Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960

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    M arcelo Ridenti

    Isso que , na verdade, a Revoluo Brasileira. [...] ela ganha carne, densidade, penetra fundo na

    alma dos homens. O rio que vinha avolumando suas guas e aprofundando seu leito, atmaro de

    1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio no acaba assim. Ele cont inua seu curso, subterra-

    neamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra.

    FERREIRA GULLAR (1967, p. 253).

    Nota introdutria

    Este artigo retoma a reflexo do livro Em busca do povo brasileiro(cf. Ri-denti, 2000). Alm da anlise de novos casos, recorre-se noo de estru-tura de sentimento, formulada por Raymond Williams, e secundariamente

    s noes de campo em Bourdieu, de declnio da intelectualidade emJacoby e de outras no usadas naquele livro. Busca-se, assim, avanar nacompreenso do tema da relao entre cultura e poltica nos anos de 1960e 1970, em particular na anlise sociolgica da vasta e diferenciada produ-o artstica brasileira.

    Estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria nos anos de 1960

    Partir das reflexes de Raymond Williams sobre as estruturas de senti-mento constitui uma possibilidade de aproximao terica para tratar, es-pecialmente no que se refere s artes, do tema do surgimento de um imagi-

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    nrio crtico nos meios artsticos e intelectuais brasileiros na dcada de1960 e depois sua transformao e (re)insero institucional a partir dosanos de 19701. Talvez se possa falar na criao de uma estrutura de senti-

    mento compartilhada por amplos setores de artistas e intelectuais brasilei-ros a partir do final dos anos de 1950, e de como ela se transformou aolongo do tempo. Williams reconhece que o termo difcil, mas senti-mento escolhido para ressaltar uma distino dos conceitos mais formaisde viso de mundo ou ideologia, os quais se referem a crenas mantidasde maneira formal e sistemtica, ao passo que uma estrutura de sentimentodaria conta de significados e valores tal como so sentidos e vividos ativa-mente. A estrutura de sentimento no se contrape a pensamento, mas

    procura dar conta do pensamento tal como sentido e do sentimento talcomo pensado: a conscincia prtica de um tipo presente, numa continui-dade viva e inter-relacionada, sendo por isso uma hiptese cultural de rele-vncia especial para a arte e a literatura (Williams, 1979, pp. 134-135).

    Segundo Maria Elisa Cevasco, o termo foi cunhado por Williams paradescrever como nossas prticas sociais e hbitos mentais se coordenamcom as formas de produo e de organizao socioeconmica que asestruturam em termos do sentido que consignamos experincia do vivi-

    do (Cevasco, 2001, p. 97). Para essa autora

    [...] trata-se de descrever a presena de elementos comuns a vrias obras de arte do

    mesmo perodo histrico que no podem ser descritos apenas formalmente, ou

    parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento a arti-

    culao de uma resposta a mudanas determinadas na organizao social (Idem, p.

    153).

    O carter de experincia viva que o conceito de estrutura de sentimen-to tenta apreender faz com que essa estrutura nem sempre seja perceptvelpara os artistas no momento em que a constituem. Torna-se clara, noentanto, com a passagem do tempo que a consolida e tambm ultrapas-sa, transforma e supera. Nas palavras de Williams,

    [...] quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, so as conexes, as

    correspondncias, e at mesmo as semelhanas de poca, que mais saltam vista.O que era ento uma estrutura vivida, agora uma estrutura registrada, que pode

    ser examinada, identificada e at generalizada (1987, pp. 18-19).

    1.H outro aspecto fas-

    cinante, que no serexplorado aqui, que im-plicaria fazer o caminhoinverso: em vez de par-tir dos anos de 1960para a atualidade, tom-los em referncia ao seupassado. Isso envolveriarefletir mais demorada-mente sobre o fato de

    que a utopia da brasili-dade revolucionria temrazes tambm na ideo-logia das representaesda mistura do branco,do negro e do ndio naconstituio da brasilida-de, to caras, por exem-plo, ao pensamento con-

    servador de GilbertoFreyre. Na dcada de1960, formulavam-senovas verses para essasrepresentaes, no maisno sentido de justificara ordem social existen-te, mas de question-la:o Brasil no seria aindao pas da integraoentre as raas, da har-monia e da felicidade dopovo, impedido pelopoder do latifndio, doimperialismo e, no limi-te, do capital. Mas po-deria vir a s-lo comoconseqncia da revo-luo brasileira, pelo

    que se chegava a pen-sar numa civilizaobrasileira, retomando

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    Nesse sentido, hoje se pode identificar com clareza uma estrutura desentimento que perpassou boa parte das obras de arte a partir do fim dadcada de 1950. Ela poderia ser chamada de diferentes modos necessa-

    riamente limitadores, pois uma denominao sinttica dificilmente seriacapaz de dar conta da complexidade e da diversidade do fenmeno. Pode-se propor, sem excluir outras possibilidades, que seja chamada de estruturade sentimento da brasilidade (romntico-) revolucionria.

    Essa expresso leva a um outro conceito, til para compreender a estru-tura de sentimento da brasilidade revolucionria: o de romantismo, talcomo formulado por Lwy e Sayre (1995). Para esses autores, o romantis-mo no seria apenas uma corrente artstica nascida na Europa na poca da

    revoluo francesa e que no passou do sculo XIX. Muito mais que isso,seria uma viso de mundo ampla, uma resposta a essa transformao maislenta e profunda de ordem econmica e social que o advento docapitalismo, e que se desenvolve em todas as partes do mundo at nossosdias (Lwy e Sayre, pp. 33-36).

    A crtica a partir de uma viso de mundo romntica incidiria sobre amodernidade como totalidade complexa, que envolveria as relaes deproduo (centradas no valor de troca e no dinheiro, sob o capitalismo), os

    meios de produo e o Estado. Seria uma autocrtica da modernidade,uma reao formulada de dentro dela prpria, no do exterior, caracteri-zada pela convico dolorosa e melanclica de que o presente carece decertos valores humanos essenciais que foram alienados no passado e queseria preciso recuperar (Idem, pp. 38-40).

    O romantismo seria ento um fenmeno vasto, com diversas expres-ses artsticas e tambm polticas, o que permitiria constituir uma tipolo-gia, indo grosso mododa direita para a esquerda: romantismo

    restitucionista, conservador, fascista, resignado, reformador e revolucion-rio ou utpico. Este ltimo visaria a

    [...] instaurar um futuro novo, no qual a humanidade encontraria uma parte das qua-

    lidades e valores que tinha perdido com a modernidade: comunidade, gratuidade, doa-

    o, harmonia com a natureza, trabalho como arte, encantamento da vida. No entanto,

    tal situao implica o questionamento radical do sistema econmico baseado no valor

    de troca, lucro e mecanismo cego do mercado: o capitalismo (Idem, p. 325).

    Nesse caso, a lembrana do passado serve como arma para lutar pelo futu-ro (Idem, p. 44).

    esquerda a utopia doperodo Vargas.

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    A hiptese proposta em meu livro Em busca do povo brasileiro(cf. Ri-denti, 2000) a de que o florescimento cultural e poltico dos anos de 1960e incio dos de 1970 na sociedade brasileira pode ser caracterizado como

    romntico-revolucionrio. Valorizava-se acima de tudo a vontade de trans-formao, a ao para mudar a Histria e para construir o homem novo,como propunha Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Mas o modelopara essehomem novoestava, paradoxalmente, no passado, na idealizaode um autntico homem do povo, com razes rurais, do interior, do cora-o do Brasil, supostamente no contaminado pela modernidade urbanacapitalista.

    Vislumbrava-se uma alternativa de modernizao que no implicasse a

    submisso ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desuma-nizao. A questo da identidade nacional e poltica do povo brasileiroestava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas razes e rom-per com o subdesenvolvimento, o que no deixa de ser um desdobramen-to esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimentonacional com base na interveno do Estado.

    polmico caracterizar como romntico-revolucionrias a cultura e apoltica de parte significativa das esquerdas nos anos de 1960, j que ro-

    mantismo costuma ser associado reao, no revoluo (cf. Romano,1981). Mas o conceito no deixa de ser interessante justamente pela suaambigidade que possivelmente tem paralelo com a do objeto em estu-do. No contexto social, econmico, poltico e cultural brasileiro a partirdo final dos anos de 1950, recuperar o passado na contramo da moderni-dade era indissocivel das utopias de construo do futuro, que vislumbra-vam o horizonte do socialismo. Por isso devem ser relativizadas algumasanlises, como a de Srgio Paulo Rouanet, para quem o povo das esquer-

    das dos anos 60 tinha muitas vezes uma semelhana inconfortvel com ovolkdo romantismo alemo [...]: a nao como individualidade nica,representada pelo povo, como singularidade irredutvel (1988, p. D.3).Ora, a semelhana no geraria desconforto, pois no se tratava da mesmacoisa, embora ambos fossem parecidos em alguns aspectos, ao resgatar asidias de povo e nao para posicionar-se na contramo do capitalismo.Naquele contexto brasileiro, a valorizao do povono significava criarutopias anticapitalistas passadistas, mas progressistas; implicava o parado-

    xo de buscar no passado (as razes populares nacionais) as bases para cons-truir o futuro de uma revoluo nacional modernizante que, ao final doprocesso, poderia romper as fronteiras do capitalismo2.

    2.Outro aspecto inte-ressante do uso dessaacepo do romantismorevolucionrio que ele

    permite compreenderas afinidades ao longodo tempo com outrasestruturas de sentimen-to romnticas, por ve-zes conservadoras. Abre-se uma pista para com-preender a trajetriaaparentemente contra-ditria de artistas comoGlauber Rocha, queforam integralistas namocidade.

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    Aqueles que compartilhavam da estrutura de sentimento da brasilidaderevolucionria tinham relao ambgua com a ordem estabelecida no pr-1964, principalmente com o governo Goulart, que contava com o apoio de

    vrios artistas e intelectuais. Difundia-se na poca o dualismo que apontavaa sobreposio de um Brasil moderno a outro atrasado. A razo dualista para usar o termo de Francisco de Oliveira (1972) era disseminada pelostericos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), pela Comis-so Econmica para a Amrica Latina (Cepal), organismo das Naes Uni-das, e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja teoria das duas etapasda revoluo brasileira era incorporada difusa e diversamente pelos artistasque compartilhavam daquela estrutura de sentimento. Na verso do PCB

    do dualismo, haveria resqucios feudais ou semifeudais no campo, a seremremovidos por uma revoluo burguesa, nacional e democrtica que uniriatodas as foras interessadas no progresso da nao e na ruptura com o sub-desenvolvimento (a burguesia, o proletariado, os setores das camadas m-dias e tambm os camponeses), contra as foras interessadas em manter osubdesenvolvimento brasileiro, a saber, o imperialismo e seus aliados inter-nos, os latifundirios e os setores das camadas mdias prximos dos interes-ses multinacionais. A revoluo socialista viria numa segunda etapa bem

    prxima ou ainda muito distante, dependendo da corrente partidria (cf.Prado Jr., 1966).

    Nesse sentido, a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionriano nasceu do combate ditadura, mas vinha de antes, forjada no perododemocrtico entre 1946 e 1964, especialmente no governo Goulart, quan-do diversos artistas e intelectuais acreditavam estar na crista da onda darevoluo brasileira em curso. A quebra de expectativa com o golpe de1964 ainda mais sem resistncia foi avassaladora tambm nos meios

    artsticos e intelectualizados, como atestam o artigo clssico de RobertoSchwarz, publicado pela primeira vez em 1970 na Frana, e o depoimentode Chico Buarque em 1999:

    Nos anos 50 havia mesmo um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil

    possvel, antes mesmo de haver a radicalizao de esquerda dos anos 60. O Jusce-

    lino, que de esquerda no tinha nada, chamou o Oscar Niemeyer, que por acaso

    era comunista, e continua sendo, para construir Braslia. Isso uma coisa fenome-

    nal. [...] Ela foi construda sustentada numa idia daquele Brasil que era visvelpara todos ns, que estvamos fazendo msica, teatro etc. Aquele Brasil foi cortado

    evidentemente em 64. Alm da tortura, de todos os horrores de que eu poderia

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    falar, houve um emburrecimento do pas. A perspectiva do pas foi dissipada pelo

    golpe (Buarque, 1999, p. 4.8)3.

    So exemplos expressivos da estrutura de sentimento romntica e revo-lucionria para amalgamar num nico termo as propostas de Williams,Lwy e Sayre desenvolvida no Brasil no incio dos anos de 1960: a) atrilogia clssica do incio do Cinema Novo, todos filmes rodados em 1963e exibidos j depois do golpe Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos;Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; eOs fuzis, de Ruy Guerra; b) a dramaturgia do Teatro de Arena de So Paulo (de autores comoGianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Francisco de Assis e Oduvaldo

    Vianna Filho, o Vianinha), e tambm de autores como Dias Gomes; c) acano engajada de Carlos Lyra e Srgio Ricardo; d) o agitpropdos CentrosPopulares de Cultura (CPCs) da Unio Nacional dos Estudantes, especial-mente em teatro, msica, cinema e literatura como os trs livros da cole-oViolo de rua(Felix, 1962; 1963), com o subttulo revelador depoemaspara a li berdade, cujo poeta mais destacado foi Ferreira Gullar, ou ainda ofilmeCinco vezes favela, dirigido por jovens cineastas, entre eles CarlosDiegues, Leon Hirzman e Joaquim Pedro de Andrade.

    Depois do golpe de 1964, essa estrutura de sentimento da brasilidade(romntico-) revolucionria pode ser encontrada nas canes de Edu Lobo,Geraldo Vandr e outros; nos desdobramentos da dramaturgia do Teatro deArena como a peaArena conta Zumbie sua celebrao da comunidadenegra revoltosa; e especialmente no romanceQuarup, de Antonio Callado(1967), que exaltava a comunidade indgena e terminava apontando a viada revoluo social4, e que foi chamado por Ferreira Gullar de ensaio dedeseducao para brasileiro virar gente. Gullar observa que,

    [...] enquanto lia o romance, no podia deixar de pensar nos ndios de Gonalves

    Dias, em I racemade Alencar, em Macunamade Mrio de Andrade, em Cobra

    Norato, mesmo nosSertes, de Euclides, em Guimares Rosa. Pensava na abertura

    da BelmBraslia, no Brasil, nesta vasta nebulosa de misto e verdade, de artesana-

    to e eletrnica, de selva e cidade, que se elabora, que se indaga, que se vai definindo

    (Gullar, 1967)5.

    Essas palavras e o conjunto da resenha em que se insere resumem bema estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria.

    3.Essas palavras trazemo eco da referida inter-pretao de Schwarz,para quem o pas esta-

    va irreconhecivelmen-te inteligente no pr-1964 (cf. Schwarz,1978).

    4.Callado, na poca emque escreveu o livro, es-tava organicamente vin-culado guerrilha co-mandada por LeonelBrizola, conforme ad-

    mite expressamente emlonga entrevista a mimconcedida sobre o temae publicada quase na n-tegra em A guerrilhade Antonio Callado(apudKushnir, 2002,pp. 23-53).

    5.Os prprios autores

    que compartilhavam daestrutura de sentimen-to da brasilidade revo-lucionria que amadu-recera no pr-1964 co-mearam a problemati-z-la aps o golpe. Tantoque, no to almejadocentro do Brasil que seprocurava em Quarup,o que se encontrou foium grande formiguei-ro (cf. Callado, 1967).

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    As obras citadas buscam no passado uma cultura popular autntica paraconstruir uma nova nao, ao mesmo tempo moderna e desalienada. Dei-xam transparecer certa evocao da liberdade no sentido da utopia romn-

    tica do povo-nao, regenerador e redentor da humanidade (cf. Saliba,1991, pp. 53-67). Revelam a emoo e a solidariedade dos autores com osofrimento do prximo, a denncia das condies de vida subumanas nasgrandes cidades e, sobretudo, no campo. Enfoca-se especialmente o dramados retirantes nordestinos. A questo do latifndio e da reforma agrria recorrente, em geral associada conclamao ao povo brasileiro para reali-zar sua revoluo, em sintonia com as lutas de povos pobres da AmricaLatina e do Terceiro Mundo.

    Os artistas engajados das classes mdias urbanas identificavam-se comos deserdados da terra, ainda no campo ou migrantes nas cidades, comoprincipal personificao do carter do povo brasileiro, a quem seria precisoensinar a lutar politicamente. Propunha-se uma arte nacional-popular quecolaborasse com a desalienao das conscincias. Recusava-se a ordem so-cial instituda por latifundirios, imperialistas e no limite, em algunscasos pelo capitalismo. Compartilhava-se certo mal-estar pela supostaperda da humanidade, acompanhado da nostalgia melanclica de uma co-

    munidade mtica j no existente, mas esse sentimento no se dissociavada empolgao com a busca do que estava perdido, por intermdio darevoluo brasileira. Pode-se mesmo dizer que predominava a empolgaocom o novo, com a possibilidade de construir naquele momento o pasdo futuro, mesmo remetendo a tradies do passado.

    Sem dvida, essa estrutura de sentimento era portadora de uma ideali-zao do homem do povo, especialmente do campo, pelas classes mdiasurbanas. Mas ela se ancorava numa base real: a insurgncia dos movimen-

    tos de trabalhadores rurais no perodo. Era o tempo das Ligas Camponesas,celebradas em obras como Joo Boa-Morte (cabra marcado para morrer), deFerreira Gullar, ou no filme de Eduardo Coutinho, inacabado poca, quetomou emprestado o subttulo do poema de Gullar6. Ademais, vivia-se oimpacto de revolues camponesas no exterior, especialmente em Cuba eno Vietn. Tambm preciso lembrar que a sociedade brasileira ainda erapredominantemente agrria pelo menos at 1960; estava em andamentoum dos processos de urbanizao mais rpidos da histria mundial: de

    1950 a 1970, a sociedade brasileira passou de majoritariamente rural paraeminentemente urbana, com todos os problemas sociais e culturais de umatransformao to acelerada.

    6.Os operrios tam-bm eram tematizados,como na pea pioneirade Guarnieri Eles no

    usam black-t ie, encena-da pelo Teatro de Are-na em 1958, mas commenor intensidade queos trabalhadores rurais.Mas era a categoria depovo que, acima dasclasses, tendia a predo-minar nessa estrutura desentimento: os pobres,seres humanos miser-veis, desumanizados, de-serdados da terra.

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    Pode-se ver que a experincia viva da estrutura de sentimento da brasi-lidade revolucionria tem uma histria peculiar ao devir das artes e dacultura no Brasil, ao mesmo tempo em que est sintonizada com o cenrio

    cultural e poltico internacional. Plos contraditrios conviviam em dife-rentes intensidades e arrumaes internas em diversos movimentos e obrasde artistas especficos: brasilidade e internacionalizao; passado e futuro;razes culturais e modernidade.

    Brasilidade-mundo

    esclarecedora a constatao de Carlos Diegues numa entrevista: a

    minha gerao foi a ltima safra de uma srie de redescobridores do Brasil.O Brasil comea a se conhecer, sobretudo com o romantismo [...] aqueledesejo de uma identidade [...]. Minha gerao, do Cinema Novo, do tropi-calismo, a ltima representao desse esforo secular7. A tradio cultu-ral de busca da identidade nacional atravessou todo o sculo XX. No toaque dois destacados artistas dos anos de 1960 o cineasta Carlos Diegues e ocompositor Chico Buarque so filhos respectivamente de dois pensadoresda brasilidade: Manoel Diegues Jr. e Srgio Buarque de Hollanda. Tam-

    pouco acaso que Chico Buarque tenha feito a letra da cano Bye, bye,Brasilpara o filme homnimo de Carlos Diegues, constatando o esvazia-mento da estrutura de sentimento em que foram criados e que ajudaram aforjar e que continua a pairar como um fantasma sobre suas obras8.

    O modernismo nas artes brasileiras desenvolveu-se ao longo do sculopassado, indissocivel do processo de instaurao e consolidao da racio-nalidade capitalista moderna no Brasil que autores como Florestan Fer-nandes (1976) chamariam de revoluo burguesa. As ondas modernistas

    desde 1922 podem ser caracterizadas contraditria e simultaneamente comoromnticas e modernas, passadistas e futuristas. Tomar as supostas tradi-es da nao e do povo brasileiro (que so inventadas e construdasseletivamente por autores ou movimentos especficos) como base de sus-tentao da modernidade foi caracterstica dos mais diferentes movimen-tos estticos a partir da Semana de Arte Moderna de 1922: verde-amarelismoe Escola da Anta (1926 e 1929, aproximados na poltica do integralismode Plnio Salgado), seus adversrios Pau-Brasil e Antropofagia (1926 e

    1928, comandados por Oswald de Andrade), a incorporao do folcloreproposta por Mrio de Andrade ou por Villa-Lobos. A crtica da realidadebrasileira, associada celebrao do carter nacional do homem simples do

    7.Entrevista a ZuleikaBueno.

    8.Procurei desenvolveressa idia, no tocante aChico Buarque, no tex-to Vises do parasoperdido(cf. Ridenti,2000, pp. 225-264).

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    povo, viria nos anos de 1930 e 1940, por exemplo na pintura de Portinarie nos romances regionalistas, at desaguar nas manifestaes da dcada de1960, herdeiras da brasilidade, agora indissocivel da idia de revoluo

    social fosse ela nacional e democrtica ou j socialista, contando com opovo como agente, no mero portador de um projeto poltico9.

    A brasilidade voluntarista consolidada nos anos de 1960 como estrutura desentimento no pode ser dissociada do cenrio internacional. At mesmo aafirmao da nacionalidade no perodo tem um componente internacional sig-nificativo. No contexto da Guerra Fria, surgiam esforos dos pases no ali-nhados para organizar autonomamente o que ento ficou conhecido comoTerceiro Mundo, para alm do Primeiro Mundo alinhado aos norte-america-

    nos e do Segundo Mundo, na rbita sovitica. Todo o globo vivia o clima doterceiro-mundismo, da libertao nacional diante do colonialismo e doimperialismo, da solidariedade internacional com os povos subdesenvolvi-dos que se libertavam em Cuba, no Vietn, na Arglia e em outros pases.

    Talvez o adepto mais representativo desse terceiro-mundismo na cultu-ra brasileira tenha sido Glauber Rocha, que o tornaria explcito em seuconhecido manifesto Esttica da fome, de 1965 (apudPierre, 1996, pp.123-131) tpico do que aqui se chama de estrutura de sentimento da

    brasilidade (romntico-) revolucionria. O documento foi influenciadopelo pensamento de Frantz Fanon, o mdico negro das Antilhas que lutouna Arglia contra o colonialismo francs, autor em 1961 deOs condenadosda terra(1979). Diz Glauber no texto, sem fazer citao explcita, mascom referncia evidente a Fanon: uma esttica da violncia antes de serprimitiva revolucionria, eis a o ponto inicial para que o colonizadorcompreenda a existncia do colonizado: [...] foi preciso um primeiro poli-cial morto para que o francs percebesse um argelino (Idem, p. 129). Est

    tambm em clara afinidade com as propostas de outro cone do terceiro-mundismo, o argentino que lutou em Cuba e na frica, e morreu na Bo-lvia, Che Guevara talvez a referncia internacional mais significativa doromantismo revolucionrio do perodo.

    Nesse sentido, acertadamente, Daniel Pcaut observou que se deve evitarcaricaturar o passado e tambm desmistific-lo, pode-se acrescentar. ParaPcaut, o suposto delrio nacional-popular organizado em torno do Estado

    No foi absolutamente apangio de uma minoria vida de transformar seu saberem poder; apoiava-se, como frisou Michel Debrun, num sentimento difundido

    em muitos setores sociais. O privilgio concedido libertao nacional no ti-

    9.Nas palavras de Gu-llar, referindo-se ao ro-manceQuarup, a rea-lizao pessoal desguano coletivo. No se tra-ta de apagar-se na mas-sa, mas de entender queseu destino est ligado a

    ela (1967, p. 256). Nostermos de Glauber Ro-cha, em sua esttica dafome, o miserabilismona literatura e nas artesem geral no Brasil atos anos de 1960 era es-crito como denncia so-cial, hoje passou a serdiscutido como proble-

    ma poltico (apudPier-re, 1996, p. 127).

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    nha, ento, valor algum de libi visando a evitar a luta de classes; muito simples-

    mente, o Brasil vivia a hora do advento do Terceiro Mundo (1990, p. 180).

    Outros componentes internacionais constituintes dessa estrutura de sen-timento foram as sucessivas revolues socialistas do sculo XX, notada-mente a sovitica e depois a chinesa, a cubana e outras. Elas teriam reper-cusso no Brasil, especialmente entre artistas e intelectuais, muitos do quaisforam militantes de esquerda. Ademais, a estrutura de sentimento da bra-silidade revolucionria no se dissociava de traos do romantismo revolu-cionrio em escala internacional nos anos de 1960: a fuso entre vida p-blica e privada, a nsia de viver o momento, a liberao sexual, a fruio da

    vida bomia, o desejo de renovao, a aposta na ao em detrimento dateoria, os padres irregulares de trabalho e a relativa pobreza de jovensartistas e intelectuais.

    Portanto, no seria exagerado dizer que a experincia viva da estruturade sentimento da brasilidade revolucionria foi uma variante nacional deum fenmeno que se espalhou mundo afora. Alm das especificidadeslocais no caso brasileiro, as lutas pelas reformas de base no pr-1964 econtra a ditadura aps essa data , o florescimento cultural e poltico na

    dcada de 1960 ligava-se a uma srie de condies materiais comuns adiversas sociedades em todo o mundo: aumento quantitativo das classesmdias, acesso crescente ao ensino superior, peso significativo dos jovensna composio etria da populao, num cenrio de crescente urbanizaoe consolidao de modos de vida cultural tpicos das metrpoles, numtempo de recusa s guerras coloniais e imperialistas, sem contar a incapaci-dade do poder constitudo para representar sociedades que se renovavam eavanavam tambm em termos tecnolgicos, por exemplo com o acesso

    cada vez maior a um modo de vida que incorporava ao cotidiano o uso deeletrodomsticos, especialmente a televiso. Essas condies materiais porsi ss no explicam as ondas de rebeldia e revoluo, nem as estruturas desentimento que as acompanharam por toda parte. Mas foi em resposta smudanas na organizao social na poca que se construram certas estru-turas de sentimento, como aquela da brasilidade revolucionria.

    Atrao e afastamento da brasilidade revolucionria

    Evidentemente, nem todos os artistas e intelectuais compartilharam daestrutura de sentimento da brasilidade revolucionria nos anos de 1960.

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    Para tomar um exemplo significativo, o msico da bossa nova RobertoMenescal conta um caso pitoresco que merece ser reproduzido:

    Confesso que ns realmente ramos alienados totais. Eu sabia o que acontecia daavenida Atlntica para o mar; passando da Barata Ribeiro j no sabia mais nada!

    [...] Teve um dia nessa poca em que eu fui gravar no Campo de Santana [na

    gravadora CBS]. [...] ia gravar com a orquestra, eram uns arranjos do Luisinho

    Ea, e quando ns chegamos no estdio no tinha ningum. [...] Ningum chega-

    va, e o tcnico falou: Vamos passando a guitarra e o baixo. E passamos, gravamos

    a msica do Tom e Aloysio de Oliveira chamada Intil paisagem. Depois de um

    tempo comeamos a falar: Bom, a orquestra no vem, ser que a gente errou o dia?

    [...] A deu umas 11hs da manh e resolvemos ir embora. Pegamos o carro e sa-mos. Quando fui passando ali em frente Cinelndia, passaram uns soldados a

    cavalo e eu pensei: O que est havendo, que coisa estranha... . Quando chegamos

    ali perto da UNE, estava um rolo danado. Vimos que havia acontecido alguma

    coisa a mais. Era simplesmente o dia da revoluo [1 de abril de 1964] e a gente

    estava gravando Intil paisagem. A gente at brincou que Intil paisagem era o

    mel da revoluo. Mas isso para mostrar que a alienao era total! A gente

    gostava era de msica e pescaria, o resto a gente no sabia (2003, pp. 60-61).

    O caso ilustra como um contingente significativo de artistas estava des-ligado dos acontecimentos polticos. Para ficar no campo da cano popu-lar depois de 1964, todo o pessoal da Jovem Guarda nada teve a ver com aestrutura de sentimento da brasilidade revolucionria. Vale notar que odepoimento de Menescal de um lado incorpora o vocabulrio de esquerda(a alienao era total), mas de outro refere-se ao golpe de 1964 comorevoluo, expresso adotada e difundida pela direita.

    Em contraste, vrios bossa-novistas viriam a compartilhar de algummodo da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria, alguns demodo mais explcito e militante, como os pioneiros Carlos Lyra e SrgioRicardo, e logo em seguida Nara Leo; outros de modo mais distanciado,como Vincius de Moraes, autor de poemas engajados no pr-1964 pu-blicados noViolo de ruado CPC (cf. Felix, 1962; 1963) , bem como daletra doHino da UNE, em 1962, com msica de Carlos Lyra, e ainda deOmorro no tem vez, com Tom Jobim, em 1963, que dizia bem no esprito

    da poca: quando derem vez ao morro toda cidade vai cantar. Vinciustambm comps, com Edu Lobo, a cano vencedora do I Festival da TVExcelsior, em 1965. Trata-se deArrasto, que exalta a comunidade popu-

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    lar de pescadores e seu trabalho. Tambm foi parceiro de Edu Lobo emcanes como Zumbi, que celebra o lder negro revoltoso.

    Mais tarde, Vincius fez a maior parte da letra de Gente humilde, de

    Garoto, com a colaborao de Chico Buarque, que a gravou em 1970.Nessa cano, fica clara a idealizao dos habitantes dos arrabaldes porparte de quem os v pela janela do trem. Versos como tem certos dias/ emque eu penso em minha gente/ e sinto assim/ todo meu peito se apertarso tpicos da estrutura de sentimento aqui referida, que envolve a identi-ficao dos artistas com o homem simples (cf. Ianni, 1968). Mas essacano em particular afasta-se do romantismo revolucionrio, est muitomais para o romantismo resignado a que se referem Lwy e Sayre (1995,

    pp. 107-110). A resignao evidente nos versos finais: e a me d umatristeza/ no meu peito/ feito um despeito/ de eu no ter como lutar/ e euque no creio/ peo a Deus por minha gente/ gente humilde/ que vonta-de de chorar10.

    A fora da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria tam-bm se revela na assimilao, voluntria ou no, por seus crticos. Por exem-plo, a poesia concreta dos irmos Campos que fazia um contraponto aonacional-popular, valorizando a forma, e era crtica de qualquer apelo s

    supostas razes autenticamente brasileiras, isto , s origens pr-capitalistas no passou inclume ao apelo ao poltica: props em 1961 o saltoparticipante em sua poesia, pelo qual se procurava afinao com os movi-mentos populares insurgentes, porm com uma linguagem tambm revo-lucionria (cf. Hollanda, 1981, p. 41).

    Outro exemplo, agora no mbito da cano popular: com a letra deAresposta gravada em 1965 no LP de Marcos Valle, O compositor e o cantor, Marcos e Paulo Srgio Valle deram o troco aos que os acusavam de aliena-

    dos, ironizando os adeptos da cano engajada, isto , aqueles que compar-tilhavam da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria:

    Se algum disser que teu samba no tem mais valor/ porque ele feito somente de

    paz e de amor/ no ligue no que essa gente no sabe o que diz/ no pode entender

    quando o samba feliz/ o samba pode ser feito de cu e de mar/ o samba bom

    aquele que o povo cantar/ de fome basta o que o povo na vida j tem/ por que faz-

    lo cantar isso tambm?// Mas que tempo de ser diferente/ e essa gente no quer

    mais saber de amor/ falar de terra na areia do Arpoador/ quem pelo pobre na vidano faz nem favor/ falar de morro morando de frente pro mar/ no vai fazer nin-

    gum melhorar.

    10.Entretanto, nessemesmo LP, ChicoBuarque gravou suacano utpica,Rosa dosventos, que nada tinhade resignao; ao con-

    trrio, previa uma explo-so revolucionria:Numa festa amazni-ca/ numa exploso atln-tica/ e a multido ven-do em pnico/ e a mul-tido vendo atnita/ ain-da que tarde/ o seu des-pertar.

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    A letra explicita a resistncia dos autores ao engajamento poltico, bemcomo critica uma elite de esquerda que fala em povo e morro, quandoem seu cotidiano no teria nenhuma relao com isso11. O negcio dos

    autores era fazer um samba feliz, feito de cu e de mar para o povocantar, expressando uma vivncia na Zona Sul carioca prxima daquelarelatada por Roberto Menescal no trecho citado anteriormente. Contudo,parece surpreendente e atesta a fora da estrutura de sentimento da bra-silidade revolucionria que pouco tempo depois, em 1968, os irmosValle, cujas canes j freqentavam assiduamente as paradas de sucesso,no resistissem aos ventos daquele ano emblemtico: quase todas as letrasdo LP Viola enluaradaexpressam preocupao social, nas palavras de

    Marcos Valle (2004, p. 4). A cano que d ttulo ao LP tornou-se umclssico da cano engajada, chegando a conclamar revoluo social pelaidentidade entre os artistas e o povo:

    A mo que toca um violo/ se for preciso faz a guerra/ mata o mundo, fere a terra/

    a voz que canta uma cano/ se for preciso canta um hino louvo a morte/ viola

    em noite enluarada/ no serto como espada/ esperana de vingana/ O mesmo p

    que dana um samba/ se preciso vai luta/ capoeira/ quem tem de noite a compa-

    nheira/ sabe que paz passageira/ pra defend-la se levanta e grita: eu vou/ Mo,violo, cano, espada/ e viola enluarada/ pelo campo e cidade/ porta-bandeira,

    capoeira/ desfilando vo cantando/ Liberdade!

    Era esperana de vingana daqueles que sabem que a paz passagei-ra e iam desfilando e cantando em passeatas contra a ditadura, exigindoliberdade. Se preciso, o artista usaria a mo que toca o violo para fazer aguerra. A sonoridade da cano afasta-se da herana da bossa nova (marca

    dos irmos Valle) e incorpora a tradicional viola do interior, sem contar asreferncias na letra ao serto, viola, capoeira e porta-bandeira todossmbolos das razes da cultura popular brasileira, evocadas pelos composi-tores responsveis pela cano engajada de enorme sucesso na poca, comoGeraldo Vandr, Theo de Barros, Edu Lobo e outros cuja origem socialassemelhava-se dos Valle. Nada mais expressivo que essa cano da estru-tura de sentimento da brasilidade revolucionria. Entretanto, pouco tem-po depois, acompanhando as exigncias do mercado, as composies dos

    irmos Valle voltariam ao seu leito habitual, muitas delas tornando-se su-cessos em telenovelas da Rede Globo, fato que d margem a uma breveobservao.

    11.Como a j mencio-

    nadaO morro no temveze tambmO morro,de Edu Lobo e Guar-nieri, gravada por NaraLeo em 1964: feiono bonito/ o morroexiste mas pede pra seacabar/.../ ama, o mor-ro ama/ o amor aflito,o amor bonito que

    pede outra histria.

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    Especialmente depois de 1964, com a consolidao da indstria cultu-ral no Brasil, surgiu um segmento de mercado vido por produtos culturaisde contestao ditadura: livros, canes, peas de teatro, revistas, jornais,

    filmes etc. De modo que a estrutura de sentimento da brasilidade revolu-cionria, antimercantil e questionadora da reificao, encontrava contradi-toriamente grande aceitao no mercado como atesta por exemplo o su-cesso daRevista Civi lizao Brasileira, publicao de esquerda em forma delivro que chegava a tirar mais de 20 mil exemplares entre 1965 e 1968.Numa escala muito mais ampla, havia o enorme sucesso de canes engaja-das, por exemplo nos festivais musicais na televiso (cf. Napolitano, 2001).Eram sinais de mudanas na organizao social brasileira sob a ditadura,

    que viriam a alterar a estrutura de sentimento constituda no pr-1964 eanunciar o seu declnio e superao, como ser exposto mais adiante.

    Para retomar o exemplo dos irmos Valle, eles j diziam na cano cita-da de 1965 que o samba bom aquele que o povo cantar . Predispunham-se assim a estar em sintonia com os sinais do mercado, sensveis ao que opovo queria ouvir e cantar. Ora, no auge do perodo dos festivais televisivosde msica popular brasileira, de 1965 a 1968, que davam ndices de au-dincia impressionantes, o povo cantava as canes engajadas, que ven-

    diam muito. Da no ser to surpreendente, como poderia parecer pri-meira vista, que Marcos Valle tenha gravado o disco politicamenteengajado Viola enluarada, nem que depois ele acompanhasse o que povocantava nas telenovelas da Globo. Seguia a direo do pblico (ou do mer-cado?), mesmo que no o fizesse de caso pensado.

    Divergncias e rivalidades numa estrutura de sentimento

    O fato de vrios artistas do perodo terem compartilhado da estruturade sentimento da brasilidade revolucionria no significa que havia totalidentidade entre eles, que por vezes eram mesmo rivais, nem que suas obrasdeixassem de ser diferenciadas, ainda que de algum modo expressassemessa estrutura de sentimento no sentido de articulao de uma resposta amudanas determinadas na organizao social (Cevasco, 2001, p. 153).

    Nesse aspecto, talvez valha a pena incorporar ensinamentos de PierreBourdieu (1996; 2001), desde que a estrutura de sentimento da brasilida-

    de revolucionria no seja reduzida a uma espcie de doena infantil doscampos artsticos e intelectuais ainda em processo de formao12. Eles po-dem servir como instrumento para afinar a anlise das especificidades dos

    12.O recurso obra deBourdieu pode ser til,mas no indispens-vel, nem necessaria-mente suficiente. Porexemplo, o prprio Wi-lliams d conta commuita propriedade dogrupo de Bloomsburysem usar a noo decampo (cf. Williams,1982).

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    diferentes campos artsticos, incluindo artistas que compartilham de certaestrutura de sentimento. Um exemplo: vistos hoje, fica claro pertencerem auma mesma estrutura de sentimento filmes como O grande momento, diri-

    gido por Roberto Santos em 1957, Assalto ao trem pagador, de RobertoFaria, em 1962, O pagador de promessas, filme de Anselmo Duarte baseadona pea homnima de Dias Gomes, premiado em Cannes em 1963, e ain-da outros, como A hora e a vez de Augusto Matraga, dirigido em 1965 porRoberto Santos, com base no conto de Guimares Rosa. Todos eles valori-zam a brasilidade arraigada no homem simples do povo (no campo ou habi-tante da periferia das grandes cidades), denunciam as desigualdades sociais,buscam desvendar a realidade do Brasil13, entre outras caractersticas que

    lhes d pertencimento mesma estrutura de sentimento dos filmes do Cine-ma Novo, criados por cineastas to unidos mas ao mesmo tempo to dife-rentes entre si como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, JoaquimPedro de Andrade, Cac Diegues, Leon Hirszman, Ruy Guerra, ZelitoViana, Walter Lima Jr., Gustavo Dahl, Luiz Carlos Barreto, David Neves,Paulo Csar Saraceni, Eduardo Coutinho e Arnaldo Jabor. Entretanto,aqueles filmes no eram reconhecidos pelo grupo cinema-novista, que osacusava de seguir a esttica holywoodiana, de ser herdeiros da Vera Cruz,

    de apego narrativa clssica, enfim, de ser representantes do velho cinemaque se queria combater (cf. Bernardet e Galvo, 1983, p. 156). Tambm oscineastas radicados em So Paulo como Joo Batista de Andrade, RenatoTapajs, Francisco Ramalho, Maurice Capovilla e Luiz Srgio Person ,embora plenamente identificados com as propostas cinema-novistas, noeram reconhecidos por eles. Nas palavras de Renato Tapajs:

    [...] embora a gente estivesse aqui em So Paulo sob o total impacto do Cinema

    Novo e todo mundo via o Cinema Novo como a redeno do cinema brasileiro , na verdade So Paulo nunca esteve envolvido no Cinema Novo, quer dizer, de-

    pois comentava-se que o Cinema Novo era composto por aqueles que o Glauber

    achava que faziam parte do Cinema Novo. E como ele nunca achou que os paulis-

    tas fizessem parte do Cinema Novo, a gente corria um pouco margem disso da,

    embora fizesse todas as discusses e tentasse acompanhar todas as propostas (en-

    trevista ao autor, Caxambu, 21 de outubro de 1997).

    As divergncias no so perceptveis s pelo recurso noo de estrutu-ra de sentimento, afinal ela era na essncia, guardadas as distines e pecu-liaridades de cada obra e autor, a mesma para todos esses cineastas. Talvez

    13.Nelson Pereira dos

    Santos afirma: Quantoao contedo, meus fil-mes no diferem muito,[...] o reconhecimen-to da realidade do Bra-sil (Salem, 1987, p.274). E ainda: Amo opovo e no renuncio aessa paixo (Idem, p.326). Esse apego rea-

    lidade brasileira e a pai-xo pelo povo forammarcantes da estruturade sentimento da brasi-lidade revolucionria.

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    as divergncias possam ser mais bem compreendidas ao se adentrar pelalgica da constituio do campo do cinema brasileiro, no qual o grupo doCinema Novo buscava ganhar poder e prestgio, desbancando outros agru-

    pamentos e evitando rivais.Outro exemplo: o pessoal do Teatro Oficina teve, desde o incio dos

    anos de 1960, uma slida ligao com o Teatro de Arena, particularmentecom Augusto Boal. Todos compartilhavam da mesma estrutura de senti-mento, no caso do Oficina com uma influncia forte tambm da drama-turgia e da filosofia existencialista de Sartre que na poca esteve no Brasile, entre outras coisas, ajudou a difundir a simpatia pela revoluo cubana,que incendiava o imaginrio do pessoal do Oficina, como conta Renato

    Borghi em sua pea autobiogrfica exibida em So Paulo em 2004, intitu-ladaBorghi em revista. No livroOficina: do teatro ao te-ato, Armando Srgioda Silva observa que, em 1964, a encenao da pea do revolucionrio rus-so Mximo Gorki, Pequenos burgueses, bem como o golpe de Estado nopas, foram um marco decisivo na histria do Teatro Oficina. A partir deento a balana que oscilava entre o existencial e o social comeou a penderpara esse ltimo (1981, p. 132). Mas seria em 1967, com a encenao dapea de Oswald de Andrade, O rei da vela, que o Oficina viria a distinguir-

    se claramente da tradio do Teatro de Arena e provocar impacto artstico epoltico nacionalmente no campo teatral, propondo uma revoluo ideo-lgica e formal que os aproximaria do nascente tropicalismo o que reme-te a um ltimo exemplo.

    Parece que o tropicalismo musical tambm constituinte talvez o der-radeiro dessa estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria, aomesmo tempo que anuncia seu esgotamento e sua superao, quem sabeantevendo uma nova estrutura de sentimento14. Mas ele tinha suas peculia-

    ridades, tais como, de um lado, o acento na sintonia internacional e, deoutro, a valorizao e a recuperao de tradies populares do Brasil pro-fundo, esquecidas pela ento dominante cano engajada, acusada de ba-ratear as linguagens e de adular os desvalidos, nos termos do livro de mem-rias de Caetano Veloso15. Isso levaria os tropicalistas cuja denominaofazia referncia utopia de uma civilizao livre nos trpicos a brigar emfamlia com a brasilidade nacional-popular no campo da MPB. Essas pecu-liaridades e lutas de indivduos e grupos que compartem ou no uma mes-

    ma estrutura de sentimento podem ser compreendidas lanando mo daidia de campo para Bourdieu, como espao de concorrncia entre agentesem busca de legitimidade, prestgio e poder ou seja, de capital social.

    14.Tratei do tema numcaptulo sobre CaetanoVeloso (Ridenti, 2000,pp. 265-315), emborano tivesse recorrido en-to ao conceito de es-trutura de sentimento,nem ao de campo.

    15.Caetano prope asensibilidade popular,diferenciada do popu-lismo, substituidor daaventura esttica pelaadulao dos desvalidose barateador das lingua-gens (Veloso, 1997, p.504).

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    Os tropicalistas baianos vinham de fora do eixo dominante cultural-mente, por exemplo, nunca privaram da intimidade do crculo de expoen-tes da bossa nova, como Tom Jobim e Vincius de Moraes16. Sob a luz da

    formulao de campo, possvel interpretar de modo inesperado umverso deMiserere nobis, parceria de Gilberto Gil e Capinam em 1968. Elesadvertiam na cano que j no somos como na chegada/ calados e ma-gros, esperando o jantar como no tempo em que chegaram a So Pauloe fizeram o espetculo engajado e de notoriedade secundria, intituladoArena canta Bahia, sob direo de Augusto Boal, em 1965. Dois anosdepois, eles j no se contentavam em ocupar posio subalterna no cam-po da msica popular. No mais esperariam as sobras na porta: os tropica-

    listas arrombaram-na para avanar sobre o banquete na sala de jantar. Masisso vinha junto com o mesmo esprito socializante da estrutura de senti-mento da brasilidade revolucionria, por exemplo, nos versos da mesmacano a evocar que um dia seja/ para todos e sempre a mesma cerveja/tomara que um dia de um dia no/ para todos e sempre metade do po.

    Declnio e esgotamento de uma estrutura de sentimento

    Tenho usado uma interpretao de Perry Anderson (1986) sobre mo-dernismo e modernidade para compreender o florescimento cultural e po-ltico nos anos de 1960 (cf. Ridenti, 1993; 2000). A estrutura de sentimen-to da brasilidade revolucionria construiu-se com base em coordenadashistricas que podem ser observadas nas sociedades que ingressam em defini-tivo na modernidade urbana capitalista: a interseco de uma ordem domi-nante semi-aristocrtica, uma economia capitalista semi-industrializada eum movimento operrio semi-insurgente. Vale dizer, historicamente, o

    modernismo caracteriza-se: 1) pela resistncia ao academicismo nas artes, in-timamente ligado a aspectos pr-capitalistas na cultura e na poltica, nas quaisas classes aristocrticas e latifundirias dariam o tom; 2) pelas invenes in-dustriais de impacto na vida cotidiana, geradoras de esperanas libertrias noavano tecnolgico; e 3) pela proximidade imaginativa da revoluo social,fosse ela mais genuna e radicalmente capitalista ou socialista (Anderson,1986, pp. 18-19). Essas coordenadas teriam desaparecido na Europa depoisda Segunda Guerra Mundial, segundo o autor, mas ainda estariam presentes

    no Terceiro Mundo, que entretanto tambm tenderia a super-las.Parece que as coordenadas histricas do modernismo propostas por

    Anderson estavam presentes na sociedade brasileira do final dos anos de

    16.Tom Jobim e Vin-

    cius de Moraes eram n-timos e parceiros do jo-vem Chico Buarque,atacado pelos tropicalis-tas a ponto de respon-der com o artigo Nemtoda loucura genial,nem toda lucidez ve-lha (Buarque, 1968).

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    1950 at 1968: era significativa a luta contra o poder remanescente dasoligarquias rurais e suas manifestaes polticas e culturais, havia um oti-mismo modernizador com o salto na industrializao a partir do governo

    Kubitschek, sem contar o imaginrio da revoluo brasileira fosse elademocrtico-burguesa (de libertao nacional) ou socialista , impulsio-nado pelos movimentos sociais de ento.

    O quadro mudaria aps o fechamento poltico com a promulgao doAto Institucional n 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, seguido daderrota das esquerdas brasileiras, esmagadas pela ditadura que, paralela-mente represso, realizava o milagre econmico que consolidaria a mo-dernizao conservadora , sem contar os rumos pouco favorveis para os

    revolucionrios dos eventos polticos internacionais na ddada de 1970,especialmente em sua segunda metade. Com isso, desapareciam na socie-dade brasileira as coordenadas histricas apontadas por Anderson: afasta-va-se a proximidade imaginativa da revoluo, enquanto a sociedade semodernizava e urbanizava, permitindo constatar que a industrializao eas novas tecnologias no levaram libertao mas, ao contrrio, conviviambem com uma ditadura. Assim, dissolviam-se as bases histricas que de-ram vida ao florescimento cultural e poltico animado pela estrutura de

    sentimento da brasilidade revolucionria.A ditadura, entretanto, tinha ambigidades: com a mo direita punia

    duramente os opositores que julgava mais ameaadores at mesmo artis-tas e intelectuais , e com a outra atribua um lugar dentro da ordem nos aos que docilmente se dispunham a colaborar, mas tambm a intelec-tuais e artistas de oposio. Concomitante censura e represso poltica,ficaria evidente na dcada de 1970 a existncia de um projeto modernizadorem comunicao e cultura, atuando diretamente por meio do Estado ou

    incentivando o desenvolvimento capitalista privado. A partir do governoGeisel (1975-1979), com a abertura poltica, especialmente por interm-dio do Ministrio da Educao e Cultura, que tinha frente Ney Braga, oregime buscaria incorporar ordem artistas de oposio.

    Nesse perodo, instituies governamentais de incentivo cultura ga-nharam vulto, caso da Embrafilme, do Servio Nacional de Teatro, daFunarte, do Instituto Nacional do Livro e do Conselho Federal de Cultu-ra. A criao do Ministrio das Comunicaes, da Embratel e outros in-

    vestimentos governamentais em telecomunicaes buscavam a integraoe segurana do territrio brasileiro, estimulando a criao de grandes redesde televiso nacionais, em especial a Globo, que nasceu, floresceu e se

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    tornou uma potncia na rea sombra da ditadura, que ajudava a legiti-mar em sua programao, especialmente nos telejornais. A Globo empre-gava tambm artistas que compartilhavam da estrutura de sentimento da

    brasilidade revolucionria, como Vianinha e Dias Gomes17

    .Intelectuais como Srgio Paulo Rouanet e Renato Ortiz j salientaram

    que a indstria cultural brasileira dos anos de 1980, a Rede Globo frente,seria uma herana caricatural mas reveladora das propostas nacionais epopulares da dcada de 1960. Rouanet admite que o nacional-popular dopassado era crtico e mobilizador, o da indstria cultural conformista eapoltico, mas seria um espelho deformante daquele, do qual tirou

    [...] a idia de autenticidade que a mdia interpreta como defesa do mercado brasi-leiro contra os enlatados americanos e a preocupao com a identidade cultural,

    que a televiso procura resgatar, reservando um espao para programaes regio-

    nais, intercaladas entre programas de mbito nacional. dele, enfim, que vem seu

    trao mais tpico, o antielitismo, concebido como repdio cultura erudita [...]

    (Rouanet, 1988, p. D.3).

    Assim, haveria afinidades estruturais importantes entre a autolegitimao

    nacionalista e populista da indstria cultural brasileira [atual] e as antigasbandeiras nacionalistas e populares (Idem, p. D.3).

    J Renato Ortiz, em A moderna tradio brasi leira(1988), ressalta areabsoro despolitizante pelos meios de comunicao de massa de uma cul-tura nacional e popular que se pretendia revolucionria em sua origem. Se-gundo ele lanando mo da distino entre ideologia e utopia nos termosde Karl Mannheim (1950) , a utopia nacional-popular das dcadas de1940, 1950 e 1960 transformou-se na ideologia da indstria cultural brasi-

    leira dos anos de 1970 e 1980, isto , uma viso de mundo crtica foi trans-formada numa justificativa da ordem. Para usar um vocabulrio inspiradoem Raymond Williams, pode-se falar no declnio da estrutura de sentimentoda brasilidade revolucionria, que deixa de ser revolucionria, mas conservaaspectos de defesa da brasilidade que marcaro a indstria cultural brasileira.

    Sergio Miceli (1994) chegou a levantar a hiptese de que o sucesso debens culturais brasileiros em mbito nacional e tambm no mercado interna-cional como no caso das telenovelas da Rede Globo seria indissocivel do

    [...] recrutamento de toda uma gerao de tcnicos, escritores e artistas compro-

    metidos com a tica e a esttica de esquerda e, por essa razo, habilitados artesanal

    17.At o final da vida,apesar de ter-se torna-do um cone da ideo-logia nacional-popularde mercado da Globocom suas telenovelas,Dias Gomes identifica-va-se com a brasilida-de revolucionria, tan-to que deu a suas me-mrias o ttulo Apenasum subversivo(1998).

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    e ideologicamente fabricao de bens culturais condizentes com as expectativas

    axiolgicas e com os padres estticos de gosto dos pblicos consumidores nos

    pases metropolitanos (Miceli, 1994, p. 60).

    Com apoio estatal, durante a ditadura, foi criada uma indstria cultu-ral merecedora desse nome, no apenas televisiva, mas tambm editorial que publicava livros e especialmente jornais, revistas, fascculos e outrosprodutos , fonogrfica, de agncias de publicidade e assim por diante.Freqentemente, empregavam-se artistas e intelectuais nas agncias depublicidade, cujo crescimento vertiginoso acompanhou a modernizaoconservadora promovida pelo Estado, que se tornou ainda um anunciante

    fundamental para os meios de comunicao de massa (cf. Arruda, 1985).Os herdeiros do Cinema Novo constituem exemplo significativo do

    rearranjo pragmtico dos artistas de esquerda com a ordem estabelecida nadcada de 1970. Como bem aponta Jos Mrio Ortiz Ramos, referindo-seao incio do Cinema Novo, o conceito de alienao se entrecruzava com onacionalismo, costurando o tecido que sustentava, e de alguma forma uni-ficava, a diversidade da produo cultural da poca (1983, p. 75). OCinema Novo em seus primrdios buscava um enigmtico homem brasi-

    leiro, em sua nsia de apreender a realidade brasileira (Idem, p. 13).Pode-se dizer que essas palavras de Ramos expressam bem a estrutura desentimento da brasilidade (romntico-) revolucionria, que dava respostaa certas transformaes na organizao social at 1964. Mas essa organiza-o mudaria muito sob a ditadura, especialmente depois de 1968, e por-tanto a estrutura de sentimento correspondente no poderia passar inclu-me. Nesse sentido, Ramos observa com perspiccia a permanncia para osherdeiros do Cinema Novo e, pode-se acrescentar, para os herdeiros em

    geral da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria da ques-to nacional, da identidade do cinema, da cultura e do homem brasileiro,mas mostra como essa questo vai ganhando novos contornos ao longo dotempo: A preocupao com o homem brasileiro uma constante noCinema Novo, mas o importante acompanhar as transformaes quesofre conforme as injunes polticas (Idem, p. 78).

    Essas injunes polticas tendiam a afastar a proximidade imaginativa darevoluo social. Aps as derrotas de 1964 e de 1968, a busca romntica da

    identidade nacional do homem brasileiro permaneceria, porm mudavamas caractersticas desse romantismo, que foi deixando de ser revolucionriopara encontrar um lugar na nova ordem. Nos primeiros anos da ditadura, os

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    herdeiros do Cinema Novo posicionaram-se claramente na oposio, masisso em parte mudou com a abertura poltica do presidente Geisel e a reor-ganizao da Embrafilme, com a qual vrios cineastas passaram a colaborar,

    especialmente na gesto do cineasta Roberto Farias, entre 1974 e 1979 (cf.Soler Jorge, 2002; Ramos, 1983). A posio do governo continuava amb-gua: filmes financiados pela Embrafilme por vezes eram censurados, dife-rentes rgos do Estado incentivavam e puniam uma dada produo.

    Essa ambigidade em parte responsvel pela longevidade da ditadura marcaria todas as esferas artsticas e tambm intelectuais, como a prpria uni-versidade: o governo reprimia professores e estudantes considerados subversi-vos, mas o projeto de desenvolvimento exigia investimentos significativos em

    cincia e tecnologia, portanto, tambm na universidade. Ora, os debates e acrtica prprios da atividade acadmica acabaram por gerar questionamentoscrescentes ditadura, que no deixava de oferecer uma alternativa de acomo-dao institucional a setores acadmicos de oposio, como a criao de umslido sistema nacional de ps-graduao e de apoio pesquisa que perduraat hoje. A atuao educacional do regime implicou tambm a massificao doensino pblico de primeiro e segundo graus, ainda que qualitativamente de-gradados, o incentivo ao ensino mdio e superior privado e assim por diante.

    Buscava atender sua maneira, dentro da nova ordem, s reivindicaes demodernizao que haviam levado os estudantes s ruas na dcada de 1960.

    A sociedade brasileira foi ganhando nova feio, artistas e intelectuaisque compartilharam da estrutura de sentimento da brasilidade revolucio-nria aos poucos iam-se adaptando ordem sob a ditadura. Chegaram aconstituir um segmento de produo e consumo de mercadorias culturaisconsideradas crticas ao regime, que censurava seletivamente alguns dessesprodutos. O mercado oferecia timas oportunidades a profissionais quali-

    ficados at mesmo aos artistas de esquerda, representantes da culturaviva do perodo anterior, que se esgotara em 1968. Eles no tinham muitadificuldade para encontrar bons empregos em redes de rdio e televiso,produtoras de teatro e cinema, empresas de jornalismo, agncias de publi-cidade, universidades, fossem rgos pblicos ou privados ainda quehouvesse listas negras elaboradas pelo Servio Nacional de Informaes.

    Herana de uma estrutura de sentimento

    A partir de 1985, a redemocratizao da sociedade brasileira levaria umaparcela significativa de artistas e intelectuais de oposio a comprometer-se

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    com a Nova Repblica. Eram as aves de arribao, a deixar a esfera de umaoposio mais consistente ordem estabelecida, nos termos de um artigo dapoca de Francisco de Oliveira (1985). J restava pouco da velha estrutura de

    sentimento da brasilidade revolucionria, que entretanto adaptada novaorganizao social a que procurava responder encontraria uma sobrevidaem alguns setores, como os que viriam a constituir o Partido dos Trabalhado-res (PT), que desde o incio contou com a simpatia de vrios artistas e intelec-tuais. Tanto que Mrio Pedrosa, Antonio Candido e Llia Abramo encabe-am as assinaturas do Manifesto de Lanamento do PT, em 10 de fevereirode 1980, em ato pblico realizado no Colgio Sion, em So Paulo. Contudo,sintomaticamente, esses trs sempre tiveram uma convivncia problemtica

    e contraditria com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria,a que entretanto no eram alheios. Politicamente, Mrio e Llia tinham for-mao trotskista e Candido integrava o Partido Socialista, todos adversriosdo trabalhismo, bem como do nacionalismo dos comunistas18.

    Em 1980, as condies eram outras: a sociedade havia se modernizadoe urbanizado, o nacionalismo terceiro-mundista era coisa do passado, oculto ao povo cedia lugar no imaginrio do PT constituio da classetrabalhadora, assim como se esgotava a noo de partido de vanguarda

    informada pelo marxismo-leninismo. No havia como a estrutura de sen-timento da brasilidade revolucionria expressa nas obras artsticas dos anosde 1960 permanecer. Contudo, os movimentos sociais insurgentes, o novosindicalismo, as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja informadas pelaTeologia da Libertao, a luta contra a ditadura nos seus estertores, o surtoda imprensa alternativa, o fim do AI-5 e da censura, a Anistia, a vitria darevoluo na Nicargua em 1979 e outros fatores criavam em setores arts-ticos e intelectuais identificados ou no com os primrdios do PT a

    sensao de continuidade em relao antiga estrutura de sentimento.Tanto que, por exemplo, no final da dcada de 1970, a editora CivilizaoBrasileira tentou reeditar o sucesso daRevista Civi lizao Brasileiraao lan-ar Encontros com a Civi lizao Brasi leira(que chegou a ter mais nmerosque a antiga, mas seu impacto no foi nem sombra do da outra), a tambmtradicional editora Brasiliense viveria tempos de glria aps o sucesso daColeo Primeiros Passos, que atualizava a proposta de livros paradidticosde bolso dosCadernos do povo brasileiro, editados no incio dos anos de

    1960 pela Civilizao Brasileira19, e at a pequena editora Kairs, dirigidapor trotskistas, lanou a prestigiosaArte em Revista, que republicou partesignificativa dos debates poltico-estticos da dcada de 1960.

    18. No obstante, comono caso de Pedrosa, o im-pacto da estrutura de sen-timento da brasilidade

    revolucionria no con-texto da ditadura per-ceptvel em seu pensa-mento no perodo. Veja-se, por exemplo, o elo-gio do crtico adeptoda arte abstrata e impul-sionador do concretis-mo nas artes plsticas

    brasileiras ao engaja-mento da exposioOpinio 65, inspiradano show Opinio, umteatro popular to pr-ximo, por sua prprianatureza, ao clima social, atmosfera poltica dapoca. Para ele, a can-oCarcar, de Joo do

    Vale, seria um verda-deiro hino da revoluocamponesa nordestina[...] como aCaramagno-lefoi da plebe urbana edossans-culottesna Re-voluo Francesa, du-rante o Terror. Carca-re o filmeDeus e o di-

    abo na terra do sol, deGlauber Rocha, teriamdado para o Brasil osigno de uma espcie decriatividade coletiva(apudArantes, 1995,pp. 204-205).

    19.A Brasiliense tam-bm editou na poca a

    coleoO nacional e opopular na cultura bra-

    sileira, planejada por

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    No decorrer dos anos de 1980, as lutas sindicais no Brasil, a campanhapelas diretas-j, o fim da ditadura no incio de 1985, a convocao da As-semblia Nacional Constituinte, a legalizao dos partidos comunistas, o

    crescimento do PT e outros fatores ainda mobilizaram certo imaginrio darevolta e da revoluo, mesmo que j distinto daquele dos anos de 1960:destacavam-se correntes de esquerda que buscavam contato com a realida-de imediata das vidas cotidianas e com as lutas dos movimentos sociais pordireitos de cidadania, contra a viso doutrinria fechada de certas vertentesdo marxismo20. Por outro lado, o cenrio internacional desfavorvel, com oavano do neoliberalismo, o domnio conservador simbolizado na duplaReagan-Thatcher e no pontificado de Joo Paulo II, a crise da revoluo

    nicaragense, aglasnoste aPerestroikana Unio Sovitica, que culminari-am com o fim do socialismo no Leste Europeu, e internamente a derrotados candidatos de esquerda Brizola e Lula, nas eleies de 1989, parecemter selado a sorte da velha estrutura de sentimento.

    De sapos revolucionrios a prncipes ps-modernos

    Esse processo evidentemente longo e intrincado, no seria possvel

    dar conta dele satisfatoriamente em poucas linhas. Por isso, aqui se propeapenas um comentrio sobre um filme recente que no foi propriamenteum sucesso de pblico nem de crtica, mas que expressa bem o desloca-mento e o estranhamento em nossos dias do artista/intelectual formado naestrutura de sentimento da brasilidade revolucionria e assim serve depretexto para tratar do envelhecimento dessa estrutura. Trata-se deO prn-cipe, lanado em 2002, escrito e dirigido por Ugo Giorgetti um cineastanascido em 1942, diretor-roteirista de cinema publicitrio desde 1966,

    tambm documentarista, que s se destacaria nos longas a partir de mea-dos dos anos de 1980. O personagem central deO prncipe Gustavo, umintelectual que deixou So Paulo no incio dos anos de 1980 e s volta aoBrasil vinte anos depois, quando reencontra os amigos e a cidade muitomodificados, sentindo-se absolutamente deslocado.

    Aqui preciso dar um desconto verossimilhana, afinal, em primeirolugar, o homem que retorna no havia vivido em outro planeta, mas emParis, ainda que trabalhando sem regularidade e recorrendo constantemen-

    te ajuda da seguridade social, pelo seu ideal de estar margem do sistema.Em segundo lugar, o personagem central seria mais plausvel se pertencesse gerao do diretor, universitria nos anos de 1960, plenamente identifi-

    Adauto Novaes (1983),que no deixava de serum balano crtico daestrutura de sentimen-

    to da brasilidade revo-lucionria.

    20.Trato de aspectosdesse problema em Ri-denti (1998), sobre oimpacto no Brasil do li-vro de Marshall Berman(1986).

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    cada com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria masGustavo mais jovem, formado na dcada de 1970, deveria estar mais afi-nado com os ecos dos novos movimentos sociais que surgiram na poca em

    So Paulo (cf. Sader, 1988). H uma breve meno a eles, durante uma falaque remete ao tempo da Vila Euclides estdio de futebol onde se reali-zavam manifestaes dos metalrgicos do ABC do fim dos anos de 1970 aoincio dos de 1980 , ao passo que abundam as referncias dcada de1960, por exemplo uma tomada na rua Maria Antnia, passando em frente antiga Faculdade de Filosofia.

    Aps vinte anos de exlio voluntrio, ao retornar de txi do aeroporto casa materna na Vila Madalena que na sua juventude era um bairro paca-

    to e simples, onde viviam jovens estudantes e intelectuais, muitos dos quaisfreqentavam o campusvizinho da Universidade de So Paulo , Gustavomal reconhece o bairro, agitado, cheio de bares, movimento de pessoas eautomveis, sujeito criminalidade e banalidade da violncia cotidiana dametrpole. Os antigos amigos de esquerda em geral esto bem situados den-tro da ordem, com a qual convivem com graus variados de (des)conforto.Um deles tornou-se jornalista de prestgio o velho do jornal que teria umprofissional para agradar a cada segmento do mercado. Ele, paraplgico em

    razo de um acidente, vive bbado e a tudo ironiza. Numa cena marcante,recita versos daDivi na comdiano clebre trecho em que o poeta est sportas do inferno. A cena tem lugar de madrugada, em meio a uma infini-dade de mendigos nas proximidades da outrora fulgurante Galeria Metr-pole, atrs da decadente Biblioteca Municipal, diante da esttua de Dantena praa Dom Jos Gaspar, onde ficava o Paribar, tambm evocado explici-tamente numa tomada (detalhe: todas essas referncias remetem So Pau-lo florescente dos anos de 1950/1960, tempo da juventude do autor do

    filme, e no do personagem da Vila Madalena na dcada de 1970).Outro amigo prosperou com marketinggerencial e cultural; sabendo

    do bom domnio de Gustavo da obra de Maquiavel, prope ao velho com-panheiro empresariar seu futuro sucesso: palestras e um livro adaptando aobraO prncipepara auto-ajuda de interessados em triunfar rapidamentenos negcios21. Da o ttulo do filme, que se refere tambm autodesignaode Gustavo como o prncipe da Nusea, em referncia ao romance deSartre que, de novo o deslocamento temporal, empolgou muito mais a

    gerao do diretor do filme que a de seu personagem. A bela ex-namoradatornou-se executiva bem-sucedida de uma grande empresa que investe emeventos artsticos e culturais, mas se confessa infeliz. Outros personagens

    21. significativa a lon-ga fala, quase um mo-nlogo, desse persona-gem cnico e arrivista,

    numa cena de cerca decinco minutos que sepassa numa academia deginstica da moda, emque se recorre a outrossmbolos dos novos-ri-cos, como telefone ce-lular, terno e carro im-portado. Eis alguns tre-

    chos: finalmente, cul-tura e erudio estodando dinheiro. A mo-dernidade inclui a cul-tura e os culturati. Amodernidade necessitade charme. E quem que pode fornecer essamatria-prima to rara?Ns! Finalmente ns

    estamos na moda. H fe-nmenos acontecendo,mega-livrarias sendoinauguradas, feiras delivros, o diabo. No seise algum l, mas com-pram, e isso o que in-teressa para ns. [...] Osintelectuais cansaram de

    ser pobres. Eles acaba-ram aprendendo com ospublicitrios que ideia-zinhas valem dinheiro.E, apesar de tudo, hmuito dinheiro circulan-do por a. Todos os nos-sos amigos esto coloca-dos. [...] e todos esto nascolunas sociais. A genteacaba fazendo parte dagrande fraternidade ar-

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    aparecem brevemente, como a moa que fotografa mortos na violncia damadrugada, um psicanalista da moda que ser homenageado no desfile deuma escola de samba e um maestro que vira pop star(papel de Jlio

    Medaglia, que ironicamente interpreta um maestro engolfado no sistema).S dois personagens parecem manter a dignidade. O primeiro um

    amigo de Gustavo que ajuda os pobres, trabalhando de graa no alberguedo Bom Retiro; leva uma vida modesta e recebe Gustavo para conversarnuma pequena fbrica abandonada que herdou do pai. Esse personagem mais que o niilista Gustavo o que melhor encarna o que restou da brasi-lidade revolucionria. Ele diz, numa cena: existe um Brasil secreto, subter-rneo, escuro, enorme, difcil chegar perto. E ao mesmo tempo ele est

    praticamente por toda parte. O segundo o sobrinho do protagonista, umprofessor de Histria que est em tratamento mental numa clnica apssurtos sucessivos que no poupavam sequer suas aulas no colgio particularem que lecionava. Constatando a falta de expresso da Histria do Brasil,ele ensinava aos alunos uma Histria grandiosa que inventava, por exemploatribuindo aos militares brasileiros a libertao de Berlim no fim da Segun-da Guerra Mundial. Ao final do filme, o professor no suportou a doenaque chamara de desabamento central da alma, constatou que a luz desta

    cidade est se apagando e jogou-se do alto do viaduto sobre a avenidaSumar, enquanto o protagonista sai para o exterior, fugindo novamente(das runas) de So Paulo e do Brasil.

    O filme permite um paralelo com o livro de Jacoby (1990) sobre odeclnio do intelectual atuante na vida pblica da sociedade norte-america-na ainda nos anos de 1950. Jacoby aponta o desaparecimento do espaourbano barato e agradvel que podia nutrir uma intelligentsiabomia emodelar uma gerao de intelectuais, com a eliminao das moradias, res-

    taurantes, cafs e livrarias modestos, somada comercializao acelerada dacultura e restrio da vida intelectual aos limites doscampiuniversitrios,situados nos subrbios. Nesse ambiente, a literatura e a crtica se tornamcarreiras, no vocaes, com autores independentes dando lugar profis-sionalizao da vida cultural. A institucionalizao de intelectuais e artistasneutralizaria a liberdade de que em teoria dispem, de modo que um even-tual sonho com a revoluo conviveria com o investimento na profisso, noqual prevaleceria a realidade cotidiana da burocratizao e do emprego.

    Como expressa bem a trajetria dos personagens do filme de Giorgetti,h tempos entrou em declnio o padro de intelectual ou artista de esquer-da dos anos de 1960, engajado, em busca da ligao com o povo hoje

    tstico-empresarial e ga-nha dinheiro, porra!.

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    considerado talvez como epifenmeno do populismo, manipulador dosanseios populares, expresso de uma minoria em busca de transformar seusaber em poder, ou, na melhor das hipteses, como prottipo do intelec-

    tual quixotesco. Aos poucos, foi-se estabelecendo o modelo do artista e doscholarcontemporneos, profissionais amadurecidos, desvinculados de com-promissos ideolgicos e sociais, livres das utopias voluntaristas dos anos de1960, que s teriam sido revolucionrias na aparncia. Ou de artistas eintelectuais que mantm uma fachada de engajamento e ligao com o pas-sado para legitimar sua acomodao com a ordem no presente.

    No seria o caso de aprofundar aqui a anlise do filme, que interessapor ilustrar o estranhamento de algum formado na estrutura de senti-

    mento da brasilidade revolucionria em relao realidade de hoje, emque a hegemonia burguesa to difusa e consolidada que se torna difcilpensar numa alternativa a ela. No h dvida de que hoje predomina osenso de realidade experimentada22 que supe a reproduo eterna dasociabilidade capitalista.

    A antiga estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria por cer-to tem herdeiros, mas h muito deixou de ser predominante, em vrioscasos transformou-se numa ideologia legitimadora da indstria cultural

    brasileira. Pode-se arriscar a hiptese seria melhor dizer intuio, pois ela difcil de comprovar, uma vez que ainda no h o devido distanciamentono tempo de que o lugar principal agora ocupado pela estrutura desentimento da individualidade ps-moderna, esboada naqueles mesmosanos de 1960, caracterizada pela valorizao exacerbada do eu, pela cren-a no fim das vises de mundo totalizantes, dado o carter completamentefragmentado e ilgico da realidade, pela sobreposio ecltica de estilos ereferncias artsticas e culturais de todos os tempos, pela valorizao dos

    meios de comunicao de massa e do mercado, pela inviabilidade de qual-quer utopia.

    O profissional competente e competitivo no mercado, concentrado nacarreira e no prprio bem-estar, veio substituir o antigo modelo de artista/intelectual indignado, dilacerado pelas contradies da sociedade capita-lista perifrica e subdesenvolvida, que compartilhava da estrutura de senti-mento da brasilidade revolucionria. Contudo, a utopia revolucionria nodesaparece nem mesmo na produo cultural reificada da sociedade de

    nossos dias (cf. Jameson, 1994). Mas isso j seria tema para outro artigo.

    22.Ao tratar do concei-to de hegemonia, basea-do em Gramsci, Ray-mond Williams obser-va que ele envolve umconjunto de prticas eexpectativas, sobre a to-talidade da vida: nossossentidos e distribuio

    de energia, nossa percep-o de ns mesmos enosso mundo. um sis-tema vivido de signifi-cados e valores cons-titutivo e constituidor que, ao serem experi-mentados como prti-cas, parecem confirmar-

    se reciprocamente.Constitui assim um sen-so da realidade para amaioria das pessoas nasociedade, um senso derealidade absoluta, por-que experimentada, ealm da qual muitodifcil para a maioria dosmembros da sociedade

    movimentar-se, na maio-ria das reas de sua vida(Williams, 1979, p. 113).

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    Resumo

    Ar ti st as e int electu ais no Brasil ps-1960

    O artigo trata da trajetria de intelectuais brasileiros considerados de esquerda, espe-cialmente os artistas, a partir dos anos de 1960. Desenvolve-se a hiptese da existncia

    de uma estrutura de sentimento da brasilidade revolucionria, forte at 1968, em

    resposta a mudanas na organizao social, e de como ela tendeu a desestruturar-se

    quando a sociedade seguiu em outra direo. As obras dos artistas que compartilha-

    vam dessa estrutura de sentimento eram diferenciadas e no havia total identidade

    entre eles, s vezes rivais entre si. O processo de modernizao conservadora da socie-

    dade viria a institucionalizar profissionalmente o meio artstico e intelectual, afastan-

    do-o do compromisso com as causas crticas da ordem. Esgotaram-se as coordenadashistricas em que frutificou certa estrutura de sentimento que, no raro, converteu-se

    em ideologia legitimadora da indstria cultural brasileira.

    Pa la vra s-cha ve: Cultura e poltica; Intelectualidade brasileira; Rebeldia e revoluo;

    Estrutura de sentimento; Romantismo revolucionrio.

    Abstract

    Art ists and in tellectu als in p ost-1960 Brazil

    This article is about the progress of Brazilian left wing intellectuals, especially theartists, after the 1960s. In it, we develop the hypothesis of the existence of a structure

    of feelings of revolutionary Brazilianism, strong until 1968, as an answer to changes in

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    Artista s e inte lectua is no Bra sil ps-1960, pp. 81-110

    social organization, and how it tended to become de-structured when the whole of

    society went in another direction. The works by the artists who shared this structure

    of feelings shared something familiar but there was no total identity among them; at

    times, they were rivals. The process of conservative modernization of society wouldprofessionally institutionalize the artistic and intellectual milieu, keeping it apart from

    the commitment with critical causes of order. The historical constraints in which

    certain structures of feelings bore fruit dried up, and, many times, those feelings were

    transformed into an ideology that legitimized the Brazilian cultural industry.

    Keyw ords: Culture and politics; Brazilian intellectuals; Rebellion and revolution; Struc-

    ture of feelings; Revolutionary romanticism.

    Texto recebido em 29/9/2004 e aprovado em16/11/2004.

    Marcelo Ridenti pro-fessor do Departamen-to de Sociologia do Ins-tituto de Filosofia e Cin-cias Humanas da Uni-versidade Estadual deCampinas (Unicamp) epesquisador do CNPq.E-mail: mridenti@unicamp br