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1 AS CHARGES E SUAS POTENCIALIDADES COMO FONTE HISTÓRICA FABIANO COELHO* 1 O objetivo do texto é refletir sobre as charges enquanto fontes históricas, chamando atenção para as suas especificidades; e socializar experiências de pesquisa com charges publicadas no Jornal Sem Terra, periódico editado pelo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Esse trabalho se insere em um projeto de pesquisa intitulado “Entre Charges e Representações: MST e Jornal Sem Terra1 , 2 cadastrado na Pró-Reitoria de Pós- Graduação e Pesquisa da Universidade Federal da Grande Dourados (PROPP/UFGD), no ano de 2015. O entendimento do que são fontes históricas ampliou consideravelmente na historiografia, sobretudo, na segunda metade do século XX. Vestígios, indícios, pistas de diversas naturezas foram apropriadas pelos pesquisadores, ampliando suas possibilidades de interpretações sobre os fenômenos históricos. Nos caminhos e descaminhos da historiografia, o entendimento de “documento/fontes históricas” se transformou no sécul o XX. Jacques Le Goff, em um trecho de sua obra clássica, “História e Memória”, se apropriando das palavras do célebre historiador francês, Lucien Febvre, sintetiza de forma brilhante essa reflexão: A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE GOFF, 1996, p. 540 apud FEBVRE, 1949, Ed. 1953, p. 428 grifo nosso). * Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD). Docente do Curso de História da UFGD. 1 O referido projeto de pesquisa se encontra em andamento e tem como objetivo analisar a produção chargística no Jornal Sem Terra e as representações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por meio das charges, destacando os principais temas abordados nas charges do periódico, entre os anos de 1984 e 2010.

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AS CHARGES E SUAS POTENCIALIDADES COMO FONTE HISTÓRICA

FABIANO COELHO*1

O objetivo do texto é refletir sobre as charges enquanto fontes históricas, chamando

atenção para as suas especificidades; e socializar experiências de pesquisa com charges

publicadas no Jornal Sem Terra, periódico editado pelo do Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra (MST). Esse trabalho se insere em um projeto de pesquisa intitulado “Entre

Charges e Representações: MST e Jornal Sem Terra”1,2cadastrado na Pró-Reitoria de Pós-

Graduação e Pesquisa da Universidade Federal da Grande Dourados (PROPP/UFGD), no ano

de 2015.

O entendimento do que são fontes históricas ampliou consideravelmente na

historiografia, sobretudo, na segunda metade do século XX. Vestígios, indícios, pistas de

diversas naturezas foram apropriadas pelos pesquisadores, ampliando suas possibilidades de

interpretações sobre os fenômenos históricos. Nos caminhos e descaminhos da historiografia,

o entendimento de “documento/fontes históricas” se transformou no século XX. Jacques Le

Goff, em um trecho de sua obra clássica, “História e Memória”, se apropriando das palavras

do célebre historiador francês, Lucien Febvre, sintetiza de forma brilhante essa reflexão:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas

pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com

tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel,

na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com

as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos

cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises

de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao

homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a

presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE GOFF, 1996, p.

540 apud FEBVRE, 1949, Ed. 1953, p. 428 – grifo nosso).

* Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande

Dourados (PPGH/UFGD). Docente do Curso de História da UFGD. 1 O referido projeto de pesquisa se encontra em andamento e tem como objetivo analisar a produção chargística

no Jornal Sem Terra e as representações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por meio

das charges, destacando os principais temas abordados nas charges do periódico, entre os anos de 1984 e 2010.

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O conhecimento histórico é produzido por todas as evidências humanas, sejam elas

materiais e/ou imateriais. Para Sandra Jathay Pesavento, “os exemplos são muitos, pois fontes

são marcas que foi, são traços, cacos, fragmentos, registros, vestígios do passado que chegam

até nós, revelados como documento pelas indagações trazidas pela História” (PESAVENTO,

2004, p. 98). Observa-se que há uma dimensão fundamental na concepção das fontes

históricas: os seus sentidos e os significados são revelados a partir das perguntas e

curiosidades dos pesquisadores. As fontes não falam por si próprias, devem ser

“interrogadas”, como dissera Thompson (1981, p. 38).

Algo fundamental no processo de escrita da história se trata da “habilidade” do

historiador em utilizar suas fontes, sejam elas documentos escritos ou quaisquer evidências de

experiências humanas. Logo, a qualidade do texto histórico depende fundamentalmente do

manuseio e do diálogo do pesquisador com suas fontes/documentos. O fato de ter uma

quantidade enorme de fontes não significa êxito/qualidade do trabalho. Há pesquisadores que,

com poucas fontes, conseguem exprimir “leite de pedra”. Ou seja, estabelecem um diálogo

minucioso com suas fontes e abrem um leque de possibilidades de interpretações sobre um

fenômeno histórico.

Nessa perspectiva, chama-se atenção para as charges como fontes históricas,

destacando as charges publicadas no Jornal Sem Terra, do MST. O que é charge? Charge é

fonte histórica? Essas são algumas indagações que direcionarão as reflexões do texto. Antes

de adentrar ao universo das charges, é interessante tecer algumas palavras sobre o Jornal Sem

Terra2.3O periódico começou a ser editado antes mesmo da organização do MST3,4no ano de

1981, em formato de boletim, com o nome de Boletim Sem Terra. Sua produção ocorria em

Porto Alegre/RS e os responsáveis por sua organização foram a Comissão Pastoral da Terra

2 Em relação à organização e historicidade do Jornal Sem Terra, ver os trabalhos de Mestrado e Doutorado de

Fernando de Perli (2002; 2007) e a Tese de Doutorado de Antonio Alves Bezerra (2011). 3 O MST foi criado “oficialmente” em janeiro de 1984, no transcorrer de um encontro de trabalhadores rurais em

Curitiba/PR. Contudo, a literatura sobre o Movimento indica que sua organização estava sendo gestada em fins

da década de 1970, com a articulação de lideranças de trabalhadores rurais sem-terra de diversos estados do país.

O Movimento desenvolveu uma organização dinâmica, com práticas peculiares e fomentou instrumentos

políticos para auxiliar em suas lutas. Um dos instrumentos políticos do MST é o Jornal Sem Terra. Sobre a

historicidade do MST, ver: sugere-se a leitura dos seguintes autores: Bernardo Mançano Fernandes (2000);

Miguel Carter (2010); Claudinei Coletti (2005), Debora Franco Lerrer (2008).

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(CPT), a Pastoral Universitária de Porto Alegre/RS, e o Movimento de Justiça e Direitos

Humanos do Rio Grande do Sul.

O Jornal Sem Terra é concebido pelos membros da Direção Nacional do MST como

um “instrumento político de luta”, que deve estar a “serviço” da sua organização. No “jogo

político” (BOURDIEU, 2006, p. 169) em que o Movimento participa, o periódico é um

instrumento relevante para construir representações sobre diversas e distintas questões que

envolve a organização e seus integrantes. Há que se destacar que o Jornal Sem Terra é uma

fonte riquíssima para compreender as ações, caminhos e descaminhos do Movimento ao longo

do tempo.

O Jornal Sem Terra investiu na publicação de charges entre os textos do periódico. A

princípio, entende-se que as charges não foram publicadas aleatoriamente no jornal, ou que

seu discurso imagético estava desconexo com as representações que o MST almejava

expressar. As charges, como elementos discursivos, tinham relevância no jornal, na medida

em que os seus traços construíam representações que interessavam à Direção Nacional do

MST.

O que são charges? Entre os pesquisadores que estudam essa modalidade discursiva,

existem algumas definições técnicas. O termo “charge” deriva da palavra francesa charger,

que significa “carregar”, “exagerar”. Rosildo Raimundo de Brito chama a atenção para a

problemática de caracterização do que seria charge, haja vista que, no jornalismo, é

considerada uma modalidade caricatural, possibilitando interpretações distintas (BRITO,

2006). Por vezes, as charges são interpretadas semelhantemente à caricatura e ao cartum. Não

existe uma interpretação unívoca do que seriam cada uma, nem o que seria a fronteira que

separa uma de outra. Há diversas interpretações sobre essa questão. Em seu trabalho sobre

“charge jornalística”, Carlos Edson Romualdo subsidia essa discussão. O autor considera o

cartum como uma representação genérica e atemporal; a charge como a representação crítica

de determinado fato, personagem ou acontecimento, geralmente político e com limitação

temporal; e a caricatura, uma representação exagerada, proposital, partindo das características

mais alusivas dos indivíduos ou fatos (ROMUALDO, 2000, p. 21).

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No universo jornalístico, caricatura e charge estão imbricadas, ou seja, as

características de ambas estão nas representações chargísticas. Para tanto, José Marques de

Melo define o que seria uma e outra: a) caricatura – “retrato humano que exagera ou

simplifica traços, acentuando detalhes ou acentuando defeitos. Sua finalidade é suscitar risos,

ironia. Trata-se de um retrato isolado”; b) charge – “crítica humorística de um fato ou

acontecimento específico. Reprodução gráfica de uma notícia já conhecida do público,

segundo a ótica do desenhista e que, tanto pode se apresentar através de imagens, quanto

combinando imagem e textos (títulos, diálogos)” (MELO, 2003, p. 167-168). Destaca-se que

as charges não são produzidas apenas sob a “ótica do desenhista”, conforme disse Melo, mas

também sob a ótica do grupo ligado ao periódico em que a charge é publicada. As charges

podem ser “encomendadas”. As charges produzidas no Jornal Sem Terra se caracterizam em

sua essência como elementos chargísticos e caricaturais, pois elas têm o humor, a política e a

representação exagerada dos fatos como dimensões preponderantes.

Rozinaldo Miani enfatiza que a charge é herdeira da caricatura e deve ser entendida

“enquanto uma representação humorística, caricatural e de caráter político, satirizando um

fato específico” (MIANI, 2001, p. 3). O desenho, a linha, o espaço, o plano, o ponto de

enfoque, o volume, a luz, a sombra, o movimento, a narrativa, o balão, a onomatopéia e o

texto verbal são elementos constitutivos e que estruturam a charge. Por ora, esses elementos,

necessariamente, não precisam aparecer todos juntos na charge. Miani salienta outros

elementos característicos da charge: o “humor”, através da linguagem iconográfica; a

“efemeridade”, isto é, a charge é erigida para destacar determinado fato ou momento; e a

“apresentação física”, em que o artista recorre geralmente a um quadro para abordar o assunto

(raramente o chargista recorre a dois ou mais quadros na construção da charge), todavia, a

charge não se restringe apenas a um quadro (MIANI, 2001, p. 3-4).

Outros aspectos fundamentais que acompanham as charges são o “humor”, a “ironia”

e a “sátira”. As charges, além de seu conteúdo político, objetivam causar risos nos leitores. O

discurso humorístico explorado pelo chargista, que se baseia na ironia e na sátira, por vezes,

se reveste de “sentido contrário”. Ou seja, diz uma coisa, quando, na verdade, o sentido

implícito é outro. Para Luís Fernando Lopes, a ironia é utilizada para produzir efeitos de

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sentido. No seu entender, “a ironia se refere a uma figura de pensamento que nos leva a

sugerir, numa palavra, numa expressão ou numa frase, algo diferente do que elas literalmente

designam” (LOPES, 2008, p. 59). No entender de Brito, a charge é a representação máxima

da ilustração satírica, em que o chargista trabalha com a dualidade do “sério” e do “ridículo”.

Isto é, as representações contidas nas charges têm as dimensões da crítica e do humor que, por

vezes, ridicularizam aquilo que está sendo representado (BRITO, 2006, p. 29). As charges

podem ser produzidas a partir de diversos fatores: sociais, políticos, econômicos ou culturais.

Abaixo, uma charge publicada no Jornal Sem Terra que expressa características

enfatizadas por Miani, Melo, Romualdo, Brito e Lopes:

Imagem 1: Cresce a insatisfação popular contra o governo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000, ano XVIII, n. 202, p. 2.

Essa charge, cujo autor é Luscar, foi publicada no editorial da edição de julho de 2000,

no segundo mandato do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC). O

MST, durante os dois mandatos do presidente FHC foi um opositor ferrenho às ações do

Governo e do presidente4.5A charge faz menção a um dos maiores escândalos de desvio de

verbas do país, protagonizado pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, o “Lalau”, do Tribunal

Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Nesse escândalo, o referido juiz foi condenado a

4 Ver: COELHO, Fabiano. Entre o Bem e o Mal: representações do MST sobre os presidentes FHC e Lula

(1995-2010). 2014. 440f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Federal

da Grande Dourados, Dourados.

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prisão por desviar R$ 169,5 milhões de uma obra de construção do prédio do TRT de São

Paulo. Nessa direção, também faz referência a Eduardo Jorge Caldas Pereira, o “Dudu”, que

exerceu a função de coordenador operacional da campanha da reeleição de FHC. Dudu

também foi acusado de ter participação nesse esquema de corrupção.

A intencionalidade com a charge é evidente: expor o então presidente FHC e associá-

lo ao escândalo de corrupção, haja vista que, na época, o coordenador de sua campanha de

reeleição estava envolto ao escândalo. A suposição do MST, através do editorial do Jornal

Sem Terra era que, parte do dinheiro desviado por Lalau e Dudu, tinha sido utilizada na

campanha de reeleição de FHC5.6 É possível visualizar na charge, a partir da imagem de FHC,

o humor, a ironia, o exagero, a ridicularização do presidente como se fosse um mentiroso

(nariz enorme, rememorando a figura do personagem Pinóquio) e um discurso imagético de

efeito contrário: FHC diz uma coisa, mas a charge quer dizer outra coisa.

A produção chargística no Jornal Sem Terra possibilita compreender que elas não

foram inseridas no periódico apenas como forma de distrair os leitores. Elas visam

precipuamente a alertar, denunciar, levar à reflexão. Não obstante, também se caracterizam,

seguindo concepção de Miani, como “instrumento de persuasão”, “intervindo no processo de

definições políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor, e criando um

sentimento de adesão que pode culminar com um processo de mobilização” (MIANI, 2001, p.

4). Nas charges, o elemento cômico é revestido de crítica analítica; carrega em si o humor,

mas tem intenso conteúdo discursivo crítico sobre aquilo que quer retratar.

Outro aspecto a acrescentar é que sua forma de expressão é eminentemente

“dissertativa”. As charges buscam expor ideias, narrar fatos, acontecimento, de acordo com o

autor e/ou grupo a que está vinculada. É possível dizer que a charge se configura como um

texto iconográfico, com objetividade, sentidos e intencionalidades perante os seus receptores.

Sua construção implica, entre outros objetivos, comunicar, levar à reflexão, construir

representações para os receptores. Por essa perspectiva, as charges não podem ser

5 Cresce a insatisfação popular contra o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000, ano XVIII, n. 202,

p. 2.

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visualizadas como simples diversão ou humor, pois são representações de experiências

históricas, elaboradas a partir de concepções e olhares de determinados grupos.

Imagem 2: Agricultura Familiar

Imagem 3: Agronegócio

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n. 241, p. 2.

As duas charges acima, de autoria de Marcio Baraldi, foram publicadas no editorial

intitulado “Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa”, na edição de junho de

2004. Nesse editorial, o MST coloca em pauta dois projetos que, a seu ver, são antagônicos:

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Agricultura Familiar X Agronegócio6.07Nas representações do Movimento, o agronegócio era

uma “ilusão” moderna, e se pautava em tudo que era de mais arcaico na sociedade, recriando

o “modelo agrícola colonial, que só privilegia as exportações”7.8Assim, o modelo viável e que

beneficiaria a sociedade era justificado na defesa da agricultura familiar.

Não se pretende fazer um debate aprofundado sobre as problemáticas que envolvem a

agricultura familiar e o agronegócio. A intenção em dar destaque às duas imagens foi para

enfatizar que as charges são produzidas a partir de olhares de indivíduos e grupos e, por

vezes, idealizam e estereotipam determinados fenômenos históricos, ações e grupos. O

agronegócio, na visão do MST, por meio da charge busca criar uma representação de que o

modelo é terrível para a sociedade brasileira. Há quase uma “demonização” desse modelo. Já

a agricultura familiar é representada de forma harmoniosa e idealizada, como se fosse a

“salvação” para o Brasil. Nessa perspectiva, ao analisar as charges, percebe-se que elas não

são meramente ilustrações para “divertir”, mas tem intencionalidades específicas, dentro de

uma temporalidade e contexto histórico.

Miani entende a charge como uma prática discursiva “reveladora de idéias e expressão

ideológica de uma determinada posição política que está no exercício do poder” (MIANI,

2001, p. 9). O autor entende que toda linguagem e discurso são ideológicos e construídos

social e historicamente, por meio das diversas relações sociais dos grupos. “Todo signo é

ideológico, caracterizado com uma realidade ideológica, que tem sua materialidade e que se

constrói no ambiente social da comunicação, pela interação verbal” (MIANI, 2001, p. 6). Por

ser um discurso ideológico, as charges se transformam também num discurso “persuasivo”.

Isto é, objetiva convencer os seus receptores, a partir das ideias e concepções do grupo que as

criou. Essa perspectiva de análise é pertinente, pois o MST, por meio de seu jornal, intenta

“persuadir” seus integrantes e simpatizantes, de maneira a fazê-los acreditar que os discursos

(escritos e imagéticos) produzidos no impresso são as experiências históricas efetivamente

vividas.

6 Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano

XXII, n. 241, p. 2. 7 Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano

XXII, n. 241, p. 2.

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Os discursos produzidos pelas charges visam “agir” nas experiências históricas, e o

MST faz de seu discurso um ato persuasivo. Ao se tornar característica no interior dos

periódicos, a charge conquista espaço como material de opinião e revela “a sua potencialidade

política e ideológica enquanto manifestação de linguagem” (MIANI, 2001, p. 5). A charge se

torna fonte importante para analisar experiências passadas, haja vista que sua produção é

marcada por acontecimentos históricos de determinada época, inserida nas relações sociais,

políticas, econômicas ou culturais de determinados grupos. Assim, toda charge é portadora de

uma memória histórica.

Para se analisar as charges torna-se necessário conhecer também o trabalho do

chargista. O chargista interage com a existência de significações não manifestas, mas

subtendidas, “de forma que isso nos obriga a recuperar toda uma série de informações para

melhor compreender a gama possível de significados” (LOPES, 2008, p. 49). Em síntese, há

que se conhecer o contexto, o momento histórico em que as charges foram produzidas;

identificar os receptores, a quem eram direcionadas, e ainda as críticas implícitas na imagem.

Nessa direção, na análise das charges, não é possível isolá-las de outras informações; é

preciso entrecruzar o momento histórico com a produção da imagem.

Para compreensão das charges como fonte histórica, torna-se relevante indagar: quem

é o autor da charge? Onde e em que contexto foram produzidas? Quais as relações do

chargista com o grupo estudado? Como ocorria o processo de produção das charges

publicadas no periódico analisado? Assim como todas as fontes, os periódicos e as charges

possuem tratamentos específicos. As charges são direcionadas a um determinado público alvo

e podem proporcionar muitas armadilhas ao pesquisador, caso ele não esteja minimamente

preparado teoricamente para trabalhá-los.

Em relação às charges no Jornal Sem Terra, estas sempre acompanharam os seus

editoriais e demais seções do periódico. Destaca-se que, as charges, assim como as imagens,

configuram-se como “evidência histórica” (BURKE, 2004, p. 11). As imagens, como uma

construção efetuada por alguém, ou por algum grupo, visam a representar o mundo, ou a criar

representações sobre o mundo. Toda imagem é histórica, assim, para o historiador, o estudo

das imagens é o estudo da historicidade destas imagens. Nesse sentido é que, em diversos

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trabalhos de história há críticas à utilização de imagens apenas como ilustração, uma vez que

as fontes imagéticas não estão isoladas do contexto sócio-político e cultural em que foram

produzidas, pensadas e investidas de sentidos.

Compreende-se a charge como construtora de representações, caracterizando-se como

elemento iconográfico e iconológico, revestida de linguagem verbal e não verbal. Para tanto, a

charge, assim como o texto escrito, caracteriza-se como uma prática discursiva carregada de

significação política e ideológica. Muito mais que um recurso humorístico e lúdico, a charge

intenta personificar e persuadir. Como fontes históricas, as charges devem ser tratadas a partir

de seu contexto histórico e das condições em que foram pensadas e construídas.

É necessário observar nas charges os personagens, as cenas, os elementos surpresas, a

dramaticidade, a harmonia, enfim, todos os detalhes de sua composição. Os detalhes nas

charges são pistas para a interpretação dos sentidos que são sugeridos pela ilustração. Ao se

mencionar a importância dos detalhes nas imagens recorre-se às reflexões de Carlo Ginzburg,

que escreve sobre a emergência de um modelo epistemológico que cresceu silenciosamente

nas Ciências Humanas e se consolidou no final do século XIX. Trata-se do “paradigma

indiciário”, ou “método indiciário”, do italiano Giovani Morelli. Este método é interessante

para a pesquisa histórica, pois faz pensar nos pormenores, elementos geralmente

negligenciados ao primeiro olhar. Coisas “insignificantes”, detalhes, vestígios, muitas vezes

são imprescindíveis para melhor entendimento das fontes. De acordo com Ginzburg “se a

realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinas, indícios – que permitem decifrá-la”

(GINZBURG, 1989, p. 177).

Ler charges é uma atividade desafiadora. Ao observar uma charge é possível ser

surpreendido por detalhes reveladores. O pesquisador necessita de um olhar atento, em todos

os detalhes que levaram à sua construção. O intuito de ver e ler uma charge é compreendê-la.

As charges, como fontes históricas, podem se tornar significativas para compreender os

grupos e como estes representam suas experiências históricas.

Fontes

Imagem 1: Cresce a insatisfação popular contra o governo. In:

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Imagem 2: Agricultura Familiar. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII,

n. 241, p. 2.

Imagem 3: Agronegócio. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n. 241,

p. 2.

Cresce a insatisfação popular contra o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000,

ano XVIII, n. 202, p. 2.

Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho

de 2004, ano XXII, n. 241, p. 2.

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