As artes visuais em torno de 1900

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AS ARTES VISUAIS EM TORNO DE 1900 JOSÉ FERNANDO GUIMARÃES

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Interpretar o modernismo - e o lugar do espectador - é do que se trata aqui. Com Manet e Cézanne, em particular.

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AS ARTES VISUAIS EM TORNO DE 1900

JOSÉ FERNANDO GUIMARÃES

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À memória de Joaquim Matos Chaves.

À memória de Fernando Pernes.

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I

O absorvimento

(antes e depois da época de Diderot)

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O lugar do espectador em Boucher

[François Boucher, L'Odalisque, c. 1749, Musée du Louvre, Paris]

Esta odalisca morena é diferente das outras odaliscas de Boucher – um pintor

do rococo, na linhagem de Watteau. Enquanto as outras odaliscas estão mais

ou menos paralelas à esquadria mais larga do quadro, o que esconde um

pouco da sua nudez, a odalisca morena cria uma diagonal ao quadro,

revelando, assim, ao contrário das outras, um pouco mais da sua nudez. Em

contraponto, o tecido azul, precipitando-se numa diagonal oposta à da figura,

acaba por acolhê-la num serpentear semelhante aos braços – melhor: ao corpo

– do amante. De facto, é desta intersecção da figura com o tecido azul que

tudo nasce. A camisa de dormir branca arrepanhada nas costas, a almofada

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amarfanhada pelos braços da mulher, o tecido (lençol?) cinzento claro com

riscas esbranquiçadas, o tecido azul que envolve o colchão (?), a carpete e o

tapete (vermelha e azul escuros, respectivamente), a mesa com uma outra

almofada, como que atirada durante o acto sexual, o porta-jóias e as jóias, um

lenço (?) de seda (o brilho parece confirmá-lo) abandonado, as almofadas na

parede. E, depois, o olhar da figura – na mesma diagonal do tecido azul. Um

olhar suspenso da partida do amante que, no dizer de Diderot, nos seus

Salons, seríamos, afinal, nós – isto é, o espectador. É a isto tudo que Fried

1chama absorvimento e teatralidade na pintura da época de Diderot.

1 Michael Fried, Absorption and Theatricality: Painting and Beholder in the Age of Diderot,

University of Chicago Press, 1988.

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O realismo de Caravaggio e Courbet

Para mim, se há obras que L'Odalisque de Boucher implique, uma delas é esta

[Caravaggio, Maddalene penitente,1596-97, Galleria Doria Pamphilj,Roma]

e a outra

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[Courbet, Le Sommeil, 1866, Petit Palais, Paris]

é esta.

Dir-me-ão: o que tem a ver a pintura de Caravaggio e de Courbet com a pintura

– em concreto L'Odalisque – de Boucher? A resposta é simples: Caravaggio

anuncia o absorvimento de Boucher – melhor, o absorvimento na época de

Diderot; Courbet, por seu lado, fecha (ou começa a fechar) esse absorvimento.

Aliás, se há quadro que dialogue com Maddalene penitente, de Caravaggio, é

este,

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[Courbet, La fileuse endormie, 1853, Musée Fabre, Montpellier]

de Courbet.

O que se vê em Maddalene penitente de Caravaggio? Creio que a resposta é

esta: a clausura. A clausura que o ângulo das paredes (uma delas dividida

entre luz e sombra, a outra mais sombria) cria. A clausura que o cabelo e o

manto castanhos (outra vez a oposição claro/escuro) criam. A clausura que a

cor da pele, a camisa imaculadamente branca e as cores do vestido (cinzas

esverdeados mais escuros e mais claros; o cinto do vestido entre o vermelho e

o castanho) criam. A esta errância entre claro e escuro, corresponde a errância

das mãos abandonadas – em que uma pega na outra. E, por fim, a sonolência

da figura – o seu absorvimento – algures entre vigília e son(h)o - uma noutra

errância, de facto. Maddalene penitente, de Caravaggio, é um prodígio de

contrastes (errâncias), que as jóias e o colar, abandonados e partidos no chão,

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sublinham. De notar, ainda, como todo o quadro é elaborado num plano picado,

isto é, de cima para baixo.

Acontece que vamos encontrar uma das vanitas (gargantilhas de ouro (?), colar

de pérolas partido, vaso de unguento) de Maddalene penitente em Le Sommeil

de Courbet, a saber: o colar de pérolas partido. De resto, em Le Sommeil há o

abandono – o absorvimento – das figuras, como em Maddalene penitente.

Todavia, em Maddalene, o abandono da figura é espiritual. Enquanto em

Sommeil, o abandono das figuras é sexual. E, se em Maddalene uma mão

pega na outra mão, segura/aconchega a outra mão, em Sommeil é um corpo

que pega no outro corpo, segura/aconchega o outro corpo. Finalmente, em

Sommeil, ao contrário de Maddalene, o quadro é elaborado num plano

ligeiramente contra-picado, isto é, de baixo para cima.

Diferentes um do outro, Maddalene e Sommeil, no que se refere ao

absorvimento das figuras? A resposta é, evidentemente, não. O êxtase é

êxtase – seja ele espiritual ou sexual. Este mármore de Bernini

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[Bernini, Êxtase de Sta Teresa, 1647-52, Igreja Santa Maria della Vittoria, Roma]

bem o mostra, aliás.

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Courbet ou o pintor dividido

Que novidades me trouxe, então, Courbet (Grand Palais, Paris, 2007)? Por um

lado, a confirmação da tese de Fried (Courbet’s Realism). Mas, por outro lado,

algumas pistas que eu já tinha começado a esboçar. É o caso da correlação

entre a pintura de Courbet e a fotografia da altura – o que implica a questão da

suspensão do tempo (o par activo/passivo, segundo Fried). É o caso da

passagem da figuração à abstracção - a figuração está na série dos auto-

retratos e a abstracção (que o impressionismo, em particular Monet, começa)

impõe-se nas paisagens, apesar de aqui e ali surgir uma figura, minúscula ou

não. O que levanta uma questão curiosa: tanto Un enterrement como L'atelier

confirmam um braço de ferro com a pintura do neo-classicismo, com a pintura

de género histórico – um braço de ferro em suspenso, suspenso

fundamentalmente na linha dos olhares, no movimento (corpos, mãos, olhares)

e na cor. Em contrapartida, a última fase da obra de Courbet (caça; naturezas-

mortas: frutos, flores, trutas) funciona como uma espécie de regresso ao auto-

retrato. De facto, o exílio leva a que Courbet sinta, cada vez mais, o que a sua

pintura traz de novo – isto é, perceba cada vez melhor o paradigma que está a

construir, o realismo. Daí, como no célebre e enigmático

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[Courbet, Chasseur à cheval retrouvant la piste, 1864?]

que a caça seja agora, para Courbet, a busca do novo paradigma da pintura e

a busca da sua liberdade - aliás, as naturezas-mortas representam o próprio

Courbet, o pintor dividido, que busca incessantemente não só a origem do

mundo - L'origine du monde - como a origem da pintura, a sua, pelo menos...

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II

Impressionistas e post

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Monet e a essência da paisagem

[Monet, à direita, no seu jardim em Giverny, 922]

Olhe-se para Impression, soleil levant (1872, Musée Marmottan Monet, Paris)

de Monet. E dizemos logo: foi com esta obra que começou o impressionismo.

Mas, o que é que marca o impressionismo? A resposta é esta: pintar em plein

air, ao ar livre, de forma a captar mais o ambiente, a atmosfera, do que a

fidelidade ao modelo. Todavia, este pintar em plein air já vinha detrás, da

escola de Barbizon, cujo motivo fundamental era a paisagem.

Também Impression, soleil levant, de Monet, é uma paisagem. Uma paisagem

aquática. Uma paisagem construída pela cor e pela forma – e, neste ponto,

afasta-se da escola de Barbizon. Mais, ainda: é uma atmosfera – uma

atmosfera aquática habitada por três manchas negras (três barcos, alguns

homens).

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De facto, os primeiros trabalhos de Monet, as suas primeiras paisagens, são

habitados. Pelas personagens locais (sempre em ponto pequeno), inicialmente.

Depois, por turistas (sempre em ponto pequeno, também). Mais tarde, Monet

pinta a burguesia (num formato maior), afastando-se, assim, do motivo da

paisagem – o motivo passa a ser, então, a cidade ou o lazer (campestre,

marítimo). Segue-se, por fim, outra vez a paisagem. Num primeiro momento, a

paisagem industrial (gares, comboios). Depois, os pares e trios de paisagens

com o mesmo tema. Perto da sua morte, uma pintura muito matérica e as

séries: medas de feno, árvores (choupos), catedrais (a de Rouan), os braços

do Sena, nenúfares.

Perante isto, fácil é dizer que há na pintura de Monet uma redução, uma

espécie de redução fenomenológica, no motivo da paisagem. Como se ele

tivesse começado a empreender a busca da essência da paisagem. Ora, a

busca da essência da paisagem é o encontro abissal com a luz, a pedra, a

água. Temas recorrentes em Monet, como vimos. Mas, há uma outra situação

abissal na pintura de Monet: a passagem do exterior para o interior, do fora

para o dentro, do real para o eu. Questões de atmosfera, em suma...

A atmosfera é, pois, uma questão central no impressionismo de Monet. Daí, a

cor e a forma. Daí, o dia e a noite, melhor, o declinar do dia; mas, não só o

declinar do dia, o declinar das estações, também. Daí, o encontro com Turner

e, em particular, com Whistler (tema, aliás, de uma exposição na Tate Britain,

em 2005). Ou mesmo com Jongkind. Ou mesmo com Hokusai. Ou com

Londres, Veneza, países nórdicos. Daí, os pares e trios de pinturas com o

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mesmo tema. Daí, as séries. Numa busca de si, que as cataratas e o risco de

cegueira terão, eventualmente, acentuado. Numa busca de si, que só a

paisagem, na sua essência, podia facultar...

Luz, pedra, água (mas, também, folhas e madeira de árvores, regos na terra,

etc.) são indicadores de que, subterraneamente, as coisas mudam – até por

erosão, que é, afinal, um dos caminhos da mudança. A nossa percepção,

porém, não capta o processo, em si, dessa mudança. Ora, é aí que entram as

séries de Monet – que extasiaram Kandinsky. E é aí, precisamente, que

exterior e interior, fora e dentro, real e eu se encontram. O que os une é, tão-

só, a pintura.

Uma última questão merece ser levantada: se a pintura matérica de Monet faz

lembrar a pintura de Pollock, nessa mesma fase, isto é, pouco antes da morte

de Monet, há quadros com uma grafia que leva a pensar em Cy Twombly.

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Pissarro de volta a Courbet?

[Camille Pissarro, Deux jeunes paysannes, 1892, MET, NY]

Greenberg sublinha a marca de Courbet na obra de Pissarro. T J Clark

(Farewell to an Idea) sublinha essa marca e aponta, ainda, para outras marcas:

Puvis de Chavannes, Millet, Monet (o opositor de 1891), Gauguin (o inimigo),

Seurat. E para o diálogo teórico que Pissarro tem com o anarquismo.

Estamos em 1892 e Pissarro deixa de lado os pôr-do-sol – apesar de insistir

nas pastorais. Mas, esta pastoral tem algo de particular: duas figuras em

primeiro plano. Noutras pastorais, as figuras de Pissarro ficam num plano

intermédio. Qual, então, o porquê do grande plano das figuras nesta pastoral

de 1892? A articulação entre a pastoral e a pintura de história (no sentido da

des-construção operada por Courbet - e, por essa via, demarcando-se

evidentemente de Millet, assim como de Puvis de Chavannes)? O jogo entre a

passividade da figura do lado esquerdo e a actividade da figura do lado direito

(de acordo com a análise que Fried faz da pintura de Courbet)? Ou, então, a

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contradição entre a cidade (subentendida) e o campo (explicitado no seu

limite)?

Gauguin: a promessa de felicidade

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Em Les fleurs du mal, Baudelaire diz que o presente resgata o passado:

«Charme profond, magique, dont nous grise / Dans le présent le passé

restauré!» (Un fantome, II. Le parfum, OC, p. 64). 2 E diz isto a propósito da

oposição entre beleza fugidia, efémera (a da vida moderna) e beleza eterna,

imutável (a do passado). Ou seja: o presente, para Baudelaire, não é uma

ruptura com o passado – é um gesto em suspenso (acédia, petrificação,

melancolia, ennui, spleen) que necessita de ser reactivado, reinvestido.

Na sua conhecidíssima história da arte, Gombrich afirma que Cézanne abriu o

caminho para o cubismo, van Gogh para o expressionismo e Gauguin para o

primitivismo. Pessoalmente, creio que Cézanne, van Gogh e Gauguin abrem o

caminho para, respectivamente, o cubismo e o construtivismo, o

expressionismo e o surrealismo – outros falam de uma abertura ao

informalismo.

Todavia, o que me interessa, aqui, é a palavra «primitivismo», de que fala

Gombrich. Primitivismo, a meu ver, enquanto título de uma narrativa em torno

da vida moderna (a vida moderna de finais de oitocentos está rendida à

corrupção que o lucro é capaz de gerar - essoutras "flores do mal") e, por outro

lado, enquanto título de uma narrativa em torno do tardio colonialismo francês e

da (imaginária, é certo) liberdade sexual. Estas duas narrativas, em constante

tensão, são as narrativas de Gauguin.

2 Charles Baudelaire, Oeuvres Complètes, col. l’Intégrale, Seuil, Paris, 1970. Referir-nos-emos

doravante a esta edição como OC.

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Que Gauguin tenha sido narcísico, prepotente, infiel (no sentido lato da

palavra), agressivo, pouco me importa. O que me importa é que Gauguin

considerava a escrita (uma escrita fragmentária, «infantil» - o adjectivo é dele)

uma forma de, precisamente enquanto «infantil», não colidir com a sua

produção visual – e, ao mesmo tempo, de atacar a crítica da altura. É ele quem

o diz. Escrevia (usando, por vezes, a colagem: imagens, textos - de Baudelaire,

por exemplo) para articular ideias. As sensações, essas, ficavam para a

produção visual. Fácil é concluir que há, aqui, duas narrativas (uma escrita e

outra visual) com diferentes destinatários – que, no limite, são o mesmo

destinatário: o espectador.

E o que vê, o que percepciona o espectador quando confrontado com os

trabalhos de Gauguin? A resposta é simples: regra geral, paisagens, quase

sempre habitadas por mulheres. É, assim, com as paisagens da Bretanha. É,

assim, com as paisagens da Polinésia francesa. Só que, aqui, as coisas

complicam-se. Vejamos. As cores que Gauguin usa são o verde, o vermelho, o

amarelo (metáfora do ouro). Em contrapartida, as mulheres, as négresses –

ao contrário das mulheres das paisagens bretãs – são como as négresses de

Baudelaire (cf. Les fleurs du mal: Parfum exotique (OC, p. 56), A une dame

créole (OC, p. 79), por exemplo). Mas, há mais a reter: por exemplo,

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[Gauguin, Vahine no te Tiare, Woman with a flower, 1891, Ny Carlsberg Glyptotek, Copenhaga]

aqui, além da androginia da figura, ela parece estar parada no tempo -

petrificada. Como acontece, também, aqui

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[Gauguin, Aha oe feii?, Eh quoi! Tu est jalouse?, 1892, The State Pushkin Museum of Fine Arts,

Moscovo]

- em que as mulheres nem sequer parecem falar, quanto mais de ciúmes.

De facto, a mulher, em quase todos os trabalhos de Gauguin do período da

Polinésia francesa, não é o objecto do desejo nem sequer corresponde às

imagens da época sobre as mulheres que habitavam esta tardia colónia – a

miscigenação tinha-se imposto, obviamente.

A que se deve essa acédia, essa melancolia, essa petrificação, esse spleen,

esse ennui? A resposta é simples: Gauguin procurou na Polinésia francesa a

antiga Polinésia – a que ainda não tinha sofrido um processo de aculturação.

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Por outras palavras: procurou o «Charme profond, magique, dont nous grise /

Dans le présent le passé restauré!». Todavia, «le passé restauré», como o mar,

é o espelho da melancolia. Ou o paraíso perdido, como no poema de Byron,

pintado em tons de ouro (o amarelo), dele nada restando, muito menos o mito

inaugural. E de nada serve a Gauguin vestir a pele de Cristo – essoutro mito

inaugural. «Le beau est fait d’un élément éternel, invariable, dont la quantité est

excessivement difficile à déterminer, et d’un élément relatif, circonstanciel, qui

sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la mode, la morale, la

passion» (OC, p. 550) – escreve Baudelaire em Le peintre de la vie moderne.

Ora, o drama de Gauguin é, perante «l'époque, la mode, la morale, la passion»,

recuperar esse «excessivement difficile à déterminer». Ou como diz Stendhal,

que Baudelaire cita: «le Beau n'est que la promesse du bonheur» (OC, p. 550).

Daí Gauguin ser, como no catálogo (Tate Modern, Londres, 2010) se diz,

Maker of Myth. Daí Gauguin ser, na sua im-possibilidade, o pintor da vida

moderna - mesmo sendo o anti-Guys...

De notar, ainda, estes aspectos na obra de Gauguin: 1) há, quase sempre, uma

tela plana, “flat” – em particular, a partir da pintura do Tahiti; todavia, essa

“flatness” é criada e, ao mesmo tempo, contrariada pela perspectiva - há,

quase sempre, uma ou mais pequenas figuras ao fundo (cf. Manet); 2.

narrativamente, figuras como a raposa (cf. La Fontaine), um homem a cavalo

junto a uma porta ou na floresta (cf. Dürer), o cão (cf. Courbet) são da maior

importância – já para não falar da figura da morte, que aparece,

recorrentemente, não numa única imagem mas em várias; 3) toda a obra de

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Gauguin está sob o signo da alegoria (na tradição do realismo de Courbet) – a

alegoria do mal. 3

3 The Moon and Sixpence (1919), de Maugham (Vintage Books, London, 1999), apesar de se

dizer ser uma ficção em torno de Gauguin, via a personagem de Charles Strickland, mais não

é, no meu entender, do que uma magnífica estória de encontros e desencontros entre amor e

morte, entre vida e arte.

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III

Manet e o modernismo

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1.

Greenberg

Em Modernist Painting, 4 Greenberg escreve: «Modernism critizes from the

inside, through the procedures themselves of that which is being criticized» (p.

85), ao contrário da postura crítica do século das Luzes, de setecentos. É claro

que essa postura crítica implica o meio («The task of self-criticism became the

nature of its medium» (p. 86)): «Realistic, naturalistic art had dissembled the

medium, using art to conceal art; Modernism use art to call attention to art. The

limitations that constitute the medium of painting - the flat surface, the shape of

support, the properties of the pigment - were treated by Old Masters as

negative factors that could be acknowledged only implicitly or indirectly. Under

Modernism these same limitations came to be regarded as positive factors, and

were acknowledged openly» (p. 86). Isto é, a volumetria (consequência da

perspectiva), que percorre a pintura do renascimento ao barroco e ao neo-

classicismo, deixa a pintura num campo indeciso: também era o campo da

escultura. Por outro lado, para Greenberg, o campo da escultura implica o do

teatro: «The enclosing shape of the picture was a limiting condition, or norm,

that was shared with the art of theatre; colour was a norm and a means shared

not only with the theatre, but also with sculpture» (p. 87). Por isso mesmo,

«Modernism made have had something to do with the revival of the reputations

of Uccello, Piero della Francesca, El Greco, Georges de la Tour, and even

Vermeer; and Modernism certainly confirmed, if it not start, the revival of

4 Clement Greenberg, Modernism with a Vengeance, 1957-1969, The Collected Essays and

Criticism, v. 4, University of Chicago Press, 1995, pp. 85-93.

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Giotto's reputation; but it has not lowered thereby the standing of Leonardo,

Raphael, Titian, Rembrandt, or Watteau. What Modernism has shown is that,

though the past did appreciate these masters justly, it often gave wrong or

irrelevant reasons for doing so» (p. 92). Por isso mesmo, ainda, com «Manet

and the Impressionists the question stopped being defined as one of colour

versus drawing, and became one of purely optical experience against optical

experience as revised or modified by tactile associations» (p. 89). Esta é a

direcção do modernismo para Greenberg: «in an anti-sculptural direction» (p.

88).

Estas citações, que me parecem fornecer o contexto da tese de Greenberg, se

nalguns aspectos me merecem concordância, noutros não a merecem.

Concordo com as questões em torno da superfície da tela (a título de exemplo:

confrontem-se os fuzilamentos de Goya e o de Manet). Concordo ainda com as

questões ópticas. Em contrapartida, discordo das questões em torno do

realismo (falo, em particular, de Courbet). E, além disso, discordo da posição

tomada sobre Rembrandt e Watteau. E já agora: qual a razão porque

Velásquez nem sequer é citado? Há, todavia, uma outra questão importante: a

fotografia enquanto manifestação artística de oitocentos. Ora, a fotografia de

oitocentos implica a volumetria e a teatralidade – e é indiscutível a sua

articulação com a pintura de Courbet e Manet, por exemplo. Sendo assim,

estará próxima do campo da escultura? Mais: é sinal de anti-modernismo?

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2.

Fried

É, por um lado, em Introduction: Manet before Impressionism 5 e, depois, em

Manet´s Sources, 1859-1869, 6 que Fried refuta, entre outros, Greenberg, e

apresenta a sua tese. Qual é a tese de Fried? Esta: a pintura de Manet da

primeira metade de '60 visa a essência da pintura francesa, a Frenchness. O

que entender, então, por Frenchness, por essência da pintura francesa?

A partir desta questão, Fried articula o discurso crítico desde Michelet a Thoré.

Para Michelet, o historiador das Luzes, com a revolução de 1789 a França era

o mundo, um mundo que devia rever-se nos princípios da fraternidade,

igualdade e liberdade. Em contrapartida, para Thoré, um crítico de pintura de

oitocentos, e fundamentalmente depois das exposições universais de 1855 em

Paris e de 1857 em Manchester, o mundo tinha abolido as fronteiras,

caminhando para um cosmopolitismo universal, para uma espécie de supra-

nacionalidade que Thoré não chega a explicar.

Ora, se a pintura (a pintura antes de Courbet, isto é, a pintura do neo-

classicismo e do romantismo) tinha presente os mestres do passado, era

urgente resgatar, por um lado, esse passado para o presente. Foi o que Manet

fez com Rafael, Rubens, Ticiano, Frans Hals, Rembrandt, Vermeer, Velásquez,

5 Michael Fried, Manet’s Modernism: or, The Face of Painting in 1860s, University of Chicago

Press, 1998, pp. 1-22.6 Idem, pp. 23-135; inicialmente intitulado Manet's Sources: Aspects of His Art, 1859-1865, foi

publicado em Março de 1969 na Artforum – por enquanto, é apenas deste ensaio que trato.

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Goya (pessoalmente, acrescento El Greco, Murillo e Ribera). Mas, por outro

lado, o resgate dos mestres italianos, flamengos, espanhóis, por si só, impedia

essa essência da pintura francesa, essa Frenchness. Daí as articulações que a

pintura de Manet da primeira metade de '60 faz com Watteau, Le Nain,

Chardin, Géricault, David. E com a pintura japonesa, no que pode ser

interpretado como sinal de cosmopolitismo.

É esta, em traços gerais, a tese de Fried – que vai ser revista em "Manet's

Sources" Reconsidered. 7

Aqui chegados, onde é que Fried se distancia de Greenberg? Entre muitos

outros pontos, deste em particular: Greenberg defende que o modernismo é a

anti-teatralidade (a teatralidade e o volume são elementos da escultura); em

contrapartida, Fried defende que a pintura de Manet da primeira metade de '60,

na sua busca da essência da pintura francesa, da Frenchness, implica o

beholder, o espectador, e este, por sua vez, a teatralização. Este é, pois, o

principal ponto de afastamento entre Greenberg e Fried. Os outros, daqui

decorrentes, poderá o leitor descortiná-los, facilmente, no confronto das duas

teses.

Todavia, em Manet before Impressionism (só o título refuta Greenberg), há

uma outra refutação: «(…) proposes a new interpretation of the art of the

generation of 1863 as transitional between Courbet's corporeal Realism and the

optical or (as I prefer to say) ocular realism of the Impressionists» (p. 22).

7 Idem, pp. 136-184.

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Passado e presente

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[Manet, Le Déjeuner sur l'herbe, 1862-63, Musée d’Orsay, Paris]

Tome-se como exemplo Le Déjeuner sur l'herbe. Perguntar-se-á: estamos

perante que género da pintura – no entendimento da pintura de género que se

fez até ao romantismo? Estamos perante uma paisagem – trata-se de uma

cena campestre. Estamos perante um retrato – o retrato de um nu feminino em

particular, o de Victorine Meurent. Estamos perante um possível retomar da

pintura religiosa – a ave, no topo do centro do quadro, parece conduzir a uma

qualquer revelação. Estamos, por fim, perante uma pintura de história – que o

Julgamento de Paris (matriz de Déjeuner) de Rafael, confirma.

Perguntar-se-á, ainda: que fontes estão por detrás da pintura de Manet? Desde

os mestres do passado renascentista até aos mestres da época das Luzes:

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Rafael, Ticiano, Rubens, Giorgione, Vermeer, Frans Hals, Rembrandt,

Velásquez, Ribera, Murillo, Goya, Le Nain, Chardin, Watteau, Géricault, David.

Perante estas respostas, coloca-se um outro problema: por um lado, Manet fez

confluir na sua pintura todos os géneros da pintura; por outro lado, as fontes da

sua pintura abrem à pintura do passado. Ora, o confluir de todos os géneros da

pintura na pintura de Manet é, curiosamente, aquilo que dividia dois críticos da

altura: Thoré e Astruc. Mas, mais: é precisamente por estas razões que

Baudelaire nunca interpretou Manet como um pintor da modernidade, da vida

moderna – indo, para tal, ao encontro de Constantin Guys.

Ora, se Guys assumia no seu trabalho o "efémero", o "transitório", o "fugitivo"

(as palavras são de Baudelaire), Manet resgatou o passado para abrir à

modernidade. Em Guys há o instante - e o esboço que o instante comporta. Em

Manet há uma circulação perceptiva entre passado e presente (não se trata de

qualquer dialéctica no sentido hegeliano). O que, até, é curioso no que

concerne a Baudelaire: a sua obra poética (aí englobando os pequenos

poemas em prosa, para além de Les fleurs du mal) assume objectivamente a

circulação perceptiva entre passado e presente...

Uma circulação perceptiva

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Há em Manet uma circulação perceptiva ou uma "crise perceptiva" (Fried

1998)? Por outras palavras: ao assumir os mestres do passado (desde o

renascimento ao neo-classicismo) enquanto fontes suas, Manet re-pensa o

passado no presente da pintura ou evidencia, tão-só, uma crise que se instala

na (sua) pintura, e que se irá prolongar pelo impressionismo e pelo

pontilhismo?

Formulada assim, a questão revela o tempo. E ao revelar o tempo, revela a

memória.

No Salon de 1864, Baudelaire fala de um "critério" da "memória" – na linha do

que já tinha sido enunciado por Hoffmann (a memória enquanto processo da

imaginação capaz de reforçar sensações que evocavam cenas do passado).

Neste sentido, esse "critério" da "memória" (de que vão falar Astruc, Proust,

Freud) evidenciava a re-edição que percorria a história da pintura, isto é, a

circulação perceptiva que sustentava a passagem de uma época para uma

outra época. A essa sustentação da circulação perceptiva dou o nome de

“História”. Por isso, justamente, quando Benjamin escreve que o século XIX,

por causa da reprodução, caso particular da fotografia, eliminou a aura da obra

de arte, quer enunciar isto: a im-possibilidade de re-conhecer que obras uma

determinada obra evoca. Dito de outra maneira: metafisicamente, a obra de

arte perde o tempo. Por isso, a obra de arte é apenas presente.

33

Page 34: As artes visuais em torno de 1900

Esta questão, no seu peso metafísico, é uma questão axial do século XIX. Por

isso, Thoré sublinhava que a obra de arte evoca o passado – «(...) não é o

conhecimento do passado que pode ajudar à preparação do futuro?», escreve

em 1858 (Baudelaire, Nietzsche e Benjamin hão-de escrever o mesmo). E

Astruc, em contrapartida, ao declarar a morte da paisagem, escreve no Salon

intime de 1860: «As categorias [isto é, a pintura de género] devem desaparecer

para dar origem ao résumé». E no Salon de 1868 vai, mesmo, mais longe: «Os

jovens pintores (...) abordam a figura». Ora, a figura, para Astruc, englobava

homens e mulheres, objectos, plantas, flores, árvores... Como na pintura

japonesa – outra fonte da pintura de Manet.

Por quem toma Manet partido, se é que tomou partido? Por Thoré? Por Astruc?

A re-edição da pintura europeia desde o renascimento (cf. Fried 1998, p. 163)

coloca-o do lado de Astruc. Em contrapartida, o "universalismo" coloca-o do

lado de Thoré. E é este ponto específico que leva a que Baudelaire mantenha

reservas quanto à pintura de Manet, escrevendo-lhe em Maio de 1865: «É

apenas o primeiro no declíneo da sua arte».

O que quereria dizer Baudelaire com esta frase assassina? Assumir a morte da

metafísica? Assumir o presente – ele que sempre fez circular passado,

presente, futuro, quer na sua obra poética quer nos seus textos teóricos?

No enunciado «Deus morreu», Nietzsche anunciava o fim da metafísica

ocidental, a metafísica platónica – inaugurando uma outra, consubstanciada no

conceito de vontade de poder. E Baudelaire? Não será que Baudelaire anuncia

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Page 35: As artes visuais em torno de 1900

o fim da pintura de género e, na sua dobra, daquilo que a sustentava

ocultamente, a “História”? E não é daí, justamente, que advém o spleen, o mar

como uma imensa melancolia? Afinal, para Baudelaire, a morte da metafísica

estava presente em Constantin Guys – o esboço sem passado nem futuro.

Sendo assim, há em Manet uma circulação perceptiva que, apesar de tudo, já

inclui intimamente uma crise perceptiva. Mas, se quisermos falar

objectivamente de crise perceptiva, essa estava do lado de Constantin Guys. E

Baudelaire intuiu-o, notavelmente. Desde logo no poema do cisne que debica a

secura da terra... Ou, ainda mais genialmente, no coração das cidades que não

pára de mudar...

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Page 36: As artes visuais em torno de 1900

3.

Zola

[Delacroix, Le Massacre de Scio, 1824]

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Page 37: As artes visuais em torno de 1900

[Courbet, Un enterrement à Ornans, dit aussi Tableau de figures humaines, historique d’un

enterrement à Ornans, 1849-50, Musée d’Orsay, Paris]

Romantismo e realismo ecoam como fantasmas em L'Oeuvre 8 de Zola. «Après

ça, entends tu!, ils ne sont que deux, Delacroix et Courbet. Le reste c'est de la

fripouille...» (p. 102). E Claude continua: «Maintenant, il faut autre chose... (...)

Mais ce que je sens, c'est que le grand décor romantique de Delacroix craque

et s'effondre; et c'est encore que la peinture noire de Courbet empoisonne déjà

le renfermé, le moisi de l'atelier où le soleil n'entre jamais» (p. 103). Assim, em

vez do "grand décor romantique", a paisagem, em vez de "la peinture noire", o

sol, o plein air. «Comprends-tu, il faut peut-être le soleil, il faut le plein air, une

peinture claire et jeune, les chose et les êtres tels qu'ils se comportent dans la

vraie lumière, enfin je ne puis pas dire, moi! notre peinture à nous, la peinture

que nos yeux d'aujourd'hui doivent faire et regarder» (p. 103), acrescenta

Claude.

Ora, Le Bain, mais tarde intitulado Le Déjeuner sur l'herbe, de Manet, intitula-se

justamente, na versão de Claude, Plein air. Eis a descrição: «C'était une toile

de cinq mètres sur trois, entièrement couverte, mais dont quelques morceaux à

peine se dégageaient de l'ébauche. Cette ébauche, jetée d'un coup, avait une

violence superbe, une ardente vie de couleurs. Dans un trou de forêt, aux murs

épais de verdure, tombait une ondée de soleil; seule, à gauche, une allée

sombre s'enfonçait, avec une tache de lumière, très loin. Là, sur l'herbe, une

femme nue était couchée, un bras sous la tête, enflant la gorge; et elle souriait,

sans regard, les paupières closes, dans la pluie d'or qui la baignait. Au fond,

8 Le Livre de Poche, Paris, 1997.

37

Page 38: As artes visuais em torno de 1900

deux autres petites femmes, une brune, une blonde, également nues, luttaient

en riant, détachaient, parmis les verts des feuilles, deux adorables notes de

chair. Et, comme au premier plan, le peintre avait eu besoin d'une opposition

noire, il s'était bonnement satisfait, en y asseyant un monsieur, vêtu d'un simple

veston de velours. Ce monsieur tournait le dos, on ne voyait de lui que sa main

gauche, sur laquelle il s'appuyait, dans l'herbe» (p. 85).

É curiosa esta descrição que Zola faz de Plein air de Claude Lantier. Por duas

razões. A primeira é esta: «une violence superbe, une ardente vie de couleurs»

– que remete mais para Delacroix do que para Manet. A outra é esta: «[a]u

fond, deux autres petites femmes, une brune, une blonde, également nues,

luttaient en riant, détachaient, parmis les verts des feuilles, deux adorables

notes de chair» - que remete mais para Courbet do que para Manet.

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Page 39: As artes visuais em torno de 1900

[Courbet, Les baigneuses, 1853]

Por isso mesmo, Claude diz: «Nom d'un chien, c'est encore noir! J'ai ce sacré

Delacroix dans l'oeil. Et ça, tiens! cette main-là, c'est du Courbet...» (p. 107).

Apesar de tudo, Claude Lantier visa isto: «Oui! toute la vie moderne! Des

fresques hautes comme le Panthéon! Une sacrée suite de toiles à faire éclater

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Page 40: As artes visuais em torno de 1900

le Louvre!» (p. 106); «Ah! la vie, la vie! la sentir et la rendre dans sa réalité,

l'aimer pour elle, y voir la seule beauté vraie, éternelle et changeante (...)» (p.

153) – como em <em>Le peintre de la vie moderne</em> de Baudelaire.

Qual o significado da palavra negro («c’est encore noire») para Claude Lantier?

Justamente este:

[Courbet, L'atelier du peintre, 1854-55, Musée d’Orsay, Paris]

o atelier do pintor - a ausência de plein air.

Entre Delacroix e Courbet, terá Claude Lantier ido mais longe, abrindo as

portas ao impressionismo? E Manet? 9

9 Sobre a recepção de Plein air de Claude Lantier no Salon des Refusés de 1863, em tudo

idêntica à que teve Le Déjeuner sur l'herbe de Manet, ler o V capítulo da obra.

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Page 41: As artes visuais em torno de 1900

IV

Um (ou: o) pintor da vida moderna: Manet

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Page 42: As artes visuais em torno de 1900

Abram as portadas!

[Manet, Le balcon, 1868-69, Musée d'Orsay, Paris]

Le balcon, 1868-69, é uma das várias obras de Manet que configuram o

modernismo. Desde logo, a cena (uma cena em suspenso, convenhamos). Na

penumbra, um rapaz (?) transporta algo luminoso (uma lamparina?). No plano

intermédio, junto às portadas, no espaço que medeia entre interior e exterior,

um homem com uma camisa imaculadamente branca e uma gravata de seda

(?) azul. Um pouco mais à frente, no espaço que medeia entre exterior e

interior, uma mulher, também imaculadamente vestida de branco, prende (?)

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Page 43: As artes visuais em torno de 1900

uma das luvas enquanto segura a sombrinha. Já na varanda, uma outra mulher

(Berthe Morisot), na mesma vestida imaculadamente de branco, um leque

preso nas mãos cruzadas, está sentada com um cão à beira. Na varanda há,

ainda, um vaso de flores. E a balaustrada. Para não falar dos brancos, dos

verdes, dos negros da pintura.

Se traçarmos as linhas do campo perceptivo das figuras, a do homem e a da

mulher atravessam o lado direito e a frente do quadro, respectivamente,

enquanto a do rapaz e a de Morisot atravessam o lado esquerdo e a frente do

quadro. Para além desta simetria, uma outra surpreende: as paralelas da

balaustrada que dividem, justamente, o quadro. E, dividindo o quadro,

transformam em figuras axiais o homem e Morisot, ou seja, os campos

perceptivos opostos. Mas, se olharmos mais atentamente, a figura que toma

conta do centro do quadro é Berthe Morisot.

T. J. Clark 10 fala, a propósito da obra de Manet e do modernismo em geral, de

dois aspectos: o capitalismo nascente (com a circulação dos bens de consumo)

e o papel de Haussmann, o arquitecto de Paris de oitocentos (que, para

construir uma nova cidade, expulsou para a periferia trabalhadores e rurais).

Numa linha complementar, Jonathan Crary 11 acrescenta, além destes, o papel

da atenção (que a psicologia, a partir da segunda metade de oitocentos,

estudou profundamente).

10 T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the Art of Manet and His Followers,

Princeton University Press, 1986.11 Jonathan Crary, Suspensions of Perception: Attention, Spectacle, and Modern Culture,

October Books, The MIT Press, 2001.

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Page 44: As artes visuais em torno de 1900

Que Le balcon pode ser lido nestas vertentes, isso é verdade. Todavia, a estas

vertentes, ligo uma outra – que vou buscar a Fried, não ao estudo sobre Manet,

mas ao estudo sobre Courbet: 12 o par activo/passivo. De facto, o rapaz (?) e

Berthe Morisot representam o elemento activo e o elemento passivo – como o

homem e a mulher, com as suas internas figurações de activo/passivo (é o

caso das mãos), representam também o par activo e passivo, respectivamente.

Que ao elemento activo se chame atenção e ao elemento passivo distúrbio da

atenção ou absorvimento, concordo.

Mas, há no quadro um outro par que opera: o par superfície/profundidade. Que

este par tenha a ver com o par interior/exterior que a arquitectura de

Haussmann consagrou, também concordo.

Hesitantemente activas ou assumidamente passivas, as figuras de Le balcon

são a representação de uma suspensão da percepção. 13 E essa suspensão

da percepção dá-se ao nível da figura de Berthe Morisot, ao nível do exterior –

daí a flatness (repare-se como o corpo de Morisot está comprimido contra a

balaustrada). Por isso é que, ironicamente, um caricaturista da altura dizia:

«Fermez les volets!». Porque, afinal, é da sexualidade da mulher que Le balcon

12 Michael Fried, Courbet’s Realism, University of Chicago Press, 1992.

13 Pode-se ler essa suspensão da percepção nas próprias grades da varanda, conforme escrevi

linhas acima. Do lado das figuras do rapaz (?) e de Berthe Morisot há uma grade que é paralela

à que está do lado das figuras da mulher e do homem. Em contrapartida, há duas grades

paralelas, mais próximas entre si, que se situam no campo perceptivo das figuras de Berthe

Morisot e do homem. Ora, se o campo perceptivo implica a convergência de linhas, há, aqui,

um constrangimento perceptivo, a saber: a suspensão da percepção – provocada,

precisamente, pelas linhas paralelas.

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Page 45: As artes visuais em torno de 1900

trata. Seja uma sexualidade praticada no casamento, seja uma sexualidade

praticada na infidelidade. Seja uma sexualidade de acordo com as normas

sociais, seja uma sexualidade que transgrida as normas sociais. E a figura de

Morisot, na sua rêverie típica de um dandy, é o corpo mesmo do desejo. Na

varanda, desatenta em relação ao casal (?) que se lhe dirige (tudo indica que o

homem, conduzido pelo rapaz (?), quer possuir a mulher que, aquiescendo,

começa por desapertar a luva), 14 olhar e mãos em suspenso, Morisot impõe-se

ao espectador, seduz o espectador, é o objecto de desejo do espectador. Era,

pois, caso para fechar as portadas. Mas o gesto de Manet, abrindo as

portadas, abriu à modernidade. Ainda que essa modernidade dialogue

aparentemente, no caso de Le balcon, com Goya e com Courbet.

A mão do desejo

14 Para a psicologia da altura, as luvas das mulheres eram um fétiche para os homens.

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Page 46: As artes visuais em torno de 1900

[Manet, Dans la serre, 1879, Alte Nationalgalerie, Berlim]

Há em Dans la serre (1879) uma estrutura discursiva semelhante a Le Balcon

(1868-69). Desde logo, uma cena em suspenso, a suspensão da cena. E,

aliada à suspensão da cena, a suspensão de percepção. Depois, um jardim.

Um banco de jardim. Um homem. Uma mulher. As questões em torno dos

olhos, dos olhares. As questões em torno das mãos. As alianças – não no dedo

anelar da mulher. O charuto versus a sombrinha. A actividade do homem

versus a passividade da mulher. O punho da camisa do homem versus o

rendilhado do punho da camisa da mulher. Depois, ainda, a saia plissada da

mulher versus as folhas das plantas do jardim. E, também na mulher, a

oposição entre a mão enluvada e a mão desnuda. No homem, a mão

46

Page 47: As artes visuais em torno de 1900

escondida e a mão, com o charuto, prestes a tocar na mão desnuda da mulher,

a queimar a mão desnuda da mulher. Uma mão incompleta, esta, a mão da

mulher – que parece só ter quatro dedos. E os vasos de flores que dão a

dimensão da perspectiva da cena, a dimensão da perspectiva do banco de

jardim.

Mas, o que se impõe no campo perceptivo é a mão da figura feminina (no

centro do quadro, aliás). Que é a mão que está aqui:

[Manet, Olympia, 1863, Musée d’Orsay, Paris]

- a mão do desejo.

Da perspectiva à "flatness":

a percepção e o papel do espectador

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Page 48: As artes visuais em torno de 1900

[Manet, Le bar aux Folies-Bergère, 1882, Courtauld Institute of Art Gallery, Londres]

Com a noção renascentista de perspectiva – é o caso paradigmático de Il

Cenacolo, também chamado L'Ultima Cena de Leonardo da Vinci – o

espectador sente-se envolvido pelo campo perceptivo do quadro, o espectador

sente-se como mais uma figura do quadro.

É com Manet, de que Le bar aux Folies-Bergère é o exemplo máximo, que a

noção de perspectiva deixa de ser operativa – no seu lugar há uma

compressão da figura do primeiro plano (como em Le balcon ou em Dans la

serre). Essa compressão da figura é a “flatness”, o espaço plano.

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Page 49: As artes visuais em torno de 1900

Que a obra de Manet, com a sua nova organização perceptiva, interage com

temas ideológicos (o capitalismo e a circulação dos bens de consumo), com

temas sociais (a alteração do estatuto da mulher, a moda, o lazer, a

reconstrução de Paris levada a cabo por Haussmann), com temas da

psicologia de oitocentos (a histeria, a hipnose, a percepção), é verdade. Mas, a

nova organização perceptiva contida na sua obra está relacionada com um

novo papel do espectador. Como em Las Meninas de Velásquez, o espectador

já não é, como no renascimento, aquele que se deixa absorver pelo quadro – o

espectador é um “voyeur”.

Esta noção de espectador como “voyeur” deve-se, no século XIX, à fotografia.

Por um lado, aos panoramas pintados de finais do século XVIII. Depois,

agudiza-se, em oitocentos, com o Kaiserpanorama. Depois, ainda, com as

cronofotografias de Marey ou com as fotografias de Muybridge. Diga-se, desde

já, que quer os trabalhos de Marey quer os de Muybridge anulam o espaço

(anulam a perspectiva, afinal) para se centrarem no tempo (repare-se como o

factor tempo é inerente, no capitalismo, à circulação dos bens de consumo).

Por fim, com as fotografias pornográficas que, apesar da censura, circulavam

abundantemente. Veja-se como o ciclo A luva, de Max Klinger, publicado em

1881, mostra precisamente a luva como fétiche (o que, depois de termos

analisado Le balcon ou Dans la serre de Manet, não nos espanta).

Esta alteração radical do campo perceptivo e do papel do espectador vai

culminar, por um lado, com os trabalhos sobre a luz de que La Grande Jatte, de

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Page 50: As artes visuais em torno de 1900

Seurat, é exemplo, ou, por outro lado, com a abertura à abstracção operada

por Cézanne – caso de Le mont Sainte-Victoire.

Ora, é justamente algures entre Seurat e Cézanne que a percepção pode ser

compreendida, por fim, como uma interacção entre a perspectiva

associacionista e a perspectiva da Gestalt e enquanto fenómeno

neurofisiológico.

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Page 51: As artes visuais em torno de 1900

V

Cézanne: o corpo da abstracção

1.

As mudanças de perspectiva

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Page 52: As artes visuais em torno de 1900

[Cézanne, Les grandes baigneuses, ca. 1895-1906, Barnes Foundation, Merion, Pennsylvania]

Banhistas enquadradas por duas árvores que traçam, quer as árvores quer as

banhistas, uma diagonal à tela. Todavia, essa diagonal serve para realçar a

linha que, dando coerência ao grupo, destaca duas banhistas: a do lado

esquerdo e a do lado direito. Depois, o verde escuro das árvores, os brancos

sujo, os ocres, os rosas, os verdes, os castanhos dos corpos – e a cor dos

cabelos, entre os castanhos e o ruivo. Depois, ainda, os brancos sujo das

roupas – da mesma cor das nuvens. Por fim, no primeiro plano, um cesto de

fruta (situando as três banhistas do lado esquerdo, em particular a mais à

esquerda), um cão (situando as quatro banhistas do grupo central), uma

melancia partida a meio (metáfora do sexo feminino? - situando as banhistas

do lado direito, em particular a encostada à árvore). Todavia, há aqui algo a

destacar: as figuras do grupo central, seis figuras, erram entre o lado

esquerdo e o centro (caso de duas figuras) e erram entre o lado direito e o

centro (caso de quatro figuras). Dir-se-á: isto deve-se ao esforço de Cézanne

para autonomizar as figuras. Talvez. Mas o que dizer das figuras que estão de

52

Page 53: As artes visuais em torno de 1900

pé (três figuras)? O que fazem? E o que dizer das figuras que estão sentadas

(cinco figuras)? O que fazem? E o que dizer da figura (sentada?) tapada pela

árvore do lado direito? O que faz? Que Baigneuses da Barnes Foundation trata

de uma cena recorrente da história da pintura (renascimento, barroco), não há

a mínima dúvida. Mas, qual o seu significado? Porque é que as figuras

parecem oscilar – movimentar-se, mesmo – dentro da tela? Qual o significado

dessa errância?

2.

A circularidade das figuras

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Page 54: As artes visuais em torno de 1900

[Cézanne, Les grandes baigneuses, c. 1904-06, Philadelphia Museum of Art, Philadelphia]

Creio poder dizer-se, com rigor, que as Baigneuses da Barnes Foundation

falam do corpo. Um falar em surdina. Ou mais radicalmente: estas figuras

mostram-se no corpo, mostram-se enquanto corpo. É evidente que há

corpos femininos. É também evidente que há corpos masculinos. Basta olhar

para a pintura. É o caso, aparentemente, da figura do lado direito. Homem

(com um falo erecto) ou mulher? Daí o carácter de pesadelo destas

Baigneuses – em que a errância, a mudança não é só de lugar, mas de

sexo. Por outras palavras: mais do que um abandono ao lazer, há um

abandono ao sexo. De facto, as Baigneuses da Barnes Foundation falam do

sexo e são o sexo.

É diferente o caso das Baigneuses do Philadelphia Museum of Art (ca. 1904-

06). Há, aqui, um ar de sonho. Os azuis pálidos, os castanhos esbatidos, como

que percorridos por uma neblina (que, não se sabe ao certo, ameaça adensar-

se ou, então, dissipar-se). Depois, o movimento das árvores, como que

formando um abrigo, uma cúpula. É verdade que, quer do lado direito quer do

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Page 55: As artes visuais em torno de 1900

lado esquerdo, há uma figura de fuga, respectivamente. Mas, as seis figuras do

lado esquerdo como que nascem umas das outras – formando um círculo em

torno de algo colocado no chão (fruta?). O mesmo acontece com as sete

figuras do lado direito. E o que une os dois grupos de figuras é a figura central,

a que se destaca (até pelo tom do castanho), cujo movimento da mão abre

uma linha de fuga não só para o corpo (feminino? masculino?) que nada, como

para as outras duas figuras do lado de lá, observadas por três figuras do lado

de cá. Quem observa quem? As figuras do lado de lá? As figuras do lado de cá

– o espectador incluído? Que a pintura evidencia os mecanismos da visão,

até pela sua circularidade, é incontestável. Mas, não serão as Baigneuses de

Philadelphia feitas da mesma matéria dos sonhos, onde somos,

simultaneamente, protagonistas e espectadores?

3.

As telas

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Page 56: As artes visuais em torno de 1900

[Cézanne, Les grandes baigneuses, c. 1894-1905, The National Gallery, London]

As Baigneuses da The National Gallery, London (ca. 1894-05) aproximam-se

de quais? Das da Barnes Foundation (o pesadelo)? Das de Philadelphia (o

sonho)? Ou nem de uma nem da outra? Com as da Barnes Foundation têm

este ponto em comum: a opacidade. A opacidade dos brancos sujo e dos azuis

carregados. E um outro ponto em comum: os troncos das árvores não

convergem, divergem. Aqui, a paisagem é, também, avassaladora. Mas, as

figuras têm mais pontos de contacto com as da tela de Philadelphia. Mesmo as

figuras que vêm a im-possibilidade de ver, as três figuras de costas, são

mais aparentadas com as figuras da tela de Philadelphia. E voltamos a

encontrar um movimento circular do lado esquerdo (que o abraço entre duas

figuras sublinha) e um movimento circular do lado direito (que o gesto de

aproximação ou de afastamento da figura do lado direito sublinha). Todavia,

nestas Baigneuses da National Gallery, as figuras dos extremos convergem

para o centro da tela (e não, como nas da Barnes Foundation, em que há uma

oposição activo, no lado esquerdo, passivo, no lado direito; nem como nas de

Philadelphia, em que as figuras dos extremos, ao contrário dos troncos

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Page 57: As artes visuais em torno de 1900

convergentes das árvores, divergem). No centro da tela, como nas Baigneuses

da Barnes Foundation e, eventualmente, nas de Philadelphia, fruta.

Não sei se será consistente fazer uma leitura das Baigneuses em torno do

conceito de dádiva. Talvez. Mesmo que a fruta seja uma metáfora do corpo, da

oferenda do corpo. Aliás, no lado direito da tela, há uma figura que cobre a

figura que aponta na im-possibilidade mesma de apontar, isto é, que aponta

para a tela, melhor, para a opacidade do campo visual da tela, de tão próxima

que está.

Aponta para a tela? Sim. No topo da tela, os azuis carregados tornam-se

cinzas claros, esverdeados, e formam uma linha, uma linha bem nítida, uma

linha de demarcação. E essa linha é a esquadria de uma tela dentro de uma

tela. O que quer dizer que a mudança de perspectiva (o pesadelo da tela da

Barnes Foundation), ou a circularidade das figuras (o sonho da tela de

Philadelphia) são, afinal, a matéria do corpo da abstracção. Assim como os

grandes planos (a "flatness" da tela da Barnes Foundation) e os planos

intermédios (o recuo ao renascimento e ao barroco das telas de Philadelphia e

de Londres). Ou o uso das tintas (os empastelados). Ou as cores (as misturas

de cores). Questões de sintaxe, pois. Que são, ao mesmo tempo, enquanto

linguagem artística que se pretende autónoma, questões de sonho ou

pesadelo... Mas não são sonho e pesadelo, como diz Freud, matéria do

inconsciente, essa im-possibilidade de ver? Ou, então, não são sonho e

pesadelo, como diz Cézanne, o corpo da abstracção, essoutra im-possibilidade

de ver?

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Page 58: As artes visuais em torno de 1900

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Page 59: As artes visuais em torno de 1900

VI

Picasso e os novos signos

1907. “Les demoiselles d’Avignon”

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Page 60: As artes visuais em torno de 1900

[Picasso, Les demoiselles d’Avignon, 1907, MoMA, NY]

Desconheço se Les demoiselles d'Avignon são ou não a medusa, como a

pintada por Caravaggio, aquela que tudo petrifica – mesmo o sexo. O que sei é

que a figura da esquerda, com um braço que parece não pertencer ao seu

corpo, abre uma cortina. A cortina da pintura? Tudo o indica. Até porque, em

Março-Abril de 1907, Picasso tinha feito um estudo para Les demoiselles

d'Avignon – Medical Student, Sailor and Five Nudes in a Bordello – onde há,

justamente, mais duas figuras, duas figuras masculinas: um marinheiro sentado

e um estudante de medicina que entra no bordel (sublinhe-se o significado do

par marinheiro/estudante de medicina). Ora, quer o marinheiro quer o

estudante de medicina, tendo sido apagados de Les demoiselles d'Avignon,

são, numa rotação de noventa graus, substituídos por nós, o espectador (aliás,

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Page 61: As artes visuais em torno de 1900

a fruta, situada num espaço do quadro que faz lembrar a cova de L'enterrement

à Ornans, de Courbet, é uma oferenda de vida ao espectador).

Que o cenário de Les demoiselles d'Avignon parece ser o de um bordel, lá isso

é verdade. Trata-se, todavia, da libertação do instinto, como preconizava

Gauguin, ou do «regresso do recalcado» (isto é, a medusa), nas palavras de

Freud? Que as três figuras do lado esquerdo do quadro parecem ser ibéricas,

enquanto as outras duas, do lado direito, parecem ser africanas, lá isso é

verdade (numa oposição que faz lembrar a pintura de género histórico ou

L'atelier du peintre, também de Courbet). Assim, Les demoiselles d'Avignon

revelam-se num processo cultural de (uma falsa?) miscigenação. Talvez, por

isso, Picasso tenha considerado este trabalho inacabado. Porém, o que é certo

é que as figuras do lado esquerdo estão minimamente individualizadas,

enquanto as do lado direito como que se fundem (qual nasce de qual?). E

também parece ser certo que, à excepção da figura que abre a cortina, as

outras duas figuras (quase centrais) podiam muito bem ser, dentro da

iconografia da pintura ocidental, Vénus, essoutro elemento de vida (repare-se

nas tonalidades do azul, na posição dos braços, em particular na figura central

do lado esquerdo, aparente evocação de O nascimento de Vénus (c. 1485), de

Botticelli). É certo que Les demoiselles d'Avignon são o nascimento do cubismo

e a morte de um processo de representação na pintura (será este o exorcismo

de que falava Picasso?). É, também, certo que Les demoiselles d'Avignon são

tão radicais quanto Las meninas (1656) de Velásquez. É, ainda, certo que em

Les demoiselles d'Avignon se notam marcas da arte tribal africana (nas duas

61

Page 62: As artes visuais em torno de 1900

figuras do lado direito). Será, então, disto que tratam Les demoiselles

d'Avignon, numa espécie de work in progress para sempre adiado?

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Page 63: As artes visuais em torno de 1900

Picasso em Sorgues:

1911-1912 e o cubismo analítico

[Picasso, Ma Jolie, Paris, Inverno 1911-12, MoMA, NY]

Entre 1911 e 1912, Picasso e Braque tiveram como projecto não assinar as

telas – chegando, mesmo, a dizer que não sabiam quem era o autor de umas e

o autor de outras. Picasso, entretanto, acabou com este projecto, indo ao

encontro, diz ele, da aventura de van Gogh, «o arquétipo dos nossos tempos»:

«uma aventura essencialmente solitária e trágica». Para trás ficava a hierarquia

em que Braque era a mulher de Picasso...

Sobre a pintura destes anos, os anos de Sorgues, e o cubismo analítico (1908-

12), escreve, nesta altura, Gertrude Stein: «(...) algo sólido, algo encantador,

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algo amoroso, algo perplexo, algo desconcertante, algo simples, algo evidente,

algo complicado, algo interessante, algo perturbador, algo replente, algo muito

bonito». E Metzinger, em 1911: «Le mélange indispensable de certains signes

conventionnels aux signes nouveaux». E Apollinaire: «(...) quelquefois l'objet

même, parfois une indication, parfois une énumération qui s'individualise, moins

douceur que grossièreté». E Jacques Rivière, em 1912: « (...) imiter la

profondeur avec quelque chose qui soit davantage de sa nature qu'un jeux de

profils plans»; (...) «En s'incarnant en des ombres, l'espace maintiendra jusque

dans le tableau leur discrétion». E Metzinger, em finais de 1910: «a pintura há-

de ser nem transposição nem esquema». Ou como diz a legenda do MoMA:

título legível / imagem quase indecifrável de mulher (Eva) / forma triangular no

centro, em baixo, como uma guitarra / planos semitransparentes. Ou seja: um

plano sobreposto a um outro plano – em que «(...) the mapping and unfolding,

the diagramming and geometricization» dão origem ao não-visto, ao que não

pode ser visto. 15 Ou, ainda, para T J Clark: «PRESENCE = CONVEXITY».

15 T J Clark, Farwell To an Idea. Episodes from a History of Modernism, Yale University Press,

2001.

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Page 65: As artes visuais em torno de 1900

Índice

I – O absorvimento (antes e depois da época de Diderot)

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Page 66: As artes visuais em torno de 1900

O lugar do espectador em Boucher

O realismo de Caravaggio e Courbet

Courbet ou o pintor dividido

II – Impressionistas e post

Monet e a essência da paisagem

Pissarro de volta a Courbet?

Gauguin: a promessa de felicidade

III – Manet e o modernismo

1. Greenberg

2. Fried

Passado e presente

Uma circulação perceptiva

3. Zola

IV – Um (ou: o) pintor da vida moderna: Manet

Abram as portadas!

A mão do desejo

Da perspectiva à “flatness”: a percepção e o papel do espectador

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Page 67: As artes visuais em torno de 1900

V – Cézanne: o corpo da abstracção

1. As mudanças de perspectiva

2. A circularidade das figuras

3. As telas

VI – Picasso e os novos signos

1907. “Les demoiselles d’Avignon”

Picasso em Sorgues: 1911-1912 e o cubismo analítico

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Page 68: As artes visuais em torno de 1900

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