apóstolos. A teologia da cruz e do martírio é central tanto nas comunidades marca- nas como nas helenistas. E que, certamente, as igrejas helenistas se ori­ginaram a partir das primeiras comunidades da Galiléia.

Essa prática mais livre diante da igreja de Jerusalém, ainda muito presa às tradições de Israel, permitiu que as comunidades helenistas fossem verdadeiramente proféticas. Entenderam que a Boa-Nova de Jesus tinha a ver com todos os povos e não se limitava apenas ao Juda­ísmo. Tornaram-se igrejas missionárias e, como toda a igreja primitiva, tinham esperança apocalíptica no retorno iminente de Jesus.

Diferentemente dos apóstolos e familiares de Jesus, sediados em Jerusalém, os cristãos helenistas eram abertos à participação ativa e igua­litária de missionárias. E o caso das filhas do evangelista Filipe que eram profetisas (At 21,8-9). Elas atuavam na Samaria, morando em Cesaréia, enquanto outros profetas atuavam em Antioquia (At 13,1). Nessa característica, aproximavam-se do modelo de igualdade das co­munidades do Discípulo Amado.

Quando os autores de Atos escreveram nos anos 80, já havia uma tendência de exclusão das mulheres como protagonistas na evan- gelização. Talvez seja por isso que não se referiram à experiência do Discípulo Amado. Há também uma clara tendência pela centralização. Talvez seja essa a razão por que centralizaram tudo em Jerusalém e subordinaram as igrejas helenistas. Tentam diminuir sua autonomia,

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dando-lhes um papel subordinado ao dos apóstolos c familiares de Je­sus (At 6,1-6). O simples fato de colocar o nascedouro das igrejas hele­nistas em Jerusalém, já revela as intenções dos autores dc Atos de tor­ná-las dependentes das comunidades da capital. De fato, as igrejas hele­nistas se organizaram fora da Palestina. Sinal disso é que os nomes dos Sete helenistas são nomes gregos. E mais. At 6,5 diz explicitamente que Nicolau era de Antioquia.

Mesmo assim, não conseguem apagar o seu protagonismo na evangelização e na fundação de igrejas (At 6,8-15; 8,4-40; ll,19ss), embora tentem claramente subordiná-las. Você pode perceber isso na tentativa de colocar as igrejas de Jerusalém acima das comunidades he­lenistas, como se estas somente dvessem legitimidade com a bênção daquelas (At 8,14-25; 11,22-23). Mas essa é a teologia dos autores de Atos, que estão buscando legitimidade para as igrejas helenistas, fazen­do-as dependentes da igreja dos Doze. Sua preocupação é relacionar a missão entre os gentios com Jerusalém, de modo que a linha paulina não pareça um desvio, mas esteja em sintonia c o m as “colunas” das igrejas de Jerusalém.

As comunidades judaicas da diásporaPara entendermos o rápido crescimento das comunidades hele­

nistas, é preciso que olhemos um pouco mais de perto as comunidades judaicas da diáspora, os prosélitos e os tementes a Deus.

A economia grega tinha como base o trabalho escravo. Havia os cidadãos livres, os escravos libertos e a grande maioria eram os que ainda continuavam escravos. Os cidadãos livres eram a classe dominan­te e tinham vida privilegiada. O trabalho manual era considerado inferi­or e somente reservado a pessoas escravas.

A cultura grega tinha como foco de irradiação a cidade, enquan­to que na Palestina predominava uma cultura rural. A dominação cultu­ral grega era muito forte. Impunha-se através do estilo de vida e da organização da pólis, da administração, da tributação, do comércio, da filosofia, da língua grega, das divindades, das artes, dos esportes, dos teatros, do exército, etc.

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Para bem compreender a razão por que os judeus helenistas tive­ram mais abertura para acolher o evangelho, é bom lembrar a situação dos judeus que viviam na diáspora.

Antes de mais nada, convém ter presente que eles se mantinham fiéis à lei e ao culto nas sinagogas que havia nas cidades gregas. As sinagogas da dispersão haviam assumido um modelo próximo ao das “associações” e das “casas” no mundo greco-romano, tal como vimos acima. Muitas reuniões eram feitas nas casas. Eram os cultos domésti­cos. Nesses ambientes helenistas, as mulheres judias também assumiam funções de liderança. As sinagogas eram um espaço para a leitura e inter­pretação das Escrituras, para a oração e para refeições comunitárias.

A vida cotidiana dos judeus helenistas estava permeada por usos e costumes gregos, isto é, o jeito de a pólis se organizar e viver, seus valores e contravalores. Era, por exemplo, o caso da alimentação, da roupa, da mobília, da língua grega, da visão do mundo, das pessoas e de Deus, etc. Não liam mais o hebraico nem falavam mais o aramaico. Em suas sinagogas, liam a tradução grega das Escrituras, a Septuaginta.

Muitos judeus assumiam nomes gregos, como, por exemplo, Es­têvão, André, Filipe, Timon, Prócoro, Pármenas (At 6,5), Agabo (At11.28), Áquila (At 18,2), Eunice (2Tm), Nicodemos 0o 3,1) e Tomé (Jo20.28). Outros mudavam seus nomes para nomes gregos com som pa­recido, como Josué para Jasão (At 17,5), Saul para Saulo (At 8,1-3) e Judá para Judas (At 1,16). Outros ainda usavam dois nomes, um para o ambiente helenista e outro para ambientes judaicos. E o caso do grande apóstolo de Tarso da Cilícia. Seu nome hebreu era Saul (At 9,17). Po­rém, no meio greco-romano chamava-se Paulo (At 13,16).

Até a arquitetura e a organização das sinagogas assumiu formas gregas. Também a filosofia, isto é, a procura da sabedoria, bem como o pensamento grego influenciaram o modo de compreender a vida. Era uma mentalidade mais aberta e universal se comparada ao modo de vida judeu. A literatura e a arte gregas também terão deixado marcas nos judeus da diáspora. Convivia-se em meio a muitas culturas e religiões diferentes, porém, com um modo de vida comum.

Tudo isso nos ajuda a entender as razões pelas quais um judeu da diáspora era visto com reservas por um judeu de Jerusalém e da Judéia.

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Da parte do império, havia uma política de tolerância em relação às comunidades judaicas. Os romanos reconheciam a sua religião e per­mitiam certa autonomia para regulamentar sua vida nas colônias esta­belecidas nas cidades greco-romanas. Eles não precisavam prestar jura­mento e serviço militar, além de não precisar render culto às divindades oficiais do império.

Prosélitos e tementes a DeusMas não apenas os judeus dispersos assimilavam o modo de vida

dos gregos. Havia um interagir entre culturas. As comunidades judaicas apresentavam sua religião aos gregos de forma bem atrativa. De fato, características importantes da religião de Israel eram bem-vindas na cultura grega.

É o caso do monoteísmo. Filósofos gregos haviam criticado dura­mente o politeísmo, considerando muitas de suas práticas supersticiosas. Muitas pessoas buscavam religiões monoteístas e cultos orientais. Além do monoteísmo, a ética judaica se aproximava à moral grega. Nesse sentido, a religião judaica da diáspora teve boa aceitação por parte de muitas pessoas que se aproximavam das sinagogas nas cidades.

Algumas pessoas assumiam na totalidade a religião de Israel. Quem assim fazia era chamado de prosélito, isto é, “alguém que se aproxi­ma”. Prosélitos são, portanto, estrangeiros convertidos ao Judaísmo, assumindo a prática da lei, inclusive da circuncisão. Desse modo, passa­vam a fazer parte da comunidade judaica. No entanto, devido especial­mente à resistência contra a circuncisão, devem ter sido poucos os prosc- litos. Temos, inclusive, poucas referências a eles nos escritos bíblicos.

No Livro de Atos, eles estão presentes no Pentecostes (2,11) e aderem às comunidades fundadas por Paulo em Antioquia da Pisídia (13,43). Também Nicolau, um dos Sete, é prosélito (6,5).

Além dos gregos que assumiam o Judaísmo na sua totalidade, havia também os tementes a Deus. Diferentemente dos prosélitos, estes eram em grande número, não aderindo totalmente à prática religiosa judaica. Eram os gregos que simpatizavam com a religião de Israel. Freqüentavam as sinagogas. Aceitavam a compreensão judaica a respeí-

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to de Deus, bem como os livros sagrados do Judaísmo e a ética israelita. ( )bscrvavam o sábado, as leis de pureza e a piedade judaica, como dar esmolas, orar e jejuar. Veja, por exemplo, o caso do greco-romano Cor- nélio, homem piedoso e temente a Deus (At 10,1-2.22.35)!

No entanto, não se integravam à comunidade de Israel pela cir­cuncisão. A maioria dos convertidos por Paulo eram desse grupo. Po­rém, Paulo também convertia gregos que ainda não conheciam o Juda­ísmo (At 17,4; lTs 1,9-10).

Em Atos, além de Cornélio, podemos ainda encontrar referências aos tementes a Deus em 13,16.26.

Às vezes, as pessoas temen­tes a Deus são também chamadas de “adoradoras de Deus” (13,43; 16,14; 17,4.17; 18,7 ) ou simplesmente de “gregos” 17,12; 18,4; 19,10.17). Entre eles havia mulheres, como éo caso de Lídia (16,14), e homens, como Cornélio (10,2) e justo (18,7).

A mensagem do evangelho, segundo os cristãos helenistas, era uma proposta universal que não impunha costumes restritos a nenhu­ma cultura específica. Além disso, ensinava a igualdade e a união entre iodas as pessoas que aderiam à Boa-Nova cristã.

Por isso, os judeus helenistas e os gregos proséütos, mas de modo especial os gregos tementes a Deus, eram a terra mais fértil para acolher a semente do evangelho e produzir muitos frutos. Foram os principais responsáveis pela rápida difusão do Cristianismo.

O Cristianismo como alternativa para judeus helenistas, para prosélitos...

Por que judeus da diáspora, prosélitos e tementes a Deus acolhe­ram com mais facilidade a Boa-Nova cristã?

Uma das principais razões terá sido o fato de as comunidades judaicas espalhadas pelas cidades gregas sofrerem certa discriminação por parte dos judeus mais ortodoxos da Palestina.

"Uma delas, chamada Lídia, negociante de púrpura,

da cidade de Tiatira, adoradora de Deus,

nos escutava."(At 16,14)

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Os judeus ortodoxos e fiéis observantes da lei e dos cosiumes judaicos na Palestina, especialmente da Judéia, consideravam os seus irmãos de fé da diáspora contaminados pelos pagãos. Já vimos acima que era praticamente impossível um judeu da dispersão não assumir, pelo menos boa parte, do modo de vida das cidades gregas. Essa “con­taminação” tornava um judeu helenista “impuro”. Quando, por exem­plo, peregrinava a Jerusalém, era obrigado ou constrangido a passar por uma série de ritos de purificação para poder freqüentar o templo. Era considerado um judeu de segunda classe. Conseqüentemente, eles ti­nham uma atitude mais crítica em relação às instituições oficiais judai­cas, que os discriminavam.

Os judeus-cristãos helenistas, simbolizados pelos Sete (At 6,5), são uma evidência dessa postura. Sua crítica à Lei de Moisés e ao culto no templo santo de Deus (6,11-14) revelam como terá sido a desconfi­ança dos judeus da diáspora em relação a essas instituições.

No Livro de Atos, temos um exemplo que revela a discriminação feita contra as viúvas de judeus da dispersão. Não deixe de ler At 6,1-2!E, o que é mais grave, era uma discriminação dentro da jovem igreja de Jerusalém. Pode-se supor que o desprezo em relação aos judeus da di­áspora por parte dos judeus de Jerusalém ainda tenha sido maior do que dentro das comunidades cristãs da capital.

As igrejas helenistas, especialmente a par­tir de Antioquia da Síria, quebraram esta discri­minação. Superaram totalmente a lei de pureza étnica. Não somente judeus helenistas eram acolhidos em pé de igualdade, mas também pro­sélitos. As igrejas domésticas eram uma alter­nativa para quem era desprezado em sua pró­pria religião. Ali, todos eram irmãs e irmãos de fato, não necessitavam nem do templo e nem mesmo das sinagogas para garantir sua identida­de diante de Deus.

... e para gregos tementes a DeusMas os missionários das comunidades de Antioquia não somen­

te eram uma alternativa para judeus da dispersão e prosélitos, gregos

"Muitos judeus e prosélitos que

adoravam a Deus seguiram a Paulo

e Barnabé."(At 1 3,43)

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t|ur :is sumiram viver na totalidade o Judaísmo. As igrejas que fundavam mim também um espaço que acolhia tementes a Deus.

Em Jerusalém, embora fossem simpatizantes da religião de Israel, eles não tinham chance para ter acesso ao templo, lado a lado com judeus e pro­sélitos. Podiam somente circular no grande pátio, da mesma forma como qualquer estrangeiro.

Com maior razão, portanto, as comunidades fundadas pelos mis­sionários antioquenos, eram uma possibilidade para os tementes a Deus de viver sua fé monoteísta e a ética da religião de YHWH sem o rigor da lei judaica, especialmente a da circuncisão. Para os adoradores de Deus, :i mensagem de Jesus lhes caía como luva.

('orno foi possível quebrar a discriminação de pobres, mulheres e gregos?

Sabemos que os pobres, as mulheres e as pessoas estrangeiras eram as mais discriminadas pela doutrina do Judaísmo oficial referente ;i pureza étnica, à santidade do templo e às leis de impureza. Era possí­vel continuar fiel a essas tradições e, ao mesmo tempo, à verdade do evangelho? A resposta é uma só: “não”.

Já vimos que Jesus fez uma crítica contundente às leis orais e escritas discriminatórias, como meio de resgate da dignidade de pobres e das mulheres. Vimos também que o Nazareno entendeu sua missão como renovação da sua religião, retomando o essencial da lei, isto é, a centrali- dade da vida, da liberdade e do amor, já presentes no Primeiro Testamen­to nas teologias da criação, do Exodo e da aliança, respectivamente.

Ao perceber que esse evangelho também era uma Boa-Notícia para os gregos, para além do Judaísmo, as igrejas helenistas deram um passo a mais. A doutrina judaica defendia que o caminho para Deus erao cumprimento da lei que, segundo sua crença, era a expressão da von-

. tadr dc Deus.

"Muito alegres por essas palavras, os gentios

glorificavam a palavra do Senhor...

e abraçavam a fé."(At 1 3,48)

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Mas como as pessoas pobres, desconhecedoras da lei e, por isso, consideradas malditas, poderiam praticá-la e ter acesso a Deus? Como as mulheres, consideradas impuras em boa parte de sua vida, poderiam estar em comunhão com o criador? Como as pessoas que não professa­vam a religião judaica, desconhecendo e não praticando sua lei, poderi­am ser admitidas à fé em YHWH, o Deus de Israel? Como os mais rejeitados da terra poderiam se reconciliar com Deus através do ofere­cimento de sacrifícios no altar do santuário ao qual não tinham acesso?

Pois aí está a novidade, fruto da criatividade dos helenistas. Não mais a lei, mas Jesus, o Cristo e Senhor, este é o novo caminho. Ele é o critério da verdade que liberta. E a luz que traz a verdadeira vida. Sua cruz-ressurreição é que faz a mediação entre as pessoas e Deus. É um ato único oferecido de graça em resgate de toda a humanidade. Esse éo caminho. É a nova justiça de Deus ao alcance de todas as pessoas e de todos os povos. Ter fé é aceitar esse resgate amoroso e fiel, oferecido a nós gratuitamente por Deus. E ele quem nos torna justificados, e não as obras da lei e os sacrifícios do templo. Para aderir ao Messias e ao seu projeto, não se faz mais necessária a lei. Basta a adesão pela fé, cuja prática é a vivência do amor (G1 5,6) e da justiça (Rm 6,13-14.18-19). Leia ainda Rm 1,16-17; 3,20.30; G1 2,15-21!

Conforme o Livro de Atos, essa foi a tese central do evangelho segundo os cristãos helenistas. Em Antioquia da Pisídia, Paulo anuncia que é por Jesus ressuscitado que temos a remissão dos pecados. Afirma ainda que a justificação plena não vem pela Lei de Moisés, mas pela fé. Confira At 13,38-39!

Portanto, a nova justiça de Deus, oferecida gratuitamente em Je­sus através da adesão pela fé, é a forma encontrada pelas comunidades helenistas para incluir, não só pobres e mulheres, mas também tementes a Deus e outras pessoas que ainda não conheciam a religião dc Israel.

Antioquia da Síria, um centro missionário importanteAntioquia da Síria foi o principal centro das igrejas helenistas.Esta cidade tornou-se estratégica dentro do projeto das comuni­

dades helenistas para difundir o evangelho nas cidades greco-romanas.Antioquia era a terceira cidade do império. Somente Roma e Ale-

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xnndria do Egito a superavam em número de habitantes. Tinha em tor­no dc SOO mil moradores.

( )cupava um lugar especial no mundo de então. Situando-se à margem do rio Orontes, era a capital da província romana da Síria.I v.lava na fronteira entre duas grandes culturas. A leste ficava a cultura %riniia. A oeste, a grega. Era, portanto, uma cidade multicultural, cos­mopolita. Era passagem obrigatória entre o oriente e o ocidente.

As informações de At 11,19-21 dão conta de que foram os com­panheiros de Estêvão, isto é, judeus helenistas convertidos a Jesus, que (undaram as igrejas em Antioquia.

As comunidades helenistas surgem quase todas em ambiente ur­bano, diferentemente do movimento de Jesus e das igrejas primitivas da C ialiléia e dajudéia, que ainda tinham grande inserção no meio rural.

Nasce uma nova religiãoHavia inúmeros judeus em Antioquia. No entanto, as comunida­

des cristãs não se formavam apenas a partir das sinagogas. Aceitavam também a participação de pessoas vindas de outras culturas e tradições religiosas. Veja, por exemplo, que missionários vindos de Chipre (cipri-i >tas) e de Cirene, que fica no norte da Africa (atual Líbia) anunciaram a Boa-Nova do Senhor Jesus também aos gregos (At 11,20). Esse detalhe r importante, porque nos revela que foram as comunidades cristãs he­

lenistas quem anunciou primeiro o evangelho a pessoas do mundo greco- romano.

Diferentemente das comunida­des de Jerusalém, eram, portanto, co­munidades abertas ao mundo, inaugu­rando grupos de convivência entre di­ferentes, porém, unidos em torno da adesão a Jesus. Nesse sentido, essas co­

munidades se distanciavam das sinagogas, formando uma identidade própria. Conforme At 11,26, foi em Antioquia que os seguidores de

• Jesus foram chamados pela primeira vez de cristãos, tendo um modo de

"Verifico que Deus não foz acepção de pessoas, mas que,

em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça lhe é agradável."

(At 10,34-35)

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vida próprio. Dessa forma, já não eram mais apenas um movimenlo dc renovação do Judaísmo, como havia sido o movimento dc Jesus c ainda eram as comunidades de Jerusalém. Algo novo estava nascendo. Era uma nova religião, o Cristianismo. E possível que, sem esse passo, o movimento que Jesus iniciara não teria passado de mais uma tendência no Judaísmo daquela época.

Esse momento é de suma importância na caminhada das igrejas porque representa a passagem da cultura oriental dos judeus da Palesti­na para a cultura helenista multicultural da Ásia Menor e, mais adiante, também da Europa. Foi a passagem da observância da lei de uma única nação para a acolhida da gratuidade do amor de Deus, que não faz acepção de povos (At 10,34-35).

As igrejas de Jerusalém enviaram Barnabé como observador que deveria acompanhar de perto a nova experiência. Ele era um levita de Chipre (At 4,36). O fato é que Barnabé adere à tese das igrejas helenis­tas e se torna um dos seus profetas (At 13,1-3). Mais tarde, procura Paulo em Tarso para que reforce o projeto missionário no mundo gre- co-romano (At 11,25-26).

Diferentemente do modelo das igrejas de Jerusalém, cuja organi­zação estava centrada em apóstolos e na família de Jesus, as comunida­des de Antioquia exercitavam um ripo de autoridade colegiada. Suas lideranças eram chamadas de profetas e doutores, isto é, aqueles que anunciavam o Evangelho de Jesus de Nazaré, organizando comunida­des e equipes missionárias. Decidiam as questões em assembléia, movi­dos pelo Espírito Santo em forte clima de oração (At 13,1-3).

Em At 13,1, temos uma lista de cinco profetas e doutores. Sua origem nos revela o quanto estas comunidades eram abertas à cultura greco-romana. Barnabé era um judeu da diáspora, da ilha dc Chipre. Simeão era negro. Lúcio também era africano de Cirenc. Além deles, ainda faziam parte da coordenação das comunidades de Antioquia Ma- naém, que era amigo de infância do tetrarca Flerodes c Saulo, outro judeu da dispersão.

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PiUilo, o apóstolo dos gentiosDiferentemente de Atos (9,1-19; 22,3-21; 26,9-18), Paulo não se

demora muito, em suas cartas, para descre­ver o processo de mudança que ocorreu em sua vida. As poucas vezes em que se refere à transformação ocorrida em sua história, o faz para insistir na autenticidade de sua mis­são como verdadeiro apóstolo. Confira G11,13-17; ICor 9,1 e 15,8!

As três narrativas de Lucas em Atos, dc acordo com sua teologia a respeito da difusão do evangelho, certa­mente querem ressaltar a importância dessa transformação que não somente mudou a vida de Paulo, mas também deu novos rumos à ca­minhada das jovens igrejas.

No entanto, esses novos horizontes já faziam parte das comuni­dades helenistas. Não foram invenção de Paulo. Foi nas igrejas domés­ticas em casas de cristãos helenistas que Paulo terá conhecido e se apai­xonado pela missão de levar a Boa-Nova de Jesus aos incircuncisos (At ‘>,11.17). Uma vez engajado nessa caminhada, foi ele quem não permi­tiu que o evangelho da liberdade fosse novamente submetido aos cos-l umes judaicos. Ele mesmo tomou a liderança do anúncio de Jesus Cristo e de seu projeto de vida a todas as culturas.

As comunidades helenistas de Damasco ofereceram a primeira catequese cristã para Paulo. Dali, ele teve que fugir, pois Aretas, o rei dos nabateus, queria prendê-lo (2Cor 11,32-33). Então foi para a “Ará­bia”, possivelmente uma referência às igrejas da região ao leste do lago da Galiléia (G1 1,17). Esta foi sua primeira missão.

Primeira missão da equipe de AntioquiaAlém de sua abertura para o mundo greco-romano, outra carac­

terística importante das comunidades cristãs de Antioquia é sua voca- çno missionária. Enviam equipes para cidades na região mediterrânea a

, tiin de anunciar a Boa-Nova de Jesus tanto a pessoas de origem judaica como grega.

"Fs/e homem é para mim um vaso

escolhido a fim de levar o meu nome

diante dos gentios." (At 9,15)

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Segundo At 13-14, a primeira equipe enviada pelas jovens igrejas de Antioquia teve a participação de Barnabé, de Paulo c de João Mar­cos (13,2), primo de Barnabé (13,5). No início, o líder da equipe parece ser Barnabé (13,2.7). Mas logo Paulo passa a assumir a liderança (13,9.13.16.46).

Essa primeira viagem da equipe missionária de Antioquia deve ter acontecido entre os anos 46 e 48. O primeiro destino foi a ilha de Chipre, terra de Barnabé. Ali, visitaram duas cidades, Salamina e Paios, onde anunciaram a Palavra nas sinagogas e na casa do procônsul roma ­no Sérgio Paulo, respectivamente (At 13,4-12).

Seguiram viagem para a região da Panfília, na Ásia Menor, atual Turquia. Em Perge, João Marcos abandona a missão e volta para Jerusa­lém (13,13). Paulo e Barnabé seguem para o norte até Antioquia da Pisí- dia, onde Paulo profere, segundo o Livro de Atos, seu primeiro grande discurso aos judeus na sinagoga (13,14-43). Ainda em Antioquia da Pisí- dia na região central da Ásia Menor, os missionários se dirigem aos gen­tios, provocando a ira de judeus que instigam alguns nobres para expulsá- los da cidade (13,44-52).

Aqui, voltamos a lembrar que a tese central do evangelho, segundo os primeiros missionários helenistas, é que a remissão dos pecados nos vem por Jesus ressuscitado e que a justificação plena não vem pela Lei de Moisés, mas é graça de Deus para quem crê (At 13,38-39).

Dirigindo-se a Icônio, repetem-se fatos parecidos aos de Antio­quia da Pisídia (14,1-5). Para não serem apedrejados sob o comando das autoridades da sinagoga local, fogem para Listra, onde curaram um aleijado. Diante do entusiasmo da multidão, evitam que esta os idolatre e lhes ofereça sacrifícios (14,5-18). Mas os mesmos, que queriam agre­dir os missionários em Antioquia e Icônio, vieram até Listra e apedre­jam Paulo que se reabilita e parte com Barnabé para Derbe, onde anun­ciam o evangelho (14,19-21 a).

A partir desse momento, voltam pelas mesmas cidades onde ha­viam fundado comunidades, confirmando-as na fé e na perseverança, apesar das tribulações. E mais. Designaram também presbíteros, isto é,

"Deus abriu as portas da fé aos gentios."

(At 14,27)

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anciãos para coordenar as igrejas (14,21b-23). Esse era o jeito de orga­nizar as comunidades judaicas em torno das sinagogas ou casas. Nesse srniido, as igrejas helenistas seguem o modelo judaico. Chama-nos a atenção a confiança dos missionários nas comunidades e em suas lide­i aiiras. Não é parecido com nossa experiência de comunidades eclesiais< otu suas equipes e lideranças sendo sujeitos de sua própria caminhada?

No caminho de volta ao ponto de partida, ainda evangelizam Perge ( I i ,24-26). Chegando em Antioquia da Síria, de volta às comunidades quei is haviam enviado, fazem a avaliação da missão realizada. Se ainda havia< ii ividas, agora não há mais: “Deus abriu as portas da f é aos gentios!” (14,27).

Comunidades helenistas, um novo modelo de relaçõesAs lideranças, que a equipe missionária das igrejas de Antioquia

estabeleciam nas comunidades, certamente eram tanto homens como mulheres. Embora At 13-14 não as mencione, as mulheres tinham espa- <•' >s iguais nas comunidades paulinas, como veremos adiante. No entanto, e importante dizer, desde logo, que foram as gerações seguintes dessas mesmas comunidades as responsáveis pela introdução do patriarcado e da hierarquização nas igrejas depois dos anos 70. Acontece que somos alé hoje os herdeiros das comunidades dos helenistas e, se há igrejas cen-I ralizadas e com discriminação em relação às mulheres, são herança deles.

Quanto ao novo tipo de relacionamento proposto por Jesus e aplicado por Paulo nas comunidades que organiza, conhecemos sua lese fundamental. Podemos encontrá-la na Carta aos Gálatas (3,27-28). Assumindo uma fórmula batismal que certamente já circulava nas co­munidades antes dele, assim Paulo se expressa:

“Pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vos sois um só em Cristo Jesus. ”

Embora a carta seja de meados dos anos 50, certamente Paulo já tinha essa prática nas igrejas que fundara 10 anos antes. As jovens co­munidades, a partir da experiência de Deus revelada por Jesus de Naza­ré, viviam relações mais humanas em todos os níveis, como de gênero, de classe c de etnia. Diante de cada uma dessas dimensões, perguntavam-se: qual seria a prática de Jesus? E procuravam ser fiéis a seu Espírito.

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Novas relações de gêneroPor isso, podemos afirmar com tranqüilidade que, além de orj>a

nizar comunidades sob a liderança de mulheres e homens, Paulo Inm bém propunha a total superação da discriminação das mulheres naque la cultura fortemente patriarcal.

No mundo greco-romano, as mulheres não eram cidadãs. Eram mães, esposas e filhas de cidadãos. Do ponto de vista da lei, elas esta vam submetidas ao pai de família. Enquanto as gregas ficavam reclusas em suas casas, as romanas até podiam acompanhar seus maridos em banquetes e festas.

Na Grécia, de modo geral, as mulheres não tinham acesso ao mundo intelectual. No entanto, havia tendências filosóficas, como o epicurismo e o cinismo, que eram abertas à emancipação das mulheres. Também no mundo das religiões elas tinham participação ativa, de modo especial nos cu lto s às Deusas, seja nas casas como nos templos. Exerci­am o papel de profetisas e sacerdotisas, especialmente nos ritos ligados ao nascimento e à morte.

Nas religiões romanas, as mulheres tinham bem menos partici­pação que na Grécia. Os homens controlavam o poder religioso, em­bora elas exercessem também um certo número de papéis sacerdotais. No entanto, a prática religiosa das mulheres era vista como uma religio­sidade supersticiosa.

Quanto ao gênero, Paulo divulga relações de parceria, de com­plementaridade, de respeito nas diferenças. Por isso diz: “Não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (G1 3,28).

As igrejas domésticas helenistas romperam com o modelo patri­arcal, com a ordem hierárquica da casa greco-romana, vivendo relações de igualdade.

As comunidades se dirigem a Deus, chamando-lhe Pai. De um lado, isso nos mostra o jeito especial e íntimo com que se relacionavam com o criador. De outro, revela que, sendo Deus o único Pai, deve ser superada a relação de poder sobre esposa e filhos exercida pelo pai de família naquela cultura. Se Deus é o Pai, todos os demais somos filhas e filhos desse mesmo Pai. Com isso, declarava-se a plena irmandade en­tre todas as pessoas.

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Outro elemento de fundamental importância é constatarmos que, ]r nos primeiros anos das igrejas cristãs helenistas, as mulheres não só exerciam papéis de liderança nas casas, mas assumiam com coragem a missão de apóstolas em pé de igualdade com os homens.

Paulo aderiu ao projeto de Jesus pelo ano 35. Alguns anos de­pois, em sua carta às comunidades de Roma, ele envia saudações para várias pessoas na capital do império (Rm 16,1-16). Além de outras mulheres, como a diácona Febe (w. 1-2), Priscila (w. 3-5) e Maria (v. 6), lembra também Júnia (v. 7). Afirma que ela foi, junto com Andrônico, tima apóstola importante, de destaque. E isso ainda antes da adesão de Paulo a Jesus. Por causa de seu apostolado corajoso foi companheira de prisão do apóstolo.

Essa é uma diferença com as igrejas de Jerusalém. Ali, segundo a teologia de Lucas que tenta apagar a memória da liderança das mulhe­res lá pelos anos 80, elas não tinham muito espaço, como vimos acima.

Não é por acaso que a tradição lucana, que é, infelizmente, a única que nos fala das comunidades de Jerusalém, negue a Paulo o títu­lo de apóstolo, embora assim lhe chame secundariamente junto com Barnabé (At 14,4.14). Será que, negando a Paulo o título de apóstolo, as comunidades de Jerusalém não pretendem dasautorizar a prática desse grande missionário que era mais livre diante da lei e das tradições exclusi­vistas dos judeus-cristãos de Jerusalém? Não será também para isso que, mais tarde na Galácia (G11,6-10) e em Corinto (ICor 1,13; 3,21-22; 2CorI 1,1-15; 12,11-12), apóstolos de Jerusalém ou seus enviados tentaram minar a liderança de Paulo naquelas comunidades que fundara?

E hoje, em que medida nossa vida eclesial está sendo um teste­munho alternativo de relações de gênero?

Novas relações de classeMas Paulo vai além. Entende que comprometer-se com o batis­

mo em nome de Jesus, revestir-se de Cristo, implica também superar as relações de opressão entre senhores e escravos. Na comunidade cristã, já não há mais espaço para opressão e discriminação de escravos e es-

# cravas. Certamente, Paulo tinha consciência de que não tinha forças para transformar o sistema imperial e escravocrata. Mas tinha claro que

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a mudança começava nas pequenas comunidades. Superar, tias assem­bléias cristãs, a exclusão de pessoas escravas, de modo que pudessem ser cidadãs, era uma denúncia de uma sociedade que estava organizada sobre o trabalho escravo. Era, ao mesmo tempo, um despertar tia r< >ns ciência de quem vivia na escravidão, levando a um processo gerador de liberdade e cidadania. Por isso diz: ‘Não há escravo nem livre, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”.

As igrejas domésticas não copiavam o modelo da ekklesia elitiza da da “democracia grega”. Também não imitavam simplesmente as “as sociações” ou “clubes” que eram formados por pessoas socialmente homogêneas, como já vimos.

Nesse sentido, como também já referimos acima, considerar Je­sus o único Senhor da comunidade, não somente era uma crítica ao imperador, senhor do mundo de então, mas era também uma forma dc dizer que nas igrejas domésticas já não podia mais ter senhores nem escravos, pois todos eram igualmente escravos de Cristo, isto é, livres em Cristo. Compare ICor 7,22 com G1 5,1.13!

Em que medida nossa vida eclesial está sendo um sinal alternati­vo ao nosso modelo de sociedade que hoje impera globalmente, basea­do na discriminação e na exclusão?

Novas relações étnicasE tem mais. Batizar-se em nome de Jesus é comprometer-se com

a derrubada dos muros que separam os diferentes povos, as mais vari­adas culturas. Nenhum povo é superior a outro. Nenhuma cultura pode ser considerada inferior e discriminada. Em Cristo, todas as nações têm a mesma dignidade. Não há mais motivo para os judeus considerarem os estrangeiros impuros e profanos, ou chamar-lhes cães e porcos (cf. Mt 7,6; 15,27; At 11,1-10). Por isso, Paulo escreve: ‘Não há judeu mm grego, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”.

Nesse novo jeito de se relacionar, está a experiência alternativa, a novidade “que revoluáona o mundo inteiro” (A.t 17,6b).

As comunidades domésticas não se restringiam ao modelo de sinagogas da diáspora, que continuavam discriminando pessoas incir- cuncisas. Nas igrejas cristãs, não havia discriminação étnica.

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As comunidades helenistas não só viviam novas relações entre si. Mos i ravam-se também solidárias com outras igrejas mais pobres, inclu­sive aquelas que não concordavam com sua abertura ao mundo greco- rnmano, como as comunidades judeus-cristãs de Jerusalém (At 11,27-30; ( II 2,10; 2Cor 8-9).

Em que medida nossa vida eclesial está sendo um sinal alternati­vo diante da discriminação de culturas, de etnias em nossos dias?

Desafios nas comunidades helenistasJunto com a entrada de pessoas gregas nas comunidades, vieram

lambem novos valores, provocando tensões na convivência. Esse con­flito cultural foi o maior desafio que as jovens igrejas helenistas tiveram que enfrentar. É o desafio da inculturação.

Uma das maiores dificuldades para os judeus-cristãos era aceitar fa­zer a comunhão de mesa com os gregos. É que era proibido a um judeu mirar na casa de um estrangeiro (At 10,28) ou comer com ele (Mc 2,16). P< >r isso, para que gregos convertidos pudessem participar em pé de igual­dade nas comunidades com judeus-cristãos, era necessário que estes se con­vertessem antes, superando o dogma de pureza étnica e as leis do puro e do impuro. O desafio maior, portanto, era cristãos de origem judaica fazer um processo de conversão. Naturalmente, os judeus da diáspora tinham vanta- prm sobre os da Judéia. Pois já estavam marcados pela cultura grega.

Superando esse desafio, as comunidades helenistas tiveram uma prática inovadora. Barreiras culturais, de classe e de gênero, são derru­badas. Nas refeições destas comunidades, comiam juntos, sem discri­minação, tanto gregos como judeus, tanto escravos como livres, tanto mulheres como homens, tanto pobres como ricos.

Conflitos nas comunidadesHouve dificuldades também nessas igrejas helenistas. Listemos

algumas delas.Uma das tensões foi com as comunidades de Jerusalém. Já vimos

que Tiago, o irmão do Senhor, enviou observadores para vigiar de per­to a nova experiência helenista (G1 2,12; At 11,22; 15,1-2). Adiante,

’ veremos que o mesmo Tiago impôs restrições aos gregos convertidos

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(At 15,19-20). Essa decisão de Jerusalém gerou um mal estar em Anti­oquia. Houve, inclusive, enfrentamento público entre Paulo e Pedro, ocasião em que aquele desmascarou o fingimento deste (Cíl 2,11 14).

Esse conflito com Jerusalém teve desdobramentos internos na comunidade. E provável que, em Antioquia, alguns judeus-cristãos te­nham se rendido às orientações de Jerusalém. Certamente, Barnabé e João Marcos aceitaram essas restrições (G12,13). Enquanto outros, como Paulo e Silas, ficaram fiéis ao anúncio da liberdade do evangelho.

Provavelmente, a razão fundamental da divisão nas igrejas hele­nistas se deve a esse passo de Barnabé dado para trás. E possível que a desistência de João Marcos, em Perge durante a primeira missão (At 13,13), já tenha sido em função de sua discordância dessa abertura de. Paulo à inculturação do evangelho na cultura grega, inclusive fazendo comunhão de mesa com incircuncisos. Para ficar fiel à sua vocação de apóstolo dos gentios, Paulo montou outra equipe, rompendo com Bar­nabé e seguindo caminho próprio (At 15,36-40).

Conflitos com autoridades judaicasAutoridades judaicas também perseguem as lideranças das co­

munidades abertas aos incircuncisos. Veja a seguir!• As igrejas cristãs helenistas seguem Jesus na sua postura diante

do Judaísmo oficial, criticando o templo, lugar santo de Deus, e a Lei de Moisés (At 6,9-15; 7,44-50). Já vimos acima as razões disso. Por isso, são acusadas e levadas ao sinédrio.

• A perseguição não tardou, e o sinédrio faz o primeiro mártir das igrejas helenistas, promovendo uma perseguição generalizada con­tra essas comunidades, enquanto ainda poupa as igrejas dos apóstolos de Jerusalém (At 6,15; 7,54-8,3).

Conflitos com a cultura greco-romana• Em Listra, o povo confunde Paulo e Barnabé com divindades

gregas (At 14,11-18).• As casas greco-romanas eram regidas pelo sistema patriarcal. () pai

de família mandava na mulher, nos filhos e nas filhas, nos escravos e nas escravas. As comunidades helenistas, ao praticarem relações emancipatóri-

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as para mulheres, a família e a servidão, certamente terão entrado em con- tlilo com os costumes tradicionais, passando a ser um grupo suspeito.

• Das assembléias gregas participavam somente as elites econômi­cas e intelectuais. As assembléias das comunidades, ao abrirem espaço para gente escrava, pobres e mulheres, certamente terão despertado a consciência cidadã de seus participantes, tendo conseqüências na socie­dade greco-romana.

• Ao anunciar Jesus como único Senhor e rei, as igrejas estavam contestando o imperador como dono do mundo (At 17,6-7).

• Ao apresentar Jesus como o Cristo, estavam negando o culto ao imperador. Tudo isso mostra que as comunidades eram células trans- iormadoras de relações e, conseqüentemente, uma ameaça para os po­deres instituídos.

• Ao colocar no centro de sua pregação a cru^ e a vitória da vida sobre esse instrumento de morte, o movimento cristão deixa muito claro que entende sua prática em confronto com os romanos que, junto com saduceus e herodianos, foram os principais responsáveis pela morte dc Jesus (ICor 2,8; At 2,23).

• Havia também opiniões divididas a respeito do império. Por um lado, em períodos de maior perseguição, era necessária a prudência, a fim de sobreviver. Procurava-se viver, obedecendo às autoridades, po­rém, com discernimento e consciência crítica (Rm 1,18; 12,2; 13,1-7). Por outro lado, de modo especial a partir da grande perseguição do impera­dor Nero em 64, via-se o império como encarnação do demônio, sim­bolizado pelo dragão, e pela opressão bestial (Ap 13,1-4; Mc 5,1-20).

Concilio de Jerusalém

"... não se devem molestar os pagãos que se convertem a Deus. ”

(At 15,19)

Já vimos que, apesar da diversidade das experiências das igrejas primitivas, elas também buscavam se comunicar, manter certa comu­

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nhão e solidariedade. O concilio de Jerusalém devo ser entendido nessa busca de diálogo.

Vimos acima que foram as igrejas helenistas que ultrapassaram as barreiras estabelecidas pelas sinagogas. Aceitavam a participação de pessoas vindas de outras culturas e tradições religiosas, anunciando o evangelho também aos gregos (At 11,20). Desse modo, inauguravam uma nova forma de vivência nas comunidades. Eram mais abertas ao mundo, à convivência entre diferentes, mas guardando a união em tor­no da mesma fé em Jesus. Sua identidade era diferente daquela das co­munidades ainda ligadas às sinagogas e ao templo. Foram chamadas de cristãs justamente por isso. Já não eram apenas judeus que aceitavam Jesus como o Messias. Mas formavam uma nova religião que já não concordava mais em amoldar a Boa-Nova de Jesus à tradição judaica.

Estava criada a primeira grande crise no diversificado movimen­to cristão primitivo. A assembléia de 49 é fruto dessa crise. Você pode ler duas versões sobre o concilio. A mais antiga e certamente a mais real está em G1 2,1-10. A outra está em At 15,1-29 e segue as intenções teológicas de Lucas.

Enquanto as comunidades de Antioquia praticavam a solidarie­dade para com as comunidades pobres da Judéia a fim de não passarem fome (At 11,29-30), os representantes das au­toridades de Jerusalém, que iam a Antio­quia, continuavam provocando agitação por causa da liberdade dos helenistas fren­te à lei e frente à comunhão de mesa com os gregos (At 15,1-2; G1 2,4-5.11-14).

Decidiram, então, enviar uma delegação a Jerusalém para acabar com essa prática e chegar a um acordo, dividindo responsabilidades.

Segundo o que Paulo escreveu uns 7 anos depois do acontecido, os helenistas que subiram a Jerusalém foram Barnabé, Tito e o próprio Paulo (G1 2,1-10). Eles conseguiram fazer valer seus argumentos em favor da comunhão de mesa com os incircuncisos diante das lideranças das igrejas de Jerusalém. Estas seriam as responsáveis para a evangeli- zação dos circuncisos, enquanto as igrejas helenistas seriam as respon-

"É pela graça do Senhor Jesus que

acreditamos ser salvos, exatamente como eles."

(At 15,11)

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saveis pelo anúncio do evangelho junto aos incircuncisos. A eles não seria imposta a circuncisão. Este foi o grande avanço desse concilio.

Tiago,Pedro eJoão,as “colunas” dejerusalém, “nadaacrescentaram” v selaram um acordo com a equipe que viera de Antioquia (G1 2,6.9). .Apenas pediram a Paulo que continuasse fazendo coleta solidária para as comunidades pobres da Judéia (G1 2,10).

O argumento decisivo foi o mesmo usado por Paulo em Antio­quia da Pisídia. A nova justiça de Deus não vem pelas obras da Lei de Moisés, mas é concedida gratuitamente a quem crê (At 13,38-39; 15,11).

O fato de a tese dos helenistas estar, segundo o plano teológico dos autores de Atos, na boca de Pedro é para dar maior força ainda ao argumento, uma vez que Pedro é representante dos apóstolos e, por isso, confere autoridade ao critério da liberdade do evangelho (At 15,11).

No entanto, as “colunas” dejerusalém editaram um decreto, cuja intenção foi harmonizar as tensões. Para que houvesse uma convivên­cia possível, queriam que, nas comunidades mistas, os incircuncisos se abstivessem pelo menos de práticas mais chocantes para judeus-cris- lãos, isto é, “das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas” (At 15,20.29).

Provavelmente, esse decreto é posterior ao concilio, de cujo acordo não faziam parte essas restrições. Para Paulo, isso foi uma coisa inacei­tável. Era uma volta à escravidão da lei (G1 2,4; 5,1). E não deve ter aceitado as proibições impostas aos gregos. No entanto, Barnabé e João Marcos devem ter deixado a “liberdade do evangelho” e se submetido à decisão da capital. Como já vimos, essa deve ser a razão histórica pela qual Paulo rompeu com seus companheiros da primeira missão evan- gclizadora. Os autores de Atos tentam amenizar a tensão, desviando das verdadeiras razões (At 15,36-40).

Então, Paulo organiza uma nova equipe e segue seu próprio rumo.

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Conclusão da Ia parte

Havia problemas. E não poucos. Mas eram comunidades mnis democráticas nas primeiras décadas do movimento cristão. A centrali­zação do poder e a conseqüente hierarquização apareceram somente décadas depois, como veremos no próximo volume.

Cada comunidade podia expressar sua fé de acordo com seu modo de vida. Especialmente as igrejas fora da Judéia não tiveram medo do diferente. Souberam ser abertas, acolhendo e integrando pessoas de cultura grega. Ao mesmo tempo, souberam encarnar a Boa-Nova de Jesus nas diversas culturas. Havia uma riqueza de diversidades. A varie­dade era entendida como expressão do dom do Espírito através do batismo. Nesses 20 primeiros anos das jovens igrejas, ainda não havia a imposição de um mesmo modelo de pensamento, de doutrina. Tam­bém havia visões diferentes sobre Jesus. Vivia-se a unidade na plurali­dade.

Vimos como a experiência com Jesus vivo em meio às comuni­dades possibilitou a continuidade do movimento de Jesus, respaldada por uma nova interpretação das Escrituras.

A partir daí, surgiram inúmeras e variadas experiências cristãs primitivas. Vimos algumas delas: as comunidades do Discípulo Amado, de Marcos, de Jerusalém e dos helenistas. Havia diferenças entre elas na forma de organizar as comunidades, de compreender a missão de Jesus e de se posicionar diante das instituições judaicas e romanas. Mas a fé na presença de Jesus, o Cristo e Senhor, as unia.

Na parte que segue, estudaremos os primeiros escritos do Se­gundo Testamento, isto é, as cartas de Paulo, bem como a prática pasto­ral de sua equipe missionária nas comunidades helenistas.

No volume seguinte, veremos como, nas últimas décadas do pri­meiro século, os conflitos e as perseguições foram aumentando. E as comunidades não tiveram mais força suficiente para resistir. Foram sc

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institucionalizando. O patriarcado foi sendo assimilado aos poucos e o projeto de comunidades de iguais foi se perdendo. A perseguição roma­na terá sido uma das razões fundamentais para a hierarquização, a patri- nrcnlização, a uniformidade e a unificação da doutrina.

Quando já havia uma instituição centralizada, começou-se a in­sistir na doutrina, definindo o que era ortodoxo e o que era herético. Os próprios evangelhos nos revelam como havia diversidade quanto ao modo de compreender Jesus. Cada um tem sua teologia, sua maneira de apresentar o Messias, sua forma de entender a missão de seus seguido- t v s .

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Para orar e aprofundar

• At 4,24-30: Oração da comunidade depois da libertação de Pe­dro e de João.

• At 8,26-40: O evangelho chega aos africanos.• At 9,1-25: Paulo, de perseguidor a evangelizador.• F1 2,6-11: Jesus, o servo que passa pela cruz, é o Senhor.

Sugestões de leitura

COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. V. I. Petrópolis: Vozes. HOORNAERT, Eduardo. O Movimento de Jesus. São Paulo: FTD. STRÕFIER, Marga. A Igreja na Casa dela. Ensaios e Monografias, n. 12.

São Leopoldo: IEPG.W AA. Cristianismos Originários. RIBLA, n. 22. Petrópolis: Vozes. W AA. Cristianismos Originários Extrapalestinos. RIBLA, n. 29. Petrópolis:

Vozes.W AA. Fé em Deus, f é na vida: a boa notícia segundo a comunidade de João. na

periferia do mundo. Série A Palavra na Vida, n. 143/144. São Leopoldo: CEBI.

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Parte II:Paulo e as comunidades helenistas

Introdução

“A graça do Senhor Jesus esteja convoscol Com todos vós esteja o meu amor em Cristo Jesus. ”

(ICor 16,23-24)

A parte anterior foi dedicada ao estudo dos vinte primeiros anos da vida das comunidades cristãs primitivas, isto é, mais ou menos do ano 30, quando Jesus foi crucificado, até pelo ano 49, quando foi reali­zado o primeiro concilio em Jerusalém.

Esses anos correspondem à primeira parte do período conhecido como época apostólica que vai desde o ano 30 até em torno de 67, quando provavelmente os primeiros seguidores de Jesus já haviam morrido ou haviam sido mortos. E a primeira geração de seguidoras e seguidores de Jesus de Nazaré. São aqueles que o conheceram ou que aderiram a ele ainda nos primeiros anos do movimento cristão.

Vimos que havia problemas nas comunidades daqueles anos. No entanto, convém lembrar que, nas primeiras décadas do movimento cristão, as comunidades ainda estavam em busca de seus modelos de organização. A centralização do poder e a conseqüente hierarquização apareceram, com mais clareza, a partir da segunda geração de cristãos, como veremos no próximo volume.

Cada comunidade podia expressar sua fé de acordo com seu modo de vida. Especialmente as igrejas fora da Judéia não tiveram medo do diferente. Souberam ser abertas, acolhendo e integrando pessoas de cultura greco-romana. Ao mesmo tempo, souberam encarnar a Boa-

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Nova de Jesus nas diversas culturas daquele tempo. Havia muita diversidade. A variedade era entendida como expressão do dom do Espírito através do batismo. Nesses vinte primeiros anos das jovens igrejas, ainda não havia a imposição de um modelo único de pensamento, de doutrina. Também havia visões diferentes sobre Jesus. Vivia-se a riqueza e as tensões da pluralidade.

A partir da vivência com Jesus ressuscitado, surgiram inúmeras e variadas experiências cristãs primitivas. Vimos algumas delas: as comu­nidades do Discípulo Amado, de Marcos, de Jerusalém e dos helenistas. Havia diferenças entre elas na forma de organizar-se, de compreender a missão de Jesus e de se posicionar diante das instituições judaicas e romanas. Mas a solidariedade e a fé na presença de Jesus, o Cristo e Senhor, as uniam.

De acordo com nossa divisão, a segunda parte da época apostólica vai desde a assembléia de Jerusalém até aproximadamente 67, quando es­toura a guerra dos judeus contra a ocupação romana. Esse período é o tema desta parte.

Depois do concilio de Jerusalém, as comunidades da Gaüléia e arredores, bem como as da Judéia, certamente continuavam sua vivên­cia fraterna e o anúncio do Projeto de Jesus de Nazaré da mesma forma como vimos na parte anterior. Carecemos de maiores informações so­bre elas nos primeiros anos depois do concilio.

Porém, foi diferente com as comunidades helenistas. Esse é o tempo áureo das equipes missionárias enviadas pelas comunidades de Antioquia para anunciar a Boa-Nova e organizar comunidades em ci­dades greco-romanas. Paulo foi o coordenador de uma grande equipe de missionários e missionárias. E nesse período em que a Palavra ultra­passa os limites do Antigo Oriente e chega à Europa.

Além da equipe de Paulo, havia outros missionários. E o caso da lundação das comunidades de Roma. Embora tenha escrito uma carta n elas, não foram fundadas por ele.

Não conhecemos nenhum livro cristão anterior à assembléia de Jerusalém. No entanto, é na época imediatamente posterior que nasce­ram os primeiros escritos do Segundo Testamento. São as cartas de Paulo e de sua equipe de colaboradores.

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De saída, queremos deixar daro que há cartas posteriores atribuí­das a Paulo, costume muito comum na época. São as cartas pós-pauli- nas ou dêutero-paulinas. Elas serão objeto de estudo no próximo volu­me. Seis epístolas tiveram sua autenticidade literária discutida ou con­testada. Muitos estudiosos consideram cartas pós-paulinas e que foram escritas nas datas aproximadas, como segue: 2Ts (80), Cl e Ef (90). A grande maioria dos biblistas aceita como dêutero-paulinas l-2Tm e Tt (posteriores ao ano 100). Depois de sua morte, discípulos de Paulo, valendo-se de sua liderança, teriam redigido cartas, colocando-as sob o nome dele.

Nesta parte, faremos um estudo das cartas autênticas da equipe de Paulo. Todos os críticos admitem que sete cartas de Paulo são autên­ticas lTs (51), ICor, Gl, F1 e Fm (54-56), 2Cor (55-56) e Rm (56).

Inicialmente, veremos algumas informações históricas sobre a época, além de situar as viagens missionárias das igrejas de Antioquia nos anos 50. Depois, refletiremos sobre a estratégia pastoral da equipe de Paulo. Além de analisar alguns conflitos enfrentados por ele, deter- nos-emos na análise de preconceitos em relação ao Evangelho segundo Paulo, tais como: “Paulo reprimiu as mulheres nas suas igrejas”, “Paulo foi conivente com a opressão do império, chamando à submissão às autoridades”, “Paulo era favorável à escravidão” e “Paulo foi moralis­ta”. Por fim, faremos uma pequena introdução a cada uma das cartas autênticas.

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Um pouco de história

“Não és, então, o egípcio que, ultimamente, sub levou e arrastou ao deserto quatro m il sicários?”

(At 21,38)

41-54: Imperador Cláudio.48-52: Ventídio Cumano, procurador na Palestina.48-92: Herodes Agripa II, filho de Agripa I, reina sobre algumas

regiões no norte da Palestina.49: Um edito do imperador Cláudio ordenou a expulsão dos judeus

de Roma (At 18,2).50-52: Segunda viagem da equipe de Paulo: Derbe, Listra, Icô-

nio, Antioquia da Pisídia, Filipos, Tessalônica, Atenas, Co- rinto, Cesaréia, Jerusalém (At 15,35-18,22).

51: Primeiro escrito do Segundo Testamento: Primeira Carta aos Tessalonicenses.

52-53: Galião, procônsul da Acaia (At 18,12-17).52-60: Antonio Félix, procurador romano na Palestina (At 23,24­

24,27).Anos 50 e 60: Continuam as tradições orais nas comunidades.53-57: Terceira viagem da equipe de Paulo: Galácia, Efeso, Fili­

pos, Trôade, Mileto, Tiro, Cesaréia, Jerusalém (At 18,23­21,16).

54-56: Primeira Carta aos Coríntios e as cartas aos Gálatas, Fi- lipenses e Filemon.

54-68: Nero assume no lugar do imperador Cláudio.55-56: Segunda Carta aos Coríntios e a Carta aos Romanos.58-59: Paulo, prisioneiro em Jerusalém e Cesaréia (At 21,15-26,32).60: Paulo é levado preso para Roma (At 27,1-28,10).60-62: Pórcio Festo, procurador romano na Palestina (At 24,27-26,32).

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61-62: Prisão domiciliar em Roma (At 28,1 lss).62: Tiago, itmão do Senhor, é apedrejado a mando do sumo sa ­

cerdote Anã. Albino, procurador romano na Palestina.64: Conclusão das obras de ampliação do templo que haviam inici

ado na época de Herodes Magno (37-4 a.C.).64-65: Nero incendeia um bairro de Roma para culpar os cristãos.

Perseguição promovida por Nero. Provável assassinato de Paulo e Pedro. A poca lip se 4-11.

64-66: Géssio Floro, procurador romano na Palestina.66-73: Revolta judaica contra o Império Romano. Fuga dos cris­

tãos de Jerusalém.68: Com o suicídio de Nero, termina a dinastia Júlio-Cláudia ou dos

Césares.68-69: Galba, Otônio, Vitélio e Vespasiano disputam o trono do

poder imperial.69-70: Início da dinastia dos Flávios com Vespasiano, imperador. 70: Destruição de Jerusalém e do templo por Tito, general romano. Em torno de 70: E van gelh o s e gu n d o M arcos.

Herodes Agripa II (48-92), filho de Agripa I, reina sobre algu­mas regiões no norte da Palestina, tendo também o poder de nomear e destituir o sumo sacerdote do templo de Jerusalém. Seu reino era apa­rente, uma ve2 que o governo de toda a Palestina estava nas mãos dos romanos. Segundo o Livro de Atos, Agripa II mantém, junto com sua irmã Berenice, encontros com Paulo por ocasião de sua prisão em Ce- saréia (At 25,13-26,32). Embora os romanos o mantivessem formal­mente no cargo até sua morte, de fato, seu governo terminou com a derrota dos judeus em 70.

Em 49, o imperador Cláudio (41-54) expulsou os judeus, cris­tãos ou não, de Roma (At 18,2). O motivo certamente foram os confli­tos entre judeus e cristãos, umà vez que estes anunciavam Jesus de Na­zaré como o Cristo, o Messias de Israel. Anos mais tarde, Nero revogou esse decreto, possibilitando a volta de judeus para a capital do império. Assim, podemos encontrar Priscila e Aquila novamente em Roma, quan­

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do Paulo escreve a Carta aos Romanos (Rm 16,3-5). Diferentemente de seu antecessor Calígula, Cláudio não exigiu honras divinas.

Entre os anos 50 e 52, devemos situar a segunda viagem da equi­pe de Paulo (At 15,35-18,22). E entre 53 e 57, realizou-se sua terceira viagem (At 18,23-21,16).

Em 54, Cláudio foi envenenado por Agripina, uma de suas mu­lheres. Ela fez imperador o seu filho Neto (54-68), que era enteado de

Cláudio. Nero firmou-se no poder depois de afastar do trono o filho legítimo de Cláudio, Britânico, a quem mandou ma­tar anos mais tarde. No ano 55, acrescen­tou parte da Galiléia e da Peréia ao reino de Herodes Agripa II.

Diferentemente de seu antecessor Cláudio, porém como Calígula, Nero assumiu a ideologia da filiação divina do rei, apresentando-se com esplendor divino. Imprimiu sua ima­gem nas moedas como se fosse Apoio, divindade grega também cultu­ada pelos romanos.

Em 56, um judeu anônimo, vindo do Egito, reuniu em torno de 4 mil pessoas no deserto e prometia fazer cair os muros de Jerusalém. At 21,38 menciona esse egípcio. Segundo o historiador Josefo, o procu­rador romano Félix (52-60) dispersou e massacrou seu movimento, quando se encontrava no Monte das Oliveiras. A crueldade de Félix levou o movimento de resistência dos zelotas a aumentar sua simpatia no meio do povo.

No governo de Pórcio Festo (60-62), os zelotas continuam pro­movendo assassinatos de soldados romanos. E em 62, Tiago, “irmão do Senhor”, foi apedrejado a mando do sumo sacerdote Anã.

Nos primeiros anos, Nero governou sem muita brutalidade. Mas essa brandura não durou muito. Mandou matar sua mãe Agripina, bem como sua própria esposa Otávia. Mandava matar qualquer pessoa que se opunha a ele. A partir de 64, perseguiu as comunidades cristãs de Roma, acusando-as de terem provocado um incêndio em um bairro da capital. Sabe-se, no entanto, que ele mesmo produziu o incêndio para construir naquele lugar um suntuoso palácio. Notabilizou-se por sua

"É impossível calcular o número de bandidos

que ele crucificou e aprisionou." (Flávio Josefo)

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brutalidade e orgias. Entre os muitos cristãos qu~ mandou matar, t*n contram-se Paulo e Pedro, assassinados em torno do ano 65.

Se nos anos 50 temos os primeiros escritos do Segundo Testa mento, isto é as cartas autênticas de Paulo (Rm, l-2Cor, Gl, Fl, 1'1's c Fm), nos anos 60 certamente devem ter surgido coletâneas escritas so­bre milagres, parábolas, discursos de Jesus e especialmente sobre sua paixão, morte e ressurreição. Nos últimos anos dessa década, já durante a guerra judaico-romana, deve ter sido composto o primeiro evangelho escrito. É o Evangelho segundo Marcos.

A resistência judaica contra o impérioNo ano 66, os zelotas iniciaram um movimento revolucionário

nacionalista contra a opressão romana e as elites judaicas locais. (Sobre os zelotas, você pode reler as páginas 166 a 168 do volume 6 desta Introdução). A resistência contra os romanos já vinha crescendo antes dessa data, inclusive em outros lugares do império, como Alexandria no Egito onde foi violentamente reprimida.

No entanto, a guerra estourou em Jerusalém quando o procura­dor romano Géssio Floro (64-66) fez um saque de 17 talentos do te­souro do templo. Diante dos protestos, mandou crucificar alguns re­beldes em Jerusalém. Isso aumentou ainda mais o ímpeto da resistência judaica que, sob o comando dos zelotas, conseguiu expulsar dejerusa­lém os soldados do procurador Floro.

Apesar de o sumo sacerdote, Herodes Agripa II, e os fariseus pedirem moderação aos rebeldes, não conseguiram deter a resistência armada. Os revoltosos decretaram a independência diante dos roma­nos e estabeleceram um governo autônomo em Jerusalém. Foi suspen­so o sacrifício diário pelo imperador no altar do templo.

A repressão não tardou. O legado romano da Síria, Céstio Galo (63-66), atacou Jerusalém. Porém, os rebeldes resistiram bravamente c Céstio teve de bater em retirada com pesadas perdas para seu exército. As vitórias sobre as tropas romanas aumentaram o entusiasmo entre os judeus, que se prepararam para a defesa. Ainda em 66, estouraram re­voltas em vários pontos da Palestina, estendendo-se até a Galiléia. O

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sumo sacerdote Anã nomeou o jovem sacerdote e fariseu Flávio Josefo para comandar a resistência na Galiléia.

No ano seguinte, Nero confiou a repressão da resistência aos generais Vespasiano e seu filho Tito. Com um exército de mais de 60 mil homens, conseguiram retomar boa parte da Galiléia, obrigando os guerreiros judeus a se retirarem para as fortalezas. Flávio Josefo foi preso por Vespasiano e levado a Roma. Desse modo, toda a Galiléia estava novamente sob o controle romano.

João de Gíscala, um dos líderes da rebelião na Galiléia, fugiu com um pequeno grupo para Jerusalém, apoderando-se da área do templo. O restante de Jerusalém continuava sob o controle de Simão Bargiora. Os dois grupos consideravam-se inimigos e lutavam entre si.

Pelo ano 68, a tendência liderada por João de Gíscala e apoiada pelos idumeus destituiu o governo rebelde anterior em Jerusalém. Quem estava indeciso era forçado a entrar na guerra ou era morto, como foi o caso do sumo sacerdote Anã, de seu irmão e de muitos nobres. Muitos judeus fugiram da cidade. Os zelotas queimaram o edifício dos arquivos públicos. Ali, estavam arquivados os controles das dívidas dos campo­neses pobres. Isso confirma a hipótese de que a revolta não era somen­te contra o império, mas tinha um caráter social. Um de seus objetivos foi a libertação dos camponeses endividados. Sinal que era também uma revolução contra as elites judaicas é que os líderes da rebelião eram

do interior. Sua base social era o cam­pesinato. Podemos, portanto, perceber que a revolta também foi contra as eli­tes locais. Não é por acaso que muitos nobres, inclusive o sumo sacerdote, tenham sido mortos pelos revoltosos.

Muita gente das comunidades cristãs também abandonou Jerusalém e, segundo uma tradição posterior,

uma parte estabeleceu-se em Pela a leste do Jordão. Durante a guerra judaico-romana, a maioria dos cristãos da Judéia deverá ter fugido da região. Lc 21,20-28 deve ser uma referência a esse momento e à poste­rior destruição da cidade pelos romanos em 70. Confira!

"Então, os que estiverem na Judéia fujam para os

montes, os que estiverem dentro da cidade saiam, e os que estiverem nos

campos não entrem nela."(Lc 21,21)

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Enquanto isso, Vespasiano e Tito retomaram, aos poucos, as re­giões sob o controle dos zelotas. Tomaram conta da costa mediterrânea e também do vale do Rio Jordão. Em Qumrã, perto no Mar Morto, destruíram as comunidades dos essênios (volume 6, páginas 169-171). Quando iam cercar Jerusalém, souberam da morte de Nero, que havia se suicidado quando houve uma conspiração contra ele. Por essa razão, o cerco foi adiado para mais tarde.

Muitos romanos suspeitaram de que a morte de Nero não era verdadeira e que ele teria se escondido no Oriente. A partir dessa sus­peita, nasceu a expectativa de que ele voltaria com o apoio do exército dos partos, vindo da região da Mesopotâmia. Com base nessa lenda, os cristãos dos anos 90 interpretaram a volta do opressor Nero no tirano imperador Domiciano (81-96). Leia Ap 13 e repare os w . 3 e 13!

Com o suicídio de Nero em 68, chega ao fim a dinastia dos Césa­res também chamada de dinastia Júlio-Cláudia. Estouraram lutas em inúmeras partes do império. Durante pouco mais de um ano, disputa­ram o poder os generais Galba (68), Otônio (69), Vitélio (69) e Vespa­siano. Este último consegue se firmar no poder, depois dos sucessivos avanços na retomada da Palestina das mãos dos rebeldes judeus e de­pois de restabelecer a ordem no império. A partir de 69, iniciou a dinas­tia dos Flávios, começando por Tito Flávio Vespasiano, mais conheci­do por Vespasiano (69-79) e estendo-se até Domiciano (81-96).

Tito, filho de Vespasiano, substitui o pai no comando das tropas romanas na repressão contra a resistência judaica. Em Jerusalém, mais uma vez, troca-se o comando dos rebeldes por causa de disputas inter­nas. Em 69, Simão Bargiora derrota João de Gíscala, retomando a lideran­ça da resistência.

No entanto, o general Tito con­tinua investindo pesado contra os re­voltosos. Cerca as fortalezas do He- rodion a nordeste de Jerusalém, do Maqueronte a leste do Mar Morto e de Massada no sul, a oeste do Mar Morto, pois continuavam sob o controle dos rebeldes.

Depois da Páscoa de 70, com mais de 20 mil soldados, Tito ataca

"Quando virc/es Jerusalém cercada de exércitos, sabei

que está próxima o sua desolação." (Lc 21,20)

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Jerusalém. Lc 21,20 e 19,43-44 se referem ao cerco da capital. Não deixe de ler!

Somente nesse momento, diante do ataque iminente dos roma­nos, é que se unem os dois grupos de judeus que disputavam a lideran­ça em Jerusalém. Enquanto os rebeldes esperavam uma intervenção apocalíptica de Deus na última hora, as tropas de Tito conquistam, aos poucos, as muralhas e a fortaleza Antônia. Vários guerrilheiros judeus capturados foram crucificados. E em agosto do mesmo ano, invadem o templo. Tito oferece sacrifícios ao imperador e às divindades romanas e entra no Santo dos Santos. Veja como Mc 13,14 certamente é uma refe­rência a esse fato!

Os romanos incendiaram o templo, transformando-o em cinzas e ruínas. O candelabro de sete braços bem como a mesa dos pães de oblação, que estavam no Santo do templo, foram levados para Roma e exibidos como troféus da vitória no ano seguinte.

Em setembro de 70, conquistam a cidade alta e o palácio de He­rodes que estava nas mãos dos rebeldes. Também as casas foram des­truídas. Deixaram em pé somente três torres que serviram de abrigo para os soldados romanos que aí ficaram para vigiar a cidade em ruínas. Quem não foi morto na guerra, foi vendido como escravo ou condena­do a trabalhar em obras públicas de interesse do império. Simão Bargi- ora e João de Gíscala, os líderes dos rebeldes em Jerusalém, foram leva­dos a Roma, onde foram mortos em 71. Sua execução se deu enquanto Vespasiano e Tito desfilavam triunfantes ao lado dos despojos do tem­plo. Em Roma, na entrada do foro romano, ainda hoje existe o Arco de Tito que lembra a vitória sobre a resistência judaica e a destruição de Jerusalém.

Com a destruição de Jerusalém e do templo, os judeus perderam suas principais referências visíveis.

De 71 a 73, os romanos derrotam, uma a uma, as resistências que ainda continuavam. Em 71 e 72, foram as fortalezas do Herodion e do Maqueronte. E em 73, foi derrotada a última fortaleza, a de Massada, que ficava sobre uma rocha de 80 metros de altura próxima ao Mar Morto. Liderados por Eleazar, os mais de 900 revoltosos de Massada preferiram degolar-se uns aos outros para não se entregarem ao exérci­

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to romano. Apenas duas mulheres e cinco crianças sobreviveram ao suicídio coletivo. É que haviam se escondido numa cisterna seca.

Derrotada a última resistência judaica, Vespasiano separou a Ju­déia da Síria, transformando-a em província imperial. O governador residia novamente em Cesaréia, enquanto a décima legião tinha seu quartel em Jerusalém.

Na década de 60, portanto, vários acontecimentos abalaram a vida das igrejas cristãs. Um deles foi a perseguição de Nero aos cristãos de Roma a partir de 64. Outro foi o massacre de judeus que se rebelaram em várias partes do império, sobretudo no Egito em 66. Um terceiro acontecimento foi a guerra judaico-romana (66-73) que teve como ponto alto a destruição dejerusalém e do templo. Um quarto fator que agravou a crise das comunidades foi a morte dos apóstolos e dos missionários da primeira geração cristã. Tudo isso contribuiu para que as igrejas entras­sem numa nova fase. Esse novo momento será estudo no próximo volume.

A vida de Paulo depois do concilio de 49

“Eis aqui os homens que revolucionamo mundo inteiro. Todos eles agem contra os

editos de César, afirmando que há um outro rei, Jesus. ”(cf. At 17,6-7)

Na primeira parte, você já leu sobre Paulo e a primeira missão da equipe de Antioquia (p. 80-82), bem como sobre a assembléia dejeru­salém em 49 (p. 88-90). Não seria bom reler essas páginas?

Releia também os conflitos nas comunidades helenistas de Anti­oquia depois do concilio dejerusalém (p. 86-87)!

Antes de passarmos à descrição de novas viagens de Paulo, suge­rimos que você leia F1 3,5-6 e 2Cor 11,22-33. Esses textos são uma auto-apresentação feita pelo próprio Paulo.

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Segunda viagem de Paulo (50-52)Lembramos novamente que os autores de Atos, mais que elabo­

ra r uma história das comunidades primitivas, querem fazer uma teolo­gia da caminhada das igrejas. Por isso, a imagem que pintam de Paulo, por exemplo, não confere muito com o Paulo das cartas, como ainda veremos.

Pelo ano 50, depois de desentender-se com Barnabé, que aderiu às restrições impostas pela Igreja de Jerusalém (G1 2,13), Paulo partiu para mais uma viagem missionária. Segundo o Livro de Atos, é a segun­da viagem de Paulo e de seus colaboradores, feita nos anos 50 a 52 (At 15,36-18,22).

Saindo mais uma vez de Antioquia, referência das igrejas helenis­tas a 460 km de Jerusalém, Paulo e Silas põem os pés na estrada em direção à Ásia Menor (cf. At 15,36-40). Silas era um cristão influente das comunidades de Jerusalém, tendo sido enviado a Antioquia, junta­mente com Paulo, Barnabé e Judas, para comunicar as decisões da as­sembléia de Jerusalém (At 15,22). Paulo o chama de Silvano (2Cor 1,19; ITs 1,1).

Passando por Tarso, cidade natal de Paulo que ficava a 140 km de Antioquia, visitam as comunidades fundadas durante a primeira viagem da equipe missionária. Dessa forma, confirmaram as igrejas de Derbe,I istra, Icônio e Antioquia da Pisídia.

Na comunidade de Listra, encontram um cristão atuante. Era Timóteo. Sua mãe era judia e seu pai era grego. Depois de circuncidá-lo, Paulo o incorporou em sua equipe (At 16,1-3). Tornou-se um dos cola­boradores mais importantes de Paulo. Além das duas cartas a Timóteo, você pode ainda ler sobre ele nos seguintes textos: At 17,13-15; 18,5; 19,22; 20,4; Rm 16,21; ICor 4,17; 16,10-11; 2Cor 1,1.19; F11,1; ITs 1,1; 3,2.6; Fm 1!

Com a equipe ampliada, seguem sua missão, fundando comuni­dades na Frigia e na Galácia (At 16,6). Entre os gálatas, Paulo ficou doente e foi muito bem acolhido (G1 4,13-15).

Mas, segundo o Livro de Atos, o principal objetivo da segunda viagem era levar a Boa-Nova de Jesus à Europa (cf. At 16,6-10).

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Por isso, partiu para Trôade (At 16,11) de onde seguiu para Fili- pos na Macedônia (v. 12). E a primeira cidade da Europa que é evange- lizada. Era uma das principais cidades da região. Ali, converte a família de Lídia, fundando uma igreja doméstica em sua casa (w. 13-15). Mais tarde, estando preso em Éfeso, Timóteo e Paulo escrevem uma carta aos filipenses (F11,1.7.12-14).

Em Filipos, Paulo cura uma jovem escrava, diminuindo o lucro de seu senhor. Por causa disso, Silas e Paulo são presos e torturados (At 16,16-24).

Uma vez livres (At 16,25-40), seguem para Tessalônica, principal cidade da Macedônia (At 17,1). Era uma metrópole cosmopolita for­mada por pessoas de origem grega, romana e oriental, incluindo aí ju­deus. Flavia várias religiões nessa cidade. Silas e Paulo organizam ali comunidades cristãs. E interessante notar que, além de judeus e adora­dores de Deus, isto é, simpatizantes do Judaísmo, há muitos gregos convertidos diretamente de outras práticas religiosas (At 17,4; lTs 1,9). Porém, um grupo de judeus logo percebeu que a nova religião começa­va a revolucionar o mundo inteiro, contestando o poder do imperador romano, pois anunciavamjesus como único rei e senhor (cf. At 17,6-7).

Em conseqüência disso, houve perseguição e foram parar na pri­são (At 17,8-9). Uma vez livres, Silas e Paulo fugiram para a Beréia. Na companhia de Timóteo, fundaram ali igrejas cristãs. Mas a perseguição vinda de Tessalônica não tardou. Paulo fugiu para Atenas, enquanto seus colaboradores permaneceram em Beréia, indo em seguida juntar- se a Paulo (At 17,10-15). Como as perseguições às comunidades de Tessalônica continuavam, Paulo enviou-lhes Timóteo desde Atenas, para fortificá-las e exortá-las na fé (lTs 3,1-5).

F.tn Atenas, centro cultural do mundo grego, Paulo se depara com inúmeros cultos religiosos e várias filosofias. Segundo o Livro de Atos, Paulo debateu com os filósofos epicureus e estóicos na agorá, isto é, na praça onde havia o mercado público. O mesmo teria ocorrido no Areópago, o tribunal de Atenas, sem muito êxito (At 17,16-34). No entanto, Paulo nunca faz referência a esse fato em suas cartas. É mais provável que não se tenha demorado em Atenas, indo diretamente para Corinto.

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Em Corinto, cidade que tinha em torno de 400 mil habitantes, permaneceu 18 meses (At 18,11). Fiel à sua opção pelos não-judeus e pelos pobres, Paulo entrou em Corinto pelo mundo do trabalho. Jun­tou-se a Priscila e Aquila, colegas na profis­são de tecelões. Fabricavam tecidos resisten­tes para barracas, tendas (At 18,3), para man­tos de pastores ou para velas de navios. Ao mesmo tempo em que trabalha, Paulo dedi­ca-se à evangelização, integrando-sc no tra­balho pastoral que Aquila c Priscila certa­mente já vinham realizando (At 18,1-4). Pau­lo é um trabalhador que evangeliza.

No entanto, quando Silas e Timóteo chegam da Macedônia, trazendo auxílio financeiro dos filipenses, a equi­pe se dedica integralmente à organização de comunidades (At 18,5; 2Cor11,8-9; F1 4,15). Embora sofressem oposição, não se calaram, conse­guindo a adesão de judeus e de muitos gregos à fé emjesus (At 18,6-11). A maioria dos participantes das igrejas de Corinto era gente pobre e es­crava (cf. ICor 1,26).

A partir de Corinto, Priscila e Aquila passam a ser grandes cola­boradores na equipe de Paulo. A casa deles acolhia uma igreja domésti­ca, tanto em Corinto como, mais tarde, em Efeso (ICor 16,19) e Roma (Rm 16,3-5). Paulo chama também Priscila de Prisca. Você pode ler a respeito desse casal missionário em At 18,18-26; Rm 16,3-4; ICor 16,19.O tema da igreja doméstica é central, fundamental para termos uma com­preensão mais clara e concreta, menos espiritualista e menos clericalista da pessoa, da mensagem e da prática de Paulo. E uma igreja dentro da vida e a serviço da dignidade das pessoas que nela se reúnem. Não tanto em torno de dogmas, leis e doutrinas, mas é uma forma de vida bem concreta, em torno de uma mesa, partilhando pão, bens e serviços. A igreja doméstica tem uma mensagem de vida para toda a sociedade.

Pelo ano 51, quando Timóteo trouxe boas notícias de Tessalônica (ITs 3,6), é em Corinto que Paulo, Silvano e Timóteo elaboram o primeiro escrito do Segundo Testamento. E a Primeira Carta aos Tessalonicenses.

Mais tarde, Paulo teve que enfrentar muitas crises nas comunida-

"E como exerciam o mesmo ofício,

ficou em casa deles, onde trabalhava.

Tinham a profissão de fabricantes de tendas."

(At 18,3)

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dcs de Corinto. Foi visitá-las mais vezes. Enviou Timóteo (ICor 4,17) e depois Tito (2Cor 12,18), dois de seus colaboradores, a fim de acalmar os ânimos e buscar a unidade nas igrejas que haviam se dividido. Voltaremos a esse assunto, quando analisarmos as cartas àquelas comunidades.

Apesar de ser perseguido por judeus e de ser levado diante de Galião, procônsul na província romana de Acaia, Paulo permaneceu ainda algum tempo em Corinto. Depois foi para Éfeso e para Antio­quia da Síria, via Cesaréia e, possivelmente, Jerusalém. Na ida para Efe- so, Priscila e Áquila se juntaram à sua equipe (At 18,12-22).

Terceira viagem de Paulo (53-57)A terceira viagem é narrada em At 18,23-21,16. Saindo nova­

mente de Antioquia, a equipe missionária de Paulo passou outra vez pelas comunidades da Frigia e da Galácia, confirmando todos os discí­pulos (At 18,23).

Depois se dirigiu a Éfeso (At 19,1), onde permaneceu em torno de três anos. Éfeso era uma das mais belas cidades do império. Era, ao mesmo tempo, um centro político, comercial e religioso. Era o entron­camento das rotas comerciais entre o ocidente e o oriente, com uma população de diferentes procedências.

Além de ser a capital da província romana da Ásia, encontrava-se nela um importante templo de Artemis, lugar de peregrinações (At19,24.28). Era a Deusa grega da caça, dos ciclos da vida e da mãe terra. Em sua figura, associam-se as figuras da Deusa Cibele da Ásia Menor, da As tarte fenícia e da Ishtar mesopotâmica. Era também chamada de Selene pelos gregos e de Diana pelos romanos.

Em Éfeso, Paulo se junta a Priscila e Áquila que já estavam orga­nizando comunidades nessa cidade (At 18,24-19,10). Paulo cura várias pessoas e o temor se apoderou de muitos e foi glorificado o nome do Senhor Jesus (At 19,11-20).

Flouve um grande conflito com os ourives que lucravam com a fabricação de estatuetas da Deusa Artemis. Com a adesão a Jesus, mui­tos deixavam de comprar imagens, diminuindo o lucro dos artesãos. Os adeptos da Deusa quase lincharam Gaio e Aristarco, colaboradores de Paulo em Éfeso. Você pode conferir esse episódio em At 19,23-40.

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Nessa cidade, Paulo esteve preso em conseqüência do seu traba­lho de evangelização. Somente por milagre escapou da morte (cf. 2< ",nr1,8-10; F11,12-26).

Sua prisão é sinal de que a nova prática das comunidades cristãs era uma ameaça às estruturas de opressão não só do Império Romano, mas também das religiões que estavam a serviço do enriquecimento de poucos ou da exclusão de quem era considerado indigno como escra ­vos, mulheres, pobres e estrangeiros.

De Éfeso, Paulo e seus colaboradores escreveram as cartas aos Gálatas, aos Coríntios e provavelmente aos Filipenses e a Filemon.

Éfeso se tornou, depois de Jerusalém e Antioquia, um terceiro centro de difusão do evangelho.

Depois de mais ou menos três anos em Éfeso, devido aos confli­tos com as elites políticas, econômicas e religiosas daquela cidade, Pau­lo e seus colaboradores partem para Corinto. Na viagem, visitam as co­munidades que haviam fundado nas cidades da Macedônia (At 20,1-2). Provavelmente em 56, escreveu de Corinto a Epístola aos Romanos.

A seguir, partiu apressadamente com os delegados das igrejas, levando a coleta para as comunidades pobres da Judéia e passando no­vamente pelas cidades da Macedônia, por Trôade, indo até Mileto (At 20,3-16). Ali se despediu dos anciãos de Éfeso (At 20,17-38) e partiu para Jerusalém (At 21,1-14).

Paulo prisioneiro é transferido para RomaA partir desse momento da vida de Paulo, não temos mais dados

fornecidos por ele mesmo. As informações que existem são somente de Atos.

Quando chegou a Jerusalém (58), Paulo foi preso em meio a um motim provocado contra ele (At 21,17-23,22). Depois de se defender diante do Sinédrio, foi salvo da morte por um sobrinho seu que morava em Jerusalém. Ele comunicou a Paulo a cilada que um grupo dc judeus estava armando contra o tio (At 23,12-22).

Em conseqüência, foi transferido para Cesaréia, onde ficou pre­so por dois anos (58-59 — At 23,23-26,31). Naquele tempo, os governa­dores Antônio Félix (52-60) e Pórcio Festo (60-62), representantes do

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império na Palestina, moravam nessa cidade. Encontraram-se com Paulo (At 24-26). Também Herodes Agripa II e sua irmã Berenice quiseram ouvi-lo (At 25,13-26,30).

Depois disso, foi levado a Roma, onde chegou pelo ano 60 (At27,1-28,14). Durante dois anos, ficou em prisão domiciliar (61-62). Depois disso, foi libertado (At 28,15-31). Segundo a tradição, alguns anos mais tarde, morreu mártir em torno de 65. Como Pedro, foi vítima da perseguição desencadeada em 64 pelo imperador Nero.

O Paulo de Atos e o Paulo das CartasSe podemos dizer que os escritos de Paulo não informam nada

sobre a vida de Jesus, limitando-se à sua cruz e ressurreição, o mesmo podemos dizer do Livro de Atos em relação aos escritos de Paulo. Seu autor parece que não conhecia pessoalmente o apóstolo das nações. Nenhuma vez faz referência a suas cartas. Os discursos que coloca na boca de Paulo em Atos são muito diferentes do conteúdo das epístolas.

Os autores do Livro de Atos dos Apóstolos são de igrejas de tradição paulina. Em torno de vinte anos depois de seu assassinato, ainda há muitos adversários de Paulo, falando mal dele, especialmente porque pregava e vivia a liberdade do evangelho, isto é, a plena comu­nhão de mesa com os não-judeus, sem a necessidade de observar a lei. Veremos mais adiante como Paulo enfrentava esses “superapóstolos”. Atos é um livro que vem em defesa do grande apóstolo e trabalhador. Chega a glorificá-lo, fazendo uma apologia dele. Diante dos cristãos judaizantes, isto é, judeus que aderiram à Boa-Nova, mas vivendo ainda sob a lei, o Livro de Atos apresenta Paulo apenas fazendo o que Pedro já havia feito. E que Pedro era o herói desses judaizantes. Segundo Atos, já antes de Paulo, Pedro leva o batismo de Jesus aos incircuncisos por força do Espírito (At 10).

Para tornar Paulo mais aceito nas comunidades dos anos 80, os autores de Atos apresentam um Paulo menos radical, modificando-lhe a fisionomia e a mensagem. Dessa forma, fazem seu rosto e sua teolo­gia coincidir com a caminhada das igrejas daqueles anos. Veja, na se­qüência, as principais modificações que introduzem em Atos.

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O Paulo de Atos O Paulo das CartasAtos reserva o título de apóstolo aos Doze, negando-o a Paulo. As exceções de At 14,4.14 referem-se genericamente a Barnabé e Paulo. Para Atos, Paulo é “testemunha” e não apóstolo (At 22,15; 26,16).

Paulo luta para ter reconhecido seu apostolado em pé de igualdade com os demais apóstolos (Rm 1,1; ICor 1,1; 9,1-2; 15,8-10; 2Cor 11,22-30; G11,1.11-12.15-16).

Atos insiste em dizer que Paulo foi escolhido tanto para judeus como para não-judeus (At 9,15). Nas vi­agens missionárias, sempre apre­senta Paulo dirigindo-se primeiro às sinagogas e, só depois da rejei­ção por parte dos judeus, dirige- se aos gregos (At 13,14-16.44-46). E mais, Atos chega a fazer de Pe­dro o primeiro que leva a conver­são a um não-judeu sem necessi­dade da circuncisão (At 10). Além disso, afirma que praticamente to­dos os não-judeus que haviam ade­rido ao evangelho eram prosélitos, isto é, não-judeus convertidos à re­ligião de Israel, e tementes a Deus.

Paulo diz claramente que sua mis­são é evangelizar os incircuncisos, enquanto a de Pedro é anunciar o evangelho aos judeus (G1 2,7-10). Paulo fala, em suas epístolas, que membros de suas comunidades vi­eram diretamente do culto a outras divindades. E provável que muitas pessoas convertidas pelas equipes de Paulo fossem judias, tementes a Deus, isto é, simpatizantes do Ju­daísmo e prosélitos. Certamente, Paulo não discriminou essas pes­soas. No entanto, ele faz questão de frisar que muitas se converteram diretamente dos cultos a divinda­des greco-romanas (ITs 1,9; G14,8).

Atos faz de Paulo um judeu fiel observante das tradições de Israel.

Segundo as epístolas, Paulo foi fiel à verdade do evangelho, isto é, sem depender da lei. Nem sequer acei­tou o dccrcto das autoridades cris­tãs de Jerusalém (G1 2,5-6; ICor 8; 10).

Atos omite ou atenua os conflitos de Paulo com Pedro, Barnabé e os “superapóstolos”.

Paulo teve que lutar muito para que a abertura do evangelho às na­ções fosse aceita pelas igrejas da

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Judéia. Sinal disso são os conflitos com Pedro e Barnabé (G12,11-14), sua separação de Barnabé e João Marcos, os companheiros da pri­meira viagem missionária (At 15,39), bem como sua luta com os “superapóstolos” (2Cor 11-12) e judaizantes (G11,6-10; F1 3,1 ss).

O Livro de Atos oculta qualquer conflito com as autoridades roma­nas. Convertem-se ao evangelho (At 10; 13,6-12) e suas intervenções junto a Paulo são sempre no senti­do de protegê-lo (At 18,12-17; 21,27-40). Atos faz questão de omitir para seus leitores a informa­ção sobre a morte violenta de Pau­lo a mando do imperador Nero.

Paulo prega a submissão às auto­ridades romanas como atitude pru­dente diante de um império impla­cável sem, no entanto, apresentar uma visão positiva do império.

Em Atos, a vida de Paulo é conta­da como vida de herói, como uma história cheia de feitos maravilho­sos. Paulo aparece como pessoa que tem o poder de tornar cego a um mago (At 13,10-11), de curar um aleijado (At 14,8-10), de expul­sar um espírito (At 16,16-18), de fa­zer curas e expulsar demônios (At 19,11-12), de ressuscitar pessoas (At 20,7-12) e de impedir que veneno de cobra lhe faça mal (At 28,1-10). Além disso, ele tem a autoridade de cidadão romano (At 16,37-38; 22,25-29).

Paulo nunca faz referência a tal cidadania romana, nem ao seu po­der de fazer milagres. Pelo contrá­rio, afirma que seu poder está jus­tamente em sua fraqueza (2Cor 12,9-10). Ele se auto-apresenta como um místico que “subiu ao mais alto dos céus” (cf 2Cor 12,2­4.7), o que revela uma espirituali­dade não controlável por estrutu­ras. Sua fortaleza é a ação do Es­pírito Santo nas comunidades (lTs 1,4-10).

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A estratégia pastoral da equipe de Paulo

“Porque, partindo de vós, se divulgou a Pti/ami do Senhor, não apenas pela Macedônia e /\caia, m u

propagou-se por toda parte a f é que tendes em Deus. ” (lTs 1 ,B)

A globalização da Boa-Nova de JesusDepois dessa aproximação à vida missionária da equipe de Paulo

após o concilio de 49, lembremos agora uma diferença importante en­tre o movimento de Jesus de Nazaré e o trabalho missionário das igre­jas helenistas.

Jesus, como profeta de seu povo, organizou um movimento en» gajado no anúncio e na concretização do projeto libertador do Reino de Deus, especialmente para o povo pobre da Galiléia. Na sua maioria, eram comunidades camponesas empobrecidas com forte cultura rural, onde se falava o aramaico.

Diferentemente, as equipes missionárias das igrejas helenistas transformaram esse projeto histórico mais local de Jesus em um pro­grama internacional. Globalizaram o Reino de Deus como proposta universal, anunciando-o nas cidades greco-romanas, em meio a uma cultura urbana de fala grega.

Se Jesus anunciou o Reino de Deus a um grupo homogêneo de camponeses pobres, Paulo o levou a grupos heterogêneos nas cidades?. Se Jesus quer o Reino como perdão das dívidas, os helenistas querem o perdão dos pecados, desde a maldade pessoal até o pecado estrutural,

Porém, é fundamental ter presente que Jesus pregava o Reino de Deus de forma concreta, apresentando o Reino como banquetes para os quais todos estavam convidados. Assim também Paulo anuncia o perdão dos pecados a partir de uma prática muito parecida com a de Jesus. A reconciliação acontecia nas casas, nas igrejas domesticas, «o redor da mesa, na partilha e no serviço uns aos outros. O perdão ic manifestava de forma concreta numa casa ao redor de uma mesa e no serviço solidário. A grande adesão dos pobres, sem terras, sem tetos 9

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.sem cidadania acontecia porque havia uma nova prática nas comunida­des. Por isso, o Cristianismo cresceu imensamente, abalando o império e por ele foi perseguido.

Para fazer a passagem de mundos e culturas tão diferentes, como já vimos acima, a equipe de Paulo fez adaptações importantes.

A principal delas é que ampliaram o projeto histórico de liberta­ção que Jesus anuncia aos pobres camponeses galileus (cf. Lc 4,18-19).

Apresentaram-no como projeto de libertação da humanidade toda, de qualquer forma de opressão, seja pessoal, social ou estrutural. Para os helenistas, não importa se o mal ou o pecado vem das estruturas de opressão do sistema dominante, do legaüsmo do Judaísmo oficial ou da maldade enraizada em cada pessoa.

Importa que Jesus quer nos libertar de todas as formas de pecado.Para compreender o significado de pecado na literatura paulina,

c importante ter presente a dimensão interior do mal que nos escraviza. Mas não só. Para Paulo, tudo o que escraviza é pecado. Tudo o que aprisiona a verdade é injustiça. Também é pecado todo sistema ímpio e injusto, tal como era, naquele momento, o sistema dos romanos (cf. Rm 1,18).

Fazia sentido falar em Reino de Deus ou Ano da Graça do Se­nhor para o povo de Israel. Há séculos, essas expressões vinham carre­gadas de um sentido de libertação, de partilha das terras, de perdão das dívidas, de fraternidade. No entanto, essa linguagem não dizia pratica­mente nada quando dirigida à cultura urbana no mundo greco-romano.1 Cntão foi necessário adaptá-la ao novo contexto. Em vez de Reino de1 )eus, Paulo e sua equipe falavam em redenção, salvação, libertação. Não é por acaso que a liberdade e a cidadania sejam tão centrais na prática de Paulo. Essas eram palavras muito caras para a cultura helenista.

No entanto, todas as pessoas eram cidadãs nas comunidades cris­tãs. E a grande maioria dos membros das igrejas eram pessoas não- ridadãs na sociedade greco-romana. Assim, a prática de igualdade ajuda­

"Manifesta-se, com efeito, a ira de Deus, do alto do céu,

contra toda impiedade e injustiça dos homens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça."

(Rm 1,18)

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va a resgatar, de forma concreta, a dignidade das pessoas. Apontava Iam bém para modelos de relações e de organização que negavam radical mente as relações e bases da estrutura das cidades e do Império Romano,

Para a elite grega, a vida digna somente era para poucos, <) que faz, então, o movimento missionário cristão? Universaliza a liberdade e a cidadania. Ela não é privilégio de uma pequena elite. Todas as pesse >as têm acesso a ela. Como já vimos acima, na assembléia (ekklesia) cristã, que se reunia nas casas [oikos), tanto mulheres, como estrangeiros, es cravos, pobres, enfim, todas as pessoas eram chamadas a ser “cidadãs do Evangelho ck C r i s t o firmemente lutando por novas relações com base na Boa-Nova de Jesus (cf. F1 1,27).

Certamente, Paulo e sua equipe tinham consciência de que não era possível derrotar o poderoso Império Romano. Era um poder eco­nômico, político e militar impossível de ser enfrentado. Nem tampouco era possível acabar com a escravidão. No entanto, sabiam muito bem que sua estratégia de organizar pequenas comunidades com vivência de novas relações étnicas, de gênero e de classe era o caminho para a libertação radical das pessoas e de toda a criação.

Não é por acaso que proclamam a libertação frente às obras da lei, pois não é por elas que vem a salvação. Esta vem através da nova justiça de Deus ofereci­da gratuitamente a quem crê (Rm 1,16­17; 3,21-22). Também não terá sido por acaso que convidam seus leitores, tam­bém a nós hoje, a não se conformarem com as estruturas de pecado deste mun­do mau (Rm 12,2; G11,4) e injusto (Rm 1,18), “em meio a uma geração má e pervertida” (F1 2,15).

Se o pecado é pessoal e estrutural, também a nova justiça de Deus não tem a ver somente com questões pessoais, mas incide igualmente sobre as relações, sejam econômicas, sociais, políticas ou religiosas.

Por isso, o tema da reconciliação era tão caro às comunidades helenistas. Primeiro, elas levaram em conta a reconciliação entre Deus c

"Não vos conformeis com este mundo, mas

transformai-vos, renovando a vossa

mente, a fim de poderdes discernir

qual é a vontade de Deus, o que é bom,

agradável e perfeito." (Rm 1 2,2)

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humanidade, mediada por Jesus Cristo e não mais pela lei, conforme a religião judaica. Esta reconciliação é graça de Deus, tornando-nos criaturas novas (2Cor 5,17-21). E mais. Tornando-nos também ministros c embaixadores da reconciliação (w. 18.20). Já não somos mais inimigos de Deus, mas pessoas transformadas em amigas (Rm 5,10-11).

De modo especial, o projeto das comunidades helenistas é pro­mover a reconciliação entre judeus e não-judeus, pois Cristo eliminou Iodas as barreiras.

Superam, portanto, qualquer forma de preconceitos discriminató­rios, promovendo a acolhida, a unidade e a integração, inclusive quanto a gênero e classe (cf. G13,27-28; Rm 10,12; ICor 12,13 e também Cl 3,11). Nunca devemos esquecer que isto acontecia de forma concreta em uma casa, ao redor de uma mesa, onde o pão era partilhado com todas e todos, onde quem tinha trazia para partilhar e quem não tinha vinha para receber pão e dignidade.

Ao concluir este ponto, poderíamos dizer que, se para o movi­mento de Jesus uma nova Palestina é possível, para as igrejas helenistas um novo mundo é possível.

Será que a estratégia das igrejas helenistas não nos ensina que é importante pensar as questões em nível global, porém agir localmente?

Uma rede de comunidades solidáriasNas viagens missionárias promovidas pelas igrejas helenistas, fi­

cam evidentes outros aspectos da estratégia pastoral de Paulo e de seus colaboradores e colaboradotas.

Sua intenção é fundar comunidades nos grandes centros urba­nos do mundo greco-romano. Não têm em vista as cidades menores e as aldeias do interior. O anúncio da Boa-Nova nesses lugares seria tare­ia das igrejas fundadas nas cidades mais importantes. A estratégia da equipe de Antioquia, portanto, era atingir os grandes centros. Estes se encarregariam de levar a missão às cidades menores e aldeias no seu entorno, constituindo uma rede de comunidades interligadas (lTs 1,7-8).

Paulo investe na rede de pequenas comunidades fraternas, soli­dárias, experimentando novas relações (G1 3,28) e novos valores (G1

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5,22-23), superando os antivalores que escravizam (G1 5,19-21; Rffl 1,28» 32; ICor 6,9-11). Apresenta o Projeto de Jesus livre da lei. A verdade da Boa-Nova consiste essencialmente em uma nova prática. I1', a enitui nhão de mesa. Nas igrejas domésticas, não há espaço para discrimina­ções. Ao redor da mesa da comunidade, praticam-se a igualdade e a partilha.

Nessa prática sem discriminações, revela-se a essência da doutri­na missionária de Paulo. Por um lado, está a opção pelas nações, "pois

fomos batizados num só Hspírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres" (ICor 12,13). Por outro, não há mais privilégios para ninguém, uma vez que a nova justiça de Deus acolhe gratuitamente e sem exclu­são. Deus nos acolhe sem condições porque nos ama.

Como já vimos acima, as casas ocupavam um lugar especial na organização de comunidades cristãs. Convém lembrar que, na estraté­gia dos helenistas, a organização de igrejas domésticas também ocupa­va um papel central. Veja, por exemplo, as comunidades nas casas de Priscila e Aquila, tanto em Éfeso (ICor 16,19) como em Roma (Rm 16,5)! Confira ainda as igrejas nas casas de Filólogo, Júlia, Nereu c sua irmã (Rm 16,15), de Filemon e Ápia (Fm 2), de Ninfa (Cl 4,15) e de Lídia (At 16,15.40). Essa forma de scr igreja é essencial, juntamente com a mesa da partilha que acontecia nessas casas. Certamente elas também se tornavam uma espécie de lar para quem não tinha casa para morar.

Depois de fundadas as igrejas domésticas, Paulo e sua equipe seguiam em missão para outras cidades aonde a Boa-Nova ainda não havia chegado. Quando podia, visitava pessoalmente as comunidades que fundara. Ou então, enviava colaboradores seus, a fim de completar o anúncio da Boa-Nova.

Enviava também cartas para as igrejas. E não escrevia apenas esporadicamente. Havia uma intensa correspondência entre Paulo c suas comunidades. Adiante veremos como o caso de Corinto é exemplar nesse aspecto. Essas cartas eram copiadas e serviam também para ser lidas em outras igrejas. Dessa forma, passando de mão em mão, chega­ram até nós.

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Ãs comunidades como corpo de CristoEmbora se diga no Livro de Atos que Paulo estabelecia “presbí­

teros” (anciãos) nas comunidades que fundava (At 14,23; 20,17), ne­nhuma vez aparece essa função de liderança nas suas cartas autênticas. Atos foi escrito nos anos 80, quando já estava em andamento uma lenta estruturação das comunidades de herança paulina, como veremos no próximo volume. No entanto, segundo Atos, certamente já havia, nos tempos de Paulo, a função de presbítero nas comunidades de Jerusalém (cf. At 11,30; 15,2.4.6.22.23; 16,4).

Nas igrejas helenistas, a proposta de vivência comunitária estava baseada no coletivo, no serviço à comunidade. Não é por acaso que Paulo insista em descrever as igrejas como corpo, isto é, onde todos os seus membros são interdependentes. Nenhum deles pode querer se sobrepor a outros. Por um lado, Paulo valoriza a diversidade de funções na comunidade unida. Por outro, ele também quer mostrar que a orga­nização na comunidade deve ter como princípio o exercício de poderes compartilhados, sem hierarquia ou centralização. Não deixe de ler Rm 12,3-8 e ICor 12,12-28!

Como você pôde perceber, Paulo prefere chamar as lideranças de suas comunidades de apóstolos, de pro­fetas, de encarregados da assistência, de go­verno, etc. Mais do que ser donos das igre­jas (cf. ICor 1,12), são as lideranças que per­tencem às comunidades (ICor 3,22-23). Sua função é assumir a diaconia de Deus e das igrejas (ICor 3,5; cf. Rm 16,1), ser colabo­

radores e colaboradoras de Deus (ICor 3,9), a serviço de Cristo e na administração dos mistérios de Deus (ICor 4,1).

Paulo entendia o exercício do poder como diaconia. Diakonia (grego) quer dizer mnisterium (latim) e serviço (português).

F11,1 e Rm 16,1 revelam que o cargo de “diácono” e “diácona” era reconhecido por Paulo. Em F11,1, a palavra está no plural, dando a entender que era toda uma equipe de diaconia. Tinham o encargo do

• anúncio da Palavra, mas sobretudo do atendimento das necessidades

"Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um

por sua parte." (IC or 12,27)

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materiais das igrejas. Em Rm 16,1, Paulo nos informa que Febe exercia esse ministério. Ela era diácona e protetora, isto é, ajudava a.s comuni­dades. Foi ela quem levou a carta aos romanos, onde iria preparar a viagem missionária que Paulo pretendia fazer à Espanha.

Em Atos 20,28, Lucas coloca na boca de Paulo o termo ‘Vpísco- pos” (bispos, supervisores, guardiães) para se referir às lideranças da igreja de Éfeso. Em suas cartas, somente as lideranças das comunidades de Filipos são chamadas de bispos junto com os diáconos (F11,1). Como em Atos, também aqui a palavra está no plural, sugerindo uma equipe de pessoas encarregadas pela supervisão, pelo bom funcionamento das comunidades.

Os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc) e Atos dos Apóstolos reservam o título de “apóstolo” (enviado) aos Doze. No entanto, Paulo luta muito em suas cartas na defesa desse título para si, como vimos acima (Rm 1,1; ICor 1,1; 2Cor 1,1; etc.). E mais, ele amplia o círculo de pessoas a quem reconhece esse ministério. Andrônico é chamado de após­tolo. EJúnia é apóstola convertida a Jesus antes de Paulo (Rm 16,7).

O que nos chama a atenção, ao analisar a organização das comu­nidades helenistas, é que Paulo insiste no exercício do poder-serviço, valorizando todas as funções, sem discriminar nenhuma. Aliás, as mais insignificantes, muitas vezes, são as mais necessárias (cf. ICor 12,22). Em todas as funções, podemos encontrar tanto homens como mulhe­res, exercendo o episcopado, o apostolado e o diaconato (cf. F11,1; Rm 16,1.7). Além disso, ainda não há a hierarquização, que conhecemos depois, dos diferentes ministérios. Como veremos no próximo volume, esse processo surgirá nas igrejas no período da segunda geração dc cristãos, isto é, a partir dos anos 70.

Paulo mantém uma autoridade sobre as igrejas que fundou, po­rém, como a de um pai e de uma mãe para com seus filhos (lTs 2,5-12; ICor 4,15; G1 4,19). Depois de organizada a comunidade, e uma auto­ridade exercida a distância, uma vez que não está presente no dia-a-dia das igrejas. Para a vida cotidiana, confia na obra do Espírito. É dele a missão de manter a unidade (ICor 12,13).

Será que, em certos meios, ainda hoje Paulo continua sofrendo alguma dose de marginalização pelo fato de ter confiado muito no Es­

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pirito Santo como a autoridade máxima nas igrejas? Ou por reconhecer c-.irgos oficiais tanto em homens quanto em mulheres? Ou por valori- /.ir o exercício de muitos dons nas comunidades, sem organizar uma hierarquia? Ou ainda pelo fato de ter promovido a unidade mais pelo Espírito do que pelo poder centralizado, por doutrinas ou ritos litúrgi- < < >s unificados?

I hna equipe em missãoPaulo seguiu a orientação de Jesus quanto à forma de anunciar o

evangelho em equipe. Ao enviar seus discípulos e discípulas em missão, |esus pede que o façam de dois a dois, de duas a duas (Mc 6,7). Por sua vez, Paulo sempre procurou trabalhar em conjunto com outras pesso­as. Eram apóstolas e apóstolos, diáconos e diáconas, colaboradoras e eolaboradores, como ele preferia chamá-los.

Nas cartas e em Atos dos Apóstolos, são citadas inúmeras pesso- ns que eram colaboradoras de Paulo. Em lugares e épocas diferentes, ele trabalhava com equipes que iam se modificando. Uns seguiam seu próprio rumo. Outros grupos se distribuíam para levar a Boa-Nova ao maior número possível de cidades.

Devido à importância dessa característica fundamental da ativi­dade missionária de Paulo, convém que façamos uma lista dessas pes­soas cujos nomes chegaram até nos, embora ainda incompleta.

Primeiro, anotamos a equipe de colaboradores mencionados nas cartas autênticas.

Acaico — ICor 16,17 Amplíato - Rm 16,8 Andrônico — Rm 16,7 Ápia - Fm 2 Apeles - Rm 16,10 Apoio — ICor 3,6; 16,12 Áquila — Rm 16,3 Epafrodito — F1 2,25

Epêneto — Rm 16,5 Erastro — Rm 16,23 Estáquis — Rm 16,9

Crispo — ICor 1,14 Demas - Fm 24Epafras — Fm 23

Barnabé — ICor 9,6 Clemente — F1 4,3 Cloé — ICor 1,11

Aristarco - Fm 24 Aristóbulo — Rm 16,10 Arquipo — Fm 2 Asíncrito — Rm 16,14 Estéfano - ICor 16,15

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Evódia - F1 4,2 Febe — Rm 16,1 Filemon - Fm 1 Filólogo - Rm 16,15 Flegonte - Rm 16,14 Fortunato — ICor 16,17 Gaio — Rm 16,23 H ermas — Rm 16,14 Hermes — Rm 16,14 Herodião — Rm 16,11 Jasão — Rm 16,21 Júlia — Rm 16,15 Júnia — Rm 16,7 Lucas — Fm 24 Lúcio — Rm 16,21 Maria — Rm 16,5 Marcos — Fm 24 Narciso — Rm 16,11

O Livro de Atos acrescenta mais radoras a essa lista.

Erasto — At 19,22 Gaio — At 19,29 G a io -A t 20,4 Jasão — At 17,5 Lídia - At 16,14 Lúcio — At 13,1

Nereu - Rm 16,15 Olimpas - Rm 16,15 Onésimo — Fm 10 Pérside - Rm 16,12 Priscila/Prisca - Rm 16,3 Quarto — Rm 16,23 Rufo - Rm 16,13 Silvano/Silas — lTs 1,1 Síntique — F1 4,2 Sosípatro — Rm 16,21 Sóstenes — ICor 1,1 Tércio - Rm 16,22 Timóteo - Rm 16,21 T ito-G 1 2,1.3 Trifena — Rm 16,12 Trifosa — Rm 16,12 Urbano — Rm 16,9 Zízigo — F1 4,3

outros colaboradores e colabo-

Manaém — At 13,1 Segundo - At 20,4 Simão Niger — At 13,1 Sópatros — At 20,4 Tício Justo - At 18,7 Trófimo — At 20,4

As cartas pós-paulinas mencionam outros mais.Ártemas — Tt 3,12 Lino — 2Tm 4,21Cláudia — 2Tm 4,21 Ninfa — Cl 4,15Crescente — 2Tm 4,10 Onesíforo — 2Tm 1,16Êubulo - 2Tm 4,21 Prudente - 2Tm 4,21Figelo — 2Tm 1,15 Tíquico — Cl 4,7Hermógenes — 2Tm 1,15 Zenes — Tt 3,13Jesus Justo - Cl 4,11

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Além disso, há pessoas que não são mencionadas pelo nome.

2Cor 8,18-23; 12,18F11,14-18 'Rm 16,13-15

E, por fim, sabemos de pessoas não mencionadas nos escritos do Segundo Testamento como, por exemplo, Tecla. Certamente, existi­am muitas outras cujos nomes se perderam da nossa memória.

Com certeza, temos muito a aprender desse jeito de Paulo traba­lhar. Ele não só trabalhava em equipe. Até mesmo as cartas elaborava em conjunto. Antes de ditá-las, discutia com sua equipe todas as ques­tões. Veja como nas cartas autênticas há referências à autoria das cartas em equipe:

• Parece que a Carta aos Romanos foi elaborada junto com vári­os colaboradores (Rm 16,21-23).

• Sóstenes e Paulo pensaram juntos as respostas às dúvidas das comunidades de Corinto (ICor 1,1). Parece que Aquila e Pris­cila também colaboraram (ICor 16,19).

• Na Segunda Carta aos Coríntios, Timóteo teve participação im­portante (2Cor 1,1).

• Timóteo ainda está junto na elaboração das Cartas aos Filipen- ses (F11,1) e a Filemon (F11), bem como da Primeira Carta aos Tessalonicenses, em que também Silvano participa dos debates (ITs 1,1).

• A Carta aos Gálatas foi pensada por vários companheiros ou “irmãos”, como Paulo prefere chamá4os (Gl 1,2).

Escritas as cartas por um copista, normalmente Paulo acrescen­tava com seu próprio punho a saudação final em letras garrafais. A respeito disso, confira Rm 16,22; ICor 16,21-24; Gl 6,11 ss; Fm 19!

Paulo e o trabalho manualSe Paulo seguiu a orientação de Jesus quanto ao trabalho missio­

nário em equipe, o mesmo não podemos dizer no que se refere ao trabalho para o próprio sustento.

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Muitos apóstolos, tal como Jesus e a pedido dele, exerciam *u» missão como missionários itinerantes, vivendo do trabalho evangeHza- dor (Mt 10,10). Paulo mesmo sabia dessa recomendação (ICor 9,14). Apesar disso, porém, faz questão de trabalhar com suas próprias màoi. Continuava exercendo sua profissão de fabricante de tendas. Para ser fiel ao Evangelho de Jesus, não seguiu ao pé da letra a sua orientação. O trabalho tinha papel central na vida de Paulo. Não deixe de ler At 18,3; ICor 4,12; 9,6-18!

Por que Paulo muda a forma de sustentar a missão? Várias são as razões:

Primeiro, ele não queria ser um peso para as comunidades (ITs 2,9; 2Cor 12,13-14), pois, em sua maio­ria, eram pobres (ICor 1,26-29; 2Cor 8,1-3). E sua opção era justamente pe­las pessoas e camadas excluídas da so­ciedade.

Depois, é bom ter presente que, na cultura grega, o trabalho manual era indigno para pessoas livres, os cidadãos.Era reservado para pessoas escravas, artesãs e para escravos libertos. Para os cristãos de Tessalónica, Silvano, Timóteo e Paulo escrevem, recomendando que trabalhem com as próprias mãos, pois isso também é vida digna, honrada (ITs 4,11-12).

Em terceiro lugar, Paulo anuncia o evangelho como encargo, como vocação. Evangelizar não é sua profissão, seu emprego. Daí por que anuncia a Boa-Nova gratuitamente (ICor 9,15-18; 2Cor 11,7-10).

O trabalho manual de Paulo também revela sua solidariedade com quem trabalha com suas próprias mãos. O ponto de partida de sua prática pastoral não é o mundo dos donos de gente escrava e de quem vive do trabalho alheio. Seu lugar social é justamente o mundo de quem é vítima do sistema escravocrata greco-romano.

Há ainda um quinto elemento para entender as razões de Paulo para não observar a ordem de Jesus. E que ele não queria depender de quem era detentor de riquezas. Sabemos que, normalmente, aquekl pessoas que dão o dinheiro também influenciam a quem recebe a ajuda,

"Pregando o Evangelho, eu o prego gratuitamente,

sem usar dos direitos que a pregação do

Evangelho me confere." (ICor 9,18)

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Paulo não queria fazer como os professores, os missionários itinerantes e os filósofos. Estes viviam hospedados nas casas de quem tinha poder aquisitivo. E isso limitava a liberdade deles. Paulo fazia questão de ser livre, de não se deixar influenciar por quem quer que fosse. Por isso, não pedia esmolas, não cobrava pelo ensino, nem se hospedava em casas de pessoas ricas.

Por fim, lembramos que Paulo também aceitou ajuda financeira. Porém, somente das igrejas de Filipos, às quais estava ligado por um vínculo especial de amizade (F1 4,10-18; 2Cor 11,8-9). E estas eram muito pobres (2Cor 8,1-3).

Duas preocupações básicas dos helenistasAs igrejas helenistas faziam questão de defender duas coisas bá­

sicas em seu trabalho missionário. De um lado, era a defesa da “verdade do evangelho” e, de outro, a preocupação pela “unidade das igrejas cristãs”.

1. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que as equipes missio­nárias de Antioquia defendiam com veemência a “verdade do evange­lho” (cf. G1 2,1-14; cf. w . 5.14).

O que é essa verdade do evangelho? Se você lê atentamente G1 2,11-14, perceberá que ela consiste na comunhão de mesa. A verda­de do evangelho é todos partilharem ao redor da mesa comum sem nenhuma discriminação. Nas igrejas domésticas, ninguém pode ser ex­cluído. Ali, todas as pessoas têm a mesma cidadania, “pois Deus não fa^ acepção de pessoas” (G1 2,6).

Nesse sentido, viver a verdade do evangelho é estar totalmente livre diante da lei (G1 2,4; cf. 5,1.13-14). Era ela quem dizia ser Israel um povo separado dos demais (Dt 6,1-6). As Escrituras hebraicas na sua parte legislativa, elaborada no interior da cultura judaica, é que considera­vam os não-judeus pessoas impuras (At 10,9-16; Lv 11; Eclo 50,25-26).

Para Paulo, o princípio que torna todas as pessoas dignas é a nova justiça de Deus que não vem pela observância da lei que exclui. Mas é graça que vem pela fé, incluindo a todos (G1 2,16; Rm 1,17).

E o que é a fé? Fé, acima de tudo, é um ato de confiança em

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Deus. É entrega de nossa vida nas mãos de Deus, ter Deus como o único fundamento de tudo. Crer emjesus é entregar nossa vida a ele, E aceitar a graça, o resgate que Deus oferece, tornando-nos justos gratui­tamente. Por isso, a fé opera pelo amor (G15,6.13-14; Rm 13,8 10), pois sobre o único fundamento se dá o encontro.

Deus não julgará como um justiceiro que tem como criléiio n rigor da lei, retribuindo conforme o mérito pelas obras. Sua justiça c diferente. E o perdão e a misericórdia. E a gratuidade do amor (Rm3,21-24; 5,5-8; 9,14-16). Não é justiça declaratória que reconhece quem é justo, mas é justiça criadora que torna justo quem era pecador.

Será que nossa excessiva preocupação com a doutrina e a lei ecle­siástica, bem como a minuciosa observância de regras litúrgicas não são uma forma de reviver a lei?

2. A segunda ênfase de Paulo e de sua equipe é o esforço em favor da “uni­dade” das igrejas. Essa luta expressa-se de modo especial na coleta em favor das co­munidades mais pobres de Jerusalém. E dedicavam-se a essa tarefa com solicitude (G1 2,10).

Segundo o Livro de Atos, antes mesmo das viagens missionárias das igrejas helenistas, os cristãos de Antioquia já faziam coletas para amenizar a fome das comunidades pobres da Judéia (At 11,29-30).

Essa solidariedade para com os mais pobres foi uma constante na prática das igrejas helenistas. Era sua forma de manter a unidade da igreja.

Não era possível a unidade a partir da compreensão a respeito da Boa-Nova de Jesus de Nazaré. As comunidades da Judéia ainda eram muito fiéis às tradições judaicas, à prática da lei e à fidelidade ao templo dejerusalém, como já vimos acima. As igrejas helenistas já haviam dado um passo a mais. Para elas, o mais importante era uma nova prática em torno da mesa, aberta para todos. Não havia acordo sobre essa forma diferente de interpretar o Projeto de Jesus. O concilio dejerusalém íora uma tentativa de buscar a unidade.

A maneira como as comunidades helenistas entenderam a unida-

"Cada um dê como dispôs em seu coração,

pois Deus ama a quem dá com alegria."

(cf. 2Cor 9,7)

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<ie foi através da solidariedade, da ajuda econômica às igrejas mais po­bres.

Ao escrever a Carta aos Romanos, Paulo comunica-lhes que está prestes a viajar para Jerusalém, a fim de levar a coleta aos cristãos po­bres da Judéia (Rm 15,25-32). Duas vezes chama essa solidariedade das comunidades macedônias e gregas de “serviço” (w. 25.31). Paulo, in­clusive, manifesta medo de seu serviço não ser aceito. E que os judeus- cristãos em torno de Jerusalém consideravam contaminada pela impu­reza a ajuda vinda de pessoas não-judias. E esse temor de Paulo se confirmou. Certamente, as igrejas da Judéia rejeitaram o gesto solidário vindo das comunidades helenistas. E bem provável que essa seja a ra­zão por que o Livro de Atos não dá importância a esse fato.

A equipe de Paulo ficou muito frustrada com a rejeição da soli­dariedade por parte dos cristãos de origem judaica de Jerusalém. E pior. Estes não se empenharam para evitar a prisão de Paulo. Pelo contrário, o expuseram diante dos judeus, facilitando a tentativa de linchamento (cf. At 21,17-31).

Porém, para Paulo, essa missão de partilha era de fundamental importância, sinal vivo da unidade das igrejas. Essa solidariedade era o símbolo maior que indica o ecumenismo entre diversas etnias, parti­lhando e fazendo comunhão. Importa que haja “igualdade” (cf. 2Cor 8,13-14).

Não é por acaso seu empenho para realizar a coleta nas comuni­dades pobres da Macedônia (2Cor 8,1-5), de Corinto (ICor 16,1-4; 2Cor 8) e de toda a Acaia (2Cor 9). Não deixe de ler as citações!

As comunidades helenistas se empenharam para contribuir na superação da pobreza e da fome. Também nossas igrejas de hoje fazem um esforço nesse sentido. Como estamos colaborando nesse projeto? O que podemos fazer para melhor contribuir na erradicação da fome?

Ao ler este capítulo sobre a estratégia pastoral de Paulo, pude­mos perceber que sua equipe não tinha diante de si nenhum modelo pronto de estratégia missionária. Tiveram que inventá-la. Criaram um caminho próprio para inculturar, no modo de vida urbano greco-roma- n;i, o evangelho que Jesus dirigiu a pessoas de cultura judaica e prefe­rencialmente camponesa. Dessa forma, abriram caminho para muitos

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missionários que os sucederam. No decorrer da história, no entanto, as igrejas cristãs nem sempre souberam realizar essa passagem com o de­vido respeito aos povos alcançados, justamente porque vinham dc traos dadas com os colonizadores.

Conflitos que Paulo teve que enfrentar

“Esses tais são falsos apóstolos, operários enganadores, camuflados em apóstolos de Cristo. ”

(2Cor 11,13)

Aqui, iremos nos referir aos conflitos de Paulo especialmente com os judeus-cristãos e os cidadãos gregos, além dos conflitos com o poder econômico. Sobre os conflitos de Paulo com as autoridades ro­manas, falaremos adiante ao abordar a posição de Paulo em relação ao império.

Com autoridades judaicasO Livro de Atos narra várias perseguições de judeus da diáspora

sofridas por Paulo e sua equipe tanto na primeira viagem (At 13,45.50;14,2-5.19), como na segunda (At 17,5-9.13; 18,12-17) e na terceira via­gem missionária (At 20,3.19).

Quando Paulo chega em Jerusalém para entregar a coleta da so­lidariedade às comunidades pobres, novamente judeus procuram lin­chá-lo (At 21,27-40). Depois de interrogá-lo, o tribuno romano o en­trega ao Sinédrio, onde apanha a mando do sumo sacerdote (At 22,30­23,2). Quarenta judeus aproximadamente juraram matar Paulo (At 23,12­22). Depois, permanece dois anos deddo pelos romanos em Cesaréia (At 23,23-26,32), antes de seguir como prisioneiro para Roma (At 27-28).

Com judeus-cristãosA opção das igrejas helenistas pelas nações levou a muitos con­

flitos. Além de sofrer hostilidade por parte de judeus, tiveram também

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al ritos com judeus-cristãos. Eles tinham muitas dificuldades em supe­rar suas leis de impureza alimentar, da circuncisão e de pureza étnica.

Acima, vimos algo a respeito do conflito de Paulo com Pedro em Antioquia (G12,11-14). Mas as tensões com as igrejas dejerusalém não pararam por aí.

Paulo também é muito forte em suas críticas aos apóstolos mis­sionários que tentam minar o trabalho de sua equipe, deturpando a verdade do evangelho nas comunidades por ele fundadas. Assim foi nas igrejas da Galácia (G1 1,6-10), de Corinto (2Cor 11,1-12,18), de Filipos (F1 3; cf. w . 2.18-19). Não deixe de ler os textos citados!

Como você pôde perceber, Paulo chama os apóstolos que pre­gam “outro evangelho” ou um “Jesus diferente” (G1 1,6.9; 2Cor 11,4) de “superapóstolos” (2Cor 11,5; 12,11), de “maus obreiros” e de “fal­sos circuncidados” (F13,2). Acusa-os de “falsos apóstolos”, de “operá­rios enganadores” e “camuflados em apóstolos de Cristo” (2Cor 11,13). São críticas muito fortes. Isso é sinal de que o conflito com os repre­sentantes das igrejas da Judéia era muito forte.

A principal razão dessa briga é a defesa da verdade do evangelho. A comunhão de mesa entre judeus e não-judeus, a partir da nova justiça de Deus, livre das obras da lei, era ponto de honra para a equipe de Paulo. Nisso não podia voltar atrás. No entanto, missionários judaizan- tes, isto é, que exigiam a observância de alguns pontos da lei como a circuncisão, passavam nas igrejas fundadas por Paulo e “prendiam os convertidos novamente ao jugo da escravidão da lei” (cf. G1 5,1b). Daí a indignação e a linguagem dura de Paulo em relação a eles.

Para de novo escravizar os cristãos de comunidades helenistas, esses superapóstolos certamente usavam de meios não muito recomen­dáveis, desqualificando o apóstolo Paulo diante das comunidades por ele fundadas.

• Acusavam-no de não ter sido apóstolo de Jesus e de não ter convivido com ele. Paulo se defende, insistindo em seu título de após­tolo, chamado diretamente por Jesus, sem ficar devendo nada aos de­mais apóstolos, como vimos em Rm 1,1; ICor 1,1; 9,1-2; 15,8-10; 2Cor11,22-30; G11,1.11-12.15-16.

• Acusavam-no de trabalhar na missão em pé de igualdade junto

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com mulheres (ICor 9,5). Paulo se defende, dizendo que ris demais apóstolos também levam mulheres consigo.

• Acusavam-no de não observar a orientação dc Jesus de que os pregadores deveriam viver do trabalho missionário. Embota reconheça que viver do evangelho seja um direito, Paulo faz questão dc evnnjn-li zar gratuitamente. Veja sua defesa em ICor 9,6-18!

E bem possível que o “aguilhão na carne” (2Cor 12,7), sentido com muita dor por Paulo, seja uma referência à perseguição que sofreu especialmente por parte dos superapóstolos, quando deveriam ser com panheiros de caminhada.

Com cidadãos gregosjá vimos que Paulo optou pelos pobres, da mesma forma como

Deus também se solidariza com eles (ICor 1,26-29). O maior sinal des­sa opção de Paulo é sua solidariedade com quem vive no mundo do trabalho, como analisamos acima. Essa opção pelo trabalho gerou for­tes conflitos com a sabedoria grega. Para os cidadãos da Grécia, o tra­balho era algo indigno, coisa de escravos e artesãos. Os primeiros qua­tro capítulos de ICor são uma discussão a respeito da sabedoria grega, da cultura das elites gregas. Ao optar pelo trabalho manual e pela con­vivência com as pessoas “indignas”, Paulo naturalmente entrou em con­flito com quem vivia às custas dos que trabalham.

Com o poder econômico e políticoO Livro de Atos nos informa que Paulo e sua equipe tiveram

problemas com os senhores de escravos e com os fabricantes de estátu­as da Deusa Artemis.

Você pode ler em At 16,16-24 a respeito do conflito, em Filipos, com os senhores que exploravam uma escrava que tinha o dom da adivinhação. Libertando a jovem escrava, Paulo ürou a possibilidade de os donos continuarem ganhando muitos lucros. Em conseqüência, Paulo e Silas foram presos e torturados a mando das autoridades romanas.

Sobre a perda dos lucros dos artesãos que faziam estatuetas de Artemis em Éfeso, você pode ler em At 19,23-40. Mais uma vez, a

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novidade da Boa-Nova vem atrapalhar os interesses de quem quer lu­crar pela exploração de outras pessoas. Ao contrário, a proposta das comunidades era departilha fraterna, de comunhão de bens (At 2,42­47; 4,32-37). Não é por acaso que o projeto de partilha vivido pelas igrejas cristãs tenha provocado a reação dos donos do poder econômi­co e político.

Além disso, podemos lembrar que, nas próprias comunidades, Paulo teve que ser duro com os fortes, isto é, os mais bem situados economicamente. Veja, por exemplo, ICor 4,6-10; 11,17-34!

Todos esses conflitos, tanto com as autoridades judaicas, com os judeus-cristãos judaizantes, com a sabedoria grega, com os donos do poder econômico e político, quanto com as pessoas ricas nas próprias igrejas helenistas, trouxeram muito sofrimento para Paulo. Era uma verdadeira cruz que ele carregava por onde organizava comunidades. Ele mesmo fala dessa sua cruz. Confira 2Cor 11,23-28!

A cruz de JesusAo falar da cruz de Paulo, não poderíamos deixar de falar de uma

cruz muito mais importante no evangelho por ele anunciado. E a cruz de Cristo. O anúncio de Jesus crucificado e ressuscitado é o centro da Boa- Nova proclamada por ele e sua equipe. E a glória do próprio Paulo (Gl6,14), ao passo que a glória dos judeus é a lei da circuncisão (F1 3,18-19).

Paulo tem claro que a cruz de Cristo foi uma imposição dos po­derosos deste mundo (ICor 2,8).

Em ICor 15,1-10, ele fala de sua experiência com o ressuscitado que o vocacionou ao apostolado. Confira!

Jesus ressuscitado, e não o im­perador, é o Senhor da vida das co­

munidades cristãs (Rm 1,4; 10,9; El 2,6-11). Anunciando Jesus como o Senhor, estava-se também desautorizando o sistema de escravidão, pois não pode haver mais senhores nem escravos. Desmascarava-se, ao mes­mo tempo, a cultura patriarcal, o domínio dos pais de família sobre suas esposas, filhos e filhas, escravas e escravos. O verdadeiro rei não é nem

"Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,

vazia também é a nossa fé." (1 Cor 1 5,1 4)

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Herodes Agripa II, nem são os césares, mas é Jesus, o Cristo (At 17,6-7).Pelo batismo, participamos da ressurreição de Cristo c assumi

mos como projeto viver vida nova (cf. Rm 6,4-5).A ressurreição de Jesus é inseparável da sua cruz. Na pregação dc

Paulo, elas estão intimamente associadas (ICor 1,23).Ao concluir este item, lembramos que, na experiência dc P;iulo, n

cruz é o poder de Deus (ICor 1,18). E um poder que se maniic.sin na fraqueza, no não-poder, segundo os critérios dos potentes deste mun do. Confiar na cruz é confiar unicamente em Deus, é contar somente com a sua força (2Cor 13,4) que, na verdade, está presente na realidade da vida do povo pobre e trabalhador, pois é ele que carrega o peso da sociedade. Leia com atenção os quatro primeiros capítulos da Primeira Carta aos Coríntios!

Libertando-nos de preconceitos

Exercei a ádadania de acordo com os critérios do Evangelho

de Jesus Cristo, lutando juntos com uma só alma pela f é do Evangelho. ”

(cf. F11,27)

Paulo e sua equipe deram uma grande contribuição no resgate da gratuidade nas relações com o sagrado, ao propor a nova justiça de Deus que se revela na Boa-Nova de Jesus através da adesão pela fé. Retomaram a luta dos autores do Livro de Jó na defesa da experiência de Deus como graça, como dom. A conversão de Paulo, na verdade, se deu justamente a partir dessa sua nova imagem de Deus

Conseqüência dessa nova compreensão de Deus foi a nova visão também em relação às pessoas e às coisas. Como vimos, pobres, estran­geiros e escravos tinham lugar garantido nas comunidades que organi­zaram. Mulheres atuavam em pé de igualdade ao lado de homens. Ao praticar a partilha nas casas, as igrejas domésticas eram sinais vivos do Reino presente em meio à humanidade. Dessa forma, transformavam-

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se em fermento no meio da massa e luz para o mundo, subvertendo as relações opressivas da sociedade de então.

Paulo se libertou de uma série de preconceitos da cultura judaica de sua época. E o caso das leis de impureza em relação a estrangeiros, a pobres, a mulheres e a certos alimentos. Na sua experiência com Jesus ressuscitado, descobriu que tudo o que escraviza as pessoas, submeten­do-as a suas paixões egoístas, deve ser evitado nas novas relações vivi­das nas igrejas cristãs. Por isso, recomenda que se evite reproduzir o modelo de vida das classes dominantes como, por exemplo, de Roma (Rm 1,18-32), de Corinto (ICor 6) e da Galácia (Gl 5,16-21). Não deixe de conferir os textos!

As relações dessas elites eram de injustiça, de espoliação e de promiscuidade. Oprimiam os pobres enquanto coletividade e enquanto corpos de pessoas em particular. Em oposição a essa prática injusta, Paulo convida a viver novas relações com base na liberdade, no amor e no respeito, pois nossos corpos foram resgatados por Jesus, tornando- se templos do Espírito Santo (ICor 6,19-20; Gl 5,1.13-14).

Na nossa formação, porém, escutamos sérias acusações contra Paulo. Certamente você já ouviu dizer que Paulo também é culpado pela discriminação da mulher nas igrejas e conseqüentemente na socie­dade (cf. ICor 14,33b-35). Ouviu também falar de que ele foi indiferen­te frente à opressão dos romanos (cf. Rm 13,1-7) e à escravidão (cf. ICor 7,21-24). Será que foi assim mesmo?

Para fazer essa discussão, vamos nos ater somente às cartas autênti­cas de Paulo (Rm, l-2Cor, Gl, Fl, ITs e Fm). As cartas pós-paulinas são posteriores e serão estudadas no próximo volume. Aliás, seriamos injustos com Paulo se lhe imputássemos textos pelos quais não é responsável e possivelmente discordaria de uma série de questões neles documentadas.

Paulo e as mulheresAntes de entrar na relação de Paulo com as mulheres, convém

lembrar que ele certamente não era totalmente santo. Devido à sua iormação, é provável que tenha mantido alguns resquícios patriarcais na forma de se relacionar com as pessoas.

Para analisar o papel das mulheres nas igrejas domésticas e nas

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equipes missionárias das comunidades helenistas, partimos dft PriffülfR Carta aos Coríntios.

As comunidades de Corinto eram formadas, na sua nutioint, poí pessoas pobres (fracos/vis/desprezíveis), como você já leu em ICoí 1,26-29.

Havia também algumas pessoas ricas (fortes/sábias/n< ibres). Tan­to umas quanto outras vinham de práticas religiosas comuns na ( jfédii (ICor 12,2). Com essa composição das comunidades de Corinto, não foi nada fácil superar as relações de dominação dos fortes sobre os fracos.

Como toda a cultura grega, a sociedade de Corinto era escravo­crata e patriarcal. A proposta de Paulo e de sua equipe, fiéis ao Projeto de Jesus, foi a superação total dessas relações de opressão. Praticamente toda a Primeira Carta aos Coríntios é dirigida contra os fortes, vindo em defesa dos fracos e desprezados. Em toda sua extensão, a carta questiona os valores vigentes na sociedade escravocrata da Grécia em parte ainda reproduzidos pelos fortes na comunidade. Para Paulo, a igreja deve ser “um em Cristo”. Para alcançar esta união, ele se solidari­za com os mais fracos e vis (cf. ICor 8,7-13; 9,22; 12,22-25).

Na Primeira Carta aos Coríntios, três são as referências a mulhe­res: ICor 7,1-16.25-40; 11,2-16 e 14,33b-38. Em todas elas, Paulo de­fende a igualdade de direitos de mulheres e de homens.

No capítulo 7, diante de questões levantadas pelos coríntios em uma carta (7,1), Paulo os orienta para que vivam a total reciprocidade nas relações conjugais, bem como em outros casos. Confira isso, lendo ICor 7,1-16.25-40!

O texto de ICor 11,2-16 é a respeito do “véu” das mulheres e não é tão simples a sua interpretação. Sem querer esgotar a discussão, desta­camos alguns aspectos.

1. v. 3: Fazendo memória da narrativa sobre a “origem” (normal­mente traduzido por “cabeça”) da mulher a partir da costela de Àdào (Gn 2,21-24), Paulo afirma que assim também o homem tem sua “ori­gem” em Cristo e este em Deus.

2. v. 4: De acordo com o costume da época, Paulo considera que os homens desonram a Cristo (sua origem) quando oram usando cabe­lo longo (“cabeça coberta”).

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3. w . 5-6: é importante ressaltar que as mulheres não precisam ficar caladas nas igrejas. Nas comunidades helenistas, da mesma forma como os homens, elas oram e proclamam a Boa-Nova de Jesus (“profe­tizam”). No entanto, Paulo recomenda que o façam de cabeça coberta, isto é, de cabelos longos, pois estes é que são o seu “véu”. A palavra “véu” somente aparece no v. 15. Nos w . 6.13, muitos tradutores acres­centam essa palavra que não está no texto original.

4. w . 7-9: Esses versos devem ser a posição dos fortes da comu­nidade, ainda muito marcados pela cultura patriarcal da época, que con­sidera a mulher uma serviçal do homem (w. 8-9). Eles ainda têm difi­culdade em admitir a igualdade defendida por Paulo (Gl 3,28), fiel ao que está na primeira narrativa da criação, onde diz que tanto homens como mulheres são imagem e semelhança do criador (Gn 1,26). Veja como os fortes afirmam ser somente o homem imagem de Deus (v. 7).

5. v. 10: A palavra que, em geral, é traduzida por “dependência” ou “sujeição”, na verdade, significa “autoridade”. Se esse verso tam­bém é fala dos fortes de Corinto, então dizer que “a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal de sua autoridade” é uma referência a seu marido. No entanto, caso for a contestação de Paulo a seus adversários na comunida­de, a situação muda. Nesse caso, ele defende que a mulher mesma deve ter força para decidir ou ter autoridade na sua cabeça, da mesma forma como os homens, em total reciprocidade como defende nos w. 11-12.

6. w . 11-12: Certamente, esses versos são de Paulo, uma vez queseguem a mesma linha de Gl 3,28 e a prática de Paulo em relação às mulhe­res, como ainda veremos. Diferentemen­te dos w . 7-9, aqui homens e mulheres vêm um do outro e são interdependen­tes.

7. w . 13-16: Temos aqui um re­torno à questão cultural a respeito do uso de cabelos curtos para os homens e longos para as mulheres. Paulo relativiza a questão, pedindo à comunidade que ela mesma decida a respeito, dando a entender que perder tempo, discutindo sobre o tamanho do cabelo, é questão secun­dária. Aliás, não se tinha o costume de discutir a respeito nas demais

"Pois, se a mulher foi tirada do homem, o

homem nasce da mulher, e tudo vem de Deus."

(IC o r 11,12)

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igrejas (v. 16). Para Paulo, o tamanho do cabelo não pode sei* niiitiv»! para dividir a comunidade. Se divide, recomenda que uiin se abandone o costume em vigor.

O 3o texto (ICor 14,33b-38) é o mais polêmico. Por isso, convem que antes façamos uma breve observação sobre o estilo literátin drt Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Esta carta é composta por várias respostas de Paulo a questões apresentadas pela comunidade. Chega ram até ele ou através de informações da família de Cloé (1,11) ou pof escrito (7,1). Paulo responde, um a um, os pontos levantados, reintef* pretando-os, refutando-os ou alargando seu sentido. Desse modo, de­safia os destinatários da carta. O estilo de retórica usado por ele é co­nhecido na pesquisa por diatribe. Quer dizer: Paulo anota primeiro â posição dos interlocutores para, logo depois, complementá-la, refutá-la ou comentá-la. Essa refutação ou complementação, às vezes, é posiçâü pessoal de Paulo (7,12) e, às vezes, é preceito de Jesus (7,10). Você já percebeu como no texto anterior há mistura de posições dos fortes de Corinto com os comentários de Paulo.

No Brasil, há um estilo parecido nas trovas populares em que, na seqüência de versos, o trovador seguinte começa sua intervenção, reto­mando a última fala de seu interlocutor.

Podemos perceber esse estilo de retórica, entre outros, nos se­guintes textos:

Posição dos adversários de Paulo Posição de Paulo

1,12: ‘Eu sou de Paulo, eu sou de Apoio, eu de Cefas e eu de Cristo. ”

1,13: “Está Cristo dimãdoV’

6,12a: “Tudo me épermitido. ” 6,12b: ‘Mas nem tudo convêm."

6,12c: ‘Tudo me épermitido.” 6,12d: ‘Mas não me deixarei escravi^trpor coisa alguma. ”

7,1b: “É bom ao homem não tocar em mulher. ”

7,2-6: ‘Todavia, para evitar a fhrmcttfâê, tenha cada homem sua mulher í cada mulher o sen marido..."

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É dentro desse estilo de retórica que interpretamos ICor 14,33b- 38. E possível ler os w . 33b-35 como a posição de alguns homens na comunidade de Corinto. Este grupo queria impor a superioridade dos homens dentro da assembléia litúrgica. Já os w . 36-38 são a posição de Paulo e de Jesus, opondo-se energicamente à proposta de rebaixar e calar as mulheres. Paulo vem em sua defesa e em defesa da igualdade.

Vejamos o texto:

Posição dos adversários de Paulo

(33b) “Como em todas as igrejas dos santos, (34) as mulheres calem nas assembléias, porque não lhes é per- mitido falar, mas estejam subordina­das, como di% também a Lei. (35)E se desejam aprender algo, pergun­tem aos próprios maridos em casa, porque é indecoroso para uma mu­lher falar na assembléias. ”

Posição de Paulo

(36) “A caso a palavra de Deus saiu de vós? Acaso fostes vós os únicos que a recebestes? (37) Se alguém pensa ser pro­feta ou ter dons espirituais reconheça no que vos escrevo um preceito do Senhor. (38) Porém, se algtiém o ignora, será ig­norado. ”

Há várias evidências que nos levam a interpretar esse texto como diatribe, sendo os w . 33b-35 a posição de um grupo de Corinto e os w . 36-38 a resposta de Paulo.

1. As duas perguntas do v. 36 são introduzidas pela partícula e/ acaso/por ventura/ou. Sua função é de conjunção negativa. E uma negação daquilo que vem antes.

2. A palavra “únicos” é plural e masculina. Portanto, a pergunta “acaso fo s tes pós os únicos que a recebestes?” é dirigida por Paulo aos homens que defendem a posição de que as mulheres não recebem a Palavra de Deus. Em sentido afirmativo, Paulo diz que a Palavra de Deus não vem somente aos homens, mas também às mulheres. Já em 11,5, Paulo havia escrito que as mulheres também recebem a Palavra de Deus, orando e profetizando. Pelo que sabemos, Paulo não sofria de amnésia. Por isso,

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dificilmente negaria o que afirmara poucas linhas acima (compare 11,5 e 14,33b-35!).

3. Paulo passou toda a sua vida defendendo a verdade do evange­lho (cf. Gl 2,5.14). Esta verdade é a liberdade em Cristo que se revela na nova justiça de Deus (cf. Gl 2,16; 5,1). Para viver a liberdade em Crislo é necessário romper com as obras da lei. Paulo aprendeu de Jesus que a lei deve estar a serviço da vida (cf. Mc 2,1-3,6). Em Gl 5,13-14, temos como que uma síntese da Boa-Nova de Jesus Cristo segundo Paulo: ‘Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade, usando- a como pretexto para servir a carne. A.0 contrário, fa^ei-vos servos uns dos outros pelo amor. Pois toda l^ei se encerra numa só palavra: Amarás teu próximo como a ti mesmo O resumo da lei é o amor ao próximo como a si mesmo. “O amoré o cumprimento da L ei” (Rm 13,10). Por sua postura crítica a toda lei contrária à liberdade em Cristo, Paulo jamais recorreria à autoridade da lei judaica para rebaixar e silenciar as mulheres. Por isso, os w . 33b-35 não podem ser de autoria paulina.

4. A prática de Paulo em relação às mulheres, suas colaboradoras na evangeüzação, confirma a defesa de direitos iguais entre homens e mulheres. Paulo organizou comunidades em Corinto junto com mulhe­res. Em Atos 18, fala de Priscila que, em Rm 16,3, é chamada de “minha colaboradora”. ‘Para salvarem minha vida, (Prisca e Aquila) expuseram sua cabeça” (Rm 16,4). Provavelmente, Prisci­la coordenava a comunidade que se reu­nia em sua casa (cf. ICor 16,19; Rm 16,5).Em Corinto, temos ainda Febe, de Cen- créia, um dos portos de Corinto. Ela exer­cia o ministério de diácona naquela co­munidade. Além disso, a diácona era pro­tetora da comunidade. Ela “favoreceu a muitos e a mim” (Rm 16,1-2). Além dessas duas mulheres que junto com Paulo organizam as comunidades de Corinto, Rm 16 ainda faz referência a outras mulheres atuantes nas igrejas de Roma: “Maria, que muito trabalhou p o r vós” (v. 6). Júnia e An- drônico, companheiros de prisão de Paulo, são chamados de apóstolos (v. 7). Como Paulo e Pedro, Júnia também exerce o ministério do apos-

"Recomendo-vos Febe, nossa irmã, diácona da igreja de Cencréia, ... porque também ela foi

patrona de muitos, de mim inclusive."

(cf. Rm 16,1 -2)

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tolado. Ainda são citadas: Trifena, Trifosa e Pérside (v. 12), a mãe de Rufo (v. 14), a irmã de Nereu e Júlia (v. 15). Na Carta aos Fiüpenses são citadas Evódia e Síntique que eram líderes naquela comunidade (4,2-3). Em 1 Cor 1,11, Paulo faz menção a Cloé, de quem recebeu informações sobre as divisões das igrejas de Corinto. Poderíamos incluir ainda ou­tras mulheres como Tecla que, segundo o escrito extracanônico “Atos de Paulo e Tecla”, era uma importante apóstola em sua equipe. Essas mulheres são reconhecidas por Paulo como colaboradoras, apóstolas, diáconas e pessoas que se afadigaram na causa de Cristo. Isso supõe uma relação igualitária de Paulo com elas. Sua prática em relação às mulheres é o principal critério para se avaliar o que está escrito a respeito delas.

5. Quanto à relação entre homens e mulheres, Paulo assume uma fórmula batismal das comunidades, fazendo dela sua tese (cf. G1 3,27­28). Entre os batizados em Cristo, “j á não há nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus”. Paulo entendeu muito bem o sonho de Jesus para as comunidades. Uma vez que optaram pelo Evangelho de Cristo, seu compromisso é a vivência da radical igualdade. Todas as diferenças, que a sociedade de então fazia, são superadas. Na comuni­dade cristã, não haverá diferenças culturais, religiosas ou étnicas entre judeus e gregos, nem diferenças econômicas ou sociais entre escravos e livres e nem discriminação de sexo entre homens e mulheres.

6. Por fim, outro aspecto que nos ajuda a estar certos de que ICor 14,33b-35 não pode ser a fala de Paulo é a sua linguagem firme, quando necessário, mas também de muita temura. Veja, por exemplo, llm 8,22-23; ICor 3,2; 4,14-15; G1 4,19; F1 1,8; ITs 2,7-8; Fm 10!

Essas evidências nos parecem suficientes para que não atribua­mos a Paulo a repressão contra as mulheres na assembléia (14,33b-35). Essa é a fala de quem quer ter o controle sobre elas nas igrejas de Corinto. A reação de Paulo é enérgica e contrária a essa posição. Paulo, como Jesus, vem em defesa dos que sofrem discriminação. Diz, inclusi­ve, que a defesa da participação delas na assembléia litúrgica é preceito do Senhor (v. 37). Preceito do Senhor não é a fala dos fortes de Corinto, mas a fala de Paulo no v. 36, em que, transformadas as perguntas em nlirmação, ele diz que a Palavra de Deus não somente foi dada aos homens, mas também às mulheres. E isso é preceito do Senhor.

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De fato, nos evangelhos não se encontra nenhuma atitude ou palavra discriminatória de Jesus em relação às mulheres. Pelo contrário, Jesus resgata sua dignidade, como vimos nas páginas 178 a 181 do vo­lume anterior.

No v. 38, Paulo faz uma severa ameaça a quem não aderir ao mandamento do Senhor, isto é, a quem não aceitar a participação plena das mulheres nas assembléias.

Portanto, convém evitar conclusões apressadas sobre ICor 14,33b- 38 para não atribuirmos a Paulo e a Jesus o que possivelmente jamais afirmaram. Pelo contrário, lutaram contra toda e qualquer discriminação. E se isso está correto, convém redescobrir o papel da mulher nas igrejas e na sociedade, para que não seja discriminada. Foi sonho de Paulo, se­guindo fielmente o preceito do Senhor, que já não houvesse mais nem homem e nem mulher, mas somente um em Cristo (cf. Gl 3,28).

E possível que, desde seu início, algumas comunidades cristãs primitivas tenham vivido relações patriarcais. Mas também é fato que uma boa parte delas assumiu a vivência de novas relações. No entanto, muitas destas, a partir da segunda geração de cristãos, inclusive igrejas de herança paulina, passaram a adotar relações patriarcais, ainda antes do final do primeiro século. Isso já está presente nas cartas pós-pauli- nas e na Primeira Carta de Pedro. Por isso, também é possível que ICor 14,33b-35 seja um acréscimo posterior através do qual se buscou inse­rir, no texto paulino, a mentalidade que aparece nas cartas posteriores.

Mais de uma vez, Paulo escreveu em suas cartas que fôssemos seus imitadores como ele o foi de Cristo (ICor 11,1; 4,16; F13,17). Não lhe parece que, no decorrer da história das igrejas, tivemos uma atitude não muito coerente com a de Paulo e de Jesus no que diz respeito ao papel das mulheres na evangelização e no exercício dos ministérios?

Paulo e a opressão romanaQuando Paulo escreveu suas cartas, ele já tinha conhecimento

das conseqüências que viriam se houvesse uma rebelião contra o poder romano. Fazia pouquíssimo tempo que o imperador Cláudio havia ex­pulsado os judeus de Roma por motivo de uma agitação que promove­

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ram na capital por causa de intrigas com os cristãos. Em Corinto, mo­rou e trabalhou com um casal que sentira na própria pele a mão impla­cável dos césares (cf. At 18,1-4.11).

Naqueles anos, as igrejas cristãs eram pequenas e insignificantes comunidades, sem nenhuma força política, no imenso oceano do mili­tarismo opressivo do império.

Paulo conhecia também a prática repressiva do império contra os escravos, quando estes se rebelavam.

Por isso, tinha muito claro que não podia pregar uma insurreição antiimperialista. Não lhe parece que ainda hoje o poder imperial não tolera qualquer resistência contra seu domínio? Que acusa a resistência como terrorismo, reagindo com mão de ferro para manter seus interesses petrolíferos e militares? Sabemos que o “tiro” dado no coração do maior centro neoliberal, em 11 de setembro de 2001, teve como conseqüências diretas as ocupações do Afeganistão cm 2002 e do Iraque em 2003.

Apesar de saber da crueldade do império, no entanto, Paulo não aceitou resignadamente o império opressor.

Para compreender sua posição a respeito da submissão às autori­dades, convém que lembremos a teologia da filiação divina dos reis, como já vimos no estudo sobre o Primeiro Testamento. Segundo essa ideologia, todo poder pertence unicamente a Deus que o delega a go­vernantes. Compare SI 62,12, Pr 8,15-16 e Sb 6,1-11 com Rm 13,1-7!

Tanto em Sb 6,4, em Pr 8,15-16 como em Rm 13,4 nos é infor­mado quais são os critérios para saber quando o poder das autoridades de fato vem de Deus.

Sb 6,4 diz que o poder que vem de Deus é aquele que “julga com retidão” e “observa a lei”, isto é, a “vontade de Deus”. Pr 8,15-16 diria que é aquele que “promulga leis justas”. As autoridades que não exer­cem o poder a partir desses critérios são duramente criticadas em Sb6,5-11. Essa também é a posição unânime do movimento profético em Israel, como vimos no estudo do Primeiro Testamento.

Rm 13,4 vai na mesma linha e diz que as autoridades são “servi­doras de Deus para promover o bem” e “servidoras de Deus para fazer a justiça”. E mais. São também “servidoras de Deus para punir o mal”.

Diante disso, podemos perguntar: E autoridade que vem de Deus

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aquela que promove a escravidão e a opressão de seu povo e fteobtfti | corrupção? E autoridade que vem de Deus aquela que promove ft jjUiiN ra e a fome, agredindo, como águia, outros povos com sua voiaeldadi de extorsão e de domínio? E autoridade que vem de Deus aquela que persegue e calu­nia as pessoas que lutam em defesa da vida onde quer que ela esteja ameaçada?

Só por essas perguntas, você já per­cebe que, na verdade, Paulo não está cha­mando à submissão ao império. Mas está claramente insinuando que as autoridades romanas não estão cumprindo sua missão de promover o bem, a justiça, o julgamen­to reto, a vontade de Deus. Como também conscientiza seus leitores de que elas tam­bém não estão cumprindo a tarefa de pu­nir quem pratica o mal. E se promovem o mal, a injustiça e o suborno nos julgamen­tos, em vez de cumprir a vontade de Deus, então elas estão a serviço da vontade do demônio. Nisso, Paulo concorda com os autores de Ap13,2-4, para quem todo poder do mal não vem de Deus, mas do dragão, isto é, das forças do mal.

Também as comunidades que estão por trás de Lc 4,5-7 enten­dem que o poder do império ( “todos os reinos da terra” — cf. v. 5) procede do diabo. Na verdade, ao escrever dessa forma aos romanos, Paulo está sutilmente desmascarando o poder imperial.

Outro detalhe importante é perceber que Paulo, ao dizer que i l autoridades são servas de Deus, está afirmando que o imperador não é Deus. Somente deveria ser seu servidor. Desautoriza, portanto, a divi* nização dos césares e do império. Dessacraliza, portanto, as autoridl* des. Daí sua insistência em dizer que o imperador não é o Senhor, c sim Jesus. Só nas cartas autênticas, mais de 180 vezes Paulo atribui csg§ título a Jesus.

Na fala sobre as autoridades, ele apela para a “consciência” (Rm 13,5). Ora, o Deus das comunidades não são os deuses do império. Logo, eifl

"Pois a autoridade 4 servidora de Deus, para te conduzir ao

bem. Se, porém, praticares o mal,

teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela é

servidora de Deus para fazer justiça

e punir quem pratica o mal. "(cf. Rm 1 3,4)

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algum momento, a adesão a Jesus pode ordenar ruptura e desobediên­cia. E o que claramente vemos, por exemplo, em At 4,19. Essa foi a mesma convicção que o fez caminhar firme para o martírio.

Não se pode também esquecer que o contexto da recomendação quanto às autoridades é enunciado em Rm 12,14: ‘Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis!”Ou seja, Paulo tinha consciência cla­ra do conflito entre “evangelho” e “mundo”, como se vê a cada passo em Atos dos Apóstolos e no Evangelho segundo João.

Ao escrever Rm 13,1-7, acima de tudo, Paulo quer chamar a aten­ção dos cristãos de Roma pata que sejam prudentes e não “toquem a onça com vara curta”. Pois, certamente iria acontecer o mesmo que ocorreu no ano 50, quando o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma. Anos mais tarde, a perseguição de Nero veio dar razão a Paulo nesse ponto.

Apesar de toda a prudência de Paulo, não foi possível escapar da morte violenta a mando de Nero. Sua morte pelo império é o maior sinal de que sua postura diante do sistema de exclusão certamente era mais crítica e não de simples submissão.

Outros textos, ao longo de suas cartas, também mostram a cons­ciência que Paulo e sua equipe tinham em relação à estrutura de opres­são do mundo de então que era o Império Romano. Veja, por exemplo, Rm 1,18; 12,2; G11,4!

Ao colocar a cruz de Jesus como o centro de sua pregação, Paulo deixa claro que entendeu sua morte em direta relação com as forças de ocupação romana, pois a morte na cruz era a pena máxima que o impé­rio impunha a quem se rebelava contra ele, propondo um novo tipo de relações (ICor 2,8; At 2,23).

O fato de Paulo ter quebrado a espinha dorsal do sistema de escravidão, como veremos no próximo item, ajuda-nos a compreender que ele não foi tão submisso ao poder romano, como se tem afirmado injustamente.

As comunidades não se resignaram diante da opressão romana. Caso se tivessem submetido cegamente, como então explicar a perse­guição que sofreram? Outro sinal de sua resistência é a literatura de cunho apocalíptico. Certamente, é durante a perseguição de Nero que

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são escritos os capítulos 4-11 do Livro do Apocalipse. Seu assunto cen­tral é propor um novo êxodo, uma nova libertação de todas as potênci­as que geram morte e escravizam. Como a redação final do Apocalipse se deu em torno do ano 100, deixaremos o estudo desse livro para o último volume desta série.

Paulo e a escravidãoPassemos agora a analisar a posição de Paulo em relação à escra­

vidão. Ao falar de escravidão, necessariamente temos que dizer tam­bém algumas palavras sobre a liberdade.

Já vimos acima que Paulo certamente tinha claro que não era possível acabar com o sistema escravocrata no Império Romano (ICor7,21-23). No entanto, propunha uma nova prática nas pequenas comu­nidades que fundava, inclusive nas relações de classe. Dessa forma, cri­ava também uma nova consciência. Era a dignidade de todas as pessoas e o direito à liberdade diante de qualquer tipo de escravidão.

Essa nova prática nas igrejas helenistas não resolvia o problema social de classes. Porém, era uma contundente condenação do sistema escravocrata. Em seu lugar, propunha uma alternativa. As comunida­des cristãs eram, na verdade, células transformadoras que já antecipa­vam o mundo novo sonhado por Deus. Deslegitimavam a escravidão daquela época e de todos os tempos.

Paulo deixa claro seu princípio básico a respeito das relações de classe em Gl 3,27-28 e ICor 12,13. O batismo nos vocaciona para a liberdade. Batizar-se em nome de Jesus é assumir seu programa de vida que quer a superação de toda e qualquer forma de desigualdade. E hoje, como é nossa catequese sobre o batismo?

A respeito da libertação dos escravos, con­vém que olhemos o bilhete escrito a Filemon.Seu assunto único é a libertação do escravo Oné- simo. Leia todo o bilhete e perceba como Paulo e Timóteo insistem junto a Filemon para que não trate Onésimo como escravo, mas como um irmão muito amado (v. 16)!

E mesmo tendo consciência da impossibilidade de acabar com

"Ao contrário, se podes ganhar

a liberdade, aproveita a

oportunidade." (cf. IC o r 7,21)

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toda a escravidão no império, Paulo recomendava aos escravos que apro­veitassem a oportunidade de conquistar a liberdade, sempre que ela surgisse (cf. ICor 7,21). Dessa forma, Paulo foi aos poucos desmasca­rando a estrutura escravocrata. Foi quebrando a espinha dorsal da es­cravidão que servia de base para a economia imperial.

Até mesmo a opção de Paulo pelo trabalho foi uma forma de questionar o sistema de escravidão que considerava o trabalho manual como algo indigno, próprio para escravos. Já vimos acima a importân­cia da sua opção pelo trabalho manual.

Você, no entanto, pode estar lembrando de Ef 6,5 ou Cl 3,22 onde se lê: “Servos, obedecei em tudo aos senhores desta vida... Mais uma vez, lembramos que essas cartas são pós-paulinas e serão analisadas no pró­ximo volume.

Ainda há escravidão hoje? Somos escravos de quem e de quê? Escravizamos alguém? Somos livres da ideologia hegemônica do mercado global? Que medos nos escravizam? Que limites nos im­pedem de sermos livres em nossas relações cotidianas?

Se Paulo era tão crítico à escravidão, então tinha a liberdade como um dos centros de sua missão evangelizadora (G1 5,1.13). Paulo estava convencido de que a ação de Jesus era essencialmente libertadora em todas as dimensões da vida. Não é por acaso que tenha escrito aos coríntios que “onde está o Espírito do Senhor, a í está a liberdade” (2Cor 3,17).

Além da escravização exercida pelos senhores sobre seus escra­vos, outra forma de servidão que Paulo analisa longamente é a submis­são à lei (Rm 7; cf. v. 6). Não é por acaso a sua incansável defesa da nova justiça de Deus, cuja base não é o merecimento em retribuição às obras da lei, mas é dom gratuito pleno de amor, de misericórdia e de ternura.

Além da liberdade pessoal e interior, Paulo dá sua vida em favor de urna sociedade em que a liberdade seja, de fato, realidade. Luta incansa­velmente por novas relações, em que não haja mais escravos, mas somen­te irmãos. A partir da ceia eucarística, anuncia a superação total das dife­renças entre ricos e pobres. Elas não combinam com o Projeto de Jesus.

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Por isso, é muito duro com os fortes de Corinto que discriminam os pobres nas igrejas, como você já leu em ICor 11,17-34!

A comunidade não pode reproduzir a sociedade dividida. E ao praticar a partilha na comunhão de mesa, ela se torna uma prática subversiva que desmascara as estruturas sociais que ge­ram um abismo sempre mais profundo entre pobres cada vez mais pobres e ri­cos cada vez mais ricos. Não se deve esquecer o que escreveu aos fiéis de Roma: “Não vos conformeis com o sistema deste mundo!” (Rm 12,2).

Como já vimos, também a coleta cm favor das comunidades po­bres da Judéia mostra que a equipe de Paulo busca uma verdadeira re- distribuição dos bens, visando a uma mudança radical em favor de uma sociedade livre e de igualdade (cf. 2Cor 8,13-15).

No entanto, a liberdade não pode jamais ser pretexto para servir aos interesses egoístas e individualistas que Paulo chama de “carne”. A liberdade é o oposto do individualismo e deve ser um serviço à comu­nidade, tendo o amor como base das novas relações (Gl 5,13; Rm 7,25).

Paulo e o moralismoPaulo também tem sido usado para se ditar normas de compor­

tamento, insistindo em recomendações do tipo “devemos...” ou “é pre­ciso...”. Ou ainda, dando ênfase a proibições do tipo “não faça...”. Essa moral está mais baseada no medo do que na confiança em Deus e em sua graça.

Paulo se empenhou muito para anunciar a Boa-Nova da liberda­de, lutando para que estivesse livre da lei. A escravidão da lei leva a um comportamento que é dirigido desde o exterior das pessoas. A lei dita a forma como deve ser o agir. Nessa moral, não há decisões, não há dis­cernimento interior. Há somente obediência a regras externas. Por isso, Paulo tenta evitar, de todas as formas, que o evangelho se torne uma lei, a fim de permanecer sempre um projeto de liberdade. Somos livres na medida em que examinamos nossas atitudes para comportar- nos sob os princípios da liberdade e não como escravos.

"É para a liberdade que Cristo vos libertou."

(Gl 5,1)

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Essa é a razão por que insiste que abandonemos tudo aquilo que não conduz à liberdade, tudo o que fazemos sem discernimento e do­

minados por paixões que escravizam. Di­ante de qualquer comportamento, sugere que examinemos se determinada atitude nos torna mais escravos ou mais livres. Para ele, tudo o que nos leva à escravidão ou à submissão a paixões é algo mau que

não nos liberta.Paulo propõe um novo comportamento, novas relações que são

Iruto, não do medo diante do descumprimento da lei, mas da nossa resposta de amor a Deus que nos amou primeiro. E a ética do discerni­mento.

Paulo aplica essa moral da liberdade a inúmeras situações. Cite­mos algumas.

1. Diante dos sistemas de opressão de ontem e de hoje (“este mundo”), Paulo nos convida a discernir os valores do evangelho. Desa­fia-nos a não sermos deste mundo, embora estejamos nele. Em outras palavras, estimula-nos a não reproduzir os valores neoliberais, exortan­do-nos a já viver novas relações (Rm 12,2).

2. Se a prostituição nos escraviza, então deve ser evitada (ICor 6,12-20).

3. Se não é problema para minha consciência, posso comer car­nes sacrificadas a outras divindades. No entanto, o discernimento me leva a evitar seu consumo a fim de não escandalizar a quem não for esclarecido na fé (ICor 10,23-33).

4. Discernir na liberdade é deixar-se levar pelo Espírito, produ­zindo frutos de amor, alegria e paz. É também deixar de lado os desejos egoístas e individualistas (“carne”) que nos escravizam (G1 5,13-26; Rm8,6-7).

5. O discernimento a respeito da própria conduta tem como cri­tério a Lei de Cristo, que se resume no amor (G1 6,1-10; cf. w . 2.4 e G15,14).

6. Paulo deseja aos filipenses o crescimento no amor, de modo que possam discernir o que mais convém (F1 1,9-11).

"Tudo me é permitido. Mas não deixarei me escravizar por coisa

alguma." (1 Cor 6 ,12b)

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7. Por fim, lembramos a exortação à comunidade de Tessalônica: “Discerni tudo e fica i com o que é bom. ” (ITs 5,21).

Será que nossa ética também não está baseada demais em regras, em cânones exteriores? Será que nossa prática religiosa está ajudando as pessoas a serem mais livres para poderem distinguir por elas mesmas e com maturidade entre os valores que geram vida ou morte? Será que não interessa a muitas instituições manter uma moral legalista e impos­ta de fora, para manter as pessoas dependentes e alienadas? Sobre esse assunto, certamente Paulo e sua equipe têm muito a nos ensinar.

As cartas autênticas de Paulo e sua equipe

ÍM saudação é do meu próprio punho: Paulo. ”(ICor 16,21)

Na sua estratégia missionária, a primeira etapa era fundar peque­nas comunidades em grandes centros urbanos. Além da catequese bási­ca, preparava lideranças para levar adiante não somente a organização daquelas comunidades, mas também difundir a Boa-Nova nas cidades e aldeias em torno das grandes cidades.

Como segundo momento nesse processo de evangelização, Pau­lo fazia visitas para completar a catequese sobre Jesus de Nazaré e seu projeto do Reino de Deus. Nem sempre podia ir pessoalmente. Envia­va, então, algum de seus colaboradores, como Timóteo e Tito.

Quando nem isso era possível, escrevia cartas para suprir sua ausência física. Acima, já vimos que havia uma intensa correspondência entre as comunidades e Paulo através de cartas.

E verdade que as epístolas queriam também completar a obra missionária começada por ocasião das visitas, uma vez que Paulo não se detinha tanto tempo em cada comunidade. Porém, seu objetivo princi­pal era orientar as igrejas a respeito de problemas, conflitos e dúvidas que surgiam depois da partida da equipe missionária para outra cidade.

As cartas, portanto, não querem ser uma teologia acadêmica feita

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entre quatro paredes. São antes escritos ocasionais que fazem teologia a partir da prática, do cotidiano, dos problemas e dúvidas das comunida­des. Nesse sentido, Paulo foi desenvolvendo seu evangelho aos poucos, 11a medida em que sua prática ia deixando as coisas mais claras.

Para a elaboração das cartas, os missionários aproveitaram e inte­graram diferentes elementos de uso comum na tradição das igrejas, como formulas querigmáticas para as grandes afirmações da fé, estrofes de hinos, fórmulas litúrgicas de ação de graças, exortações, homílias, etc. Alem de trabalhar em equipe, Paulo também elaborava suas cartas em equipe, como já vimos.

As epístolas não são um catecismo de doutrina ou de teologia. Antes disso, são escritos ligados diretamente aos interlocutores, que levantam perguntas, preocupações, dúvidas ou pedem orientação dian­te de conflitos. Nesse sentido, são cartas que não podem ser lidas e aplicadas universalmente sem considerar seu contexto de origem. Mais <Í< > que se referir a temas universais, são textos que se referem a circuns­tâncias muito concretas e vinculadas a determinadas pessoas e realida­des. Até mesmo a Carta aos Romanos quer preparar a visita de Paulo à eapital do império. Nesse sentido, todas as cartas são pastorais.

Além de assuntos variados, quase todas as cartas contêm apolo­gias de Paulo. Isso quer dizer que são autodefesas de sua missão. Pri­meiro, Paulo defende seu título de apóstolo. Depois, é intransigente na defesa do evangelho da liberdade para as nações. Por fim, defende com unhas e dentes seu direito de trabalhar para seu próprio sustento.

Já vimos acima que os prosélitos e os tementes a Deus foram o público ideal para os missionários das igrejas de Antioquia. É que eles encontraram no Cristianismo todas as vantagens do Judaísmo sem as suas desvantagens, como a circuncisão e as leis de pureza em relação a certos alimentos. Para eles, as comunidades cristãs eram um judaísmo sem os tabus alimentares, sem a circuncisão e sem a rejeição de outras culturas. Como conseqüência disso, as igrejas helenistas são formadas por pessoas de diversas categorias. Entre seus membros, podemos en­contrar judeus, gregos, africanos, romanos, ricos atraídos pelo monote- ísmt > c pobres. Estes eram atraídos de modo especial pela solidariedade vivida nas comunidades. De um modo geral, as cartas querem resolver

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os conflitos da superioridade de judeus em relação a outras nações, de senhores em relação a escravos e de homens em relação a mulheres.

Certamente, sem saber que suas cartas seriam mais tarde os pri­meiros escritos do Segundo Testamento, Paulo e sua equipe expuseram sua postura teológica diante das dúvidas e conflitos concretos das igre­jas fundadas pelos missionários da comunidade cristã de Antioquia.

Chaves de leitura para as cartasNo quadro abaixo, anotamos uma possível ordem cronológica

das cartas autênticas, o provável local de redação e a equipe que partici­pou de sua elaboração.

Destinatários Data Local AutoresTessalonicenses 51 Corinto Paulo, Timóteo e Silvano

(ITs 1,1)

Coríntios (Ia carta) Entre 54 e 56 Éfeso Paulo e Sóstenes (ICor 1,1) Áquila e Priscila (1 Cor 16,19)

Gálatas Entre 54 e 56 Éfeso Paulo e os irmãos (G11,2)

Filípenses Entre 54 e 56 Éfeso Paulo e Timóteo (F11,1)

Filemoü e comunidade

Entre 54 e 56 Éfeso Paulo e Timóteo (Fm 1)

Coríntios (2a carta) Entre 55 e 56 Éfeso e Macedônia

Paulo e Timóteo (2Cor 1,1)

Romanos 56 Corinto Paulo e equipe (Rm 16,21-23)

A partir de agora, passaremos a fazer uma breve introdução a cada uma dessas cartas. Propomos que, na medida em que você ler cada chave de leitura, leia também a respectiva carta em sua Bíblia. Seguire­mos um esquema padrão, em que “quem” se refere aos autores, “onde e quando” ao local e data prováveis, “o que” ao assunto central e “como” à estrutura da carta. Além disso, haverá uma breve introdução a cada uma das comunidades destinatárias.

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Primeira Carta aos Tessalonicenses

“Nós, porém, que somos do dia, sejamos sóbrios, revestidos da couraça da f é e do amor,

e do capacete da esperança da salvação. ” (ITs 5,8; cf. 1,3) “Empenhai a vossa honra em levar vida tranqüila,

ocupar-vos dos vossos negócios e trabalhar com vossas mãos, conforme as nossas diretrizes.

Assim levareis vida digna aos olhos dos de fora... ” (cf. ITs 4,11-12)

Quem? Paulo, Silvano e Timóteo (1,1).Onde e quando? Em Corinto pelo ano 51.O quê? Qual a função de uma pequena comunidade na grande

cidade? Fé ativa, amor capaz de sacrifícios e firme esperança. E o tripé que sustenta a comunidade dos tessalonicenses. É a mais importante chave de leitura desta carta que constitui o primeiro texto do Segundo Testamento. Esta carta quer estimular a perseverança da comunidade e quer responder algumas questões que a preocupam, como a vinda glo­riosa de Cristo, que deve ser aguardada na esperança e no compromisso com as tarefas diárias. Para compreender as cartas paulinas, e de modo especial esta, precisamos sempre ter presente que Paulo e sua equipe foram muito influenciados pelo movimento apocalíptico. Considera­vam que o fim do mundo e a vinda do Reino estavam próximos. Aguar­davam o dia do juízo final, quando o ultimo império cairia, dando defi­nitivamente lugar ao Reino de Deus. ITs 4,16-17 deixa claro que Paulo esperava o fim em um tempo muito curto. Acreditava que ainda estaria vivo quando Jesus iria voltar. Veja ainda ICor 7,29; 15,51-52!

A carta também é um grito de alegria e gratidão (l,7s) e se dirige de modo especial a pessoas não-judias convertidas ao evangelho (1,9).

Ainda não há muita organização eclesíal, pois não há referências à hierarquia na carta, mas se fala em líderes espirituais (5,12-13).

Como?• 1,1-3: Saudação e ação de graças.• 1,4-10: Apresentação dos temas:

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— v. 8: Fé ativa (2,1-3,10);— v. 9: Servir a Deus no amor capaz dc. sacrifícios (3,11-4,12);— v. 10: Firmeza na esperança (4,13-5,11).

• 2,1-3,10: Fé ativa que subsiste em meio a tribulações.— 2,1-12: Exemplo do apóstolo;— 2,13-3,10: Exemplo da comunidade em meio a perseguições.

Completar o que falta na fé (3,2.10).• 3,11-4,12: Amor capaz de sacrifícios. Completar o que falta no

amor (4,1.9-10).• 4,13-5,11: O tema central da carta é a firmeza na esperança,

corrigindo o que falta na esperança.— 4,13-18: Ressurreição dos mortos;— 5,1-11: Fim dos tempos. E texto apocalíptico.

• 5,12-22: Síntese e exortações várias.• 5,23-28: Oração e saudação final.

Contexto:Tessalônica era a capital da região chamada Macedônia. Ficava

perto do mar. Ali, chegavam navios do mundo todo. As grandes estra­das do império passavam por ela. Sua população era diversiiicadn: cada qual com sua cultura, língua, deuses, folclore, superstições, tradições, etc. Os comerciantes levavam e traziam mercadorias do mundo inteiro. Na cidade há pensões, hospedarias, saunas, teatros, praças, santuários, prostituição. No campo, há rebanhos, cultivo de oliveiras, uva, frutas. As terras estavam nas mãos dos latifundiários. No mar, muitos pesca­dores tiram das águas o sustento que vai alimentar estivadores, comer­ciantes, marinheiros, soldados, funcionários públicos, etc.

Tessalônica possuía uma elite dominante, formada pelas lideran­ças políticas e militares e pelas minorias que detinham e controlavam o comércio e os meios de produção. Os setores médios eram formados por funcionários públicos, militares e outros. A maioria do povo era pobre. Eram escravos e carregadores do porto, que não participavam das decisões. Não tinham voz nem vez.

Paulo chegou ali em 50/51, vindo de Filipos (At 17,1-15). De­pois de alguns meses de pregação, os judeus, movidos de inveja, provo-

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ninim um motim, forçando a saída precipitada de Paulo e Silas para liercia, de onde também tiveram que fugir, indo para Atenas. Dali, Pau- U > enviou Timóteo de volta a Tessalônica a fim de consolidar a comuni­dade.

Primeira Carta aos Coríntios

"Os membros ck corpo que parecem mais fracos,são os mais necessários, e aqueles que parecem

menos dignos de honra, são os que cercamos demaior honra, e nossos membros que são menos decentes,

nós os tratamos com mais decência. ” (ICor 12,22-23)

Quem? Paulo e Sóstenes (1,1). Priscila e Aquila também devem ter colaborado (ICor 16,19).

Onde e quando? Em Efeso (ICor 16,8-9) pelo ano 55, durante ;i terceira viagem missionária.

O quê? Quer restabelecer a unidade na comunidade que estava dividida por grupos que brigavam entre si, apoiando-se na autoridade de alguns pregadores (ICor 1,12). Adverte que o único líder é Cristo, a sabedoria de Deus. A comunidade de fé deve ser unida na pluralidade, sem discriminar ninguém, superando os conflitos em comunidade.

Como?• 1-4: Pessoas da casa de Cloé (ICor 1,11) informam que há con­

ditos entre ricos e pobres que dividem a comunidade. Conseqüente­mente, há rivalidades entre as lideranças, formando partidos. Paulo toma a defesa dos fracos. Opta pelos pobres, escravos, trabalhadores manu­ais c analfabetos. Insiste em que as lideranças devem ser servidoras da comunidade (3,5; 4,1), colaboradoras de Deus (3,9) e administradoras dos dons de Deus (4,1), animadas pelo Espírito (2,12). Mais que pro­moção pessoal, é um dom do Espírito servir a comunidade, que é tem- pl<) de Deus. Os empobrecidos são possuidores da sabedoria de Deus.

• 5-6: Paulo enfrenta três casos de práticas imorais que os fortes

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continuam reproduzindo nas comunidades, recomendando que se re­solvam as questões na comunidade. O primeiro caso c em relação a um incesto. Uma pessoa da igreja convive com sua madrasta, enquanto os fiéis não reagem (5,1-13). No segundo caso, há irmãos cometendo in­justiças contra outros membros da comunidade. Estes buscam resolver as questões no tribunal da cidade junto a pessoas comprometidas com um sistema injusto, em vez de resolvê-las fraternalmente na comunida­de (6,1-11). O terceiro caso é em relação à santidade do corpo. Sendo templo do Espírito Santo, não convém submetê-lo a paixões que escra­vizam, como no caso da prostituição (6,13-20).

• 7: A partir do capítulo 7, Paulo responde as questões que rece­beu através de uma carta. Neste capítulo, ilumina tensões e dúvidas a respeito de pessoas casadas, separadas, solteiras, viúvas, bem como a respeito de casamentos mistos, da circuncisão, da escravidão, da virgin­dade e dos noivos. Convém levar em conta que Paulo dá suas orienta­ções influenciado por sua esperança no juízo final iminente (cf. v. 29). Paulo aplica sua tese de G13,28 a casos bem concretos. “Já não há homem nem mulher” está desenvolvido em 7,1-16.25-40. “Já não há nemjudeu nem grego ”está em 7,17-20. ‘J á não há nem. escravo e nem livre” tem sua aplicação em 7,21-24.

• 8,1-11,1: Em ICor 8 e 10,14-11,1, Paulo reflete sobre a partici­pação nos cultos às divindades gregas. Recomenda que, mesmo tendo o direito de comer das carnes sacrificadas a ídolos que não existem, nunca se escandalize as pessoas que ainda não têm firmeza na fé (cap. 8). Por um lado, é interessante notar que Paulo não observa o decreto dejerusalém (At 15,20.29). Se não recomenda comer das carnes sacri­ficadas aos ídolos, é por respeito aos mais fracos e não por imposição. Por outro lado, considera que não há como comer em banquetes de comunhão nos cultos que legitimam a sociedade estratificada em clas­ses e, ao mesmo tempo, participar da comunhão cristã que legitima um projeto de convivência fraterna. São projetos antagônicos (10,14-22). Depois volta a chamar a atenção para que se respeite a consciência dos pequeninos (10,23-11,1; cf. Mc 9,42). Entre esses dois blocos (capítulos 8 e 10,14-11,1), Paulo se apresenta como modelo de quem podia usar,

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por exemplo, o direito de ser sustentado pelas comunidades e não o fez, :i fim de anunciar a Boa-Nova gratuitamente, solidarizando-se com ju­deus, não-judeus e com os fracos. E exemplo de renúncia e modelo de agente de pastoral (cap. 9). Em 10,1-13, lembra exemplos da história de Israel para servirem de advertência às comunidades para se manterem fiéis a Deus.

• 11,2-14,40: Esses quatro capítulos querem trazer luzes a respei­to de dúvidas quanto às celebrações litúrgicas. A parte inicial é em rela­ção ao costume referente ao tamanho dos cabelos de homens e mulhe­res que oram e profetizam na assembléia (11,2-16). A parte central se refere à celebração da ceia, que não pode reproduzir a desigualdade social dentro da comunidade. Pelo contrário, a eucaristia celebra a par­tilha e a fraternidade, sinais do Reino de Deus já presente entre nós (11,17-34). A terceira parte trata dos dons concedidos pela Trindade (capítulos 12-14). Essa reflexão de Paulo e sua equipe certamente foi motivada porque alguns fortes na comunidade queriam se sobrepor aos mais fracos através do dom das línguas. Ao ler as listas de dons em 12,8-10 e 12,28-30, você logo perceberá que, para Paulo, os carismas das línguas c da sua interpretação estão em último lugar. E os capítulos 13 e 14 querem dizer que o amor é o dom maior entre todos além da fé e da esperança. Além do dom maior, recomenda que se aspire especial­mente ao carisma da profecia (14,1) e faz restrições ao dom das línguas (14,2ss). O critério para o exercício dos dons é que “falem aos homens, edificando, exortando, consolando” (cf. w . 2-5.12.17.26), de modo que promovam a unidade na diversidade e o cuidado pelos mais fracos (12,12­26). No entanto, é digno de nota como Paulo respeita a diversidade de manifestações no culto das comunidades de Corinto. Anunciou a liber­dade e, ao mesmo tempo, deixou liberdade para as igrejas que fundou. No centro dos três capítulos referentes aos dons, está um belo hino ao amor (cap. 13).

• 15: A fé na ressurreição não era algo pacífico nem no Judaísmo. Muito menos o era no mundo greco-romano. Era, portanto, natural que surgissem muitas dúvidas a respeito. Neste capítulo, Paulo reafirma a fé na ressurreição e, ao mesmo tempo, procura esclarecer a compre­ensão a seu respeito.

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• 16: A conclusão contém notícias sobre a coleta, sobre os pla­nos de viagem de Paulo, além de outras notícias e recomendações.

Contexto:Corinto era uma das cidades mais importantes do Império Ro­

mano. Tinha em torno de 400 mil habitantes, na maioria migrantes. Em 27 a.C., tornou-se a sede da província da Acaia (Grécia). A cidade era muito movimentada, com dois portos: Laqueu, a oeste e Cencréía, a leste. Ligavam Roma à Ásia. Os escravos carregavam as mercadorias e empurravam os navios por cerca de seis quilômetros entre um porto e outro. Era trabalho duro. Em Corinto, morava a maioria dos latifundi­ários da Grécia. Havia um abismo entre ricos c pobres. Corinto era centro comercial, administrativo, industrial (por exemplo: bronze) e cultural.

O poder político e econômico estava nas mãos de poucos que viviam explorando os pobres e escravos, deliciando-se com festas, mú­sica, teatro e com os jogos ístmicos. Estes eram realizados de dois em dois anos em honra a Posêidon, Deus dos mares. Veja como Paulo se vale da linguagem esportiva, conferindo ICor 9,24-27!

Havia todo tipo de religião e cultos a várias divindades. Algumas delas: Zeus (Pai dos Deuses, Senhor do céu e da terra e do raio — 2Mc 6,2; At 14,12). Em sua homenagem, eram realizados os jogos olímpicos de quatro em quatro anos. Hermes, mensageiro do Olimpo, Deus do comércio, da eloqüência e da cultura (At 14,12). Artemis, Deusa virgem da caça, da terra, da fertilidade (At 19,24). Afrodite, Deusa do amor, da beleza e da fertilidade. Apoio, Deus da guerra, da beleza e das artes, que envia a doença e a cura. Dionísio, Deus do vinho.

A cidade tinha má fama. “Viver como coríntio” era o mesmo que viver desordenadamente a sexualidade. Para muitos, o prazer era a única finalidade do corpo (cf. 6,9-10). Paulo não entrou em Corinto pela porta dos poderosos, e sim pela dos escravizados, dos crucificados da história, dos quais a sociedade nada espera a não ser sua mão-de- obra gratuita (1,26-28).

Chegou em Corinto durante sua segunda viagem (51), permane­cendo ali 18 meses (At 18,1-18). Associou-se a Priscila e Aquila tanto

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d o trabalho artesanal quanto na evangelização. Posteriormente, visitou ainda duas vezes, pelo menos, as comunidades que fundara, como vere­mos no próximo item.

Segunda Carta aos Coríntios

‘Voi ele quem nos tornou aptos para sermos ministros de uma novaaliança, não da letra, e sim, do Espírito, pois a letra mata,

mas o Espírito comunica a vida. ” (2Cor 3,6)“Pôr isto, eu me comprado nas fraquejas,

nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições,nas angústias p o r causa de Cristo. Pois, quando sou fraco,

então ê que sou forte. ” (2Cor 12,10)

Quem? Paulo e Timóteo (1,1).Onde e quando? Em Efeso e na Macedônia por volta do ano 56.O quê? Na Segunda Carta aos Coríntios, aparece com força a

questão do agente de pastoral e do poder. Mostra o conflito aberto entre Paulo e apóstolos vindos de Jerusalém, chamados de superapós- tolos (cf. 11,5). Tito é apresentado como mediador do conflito. A carta 1rata abundantemente dos falsos agentes de pastoral nas comunidades de Corinto. Alegra-se pela reconciliação alcançada. Recorda o mutirão dc solidariedade para com os empobrecidos de Jerusalém.

Como?2Cor é uma coleção de cartas. Este é o exemplo que mais clara­

mente mostra a intensa correspondência entre Paulo e as comunidades que fundou.

Propomos a seguinte reconstrução das cartas às igrejas de Corin­to desde a primeira:

• Primeira: Em ICor 5,9, Paulo fala de uma primeira carta. Essa se perdeu. Ou, para alguns, essa carta seria o trecho de 2Cor 6,14-7,1. Para a maioria, no entanto, esses versículos são dêutero-pauünos.

• Segunda: É a carta que conhecemos como Primeira Carta aos Coríntios.

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• Terceira: Depois de visitar a comunidade, onde é enfrentado abertamente por algumas pessoas, Pauio envia outra carta de Éfeso, para se defender, sem contudo obter resultados satisfatórios. É uma reflexão sobre o agente de pastoral e o poder. Seria 2Cor 2,14-6,13 +7,2-4. Nesta carta, Paulo trata de modo especial a questão do poder da tradição (3,1-18), da sedução que engana (4,1-5,10) e das aparências (5,11-17). Além disso, trata da reconciliação (5,18-6,2), fazendo um re­trato do agente de pastoral (6,3-10).

• Quarta: Partindo de Éfeso, Tito c portador dessa quarta carta por volta de 56, tentando mediar o conflito dc Paulo com a comunidade. Seria 2Cor 10-13, em que Paulo defende, indignado, a autenticidade de seu ministério apostólico contra os superapóstolos. Kstes o acusam de ser fraco (10,1-11) e ambicioso (10,12-18). Defende-se desses missio­nários que querem desacreditá-lo. Repreende também os coríntios que acreditaram em suas calúnias e diz que é justamente na fraqueza e no sofrimento que está o seu poder, o poder mesmo dc Deus (11,1-13,10).

• Quinta: Paulo encontra Tito numa das cidades da Macedônia (cf. 2Cor 7,5-6). Este o informa de que o conflito foi superado. Então escreve a carta da reconciliação: 2Cor 1,1-2,13 + 7,5-16. Começa com um hino de louvor pela consolação recebida de Deus (1,3-11) e expres­sa sua alegria porque perdoou a quem o havia caluniado na comunida­de (1,12-2,11). Por fim, tira ensinamentos a partir do conflito vivido com os coríntios (2,12-13; 7,5-16).

• Sexta: Feitas as pazes com a comunidade, Paulo lembra um compromisso assumido há mais tempo (cf. ICor 16,1-4) e que ainda não havia sido realizado. De um lado, era a solidariedade com as igrejas pobres de Jerusalém. De outro, era a forma de promover a unidade com as igrejas da Judéia. Este bilhete escrito na Macedônia está em 2Cor 8. Tito, seu portador, levou na bagagem outro bilhete sobre o mesmo assunto, destinado às outras comunidades da Acaia. Ele se en­contra em 2Cor 9. É o grande mutirão de partilha para a igualdade.

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Carta aos Gálatas

“I iu vivo, m asjá não sou eu que vivo, pois é Cristoque vive em mim. Minha vida presente na carne,

eu a vivo pela f é no Filho de Deus,que me amou e se entregou p or mim.

Não invalido a graça de Deus,porque se épela Lei que vem a justiça,

então Cristo morreu em vão. ” (Gl 2,20-21)

Quem? Paulo (1,1) e os irmãos que estavam com ele (1,2).Onde e quando? Em Éfeso pelo ano 55.O quê? Junto com 2Cor 10-13, é a carta mais radical. Destaca

com força os temas paulinos. E acusação (1,7-10) e defesa, apologia (1,11-20). Quer afirmar a autenticidade de seu apostolado junto aos gálatas, cuja fé fora abalada com a pregação de cristãos de tendência judaizante. A palavra-chave é a liberdade em Cristo: “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (5,1a). Os que vivem segundo a lei não vivem a liberdade dada por Jesus. Os cristãos são pessoas novas que vivem na liberdade, agindo pelo amor (5,6) e guiados pelo Espírito (5,16-26). Gl 3,28 resume a transformação trazida pelo evangelho. Da escravidão da lei, do império, dos opressores, dos maridos e de divinda­des manipuladas, o evangelho liberta para a fraternidade: “Não há mais discriminação entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mu­lher”. Superação das discriminação de cultura, classe e gênero.

Como?• 1,1-5: Introdução.• 1,6-2,21: Afirma a verdade do evangelho.- 1,6-10: Defesa do evangelho único;- 1,11-24: Paulo é apóstolo por chamado de Deus;- 2,1-10: Concilio de Jerusalém;- 2,11-14: Paulo enfrenta Pedro em Antioquia;- 2,15-21: A verdade do evangelho.

• 3-4: A fé liberta enquanto a lei escraviza.

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— 3,1-14: Fé e lei: exemplo de Abraão;— 3,15-18: Promessa e lei;— 3,19-24: A lei como pedagoga;— 3,25-4,11: A fé liberta da lei c. nos torna filhos e filhas;— 4,12-20: Súplica de Paulo aos gálatas;— 4,21-31: Liberdade e escravidão.

• 5,1-6,10: Da escravidão à liberdade.— 5,1-15: O amor é a base da liberdade cristã;— 5,16-26: A vida no Espírito;— 6,1-10: Ajudar-se mutuamente é cumprir a Lei de Cristo.

• 6,11-18: Conclusão e despedida.

Contexto:A Galácia era uma das províncias da Asia Menor. Sua capital era

Ancira. Seus habitantes eram celtas ou gauleses, de origem indo-ariana, que no século 3 a. C. emigraram para essa região. Era um povo formado por uma mistura de etnias, entre as quais muitos escravos e mercenários. Havia, na região, famosos mercados de escravos. A maioria das terras pertencia ao império.

As comunidades da Galácia eram na sua totalidade formadas por não-judeus (4,8). Acontece que judaizantes se dirigiram à Galácia para impor a lei judaica aos cristãos de cultura greco-romana, especialmente a circuncisão. Os gálatas deixaram-se seduzir e criaram grande polêmi­ca (1,6-10). Por isso, Paulo escreve-lhes a mais dura de todas as suas cartas. De um lado, há muita indignação e ironia (cf. 5,12) e, de outro, a carta revela um amor apaixonado (cf. 4,12-20).

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Carta aos Filipenses

“Ele tinha condição divina...Mas esva^iou-se a si mesmo,

assumindo a condição de servo...Humilhou-se e fo i obediente até a morte na cru%.

Por isso, Deus o exaltou grandemente...De modo que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho...

E toda língua proclame: Jesus é o Senhor!’ ” (cf. F1 2,6-11)

Quem? Paulo e Timóteo (1,1).Onde e quando? Provavelmente em Efeso, durante sua prisão,

pelo ano 55.O quê? E provável que a carta seja uma coletânea de bilhetes

sobre vários assuntos: Paulo agradece o auxílio enviado pela comunida­de, anuncia a visita de Timóteo, adverte a comunidade contra a divisão e previne os filipenses contra a pregação dos cristãos judaizantes. São temas importantes, por um lado, o anúncio do Cristo pobre, rebaixado ao assumir a condição humana, morto na cruz e modelo para a comu­nidade cristã e, por outro, a união fraterna em Cristo, fonte de alegria. A Carta aos Filipenses é o anúncio de Jesus encarnado nas realidades hu­manas mais sofridas (2,6-11). Também Paulo assume a condição de servo, disposto a entregar a vida pelo evangelho que anuncia.

Como?• 1,1-11: Introdução.• 1,12-26: Notícias sobre a situação do apóstolo.• 1,27-2,18: Exortação para a união da comunidade e hino cristo-

lógico.• 2,19-30: Aviso de que Timóteo e Epafrodito serão enviados à

comunidade.• 3,1: Convite à alegria.• 3,2-4,1: Polêmica contra os judaizantes.• 4,2-9: Exortações e convite à alegria.• 4,10-20: Agradecimento pelos donativos recebidos.• 4,21-23: Saudações finais.

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Os três bilhetes podem ser assim divididos:• 4,10-20: Bilhete de agradecimento pela ajuda que recebeu.• 1,1-3,1 + 4,2-7.21-23: Notícias da prisão e reflexão sobre a per­seguição.

• 3,2-4,1 + 4,8-9: Polêmica contra os judaizantes.

Contexto:Filipos era colônia romana desde 148 a.C. Foi centro de minera­

ção, comércio e porto. Tem importância estratégico-militar. A partir de 42 a.C., os filipenses passaram a ter os mesmos direitos que as cidades da Itália.

O poder político era controlado pela aristocracia local (magistra­dos e latifundiários). A escravidão predominava. Mais ou menos meta­de de seus habitantes eram de origem latina, considerando-se romanos. A outra metade era de origem greco-macedônica e de imigrantes, entre os quais também judeus. Havia os mais variados cultos em Filipos.

Durante a segunda viagem missionária (50), Paulo fundou ali a primeira comunidade cristã da Europa (At 16,12-40), que nasce a partir de um grupo de mulheres, formada por uns poucos judeus, alguns pro­sélitos e sobretudo de adoradores de outras divindades. Ali, Paulo e Silas foram perseguidos e presos, pois a Boa-Nova de Jesus subverte a ordem estabelecida, que privilegia pouca gente (cf. At 16,16-24).

Carta a Filemon e comunidade

lcTalve\ ele tenha sido retirado de ti p o r um pouco de tempo, a fim de que o recuperasses para sempre,

não mais como escravo, mas, bem melhor do que como escravo, como um irmão amado para mim

e mais ainda para ti segundo a carne e segundo o Senhor. ” (Fm 15-16)

Quem? Paulo e Timóteo (1,1).Onde e quando? Pelo ano 55 em Éfeso, onde Paulo também

esteve preso.O quê? A Carta a Filemon é o mais breve e mais pessoal escrito

de Paulo e seus colaboradores. É a aplicação concreta do princípio de

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Gl 3,28 e ICor 12,13. Devolvendo a Filemon o escravo Onésimo, Pau­lo o provoca a romper com o sistema escravocrata. A grande novidade desta cartinha é que, no Projeto de Jesus, a escravidão, que é uma agres­são à dignidade humana, é definitivamente desautorizada. Com essa postura, Paulo desmascara a base do funcionamento do sistema impe­rial, que se sustenta graças à exploração da mão-de-obra barata ou gra­tuita dos escravos, os dois terços da população excluída em todo o im­pério. O amor, que gera igualdade e partilha, é o eixo que movimenta essa carta, pois em Cristo todos são irmãos e irmãs, sem discriminações.

Como?• 1-3: Endereço (1-2) e saudação (3);• 4-6: Agradecimento (4-5) e pedido (6);• 7-22: Em Cristo, todos são irmãos;• 23-25: Saudações finais.

Contexto:Filemon morava em Colossos, segundo as informações de

Cl 4,7-9. Em sua casa, reúne-se uma igreja doméstica. Era uma pessoa com certo nível de vida pois, além de ter uma casa mais ampla para acolher a comunidade, possuía pelo menos um escravo doméstico que se chamava Onésimo. Nas diversas partes do império, a situação dos escravos variava, dependendo dos trabalhos nos quais estavam empre­gados. O escravo podia esperar um dia conseguir a sua libertação. Ha­via até normas para o seu resgate. O preço para o resgate, uma vez fixado, não poderia ser alterado e o tempo para a libertação não podia ser aumentado.

Onésimo fugiu da casa de Filemon e buscou abrigo junto a Pau­lo, enquanto este se encontrava preso, provavelmente em Efeso. Paulo o converte e decide devolvê-lo a Filemon. Então, escreve-lhe um bilhe­te para que o acolha como irmão.

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Carta aos Romanos

‘!Agora, porém, ... manifestou-se ajustiça de Deus...E ajustiça de Deus que opera pela f é em Jesus Cristo,

em favor de todos aqueles que acreditam...Todos são justificados gratuitamente p o r sua graça,

mediante a libertação realizada em Cristo Jesus. ” (cf. Rm 3, 21-24)

Quem? Paulo, ditando a um secretário (16,22). l'ebc é a carteira (16,1-2).

Onde? Em Corinto (Rm 15,22-29; compare Rm 16,1.23 com ICor 1,14!).

Quando? Pelo ano 56, durante a terceira viagem missionária.O quê? Paulo quer corrigir as falsas interpretações sobre sua

pregação que os cristãos judaizantes haviam difundido cm Roma. Quis, ao mesmo tempo, preparar as comunidades para a sua desejada visita à Espanha (15,23-24). Nesse sentido, essa epístola de Paulo lambém é uma carta pastoral, pois quer preparar as igrejas da capital imperial para sua passagem em Roma.

Nesta carta, o apóstolo aprofunda a temática da Carla aos Gála­tas: a salvação vem pela fé e não pelas obras da lei. Situa o Evangelho dc Jesus em relação a Israel. O Judaísmo tradicional cumpre um papel importante no mistério de Deus. Contudo, Paulo mantém nessa carta a tese da opção de Deus pelas nações.

Como?• 1,1-15: Saudação, ação de graças e objetivo da visita a Roma.• Primeira parte (1,16-8,39): O evangelho é a força e a justiça de Deus que salva gratuitamente os que crêem, sejam judeus ou não-judeus. Ambos se salvam mediante Jesus Cristo morto e ressuscitado. Quem acolhe essa Boa-Nova vive a liberdade e a vida no Espírito.- 1,16-17: Tema central: O evangelho é a força e a nova justiça

de Deus que salva pela fé;-1,18-3,20: A ira de Deus: em relação aos não-judeus (1,18-32),

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em relação aos judeus (2,1-3,8), pois todos são culpados (3,9­20);

- 3,21-4,25: A justiça de Deus para quem adere a Jesus pela fé: Deus anistia a todos (3,21-26); a fé nos justifica (3,27-31); Abraão é pai de quem acredita (4,1-17); a fé justificou a Abraão e justifica os cristãos (4,18-25);

- 5,1-8,39: Vida nova: a justificação pela fé é garantia de salva­ção (5,1-11); de Adão a Jesus, da morte para a vida (5,12-21); vida nova pelo batismo em Cristo Jesus (6,1-11); servir a jus­tiça e não ao pecado (6,12-23); o cristão livre da lei (7,1-6); condição humana pecadora (7,7-25); vida nova no Espírito (8,1-39).

• Segunda parte (9-11): Fidelidade de Deus e incredulidade de Israel. Israel dentro do plano de Deus que culmina em Jesus:- 9,1-5: Deus sempre amou Israel;- 9,6-13: Ele não é infiel;- 9,14-29: Ele não é injusto, mas misericordioso;- 9,30-10,21: O erro de Israel foi buscar a justiça nas obras da

lei;- 11,1-32: Deus não rejeitou Israel;- 11,33-36: Hino de louvor a Deus que ama a todos.

• Terceira parte (12,1-15,13): Sentido da vida cristã na comuni­dade e orientações práticas para o agir cristão:—12,1-21: Normas para a vivência cristã dos dons e do amor

fraterno;- 13,1-7: Prudência diante de autoridades que oprimem;- 13,8-15,13: A única dívida é o amor mútuo, pois ele é a pleni­

tude da lei (13,8-10); preparando-nos para um novo dia (13,11­14); e vivendo o respeito uns para com os outros para não escandalizar os fracos na fé (14,1-15,13).

• 15,14-16,27: Conclusão da carta: Paulo fala da autoridade de seu ministério (15,14-21) e de seus projetos de viagem (15,22­33). Faz recomendações e saudações finais a diversas pessoas de Roma (16,1-24), terminando com um hino de ação de graças (16,25-27).

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Contexto:Roma era a capital do império em que as desigualdades econômi­

cas e sociais eram muito grandes.Paulo não fundou as comunidades cristãs romanas. São as únicas

igrejas que não tinha visitado e a quem escreve uma carta. Quando escreve, já são comunidades florcsccntes (1,8). No início, a maioria eram judeus-cristãos. Em 49, o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma, inclusive os que participavam das igrejas cristas (At 18,2). A partir daí, não-judeus tornam-se a maioria, até que, em torno de 55, Nero permite o retorno dos judeus.

Eram comunidades heterogêneas, ricas na diversidade étnica e de gênero. Havia muita pobreza, embora houvesse alguns economica­mente mais bem situados. Lendo Rm 16,1-16, você perceberá essa di­versidade. Verá que havia várias igrejas domésticas (w. 5.10.11.14.15) em que homens e mulheres eram lideranças. Em 12,3-8, há também uma lista de dons que revelam a riqueza e a diversidade nas igrejas em Roma.

Em 60, Paulo chega a Roma como prisioneiro, permanecendo em prisão domiciliar durante dois anos (At 28,11-31).

Em torno de 65, foi morto durante a perseguição aos cristãos de Roma, desencadeada pelo imperador Nero em 64.

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Conclusão da 2a parte

“A. graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do

Espírito Santo estejam com todos vós. ” (2Cor 13,13)

Na segunda paite deste volume, nos ocupamos do movimento missionário das igrejas helenistas nos anos 50 e 60. A década de 50 é o período áureo da atividade apostólica de Paulo e de sua equipe. E nes­ses anos que surgem os primeiros escritos do Segundo Testamento. São as cartas autênticas de Paulo.

Inicialmente, vimos alguns dados históricos no contexto do Im­pério Romano, em que a resistência judaica, que detonou a guerra com Roma, teve um papel central. Depois, situamos as viagens de Paulo a pari ir do concilio dejerusalém realizado em 49.

Vimos, em seguida, a estratégia pastoral da equipe de Paulo que organizou uma rede de comunidades solidárias, a partir do mundo do trabalho, sem um poder centralizado e livres da lei.

Passamos então a refletir sobre os conflitos que Paulo enfrentou como conseqüência da nova prática que suas comunidades viviam. Fo­ram conflitos com autoridades judaicas e cristãos judaizantes por causa da opção pelas nações. Foram conflitos com a sabedoria grega por cau­sa dc opção pelos pobres, os trabalhadores manuais. Eram conflitos com o poder econômico e político por causa do novo projeto que des­mascarava o sistema patriarcal de escravidão. A partir dos sofrimentos de Paulo por causa das perseguições que sofreu, analisamos a centraü- tlade da cruz e da ressurreição de jesus no Evangelho segundo Paulo.

I Iistoricamente, fizeram-se interpretações equivocadas de algu­mas posições de Paulo. É o caso de sua postura em relação às mulheres,

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ao poder imperial, à escravidão e a suas orientações sobre o comporta­mento moral dos cristãos. Diante disso, vimos que Paulo propõe rela­ções de reciprocidade quanto ao gênero, dc prudência diante de um poder tirano, de superação das relações dc escravidão e de uma ética do discernimento.

Por fim, propusemos uma chave dc leitura para cada uma das sete cartas autênticas de Paulo.

No próximo volume, veremos como, na segunda e terceira gera­ções de cristãos, os conflitos e as perseguições dos romanos foram au­mentando. E as comunidades não tiveram mais íorça suficiente para resistir. Foram se institucionalizando. O patriarcado, que possivelmente nunca fora vencido na totalidade, foi sendo reforçado aos poucos e o projeto de comunidades de iguais foi se perdendo. A perseguição roma­na, além das questões naturais de identidade de qualquer grupo huma­no, terá sido uma das razões fundamentais para a hierarquização, a pa- triarcalização, a uniformidade e a unificação da doutrina.

Quando já havia uma instituição centralizada, tomou íorça a in­sistência na doutrina, com a preocupação de definir o que era ortodoxo e o que era herético. Os próprios evangelhos nos revelam como havia diversidade quanto ao modo de compreender Jesus. Cada um tem sua teologia, sua maneira de apresentar o Messias, sua forma de entender a missão de seus seguidores. Mas deixemos essa discussão para o próxi­mo volume.

Concluímos este estudo, lembrando um pedido de Paulo e Ti­móteo aos filipenses e hoje a nós: ‘Tende em vós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. ” (F1 2,5)

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Para orar e aprofundar

Rm 6,1-11 Rm 8,1-39 ICor 3,5-17 ICor 13,1-13 G1 5,16-26 F11,3-11

Sugestões de leitura

CEBI, Série “A Palavra na Vida”. São Leopoldo.— n. 1: Uma entrevista com o Apóstolo Paulo. Carlos Mesters.— n. 11: Paulo, trabalhador e apóstolo. José Comblin.— n. 41: Paulo Apóstolo, um trabalhador que anuncia o Evangelho. Carlos

Mesters.— n. 79/80: Reler Paulo — desafio à Igreja. Sebastião A. G. Soares.— n, 81: A s cartas de Paulo. José Comblin.— n. 99: Palavra da Crus^x ideologia. Sabastião A. G. Soares.— n. 139/140: Paulo de Tarso, Apóstolo a serviço do Evangelho de Jesus Cristo

e da Cidadania. Nélio Schneider.Comentário Bíblico Latino-Americano. Petrópolis: Vozes (todos os

volumes sobre Paulo).Como ler a Bíblia. São Paulo: Paulus (todos os volumes sobre Paulo). COMBLIN, J. Paulo, apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes.MEEKS, Wayne A. Os primeiros Cristãos Urbanos — O mundo social do

Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus.Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana — RIBLA, n. 20. Paulo

de Tarso, militante da Fe'. Petrópolis: Vozes.C ARREZ, Maurice et al. As cartas de Paulo, Tiago e Judas. São Paulo: Paulus.

Page 170: As comunidades cristãs da primeira geração - Ildo Bohn Gass

ISBN 85-89000-65-6

788589 00 06 59