AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas....

45
AS CIÊNCIAS SOCIAIS Rel atór io d a C omi s são Gulbenkian sobr e a r ee str utur ação das Ciências Sociai s PUBLICAÇÕES EU ROPAAMÉRICA

Transcript of AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas....

Page 1: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

AS CIÊNCIAS SOCIAIS Relatório da Comissão Gulbenkian sobre a reestruturação das Ciências Sociais

PUBLICAÇÕES EU ROPA•AMÉRICA

Page 2: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Page 3: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMISSÃO CALOUSTE GULBENKIAN

PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS

PUBLICAÇÕES EUROPA~AMÊRICA

Page 4: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

Título original: Open tire Social Scienres

Tradução de Ângela Maria Moreira e João Paulo Moreira

Revisão técnica de Boaventura de Sousa Santos

Cura: estúdio~ P. E. A.

© Fundação Gulbenkian. 1996

Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer pro­ cesso, electrónico. mecânico ou fotográfico. incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação. sem autorização pré­ via e escrita <lo editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apre- entação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou simi­ lares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Ostransgressoressãopassíveisdeprocedimentojudicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL

Edição n.º: 100304/6501

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda .• Mira-Sintra - Mcm Martins

Page 5: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMISSÃO GULBENKIAN PARA A REESTRUTURAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Immanuel Wallerstein, presidente Calestous Juma Evelyn Fox Keller Jürgen Kocka Dominique Lecourt Valentin Y. Mudimbe Kinhide Mushakoji Ilya Prigogine Peter J. Taylor Michel-Rolph Trouillot

Richard Lee, secretário cientifico

Comissão criada pela Fundação Calouste Gulbenkian,

Lisboa.

Page 6: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

I

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS,

DO SÉCULO XVIII ATÉ 1945

Pense-se na vida como um imenso problema, uma equação ou, melhor ainda, uma farru1ia de equações em parte dependentes mas também parcial­ mente independentes umas das outras ... subenten­ dendo-se que tais equações são bastante complexas e cheias de surpresas e que muitas vezes somos inca­ pazes de lhes descobrir as «raízes».

fER:S:AND 8RAUDEL1

A ideia de que somos capazes de reflectir de uma maneira inteligente sobre a natureza do ser humano, sobre as relações que este mantém com os seus semelhantes e com as forças es­ piri tuais, e sobre as estruturas sociais que ele mesmo criou e dentro das quais se move, é uma ideia pelo menos tão antiga

1 Prefácio a Charles Morazé, Lcs bourgeois conq11éra11ts (Paris: Liv. Ar­ rnand Colin, 1957).

15

Page 7: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

(0.\1/SS iO GUl.8c.NKU,\'

quanto a própria história conhecida. Estas são questões jíl versadas tanto pelos textos religiosos que chegaram até nós, corno pelos textos a que chamamos filosóficos. E há ainda a abedoria oral transmitida ao longo dos tempos e tantas ve­ zes passada a registo escrito. É evidente que muita desta sa­ bedoria foi resultado de um processo de recolha indutiva, nas mais diversas paragens e ao longo de um grande período de tempo, feita a partir da plenitude da experiência vivencial humana, não obstante os resultados serem apresentados sob a forma de revelação ou de uma dedução racional a partir de algumas verdades eternas e intrínsecas.

Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her­ deiro desta sabedoria. Mas trata-se de um herdeiro distante e porventura frequentemente ingrato e nada reconhecido, já que as ciências sociais se definiram a si próprias como sendo a busca de verdades para lá dessa sabedoria obtida por le­ gado ou deduçã~. As ciências sociais constituíram um empreendimento do mundo moderno. As suas raízes mergu­ lham na tentativa-uma tentativa plenamente amadurecida já desde o século xvr, e que é parte integrante da construção do nosso mundo moderno- de desenvolver um saber siste- - ·=·- mático e,;secul~ acerca da realidade, que de algum modo possa ser em{!irjç;ame..ute_ valídada.A esse saber chamou-se scieniui, uma palavra que significava simplesmente conhe­ cimento. É claro que, etimologicamente, filosofia também significa conhecimento - ou, mais exactamente, o gosto pelo conhecimento.

A chamada visão clássica da ciência, dominante desde há vários séculos, foi erigida sobre duas premissas. Uma delas foi o modelo newtoniano, segundo o qual existe uma simetria

/6

Page 8: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

f't\Rt\ t\lllUR t\S Ctf.NC/AS SOC/t\l.\

ntre o passado e o futuro. Estava-lhe subjacente uma pers­ pectiva quase teológica: a exemplo de Deus, nós podemos chegar a certezas, e por esse motivo não precisamos de distinguir entre passado e futuro, uma vez que tudo coexiste num eterno prcs~nte. A segunda premissa foi o dualismo car­ tesiano, ou seja, o pressuposto de que existe uma distinção fundamental entre a natureza e os seres humanos, entre a ma- téria e a mente, entre o mundo físico e o mundo social/espi- ritual. Quando, no ano de 1663, redigiu os estatutos da Royal Society, Thomas Hooke fixou como objectivo desta «aumen­ tar o conhecimento das coisas naturais, e de todas as Artes úteis, Manufacturas, práticas Mecânicas, Máquinas e Inven­ ções pela via da Experimentação», acrescentando a frase «em que não entrem o Divino, a Metafísica, a Política, a Gramá- tica, a Retórica, ou a Lógica»2. Estes estatutos traduziam já, assim, a divisão entre os modos de conhecimento que C. P. c-"

Snow iria mais tarde designar por «as duas culturas». A ciência passaria a ser definida corno a busca de leis uni­

versais da natureza que se mantivessem verdadeiras para lá das barreiras de espaço e tempo. Alexandre Koyré, recons­ tituindo a evolução das concepções europeias de espaço do século xv ao século xvm, observou o seguinte:

O universo infinito da nova cosmologia, infinito na duração e na extensão, no qual a matéria eterna, de acordo com leis eternas e necessárias, se move sem fim e sem objectivo no espaço eterno, havia herdado todo

2 Apttd Sir llenry Lyons, Tlte Royal Society, 1660-1940 Greenwood Press, 1968), p. 41.

Jova Iorque:

Dlvtrsos-2

., ,,.

17

Page 9: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COlflSS.40 GULBENKIAN

os atributos ontológicos da divindade. Mas só estes: quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os com Ele;,.

Os outros atributos do Deus agora a os valores morais do mundo cristão, umildade e a caridade. Neste seu

nuncia sobre os valores que os vieram substitu saoemos que, ao sair de cena, Deus - ', propriamente, um vazio moral .ara além de todos os limi umanas não lhes ncaram a

n te eram, é claro, o amor, a

oyré não se pro­ , •.• o entanto

· .ou atrás de aram

as ambições

unco • de que fala Kovré r," cnsmo, De facto

mfSDa, altura a percepção t:) sofria uma transformação

essa o od-

Page 10: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

f'Al?A ABIW? AS Clf.NCIAS SOCIAIS

comerciais e o subsequente alargamento da divisão do tra­ balho, factores que, por sua vez, iriam fazer encurtar decisi­ vamente as distâncias sociais e temporais.

Contudo, essa finitude da terra não constituiu fonte de dissuasão, pelo menos até tempos recentes. Enquanto a visão ideal de um progresso ilimitado se alimentava da infinidade de tempo e espaço, a concretização prática do progresso nos assuntos humanos por via do avanço tecnológico dependia da disponibilidade do mundo para se deixar conhecer e ex­ plorar, de uma confiança na finitude deste quanto a certas di­ mensões-chave (com destaque para a sua epistemologia e geografia). Com efeito, era crença geral que para atingir o progresso se impunha que nos livrássemos completamente de todas as inibições e de todas as restrições, enquanto des­ cobridores apostados em desvelar os segredos mais recôndi­ tos e em sugar os recursos de um mundo mesmo ao alcance da mão. Parece que, até ao século xx, a finitude da esfera ter­ restre serviu antes de tudo para facilitar as viagens explora­ tórias e a própria exploração exigidas pelo progresso e para dar exequibilidade às aspirações de dominação ocidentais. No século xx, à medida que as distâncias terrestres começa­ vam a encurtar a ponto de se afigurarem constrangedoras, as limitações da terra puderam ser evocadas como um incenti­ vo mais para as arremetidas exploratórias ( agora também pe­ los confins do espaço celeste) necessárias ao alargamento dessa esfera de dominação. Em suma, a morada do nosso vi­ ver presente e passado passou a assemelhar-se menos a um lar e mais a uma rampa de lançamento, lugar a partir do qual nós, enquanto homens (e umas tantas mulheres) de ciência,

/9

Page 11: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMJSS,\0 GULBI \KIAN

fomos capazes de pairar pelo espaço, posicionando-nos como enhores de urna unidade cada vez mais cósmica. Pode ser que aqui as palavras-chave sejam progresso e

descoberta, mas o léxico não fica completo sem recorrer a outros termos - ciência, unidade, simplicidade, domínio, e inclusivamente «o universo». As ciências da natureza, tais como foram construídas no decurso dos séculos xvn e xvm, provieram primordialmente do estudo da mecânica celeste. Inicialmente, aqueles que tentaram estabelecer a legitimi­ dade e prioridade da demanda científica das leis da natureza quase não fizeram destrinça entre a ciência e a filosofia. Do mesmo modo que distinguiam os dois domínios, assim os consideravam aliados na busca da verdade secular. Mas à medida que o trabalho experimental e empírico se tomava cada vez mais crucial para a visão da ciência, a filosofia sur­ gia cada vez mais aos olhos da gente das ciências naturais corno mera substituta da teologia, igualmente culpada de asserções de verdade apriorísticas não passíveis de serem postas à prova. Nos princípios do século xix, a divisão do conhecimento em.dois domínios havia descartado a noção de que se trataria de duas esferas «separadas mas iguais», para assumir - pelo menos na perspectiva dos cientistas natu­ rais - o aspecto de uma hierarquia: o conhecimento tido como certo (ciência), por oposição ao conhecimento imagi­ nado e mesmo imaginário (a não ciência). Finalmente, seria também por volta do início do século xtx que o triunfo da ciência se iria firmar do ponto de vista linguístico. O termo ciência desprovido de adjectivo qualificativo passou, então, a ser associado primordialmente (e muitas vezes exclusi-

21)

Page 12: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

vamente) às ciências da natureza 4. Este facto assinalou o cul­ minar da tentativa das ciências naturais para chamar a si uma legitimidade sócio-intelectual que era de todo distinta-e na verdade até contrária - de uma outra forma de conheci­ mento chamada filosofia.

A ciência, ou seja, a ciência da natureza, foi objecto de uma r)~~ definição mais d~ do gu~ o seu contraponto, para o qual o - - mundo não chegou nu~ca sequer a acordar num nome único. Umas vezes designada por artes, outras vezes chamada humanidades, outras ainda letras ou belles-lettres, e ainda de outras vezes apelidada filosofia, simplesmente «cultura» ou, como sucede em Alemão, Geisteswissenschaften, a alternativa à «ciência» foi assumindo uma face e uma ênfase variáveis, uma falta de coesão interna que não foi de molde a ajudar os respectivos praticantes a defender a sua causa junto das auto- ridades, principalmente se se considerar a sua aparente in- capacidade de oferecer resultados «práticos». Com efeito, começara a tomar-se evidente que a luta epistemológica por aquilo que se considerava ser o conhecimento legítimo já não era uma luta para saber quem havia de controlar o conheci- mento relativo à natureza (já que os cientistas naturais haviam claramente adquirido direitos exclusivos sobre este domínio por volta do século xvm), mas antes uma luta em torno de

PARA ABRIR AS Clt:NC/AS SOCIAIS

4 Este fenómeno transparece claramente tanto em Inglês como nas lín­ guas românicas. É menos claro em Alemão, onde a palavra Wisscnscluift continua a ser utilizada como termo genérico para o conhecimento sistemá­ tico e onde as chamadas «humanidades» são designadas por Geisteswis­ senschaften, o que à letra significa conhecimento das coisas do espírito ou da mente.

21

Page 13: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

quem havia de controlar o conhecimento relativo ao num2-o humano.

A necessidade, sentida pelo Estado moderno, de possuir um conhecimento ma is exacto sobre o qual pudesse basear as uas decisões havia conduzido ao surgimento de novas cate­ gorias de conhecimento já no século xvm, no entanto, tais ca­ tegorias afiguravam-se ainda incertas nas suas definições e fronteiras. Os filósofos sociais começaram, então, a falar de uma «física do social», e os pensadores europeus começaram a reconhecer a existência, no mundo, de múltiplas espécies de sistemas sociais («como é que se pode ser persa?»), cuja variedade se impunha explicar. Foi neste contexto que a uni­ versidade (que em larga medida se revelara uma instituição moribunda desde o século xvi, por força da sua anterior liga­ ção estreita à Igreja) foi revitalizada nos finais do século xvm e princípios do século XIX, tornando-se o lugar institucional preferencial para a criação de conhecimento.

A universidade conheceu, assim, um processo de revitali­ zação e transformação. As faculdades de Teologia perderam importância - por vezes desaparecendo completamente, de outras vezes dando lugar a simples departamentos de es­ tudos religiosos no interior das faculdades de Filosofia. As faculdades de Medicina mantiveram a sua função de centros de formação prática numa área profissional específica, de­ finida agora inteiramente como conhecimento científico aplicado. Seria, antes de mais, no interior das faculdades de Filosofia (e, em grau consideravelmente menor, nas faculda­ des de Direito) que iriam ser erigidas as modernas estruturas do conhecimento. Seria, enfim, na faculdade de Filosofia (que em muitas universidades se manteve estruturalmente

22

Page 14: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS ClflNCIAS SOCIAIS

unificada, mas que noutras conheceria um processo de sub­ divisão) que os praticantes tanto das artes como das ciências naturais iriam penetrar para aí edificarem as suas múltiplas estruturas disciplinares autónomas.

A história intelectual do século xrx é marcada, antes de tudo, por este processo de disciplinarização e profissionali­ zação do conhecimento, que o mesmo é dizer, pela criação de estruturas institucionais permanentes destinadas, simulta­ neamente, a produzir um novo conhecimento e a reproduzir

~ ' os produtores desse conhecimento. A criação de disciplinas ~· ; múltiplas teve por premissa a crença segundo a qual a inves-

tigação sistemática exigia uma concentração especializada nos múltiplos e distintos domínios da realidade, um estudo racionalmente retalhado em cachos de conhecimento perfei­ tamente distintos entre si. Essa divisão racional prometia ser eficaz, ou seja, intelectualmente produtiva. As ciências na­ turais não tinham ficado à espera da revitalização da uni­ versidade para gerarem uma vida institucional autónoma. A razão por que puderam actuar mais cedo foi porque conse­ guiram angariar apoio social e político a troco da promessa de produzirem resultados práticos traduzidos numa utili­ dade imediata. O crescimento das academias reais durante os séculos xvn e xvm e a criação, por Napoleão Bonaparte, das grandes écoles reflectem a disposição de promover as ciências naturais por parte dos governantes. Os cientistas naturais não precisavam sequer, porventura, das universidades para levarem a cabo o seu trabalho.

E foram, de facto, outros estudiosos que não os das ciên­ cias naturais- os historiadores, os classicistas, os estudioso, das literaturas nacionais -quem mais fez para revitalizar a

23

Page 15: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

CO.\FJSS\O Ol'LBENKJA1

universidade durante o século XtÃ, usando-a como um me­ canismo para a obtenção de apoio estatal ao seu trabalho de ínvesngação. Eles atraíram os cientistas naturais para o inte­ rior das florescentes estruturas universitárias, beneficiando assim do perfil positivo que os caracterizava. O resultado, porém, foi que a partir de então as universidades passaram a ser o espaço privilegiado da permanente tensão entre as artes (humanidades) e as ciências, dois modos de conheci­ mento agora definidos como sendo bastante diferentes ou até antagónicos.

Em muitos países - com especial saliência para a Grã­ -Bretanha e a França- assistiu-se a uma certa clarificação de toda esta discussão, forçada pelo surto cultural desenca­ deado pela Revolução Francesa. As pressões no sentido da efectivação de transforrnaçôes político-sociais haviam assu­ mido uma premência e uma legitimidade que dificilmente podiam continuar a ser contidas através da mera procla­ mação de teorias respeitantes a uma ordem supostamente natural da vida social. Em vez disso, muitos foram os que de­ fenderam que a solução estaria antes em organizar e raciona­ lizar a mudança social que surgia agora como inevitável num mundo em que a soberania do «povo» passava cada vez mais a constituir a norma, sem dúvida na tentativa de limitar, por essa via, a extensão do fenómeno. Mas se o que havia a fazer era organizar e racionaJizar a mudança social, a verdade é que primeiramente se impunha estudá-la e entender as re­ gras que lhe subjaziam. Verificava-se, assim, não apenas existir um espaço para aquilo a que viríamos a chamar ciên­ cias sociais, mas também urna profunda necessidade social no sentido do seu surgimento. Além disso, parecia ainda evi-

u

Page 16: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

dente que, nesse esforço de organizar uma nova ordem social sobre uma base estável, quanto mais exacta (ou «posítiva») fosse a ciência, melhor. Com esta ideia em vista, muitos daqueles gue - sobretudo na Grã-Bretanha e na França - começaram a lançar as bases das modernas ciências sociais na primeira metade do século xrx voltaram-se para a física newtoniana, tomando-a como modelo a seguir.

Outros, mais preocupados em repor a unidade social dos Estados que tinham conhecido a ruptura ou que por ela se viam ameaçados, voltaram-se para a criação das narrativas históricas nacionais - narrativas agora mais centradas nos «povos» do que nos príncipes - como forma de escorar as novas ou potenciais soberanias. A reformulação da «histó­ ria» em termos de geschichte- isto é, de um acontecer real e efectivo - fez com que ela conquistasse credenciais inata­ cáveis. A história deixaria de ser uma hagiografia de justifi- cação de monarcas para se tomar um verdadeiro relato do passado, capaz de explicar o presente e de oferecer as bases para uma escolha avisada no futuro. Este tipo de história (ba- seada na investigação empírica de arquivos) associou-se às ciências sociais e naturais na rejeição da «especulação» e da «dedução» (práticas acusadas de serem mera «filosofia»). Mas precisamente porque se preocupava profundamente com as histórias dos povos na sua grande diversidade empí- ,.,. ó,µ rica, é que este tipo de história encarava com suspeição e até hostilidade as tentativas dos expoentes da nova «ciência so- cial» no sentido de generalizar, ou seja, de estabelecer lei universais para a sociedade. ( No decurso do século xrx, as várias disciplinas como que

. l. J., •A f: \{ "·· -'· IA,. ,,t "'" Jw, (. l, , 25

!'ANA AIIRIR AS CltNCIAS SOCIAIS

Page 17: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

)

.,._

se abriram em leque cobrindo toda uma gama de posiçõe epistemológicas.Num dos extremos situava-se a matemática (umaactividadedenaturezanãoempírica),elogoencostadas a ela as ciências naturais experimentais (perfiladas, por sua vez, numa espécie de ordem decrescente segundo o respec-

1 tivo g;rau de determinismo -a física, a química, a biologia). o e'"xtr~o op~sto achavam-se as humanidades (ou artes e

letras), começando pela filosofia (contraponto da matemá­ tica enquanto actividade não empírica), seguida do estudo •.. - - das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se aproximavam muitas vezes da própria história, ao prefigura­ rem-se como uma história das artes. Por fim, entre as huma­ nidades e as ciências naturais ficava o estudo das realidades ociais, com a história (ídíográfíca) a situar-se junto das facul­ dades de artes e letras ou mesmo no seu interior e com as «ciências sociais» (nomotéticas) na proximidade das ciências da natureza, Postos perante uma separação cada vez mais rí­ gida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das realidades sociais viram-se como que entalados e profunda­ mente divididos por estas questões epistemológicas.

Tudo isto, porém, se desenrolava num contexto em que a ciência (newtoniana) havia triunfado sobre a filosofia (especulativa), afirmando-se como a incarnação mesma do prestígio social no mundo do conhecimento. Augusto Com­ te tinha-se referido ao corte entre ciência e filosofia em termos de um divórcio, não obstante ele representar de facto, antes de mais, uma rejeição da metafísica aristotélica e não tanto de preocupações filosóficas propriamente ditas. Mesmo assim,

26

Page 18: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS Clf.NCIAS SOCIAIS

as questões colocadas pareciam bem reais: será que o mundo é regido por leis deterministas? ou será que há lugar, ou ca­ bimento, para a inventiva e para a imaginação (humanas)? Além disso, as questões intelectuais fizeram-se acompanhar das suas alegadas implicações políticas. Do ponto de vista político, o conceito de leis deterministas afigurava-se mais útil às tentativas de controlo tecnocrático dos movimentos - potencialmente anarquizantes - apostados na mudança. E ainda do ponto de vista político, a defesa do particular, do não determinado e do imaginativo afigurava-se particu­ larmente útil não só para os que se opunham às mudanças tecnocráticas em nome da conservação das instituições e das tradições vigentes, mas também para aqueles que se batiam por possibilidades mais espontâneas e mais radicais de inter­ ferência da acção humana no terreno sociopolítico. Tratou-se de um debate contínuo mas desequilibrado, que teve como resultado, no mundo do conhecimento, a circunstância de em toda a parte a ciência (física) passar a ser colocada num pedestal e de em muitos países a filosofia ser relegada para um canto ainda mais esconso do sistema universitário. Neste cenário, uma das reacções assumidas pelos filósofos consis­ tiu em redefinir as respectivas actividades de maneira mais consentânea com o ethos científico (veja-se a filosofia analítica dos positivistas de Viena).

A ciência foi proclamada como sendo a descoberta da realidade objectiva através do recurso a um método que nos permitia sair para/ora da mente, ao passo que aos filósofos se não reconhecia mais do que a faculdade de cogitar e de escre­ ver sobre as suas cogitações. Esta visão da ciência e da filoso-

27

Page 19: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMISS~O GULBI-.NA.IAN

fia foi afirmada de maneira muito dara na primeira metade do século xrx por Comte e Mill, altura em que ambos os pen- adores procuraram estabelecer as regras que iriam presidir às análises do mundo social. Ao fazer renascer a expressão «física social», Comte tomou claras as preocupações políticas que o moviam. Era seu desejo salvar o Ocidente da «corrup­ ção sistemática» que havia sido «elevada ao estatuto de ferra­ menta indispensável da governação» por força da «anarquia intelectual» instalada desde a Revolução Francesa. Na sua opinião, o partido da ordem assentava em doutrinas desac­ tualizadas (de índole católica e feudal), enquanto o partido do movimento assentava em teses - absolutamente negati­ vas e destrutivas-bebidas no Protestantismo. Para Comte, a física social iria permitir a reconciliação da q_rdem e do progresso ao entregar a solução dos problemas sociais a um «n úmero reduzido de inteligências de elite» dotadas do nível de instrução adequado. Deste modo, pôr-se-ia fim à Revo­ lução a partir do momento em que fosse instalado um novo poder espiritual. A base tecnocrática e a função social da --- - - nova física social tornavam-se, ãss:im, evidentes. - Dê acordo com esta nova estrutura do conhecimento, os

filósofos tomar-se-iam - para usar uma expressão bem conhecida - «especialistas em generalidades». O que isso significava era que eles iriam aplicar ao mundo social a lógica da mecânica celeste (aperfeiçoada pela versão laplaciana do protótipo de Newton). A ciência positiva visava a libertação total relativamente à teologia e à metafísica, bem como a todos os demais modos de «explicação» da realidade. <'A nossas investigações positivas [ ... ] devem limitar-se, sob

28

Page 20: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

/'ARA AIJRIR AS Clf.NCIAS SOCIAIS

todos os aspectos, ao estudo sistemático do que é, renun- 1 dando vJcscoberta da causa primeira e do destino fina1»5•

John Stuart Mill, que no contexto inglês correspondeu, de alguma forma, a Com te e que com ele se correspondeu, não falou de uma ciência positiva mas sim de uma ciência exacta. Contudo,omodelodamecânicacclestemanteve-seomesmo:

«[A ciência da natureza humana] fica muito aquém dos padrões de exactidão que actualmente vigoram na Astronomia; mas não há razão para que ela não seja uma ciência como hoje o é o estudo das Marés ou como o era a Astronomia quando os seus cálculos davam conta dos fenómenos principais mas não ainda das per­ turbações-".

Embora os fundamentos das divisões existentes no inte­ rior das ciências sociais mostrassem uma clara tendência para cristalizarem já durante a primeira metade do século xrx, a verdade é que só no período de 1850 a 1914 é que a diver­ sidade intelectual reflectida nas estruturas disciplinares das - ciências sociais teve um reconhecimento formal por parte das principais universidades, sob as formas por que hoje as conhecemos. É certo que já entre 1500 e 1850 existira biblio­ grafia respeitante a muitas das questões centrais tratadas

5 Augusto Comte, Discurso sobre o Espírito Positiio (tradução, intro­ dução, tábua cronológica e sincrónica, e notas de Joel Sertão: Lisboa: Seara Nova, 1947), p. 57.

6 John Stuart Mil!, A System of Logic Ratiocinativeand Jmt11cti<1e, Vol. Vlll das Coílecreâ Works of John St11nrt Mil/ (Toronto; Univ. of Toronto Press, 1974), Livro VI, cap." tn. par. 2, p. 846.

29

Page 21: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

o

COMf.'i'S,\O GULBENKIAS

naquilo a que hoje chamamos ciências sociais: o funciona­ mento das instituições políticas, as políticas macroeconómicas dos Estados, as regras que presidem às relações interestatais, a descrição dos sistemas sociais não europeus. Ainda hoje lemos Maquiavel e Bodin, Petty e Grócio, os Fisiocratas franceses e o Iluminismo escocês, assim. como os autores da primeira metade do século XlX, desde Malthus a Guizot, passando por Ricardo, Tocqueville, Herder e Fichte. Temos inclusivamente, no período em questão, algumas das pri­ meiras discussões sobre o tema do desvio social, como por exemplo na obra de Beccaria. Mas a realidade é que tudo isto não constituía exactamente ainda aquilo que hoje em dia entendemos por ciências sociais, da mesma maneira que ne­ nhum dos pensadores aqui mencionados se via ainda a si próprio a funcionar no quadro daquilo que mais tarde viria a ser considerado como as diversas disciplinas do saber.

A criação das múltiplas disciplinas das ciências sociais inseriu-se no esforço global empreendido pelo século xtx no sentido de garantir e de fazer avançar um conhecimento «ob­ jectivo» sobre a «realidade» na base de achados empíricos (entendidos por oposição ao trabalho de «especulação»). O intuito era «aprender» a verdade, em vez de a inventar ou intuir. O processo de institucionalização deste tipo de activi­ dade do conhecimento não foi nada simples nem linear. Antes de mais/ começava por não ser claro se uma tal activi­ dade deveria ser singular ou, antes, dividida em disciplinas várias, como mais tarde viria a acontecer. Como claro não era também, inicialmente, qual a melhor via para esse conhe­ cimento - ou seja, que tipo de epistemologia seria mais fru­ tuoso ou até legítimo empregar. E, sobretudo, não era nada

30

Page 22: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PANA ABRIR AS Ct[NCIAS SOCIAIS

claro se as ciências sociais poderiam de algum modo ser pensadas como fazendo parte de uma «terceira cultura», si­ tuada-na formulação posterior de Wolf Lepenies-«entre a ciência e a literatura». Em verdade, nenhuma destas questões foi alguma vez resolvida em definitivo. O mais que podemos fazer será dar nota das decisões efectivamente tomadas ou das posições maioritárias que se revelaram tendencialmente prevalecentes.

O primeiro aspecto a registar é onde é que esta institucio- - - nalização teve lugar. No decurso do século xrx a actividade das ciências sociais deu-se em cinco espaços principais: a Grã-Bretanha, a França, as Alemanhas, as Itálias e os Estados Unidos. A maioria dos estudiosos e das universidades (em- bora não todos, obviamente) encontrava-se num destes cinco espaços. Quanto às universidades dos restantes países, falta- va-lhes o peso ou o prestígio internacional das destes cinco. E até hoje a verdade é que a maior parte das obras oitocen- tistas que ainda lemos foram ali escritas. 1

O segundo aspecto a registar é o vasto e diversíssimo con- (Íj/)J)...l/J _ -- I Guerra Mundial verificava-se urna convergência ou con­ senso geral em torno de um punhado de nomes específicos, ao mesmo tempo que os demais candidatos eram mais ou, menos preteridos. Corno adiante veremos, os nomes em cau- \ ') sa eram, fundamentalmente, ci~stória, ~~mia,~ a sociologia, a ciência política e a antropologia. Poderíamos acrescentar à 1 is ta, corno de resto veremos também, as chama- , das ciências orientais (também designadas por orientalismo), não obstante o facto de estas se não verem a si próprias como

Ir'

junto de no!::1-es de «assuntos» e de «disciplinas» avançado no decurso do século passado. Todavia, por altura da

Page 23: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

..

COMISS.~0 GVLBENlífAll.1

iências sociais. Adiante explicaremos ainda o motivo pelo qual não incluímos na lista a geografia, a psicologia e o di­ rei to.

A primeira disciplina das ciências sociais a adquirir uma existência institucional autónoma foi, de facto, a história. É certo que muitos historiadores rejeitaram vigorosamente o rotulo de ciências sociais - como de resto ainda hoje sucede com alguns. Consideramos, porém, que estas disputas entre os historiadores e as restantes disciplinas das ciências sociais ão divergências internas das ciências sociais, como aqui iremos procurar demonstrar. É óbvio que a história corres­ pondia já a urna prática de longa data, e a própria palavra é bastante antiga. Os relatos alusivos ao passado, e em parti­ cular os relatos alusivos ao passado dos povos e dos Estados, constituíam urna actividade já sobejamente conhecida no mundo do conhecimento. A hagiografia, por seu lado, fora sempre objecto de apoio por parte de quem detinha o poder. O que distinguia a nova «disciplina» da história tal como esta se veio a desenvolver no século xrx era a ênfase rigorosa por ela posta na descoberta de- segundo a famosa expressão de Leopold von Ranke - wie es eigentlich gewesen ist ( «o que aconteceu efectivamente» ). E isso por oposição a quê? Acima de tudo, por oposição a contar histórias imaginadas ou exageradas, fosse por estas lisonjearem os leitores ou por serviremos fins imediatos dos governantes ou de quaisquer outros grupos poderosos.

Não passará certamente despercebido o facto de este lema de Ranke reflectir em grande medida os temas utilizados pela «ciência» na luta que travou com a «filosofia»: a ênfase na existência de um mundo real e tido por objectivo e cognos-

JZ

Page 24: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

f'AIU AIIRIH AS CltNCIAS SOCIAIS

cível, a ênfase na prova empírica, a ênfase na neutralidade do estudioso. Além disso, e a exemplo do estudioso das ciências naturais, o historiador não deve buscar a informação que procura, nem nos escritos já existentes (ou seja, a biblioteca, lugar da leitura), nem nos processos do seu próprio pensamento (o estúdio ou estudo, lugar por excelência da reflexão), mas antes num espaço onde é possível reunir, ar­ mazenar, controlar e manipular uma informação objectiva e exterior (o laboratório ou o arquivo, que é o lugar da inves­ tigação).

Esta rejeição comum da filosofia especulativa aproximou a história e a ciência enquanto modos de conhecimento «mo­ dernos» ( que o mesmo é dizer, não medievais). Mas dado que ---- os historiadores também rejeitavam a filosofia devido ao facto de esta implicar a busca de esquemas gerais capazes de explicar os dados empíricos, era sua convicção que qualquer busca de eventuais «leis» científicas do mundo social o reconduziria necessariamente à via do erro. É este duplo significado que para os historiadores tem a sua rejeição da fi­ losofia que explica o porquê de terem sido capazes, no âmbito do seu trabalho, não só de espelharem o novo pri­ mado da ciência no pensamento europeu, mas também de surgiremcorno grandes arautos e defensores de uma posição ~gráfica e antiteórica. Por isso é que, ao longo de todo o sé­ culo xix, a maioria dos historiadores insistiu na ideia de que pertencia às faculdades de Letras e se mostrou renitente em identificar-se com as ciências sociais, essa nova categoria que lentamente passava a estar na moda.

Não obstante o facto de alguns dos primeiros historiado­ res oitocentistas terem encarado a ideia de se abalançarem a

33

Page 25: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

OMISS.~O GULBENKU,"''

uma história universal (numa espécie de derradeiro elo de ligação à teologia), a acção conjunta dos seus vínculos idío­ gráficos e da pressão social exercida. pelos Estados e pela opinião pública mais informada levou os historiadores a en­ veredarem primordialmente pela escrita das suas histórias nacionais, sendo que a definição de nação era mais ou menos circunscrita pelo recuo temporal do espaço ocupado, no tempo presente, pelas fronteiras estatais já existentes ou em vias de construção. Seja como for, a ênfase posta pelos histo­ riadores no uso dos arquivos, baseada num. conhecimento contextual e aprofundado da cultura, fez com que a inves­ tigação histórica fosse vista como particularmente válida quando o historiador a levava a cabo no seu próprio quintal. E foi assim que os historiadores, que se haviam negado a continuar a alinhar na justificação dos reis, se acharam na posição de justificar as «nações» e amiúde os seus novos so­ beranos - os •<povos».

Isso seria, sem dúvida, útil aos Estados, mas apenas indi­ recta.mente, porquanto terá contribuído para lhes reforçar a coesão social. Não os ajudou a tomar decisões quanto às p_?­ líticas mais avisadas a empreender no presente, e por certo que pouco lhes ensinou quanto às modalidades do refor­ mismo racional. Entre 1500 e 1800 vários foram os Estados que se foram habituando a recorrer a especialistas, muitas ve­ zes funcionários públicos, para que os ajudassem na tarefa de concepção de políticas, sobretudo nos momentos mais marca­ damente mercantilistas dos respectivos percursos históricos. Estes especialistas ofereceram o seu conhecimento nos mais diversos âmbitos, como sejam a jurisprudência.(um termo antigo) e o direito das nações (t~~m.o novo}, a ec,onomia

34

Page 26: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

!'AR/\ AIJRIR AS CllNCIAS SOCIAIS

política (um termo igualmente novo, que designava, de forma bastante literal, a macroeconomia ao nível das socie­ dades políticamente organizadas), a estatística (outro termo novo, que inicialmente designava os dados quantitativos re­ lativos aos Estados), e as Kameralwissenschaften {ciências da administração). A jurisprudência já era ensinada nas facul­ dades de Direito das universidades, e, quanto às Karneralwís­ senschaften, é no século xv111 que passam a ser matéria de es­ tudo nas universidades alemãs. Contudo, só no século xix é que começamos a encontrar urna disciplina chamada econo­ nuã,umas vezes no interior da faculdade de Direito, mas mais frequentemente na faculdade (por vezes ex-faculdade) de Filosofia. E dadas as teorias económicas liberais preva­ lecentes no século xrx, a expressão «economia política» (uma expressão corrente no século xvm) desaparece, na segunda metade de oitocentos, em favor da palavra «economia». Ao descartarem o adjectivo «política», os economistas ficavam em condições de defender que o comportamento económico era reflexo de uma psicologia individualista universal e não de instituições socialmente construídas, argumento que pôde então ser utilizado para afirmar o carácter natural dos prin­ cípios do laissez [aire.

A presunção de pressupostos universalizantes por parte da economia fez ~n que o estudo desta se tomasse muito voltado para o presente. Em consequência desse facto, a his- -... - tória económica foi sempre relegada para lugares inferiore nos currículos da economia, e quando surge como subdisci­ plina essa evolução dá-se mais a partir da história (da qual se irá parcialmente separar) do que da economia. A única grande tenta tiva feita no século '<t x no sentido de desenvolver

I

/

35

Page 27: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

CO.UISS,\O (;Ul..BE,\'KfAN

uma ciência social que não fosse nem nomotética nem idio­ grâfica, mas antes uma busca das leis subjacentes a sistemas ociais caracterizados por uma especificidade histórica pró­ pria, fui a construção, na área alemã, de um campo do saber chamado Str1afswissenscl111ften. Abrangendo uma mistura de aberes que (para usar uma linguagem actual) incluía a his­ tória económica e a jurisprudência, a sociologia e a economia, o campo em questão caracterizava-se por acentuar a especi­ ficidade histórica dos diferentes «Estados», abstendo-se de estabelecer as distinções entre disciplinas que então começa­ vam a ser prática corrente tanto na Grã-Bretanha como na França. A própria designação de Staa.tswissenschaften (ou «ciências do Estado») apontava já para a circunstância de os eus proponentes procUiarern preencher aproximadamente o mesmo espaço intelectual antes ocupado pela «economia política» na Grã-Bretanha e na França, desempenhando assim, por conseguinte, a mesma função de facultar aos Estados um conhecimento útil, pelo menos a longo prazo. Esta invenção disciplinar conheceu um florescimento acentuado, sobre­ tudo na segunda metade do século xrx, vindo no entanto a su­ cumbir em face dos ataques dirigidos do exterior e de uma certa tibieza interna. Na primeira década do século xx, as ciências sociais alemãs começaram a adaptar as categorias disciplinares em vigor na Grã-Bretanha e na França. Alguns dos principais vultos das Staatswissenschaften, como Max Weber, encabeçaram a fundação da Sociedade Alemã de So­ ciologia. Por altura da década de 20, a palavra Sozialswíssen· sclrnflen (vciêncías socíais») havia substituído a designação Staatswissenscliaften.

Ao mesmo tempo que a economia- nomotética e voltada

36

Page 28: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

p_~ra o presente- se incrustava firmemente como disciplina dentro das universidades, assistia-se à invenção de uma ou­ tra disciplina totalmente nova: a sociologia. Para o seu inven­ tor, Comte, a sociologia haveria de ser a rainha das ciências, uma ciência social integrada e unificada e caracterizada pelo «positivismo» (outro nelogismo criado por ÇoJ!Lte). Na práti- ca, porém, a sociologia enquanto disciplina desenvolvera-se no decurso da segunda metade do século xrx principalmente a partir da institucionalização e da transformação, dentro das universidades, do trabalho realizado pelas associações para a reforma da sociedade, cujo programa de acção se tinha ocupado primordialmente do mal-estar e dos desequilíbrios vividos pelo número imparável da população operária ur- bana. Ao levarem o seu trabalho para um ambiente univer- sitário, estes defensores das reformas sociais acabaram, em grande medida, por abdicar da sua militância activa em prol de medidas legislativas imediatas. No entanto, a sociologia manteve sempre a sua preocupação com a gente comum e com as consequências sõciais damodemidade. Em parte para consumar o corte com essas suas origens filiadas nas or­ ganizações para a reforma social, os sociólogos começaram a cultivar_o i~pulso positivista que, juntamente com a sua dis- l( posição para o estudo do presente, os empurrou, também a eles, para o campo nomotético.

ciência política enquanto disciplina viria a surgir ainda mais tarde, não porque o respectivo conteúdo - o Estado {)~· contemporâneo e a sua componente política - se prestasse e '"'ii menos à análise nomotética, mas antes de mais devido à - - resistência oferecida pelas faculdades de Direito quanto a ceder o monopólio que detinham nesta área. A resistência a

PARA AIJRIR AS CtfiNCIAS SOCIAIS

37

Page 29: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

I '(, \

CO.WSSÃO GUIBl-~\'l..'I:\,\'

esta matéria por parte das faculdades de Direito pode ex­ plicar a importância atribuída pelos cientistas políticos ao es­ tudo da filosofia política - por vezes sob a designação de teoria política-, pelo menos até à revolução behaviorista do período posterior a 1945. A filosofia política permitiu que essa nova disciplina que era a ciência política reivindicasse como sua uma herança que já vinha dos gregos, detendo-se nal.eitura de autores desde há muito com lugar firmado nos currículos universitários.

Mesmo assim, a filosofia política não chegava para justi­ ficar a criação de uma nova disciplina; em verdade, bem po­ dia continuar a ser estudada no interior dos departamentos de Filosofia, como de resto veio a suceder. Enquanto discipli­ na à parte, a ciência política iria cumprir um outro objectivo; o de legitimar a economia como disciplina autónoma. A economia política fora rejeitada como matéria de estudo com o argumento de que o Estado e o mercado funcionavam, e de­ viam funcionar, através de lógicas distintas. Tal facto exigia logicamente, como garantia, o estabelecimento a longo prazo de um estudo científico autónomo da esfera política.

Desde o momento em que a história, a economia, a socio­ logia e a ciência política se tomaram disciplinas universitá­ rias no século xrx (e de facto até 1945), o quarteto por elas - - -- - constituído não só se limi tau a ser praticado nos cinco países em que elas tiveram, colectivamente, origem, como se dedi­ cou, em grande medida, a descrever a realidade social desses mesmos países. Não se pode dizer que as universidades dos cinco países em causa ignorassem o resto do mundo. O que sucedia é que nelas esse estudo era segregado para disci­ plinas diferentes.

38

Page 30: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS Clf:.NCIAS SOCIAIS

A criação do moderno sistema-mundo implicou o encon­ tro-e, as mais das vezes, a conquista-e-. pelos europeus, dos povos do resto do mundo. Em termos da experiência euro­ peia e das suas categorias, esses encontros foram o deparar com dois tipos bastante diferentes de povos e de estruturas sociais. Havia os povos que viviam em grupos relativamente pequenos, sem um sistema de registos escritos, desinseridos de qualquer sistema religioso geograficamente amplo, e mi­ litarmente débeis em relação à tecnologia europeia. Recor­ reu-se então a diversos termos genéricos para designar tais povos: em Inglês, eram normalmente apelidados de «tribos». Noutras línguas, receberam o nome de «raças» (muito em­ bora posteriormente esta designação caísse em desuso, por causa da confusão com o uso da palavra «raça» com referên­ cia a agrupamentos bastante mais vastos de seres humanos feita na base da cor da pele e de outros atributos biológicos). O estudo destes povos passou a ser domínio de uma nova disciplina chamada antropologia. Tal como a sociologia ti­ nha, em grande medida, começado por ser uma actividade das organizações para a reforma da sociedade levada a cabo fora das universidades, assim também a antropologia come­ çou sobretudo fora das paredes da instituição universitária, e antes de mais como uma prática de exploradores, viajante e funcionários dos serviços coloniais das 'potências euro­ peias; e ~xemplo ainda da sociologia, viria a ser mais tarde institucionalizada como disciplina universitária, embora se­ gregada das demais ciências sociais dedicadas ao estudo do mundo ocidental. Não obstante alguns dos primeiros antropólogos terem

sido atraídos pela ideia de uma história natural da humani-

39

Page 31: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

CO~IISS.~O GIJLBt::NKIA,\'

d ade de contornos uníversaís (com os seus supostos estádios de desenvolvünento), da mesma maneira que os primeiros historiadores tinham sido atraídos pela história universal, as pressões sociais exercidas pelo mundo exterior acabaram por levar os antropólogos a tornar-se etnógrafos deste ou da­ quele povo, toro ando normalmente por objecto de estudo os povos que encontravam. nas colónias internas ou externas dos respectivos países. Daí resultou, como consequência guase inevitável, a adopção de uma metodologia muito espe­ ófica, construída em tomo do trabalho de campo (respon­ dendo assim à exigência do etlws científico da investigação empírica) e da observação participante numa área deter­ minada (em resposta à exigência de se atingir um conheci­ mento aprofundado sobre a cultura em estudo, tão difícil de conseguir nos casos em que a cultura se apresenta como muito estranha para o cientista).

A observação participante ameaçou desde sempre violar o ideal da neutralidade científica. Outra ameaça no mesmo sentido era a que advinha da tentação sentida pelo antropó­ logo (à semelhança do missionário) de se transformar num mediador entre o povo que estudava e o mundo dos conquis­ tadores europeus, principalmente devido ao facto de aquele tender a ser um cidadão da potência colonizadora do po\'o a estudar (como seja o caso dos antropólogos ingleses na África Oriental e Meridional, dos antropólogos franceses na África Ocidental, ou dos antropólogos italianos na Líbia. ou dos an­ tropólogos dos Estados Unidos que se dedicaram ao estudo da ilha de Guam e dos índios americanos). O enraizamento

- -- d os antropólogos nas estruturas da universidade foi Q factor ... - .,______ ----- -~

40

Page 32: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS CJf.NCJAS SOCIAIS

que mais pesou para que estes mantivessem a prática da et­ nografia dentro das premissas normativas da ciência.

Acresce que a busca pelo estado primitivo das culturas (por um estado de «pré-contacto») empurrou os etnógrafos para uma crença na ideia de que estariam a lidar - para usar a penetrante expressão de Eric Wolf- com «povos sem his­ tória». Isso poderá ter feito com que assumissem uma posição nomotética e debruçada sobre o presente, semelhante à dos economistas, e a verdade é que a seguir a 1945 a antropologia estrutural viria, efectivamente, a conhecer uma evolução desse tipo. Mas de início foi dada prioridade à necessidade de justificar o estudo da diferença, bem como de defender a legi­ timidade moral de não se ser europeu. E por isso, seguindo a mesma lógica dos primeiros historiadores, os antropólogos resistiram à exigência de formular leis, dedicando-se, na sua maioria, à prática de uma ep!~eE'-olo~ia idio_g_rá~.

Mas nem todos os povos não europeus se prestavam a ser classificados como «tribos». Desde há mui to que os europeus mantinham contactos com outras civilizações ditas «avança­ das», como fossem o mundo islâmico-árabe e a China. Essas regiões eram consideradas como correspondendo a «civili­ zações avançadas» precisamente porque tinham escrita, porque dispunham de sistemas religiosos que cobriam um vasto espaço geográfico, e porque politicamente se encon­ travam organizadas (pelo menos por períodos de tempo alargados) sob a forma de grandes impérios burocráticos. O estudo dessas civilizações por parte dos europeus começara com os clérigos medievais. Entre o século x111 e o século xviu a sua capacidade militar revelar-se-ia ainda suficientement forte para opor resistência às tentativas de conquista por

41

Page 33: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

C<)\IISS.~0 GUlRF . .\'1".\

parte dos europeus, sendo por isso olhadas com respeito e, por vezes, com admiração e até mesmo com uma certa estu­ pefacção e assombro.

o século ,1\, contudo, e em consequência dos novos pro- ressos tecnológicos europeus, estas «civilizações» foram transformadas em colónias -ou pelo menos semicolónias - da Europa. Os estudos orientais, que tiveram as suas origens no interior da Igreja e que inicialmente tiveram por justifica­ ção ser um auviliar da evangelização. passaram a ser uma prática de carácter mais secular, acabando finalmente por encontrar o seu lugar no quadro evolutivo das estruturas disciplinares das universidades. Em verdade, a instituciona­ lização dos estudos orientais foi precedida pela do antigo mundo mediterrânico, ou seja, pelo estudo da Antiguidade da própria Europa, vulgarmente chamado «cultura clássi­ ca». T ratava-se também de um estudo de uma civilização di­ ferente da da Europa moderna, no entanto a abordagem era diferente da que era utilizada nos estudos orientais. Assim, o que esse estudo versava era a história dos po,·os que eram definidos como sendo os antepassados da Europa moderna, em contraste, por exemplo, com o estudo do Antigo Egipto ou da Mesopotâmia, Explicava-se a civilização da Antigui­ dade como tendo sido a fase inicial de um desem.·oh'imento histórico uno e contínuo, que teria culminado com a moder­ na civilização «ocidental». Ela faria, assim, parte de uma sa- a única: primeiro a Antiguidade; depois, com as conquista dos bárbaros, a continuidade assegurada pela Igreja;ascguir, com o Renascimento, a reincorporação da herança greco-ro­ mana; e por fim a criação do mundo moderno. Neste sentido, a •. .\nti'.!'Uidade não possuiria uma história autónoma, consti-

Page 34: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PAH/\ Aflf{!R AS CltNCIAS SOCIAIS

tu indo antes, de facto, como que o prólogo da modernidade. Em contraste - mas scgu indo a mesma lógica-, as demais <<civilizações» também não possuiriam uma história autó­ noma; a história que delas se contava resumia-se a um conjunto de histórias paradas no tempo, desprovidas de pro­ gressão e desse desembocar culminante na modernidade.

O estudo da cultura clássica revestia-se de um carácter es­ sencialmente literário, apesar de claramente coincidir com o estudo histórico da Grécia e de Roma. Ao procurarem criar uma disciplina distinta da filosofia (e da teologia), os classí­ cistas definiram o objecto do seu estudo como sendo uma mistura formada por todos os tipos de literatura (e não ape­ nas a que era reconhecida pelos filósofos), pelas artes (bem como pela arqueologia, sua nova associada), e pela história possível de fazer, dentro dos parâmetros da nova história (o que não seria muito, dada a escassez de recursos primários). Essa mistura fazia com que, na prática, a cultura clássica se aproximasse daquelas disciplinas - então também em vias de surgimento - que se debruçavam sobre as literatura nacionais de cada um dos principais Estados da Europa Oci­ dental.

Marcado, assim, por este seu pendor literário, o estudo da cultura clássica preparou o terreno para as muitas varieda­ des de estudos orientais que começaram a dar entrada no currículos universitários. No entanto, os Orientalistas, dada as suas premissas, adoptaram uma prática muito própria. O interesse não estaria, como no caso da história europeia, cm reconstruir as sequências diacrónicas, visto que se partia do princípio de que a história em causa era desprovida de progressão. O que interessava, isso sim, era chegar a uma

/

.JJ

Page 35: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMISS,iO GULBENKIA

compreensão e a uma avaliação conecta do conjunto deva­ leres e de práticas que estavam na origem de civilizações que, embora consideradas «avançadas», eram. vistas como sendo estáticas. Tal compreensão. dizia-se, só podia ser conseguida através de uma leitura minuciosa dos textos que eram a incarnação da sua sabedoria; e isso exigia capacidades linguísticas e filológicas semelhantes às que haviam tradicio­ na lm.ente sido utilizadas pelos m.onges no estudo dos textos cristãos. Neste sentido, os estudos orientais ofereceram total resistência à modernidade, mantendo-se, de um modo geral, à margem do ethos científico. Os Orientalistas viram nas ciências sociais ainda menos vantagens do que os historia­ dores. Por isso se furtaram escrupulosamente a qualquer contacto com elas, preferindo considerar-se integrados nas «humanidades». Mesmo assim, preencheram um importan­ te nicho nas ciências sociais, dado que durante muito tempo os estudiosos do Oriente foram praticamente os únicos que na universidade se dedicaram à investigação das realidades sociais relativas à China, à Índia ou à Pérsia. É certo que, para além deles, existiram alguns cientistas sociais interessados em comparar as civilizações do Oriente com as do Ocidente (como foi o caso de Weber, Toynbee e - embora de forma menos sistemática - Marx). Mas estes comparativistas. ao contrário dos estudiosos do Oriente, não se mostravam inte­ ressados nas civilizações orientais em si mesmas. Ao invés, a sua principal preocupação intelectual foi sempre explicar a razão por que foi o mundo ocidental, e não estas civilizações, quem caminhou no sentido da modernidade (ou do capita­ lismo).

Impõe-se dizer também uma palavra com respeito a três

44

Page 36: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

l'AHA AHRIR AS CttNCIAS SOCIAIS

campos que nunca lograram ser componentes basilares das ciências sociais: a geografia, a psicologia e o direito.~ ~eo~ra­ fia, tal como a história, correspondia a uma prática já antiga. Nos finais do século xrx ela procedeu à sua própria reconstru­ ção como disciplina nova, sobretudo nas universidades ale­ mãs, que assim serviram de inspiração à evolução verificada noutras paragens. Apesar de partilhar com as ciências sociais as suas grandes preocupações, a geografia resistiu à_categori­ zação. Procurou fazer a ponte com as ciências naturais pela -- via da atenção à geografia física e com as humanidades pela via da atenção à chamada geografia humana (desempe­ nhando um trabalho de algum modo semelhante ao dos an­ tropólogos, se bem que com uma ênfase nas influências exer­ cidas pelo meio). Além disso, durante o período anterior a 1945 a geografia foi a única disciplina que se esforçou de forma consciente por ter uma prática verdadeiramente mundial quanto ao seu objecto de estudo. Essa foi a sua vir­ tude, e porventura também a sua perdição. À medida que, nos finais do século xix, o estudo da realidade social se foi compartimentando em disciplinas distintas, de acordo com uma nítida divisão do trabalho, a geografia tornou-se anacró­ nica devido ao seu pendor generalista, sintetizante, e não analítico.

Talvez em resultado desse facto, a geografia manter-se-ia, durante todo o período em causa, uma espécie de parente pobre tanto em número como em prestígio, servindo fre­ quen temente como mero acólito da história. Em consequên­ cia, o tratamento do espaço e dos lugares nas ciências sociai foi relativamente negligenciado. A tónica posta no progresso e as políticas para a organização das transformações sociai fizeram com que a dimensão temporal da existência social

Page 37: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

adquirisse uma importância de primeiro plano_, mas deixa- am a dimensão 1t-spacial no limbo da indefinição. Se os pro­ a:sMJS eram universais e subordinados a um determinismo, o espaço era teoricamente irrelevante, Se eram praticamente úniros e irrepetíveis, então o l"'SpclÇO não passava de um mero aspecto (e um aspecto menor) daquilo que era específico. Segwido a primeira perspectiva, o e-paço era encarado simplesmentecomou.maplatafozmaemqueororriamaconte­ címentos ou se desenrolsvam p.roce.ssos - um espaço es­ senciaJmente inerte e como que voláni De acordo com a segunda. perspectiva, o~--paço pa.ssaYa a Sia""umcontextoque exercia urna determinada influência sobre os acon~entos (fosse na história idiog:rá.fica, nas relações íntemacíonaís de cariz realista, nos • efeitos de vizinhança», e até mesmo nas extemalidades e nos processos de aglomeração marshal­ líanaj. Na sua maior parte, porém, esses efeitos contextuais eram vistos como simples influêru:ias-aspectos residuais a ter em conta para se obter melhores resultados empíricos, mas não essenciais para a análise ..

Apesar disso, na prática as ciências sociais baseavam-se numa visão específica-ainda que não assumida -da espa­ cialidade. O conjunto de estruturas espaciais que, no pressu­ posto dos cientistas sociais, presidiam à organização da vida das pessoas eram os territórios soberanos que celectíva­ menle definiam o mapa político mundial. Ka sua grande maioria, os dentistas sociais tinham como assente a ideia de que estas fronteiras políticas fixavam os parâmetros es­ paciais de outras interacçêes fundamentais: a sociedade do sociólogo, a economia nacional do macroecenemista, o sis­ tema político do cientista político, a nação do historiador.

Page 38: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

!'ANA Ali/UI< AS Cl[NC/AS SOCIAIS

Cada um deles partiu do pressuposto de que os processos políticos, sociais e económicos estavam ligados por uma congruência espacial fundamental. Neste sentido~ciências sociais terão sido um produto mais ou menos directo dos Es­ tados_,_ cujas fronteiras elas encararam como sendo factores cruciais de confinamento social.

A psicologia foi um caso diferente. Também aqui a disci­ plina cindiu da filosofia, buscando reconstituir-se de acordo com a nova forma científica. Contudo, a sua prática passou a ser definida como residindo, não no terreno social, mas prin­ cipalmente no terreno médico, e em resultado desse facto a sua legitimidade passou a estar dependente do grau de pro­ ximidade da sua associação com as ciências naturais. Acresce que os positivistas, partilhando da premissa de Comte («o olho não se pode ver a si próprio»), empurraram a psicologia nesta direcção. Para muitos, a única psicologia cientifica­ mente legítima teria de possuir uma natureza fisiológica e até mesmo química. Daí que procurassem que a psicologia fosse «para além» das ciências sociais, por forma a transformar-se numa ciência «biológica», e daí também que, em consequên­ cia desse facto, na maior parte das universidades a psicologia acabasse por se mudar das faculdades de ciências sociais para as de ciências naturais.

Havia na psicologia, evidentemente, modalidades teó­ ricas que punham a tónica na análise do indivíduo visto em sociedade. Esses estudiosos, que se dedicavam à chamada psicologia social, tentaram de facto permanecer no campo das ciências sociais. Mas a psicologia social, na maior parte dos casos, não conseguiu estabelecer uma autonomia institu­ ciona 1 completa, sofrendo por parte da psicologia o mesmo

47

Page 39: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

COMISSÃO Gl.JLBt.,\'Af,111.1

o

tipo de marginalização que a história económica havia so­ frido por parte da economia. Em muitos casos, ela sobreviveu por absorção, continuando a existir mas só como subdisci­ plina da sociologia. É verdade que existiam várias espécies de psicologia não positivista, como por exemplo a psicologia geisteswisse11schnftlicl1e ( de Windelbrand) ou o gestaltismo. A teoria freudiana - a mais forte e mais influente teorização da psicologia, e por isso mesmo aquela que se apresentava mais capaz de fazer com que esta se autodefinisse como ciência so­ cial - não o fez, e isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque saiu da prática da medicina; e, em segundo lugar, porque o ambiente de escândalo que inicialmente a envolveu tornou-a uma espécie de actividade pária, o que levou os psi­ canalistas a criar estruturas de reprodução institucional to­ talmente fora do sistema universitário. Essa circunstância poderá ter ajudado a preservar a psicanálise enquanto prá­ tica e enquanto escola de pensamento, mas por outro lado teve como resultado que dentro da universidade os conceitos freudianos encontraram abrigo em departamentos que não os de psicologia.

Um terceiro campo que nunca chegou a atingir o estatuto de ciência social foi o dos estudos jurídicos. Diga-se que já existia a faculdade de Direito, cujo currículo se achava es­ treitamente ligado à sua função primeira, que era a de formar advogados. Os cientistas sociais de vocação nornotética en­ caravam a «jurisprudência», ou a filosofia do direito, com cepticismo. Aos seus olhos, ela parecia-lhes demasiado nor­ mativa e insuficientemente enraizada na pesquisa empírica. As suas leis não eram leis científicas. O seu contexto afigura­ va-se demasiado idiográfico. A ciência política desistiu de

48

Page 40: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA AIJNIR AS CttNC/AS SOCIAIS

analisar essas leis e a sua história para se dedicar à análise das regras absrractas que presidiam aos comportamentos polí­ ticos, a partir das quais se haveria de tornar possível extrair sistemas jurídicos apropriadamente racionais.

Há um último aspecto da institucionalização das ciências sociais que é importante referir. Todo esse processo teve lugar ao mesmo tempo que a Europa finalmente confirmava o seu domínio sobre o resto do mundo. E daí a pergunta ób­ via: por que razão é que esta pequena porção do mundo foi capaz de derrotar todos os rivais e de impor a sua vontade às Américas, à África e à Ásia? Tratava-se, de facto, de uma per­ gunta de magna importância, e a maior parte das respostas avançadas situaram-se, não ao nível dos Estados soberanos, mas sim ao nível da comparação de «civilizações» (facto para que já acima chamámos a atenção). A Europa, na acepção de civilização «ocidental» - e não apenas a Grã-Bretanha, a França ou a Alemanha, independentemente da dimensão dos respectivos impérios-fora quem havia patenteado um poderio militar mais forte e mais eficaz. Esta preocupação com o modo como a Europa se tinha expandido até dominar o mundo coincidiu com a transição intelectual darwiniana. A secularização do conhecimento promovida pelo Iluminismo foi confirmada pela teoria evolucionista, e as teses de Darwin alastraram muito para além das suas origens biológicas. Ernbora a metodologia das ciências sociais fosse dominada pelo paradigma da física newtoniana, a biologia darwiniana teve uma influência bastante grande nas teorias do social graças a essa metacoustrução irresistivelmente apelativa que dava pelo nome de evolução, com a sua enorme ênfase no conceito de sobrevivência do mais apto.

Dl'i'tnms-.J 49

Page 41: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

·ito de sobrevivência do mais apto foi sujeito a muitos usos e abusos ~ frequentemente confundido com o

Je éxito po.r via da competição- . Assi ... -

regresso culminava nessa auto-evi­ ·rioridade da sociedade europeia

or exemplo, as teorias

da

Page 42: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

PARA ABRIR AS C!Í:NCIAS SOC/,HS

de graus nessa disciplina. A institucionalização da formação foi acompanhada pela institucionalização da investígação: veja-se a criação de revistas especializadas em cada uma das disciplinas; a constituição de associações de investigadores por disciplinas (primeiro, de âmbito nacional, depois, de âmbito internacional); ou a catalogação das colecções das bibliotecas também de acordo com as diferentes áreas disci­ plinares.

Elemento essencial neste processo de institucionalização das disciplinas foi o esforço feito por cada uma delas no sentido de definir aquilo que a distinguia das demais, e em particular o que a diferenciava das que lhe pareciam estar, quanto ao conteúdo, mais próximas no estudo das realidades sociais. Os historiadores, a começar por Ranke, Niebuhr e - Droysen, afirmaram ter uma relação privilegiada com um tipo especial de materiais, com destaque para as fontes con­ tidas em arquivos e textos afins. Esses mesmos historiadores sublinharam estar interessados na reconstrução da realidade do passado, para o que se propuseram relacioná-la com as necessidades culturais do presente. E fizeram-no seguindo a via interpretativa e hermenêutica e insistindo em estudar os fenómenos - mesmo os mais complexos, como as culturas e as nações na sua globalidade - enquanto entidades indivi­ dualizadas e enquanto momentos (ou partes) de contexto diacrónicos e sincrónicos.

Os antropólogos procederam à reconstrução de modos de organização social muito diversos das formas que caracte­ rizavam os povos do Ocidente. Com o seu trabalho, demons­ traram que certos costumes que se afiguravam estranhos ao olhos dos ocidentais não eram, de facto, irracionais, funcio-

5/

Page 43: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

egiaraman­ história: te regem

mportamentn humano; a prennczo enómenos a estudar como idualizadas); a necessidade de segmentar a realidade hu­ mana para poder analisá-la; a possibilidade e a vantagem de recorrer a métodos estritamente científicos rcomo seja a for­ mulação de hipóteses teóricas, a testar posteriormente em confronto com as provas disponíveis e através de procedi­ mentos rigorosos e, se possível, quantitativos): a opção por provas produzidas de forma sistemática (como por exemplo ados obtidos através de inquéritos por questionário) e pela

observação controlada, de preferência a textos preexistentes

e a outros elementos residuais. ma vez estabelecida, assim, a separação entre as ciência

sociais e a história idiográfica, os cientistas sociais de orien­ tação nomotétíca - economistas, cientistas políticos e soció­ logos - mostraram-se, eles também, ansiosos por demarcar ... - __ ,._.-.,....,.. ~.

os respectivos territórios relativamente aos restantes, vin- cando diferenças que se lhes afigura\'am essen<?,ais (tanto nos conteúdos como nas metodologias). Os economistas (íze­ rarn-no através da insistência na validade do pressuposto de

Page 44: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

/'ARA ABRIR AS Clf.NCIAS SOCIAIS

que, ceieris paribue, se impunha estudar as operações do mer­ cado. Quanto aos cientistas políticos, fizeram-no limitando a sua investigação às estruturas governamentais formais. E os sociólogos fizeram-no por via da insistência numa proble­ mática social emergente, descurada tanto pelos economistas como pelos cientistas políticos.

Pode afirmar-se que tudo isto se traduziu, em ampla medida, numa história de sucesso. O estabelecimento dases­ truturas disciplinares gerou estruturas de investigação, de análise e de formação que não apenas se revelaram produ­ tivas e viáveis, como também deram origem à considerável bibliografia que hoje consideramos ser legado das ciências sociais contemporâneas. Por volta de 1945, a panóplia de dis­ ciplinas compreendidas pelas ciências sociais encontrava-se praticamente institucionalizada na maioria das universida­ des de todo o mundo. Nos países fascistas e comunistas verificara-se uma resistência a estas classificações (e até mesmo a sua recusa). Com o fim da II Guerra Mundial, as ins­ tituições alemãs e italianas passaram a alinhar inteiramente pot· aquilo que já era o padrão geralmente aceite, o que no caso dos países do bloco soviético viria a suceder nos finais 1

da década de 50. Além disso, ainda por volta de 1945, as ciên­ cias sociais distinguiam-se claramente, por um lado, das ciências naturais - que estudavam os sistemas não hu­ manos-, e, por outro lado, das humanidades - que toma-, varn para seu objecto de estudo a produção cultural, mental e espiritual das sociedades humanas «civilizadas».

Todavia, no preciso momento em que, pela primeira vez, as estruturas institucionais das ciências sociais pareciam

53

Page 45: AS CIÊNCIAS SOCIAIS - acervodigital.ssp.go.gov.br · algumas verdades eternas e intrínsecas. Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her deiro desta sabedoria. Mas trata-se

CO,lfl.'iS·iO GVUIF.VKIA

finalmente montadas e claramente definidas, as práticas dos cientistas sociais iriam começar J mudar após a II Guerra Mundial. Tal circunstância iria criar um fosso cada vez mais fundo entre, de um lado, as práticas e as posições intelectuais dos cientistas sociais, e, de outro lado, a organização formal das ciências sociais.

54