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RDS IX (2017), 3, 557-585 As alterações à Diretiva dos Direitos dos Acionistas das Sociedades Cotadas: novidades e perspetivas de transposição DR. ANTÓNIO GARCIA ROLO * Sumário: 1. Introdução. 2. A Diretiva dos Direitos dos Acionistas de 2007: Contexto e Transposição para o Ordenamento Jurídico Português. 3. A Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas: Contexto e Aprovação. 4. Pontos-Chave e Perspetivas de Transposição: 4.1. Identificação dos acionistas; 4.2. Transparência dos Investidores Institucionais e Gesto- res de Ativos; 4.4. Política Remuneratória – o “Say on Pay”; 4.5. Transações com Partes Relacionadas. 5. Conclusão. 1. Introdução A 17 de maio de 2017 foi publicada a Diretiva (UE) 2017/828 do Parla- mento Europeu e do Conselho 1 (adiante, a “Nova Diretiva”), que veio intro- duzir algumas alterações à Diretiva 2007/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007 2 , relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas (doravante, dependendo do contexto, “Dire- tiva dos Direitos dos Acionistas”, “Diretiva” ou “Diretiva de 2007”). A Diretiva agora publicada não vem substituir a Diretiva dos Direitos dos Acionistas, mas * Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 1 Diretiva (UE) 2017/828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017, que altera a Diretiva 2007/36/CE no que se refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo, publicada no JOUE L-132 de 20 de maio de 2017. 2 Diretiva 2007/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas, publicada no JOUE L-184 em 14 de julho de 2007. Book Revista de Direito das Sociedas 3 (2017).indb 557 Book Revista de Direito das Sociedas 3 (2017).indb 557 21/09/17 15:18 21/09/17 15:18

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As alterações à Diretiva dos Direitos dos Acionistas das Sociedades Cotadas: novidades e perspetivas de transposição

DR. ANTÓNIO GARCIA ROLO*

Sumário: 1. Introdução. 2. A Diretiva dos Direitos dos Acionistas de 2007: Contexto e Transposição para o Ordenamento Jurídico Português. 3. A Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas: Contexto e Aprovação. 4. Pontos-Chave e Perspetivas de Transposição: 4.1. Identifi cação dos acionistas; 4.2. Transparência dos Investidores Institucionais e Gesto-res de Ativos; 4.4. Política Remuneratória – o “Say on Pay”; 4.5. Transações com Partes Relacionadas. 5. Conclusão.

1. Introdução

A 17 de maio de 2017 foi publicada a Diretiva (UE) 2017/828 do Parla-mento Europeu e do Conselho1 (adiante, a “Nova Diretiva”), que veio intro-duzir algumas alterações à Diretiva 2007/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 20072, relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas (doravante, dependendo do contexto, “Dire-tiva dos Direitos dos Acionistas”, “Diretiva” ou “Diretiva de 2007”). A Diretiva agora publicada não vem substituir a Diretiva dos Direitos dos Acionistas, mas

* Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 1 Diretiva (UE) 2017/828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017, que altera a Diretiva 2007/36/CE no que se refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo, publicada no JOUE L-132 de 20 de maio de 2017. 2 Diretiva 2007/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas, publicada no JOUE L-184 em 14 de julho de 2007.

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tão só introduzir algumas disposições novas que deverão ser transpostas pelos Estados-Membros até 10 de junho de 2019, agrupando-se tais disposições em cinco blocos essenciais: (i) facilitação da identifi cação dos acionistas; (ii) regras de transparência relativas a investidores institucionais e a gestores de ativos; (iii) regras de transparência relativas a consultores em matéria de votação; (iv) regime de maior controlo acionista sobre a política remuneratória dos admi-nistradores das sociedades cotadas; e (v) introdução de um regime de controlo acionista sobre transações relevantes com partes relacionadas.

No presente trabalho, após uma breve referência à transposição da Diretiva de 2007 para o Direito pátrio e respetivo balanço, procurar-se-á descrever as alterações introduzidas pela Nova Diretiva, ensaiar a sua transposição para a ordem jurídica portuguesa e fazer uma análise crítica das mesmas.

2. A Diretiva dos Direitos dos Acionistas de 2007: Contexto e Trans-posição para o Ordenamento Jurídico Português

A Diretiva dos Direitos dos Acionistas de 2007 surgiu como resultado de um longo processo de preparação por parte da Comissão Europeia3 e veio, no essencial, prever uma série de princípios relacionados com assembleias gerais de acionistas das sociedades cotadas4 (há que relembrar que o âmbito subjetivo da Diretiva se restringe fundamentalmente às sociedades cotadas – artigo 1.º, n.º 1 da Diretiva dos Direitos dos Acionistas, redação original). Entre essas normas, destacam-se princípios relativos a igualdade de tratamento, deveres de infor-mação, princípios de organização de assembleias gerais, participação por meios eletrónicos, direitos de interpelação, votos por procuração e formalidades a eles associados e voto por correspondência.

Uma leitura dos Considerandos da Diretiva dos Direitos dos Acionistas na sua redação original dá-nos pistas quanto à ratio que presidiu à sua elaboração – facilitação e incentivo ao controlo efi caz do governo da sociedade por parte dos seus acionistas, igualdade de tratamento dos mesmos, independentemente do

3 Para uma descrição detalhada dos trabalhos preparatórios e do contexto da sua aprovação, cfr. Menezes Cordeiro, António, “A Directriz 2007/36, de 11 de Julho (Accionistas de Sociedades Cotadas): Comentários à Proposta de Transposição”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha Volume III – Direito Privado, Direito Público e Vária, Almedina, Coimbra, 2010, 33-70, pp. 49 e ss. e Figueiredo, André, “Notas sobre o exercício de direitos de voto nas sociedades cotadas: breve balanço da vigência da Diretiva 2007/36/CE e perspetivas de revisão”, in III Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2014, 41-66.4 Usar-se-á, por razões de simplicidade, ao invés da expressão “sociedades emitentes de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado”, a expressão “sociedades cotadas”.

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Estado-Membro da sua residência, exercício informado do seu direito de voto, possibilidade reforçada de intervenção na assembleia geral e remoção de obstá-culos à participação eletrónica ou por correspondência. Subjacente à Diretiva e a todo o desenvolvimento legislativo subsequente esteve a preocupação de que, nas sociedades cotadas, sociedades onde, por excelência, o capital social está mais disperso e onde o substrato pessoal – os acionistas – mais se encontra afastado do funcionamento das mesmas, se pudesse operar um renascimento da participação acionista, tornando os acionistas, que normalmente veriam a sua posição como a mera detenção de um ativo, mais interessados no dia-a-dia da sociedade e envergando as vestes que o status socii inerente à sua posição per-mite, combatendo uma certa apatia dos mesmos identifi cada como problema que carecia de resolução. Por outro lado, parece também estar subjacente o propósito de fortalecer a fi scalização da atividade societária pelos seus maiores stakeholders, os acionistas, evitando que uma alegada letargia tenha efeitos nefas-tos no governo dessas mesmas sociedades. Esta preocupação subjacente à Dire-tiva não é, porém, objetiva e consensual, podendo-se pôr em causa a existência de insufi ciência de participação acionista na Europa e a efi ciência de soluções que visem ampliar o leque de direitos ao dispor dos acionistas5.

Estabeleceu-se como prazo de transposição o dia 3 de dezembro de 2009, tendo a Diretiva sido transposta para a ordem jurídica Portuguesa, com um atraso considerável, pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, de 19 de maio, diploma que também consagrou a existência de ações sem valor nominal.

Sem prejuízo de parte das soluções previstas na Diretiva de 2007 já vigo-rarem na ordem jurídica portuguesa6, não havendo, à data da transposição, especiais problemas relativos à intervenção de acionistas nas assembleias gerais de sociedades cotadas7 (com a legislação já dando resposta, mesmo que parcial-mente, às preocupações manifestadas pela Diretiva) ela veio proceder a uma série de aprofundamentos do regime vigente, com repúdios mínimos de solu-ções anteriormente vigentes8:

5 Cfr., por todos, Mendes Correia, Francisco, in AA.VV., Código do Governo das Sociedades Anotado, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 72-75.6 A título de exemplo, o artigo 9.º da Diretiva dos Direitos dos Acionistas consagrava o direito de todos os acionistas fazerem perguntas à sociedade com direito de resposta, solução já prevista para todas as sociedades anónimas nos termos do artigo 290.º do CSC. 7 Neste sentido, Menezes Cordeiro, A Diretriz…, p. 54.8 No mesmo sentido, Labareda, João, “Sobre os direitos de participação e de voto nas assembleias gerais de sociedades cotadas”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 3, Vol. 5, Almedina, Coimbra, 2011, 89-127, p. 95.

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No que concerne exclusivamente à transposição da Diretiva, o Decreto--Lei n.º 49/2010 empreendeu alterações cirúrgicas no Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), tais como o artigo 380.º, n.º 1, que impede o contrato de sociedade de proibir ou limitar a participação de acionista em assembleia geral através de um representante9, a alteração ao n.º 10 do artigo 384.º, que manda aplicar como regime supletivo o sentido negativo do voto por correspondência quando haja propostas apresentas posteriormente, clarifi cando soluções já em vigor ou integrando lacunas10.

Numa opção sistematicamente discutível11, o legislador decidiu incorporar grande parte do esforço de transposição no Código dos Valores Mobiliários (“CVM”), através do aditamento dos artigos 21.º-B e 23.º-D, (relativos à con-vocatória e à ata de assembleia geral de sociedade aberta) e artigos 21.º-C, 23.º-A, 23.º-B e 23.º-C (todos relativos à preparação e funcionamento da assembleia geral da sociedade cotada), também alterando a redação dos artigos 23.º e 249.º do mesmo diploma12.

Nas alterações supramencionadas, vê-se que o esforço do legislador se focou na criação de regras relativas ao funcionamento das assembleias gerais das sociedades cotadas, assumindo este regime uma natureza especialíssima face ao regime já de si especial das sociedades abertas, que, por sua vez, assume natu-reza especial face ao regime geral do CSC, não se tendo, no entanto, perdido a oportunidade para empreender algumas alterações no regime das sociedades abertas (nos termos do disposto no artigo 13.º CVM, uma categoria mais ampla em que se inserem as sociedades cotadas). Tal como bem nota João Laba-reda, vemo-nos perante três estatutos jurídicos diferentes de caráter gradativo – sociedade anónima comum, sociedade aberta e sociedade cotada – e, a cada degrau que se sobe, mais restritivo se torna o regime legal, com o reforço da injuntividade do mesmo13.

9 A última de sucessivas alterações, fi nalmente impondo uma proibição expressa de proibir ou restringir a representação de acionistas em assembleia, cfr. Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 581-58210 Ver, neste sentido, Menezes Cordeiro, António, “O CSC e a reforma de 2010: gralhas, lapsos, erros e retifi cações”, in Revista de Direito das Sociedades (2010), 3-4, 509-528, p. 517. 11 Cfr., neste sentido, Menezes Cordeiro, ao enfatizar que a sede legal para transposição de matérias relativas à orgânica e ao funcionamento das sociedades anónimas é o CSC, in Menezes Cordeiro, A Diretriz, p. 55.12 Para uma visão crítica da transposição, cfr. Menezes Cordeiro, António, “Novas regras sobre assembleias gerais: a reforma de 2010”, Revista de Direito das Sociedades, (2010) 1/2, 11-33.13 Labareda, João, Sobre os direitos de participação…, p. 91.

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No artigo 21.º-B, n.º 1, do CVM, norma aplicável não só às sociedades cotadas, mas também às sociedades abertas, verifi cou-se o estabelecimento do imperativo de mediação de um período mínimo de 21 dias entre a divulgação da convocatória e a data da assembleia geral convocada14, listando os n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito o conteúdo mínimo obrigatório de tais convocatórias, expandindo o regime do artigo 377.º, n.º 5, do CSC, sendo que a alínea a) do n.º 2 do artigo 21.º-B do CVM se aplica apenas às sociedades cotadas15.

Já com aplicação limitada às sociedades cotadas, o aditado artigo 21.º-C do CVM impôs uma série de deveres de informação e divulgação prévios à assembleia geral.

O novo artigo 23.º-A, n.º 1, do CVM veio estabelecer um requisito de detenção de pelo menos 2% do capital social para que um acionista possa reque-rer a convocatória da assembleia geral16 e verifi caram-se alterações importantes relativas à inclusão de assuntos na ordem do dia através do n.º 2 do aditado artigo 23.º-A do CVM e do novo artigo 23.º-B do mesmo diploma, sendo que o primeiro expande o regime já estabelecido no artigo 378.º do CSC e o segundo reconhece um direito novo aos acionistas da sociedade cotada – a possibilidade de, na pendência da convocatória, incluírem propostas de delibe-rações relativas a assuntos nela constantes17.

Quanto à organização da assembleia geral da sociedade cotada, o novo artigo 23.º-C do CVM passou a estabelecer regras especiais de participação e legitimação dos acionistas, nomeadamente a concessão de possibilidade a quem, a título profi ssional, detenha ações em nome próprio, mas por conta de clientes (os chamados custodiantes globais), de votar em sentido diverso com as suas ações de acordo com as instruções dos diversos clientes, mediante a apresenta-ção da identifi cação de cada cliente e respetivas ações, bem como das instruções de voto, específi cas para ponto da ordem de trabalhos, dadas por cada cliente

14 Opção possivelmente desnecessária face ao regime geral estabelecido no artigo 377.º, n.º 4, do CSC. Cfr, nesse sentido, Labareda, João, Sobre os direitos de participação…, p. 97.15 A alínea a) será, porventura, inútil, face ao regime do artigo 377.º, n.º 5. Além disso, pode-se concluir também pela inutilidade ou redundância das restantes alíneas do n.º 2 do artigo 21.º-B do CVM face ao regime geral do CSC. Nesse sentido, cfr. Menezes Cordeiro, Novas regras sobre assembleias gerais…, pp. 18-19.16 Como bem nota Menezes Cordeiro, não se “requerem convocatórias”, mas sim “requere-se a convocação de assembleia geral”, Menezes Cordeiro, Novas regras sobre assembleias gerais… , p. 23.17 Ainda que se levantem algumas dúvidas quanto à necessidade da inclusão desta última à luz do regime vertido no artigo 379.º, n.º 1, do CSC, que concede o direito de apresentação de propostas em assembleia geral a qualquer acionista, considerando que o artigo 23.º-B, n.º 1 do CVM restringe o universo de acionistas que o podem fazer. Para uma apreciação crítica Labareda, João, Sobre os direitos de participação, p. 104 e ss.

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(n.º 6)18. Também de notar que o novo artigo 23.º-C do CVM vem consagrar o sistema da data de registo, proibindo modelos de bloqueio antes vigentes e asso-ciando a participação na reunião dos sócios à titularidade de ações por referên-cia a uma determinada data, vedando quaisquer restrições à transmissibilidade das ações depois daquela19.

O novo artigo 23.º-D do CVM, aplicável às sociedades abertas no geral, veio expandir o regime do artigo 63.º do CSC, relativamente ao conteúdo das atas da assembleia geral, devendo estas incluir, quanto a cada deliberação, o número total de votos emitidos, bem como a percentagem do capital social representado e o número de ações correspondentes.

Dez anos volvidos sobre a publicação da Diretiva dos Direitos dos Acio-nistas e sete anos sobre a sua transposição para a ordem jurídica Portuguesa, que balanço fazer? Não se nega a importância de alguns problemas e dúvidas trazidas pelas alterações – veja-se, por exemplo, o problema da alienação de ações após o seu titular ter manifestado intenção em participar em assembleia geral20, ou o chamado problema da identifi cação, i.e., risco jurídico associado ao fenómeno da intermediação fi nanceira em cadeia, facilitada pelo regime da Diretiva, e as suas consequências na identifi cação dos benefi ciários efetivos das participações e exercício do direito de voto21. No entanto, a Diretiva parece ter tido relativo sucesso na harmonização, a nível europeu, de aspetos impor-tantes do regime das sociedades cotadas22, sem prejuízo de, como já se referiu, a ordem jurídica portuguesa já prever, à data, soluções que tutelavam algumas das preocupações da Diretiva.

18 Figueiredo, André, Notas sobre o exercício do direito de voto…, pp. 52 e ss.19 Levantando-se a questão de saber o que sucede ao acionista que manifesta intenção de participar na assembleia geral e aliena as suas ações entre a data do registo e a data da realização da assembleia, cfr., a propósito, Figueiredo, André, Notas sobre o exercício de direito de voto… pp. 46 e ss., Labareda, João, in Sobre os direitos de participação…, pp. 117-127, Menezes Cordeiro, Novas Regras sobre assembleias gerais…, pp. 29 e ss. e, de uma perspetiva italiana, De Luca, Nicola, “Titolarità vs. legittimazione: a proposito di record date, empty voting e proprietà nascosta di azioni”, Rivista di diritto societario, 2010/2, 311-339.20 Cfr. nota 19.21 Cfr. Figueiredo, André, Notas sobre o exercício do direito de voto…, p. 54.22 Cfr., em sentido diverso, Masouros, Pavlos, “Is the EU Taking Shareholding Rights Seriously?: An Essay on the Importance of Shareholdership in Corporate Europe”, in European Company Law, ano 7, nº 5, Kluwer Law International BV, Países Baixos, 2010, 195-203, para quem a Diretiva deixou muito a desejar, não tendo munido os acionistas das sociedades cotadas das armas necessárias para fazer ouvir a sua voz no governo das sociedades.

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3. A Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas: Contexto e Aprovação

A 20 de maio de 2017, foi publicada no Jornal Ofi cial da União Europeia a Diretiva (UE) 2017/828, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio, que altera a Diretiva 2007/36/EC, no que se refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo23 (“Nova Diretiva”), após mais de dois anos de procedimento legislativo, introduzindo uma série de alterações à Diretiva dos Direitos dos Acionistas.

Na sua génese estão as preocupações manifestadas pela Comissão Europeia relativas ao governo das sociedades e ao seu papel na crise fi nanceira de 200824 e da publicação do Plano de Ação da Comissão dedicado ao Direito das Socie-dades europeu e ao governo das sociedades, de 201225, sendo que, a 9 de abril de 2014, foi apresentada ao Parlamento e ao Conselho uma proposta de revisão da Diretiva dos Direitos dos Acionistas26. Após um prolongando processo legis-lativo, o Parlamento Europeu e o Conselho chegaram a um acordo político em dezembro de 2016 e a 20 de maio de 2017 foi publicada no Jornal Ofi cial da União Europeia a Nova Diretiva.

Como se pode ler no memorando explicativo da Proposta da Nova Dire-tiva e como se pode extrair dos vários documentos preparatórios supramen-cionados, nomeadamente do Plano de Ação e dos Considerandos da Nova Diretiva, o seu fi m é colmatar algumas insufi ciências no governo das socieda-des cotadas na União Europeia (insufi ciências essas alegadamente radicadas na apatia dos acionistas das mesmas e a falta de transparência adequada) através da criação de um ambiente atrativo para os acionistas das sociedades cotadas, asse-gurar o seu envolvimento na vida societária numa lógica de sustentabilidade e a longo prazo e facilitar o voto transfronteiriço. Os objetivos mais específi cos a que a Diretiva se propõe são, entre outros, o aumento do nível e a qualidade do envolvimento dos gestores de ativos nas sociedades em que investem, criação de uma ligação mais adequada entre a remuneração e o desempenho dos admi-nistradores27, aumento da transparência e da supervisão acionista relativamente

23 V. nota 1.24 Livro Verde da Comissão Europeia, O governo das sociedades nas instituições fi nanceiras e as políticas de remuneração, COM(2010), 284 fi nal, de 2 de junho de 2010.25 Comunicação da Comissão Europeia, Plano de ação: Direito das sociedades europeu e governo das sociedades – um quadro jurídico moderno com vista a uma maior participação dos acionistas e sustentabilidade das empresas, COM(2012) 740, 12 de dezembro de 2012.26 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 2007/36/CE no que refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo e a Diretiva 2013/34/UE no que se refere a determinados elementos da declaração sobre o governo das sociedades, COM(2014), 0213 fi nal.27 Considerandos 29 a 42.

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a transações com parte relacionadas28, e facilitação da transmissão transfrontei-riça de informação, bem como a mitigação da opacidade na identifi cação de acionistas inseridos em complexas cadeias de intermediação, cadeias essas que tornam o envolvimento desses mesmos acionistas difícil e que resultam em defi ciências de acesso à informação, assim reforçando-se a efi ciência nas mes-mas e impondo-se aos intermediários que as compõem um dever de facilitar o exercício dos direitos do derradeiro acionista29; facilitação o voto eletrónico como forma de combater desinteresse e apatia dos acionistas30; encorajamento da divulgação pública de políticas de investimento e abordagem acionista por parte dos investidores institucionais e gestores de ativos31; e sujeição dos con-sultores em matéria de votação a deveres de transparência32.

Subjacente está também a ideia, já presente aquando da publicação da Dire-tiva de 2007, mas muito galvanizada com a crise fi nanceira de 2008, de que o governo das sociedades, em especial das sociedades cotadas, não se trata de uma mera questão intrasocietária, que respeita apenas às relações entre os acionistas e os órgãos e outros stakeholders da sociedade, mas trata-se também de uma questão de interesse público, tendo-se difundido o ponto de vista segundo o qual uma maior intervenção do legislador nesse mesmo governo das sociedades pode ser um instrumento de mitigação e gestão de risco sistémico33.

Há que relembrar que a Diretiva, nos termos do seu aditado artigo 1.º, tem o seu âmbito de aplicação subjetivo limitado às sociedades com sede social num Estado Membro e cujas ações estejam admitidas à negociação num mercado regulamentado situado em funcionamento num Estado Membro. A expressão “sede social” não deixa adivinhar se se trata da sede estatutária ou da sede efe-tiva, sendo pouco claro qual o critério de conexão que o legislador europeu aqui utiliza.

A exposição que se segue separará sistematicamente as alterações intro-duzidas pela Nova Diretiva e tentará ensaiar qual a sede de transposição mais adequada no ordenamento jurídico Português.

28 Considerandos 42 a 45. 29 Considerandos 4 a 9 e 11 a 13.30 Considerando 10.31 Considerandos 15 a 25.32 Considerandos 26 a 28. 33 Chiu, Irish H-Y, “Learning from the UK in the Proposed Shareholders’ Rights Directive 2014? European Corporate Governance Regulation from a UK Perspective”, Zeitschrift für Vergleichende Rechtswissenschaft, 114, Novembro de 2014, 121-215.

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4. Pontos-Chave e Perspetivas de Transposição

4.1. Identifi cação dos acionistas

A Nova Diretiva começa por aditar um capítulo novo (Capítulo Ia) à Dire-tiva, relativo à identifi cação de acionistas. Nos termos do aditado artigo 3.º-A, os Estados-Membros deverão assegurar que as sociedades cotadas têm o direito a identifi car, a todo o tempo, os seus acionistas, direito de identifi cação esse que pode ser limitado pelos Estados-Membros a acionistas que detenham mais de uma determinada percentagem das ações ou dos direitos de voto na sociedade, não podendo tal percentagem exceder os 0,5%34.

No que concerne ao direito de identifi cação, prevê-se que os Estados-Mem-bros assegurem a possibilidade de as sociedades cotadas solicitarem aos inter-mediários fi nanceiros35 informações sobre a identidade e contacto do acionista fi nal, em ordem a estes poderem ver o exercício dos seus direitos facilitado36. Tal obrigação de informação e colaboração na identifi cação do acionista fi nal aplica-se a todos os intermediários inseridos na mesma cadeia, mesmo não tendo qualquer relação direta com a sociedade ou com o investidor fi nal37.

O novo artigo 3.º-B da Diretiva procede à exposição de um detalhado regime sobre o fl uxo de transmissão de informação, tanto a jusante como a mon-tante, relativo à identifi cação dos acionistas, vinculando os Estados-Membros à imposição, aos intermediários fi nanceiros, de obrigações de transmissão, sem demora, da informação legalmente exigida para o exercício dos direitos dos acionistas38, bem como a transmissão sem demora da informação subsequen-temente transmitida pelos acionistas no que concerne ao exercício dos seus direitos39. A obrigação a ser imposta pelos Estados-Membros também abrange toda a cadeia de informação, a não ser que tal informação possa ser transferida diretamente à sociedade ou ao acionista ou a um terceiro por este indicado40.

Impõe ainda o novo artigo 3.º-C que os Estados-Membros assegurem a adoção, por parte dos intermediários fi nanceiros, de mecanismos operacionais de “facilitação” do exercício dos direitos dos acionistas, incluindo o direito de par-ticipar e votar nas assembleias gerais, sendo que tal facilitação pode incluir,

34 Artigo 3-A, n.º 1.35 Artigo 3-A, n.ºs 2 e 3.36 Artigo 3.º-A, n.º 4.37 Artigo 3.º-A, n.ºs 3 e 4.38 Artigo 3.º-B, n.º 1.39 Artigo 3.º-B, n.º 4.40 Artigo 3.º-B, n.º 5.

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alternativamente, a obrigação do intermediário fi nanceiro de disponibilizar os elementos necessários para que o acionista ou um terceiro por ele nomeado possa exercer os seus direitos em sede de assembleia geral ou que o próprio intermediário fi nanceiro o faça com autorização expressa e instrução de voto por parte do acionista. O mesmo preceito prevê ainda um mecanismo de confi r-mação de votos eletrónicos, determinando-se que as sociedades devem confi rmar e divulgar publicamente os votos expressos nas assembleias gerais e mediante o qual o acionista, um terceiro por ele indicado ou o seu intermediário fi nanceiro recebe, da sociedade, uma confi rmação do seu voto e do seu sentido, podendo os Estados-Membros defi nir o prazo (até três meses) e o procedimento subja-cente a este mecanismo de confi rmação. O n.º 3 do novo artigo 3.º-C habilita ainda a Comissão Europeia a adotar atos de execução que especifi quem os requisitos mínimos destinados a facilitar o exercício dos direitos dos acionistas no que concerne os tipos de facilitação e o formato das confi rmações eletróni-cas supramencionadas até 10 de setembro de 2018.

Insere-se ainda um preceito listando deveres genéricos de não-discriminação, proporcionalidade e transparência dos custos associados aos serviços e deveres de infor-mação previstos no Capítulo Ia, deveres esses vinculativos para os intermediá-rios fi nanceiros que intervenham nessas relações41, podendo vir a reforçar, no ordenamento jurídico pátrio, os seus deveres genéricos já previstos no CVM, e outro esclarecendo que as normas previstas no capítulo também se aplicam a intermediários fi nanceiros com sede estatutária ou efetiva fora da União Euro-peia no que diz respeito a serviços prestados relativos a ações de sociedades com sede estatutária no Estado-Membro e cujas ações estejam admitidas à negocia-ção em mercado regulado sito num Estado-Membro.

Esta revelação da cadeia de participações consubstanciada em deveres de identifi cação do benefi ciário efetivo ou fi nal não é, no entanto, uma total novidade no ordenamento jurídico português, havendo já algumas situações paralelas: (i) o artigo 16.º, n.º 4 al. a) do CVM já prevê um mecanismo de identifi cação de toda a cadeia de entidades a quem uma participação qualifi cada numa sociedade aberta é imputada aquando da aquisição de uma participação qualifi cada; (ii) o artigo 102.º, n.º 4 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”)42 prevê um dever de identifi cação do benefi ciário efetivo aquando da comunicação prévia ao Banco de Portugal da intenção de deter participação qualifi cada em instituição de crédito43 e o recentemente alterado artigo 66.º, al. g) do mesmo diploma inclui a identifi cação dos benefi -

41 Artigo 3.º-D.42 Decreto-Lei n.º 298/98, de 31 de dezembro, conforme alterado.43 V. Também Aviso do Banco de Portugal n.º 5/2010.

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ciários efetivos das participações qualifi cadas como elemento obrigatoriamente registado junto do Banco de Portugal; e (iii) o artigo 6.º, n.º 1, da Norma Regu-lamentar n.º 3/2016-R da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, também indica que, no caso de aquisição, aumento ou diminuição de participação qualifi cada indireta em companhia de seguros ou resseguros (para efeitos do artigo 162.º do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Resseguradora44), a sua comunicação prévia deverá ser feita pelas pessoas que se “encontrem no topo das respetivas cadeias de participações”.

Com a exceção da al. g) do artigo 66.º do RGICSF, as previsões supra-mencionadas, têm, no entanto, natureza distinta do regime da Diretiva por serem situações de natureza essencialmente dinâmica ou transacional, ou seja, tratarem-se de deveres de comunicação espoletados pela aquisição ou redução de participações, e no caso dos pontos (ii) e (iii), terem natureza essencialmente setorial, ou seja, com um âmbito de aplicação subjetivo limitado a determinadas sociedades em função do seu objeto.

O novo regime de identifi cação acionista da Diretiva é fundamentalmente diferente: em primeiro lugar, tem uma natureza mais estática, ou seja, não é cha-mado à colação apenas quando haja uma mudança na estrutura de controlo da sociedade, pois as sociedades por ele abrangidas podem solicitar aos intermediá-rios fi nanceiros, a qualquer altura, a informação relevante; em segundo lugar, ao contrário das soluções vigentes, o regime da identifi cação acionista funciona, fundamentalmente, em benefício dos acionistas (para que possam facilmente exercer os seus direitos) e das sociedades (para que conheçam os titulares do seu capital social), não lhe sendo subjacente, pelo menos de maneira tão evidente ou axiologicamente relevante, uma preocupação de natureza regulatória ou prudencial; fi nalmente, quanto à natureza setorial, o seu âmbito de aplicação subjetivo até seria mais restrito do que o âmbito de aplicação do regime do artigo 16.º do CVM, com aquele a abranger apenas as sociedades cotadas e este a abranger também as sociedades abertas.

As disposições supramencionadas, quando transpostas, irão consubstanciar--se num regime de identifi cação essencialmente estático, teleologicamente orientado para benefício dos acionistas e da sociedade e de âmbito subjetivo limitado às sociedades cotadas. A preocupação com a identifi cação do acionista fi nal ou benefi ciário efeito encaixa bem não só com as disposições supramencionadas, mas também com a tendência legislativa recente, refl etida na proibição de valores mobiliários ao portador (Lei n.º 15/2017, de 3 de maio) e na ainda Proposta de Lei n.º 71/

44 Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, conforme alterada.

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XIII (ainda não aprovada à data da elaboração do presente trabalho), que pro-põe a criação o Regime Jurídico do Registo Central do Benefi ciário Efetivo.

Tendo em conta a atual arrumação sistemática no CVM, poder-se-á dizer com alguma segurança que a sede mais acertada para transposição deste regime será através do aditamento de um novo preceito na Secção II, do Capítulo IV, do Título I do CVM, ou através da criação de uma nova Secção nesse mesmo Capítulo.

Todo este novo regime, em especial o direito à identifi cação, trata-se de um desenvolvimento positivo, especialmente tendo em conta que as entidades gestoras de sistemas centralizados de valores mobiliários, como a Interbolsa, não conseguem hoje em dia obter informação completa sobre as cadeias de titula-ridade sem a boa vontade e cooperação dos vários intermediários fi nanceiros que dela fazem parte45. Tendo em conta a natureza atomizada e territorialmente plurilocalizada destas cadeias, uma intervenção harmonizada a nível da União Europeia torna-se ainda mais pertinente46, sem prejuízo de se poderem colocar dúvidas relativas à relação custo-benefício subjacente ao novo regime, nomea-damente saber se ele apresenta um valor acrescentado signifi cativo para as socie-dades cotadas, tendo em conta os custos (de tempo, humanos e fi nanceiros) que a sua aplicação previsivelmente implicará, podendo-se duvidar da sua efi cácia para efetivamente aumentar o envolvimento acionista, e considerando que esta abordagem ativa por parte da sociedade, incentivando os seus acionistas a parti-ciparem ativamente na vida da mesma, pode fazer uma diferença muito pouco signifi cativa junto de acionistas com uma já natural propensão a envolverem-se pouco na vida societária47.

4.2. Transparência dos Investidores Institucionais e Gestores de Ativos

Nos termos do novo artigo 3.º-G, os investidores institucionais48 e os ges-tores de ativos49 que invistam, direta ou indiretamente, em ações negociadas

45 Figueiredo, André, Notas sobre o exercício de direito de voto…, p. 59.46 Neste sentido, Figueiredo, André, Notas sobre o exercício de direito de voto…, p. 59.47 Cfr. Böckli, Peter, Davies, Paul, Ferrarini, Guido, Garrido, José, Hopt, Klaus J., Pietrancosta, Alain, Roth, Markus, Skog, Rolf, Soltysinski, Stanislaw, Winter, Jaap, Wymeersch, Eddy, “Shareholder engagement and identifi cation”, em European Company Law Experts Paper, Fevereiro de 2015, pp. 7-10.48 Defi nidos na nova alínea e) do artigo 2.º da Diretiva como “empresa que realiza atividades de seguros de vida na aceção do artigo 2.º, n.º 3, al. a), b) e c) da Diretiva 2009/138/CE (…) e [empresa] de resseguro tal como defi nido n.º 7 do artigo 13 da mesma Diretiva desde que tais atividades cubram obrigações de seguros de vida que não estejam excluídas do âmbito de aplicação da Diretiva” ou “instituição de realização de planos de

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em 49mercado regulamentado50, fi cam adstritos a novos deveres de transparência, consubstanciados em (i) uma obrigação ex ante de elaboração e divulgação de uma política de envolvimento anual; e (ii) uma obrigação ex post de divulgação de sentido de voto.

Fazendo o cruzamento entre as defi nições da nova redação da Diretiva e o Direito vigente, podemos presumir que entrarão no âmbito de aplicação sub-jetivo deste regime:

– Enquanto investidores institucionais, empresas de seguros de vida, con-forme previstas no Regime de Acesso e Exercício da Atividade Segura-dora e Resseguradora, e instituições de realização de planos de pensões profi ssionais previstas atualmente no Decreto-Lei n.º 12/2006, de 20 de janeiro.

– Enquanto gestores de ativos, os organismos de investimento alternativo e as sociedades gestoras previstas no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de feve-reiro e, em alguns casos, empresas de investimento genericamente previs-tas nos artigos 199.º-A e seguintes do RGICSF.

Quanto à obrigação ex ante, prevista no novo artigo 3.º-G, n.º 1, al. a) o seu conteúdo passa pela elaboração e divulgação públicas, com periodicidade anual, de uma política de envolvimento, explicando a forma como, no contexto da respetiva estratégia de investimento, são tidos em consideração os interes-ses a longo prazo dos benefi ciários fi nais desses investimentos, prevendo-se tal obrigação numa lógica de comply or explain, com conteúdo detalhado, incluindo uma descrição do modo como o envolvimento no governo da sociedade par-ticipada se enquadra nas estratégias de investimento do investidor institucional ou do gestor de ativos, os critérios que presidem ao exercício de direitos de voto, o modo em que ocorrem as interações com outras sociedades ou acionis-

pensões profi ssionais abrangida pelo âmbito da Diretiva 2016/2341 (…) nos termos do artigo 2.º da mesma, a menos que um Estado-Membro tenha optado por não aplicar a referida Diretiva no todo ou em parte a essa instituição nos termos do artigo 5.º da referida Diretiva”.49 Defi nidos na nova alínea f ) do artigo 2.º da Diretiva como “uma empresa de investimento de acordo com a defi nição constante do artigo 4.º, n.º1, ponto 1, da Diretiva 2014/65/UE que presta serviços de gestão de carteira a investidores, um GFIA (gestor de fundos de investimento alternativos) de acordo com a defi nição constante do artigo 4.º, n.º 1, al. b) da Diretiva 2011/61/UE (…) que não preenche as condições para uma isenção nos termos do artigo 3.º dessa Diretiva ou uma sociedade de gestão como defi nida no artigo 2, n.º 1, alínea b), da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, ou uma empresa de investimento autorizada nos termos da Diretiva 2009/65/CE, desde que não tenha designado uma sociedade de gestão autorizada nos termos dessa Diretiva para a gerir”.50 Artigo 1.º, n.º 6, als. a) e b).

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tas, o impacto social e ambiental de tal política, bem como o seu impacto no governo da sociedade51.

Os investidores institucionais e os gestores de ativos deverão fi car vincu-lados a uma obrigação ex post, segundo a qual devem divulgar anualmente ao público a forma como foi aplicada a supramencionada política de envolvi-mento, incluindo descrições de sentidos de voto e explicação de votações mais importantes, bem como a forma que os consultores em matéria de votação foram utilizados52.

Os documentos que contiverem tanto a política de envolvimento como o relatório relativo à mesma deverão ser divulgados no sítio de internet do inves-tidor institucional ou gestor de ativos.

Além das obrigações supramencionadas, os Estados-Membros deverão ainda prever deveres de divulgação de certas informações, por parte do inves-tidor institucional, relativas (i) à forma como os principais elementos da sua estratégia de investimento em ações são coerentes com o perfi l e duração dos seus passivos e contribuem para o desempenho de médio a longo prazo dos seus ativos; e (ii) caso um gestor de ativos invista em nome de um investidor institucional, informações relativas ao acordo subjacente a esse investimento e aos incentivos que cria para o gestor de ativos tomar decisões de investimento, entre outras53.

O artigo 3.º-I prevê ainda a possibilidade de imposição de disponibiliza-ção de informação sobre os acordos correntes com investidores institucionais e sobre a estratégia desses mesmos gestores para implementar esses acordos em conformidade com a política mencionada no artigo 3.º-G.

Uma transposição desejável deste preceito dependerá de uma clara e cor-reta transposição de outras Diretivas que irão implicar a alteração dos concei-tos de investidor institucional e de gestor de ativos, a saber, a Diretiva (UE) 2016/2341 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de dezembro de 2016, relativa às atividades e à supervisão das instituições de realização de planos de pensões profi ssionais, que implicará previsivelmente uma regulamentação ou alteração substancial do Decreto-Lei n.º 12/2006, de 20 de janeiro, e a Diretiva (UE) 2014/65 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (também conhecida como DMIF II), ainda não transposta para a ordem jurídica portuguesa e cujo anteprojeto deixa adivinhar alterações importantes no CVM e no RGICSF54. É certo que, em virtude da

51 Artigo 3.º-G, n.º 1 al. b) e 3.º-H.52 Artigo 3.º-G, n.º 1 al. b).53 Artigo 3.º-H, n.º 2.54 cf. Anteprojeto disponível no sítio da internet da CMVM.

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previsível cronologia da publicação das diferentes Diretivas supramencionadas e da alteração à Diretiva dos Direitos dos Acionistas, é muito provável que aquelas alterações já estejam transpostas na ordem jurídica portuguesa antes da transposição da alteração à Diretiva dos Direitos dos Acionistas. O legislador deverá ter isso em conta aquando da transposição.

Outra questão é saber qual a sede de transposição deste regime. Deverá a transposição ser feita com uma abordagem holística, ou seja, através de uma adaptação do articulado da Diretiva em lei avulsa ou em novo Capítulo do CVM? Ou deverá a transposição ser mais dispersa, prevendo-se as obrigações de transparência aplicáveis no Regime de Acesso e Exercício da Atividade Segu-radora e/ou no Decreto-Lei n.º 12/2006 (ou em hipotético diploma que o substitua aquando da transposição da Diretiva (UE) 2016/2341) para o caso dos investidores institucionais e no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo e no RGICSF para os gestores de ativos? A opção não é desprovida de importância – a transposição destas disposições pode ter consequência direta sobre a supervisão do seu cumprimento. Caso se deseje que a CMVM faça tal escrutínio, então não haverá dúvidas de que a transposição deverá ser feita para Capítulo novo do CMV ou para diploma avulso, sob pena de submeter a supervisão do cumprimento destas obrigações à Autoridade de Supervisão dos Seguros e dos Fundos de Pensões no caso dos investidores institucionais con-forme defi nidos pela nova redação da Diretiva.

A opção holística deverá ser a mais acertada, devendo a transposição ser feita diretamente em novo Capítulo do CVM ou em diploma avulso. Não só por uma questão de economia legislativa, mas porque estas obrigações têm o propósito de proteger as sociedades cotadas participadas por essas entidades e de alterar a relação entre estas e alguns tipos de acionistas – há que relembrar que este regime só é aplicável aos investidores institucionais e gestores de ativos que invistam, direta ou indiretamente em ações negociadas em mercado regula-mentado55. Assim, não se trata de uma alteração transversal ao estatuto jurídico dessas entidades – mas tão só a sua submissão a obrigações e deveres adicionais quando invistam em ações admitidas à negociação em mercado regulamentado.

Este regime vem reconhecer o papel crescente que os investidores institu-cionais e os gestores de ativos têm como titulares de participações em socieda-des cotadas, restando também saber se estas obrigações de transparência criarão

55 Cfr., em sentido contrário, críticas à inserção sistemática destes regimes na Nova Diretiva em Böckli et al., Shareholder identifi cation..., pp. 4-5.

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uma pressão adicional para a adoção de estratégias e abordagens a longo prazo ou se terão uma utilidade meramente informativa56.

4.3. Transparência dos Consultores em Matéria de Votação

O novo artigo 3.º-J introduz normas reguladoras da atividade dos consul-tores em matéria de votação (também conhecidos como proxy advisors)57, ou seja, as entidades que emitem recomendações aos acionistas acerca do exer-cício dos seus direitos de voto, também frequentemente prestando assessoria sobre governo societário, para comunicação com os acionistas e para serviços de organização da assembleia geral, na medida em que prestem serviços aos acionistas em relação às ações de sociedades com sede social num Estado-Mem-bro e cujas ações estão admitidas à negociação num mercado regulamentado58. Estes consultores tendem desempenhar uma função substitutiva relativamente aos acionistas, nomeadamente através das suas atividades de recolha e análise de informação sobre assembleias gerais a realizar e pontos das respetivas ordens de trabalhos e através do exercício de funções de representação dos mesmos em assembleia geral59. Tendo em conta que esta função substitutiva e a amplitude muitas vezes discricionária das suas funções tendem a incentivar um menor envolvimento direto dos acionistas na vida da sociedade, a sua regulação e sujeição a deveres de transparência integram-se perfeitamente nas fi nalidades da Diretiva.

Têm sido identifi cados vários riscos associados aos proxy advisors: custos de agência radicados num possível desalinhamento de interesses por não correrem os riscos associados a muitas das decisões a que prestam assessoria, opacidade dos seus procedimentos e métodos (que pode levar a distorções concorrenciais e falta de qualidade resultante da inexistência de um quadro comparativo das respetivas metodologias), suscetibilidade de confl itos de interesses (imagine-se, por exemplo, a utilização de proxy advisors pelo órgão de administração para obter recomendações de voto favoráveis) e a ampla discricionariedade de que dispõem60.

56 Cfr. Johnston, Andrew, Morrow, Paige, “Commentary on the Shareholders Rights Directive”, University of Oslo Faculty of Law Legal Studies, Research Paper Series no. 2014-41, pp. 6-8.57 Cf. Ferreira, Juliano, “Proxy Advisors: os Consultores em Matéria de Votação” in A Designação de Administradores, AAVV., Governance Lab, Almedina, 2015 e Perestrelo de Oliveira, Ana, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, Parte II, 8.4.58 Artigo 1.º, n.º 6 al. c).59 Ferreira, Juliano, Proxy advisors…, p. 7.60 Ferreira, Juliano, Proxy advisors…, pp. 10-14 e Perestrelo de Oliveira, Manual..., Parte II, 8.4.

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Assim, para contrariar a opacidade característica de muitos destes consul-tores, prevê-se na Nova Diretiva uma obrigação (de natureza comply or explain) de divulgação pública de um código de conduta por si adotado, bem como uma obrigação de elaboração de relatórios relativos à aplicação do mesmo61.

Indo ainda mais longe, prevê-se também uma obrigação de divulgação pública anual de outro relatório que inclua principais características das metodolo-gias adotadas, fontes utilizadas, procedimentos de verifi cação de qualidade da sua pesquisa, assessoria e recomendações de voto, condições tidas em conta na elaboração das recomendações de voto, natureza do diálogo com as sociedades objeto da sua pesquisa, assessoria ou recomendações de voto e política de pre-venção e gestão de potenciais confl itos de interesses62. Prevê-se ainda a impo-sição de uma obrigação adicional de informação aos clientes, pelos próprios consultores, relativa a confl itos de interesses reais ou potenciais ou relações de negócios que possam infl uir nos seus estudos, pareceres ou recomendações de voto63.

As normas acima também são aplicáveis a consultores em matéria de vota-ção com sede estatutária ou efetiva na União Europeia mas que exerçam a sua atividade através de um estabelecimento localizado dentro da mesma64.

As disposições da Nova Diretiva parecem orientar-se para a resolução de alguns dos problemas mencionados supra, nomeadamente aqueles radicados na opacidade e falta de transparência, fi cando por abordar os temas de agência e discricionariedade, já parcialmente tutelados no ordenamento jurídico portu-guês pelo regime dos artigos 379.º a 381.º do CSC e do artigo 23.º do CVM, referentes ao exercício do direito de voto em representação do acionista.

Quanto a esta matéria, cuja introdução no Direito português tem caráter inovador, a sede de transposição mais adequada deverá ser, mais uma vez, o CVM ou, no limite, em diploma avulso, por tudo quanto já se referiu supra a propósito dos deveres de transparência dos investidores institucionais e dos gestores de ativos.

4.4. Política Remuneratória – o “Say on Pay”

A Nova Diretiva introduz ainda alterações no controlo acionista sobre as políticas remuneratórias dos administradores das sociedades cotadas. O aditado

61 Artigo 3.º-J, n.º 1.62 Artigo 3.º-J, n.º 2.63 Artigo 3.º-J, n.º 3.64 Artigo 3.º-J, n.º 4.

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artigo 9.º-A da Diretiva prevê um mecanismo segundo o qual os acionistas, de três em três anos, reunidos em Assembleia Geral, deliberam sobre a política remuneratória a ser implementada pela sociedade. O novo preceito enfatiza o carácter vinculativo que este mecanismo deverá ter ao ser transposto, prevendo--se especifi camente que a sociedade apenas pode remunerar os seus adminis-tradores de acordo com a política remuneratória aprovada pelos acionistas em Assembleia Geral65. Preveem-se normas especiais para situações transitórias, tais como (i) a manutenção provisória de práticas remuneratórias anteriores até à primeira assembleia geral ordinária; e (ii) manutenção da política remu-neratória do triénio anterior quando a política remuneratória do novo trié-nio não for aprovada em assembleia geral ordinário66. Os Estados-Membros poderão determinar que, em situações especiais, a política remuneratória seja derrogada, desde que a derrogação em tais situações esteja prevista na própria política remuneratória67.

O n.º 6 do aditado artigo 9.º-A densifi ca o conteúdo das políticas remu-neratórias, determinando que devem contribuir para a estratégia empresarial, interesses a longo prazo e sustentabilidade da sociedade, e que devem explicar como acautelam estes três interesses. Deverá ser clara, compreensível e deverá descrever os diferentes componentes de remuneração fi xa e/ou variável (lis-tando de forma clara os critérios utilizados), incluindo bónus, planos de pensões suplementares, entendimentos relativos à reforma antecipada, devendo também indicar a duração das relações contratuais com os administradores e prazos de renúncia e destituição aplicáveis. Além disso, deverá explicar de que forma é que a remuneração e as condições dos trabalhadores da sociedade foram tidos em conta aquando da elaboração da política remuneratória. A política remune-ratória deverá ser disponibilizada ao público no website da sociedade68.

O novo artigo 9.º-B prevê uma série de obrigações de informação ex post, nomeadamente a elaboração, pela sociedade, de um relatório de remuneração, incluindo informação discriminada por administrador, incluindo, inter alia, remuneração total separada por componentes e evolução anual na remuneração dos administradores, do desempenho da sociedade e comparação da evolução destas variáveis com a evolução da remuneração dos trabalhadores. Este relató-rio de remuneração é aprovado pelos acionistas em assembleia geral e publicado

65 Artigo 9.º-A, n.º 2.66 Idem.67 Artigo 9.º-A-, n.º 4.68 Artigo 9.º-A, n.º 7.

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de seguida, sendo aos administradores responsáveis pelo seu conteúdo, a sua completude e a sua veracidade69.

O regime say on pay supra descrito não reveste um caráter totalmente ino-vador no direito português70. Antes de tudo, há que frisar que o artigo 399.º do CSC já previa a competência da assembleia geral de acionistas ou de uma comissão de remuneração por ela designada a fi xar as remunerações dos admi-nistradores, tomando em consideração critérios relativos às funções desempe-nhadas e à situação económica da sociedade (quando haja conselho geral e de supervisão, compete, supletivamente, a este ou a comissão por este nomeada a determinação da remuneração – artigo 429.º do CSC).

Além disso, a Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, veio impor uma obrigação de apresentação anual de uma declaração sobre política de remuneração dos membros dos respetivos órgãos de administração e fi scalização à aprovação da assembleia geral em entidades de interesse público71. Nos termos do artigo 2.º, n.º 3 desse diploma, tal declaração contém informação relativa, entre outros temas, aos mecanismos que permitam o alinhamento dos interesses dos mem-bros do órgão de administração com os interesses da sociedade, aos critérios de defi nição e limites da componente variável da remuneração à existência de planos de atribuição de ações ou opções de aquisição das mesmas, sendo que a não apresentação da declaração constitui ilícito contraordenacional. Contudo, levantam-se dúvidas sobre o alcance do dever previsto na Lei n.º 28/2009, não sendo a lei clara sobre se se trata de um dever de aprovação da declara-ção pela assembleia geral ou se estamos perante um mero dever de apresenta-ção72. A nível setorial, regimes semelhantes encontram-se previstos no Aviso

69 Artigo 9.º-B, nº 4 e 5.70 Cfr. Câmara, Paulo, “Say on pay: o dever de apreciação da política remuneratória pela assembleia geral” in Revista de Concorrência e Regulação, n.º 2 (2010), 321-344.71 Categoria defi nida no artigo 3.º do Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria, aprovado pela Lei n.º 148/2015, de 9 de setembro, incluindo: emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação num mercado regulamentado, instituições de crédito, empresas de investimento, organismos de investimento coletivo sob forma contratual e societária, sociedades de capital de risco, sociedades de investimento em capital de risco e fundos de capital de risco, sociedades de investimento alternativo especializado e fundos de investimento alternativo especializado, sociedades de titularização de créditos e fundos de titularização de créditos, empresas de seguros e de resseguros, sociedades gestoras de participações sociais com maioria de direitos de voto em instituições de crédito ou no setor dos seguros, fundos de pensões e empresas públicas com volume de negócios superior a € 50 000 000 ou ativo líquido total superior a € 300 000 000. 72 Câmara, Paulo, Say on pay…, pp. 324-326, perfi lha a ideia de que da Lei só se pode retirar um mero dever de apresentação da declaração, não havendo consequência jurídica em caso de não aprovação.

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n.º 10/2011 do Banco de Portugal73, na Norma Regulamentar n.º 5/2010-R da ASF74, no Regulamento da CMVM n.º 4/201375 e no chamado Código do Governo das Sociedades da CMVM76.

Apesar de as sociedades cotadas já estarem, através da Lei n.º 28/2009, sujeitas a um regime de say on pay, o regime da Nova Diretiva vai mais longe do que as soluções já previstas no direito pátrio, nomeadamente quanto à pre-visão expressa da necessidade de aprovação da assembleia geral e ao conteúdo da política remuneratória.

Sem prejuízo dos pesados requisitos de natureza procedimental, a liberdade dos acionistas em defi nir a remuneração dos administradores acaba por não ser coartada, exigindo-se apenas o cumprimento dos densos deveres de informação e dos adequados procedimentos de aprovação e elaboração da política remune-ratória e do relatório remuneratório.

Resta saber se este regime terá efeitos signifi cativos na intervenção acio-nista na política remuneratória, sendo que nada indica que os acionistas (muitas vezes orientados para objetivos de curto-prazo) tenham grandes incentivos em diminuir a remuneração dos administradores. De todo o modo, é salutar não se ter cedido à tentação de imposição de um teto máximo remuneratório (ou critérios que o determinem) por via legislativa, reforçando-se apenas uma com-petência de que naturalmente os acionistas são titulares.

4.5. Transações com Partes Relacionadas

Um dos temas mais interessantes introduzidos pela Nova Diretiva é o mecanismo de transparência relativo a transações relevantes com partes relacionadas. Em traços gerais, o novo artigo 9.º-C impõe um dever de publicidade de certas

73 Aviso do Banco de Portugal n.º 10/2011, de 9 de janeiro, regulamenta os princípios e regras que devem reger a política de remuneração dos membros dos órgãos de administração e fi scalização, bem como dos colaboradores que cumpram determinados critérios, das instituições de crédito, das empresas de investimento e das sucursais estabelecidas em Portugal de instituições de crédito e empresas de investimento com sede fora da União Europeia.74 Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal n.º 5/2010-R, de 1 de Abril, Estabelece a informação que deve ser divulgada sobre a política de remuneração dos membros dos órgãos de administração e de fi scalização das empresas de seguros e resseguros e sociedades gestoras de fundos de pensões.75 Regulamento da CMVM n.º 4/2013 – Governo das Sociedades, pontos 66 a 84.76 Recomendações da CMVM sobre o governo das sociedades de 2013 – Código de Governo das Sociedades, ponto III (Remuneração).

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transações relevantes com partes relacionadas, bem como uma obrigação de aprovação das mesmas.

Uma “transação relevante” será defi nida pelo Estado-Membro tomando em consideração a infl uência que a informação sobre a transação pode ter nas deci-sões económicas dos acionistas da sociedade e o risco que a transação cria para a sociedade e para os seus acionistas que não são uma parte relacionada77. Os Estados-Membros, aquando a transposição destes critérios de materialidade, deverão também estabelecer rácios quantitativos respeitantes ao impacto da transação na posição fi nanceira, nas receitas, nos ativos, na capitalização ou volume de negócios da sociedade78.

No entanto, não se encontra a defi nição de “transações com partes relaciona-das” na Diretiva, sem prejuízo da defi nição avançada pela Comissão na exposi-ção de motivos da mesma, i.e., uma transação com uma parte relacionada corresponde a uma transação entre “uma sociedade e os seus gestores, administradores, entidades de controlo ou acionistas”79. Para defi nirmos parte relacionada e podermos delimitar de forma segura este conceito, a Diretiva remete-nos para as Normas Inter-nacionais de Contabilidade (IAS)80 adotadas na sequência do Regulamento n.º 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho81.

Estaria bem o legislador português ao introduzir uma defi nição clara de parte relacionada aquando da transposição da Diretiva ou a remeter com clareza para as IAS.

77 Artigo 9.º-C, n.º 1.78 Idem.79 Proposta de Diretiva..., p. 5.80 Os pontos 9 a 12 da IAS 24 listam em detalhe o que serão consideradas partes relacionadas, começando por dizer que serão “pessoas ou entidades relacionadas com a entidade que está a preparar as suas demonstrações fi nanceiras”, prevendo-se a (a) possibilidade considerar uma pessoa ou um membro íntimo da família parte relacionada se detiver controlo ou controlo conjunto da entidade em questão, tiver uma infl uência signifi cativa na mesma ou for membro do pessoal-chave da gerência da entidade em causa ou de uma sociedade-mãe sua; (b) que uma entidade é relacionada com uma entidade em causa se, alternativamente, (i) a entidade e a entidade em causa forem membros do mesmo grupo; (ii) a entidade for associada ou constituir um empreendimento comum da outra entidade; (iii) se ambas as entidades forem empreendimentos comuns da mesma parte terceira; (iv) se uma entidade representa um empreendimento comum da entidade terceira; (v) se a entidade for um plano de benefícios pós-emprego a favor dos empregadores da entidade em causa ou de uma entidade relacionada com a entidade em causa (e, se a entidade em causa for ela própria um plano desse tipo, os empregadores promotores serão também relacionados com a entidade em causa); (vi) se a entidade for controlada ou conjuntamente controlada por uma pessoa em (a); e (viii) uma pessoa identifi cada em (a)(i) detiver uma infl uência signifi cativa sobre a entidade ou for membro do pessoal-chave da gerência da entidade.”.81 Regulamento (CE) n.° 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativo à aplicação das normas internacionais de contabilidade, JO L243 DE 11.09.2002, pp. 0001-0004.

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Os aditados nºs 2 e 3 do artigo 9.º-C da Diretiva preveem a imposição de um dever de publicidade sobre as transações relevantes com partes relaciona-das, devendo a sociedade cotada anunciar publicamente as transações relevan-tes com partes relacionadas o mais tardar no momento da conclusão de cada transação. O conteúdo mínimo do anúncio deverá incluir a natureza da relação da parte relacionada, a sua identifi cação, a data e o valor da transação e outras informações necessárias para aferir se a transação é justa e razoável do ponto de vista da sociedade e dos acionistas que não sejam partes relacionadas. Os Esta-dos-Membros têm a possibilidade de exigir que o anúncio supramencionado seja acompanhado de um relatório produzido por um terceiro independente (que não seja parte relacionada), pela administração ou (caso exista) pelo órgão de supervisão da sociedade ou pelo conselho fi scal determinando se a transação é justa e razoável da perspetiva da sociedade.

Adicionalmente, deve ser referido que o facto de o artigo 9.º-C, n.º 3 deter-minar que o relatório poderá ser elaborado pelo órgão de administração ou de supervisão da sociedade levanta mais perguntas que respostas – porque quis o legislador europeu equiparar entidades tendencialmente isentas (terceiro inde-pendente ou conselho de supervisão) com os administradores, que, apesar de vinculados à sociedade por deveres de lealdade e competência, podem não ser material e concretamente isentos quanto a determinadas transações com partes relacionadas? Como asseguramos a isenção dos administradores nesta matéria? A parte fi nal do n.º 3 do artigo 9.º-C indica aos Estados-Membros que assegu-rem que as partes relacionadas não participem na elaboração do relatório, o que já constitui uma salvaguarda importante, mas talvez não sufi ciente. Estaria bem o legislador português ao impor requisitos subjetivos a tais terceiros, preencher o sentido da sua “independência” e detalhar um regime de responsabilidade civil pelo conteúdo do relatório. Infelizmente, o texto do artigo parece não dar margem de manobra ao legislador nacional para suprimir o órgão de adminis-tração como possível relator do documento, e consequentemente limitar a sua elaboração ao terceiro independente ou ao conselho fi scal.

Além do dever de comunicação previsto nos nºs 2 e 3 do artigo 9.º-C da Diretiva, as transações relevantes com partes relacionadas deverão ser aprova-das pelos acionistas em assembleia geral, pelo órgão de administração ou pelo órgão de supervisão, seguindo um procedimento que impeça a parte relacionada de tirar proveitos da sua posição e que dê proteção adequada aos interesses da sociedade e dos acionistas que não sejam uma parte relacionada. A Diretiva não impõe competência exclusiva a nenhum órgão social nem densifi ca o procedimento, sem prejuízo da liberdade conferida aos Estados-Membros para imporem a obri-gatoriedade da aprovação acionista destas transações se previamente aprovadas pelo

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órgão de administração ou de supervisão82. Tal deliberação deverá ser uma con-dição prévia à conclusão da transação, pelo que deverá ocorrer antes desta. Caso não seja possível, a deliberação deverá ser listada como condição suspensiva no contrato ou nos contratos que compõem a transação83.

O administrador ou acionista envolvido numa transação com parte rela-cionada não deverá poder participar na deliberação para a sua aprovação, dei-xando-se, no entanto, espaço de manobra aos Estados-Membros para afastarem essa norma caso consigam assegurar salvaguardas apropriadas para proteger o interesse da sociedade e dos acionistas que não sejam parte relacionada84.

O que devemos entender com a expressão “administrador ou acionista envolvido numa transação”? O que qualifi ca o envolvimento – será limitado ao administrador ou acionista a parte relacionada contraparte na transação em causa ou poderá ser aplicado aos acionistas de onde advém, indiretamente, a qualifi cação da contraparte como parte relacionada? Pensemos no exemplo do cônjuge de um dos acionistas: ele será parte relacionada por via do seu cônjuge acionista – está este último excluído da deliberação? Uma interpretação literal do preceito em causa levar-nos-ia a pensar que sim – o legislador europeu fala em “envolver”, o que parece indicar nada o impede de votar se a contraparte em determinada transação for o seu cônjuge. No entanto, essa interpretação literal não encaixa nem sistemática nem teleologicamente com a Nova Dire-tiva. Afi nal, o regime das transações com partes relacionadas aplica-se expres-samente ao cônjuge do acionista ou do administrador, o que indicia que o legislador vê aqui uma potencial situação de aproveitamento de tal estatuto em detrimento dos interesses da sociedade. Logo, seria esvaziar o sentido de todo o regime se se permitisse ao acionista ou ao administrador votar na deliberação relativa a uma transação na qual o seu cônjuge é parte85.

Há que chamar a atenção para a possibilidade dada aos Estados-Membros pela Nova Diretiva de adotarem defi nições de materialidade diferentes para a apli-cação dos regimes supra descritos do n.º 2 e 3 (dever de comunicação/publi-cidade) e para o regime do n.º 4 (dever de aprovação). Na redação original da Proposta da Diretiva, previam-se expressamente critérios quantitativos diferen-tes para a aplicação de cada regime (transações representativas de 1% dos ativos

82 Artigo 9.º-C, n.º 4.83 O carácter ex ante da deliberação e a necessidade da sujeição da produção de efeitos da transação à condição de uma deliberação no seu sentido era expressamente explicada pela Proposta. Foi entretanto retirado, o que não tira pertinência a esta observação. 84 Artigo 9.º-C, n.º 4.85 Ver, nesse sentido, Reynisson, Kristinn Már, “Related Party Transactions: Analysis of Proposed Art. 9c of Shareholders’ Rights Directive”, European Company Law, 13, no. 5, 2016, 175-182, pp. 181-182.

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sujeitas a dever de comunicação/publicidade e transações representativas de 5% dos ativos sujeitas a dever de aprovação).

Os Estados-Membros podem isentar algumas transações deste mecanismo, nomeadamente (i) aquelas concluídas entre a sociedade e as suas subsidiárias, desde que estas últimas sejam totalmente detidas pela primeira ou desde que nenhuma outra parte relacionada da sociedade tenha um interesse na subsidiária em causa; (ii) determinadas transações para as quais a lei nacional exija aprova-ção pelos acionistas reunidos em assembleia geral; (iii) transações que tenham como objeto a remuneração de administradores; (iv) transações concluídas por instituições de crédito com base em medidas de resolução; (v) transações pro-postas aos acionistas em igualdade86.

A preocupação legislativa com confl itos de interesse emergentes deste tipo de transações não é novidade entre nós. O artigo 397.º do CSC já prevê um regime, aplicável às sociedades anónimas, relativo a negócios celebrados com a sociedade. Mais concretamente, o seu n.º 2 determina a nulidade de contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por pes-soa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, com parecer favorável do órgão de fi scalização (ou, nos termos do artigo 428.º do CSC, o órgão de supervisão, se existir), salvo se se tratar de ato compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador87. É um regime com um âmbito de aplicação material mais limitado do que o regime da Dire-tiva (tendo, por outro lado, um âmbito de aplicação subjetivo mais alargado, aplicando-se a todas as sociedades anónimas).

A nível setorial, o artigo 86.º do RGICSF já previa a exclusão dos membros do órgão de administração, diretores e empregados, bem como consultores ou mandatários, da participação na apreciação e decisão de operações em que sejam direta ou indiretamente interessados os próprios, cônjuges, ou pessoas com quem vivam em união de facto, parentes ou afi ns em primeiro grau, ou sociedades ou outros entes coletivos que uns ou outros direta ou indiretamente dominem, regime que tutela as mesmas preocupações mas sem as exigências de divulgação e de aprovação do regime da Diretiva. No CVM, por exemplo, encontramos uma obrigação de divulgação semestral das principais transações relevantes entre partes relacionadas dos emitentes de ações e de certos valores

86 Artigo 9.º-C, n.º 6.87 Para uma visão geral. cfr. Ferreira Gomes, José, “Confl ito de interesse entre acionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu acionista controlador”, in Confl ito de interesses no direito societário e fi nanceiro, Almedina, Coimbra, 2009, 76-212, pp. 101-121.

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mobiliários representativos de dívida88 e um dever de comunicação de algumas transações efetuadas por conta própria ou de terceiros que não só vincula os dirigentes da sociedade cotada mas também as pessoas estreitamente relacio-nadas, tais como cônjuges, entidades direta ou indiretamente dominadas pelo dirigente ou em que este também seja dirigente89, listando o Regulamento da CMVM n.º 4/2013 relativo ao governo das sociedades mecanismos dispersos de controlo de transações com partes relacionadas (pontos 89 a 92).

Todos os regimes supramencionados, apesar de já preverem algum con-trolo das transações com partes relacionadas, fi cam muito aquém da amplitude e da densidade do regime previsto na Diretiva, pelo que a alteração que traz é sempre bem-vinda. A transposição poderá ser feita na Subsecção VI da Secção II do Capítulo II do Título IV do CVM, ou em Título autónomo no mesmo Capítulo, onde estão inseridos os artigos do CVM já referidos, apesar de tal inserção poder levantar problemas de índole sistemática, tendo em conta o facto da Subsecção em questão dizer respeito a inclusões em informação divul-gada periodicamente ou ter um âmbito de aplicação objetivo mais restrito.

Este regime visa mitigar a tendência natural que uma entidade que exerce o controlo efetivo sobre um conjunto de ativos societários tem para se tentar apropriar injustifi cadamente da maior percentagem de valor que crê conseguir sem consequências efetivas, sendo as transações com partes relacionadas ins-trumentos adequados para captar valor pois são facilmente confi guráveis como transações perfeitamente legais90, bem como o risco de tais partes obterem van-tagens privadas em detrimento da sociedade e dos acionistas. Ecoando esta ideia, na exposição de motivos da proposta de revisão da Diretiva, a Comissão Europeia afi rma que as transações com partes relacionadas “criam oportunida-des para a apropriação de uma parte do valor da sociedade, em detrimento dos seus acionistas e, nomeadamente, dos acionistas minoritários”, criticando a falta de informações prévias “sufi cientes” sobre tais transações, bem como a falta de mecanismos de oposição91, estando a ideia da apropriação de ativos também

88 Artigo 246.º, n.º 3, al. c) e n.º 5, al. c) do CVM.89 Artigo 248.º-B, n.º 1 e 4 do CVM.90 Ver, a esse propósito, a exposição interessante de Enriques, Luca, “Related Party Transactions: Policy Options and Real-World Challenges (With a Critique of the European Commission Proposal)”, European Corporate Governance Institute, Law Working Paper n.º 267/2014, Outubro de 2014, pp. 6-7.91 Proposta de Diretiva..., p. 5.

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presente noutros documentos, nomeadamente no Plano de Ação suprarrefe-rido92, bem como nos princípios de governo de sociedades da OCDE93.

Se é verdade que nem todas as transações com partes relacionadas têm intenções/efeitos perniciosos94, é manifesto que tanto a Comissão Europeia como a OCDE parecem ver nelas um risco grave de “tunelagem” (tunneling) dos ativos das sociedades por um acionista dominante, o que não só levanta várias preocupações nas relações de distribuição efetivas entre administradores/acionista dominantes e acionistas minoritários mas também preocupações nos mercados de capitais, nomeadamente porque: (i) uma sociedade cotada que não esteja disposta a sinalizar ao mercado que os seus acionistas maioritários não uti-lizarão táticas de tunneling é muito menos atrativa para prospetivos investidores; (ii) porque o acionista maioritário estará menos disposto a vender, pois extrai benefícios demasiado elevados da sua posição atual; e (iii) fi nalmente, porque poderá resultar em distorções nas escolhas estratégicas e de gestão da sociedade, pois os acionistas maioritários tenderão a escolher estratégias que só maximizem o seu ganho individual e não as que maximizem o valor global da sociedade95.

Apesar do caráter salutar das intenções subjacentes ao novo regime de tran-sações relevantes com partes relacionadas, a forma como o regime foi estru-turado tem vindo a ser alvo de algumas críticas. Primeiramente, critica-se a utilização de conceitos indeterminados em várias instâncias, o que manifesta uma certa falta de clareza do regime – pense-se no conceito de “terceiro inde-pendente” que pode elaborar o relatório que acompanha a divulgação da tran-sação (al. a) do n.º 3 do artigo 9.º-C)96 ou no n.º 2 do artigo 9.º-C, que se

92 Comunicação da Comissão Europeia, Plano de ação: Direito das sociedades europeu e governo das sociedades – um quadro jurídico moderno com vista a uma maior participação dos acionistas e sustentabilidade das empresas, COM(2012) 740, 12 de dezembro de 2012, p. 10.93 Princípios de Governo das Sociedades do G20 e da OCDE, OCDE, 2016, disponíveis em http://www.oecd-ilibrary.org/governance/principios-de-governo-das-sociedades-do-g20-ocde_9789264259195-pt, pp. 27-28.94 Como refere Enriques, existem transações com partes relacionadas que criam valor para todas as partes envolvidas, dando o exemplo da sociedade que inicia um processo relativamente oneroso de desenvolvimento de um novo produto, mas que, por razões fi nanceiras várias, não consegue comercializar. Nessa situação pode o acionista dominante estar numa boa posição para adquirir os ativos subjacentes ao desenvolvimento do produto à sociedade através de uma sociedade por ele controlada para o continuar a desenvolver, sendo que qualquer terceiro não relacionado podia não estar interessado por não conhecer o projeto e presumir tratar-se de uma má compra. No fi m, vende-se o ativo a um bom preço e a um comprador solicito, libertando-se recursos fi nanceiros da sociedade para outras áreas. In Enriques, Related Party Transactions..., p. 7.95 Enriques, Related Party Transactions..., pp. 9-10.96 Reynisson, Related Party Transactions…, p. 179, enfatizando que o novo preceito não indica quem deve ser o potencial terceiro – um auditor é mencionado no memorando explicativo da

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exprime de forma bastante lacónica sobre o conteúdo do relatório, que deve ainda incluir “outras informações necessárias para avaliar se a transação é justa e razoável do ponto de vista da sociedade e dos acionistas”97. Também se ques-tiona a utilidade da exigência de um relatório de um terceiro independente, a possibilidade de exclusão de algumas transações com sociedades participadas e saber se, no plano dos efeitos, haverá verdadeiros incentivos ao escrutínio acionista de transações relevantes com partes relacionadas que fi quem sujeitas a dever de aprovação, especialmente em mercados de mais pequena dimensão98.

Outra crítica possível diz respeito à desnecessidade da previsão de um dever de publicidade (que, consoante a opção do legislador, poderá ver o seu âmbito de aplicação coincidir com o dever de aprovação ou ter um âmbito de apli-cação mais alargado). Com efeito, o regime das transações com partes relacio-nadas deve ter, como objetivo cimeiro, a proteção do interesse social face ao interesse de determinado sócio ou administrador, sendo o dever de aprovação já previsto na nova redação da Diretiva a principal salvaguarda desse interesse, pelo menos em tese. A imposição de um dever de divulgação oneroso99 relativo a uma questão de interesse eminentemente intrassocial pode ser confi gurada como excessiva por impor encargos que não são compensados por nenhum ganho signifi cativo para a própria sociedade. Por outro lado, pode-se sempre contrapor que a imposição de regime tão oneroso acaba por surgir como desin-centivo à entrada em transações que entrem neste regime, argumento que, a meu ver, não justifi ca por si só a imposição deste dever de divulgação que, ao contrário dos outros deveres da mesma natureza previstos na nova redação da Diretiva não tutela um interesse público ou político na publicidade de certos dados (política remuneratória) ou um interesse de transparência de mercado (deveres de divulgação aplicáveis aos consultores em matéria de votação, inves-tidores institucionais e gestores de ativos).

No fi m do dia, a efi cácia deste novo regime quando transposto para a lei portuguesa dependerá sempre da intensidade da supervisão da sua aplicação

proposta, mas não há indicação de nenhum requisito subjetivo adicional (sem prejuízo da exclusão expressa e óbvia de partes relacionadas), nem muito menos qualquer menção à responsabilidade civil de tal terceiro pelo conteúdo do relatório ou do que qualifi ca um terceiro como independente.97 Enriques, Related Party Transactions..., pp. 28-30.98 Idem, pp. 30-32.99 Reynisson refere que o novo preceito parece não tomar em conta os custos administrativos inerentes à elaboração de tal relatório, especialmente se realizado por terceiro, sem prejuízo do exercício de adivinhação feito pela Comissão na Proposta, dizendo que, dependendo da complexidade da operação, um “consultor experiente” deveria ser capaz de avaliar a equidade da transação num período de aproximadamente 5 a 10 horas, o que poderia resultar num custo máximo de EUR 2500 – 5000 se elaborados por um auditor in Related Party Transactions…, p. 179.

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(previsivelmente pela CMVM), e, acima de tudo, das atitudes das entidades visadas. De nada vale um regime apertado e disciplinado se os usos e as práticas culturais vigentes no mundo empresarial não mudarem e as próprias sociedades se consciencializarem dos problemas inerentes ao tunneling que tantas vezes utiliza as transações com partes relacionadas como véu.

5. Conclusão

A Nova Diretiva e os regimes nela previstos não são totalmente inovadores quando comparados com o Direito português vigente. Como se viu supra, já existiam no Direito pátrio normas relativas à identifi cação de acionistas e bene-fi ciários efetivos, ao say on pay e a transações com partes relacionadas, se bem que de natureza estática e/ou setorial, sendo que a Nova Diretiva vem operar uma extensão das mesmas a todas as sociedades cotadas e vem introduzir regi-mes mais densifi cados e completos.

A Nova Diretiva vem reforçar a tendência, que se vem verifi cado nos últimos anos mas que se tem intensifi cado no mundo pós-crise de 2008, de “publicização” do regime aplicável às sociedades cotadas, reforçando a sua natureza especialíssima face às sociedades abertas e às sociedades anónimas e aumentando o número de normas que só às sociedades cotadas são aplicáveis, sendo muitas delas deveres de divulgação ou tendo natureza comply or explain e muitas delas dizendo respeito à organização interna da sociedade e à sua relação com os seus acionistas, cada vez menos uma relação livremente moldável entre eles.

A Nova Diretiva vem também reconhecer o papel de atores já ativos no mercado – os investidores institucionais, os gestores de ativos e os consultores em maté-ria de votação – criando regimes de transparência e reporte que os disciplinam.

Todos os regimes que serão objeto de transposição estão teleologicamente orientados para a criação de incentivos a um maior envolvimento acionista a longo prazo na vida e no governo das sociedades cotadas e para o reforço de um governo das sociedades cotadas com uma preocupação de sustentabilidade a longo prazo.

A preocupação com o envolvimento acionista revela-se através da facilitação da sua identifi cação e troca de informação com as sociedades, da sujeição dos proxy advisors a códigos de conduta e obrigações de transparência, de um reforço das suas competências em matéria de aprovação de uma política remuneratória dos administradores ou na prevenção de tunneling através de um restritivo regime relativo a transações relevantes com partes relacionadas.

A preocupação com a sustentabilidade a longo prazo das sociedades cotadas estará mais presente no regime de transparência que incidirá sobre os investidores ins-

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titucionais e gestores de ativos e o regime das transações relevantes com partes relacionadas.

Conclui-se pois que a Nova Diretiva tem um crivo axiológico forte em favor dos acionistas e das sociedades cotadas, estando-lhe subjacente a ideia de que o maior envolvimento dos primeiros nas segundas poderá de alguma forma colmatar falhas de corporate governance nas sociedades cotadas na União Europeia resultantes de um foco excessivo em ganhos a curto prazo, falhas essas que tiveram consequências gravosas aquando da crise de 2008 e os anos que se lhe seguiram.

No entanto, há que enfatizar o seguinte – a Nova Diretiva, por muito bem intencionada que seja, foca-se tanto na ideia de que serão os acionistas os moto-res de alterações signifi cativas no governo das sociedades cotadas na Europa, que esquece o input importante dos outros stakeholders, tais como credores e trabalhadores e não vê os efeitos perniciosos que pode vir a ter. O novo regime presume que o maior envolvimento acionista é a chave para a sustentabilidade das sociedades cotadas a longo prazo, subordinando esta àquele.

Tal foco excessivo pode ter desfocado a visão do legislador europeu, não parecendo ter havido a perceção de que, por muitos incentivos que haja para o seu envolvimento, muitos acionistas continuarão a olhar para as suas partici-pações sociais como meros ativos e procurarão obter ganhos imediatos com as mesmas, não estando interessados na sustentabilidade da sociedade participada. Conceder-lhes mais prerrogativas, conquanto possa disponibilizar ferramen-tas úteis aos acionistas com uma visão mais a longo prazo e com enfoque na sustentabilidade da sociedade, poderá ter o efeito inverso em quem tem uma visão diametralmente oposta. Esta Nova Diretiva não parece ter o potencial de contribuir para o envolvimento a longo prazo dos acionistas, como se propõe, sendo que tal reforço de prerrogativas é acompanhado da criação de obrigações que oneram as sociedades ou outras entidades que com elas interagem e rara-mente os acionistas.

Pelo contrário, tem a potencialidade de tornar mais arrojados os acionistas com o tipo de comportamento que procura combater e, por conseguinte, anular o propósito de mudança do paradigma do governo societário das sociedades cotadas com o fi m de reforço dos poderes ou “direitos” dos acionistas, havendo potencial para se verifi car uma contradição teleológica material.

Só o futuro revelará se a Nova Diretiva é uma nova oportunidade para atingir o objetivo do legislador europeu – envolvimento acionista com enfoque na sustentabilidade – ou se é um presente envenenado para os seus promotores. Ao legislador português resta transpor bem e saber onde introduzir as alterações impostas pela Diretiva e evitar a confusão da dispersão legislativa, tendo dois anos (ou assim esperamos) para refl etir sobre a melhor forma de o fazer.

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