Artigos de Kittler Traduzidos Portugues
-
Upload
cesar-pessoa -
Category
Documents
-
view
255 -
download
10
Transcript of Artigos de Kittler Traduzidos Portugues
31 de Março de 2013
Trabalho de Projecto
Em Ciências da Comunicação
Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias
Friedrich A. Kittler, Filósofo da Tecnologia
Uma Tradução Comentada
Jorge Henrique Vieira Rodrigues
Jorge Henrique Vieira Rodrigues
2
3
Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Ciências da Comunicação, realizado sob a orientação científica da
Prof.ªDoutora Maria Teresa Cruz.
4
5
[DECLARAÇÕES]
Declaro que este Trabalho de Projecto é o resultado da minha investigação pessoal e
independente. O seu conteúdo é original e todas as fontes consuladas estão devidamente
mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
O Candidato,
Lisboa, 31 de Março de 2013
Declaro que este Trabalho de Projecto se encontra em condições de ser apresentada a provas
públicas.
A Orientadora,
Lisboa, 31 de Março de 2013
6
7
Á minha mãe, como tudo o que faço.
À minha irmã.
À Neuza e à Rita.
8
9
Agradecimentos
À Professora Doutora Maria Teresa Cruz, pela orientação, pela introdução à tradução
académica, pela confiança, pela preocupação. Ao Centro de Estudos de Comunicação e
Linguagens (CECL).
Este Trabalho de Projecto também não poderia ter sido realizado sem os recursos da
Maison Heinrich Heine, na pessoa da sua Directora Christiane Deussen. Agradeço também à Dr.
Hedwig Sastre, bibliotecária da Maison. Finalmente, agradeço ao Office Franco-Allemand pour
la Jeunesse, que me concedeu uma pausa fundamental, se bem que igualmente esgotante, no
período de redacção.
10
11
Friedrich Kittler, Filósofo da Tecnologia
Uma tradução Comentada
Resumo
O presente Trabalho de Projecto teve como principal objectivo a tradução comentada de
documentos que permitam dar a conhecer a obra de Friedrich Kittler. Constituído por nove
traduções e um artigos, visa fornecer uma grelha introdutória à obra do Filósofo, de modo a
apresentar a sua formulação e perspectiva relativamente às problemáticas principais das
Ciências da Comunicação na sua modalidade de Medienwissenschaften, isto é, tornando central
o papel dos média nos processos de constituição, seja essa constituição relativa à sociedade,
formas de pensamento ou materialidades – em suma: o papel da medialidade na constituição do
efectivo.
Palavras-chave: Kittler, Média, Tecnologia, Técnica, Ciências da Comunicação.
12
Friedrich Kittler, Philosopher of Technology
A Critical Translation
Abstract
The following work consists of the critical translation of nine documents concerning
Friedrich Kittler’s work. It provides an introduction to this philosopher’s perspective, in order to
approach the main topics in the domain of Communication Sciences, regarded as
Medienwissenschaft. This approach translates in the central role of media in the processes of
constitution – from society to systems of thought or materiality – what is at stake in this domain
of knowledge is the role of mediality in the construction of reality.
Key-Words: Kittler, Media, Technology, Techniques, Communication Sciences.
13
Índice
Objectivo e Contexto de Aplicação do Projecto ......................................................... 15
Apresentação dos potenciais beneficiários ou públicos visados ................................. 16
Materiais humanos e recursos disponíveis .................................................................. 16
Período de Tradução e Organização do Volume ........................................................ 17
Considerações e Notas sobre a Metodologia de Tradução ......................................... 18
Em torno da Ontologia dos Média .............................................................................. 21
Introduzindo as categorias kittlerianas para uma releitura da Cultura ........................ 21
Bibliografia e Referências........................................................................................... 39
ANEXO I
Glossário de Tradução ................................................................................................ 43
ANEXO II
ENSAIOS
I
História dos Média Comunicacionais ............................................................................. 53
Exorcizar o Espírito das Ciências do Espírito ................................................................ 75
Sobre o Estado e os seus Terroristas .............................................................................. 84
Para uma Ontologia dos Média .................................................................................... 100
II
Código ou como algo pode ser escrito de outro modo ................................................. 113
Computação Gráfica: uma Introdução Semi-técnica .................................................... 123
Não existe Software ...................................................................................................... 143
INTRODUÇÃO ÀS OBRAS
Gramofone, Filme, Typewriter (Prefácio e Introdução) .............................................. 161
Prefácio à introdução russa de Média Ópticos[Optische Medien] ............................... 189
14
ENTREVISTAS
O Modelo Frio da Estrutura .......................................................................................... 195
Entrevista a Friedrich Kittler por Bragança de Miranda .............................................. 206
Das Redes Discursivas À Matemática Cultural ............................................................ 211
15
Objectivo e Contexto de Aplicação do Projecto
Ao iniciar actividade de tradução em 2010, na altura a de um artigo de Friedrich
Kittler intitulado Code oder wie sich etwas anders schreiben lässt, o processo revelou-
se como uma forma privilegiada de adquirir conhecimentos na área delimitada em
Portugal pelo nome de «Ciências da Comunicação». A atenção que tem de ser
necessariamente prestada a cada palavra, a cada expressão, aliada à pesquisa histórico-
filosófica que é constantemente implicada, tornaram evidente que a actividade de
tradução se apresentaria como uma possibilidade a explorar na componente não-lectiva.
Aproveitando a abertura de formatos de componente não-lectiva a que recentemente a
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas procedeu, decidimos apresentar um trabalho
numa configuração não muito habitual: a realização de um corpo de traduções,
acompanhada de um artigos sobre algumas problemáticas do autor.
O autor a traduzir estava escolhido de antemão, por um vasto conjunto de razões.
Friedrich Kittler é considerado como um dos fundadores das Medienwissenschaft (não
se confunda com Kommunikationswissenschaft), representando igualmente uma
referência incontornável dos Estudos Germanísticos e na Filosofia da Tecnologia. O
facto de já termos iniciado há três anos a sua tradução criou um fascínio pela
complexidade e significação da sua linguagem. No entanto, nenhuma das suas obras
completas está traduzida em português. A ocasião da sua morte, em Outubro de 2012,
selou a decisão: o corpo da sua obra encerrou, o corpo de onde as obras surgiram
extinguiu-se, o fascínio pela sua obra, linguagem e inteligência requeria uma tentativa
de homenagem à altura.
Consideramos que as instâncias mais qualificadas para traduzir textos filosóficos
e académicos são as Faculdades e os departamentos que tratam as problemáticas
aludidas, o que no nosso país não parece ser sempre evidente. Este Trabalho de Projecto
representou assim a oportunidade de avançar duplamente: por um lado, no
aprofundamento dos conhecimentos da área cuja especialização visa; por outro lado, nos
conhecimentos de terminologia alemã específica, nomeadamente no campo da
computação. O desconhecimento generalizado da língua alemã em Portugal surgiu
assim como uma oportunidade para termos uma voz na inevitável recepção do autor no
nosso país, através da sua tradução. Sendo que o regulamento da componente não-
lectiva prevê, no ponto 2, o «planeamento de uma intervenção versando um problema
16
prático identificado num domínio da realidade social pertinente à área de especialidade
do mestrado» considerámos que a ausência de traduções do referido autor representa
uma falha no panorama das Ciências da Comunicação em Portugal, que o nosso
trabalho pretende contribuir para amenizar.
Apresentação dos potenciais beneficiários ou públicos visados
As traduções e comentários que as acompanham visam a comunidade científica
das Ciências da Comunicação, já que atestam um pensamento que lhes dé uma voz e um
conjunto de problemas concretos, que nenhuma forma de pensamento anterior tomou: a
promessa é, no limite, a da definição de um campo de conhecimento que permite uma
legibilidade do mundo, a «Ontologia dos Média», como Kittler lhe chamou. Outras
áreas, como a Filosofia, Estudos Germânicos, Linguística, Ciências Informáticas e da
Computação, também encontrarão nos textos traduzidos importantes fontes de
conhecimento.
Materiais humanos e recursos disponíveis
A convenção de Erasmus estabelecida entre a FCSH e a Université Paris 8
permitiram um período de investigação em Paris. As fontes bibliográficas utilizadas
refletem a oportunidade concedida: os seminários assistidos e obras lidas foram
fundamentais na problematização. A Maison Heinrich Heine, localizada na Cité
Universitaire International de Paris, que me acolheu, permitiu um contacto permanente
com a língua alemã que tornou a tarefa de tradução infinitamente mais produtiva: o
contacto com os residentes alemães permitia esclarecer as dúvidas sobre o uso
quotidiano de certos termos, o que, como se sabe, é fundamental no pensamento
alemão, que estabelece com a linguagem quotidiana uma porosidade única – veja-se as
explicações etimológicas de Heidegger.
A Biblioteca da Maison Heinrich Heine e a Biblioteca do Goethe Institut de
Paris foram locais incontornáveis para a consulta de obras que, fora da capital alemã,
são de muito difícil acesso. Para algumas obras que tivémos de adquirir, por estarem
completamente ausentes das prateleiras francesas, a Livraria Marissal-Bücher foi uma
valiosa ajuda.
17
Período de Tradução e Organização do Volume
Dispondo de apenas seis meses para a conclusão do Trabalho de Projecto,
propusémos incialmente três traduções de artigos do autor, sendo que estes artigos
deveriam cobrir dimensões complementares da sua obra. No final, sete artigos estavam
traduzidos: dois a partir da língua inglesa (a entrevista conduzida pelo Prof. Dr. José
Bragança de Miranda e Para uma Ontologia dos Média), já que um foi publicado no
site da Interact1, revista online da responsabilidade do CECL, e outro numa revista
inglesa, sendo que não foram ainda incluídos no corpus alemão; cinco a partir da língua
alemã. Acrescem a estes artigos outros três: dois a partir da língua alemã (Code oder
wie sich etwas anders schreiben lässt e Computergrafik: Eine halbtechnische
Einführung – traduzido com a Prof. Dr. Maria Teresa Cruz) e uma entrevista a partir do
inglês (From Discourse Networks to Cultural Mathematics): estes foram traduzidos um
ano antes do mestrado e durante o mesmo, aguardando publicação na Revista de
Comunicação e Linguagens (RCL), do CECL.
Para não exceder o número de páginas estabelecido no Regulamento Interno de
Entrega da componente não lectiva, optámos por colocar em anexo as traduções, assim
como uma proposta de Glossário de Termos (Anexo 1), a ser continuada por futuras
traduções do autor ou de temáticas associadas. O Anexo 2 contém o corpo de traduções
e funciona, deste modo, enquanto exposição dos resultados, estando dividido do
seguinte modo: a primeira parte, Ensaios, subdividida em duas partes, sendo que a
primeira é composta por artigos cuja problemática é relativamente díspar e que dão
conta das linhas de trabalho fundamentais da obra de Kittler e a segunda composta por
três textos cuja linguagem e problemática consiste maioritariamente em objectos
técnicos efectivos, como escrita em código, processos e programas de computação
gráfica e surgimento e desenvolvimento económico, técnico e jurídico de software; a
segunda secção trata a «Introdução às Obras»; finalmente, a terceira compila três
entrevistas a Kittler. O texto «Gramofone, Filme, Typewriter» inclui as imagens
originais; acrescentámos imagens aos textos «Computação Gráfica: uma Introdução
Semi-Técnica» e ao «Prefácio à tradução russa de Média Ópticos [Optische Medien]».
Todas as imagens são desprovidas de direitos de autor e acompanhadas da respectiva
referência.
1 http://interact.com.pt/ .
18
Considerações e Notas sobre a Metodologia de Tradução
Apesar do Trabalho de Projecto não ter por objectivo a problematização
tradução enquanto gesto, existem alguns aspectos que não podem deixar de ser
mencionados.
A tradução não se apresenta como um corpo que apenas fala português.
Contrariamente à tradução literária, na qual o corpo traduzido estabelece uma estratégia
total com a língua traduzida, fugindo raras vezes da língua traduzida para essa primeira
de onde brotou, a nossa tradução é um corpo translúcido que, apesar de poder ser
completamente lido em português, conta com brechas estratégicas para leitores mais
interessados, não cegos à violência da desambiguação que se origina ao verter uma
língua noutra. Acrescentámos por isso, em nota de rodapé e, em casos pontuais, entre
parêntesis rectos, alguns termos alemães e o seu significado literal ou cultural.
Assumimos portanto que as nossas escolhas terminológicas visam sempre uma
estratégia, nunca contudo violando o limite onde o gesto desfigura as palavras –
utilizámos, com a certeza de uma mestria ainda pouco madura, os dois critérios que
sempre foram a maior fragilidade e simultaneamente a maior grandeza das
Geisteswissenschaften, nomeadamente, a sensibilidade e o instinto, filhos mais ou
menos assumidos de uma bibliofagia metódica.
Se utilizamos frequentemente diferentes exemplos para ilustrar um conceito,
como quando dizemos que o papel-trapo (Lumpen) tem uma conexão com o
lumpenproletariado (literalmente proletariado-trapo), é por acreditarmos que a
terminologia estabelece essas afinidades e que, ao mapear o uso de um termo, podemos
localizá-lo melhor no conjunto sígnico que é a língua – daí que se note uma fascinação
perante essas palavras cujos casos mais ilustrativos não poderíamos deixar de incluir,
sob notas de rodapé tão informativas como aquelas que se referem a situações históricas
ou descrições de equipamento tecnológico.
O facto de a nossa especialização não ser tradução implicou um maior cuidado
em todos os passos deste trabalho, com notas que explicam o porquê de certas escolhas
– o nosso propósito também é uma certa dissecação. Como factor decisório pesa sempre
a obra de Kittler.
19
Portanto, equanto trabalho de tradução, tratou-se de assumir o papel de instância
onde se jogou essa conversão. Se as notas de rodapé abundam, tal não ocorre por
vontade de preencher páginas e páginas, mas precisamente para enriquecer a leitura,
independentemente do grau de conhecimento do leitor.
Enquanto processamento técnico, traduzir não pode deixar de significar a
transformação de um bloco de texto noutro, atendendo à preservação da sua estrutura
gramatical, estrutura semântica, universo de referências e, na medida do possível,
musicalidade. Foi também assim que a encarámos: enquanto processo o mais preciso
possível de re-versão. O que não implica que não tenham sido feitas determinadas
opções quando as referidas estruturas encontram, com uma paráfrase mínima ou uma
decomposição etimológica, uma ocasião mais feliz na nossa língua.
Registamos assim cinco notas relativas ao processo concreto de tradução:
1) Quando o artigo original é alemão, não traduzimos, salvo raras excepções, os
termos ingleses; quando o artigo original é inglês, não traduzimos termos
alemães. Se no original existe essa clivagem, acreditamos que ela molda a
experiência de leitura e que deve ser mantida.
2) Para que o texto possa ser lido de uma forma fluída, abstivémo-nos de povoá-lo
com termos originais em parêntesis rectos. Em vez disso, termos problemáticos
ou que enriquecem a experiência dos leitores com conhecimentos de alemão
foram colocados nota de tradução em rodapé, juntamente com outros
esclarecimentos. Os esclarecimentos visam associar um determinado termo a
outros usos na obra de Kittler ou mesmo explicar aquilo a que determinadas
siglas ou expressões se referem, para que os textos, de si difíceis, sejam o mais
acessíveis possível: as referidas notas de tradução são fruto da nossa própria
procura de esclarecimentos sobre objectos tecnológicos ou eventos históricos. A
interromper o mínimo a experiência de leitura estão os números de nota.
3) Os parêntesis rectos imediatamente a seguir à palavra foram excepcionalmente
utilizados para se referir a: conceitos incontronáveis e bem conhecidos (ex:
Geist); instituições alemãs traduzidas (ex: Bundesgerichtshof); áreas do saber
sem tradução directa em português (ex: Medienwissenschaft,
Strukturwissenschaften).
4) Existe em alemão Technik e Technologie. Fizemos traduzir por «técnica» e
«tecnologia». A versão inglesa utiliza tecnology, já que o primeiro termo não
20
existe neste uso, o que consideramos ser muito indicativo da posição do termo
na grelha conceptual anglosaxónica.
5) Foram mantidos termos como layout ou design, quando
aplicados ao campo da informática, já que todos eles ainda têm ocorrência na
língua portuguesa através da adopção directa, enquanto estrangeirismos.
21
Em torno da Ontologia dos Média
Introduzindo as categorias kittlerianas para uma releitura da Cultura
Ein Medium ist ein Medium ist ein Medium
Friedrich Kittler (1985:288)
O computador, esse simulador supremo, veio colocar em evidência todos os
processos de mediação e exige portanto uma ontologia que lhe esteja à altura.
Com a efectivação da possibilidade de uma simulação absoluta, tendo por base
apenas um símbolo e a sua ausência (o número 1 e o 0 que constituem a linguagem
binária), a questão da mediação emerge no seio da cultura como central, sendo a
possibilidade de a pensar no quadro da Ontologia europeia tão fundamental quanto
complexa (Kittler, 2009:23). É que os média, principalmente enquanto mais que meras
metáforas, são um tópico sistematicamente esquecido ou secundarizado da tradição do
pensamento filosófico ocidental – ausência que Kittler faz remontar a Aristóteles
(idem:24). Para fazer das categorias de forma e matéria o cerne onde o pensamento se
joga, a secundarização do processo de constituição, isto é, o esquecimento da sua
produção mediática/medial, foi fundamental nas estratégias de pensamento; os média,
enquanto entre (inzwischen), parecem apresentar-se como aquilo mesmo que impede
uma solidificação ontológica: « O inzwischen é uma forma, talvez ainda demasiado
metafórica, de relação ao de-fora do já-constituído, essa espécie de horizonte
«ontológico» que não pode ser exaurido por nenhuma ontologia filosófica» (Bragança
de Miranda, 1994:91).
Por Ontologia dos Média, essa expressão paradoxal, entende-se portanto a
constituição de um saber que coloque o conceito de média no seu centro (em oposição a
forma ou matéria), para, surpreendentemente, apresentar um ponto da situação daquilo
que é, que tem efectividade, sejam sistemas de pensamento, aparelhos técnicos,
manifestações ditas artísticas: eles emergem num quadro cujo a priori técnico é
sobredeterminante. Exige-se portanto desse saber que permita uma releitura do mundo a
partir dessa grelha de conceitos que, contrariamente aos sistemas de pensamento
22
anteriores, declare expressamente que as suas próprias ferramentas são decalcadas de
uma constelação de dispositivos epocais (e, portanto, contingentes). O caso
contemporâneo regista a coexistência da Máquina Universal de Turing, que anuncia o
fim da mediação (ou seu começo absoluto) com a convergência de todas as simulações
no número e existência de um aparelho capaz de simular a própria physis, tomando
assim, na sua génese, a decisão fundadora de que a natureza enquanto conjunto de
processos não só é simulável, mas completamente descritível em termos formais.
Estabelecer conceitos a partir das propriedades concretas dos objectos técnicos é
a única possibilidade para uma tal analítica das materialidades, o que implica um
conhecimento efectivo dos processos maquínicos. Uma Ontologia dos Média não
distinguirá pensamento ou máquina, porque na máquina está a efectividade de um
pensamento – daí que Kittler tenha explorado domínios como a paginação, compilação,
iluminura e, a partir de 1980, tenha compreendido que, para dizer algo sobre os
computadores a partir de um ponto de vista mais profundo do que o do utilizador em
crescente domesticação, a quem a máquina é vedada por uma bateria crescente de
software, com as suas fileiras de legitimadores teóricos (1993b:225-242), é necessário a
compreensão do seu funcionamento electrónico-matemático, descartado frequentemente
como coisa que estaria abaixo, numa posição subsidiária da teoria :
(…) uma diferença fulcral entre Virilio e eu é a de que eu gosto de escrever apenas sobre coisas
que efectivamente levei a cabo, na prática. Mas, como sabe, Virilio não está sozinho nisto, já que, para
meu desespero, muitos dos teóricos dos média de hoje escrevem extensivamente livros sobre computação
ou sobre a Internet sem nenhum experiência concreta de como estas coisas efectivamente funcionam.
(2006:26).
As consequências do computador para o pensamento ainda estão longe de serem
plenamente assumidas pela teoria. Tomando o pensamento de Kittler por uma dessas
raras excepções, compreende-se que pensar o impacto do computador na cultura dista
claramente das muitas tarefas que os estudos dos média se impuseram nas últimas
décadas, como uma espécie de manta de retalhos sobre a qual se costuram, com o ponto
fraco do pronto a vestir, remendos aparentemente desconexos: convoca-se um pouco de
Literatura, alguma água de café da Filosofia, muita Estética, subscreve-se a ideologia
da Interactividade como uma espécie de conceito transmedial para evitar o tópico do seu
parasitismo em relação a tecnologias concretas e, para fins comerciais, faz-se o apelo
fácil da referência directa ao sexo: a estrutura contemporânea está pronta a conferir
sucesso a essas estratégias, que resultam, na sua maioria, num espalhafato inofensivo.
23
É que o que está em jogo com Turing não é a possibilidade de tudo simular
através de um software que se curva perante as percepções humanas mas sim a remoção
do homem desse médium inédito que congrega em si armazenamento, processamento e
transmissão2: os computadores comunicam entre si. Está por fazer o estudo
desumanizado das crises, isto é, o estudo dos conflitos, progressões e cesuras que os
próprios média engendraram: Wall Street, por exemplo, está longe de funcionar com
mensageiros de carne que negoceiam acções – esses só continuam a existir no celulóide
dos filmes - o mercado financeiro contemporâneo é dotado da insensibilidade
majestática do algoritmo, que só pode ter como universal o número: não há equação que
inclua o homem senão enquanto número, esse que não é de todo susceptível de
comoção:
«I’m losing money by the ton today. Many millions. Betting against the yen.’
‘Isn’t the yen asleep?’
‘Currency markets never close. And the Nikkei runs all day and night now. All the major exchanges.
Seven days a week.’
‘I missed that. I miss a lot. How many millions?’
‘Hundreds of millions’»
Don Delillo (2003:33)
O primeiro desemparelhamento: comunicação e interacção
Ou como aceder ao mundo dos mortos?
As primeiras evidências de escrita são, como é conhecido, inscrições sem superfícies genuínas de
inscrição. Rolos bidimensionais de selos ou carimbos no médium do barro possibilitaram dotar os bens de
endereços dos seus proprietários ou dos seus conteúdos, assim como os escritos lapidares permitiram
dotar as sepulturas do nome dos seus mortos. Como sinais da ausência da fonte da mensagem e, portanto,
através do desemparelhamento de comunicação e interacção, as inscrições abriram – de acordo com o
argumento de Jan Assman - a possibilidade da Literatura.
2 Transmissão essa que assistirá nos próximos anos a um aceleramento inimaginável, já que os sinais
eléctricos emitidos pelos chips já deram lugar à transmissão por impulsos luminosos, no novo chip da
IBM.
Notícia em: http://www.dn.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=2943135&seccao=Tecnologia,
consultado a 1 de Janeiro de 2013.
24
Friedrich Kittler, 19933
A dissociação entre comunicação e interacção ocorre, segundo Kittler, no
momento em que os homens começaram a marcar tanto as pedras que cobriam os
mortos, tornando-as lapidares, como outros objectos, conferindo-lhes marca de
propriedade. Por comunicação entende-se aqui a interacção oral entre dois sujeitos em
presença, essa que o Sócrates platónico considerava a condição de possibilidade do
diálogo filosófico. A interacção será assim o domínio daquilo que convoca uma
presença precisamente através de marcas da sua ausência. Gesto imemorial e fundador,
não deixa contudo de ser um desemparelhador de duas funções outrora reunidas. Ao
marcar uma superfície de inscrição, as marcas remetem para algo nelas ausente, seja o
possuidor ou o morto. Dissocia-se assim comunicação de interacção, esse que é o
princípio de toda a Literatura, princípio que ocorre enquanto desprendimento do corpo
da marca, autonomização da marca em signo, doação de capacidade iterativa:
Un signe écrit, au sens courant de ce mot, c’est donc une marque qui reste, qui ne s’épuise pas dans le
présent de son inscription et qui peut donner lieu à une itération en l’absence et au-delà de la présence du
sujet empiriquement déterminé qui l’a, dans un contexte donné, émise ou produite. C’est par là que,
traditionnellement ou moins, on distingue la «communication écrite» de la «communication parlée».
(Derrida, 1972 :377)4
Convocar uma presença através de uma marca, seja ela um ícone, um símbolo,
uma palavra ou simples grafema, requer do leitor uma capacidade definível como
alucinatória – do latim hallucinantis, particípio presente de hallucinari, enganar-se ou
delirar5 - deduzindo de materialidades como selos, barro, tintas ou projecções luminosas
e, portanto, fantasmáticas: visões, sons, mundos. Separando-se a instância comunicativa
do corpo que a inscreveu, ou seja, a mensagem e conteúdo da fonte, da mão do autor,
pode-se proceder aos artifícios de ilusionista, como, literalmente, dar palavra a animais,
elementos, ao vento, a tempos imemoriais, a corpos putrefactos. No barroco, esse
período de gosto da ilusão que assume o trabalho puro da palavra, são paradoxalmente
3 No original: Die ersten Schriftzeugnisse sind bekanntlich Inschriften ohne genuine Schreibfläche.
Zweidimensionale Abrollungen von Siegeln oder Stempeln in Medium Ton versahen Gütter mit Adressen
ihres Besitzers oder ihes Inhalts. Lapidarinschriften versahen Gräber mit dem Namen ihres Toten. Als
Signale in Abwesenheit der Narichtenquelle, also durch Entkopplung von Kommunikation und
Interaktion, eröffneten Inschriften – nach dem Argument Jan Assmanns – die prinzipielle Möglichkeit von
Literatur. (Kittler, Friedrich (1993): «Geschichte der Kommunikationsmedien.» In: Raum und Verfahren.
Hrsg. von Jörg Huber und Alois Müller. Basel: Stroemfeld/Roter Stern, pp.172-173) 4 DERRIDA, Jacques, Marges de la Philosophie, Les Éditions de Minuit, Paris, 1972. 5 Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa,
realização Academia das Ciências e da Fundação Calouste Gulbenkian, Edição da Academia das Ciências
de Lisboa e Editorial Verbo, Braga, 2001.
25
colocados em evidência os seus mecanismos ilusórios, como demonstram as inscrições
tumulares redigidas por Martin Opitz6 (1597-1639):
GRABINSCHRIFTEN
EINES HUNDES
Die Diebe lief ich an, den Buhlern schwieg ich stille,
So ward vollbracht des Herrn und auch der Frauen Wille.
EINES KOCHS
Wie wird die Welt doch überall verkehret.
Hier hat ein Koch im Grabe seine Ruh,
Der mancherlei von Speisen richtet’zu.
Jetzt haben ihn die Würmer roh verzehret.
EPITÁFIOS
DE UM CÃO
Aos ladrões eu ladrava, calava-me aos amantes,
E assim servia de dono e dona, em duas frentes.
DE UM COZINHEIRO
Como o mundo em geral anda sempre às avessas!
Aqui um cozinheiro seu descanso encontrou,
6 Presente na antologia poética O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, Selecção, tradução e
prefácio de João Barrento, Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 2002, pp.58-59
26
Que em vida muitos e bons pratos cozinhou.
Comem-no agora os vermes – cru e sem travessa.
Falar no truque era sempre demasiado perigoso, já que minava os produtos do
gesto de ilusão: a cegueira fundamental do suporte é condição necessária para
apresentar os frutos desse suporte como algo mais que meras contingências isto é, no
limite, nada mais senão efeitos de médium. Mas apenas os artistas sempre souberam que
do belo ou do bem só se acede às belas mulheres ou belos homens dos pigmentos
informados: «Não há de todo o ‘belo em si’ enquanto ideia; existem (como Hípias de
Élide declarou) apenas ‘belas raparigas’»(Kittler, 2011:10)7. Para se crer no Belo ou no
Bem é fundamental proceder a um gesto de encadeamento voluntário, esquecer (ou pelo
menos submeter) a tinta e outras inscrições que os constituíram e emparelharam,
exclusivamente e apenas nessas materialidades que, para contornar a precariedade de
uma tensão física, o sopro, constituíram uma parafernália de linguagens, de modo a
enclausurar o melhor possível a experiência naquele lugar localizável – a linguagem -
fora do qual até o termo sentido se dissolve, como provam as linguagens (seria mais
lógico chamar-lhes matemáticas) computacionais. Mas a indescernibilidade de um
lugar, a sua impossível localização, não corresponde à propriedade de não existência –
quanto muito, ao não semiotizável.
Não é apenas porque a escrita foi inventada para a inscrição do mito que a
filosofia platónica tem por tarefa dispensá-la – é precisamente porque ela pressupôs,
paradoxalmente a partir dessas materialidades de inscrição, uma superfície de escrita
interna passível de ser convocada e lida, cuja mensagem é imutável e universal (até os
escravos a possuem): a anamnese só pode vir de dentro porque as máquinas teriam sido
colocadas numa posição mais profundamente enraizada no corpo que as próprias
entranhas do chamado homem, máquinas de cera – o filósofo é o que coloca em
movimento, é essa máquina de parir ininterruptamente mensagens inatas, de fazer trazer
à luz, re-luzindo, a Verdade; o não saber do filósofo é precisamente a impossibilidade
da máquina parar, já que um saber definitivo tornaria a máquina ou obsoleta ou
masturbatória à maneira de Duchamp. Quando Kittler afirma que «[v]on den Leuten
7 7 Kittler, Friedrich (1999), Optische Medien – Berliner Vorlesung, Merve Verlag, Berlin, 2011, p.10.
27
gibt es immer nur das, was Medien speichern und weitergeben können» (1985:5), está
precisamente a apontar que é apenas existente do homem aquilo em que o processo
mnemotécnico ocorre – mesmo de Sócrates, em última análise, apenas são existentes os
escritos platónicos, já que foram condição para que todas as redes discursivas
[Aufschreibesystem] as incluissem como parte do seu corpo aberto. É portanto existente
apenas o que foi mediado.
Se o final do século XVIII e, principalmente, o início do século XX, assistiram à
divisão da percepção, destronando o monopólio do livro sobre os corpos, a segunda
metade do século XX apresenta-se como o período de resolução perceptiva final, com a
reconvergência de todas as mediações, incluindo todas essas que assujeitavam os
homens à barca de Caronte: as epígrafes, a literatura, a gramofonia, a fotografia. O
arquivo alastra-se assim ao mais comum dos materiais sobre a terra, o silício, que,
apesar de conter os seus espaços de armazenamento, não é consultável pelo simples
facto de que não se expressa numa escrita que possamos ler com ferramentas geradas
em sistemas de pensamento determinados por técnicas de média passadas. Mesmo que
«a tarefa do arquivo consista em representar a vida fora do arquivo» (Groys, 2000:7)8,
os poderes que permeiam essa vida no quotidiano tornaram-se não só, do ponto de vista
da percepção humana, excessivamente microscópicos, como numéricos e
completamente vedados.
É que o registo das decisões que efectivamente contam sairam há muito das
bibliotecas, pinacotecas, cinematecas, arquivos de som. Quando as mediações, isto é, os
definidores de realidade, consistiam em sons sem corpo, imagens sem carne ou escritas
sem mão, os seus produtos ainda eram apreensíveis, mas o arquivo assistia a um
alastramento a outros suportes para além do livro ou da tela pintada. A época da
dissociação das percepções outrora literária é simultaneamente uma época de expansão
do arquivo à fita de celulóide, à projecção luminosa, aos relevos tradutíveis em som, à
dactilografia. O próprio conceito de arquivo enquanto «uma máquina de produção de
memórias – uma máquina, que produz histórias a partir do não colectado da
efectividade»9 (idem, 2000:9) só é formulável enquanto hipermáquina quando a sua
expansão o força a incluir essas mesmas máquinas processadoras de representações: o
8 No original: «(…) denn die Aufgabe des Archivs besteht darin, das Leben auβerhalb des Archivs zu
repräsentieren.» 9 «Das Archive ist eine Maschine zur Produktion von Erinnerungen – eine Maschine, die aus dem
Material der ungesammelten Wirklichkeit Geschichte fabriziert.»
28
gramofone, a máquina de escrever, o cinematógrafo – elas que denunciaram o livro
como uma máquina não-eléctrica, nunca o
inverso, já que são a reificação de um
trabalho de percepção que começou com as
palavras: sem a erotização do grafema, que
Novalis reconhecia como criadora de
mundos palpáveis, nunca seria possível
extrair máquinas que representassem
directamente o aspecto visual ou auditivo da
experiência alucinatória. É também o
arquivo que permite a reificação das figuras
mais marcantes do século XX: sejam elas o
proletário10
ou o Führer.O século XX assiste
à «era dos média» com o desmantelamento
do monopólio do livro: «O monopólio do
livro cinde-se e das suas ruínas surgem os
sistemas de armazenamento, no plural»11
. As
tecnologias do final do século XIX/século
XX, isto é, o filme, gramofone e a máquina
de escrever, introduziram um primeiro golpe
na letra caligrafada ou impressa, já que
dissociaram as funções leitor/ouvinte (gramofone), escritor/processador (máquina de
escrever), temporalidade da escrita/temporalidade da leitura (cinema). A palavra estava
pronta para a sua dissecação: quando a máquina da letra encontra, finalmente,
concorrência, existe algo nela que deixa de ser hegemónico: o som já não é apenas (nem
aparentemente mais fidedignamente) audível com a hipersensualização da letra, a
imagem já não se constitui apenas (nem aparentemente mais fidedignamente) na
hipersensualização da letra, a produção textual já não é imbricada numa caligrafia que
anuncia uma profundidade desmesurada da mão que a produziu – agora, é a
maquinalidade do toque, a sua brutalidade e neutralidade, que enformará o discurso.
10 «So konnte (…) das Proletariat bei Marx gerade deshalb zum Repräsentanten der wirklichen
Menschheit werden, weil es von den kulturellen Archiven bis dahin übersehen würde.» Groys (2000:88-
91) 11 No original: »11«Das Buchmonopol zerbricht und gibt auf seinen Trümmern Speichersysteme im Plural
frei.»
Niki de Saint Phalle, Tirage, 1961, Tate
Museum
29
Com a maquinalidade da produção, entra em cena o compromisso entre os domínios da
engenharia e política. Artes reflectem novas práticas e aparelhos: procedem a uma
reapropriação dos frutos das guerra, parecendo que esta se torna uma norma a partir da
segunda metade do século XX. Já a máquina de escrever tinha a sua génese num
excesso de matérias primas que deixaram de ser necessárias pelo fim da Guerra Civil
Americana; mesmo hoje em dia, os materiais dos novos instrumentos musicais, como os
pedais de percussão, estão em dívida para com os desenvolvimentos bélicos; o mesmo
se passa com o equipamento audiovisual, com o sintetizador que deveio musical e todos
o desenvolvimento electrónicos da música, o GPS e, por mais que o interface tente
encobrir, a internet. Durante o século XX as artes apropriam-se das tecnologias militares
de uma forma sistemática; a linguagem quotidiana e artística também, ou não fosse O.K.
zero killed; blockbuster, um termo usado pela Royal Air Force durante a Segunda
Guerra Mundial, tornado um «filme de sucesso»; o processo de filmar e disparar a
câmara ou a arma, dois shootings, o primeiro reapropriando-se do último; a equipa ou
crew de filmagem ou de guerra; os projectores de filme ou mísseis. O motivo bélico
não se limita a surgir como uma espécie de enformador de termos artísticos e fonte de
tecnologias poéticas. Tomemos como exemplo a banda alemã Kraftwerk, pioneira da
música electrónica, que não só fazia uso de sintetizador, software de voz e máquinas de
percussão, mas também explorou as novas problemáticas que os despojos de Guerra
lançavam no espírito do tempo– desde a própria força produtiva, nas novíssimas
centrais energéticas [ambos referidos em alemão pelo termo Kraftwerk] até a esse
mundo dos computadores (Computerwelt (1981)), comboios de alta velocidade (Trans-
30
Europe Express (1977)), radioactividade (Radioaktivität (1975)), a transformação de
lugares como cafés (Electric Café (1986) - que futuro para esses palcos da Revolução?),
revelação da máquina no homem (Die Mensch-Maschine (1978)) ou digitalização da
realidade, acompanhando certeiramente o emergir dessas questões incontornáveis. Não
é por acaso que o Volksempfänger VE301, esse receptor de rádio a que Kittler alude
com frequência (1986:9), fruto do acordo do ministro da propaganda Joseph Goebbels e
o engenheiro Otto Griessing, faz capa do álbum Radioaktivität – é que tanto a
actividade radiofónica como a radioactiva foram elas próprias fruto de acordos tecno-
políticos que determinaram a experiência da Segunda Guerra Mundial, traduzindo-se,
por exemplo, no acesso de cada família alemã a esse mundo de vozes bélicas relatando
uma submissão nacional a uma voz maior.
Também as formas de saber deram conta da era dos média e do seu fim. A
Psicanálise surge precisamente em concorrência com um dos média do final de século, o
gramofone, ou não fosse a sua tarefa a retradução não das palavras, mas dos sons que
até então eram tidos como irrelevantes, para apontar que é precisamente nesse resto
irrepresentável do balbuciar que se encontra a verdade do discurso – balbuciares então
pela primeira vez matematicamente registados e iteráveis. Assim, a sua primeira tarefa
não pode ser senão transformar sons em palavras, isto é, os registos de gramofone em
texto – daí a negligência de Freud em relação ao cinema. À semelhança de todas os
outros domínios do saber, fica por saber qual o seu futuro na contemporaneidade:
«Dans une mesure à déterminer, l’institution et le projet théorique de la psychanalyse, ses représentations
topiques et économiques de l'inconscient appartiennent à un moment dans l’histoire de la technique, et
Capas da versão alemã (esq.) e inglesa (dir.) do álbum Radioaktivität (1975)
31
d’abord aux dispositifs ou aux rythmes de ce qu’on appelle confusément la «communication». Quel
avenir pour la psychanalyse à l’ère du courrier électronique, de la carte téléphonique, des multimédia et
du CDrom ?» (Derrida, 1995:2)12
Kittler vai mais longe, defendendo que a psicanálise freudiana se tornou obsoleta
no momento em que Heidegger inclui o quotidiano no seio da Filosofia:
In Sein und Zeit finden die empirischen Kulturwissenschaften des neunzehnten Jahrhunderts, die ja das
Alltägliche als solches entdeckten, nachträglich doch noch zu ihrer Philosophie. Nicht anders als Mauss,
der ja Körpertechniken die „Sicherheit einsatzbereiter Bewegungen“ feiert, braucht Heidegger hinter den
alltäglichen Abläufen keine unbewuβten psychoanalytischen Geheimnisse. Mit der Philosophie des
Bewuβtseins hat auch die seiner Gegensätze ausgespielt. Das Vorbewuβte, Unbewuβte und Unterbewuβte
spielen seit Heidegger keine Rolle mehr. (Kittler, 2001:230)
Assim sendo, o «retorno a Freud» que Lacan empreende não é mais nem menos
que uma releitura da Psicanálise numa época medial diferente, uma reactualização –
Lacan já concorre não apenas com o
som, mas com a imagem-movimento: a
sua consciência aguda da importância
dos média manifesta-se desde logo nos
títulos que conferiu às suas obras, que
aludem literalmente àquilo que são: os
seus registos radiofónicos são
Radiophonie, os seus escritos Écrits, o
seu seminário Le Séminaire.
Contrariamente ao século
passado, em que as actas e planos de
guerra ainda permitiam um diagnóstico
da situação, a contemporaneidade assiste
a uma impossibilidade historiográfica.
Que «[a] situação de hoje é mais
negra»13
(Kittler, 1986:3) é o único
passo que se pode prognosticar com as
grelhas de análise passadas, já que as mãos do analista não podem dar conta de uma
12 DERRIDA, Jacques, Mal d’Archive – Une impression freudienne, Editora Galilée, Paris. 13 No original: «Die Lage von heute is dunkler.»
Jean Tinguely - Dissecting Machine – 1965 –
Montagem motorizada, partes de manequins
com ferro e metal forjado. Fotografia:
Hickey-Robertson, Houston, The Menil
Collection.
32
máquina que não é feita à sua medida: « É verdade que, quando as emoções humanas
estão implicadas, os cientistas ainda deixarão muito a desejar de uma ou outra forma,
mas provavelmente os computadores não são ferramentas inventadas pela humanidade
para tornar as nossas vidas mais fáceis mas sim ferramentas inventadas pela natureza
para se compreender a si própria.» (Kittler, 200614
), ou como exprimia Bouveresse em
relação à máquina : «Par opposition au vivant, qui est un but, le mécanisme est ce qui
tend à un but défini. D’où l’idée qu’au stade dernier de leur perfection, même si nous
ne savons plus exactement ce que nous faisons et où nous allons, les machines, elles, le
sauront toujours». (Bouveresse, 1971 :461)15
.
Retornando à coincidência grega entre número e letra, após a convergência das
tecnologias filhas da Segunda Guerra Mundial, a situação de hoje requer uma análise
que não só inclua esses novos e últimos suportes (o silício onde a inscrição dos
computadores é feita), mas que faça deles a peça de leitura fundamental.
O computador é o médium do fim da era dos média porque contém em si a
possibilidade de simulação de todos os que o antecederam. Ao trabalhar com um
símbolo e a sua ausência, 0 e 1, reduz toda a representação a uma linguagem
verdadeiramente universal: o simbólico consuma-se, o suporte do volume cessa o seu
domínio. O volume escrito já havia, no final dos anos sessenta, cessado o seu
monopólio. Os protagonistas da destituição do livro como médium régio foram
Precisamente o Gramofone, Filme e a Máquina de Escrever, onde os nomes dos seus
inventores soam como personagens incontornáveis à reconfiguração sucessiva e muitas
vezes fracturante da efectividade [Wirklichkeit], tornando absolutamente necessária a
destituição dos Filósofos como únicos protagonistas de uma História do Ser (uma das
poucas lacunas que Kittler aponta já a Heidegger): nas cesuras contemporâneas
encontram-se datas precisas e protagonistas com vocações tão variadas como filosofia,
engenharia, matemática, poesia.
É certo que o processo de constituição de uma sensibilidade capaz de produzir
temporalidades diacrónicas, imagens revestidas de cores, intensidades, texturas e
cheiros e vozes que sussuravam ou gritavam em desespero, sons de locomotivas em
14 Entrevista com Bragança de Miranda, disponível em: http://interact.com.pt/07/entrevista-a-friedrich-
kittler/. No original: «It’s true that, when human emotions are concerned, scientists will still fall short of
them in one way or another, but probably computers are not tools invented by mankind to make our life
easier but rather tools invented by nature to understand herself.» 15 BOUVERESSE, Jacques, La Parole Malheureuse – De l’Alchimie Linguistique à la Grammaire
Philosophique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1971.
33
fúria ou esplendores na relva, estava a ser [re]trabalhado (até ao seu expoente com
Goethe) nesse médium de uma letra hipersensualizada, hipersensível, prótese nervosa e,
portanto, parte de nós mesmos. Kittler não defende que um médium novo ultrapassa o
anterior, mas antes que remete o anterior para outras funções (o exemplo da rádio com a
emergência da televisão é óbio mas, se virmos bem – video killed the radio star e não
the radio itself) ou, como Derrida aponta, «Il y a, il y aura donc, comme toujours,
coexistence et survivance structurelle de modèles passés au moment où la genèse fera
surgir des nouvelles possibilités» (2001:29). No caso do livro, fica a promessa da
depuração de um princípio a partir das bibliografias anteriores, uma espécie de livro a
vir que retome as páginas compiladas e inclua a situação mediática hodierna, na medida
em que a expressão a vir articula :
Que le livre comme tel a – ou n’a pas – d’avenir, au moment où l’incorporation électronique et
virtualisante, l’écran et le clavier, la transmission télématique, la composition numérique semblent
déloger ou suppléer le codex (ce cahier de pages superposées et reliées, la forme actuelle de ce que nous
appelons couramment un livre tel qu’on peut l’ouvrir, le poser sur une table, ou le tenir entre ses mains),
codex qui avait lui-même supplanté le volume, le volumen, le rouleau.
Qu’on attend ou espère un autre livre, un livre à venir qui transfigurera ou même sauvera le livre du
naufrage en cous (idem :20-21)
Kittler prefere aqui chamar a atenção para o facto de que, mesmo que «hoje em
dia ninguém escreva» (1993:227), pode-se continuar a fazê-lo: «Trabalhando a zona
limítrofe, os média obsoletos também serão sensíveis o suficiente para registarem os
símbolos e indícios de uma situação»16
(1986:4).
A questão central será portanto extrair as consequências da invenção do
computador. As perguntas são, de modo semelhante ao que foi feito no século passado
em relação à fotografia ou cinema, quais as consequências da técnica não só para a
experiência mas, antes de mais, averiguar as cesuras e continuidades possíveis que a
realização da representação digital do mundo introduziu nos sistemas de pensamento
contemporâneos. No domínio das artes, existem, desde o início do século, sintomas de
que este entendimento não é evidente: «Der Techniker weiβ nicht recht, was der
Künstler mindestens braucht, der Künstler nicht, was er vom Techniker bestenfalls
erwarten kann.» [«O técnico não sabe bem aquilo que o artista no mínimo precisa, o
16 No original: «Grenzbereich betrieben, werden auch veraltete Medien empfindlich genug, um die
Zeichen und Indizien einer Lage zu registrieren»
34
artista não sabe o que pode esperar, na melhor das hipóteses, do técnico»] (Hans
Erdmann: Zwischen Technik und Ästhetik (1929)17
A obra de Kittler aponta para uma mudança radical que simultaneamente
aprofunda a particularidade grega, pilar das manifestações ocidentais: a coincidência de
um alfabeto fonético, portanto vocal/com vogais [que em alemão coincidem no termo
vokal], com um sistema numérico. A premissa fundamental da Medienwissenschaft
enquanto grelha de leitura necessariamente totalizante, isto é, uma efectiva Ontologia
dos Média, assume-se como a mais brutalmente material, no próprio limite daquilo que
a teoria é capaz: mais do que uma fenomenologia da percepção, é uma fenomenologia
da mediação ou, em termos tautológicos, uma fenomenologia da fenomenologia, já que
estabelece como a priori, não o que as coisas são, mas como é que as coisas se
constituem nas condições técnicas e (sublinhe-se) tecnológicas do aparecer – o
dualismo matéria/forma cai para colocar como problema central o médium em si. Não
se confunda este estudo com uma teoria estética, já que os média estão sempre «para
além» ou «fora» da estética, visto que «definem aquilo que é efectivamente» (Kittler,
1986:3,10). Em oposição à boa maneira da Filosofia até ao século XIX, que
historicamente submeteu o hardware ao software (as materialidades ao espírito), esta
abordagem inverte essa pirâmide, salvaguardando que o espírito é que foi escravo dos
suportes18
. Por exemplo: sempre que alude ao império romano, Kittler fá-lo coincidir
com a própria rede de comunicações – não se trata apenas da questão de ter sido uma
das condições de possibilidade do império, ela está sim, de tal ponto imbrincada na
cultura, experiência e no exercício do poder que ela é o império, ou seja, a condição de
17 Hans Erdmann, «Zwischen Technik und Ästhethik, Angleichung der Forderungen na die
Möglichkeiten»in LÖFFER, Petra e KÜMMEL, Albert (Eds.), Medientheorie 1888-1933, Editora
Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2002, pp.338-350. Erdmann foi o compositor de várias bandas sonoras de
filmes incontornáveis como Nosferatu (1922) ou O Testamento do Dr.Mabuse (1933) 18 O computador coloca este facto em evidência – os programas de software são meros escravos do
hardware, esse sim decidindo sobre a sua possibilidade – daí que os interfaces se ocupem cada vez mais
de iludir o utilizador com um falso conhecimento da máquina – ela, que nos parece tão presente e
fabulosamente complexa, continua a operar, como na sua génese, apenas com um símbolo e a sua
ausência, 0 e 1. Não é por acaso que a figura do hacker entra triunfalmente no imaginário colectivo:
sendo o único que domina o computador nas suas linguagens mais básicas, é simultaneamente o único
capaz de perturbar efectivamente o poder que corre nos silícios dos computadores: desde directrizes
financeiras, controlo de satélites, mecanismos reguladores de transportes até aos mais temidos
mecanismos de guerra. É por isso fundamental consagrar-lhe uma posição social desejável que o impeça
de fazer um uso indesejado do seu conhecimento: surgem os génios criadores de redes sociais igualmente
geniais, surgem os manipuladores de software enquanto milionários filantropos, novos bastiões da moral
e incarnações do sucesso – se o seu sucesso derivar da privatização de conhecimento criado por instâncias
públicas (GPS, ligação de máquinas por satélite, etc…) melhor, já que esse conhecimento é assim ainda
mais vedado. Sobre o carácter politicamente inofensivo do software cf. Kittler, Friedrich (1993), Es gibt
kein Software, cuja tradução apresentamos em anexo neste trabalho.
35
legibilidade desse momento histórico. O último esforço de Kittler foi precisamente
empreender um olhar sobre o Ocidente a partir da evolução historial da música e
matemática, guiando-se pelas concepções de afectividade ocidental – uma tentativa de
dar conta dos grandes sistemas de inscrição [Aufschreibesysteme] do ocidente a partir
das suas materialidades, lirismo e afecções (Começando na época grega, com Aphrodite
e Eros – os únicos volumes que concluiu – passando pelo Império Romano, com Sexus
e Virginitas, progredindo para Minne, Liebe e Sex, para terminar nos dias de hoje, a Era
de Turing [Turingzeit] (Kittler, 2006, 2009).
Kittler também formaliza, no final da sua vida, uma caixa de ferramentas
conceptuais para esta promessa de domínio de saber (2009:26-28): armazenamento,
processamento e transmissão. Apenas uma época em que um média conseguiu fazer
confluir em si essas três funções, apenas aí é que pode surgir um pensamento que,
retroactivamente, compreenda quais os emparelhamentos e desemparelhamentos dessas
funções na historialidade dos suportes – essa que determinou as epistemes das épocas.
Esta análise historial encontra em Kittler uma metodologia recorrente: a da dissecação
de funções que são ora emparelhadas ora desemparelhadas nos objectos. A escrita,
enquanto médium no sentido metafórico, emparelha diferentes funções consoante os
suportes, as suas materialidades: ao nível do armazenamento (a experiência de leitura e
as suas concretudes diferem radicalmente do rolo de papiro para o códex); ao nível da
transmissão (cuja configuração varia consoante a portabilidade do médium – as
pinturas rupestres eram apenas transmissíveis aos que até elas se deslocassem; a
invenção da fotografia introduziu a disseminação das imagens numa escala global)
(Benjamin (or.1935)1974:431-471); ao nível de processamento (quando está em conta
algoritmos de processamento a situação é radicalmente diferente das leituras que
pressupunham a capacidade de processamento do «chamado homem»). A especificidade
das funções, possível apenas por causa dos seus suportes – lembremo-nos que «não
existe software» - determina o espaço e o tempo da comunicação ou interacção.
O trabalho de Kittler apresenta-se então como um conjunto de tentativas que
visam recentrar o conceito de média, retirando-o da sua posição marginal do
pensamento, transfigurando-o. À semelhança do que faz Derrida, Kittler aponta a sua
estratégia para a inclusão daquilo sobre o qual os filósofos pouco se pronunciaram, isto
é, o suporte e o seu papel decisório na configuração do próprio conceito. A cegueira em
relação aos suportes, que Kittler aponta inclusivamente a Michel Foucault, funciona
36
como sintoma dos sistemas de pensamento: aspecto de uma cultura que o secundarizou
em prol de uma pretensão de intemporalidade das premissas ou metodologias:
Também a escrita, antes de recair nas bibliotecas, é um médium de informação cuja tecnologia o
Arqueólogo [Foucault] simplesmente se esqueceu. Por isso a sua análise histórica detém-se
imediatamente naquele ponto temporal no qual outros média e outros correios minaram completamente as
livrarias. Para o arquivo sonoro ou as pilhas de bobines de cinema, a análise discursiva não é competente.
(1986:22)
Se Kittler começa Gramophon, Film, Typewriter com a frase «Medien
bestimmen unsere Lage, die (trotzdem oder deshalb) eine Beschreibung verdient», a
intenção deste «apesar disso ou por isso» é clara: se somos determinados pelos média,
não existe um «fora» a partir do qual pudéssemos proceder a uma análise desimplicada
– o facto de os média nos configurarem implica-nos desde logo, mesmo para além da
simples transmissão através do médium da escrita compilada em volume a que Kittler se
propõe – somos/estamos sempre implicados em mediações técnicas, para além do lugar
comum do estar em relação, que tem, num certo discurso das ciências sociais e
humanas, encoberto o domínio apriorístico das condições técnicas, com tentativas de
reinsuflar o espírito [Geist] onde ele nunca esteve senão enquanto efeito mediático –
entenda-se, nos corpos dos leitores (Kittler, 1980). O espírito [Geist] é ele próprio um
produto localizável numa época com uma materialidade de domínio incontestável:
aqueles séculos que distavam da invenção de Gutenberg prepararam esse momento
nevrálgico em que todo o conhecimento tinha sido submetido ao regime sígnico e
materialidade do livro, com as suas páginas, índices e outros elementos paratextuais,
que o haviam consagrado como médium régio entre os média. As folhas de papel
compiladas eram precisamente o sistema de inscrição [Aufschreibesystem] onde o poder
deixava os vestígios da sua passagem; na correspondência epistolar jogavam-se destinos
de nações inteiras, construíam-se e destruíam-se reputações e subjectividades, nas cartas
existia pólvora, as ligações não podiam pois ser senão perigosas, já que o regime era o
do monopólio da folha compilada, do volume caligrafado para posterior impressão. A
interpretação kittleriana das formas de pensamento chega à conclusão inevitável que as
ciências humanas, desde Vico, foram dominadas por um pensamento filosófico cujos
intervenientes cumprem essencialmente a função de processador de texto impresso, isto
é, redução de um corpo bibliográfico noutro, a tão almejada Enciclopédia Filosófica que
sistematizasse esse papel impresso que durante o século XIX atingiu o seu expoente
máximo de tradução do mundo (e consequente começo da queda). Sendo a cultura da
37
modernidade alicerçada no suporte de papel – já que as redes discursivas/sistemas de
inscrição do século XVII ao XIX se manifestam essencialmente numa escrita manual e,
posteriormente tipográfica, configurando a conhecida Galáxia de Gutenberg – os
pensadores dessa cultura podiam eficazmente dar conta da actualidade através do
processamento exclusivo de informação textual da bibliografia. Kittler utiliza a
expressão «apesar disso ou por isso» precisamente para assumir que a sua análise está
sujeita, ela própria, às condições técnicas e tecnológicas, da época em que a sua letra se
faz ler. O gesto de começar um livro lembrando que se trata de um volume compilado
não é de todo típico num pensador que, cego à sua metodologia fundamentalmente
bibliográfica, teria o seu óbito marcado precisamente na mesma data em que o livro não
condensar em si o espírito de um tempo.
Tudo ocorre em mediação, da visão ao pensamento, do toque à audição até ao
palato: as metáforas para o que não foi tradicionalmente considerado físico sempre
disseram apenas que o eram –conceito (em alemão Begriff, o Apreendido, o Prensado),
imaginação (em alemão Vorstellung, literalmente estabelecer-se em frente). Esses
gestos delineados e metaforizados a partir do puramente físico dotaram a máquina da
linguagem da capacidade de aludir a ideias como Belo, Bem ou Mãe que, por não serem
materiais, estão exclusivamente cingidas às tensionalidades da engrenagem: o universal
e o infinito não são localizáveis senão enquanto inscrição, seja ela no papel, na
projecção luminosa – portanto inexistentes, não efectivos; não menos presentes por
causa disso, sob o signo da virtualidade. O pensamento essencialista é portanto forçado
a considerar a linguagem, que faz confundir com a língua, não como mera máquina de
produção de essências, no meio de outras máquinas, mas sim marcá-la como máquina
primeira – não é essa a maldição platónica a que os sofistas não sucumbiram? – de
modo a que, na cultura literária, como não podia deixar de ser Im Anfang war das Wort
(mesmo que ἀρχή seja muito mais que princípio [Anfang] e λόγος muito mais que
palavra [Wort]): para a linguagem operar, não pode ser senão cega às suas
materialidades. O problema é que sempre foi uma máquina falível para muitos e das
suas falhas estão completamente cientes para os poetas: prometer que se estará, como
Werther, perante «o olhar infinito num abraço eterno» não significa senão dizer que a
inscrição onde esse abraço se inscreve é permanentemente reinvocável, iterável – a
eternidade é coisa de livros ou como dizia Antero de Quental- «No meio da impotência
38
dos sistemas dos filósofos e das religiões dos teólogos, a imortalidade aparece, como
uma aurora infinita numa pequenina gota de água, numa lágrima de mulher!» (Carta à
Redacção do Átila, 1864) – isto é, na literatura, essa que produzia tais efeitos
fisiológicos nas suas leitoras.
39
Bibliografia e Referências
O Cardo e a Rosa, Poesia do Barroco Alemão, Selecção, tradução e prefácio de João
Barrento, Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 2002.
BENJAMIN, Walter, Gesammelte Schriften, volume I-2, Editora Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1974.
BRAGANÇA DE MIRANDA, J.A., Analítica da Actualidade, Editora Vega, Lisboa,
1994.
BOUVERESSE, Jacques, La Parole Malheureuse – De l’Alchimie Linguistique à la
Grammaire Philosophique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1971.
DELILLO, DON, Cosmopolis, Editora Scribner, Nova Iorque, 2003.
DERRIDA, Jacques, Mal d’Archive – Une impression freudienne, Editora Galilée,
Paris, 1995.
DERRIDA, Jacques, Marges de la Philosophie, Les Éditions de Minuit, Paris, 1972.
DERRIDA, Jacques, Papier Machine, Edições Galilée, Paris, 2001.
GROYS, Boris, Über das Neue. Versuch einer Kulturökonomie Editora Hansen,
Munique/Viena 2004.
HEIDEGGER, Martin, Sein und Zeit (or.1927), 17ª edição, Editora Max Niemeyer,
Tübingen, 1993.
KITTLER, Friedrich, Aufschreibesysteme 1800/1900, Editora Wilhelm Fink, Munique,
1985.
KITTLER, Friedrich (Ed.), Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften,
Editora Ferdinand Schöningh, Munique, 1980.
KITTLER, Friedrich, Gramophon, Film, Typewriter, Editora Brinkmann & Bose,
Berlin, 1986.
KITTLER, Friedrich «Geschichte der Kommunikationsmedien.» In: Raum und
Verfahren. Hrsg. von Jörg Huber und Alois Müller. Basel: Stroemfeld/Roter Stern,
1993a, pp. 169-188.
KITTLER, Friedrich, «Es gibt keine Software» in KITTLER, Friedrich, Draculas
Vermächtnis – Technische Schriften, Edição Reclam Verlag Leipzg, 1993b, pp. 225-242
40
KITTLER, Friedrich, Eine Kulturgeschichte der Kulturwissenschaft, Editora Wilhelm
Fink, Munique, 2001.
KITTLER, Friedrich, «Von Staaten und ihren Terroristen»Leitura apresentada em 2002
no contexto das «Mosse-Lectures», na qual participaram também Étinenne Balibar e
Martin van Creveld, na Humboldt-Universität zu Berlin, Faculdade de Filosofia,
Instituto de Literatura Alemã, financiadas pela Hilde Mosse Foundation, de Nova
Iorque.
KITTLER, Friedrich: Musik und Mathematik I. Hellas 1: Aphrodite, Editora Wilhelm
Fink, Paderborn, 2006.
KITTLER, Friedrich: Musik und Mathematik I. Hellas 2: Eros, Editora Wilhelm Fink,
Paderborn, 2009.
KITTLER, Friedrich (1999), Optische Medien – Berliner Vorlesung, Merve Verlag,
Berlin, 2011.
LACAN, Jacques (1966), Écrits, dois volumes, éditions du Seuil, Paris, 1966.
LACAN, Jacques, Le Séminaire, éditions du Seuil, Paris, 1978.
LÖFFER, Petra e KÜMMEL, Albert (Eds.), Medientheorie 1888-1933, Editora
Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2002
NUNES, Raquel, Geometria Fractal e Aplicações, Tese para a obtenção do grau de
Mestrae em Ensino da Matemática, Departamento de Matemática Pura da Faculdade de
Ciências da Universidade do Porto, Porto, 2006. Disponível em
http://www.fc.up.pt/pessoas/jfalves/Teses/Raquel.pdf a 1 de Dezembro de 2012.
QUENTAL, ANTERO, Cartas, intodução e org. de Ana Maria Martins, Universidade
dos Açores, Ponta Delgada, 1989.
41
ANEXO I
GLOSSÁRIO DE TRADUÇÃO
42
43
GLOSSÁRIO DE TRADUÇÃO
TERMOS REFERENTES A ELECTRÓNICA, COMPUTAÇÃO, MECÂNICA
Abtastung – captação (quando a tecnologia que a ela procede é analógia) ou
digitalização (quando Kittler se refere a um processo decorrente de operações
algorítmicas, de dígitos).
Adresse (de); Adresses (en) – endereços: no contexto computacional, o local para onde
as informa.
Apparate – aparelhos.
Blaupause – esquisso.
Dateinamen (de); File names (en) – nomes de entrada.
Datei (de); Data (en) – informação (no sentido estrito de dados de entrada num sistema
como, por exemplo, o computacional).
Dichtung – poesia ou produção poética, já que, no sentido alemão, pode abranger a
prosa.
Elektronenröhren – fusível.
Fonographieren – fonografar.
Höhere Programmiersprache – linguagens de programação superiores.
Hochsprache – no sentido informático, traduzido como linguagens superiores, já que
criam níveis e, portanto, altura em relação à linguagem computacional fundamental – a
linguagem binária.
Kette – cadeia (encadeamento).
Kommandozeile – linha de comando.
Laden (de); Load (en); – carregamento; carregar (informações computacionais).
Maschinenschreiben – dactilografia; caso seja utilizado num sentido metafórico ou
geral, pode ser traduzido por escrita maquínica.
Massenspeicher (de); Mass Memory (en) – armazenador de memória.
Nachricht – informação ou notícia.
Papierband – tira de papel; banda de papel.
Relais (en;de) –relé(s).
Schaltung – interruptor.
Schaltkomponenten – componentes de ligação; interruptores (no sentido em que
ligam/desligam aparelhos).
Schnittsttstelen (de); Interface (en) – Interface.
44
Schreibwerkzeug – instrumento de escrita
Silizium – silício.
Spannungsdifferenz – diferença de voltagem
Standart – estandarte.
Tonband – fita acústica
Tranzistorzellen – células de transístor.
Verbindungskanälen – canais de ligação.
Vernetzbarkeit – conectividade.
Zerlegbarkeit - propriedade de ser desmantelável.
NOTA:
Informação – Daten, Auskunft, Information (de)
Kittler (1986:27) faz, na maioria dos casos, equivaler média eléctricos e electróicos:
«Daβ elektrische oder elektronische Medien sie dann wieder verschalten können (…)»
TERMOS BIBLIOGRÁFICOS
Buchstaben – caracteres ou letras
TERMOS FILOSÓFICOS
Apparate – aparelhos
Doppelgänger – duplo (aquele que tem existência, «caminha», enquanto duplo).
Eigenschaft/Eigentum – propriedade.
Ersatzsinnlichkeit – substituição sensorial não dá conta da dimensão espiritual.
Erzeugung - produção
Gebilde - criação
Herstellung – produção.
Menschenfreundlichkeit- Filantropia (porque philos e antrophos)
Liebenswürdigkeiten – simpatia.
Sinnlichkeit – sensibilidade, natureza sensível.
Sprache – língua ou linguagem.
Umgebung – área circundante, vizinhança.
Umkehrung – reversão, inversão.
45
Umstellung – rearranjo, transposição.
Umwelt – ambiente; ambiente circundante; mundo circundante.
Unmöglich – impossível (também pode significar, simultaneamente, ridículo).
Urteil – juízo.
Verdecken – ocultar.
Wesensfrage – questionamento pela essência/questão da essência.
OUTROS
Engpaß – gargalo.
TEORIAS TÉCNICAS
Tese de Church-Turing
Máquina Universal de Turing – aparece sempre como nome próprio, já que é teoria.
Cadeias de Markov
DICIONÁRIOS DE TRADUÇÃO UTILIZADOS
GOEDCKE, Werner, Wörterbuch der Elektrotechnik, Fernmedetechnik und Elektronik,
Segunda Edição, Alemão-Inglês-Francês, Editora Brandstetter Wiesbaden, Wiesbaden,
1968.
Duden - Deutsches Universalwörterbuch, 5. Edição revista e melhorada, Editora Duden,
Manheim, Leipzig, Viena, Zurique, 2003.
Groβwörterbuch Deutsch als Fremdsprache, Editora Langenscheidt, Berlim e Munique,
2008.
NOTA: Hardware, software e paperware, copyright em itálico.
Abreviações presentes nas notas de tradução:
Def. – Definição.
LS – Langenscheidt – Grosswörterbuch Deutsch als Fremdsprache.
Pl. – plural.
46
47
ANEXO II
A FILOSOFIA DOS MÉDIA DE
FRIEDRICH KITTLER
48
49
ENSAIOS
50
51
I
52
53
HISTÓRIA DOS MÉDIA COMUNICACIONAIS19
Introdução
O texto que se segue constitui uma primeira tentativa de falar, no todo e na
generalidade, tanto quanto é humanamente possível, sobre a história das técnicas
comunicacionais. Tal deve, como resultado, conduzir a um esboço de uma ciência
histórica dos média. Um simples esboço, já que a ciência dos média é um jovem campo
de pesquisa que, sem o êxito20
das tecnologias da informação modernas, não teria de
todo existido. É por isso que uma tal história se depara com problemas metódicos e
epistemológicos concretos21
.
Existe, desde logo, o problema epistemológico concreto de as próprias técnicas
comunicacionais estarem amplamente menos arquivadas ou largamente menos
acessíveis que os seus conteúdos, já que o campo das comunicações mantêm-se, apesar
do seu frequente papel bélico decisório, «um filho ilegítimo da pesquisa histórico-
militar» (citando o último chefe das comunicações da Wehrmacht22
). Daí advém, como
problema metódico, a questão enigmática23
de saber se, entretanto, o conceito evidente
de «comunicação» se adequa à descrição de tempos e espaços que claramente se
19 Kittler, Friedrich (1993): «Geschichte der Kommunikationsmedien.» In: Raum und Verfahren, Jörg
Huber und Alois Müller (Edi.), Editora Stroemfeld/Roter Stern, Basileia, pp. 169-188.
20 Siegeszug. Def. LS “:«in Bezug auf Produkt verwendet; Reihe von grossen Erfolgen bei vielen Leuten».
(«aplicado em relação a produto; Sucessão de grandes sucessos de muitas pessoas») – por isso utilizamos
êxito e não sucesso. [N.T.]
21 No caso, sachliche Probleme – não pode ser traduzido por problemas práticos porque não alude à
praxis, já que um problema conceptual pode ser prático; é sachliches aquilo que pertence ao campo do
conhecimento em questão, à Sach. Por isso optámos pela expressão «epistemológico concreto». [N.T.]
22 Forças armadas ou forças de defesa do regime nazi; porque este termo designa um corpo com
especificidades únicas e porque é amplamente conhecido, optámos por não traduzir. [N.T].
23 No original: Rätselfrage. A expressão coloca em evidência a complexidade de não ser uma simples
questão (Frage), mas sim uma tensão de múltiplas complexidades, que requerem reflexão e que se auto-
implicam (Def. LS -Rätsel – Art complizierte Frage, bei der man raten oder lange nachdenken muss, um
dia Antwort zu finden (tipo de questão complexa, sobre a qual se tem de aconselhar ou reflectir
longamente para encontrar resposta)). [N.T].
54
abrigam sobre outras aplicações terminológicas24
(a partir do mito ou da religião). Para
todos os efeitos, o seu coroamento filosófico baseia-se, no Ensaio sobre o Entendimento
Humano25
de John Locke, na dificilmente generalizável aceitação de que a comunicação
implica linguisticização de representações26
percepcionadas e, consequentemente,
integração27
de indivíduos isolados através «do laço28
da língua». Ora a Filosofia
esquece-se de perguntar como é que os humanos29
, aquando desprovidos de linguagem,
devem chegar às representações e ideias.
O conceito técnico de informação foi libertado desta críptica confusão desde que a
Teoria Matemática da Comunicação de Shannon contorna toda a referência às «ideias»
ou «significados» e, com isto, aos humanos.
Os sistemas de informação, no sentido estrito da palavra, são inequivocamente
optimizados pelo armazenamento, processamento e transferência. Por seu turno, os
24 No original: Leitbegriff. Se Begriff é conceito, a aglomeração com Leit confere-lhe a orientação para
um determinado campo, sendo por isso termo (Leit def. LS – verwendet, um auszudrücken, dass sich
jemand/etwas na der genannten Person/Sache orientiert – utilizado para expressar que algo/alguém se
orienta para uma determinada/o pessoa/campo). [N.T].
25 Publicado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian. [N.T.]
26 A tradução do termo Vorstellung varia segundo os traços da proposta de cada autor e segundo o
contexto, pelo facto de ser um termo basilar na Filosofia e, consequentemente, estar sobreinvestido de
significado (em Kant ou Hegel, por exemplo). Def. Vorstellung LS: «das Bild das man sich in Gedanken
von jemandem/etwas mach.» («a imagem que se faz no pensamento de algo/alguém»). A nossa proposta,
neste caso particular, é representação, já que alude a um movimento de fora para dentro (do acidente da
percepção até à formalização conceptual). [N.T.]
27 No original: Vernetzung. O termo expressa um fazer/tornar rede (Netz). A nossa proposta, integração,
não pretende contudo esquecer que o termo visa, no caso em questão, uma dimensão sistémica e material
vincada. [N.T.]
28 No original: Band. A fita que liga, enlaça. Def. LS: «ein dünner, schmaller Streifen aus Stoff, Seide,
Leder (...), mit dem etwas verbunden, verstärkt oder geschmückt wird». Para Kittler, a universalidade ou
evidência de um vínculo como possibilitador de comunidade, de que são exemplos a língua ou mesmo a
linguagem, é posta radicalmente em questão. Veremos mais à frente que o termo ressurge para designar a
banda de papel (Papierband) que Alan Turing utiliza para teorizar o primeiro computador, esta sim
universal, já que funciona apenas com um símbolo e a sua negação- o 0 e o 1. [N.T.]
29No original: Menschen. Tradutível por homens ou humanos, neste caso o termo está semanticamente
investido nessa relação com a comunidade particular que é originada pela linguagem, denunciando desde
logo um dos aspectos que teve de ser necessariamente posto de lado/falsificado para que o edifício
conceptual «humanidade» se pudesse estabelecer.
55
sistemas de comunicação que, para além das mensagens, regram também o movimento
de pessoas e bens, aglomeram, segundo a análise de McLuhan, todos os tipos de média,
desde os sistemas de estradas até à linguagem. Contudo, dá-se aqui a ocasião de analisar
tanto sistemas de comunicação como sistemas de informação. Também a comunicação
depende de sinais de controlo e fá-lo tão mais quanto mais complexo é o seu
funcionamento; também a tríade dos comunicáveis – mensagens, pessoas, bens –
reformula-se informático-teoricamente:
- Primeiro, as mensagens, como é expresso desde logo na etimologia da palavra
alemã30
, são comandos que dirigem as pessoas que são orientadas.;
- Em segundo lugar, a teoria dos sistemas ensina que as pessoas não são objectos
totais mas sim endereços, que «permitem o cálculo/a previsão de comunicação
posterior»;
- Finalmente, em terceiro lugar, os bens formam dados através de um
posicionamento valorativo de ordem de transacções entre as referidas pessoas, como
ensinou a Etnologia desde Mauss e Lévi-Strauss.
Contudo, se os dados abrem as operações de armazenamentos e os endereços
abrem a transmissão e ordens do processamento de dados, então, cada sistema de
comunicação é, enquanto combinação destas três operações, um sistema de informação.
Até que ponto um tal sistema se torna uma tecnologia de comunicação independente, tal
depende apenas certamente de as três operações serem implementadas na realidade
física. Por outras palavras, a história destas técnicas chega ao fim quando as máquinas
assumem não só a transmissão de endereços e o armazenamento de dados mas também,
por meio de algoritmos matemáticos, o processo de processamento de ordens. Não é por
isso coincidência que Shannon só possa ter descrito um modelo formal de informação
no início da era do computador, ou seja, após todas as operações de sistemas de
comunicação terem sido realizadas maquinicamente. Este modelo consiste, como é
sabido, em cinco instâncias conectadas.
30 A palavra alemã que constitui este primeiro ponto é Nachrichten – que se pode decompor em nach -
que pode significar: «antes, para uma determinada direcção, no seguimento, segundo algo ou alguém» - e
richten - que significa «endereçar, orientar, direccionar». [N.T.]
56
- Primeiro: existe uma fonte de informação que selecciona, de cada vez, uma
mensagem por unidade de tempo, a partir de uma mensagem enumerável-dicreta ou
inumerável-contínua, da quantidade total de mensagens possíveis;
- Em segundo lugar, esta fonte fornece um ou mais transmissores que, através de
codificação apropriada, processam a mensagem para um sinal técnico (o que é
completamente impossível, no caso discreto, sem o armazenamento de dados
intermédio);
- Em terceiro lugar, estes transmissores preenchem um canal que assegura a
transferência do sinal no espaço e/ou tempo contra ruído31
físico ou perturbação externa;
- Em quarto lugar, estes canais conduzem a um ou mais receptores, que
reconstroem a mensagem a partir do sinal, isto é, submetem o referido sinal a um
algoritmo inverso de descodificação para que, finalmente;
- Em quinto lugar, a mensagem retraduzida chega com sucesso ao endereço de um
vale de informação.
Este elegante modelo não pode certamente aplicar-se à história factual das
técnicas de comunicação, já que não tem, de modo nenhum, uma ambição historicista.
Ao invés de aceitar sob todos os prismas as cinco caixas negras de Shannon, como se
tornou comum nas Ciências da Linguagem e nos Estudos Culturais, parece mais
penetrante e proveitoso retraçar, através da história, como é que a sua própria
diferenciação teve primeiramente de ocorrer. Sob a premissa luhmaniana de que as
técnicas da comunicação fornecem «prioritariamente, uma divisão de épocas
magnetizadora de tudo o resto», torna-se plausível que, por um lado, a transição
histórica de oralidade para escrita tenha equivalido a um desemparelhamento da
interacção e comunicação e que, por outro lado, a transição de média escritos para
média técnicos tenha igualmente equivalido a um desemparelhamento de comunicação e
informação. Trata-se portanto de um processo de diferenciação que chegou à
conclusão, na teoria e na prática, que uma informação corresponde ao oposto sígnico do
conceito energético de entropia.
Este processo de diferenciação disponibiliza a possibilidade de decompôr a
história dos média comunicacionais em dois blocos maiores. O primeiro bloco trata a
história da escrita, entrando e desintegrando-se num bloco sobre a escrita manual e um
31 Ruído tem aqui a acepção de aquilo que a neguentropia visa. [N.T.]
57
outro sobre escrita impressa. O segundo bloco, sobre média técnicos, conduz-se a partir
das invenções básicas da telegrafia, passando pelos média analógicos até, finalmente, o
média digital do computador.
A Escrita
1. Escrita Manual
Duas séries de variáveis definem a história da cultura escrita, cujo «médium»
divide também frequentemente a História da Pré-História. A primeira série está em
relação com o que a Filosofia, desde os estóicos, reconheceu como referência: na
medida em que o conteúdo de um médium é sempre outro médium e o da escrita (já em
Aristóteles) é a fala, os escritos podem portanto ser classificados consoante processem
discurso do quotidiano ora para imagens ou pictogramas, ora para símbolos silábicos ou
fonéticos. Contudo, na medida em que o médium da escrita emparelha, provavelmente
pela primeira vez, armazenamento e transmissão, inscrição e envio, então variáveis
físicas, como instrumentos de escrita e superfícies de escrita, decidem sobre o espaço e
o tempo da comunicação. Estas variáveis ditam o tempo dispensado com o envio e
recepção, a permanência ou o apagamento do escrito e, não menos importante, a
mobilidade ou imobilidade das mensagens.
A primeira série de variáveis regra a diferenciação entre a fala e a escrita: graus de
performatividade da memória, graus de analisibilidade gramática, possibilidades de
emparelhamento da linguagem com outros média. Enquanto campo central de pesquisa
científica cultural da análise dos média, pode ser aqui deixada de lado.
A segunda série de variáveis mereceu consideravelmente menos atenção,
possivelmente por ser tão material. No entanto, coisas tão simples quanto instrumentos
de escrita e superfícies de escrita determinam o ganho de poder que a inserção de
escritos lança sempre. Se os padres valorizavam o armazenamento de endereços, quer
seja de deuses ou de mortos, por uma extensão máxima de tempo; se os mercadores
valorizavam o armazenamento de bens pela máxima extensão de tempo e o transporte
de bens por distâncias máximas; se, finalmente, os guerreiros valorizavam a transmissão
de ordens na máxima distância e no mínimo tempo, então os escritos mais antigos,
originados cerca de 3000 anos antes de Cristo na Suméria e no Egipto, teriam funções
religiosas e económicas. Nos círculos de guerra, por outro lado, foi apenas com
58
Napoleão que acabou o que os historiadores militares chamam a «era da pedra dos
fluxos de ordens». Excluindo as ordens dadas da boca para o ouvido, existia apenas o
uso semiótico de fogo para sinal de alarme e serviços de mensageiros rápidos mas
igualmente orais, cujo recorde foi detido provavelmente por Gengis Khan.
As primeiras evidências de escrita são, como é conhecido, inscrições sem
superfícies genuínas de inscrição. Rolos bidimensionais de selos ou carimbos no
médium do barro possibilitaram dotar os bens dos endereços dos seus proprietários ou
da descrição dos seus conteúdos, do mesmo modo que os escritos lapidares permitiram
dotar as sepulturas do nome dos seus mortos. Como sinais da ausência da fonte da
mensagem e, portanto, através do desemparelhamento de comunicação e interacção, as
inscrições abriram – de acordo com o argumento de Jan Assman - a possibilidade da
Literatura.
Em contraponto, a gestão de todos os sistemas de irrigação fluvial, nos quais
emergiram cidades e altas culturas, requeria a substituição da inscrição por superfícies
artesanais transportáveis e optimizadas: bambus e amoreira de papel32
, barro não cozido
ou cozido para armazenamento na Mesopotâmia33
, papiro enquanto monopólio do delta
do Nilo. Estes mesmos rios, através dos quais o transporte de trabalho escravo e bens
fluía, faziam circular simultaneamente as ordens da alocação das águas e gestão dos
bens (segundo as medidas de uma matemática de calendário ou goniométrica). Estas
mesmas cidades, que traduziram o esquema antropológico de cabeça, mão e tronco pelo
esquema arquitectónico de palácios, ruas e armazéns, precisavam de escritos para o
processamento, transferência e armazenamento de dados. Esta resolução ecuménica34
do
espaço é recorrente nos próprios textos enquando espacialização do discurso. A escrita
conhece, desde o seu início, listas descontextualizadas que preenchem todos os vestígios
de redes de comunicação orais ou gráficas e que, por essa razão, não têm mais nenhum
equivalente no referencial quotidiano.
32 Broussonetia papyrifera, uma das espécies do género de árvores caducas morus, frequentemente
designadas no seu conjunto, em português, por amoreiras. [N.T.]
33 Mesopotâmia, em alemão Zweistromland, literalmente «terra entre dois fluxos de rio», enfatizando este
aspecto geográfico daquela que é frequentemente considerada o berço das civilizações. Em português, a
metáfora branca que formou a palavra já não é evidente à primeira vista, mas Mesopotâmia continua a
significar literalmente entre rios (do grego μεσο, com ποταμός). [N.T.]
34 Aqui no seu sentido mais lato, de procura de unidade, de totalidade. [N.T.]
59
Por contraste, as expansões para além do ecuménico, ou seja, a fundação dos
impérios, possibilitaram tornar móveis tanto mensageiros como guerreiros, depois de
tanto as cidades do novo como do velho mundo empreenderem os serviços de
mensagens e, no velho mundo, depois do cruzamento de duas raças de cavalos, a partir
de 1200 antes de Cristo. Nos tempos clássicos, «existia» - na formulação inolvidável de
Heródoto - «sobre a terra nada mais rápido» que a junção de média que, sob
Aqueménides, combinadava a via real persa com um serviço de mensageiros a cavalo,
para transferir «cartas urgentes a trote ágil» isto é, perante todas todas as adversidades
da natureza, transferir a mensagem de cavaleiro em cavaleiro, de jornada em jornada.
Angareion, o nome persa deste correio militar, está na base do nome grego para
mensageiro e, consequentemente, do nome de todos os anjos cristãos.
A pólis grega tinha apenas um escrito a contrapôr contra um império de
comunicação como o persa, escrito esse que, em contraste à burocracia oriental,
mantinha-se transparente à oralidade. Primeiro, o alfabeto grego funcionava (a partir de
necessidades indoeuropeias e porque surgiu a partir de trocas comerciais e da tradução
de escritos de consoantes semíticas) através da transformação de consoantes tornadas
redundantes em vocais, fornecendo assim a primeira análise total de uma língua falada –
e, em princípio, de todas as outras línguas faladas. Os símbolos vocais codificavam pela
primeira vez elementos prosaico-musicais, o que permitiu uma escrita de notas musicais
e, visto que as letras gregas tinham igualmente valor numérico, uma matematização da
música na escola pitagórica, na medida em que essa música permanecia apenas como
intervalo abstrato.
Em segundo lugar, parece ser responsável pelo triunfo do alfabeto vocal não tanto
o seu sobrestimado grau de inovação quanto a explícita ordenação fonética. Ela
minimiza o dispêndio necessário para a literacia e trespassa os segredos do palácio e do
tempo para o domínio público. À Literatura tornou-se possível integrar primeiro
mnemotécnicas orais (como lenga-lengas e rapsódias) e também, mais tarde, prosa. Os
tiranos atenienses fundaram a primeira biblioteca pública; Eurípedes, enquanto rato de
biblioteca35
, tornou-se «o primeiro grande leitor» entre escritores.
35 No original: Buchenarr. Def. LS: « jemand, der sehr gern und viel liest» («alguém que lê muito e com
gosto) sendo que a palavra narr, quando aglomerada, significa «jemand, der das was gennant wird, so
gern mag, dass er sich fast die ganze Zeit damit beschäftig» («alguém que faz algo com tanto gosto que
ocupa quase todo o tempo com isso»). [N.T.]
60
Os antigos livros-rolo tomaram o seu nome bíblico de uma cidade exportadora de
papiro na Fenícia, cujo lugar foi tomado em 560 a.C. pelo delta do Nilo. Também o
Império Romano, depois da conquista do Egipto, configurou a sua rede de comando36
,
que já era sinónima do império, a partir de uma junção de envio de mensagens a cavalo,
estradas militares reforçadas e papiros facilmente transportáveis. O império, por outras
palavras, combinava técnicas despóticas de transferência com alfabeto democrático.
Com o Cursus Publicus, Augusto edificou estações de pernoita a distâncias de quarenta
quilómetros e cavalariças a cerca de doze quilómetros, exclusivamente para oficiais e
legiões e, apesar disto ou precisamente por causa disto, tais estações tornaram-se o
ponto de cristalização das cidades europeias. Juntamente com o telégrafo de fogo em
linhas de fronteira sensíveis, um serviço postal estatal, que ultrapassava as mais rápidas
rotas marítimas e fluviais e que apenas seria superado por Napoleão, transferia o poder
imperial enquanto tal: «Cesarum est per orbem terrae litteras missitare» ou, nas
palavras de um escritor romano tardio, «é tarefa do imperador enviar ordens escritas
pelo mundo». Por outro lado, se este médium de transferência era perfeito para o
referido mundo e para a distribuição de boletins informativos de César para a cidade de
Roma, o armazenamento de dados, mesmo com a existência de um officium sacrae
memoriae imperial desde Adriano, permanecia tecnicamente em atraso.
O papiro é leve, mas delicado e pouco durável. Apenas podia ser armazenado em
rolos de livros, apenas legíveis com ambas as mãos. Na visão de Alain Turing, o
primeiro teórico do computador, «a procura de referências em tais volumes devia
demorar o seu tempo». Só aquando o Códex de Pérgamo, utilizado para a biblioteca de
Pérgamo de modo a inverter o monopólio egípcio de papiro e, desde o ano de 140, pelos
Cristãos, é que foi permitida uma indexação segundo localizações, folhas e, finalmente,
páginas. Os livros, que eram duráveis, corrigíveis (como o palimpsesto) e, através das
páginas, endereçáveis (como as concordattas) subiam o seu preço e peso.
Desemparelhavam uma leitura, tornada cursiva, do trabalho e lentidão da oralidade.
Quando o Bispo Ambrósio de Milão lia um códex, «passava os olhos sobre as páginas,
inquirindo o coração do sentido, estando ele contudo silencioso» (segundo o testemunho
do seu mais afamado aluno). No códex triunfava a transportabilidade, a
endereçabilidade e a interpretabilidade dos escritos dos outrora nómadas judeus e
árabes, sobre a imobilidade de imagens divinas fixas e templos.
36 No original: Befehlsnetz. [N.T.]
61
O declínio do Cursus Publicus e a tomada islâmica do Egipto, que destruiu a
grande biblioteca antiga37
, cortou as importações de papiro para a Europa Ocidental.
Sobrou o produto agrário, o pergaminho, no qual os monges copiaram os registos de
papiro cristão censurado, enquanto que, no Império Bizantino38
, o fluxo de ordens
epistolares de imperadores passados estancou no livro de leis do Código Justiniano.
Através de tais ligações e compressões de tempo, um translatio studii foi ultrapassado;
o translatio imperii , em contraste, requeria uma nova ordem espacial e,
consequentemente, superfícies de escrita mais acessíveis.
No século XIII, o papel, importado da China via Bagdade, vingava na Europa,
onde era desenvolvido por cidades da linha mercantil e pelos novos moinhos de vento
ou moinhos de água em papel-pano. Esta superfície de escrita, enquanto tal, trouxe a
emergência das Universidades, que com os seus escritórios de copismo incorporados e
redes postais desfizeram o monopólio de armazenamento dos mosteiros. Esta superfície
trouxe também, em junção com o sistema de posicionamento de valores numérico,
importado da Índa via Arábia, a emergência de cidades mercantis. Aqui não se tratou
apenas da descoberta da conhecida invenção da dupla entrada de livro mas sim, antes de
mais, uma notação matemática que, pela primeira vez, se tornava independente das
várias linguas quotidianas: quando os gregos adicionavam dois números diziam kai e os
romanos et; desde o século XV, existiam, tão mudos quanto internacionais, o mais e o
menos, isto é, signos para operadores matemáticos.
2. Imprensa
A descoberta de Gutenberg, a impressão de letras móveis desenvolvidas a partir
de caracteres tipográficos39
, funcionava, de modo diferente dos seus antecessores na
China e Coreia, alfabeticamente e (depois da supressão das ligaduras) discretamente40
;
não sendo uma revolução como o Códex, cobria contudo a procura emergente surgida
através do papel. Enquanto «primeira linha de produção da história da técnica», a
impressão potenciava a capacidade de processamento de dados dos livros. Porque todos
os exemplares de uma edição, em oposição aos escritos manuais, tinham os mesmos
37 Kittler refere-se, obviamente, a Alexandria. [N.T.] 38 Em alemão diz-se Ostrom, literalmente «Roma do Oeste». [N.T.]
39 Def. DL «Os caracteres tipográficos são pequenos paralelipípedos de metal fundido, que têm em
relevo, numa das extremidades, uma letra ou sinal.». No original: Buchrückenstempel. [N.T.]
40 No original: diskret, de concreto. Aqui visa a reificação ou seja, aparição num objecto. [N.T.]
62
textos, cortes de madeira e gravações nos mesmos lugares, podiam ser apreendidos em
índices unitários e, pela primera vez, alfabéticos. O endereçamento utilizado paginação,
títulos e, desde Leibniz, catálogos bibliotecários alfabéticos, coloca a ciência41
de
sistema de comunicação na sua base de citação, enquanto as ilustrações de livros, sem
os tradicionais erros, fundam a essência da engenharia. Vasari alegava, não sem motivo,
que a Itália tinha descoberto a perspectiva como possibilitadora de desenhos
tecnicamente exactos precisamente no mesmo ano em que Gutenberg inventou a
imprensa.
Os novos média não tornam os média antigos obsoletos, conferindo-lhes antes
outras posições sistémicas. Precisamente porque a imprensa retratava doravante a
performance retórico-musical dos torneios enquanto literatura e ficções dos autores , as
técnicas corporais destes torneios parecem converter-se (segundo a tese de Gumbrecht)
em tipos desportivos silenciosos e mesuráveis. De igual modo, apenas quando a
diferenciação dentro da tipografia formou um valor intrínseco da escrita manual, cuja
assinatura em cartas e registos tomava o lugar do antigo selo, a individualidade recaiu
sobre um sistema estatal de envio postal e polícia. Os primeiros correios nacionais da
Modernidade inicial eram reservados, segundo o modelo do Império Romano, para
redes militares-diplomáticas e protegidos de intercepção através de uma criptografia,
cujo surgimento remonta à álgebra de Vieta, enquanto codificação de símbolos
alfabéticos e numéricos. Os estados territoriais, controlados extensivamente através de
correios e armas de fogo, abriram as suas redes ao tráfico privado, que monopolizaram
através das caixas de correio. Depois da inclusão de correspondência comercial na rede
pública de correios criaram-se, a partir de 1600, revistas e jornais; depois da integração
de transporte de pessoas a partir de 1650 criaram-se correios a cavalo e a redes de
transporte por roteiro. Contudo, a muito falada mudança estutural do espaço público
aristocrático para um espaço público burguês, cujas viagens e cartas, panfletos e críticos
de jornais minaram supostamente o velho sistema de poder, nunca aconteceu. Mesmo
sem o seu controlo permanente através de gabinetes secretos de correio e censura de
imprensa, o espaço público burguês permaneceu um artefacto de estados mercantis, cujo
novo correio ocupava metade do orçamento de estado e metade do cofre militar. Apenas
a intimidade do círculo familiar incentivava o «vício de leitura» do denominado espaço
41 O termo, Wissenschaft, cuja dificuldade de tradução é por demais conhecida, visa aqui um saber, uma
scientia. [N.T.]
63
público que promoveu um aumento recorde das literaturas nacionais, que compensava a
«perda da sensorialidade» através de efeitos virtuais na sensibilidade do leitor,
preparando42
portanto as técnicas de média vindouras.
Esta mediatização da letra impressa tinha a sua base técnica, presumivelmente,
numa leitura leve e rotineira que não era mais um privilégio das elites como na época de
Santo Ambrósio mas sim que, através de escolarização geral obrigatória e alfabetização
geral, instalou a Democracia. Contudo, por causa desta leitura sem esforço, emerge um
novo problema sistémico. Sendo os livros impressos, de modo diferente dos códices de
pergaminho, armazenadores fechados sem possibilidade de apagamento, não havia em
1800 (segundo as palavras de Fichte) «nenhum ramo do saber, sobre o qual uma
superabundância de livros disponíveis» não existisse. A Literatura e os domínios do
saber43
tinham assim de transpôr as suas técnicas de envio e recepção: fora da
literalidade escolástica republicana das citações ou mnemotécnicas retóricas para uma
interpretação da quantidade de dados impressos, de modo a reduzir ao seu sentido, isto
é, a uma menor quantidade de informação. Os cursos eram, desde a reforma de
Humboldt, proferidos sem manuais, com consequência no sistema de comunicação do
saber, assim como os seminários eram exercícios de interpretação e ascenção
universitária de uma Filosofia, cujo «espírito»44
absoluto simplesmente recuperava pelo
seu próprio manual a «re-memoração»45
de todas as formas de saber da História,
tornando assim a totalidade dos livros existentes em silhuetas46
hermenêuticas.
42 No original: kommenden Medientechniken vorarbeitete. O termo vorarbeitete remete para essa
preparação da percepção através de um trabalho contínuo. [N.T.]
43 Mais uma vez, no original; Wissenschaft. Neste caso alude aos domínios do saber que então se
sistematizavam, entre eles os das várias ciências naturais – daí que não traduzamos por ciência. [N.T.]
44 No original: Geist. Tendo por base a tradução de Fenomenologia do Espírito (Phäenomenologie des
Geistes) de Hegel, traduzímos por espírito esse termo complexo. [N.T.]
45 Em alemão: Er-innerung. Se em português rememoração é a repetição da convocação da memória,
Erinnerung (que Kittler faz questão de dividir em Er-Innerung) significa, num sentido coloquial,
lembrança e, etimologicamente, activação do dentro inner. [N.T.]
46 No original: Schattenrisse. Palavra (pl.) composta por Schatten, sombras e Riss, fissura ou, em
arquitectura, esquisso ou esboço – ou seja, literalmente esboço-sombra dessa totalidade. Aqui o visado é
claramente Hegel e o idealismo alemão, cujo pensamento surge em Kittler, como não podia deixar de ser,
como sintoma de um momento nessa história das técnicas de comunicação. [N.T.]
64
No Real47
esta mediatização da escrita corresponde à sua revolução industrial.
No lugar da teoria da combinação contável de Gutenberg inaugurou-se, também em
termos práticos, uma análise das infinidades: máquinas de papel sem fim substituem
desde 1800 os formatos discretos e as folhas criadas; papel de celulose das florestas
aparentemente inesgotáveis das Américas, essa base material de toda a imprensa de
massas desde 1859, substitui o papel-trapo ou papel de fibra de algodão.48
E,
finalmente, desde 1880, as máquinas de escrever e o linótipo nivelaram a diferença
entre escrever e imprimir, abrindo o espaço da Literatura Moderna. Foi Mallarmé quem
primeiro apresentou a solução de reduzir a literatura ao seu sentido lexical, as vinte e
seis letras, não entrado assim de modo nenhum em concorrência com outros média.
B Média Técnicos
Os Média Técnicos, de modo diferente da escrita, não reprocessam os códigos de
uma linguagem quotidiana. Utilizam processos físicos que ultrapassam o tempo da
percepção49
humana, sendo só efectivamente formuláveis em códigos da matemática
moderna.
1 Telegrafia e Técnica Analógica
Claro que os média técnicos sempre existiram, porque todo o emissor de sinais,
quer seja por meios acústicos ou ópticos, é em si mesmo técnico. Contudo, na época
pré-industrial, canais como telegrafia de fumo ou fogo faziam uso da velocidade da luz,
linguagens de percursão50
e cadeias de chamamentos faziam uso da velocidade do som,
tanto uns como outros subsistemas de uma linguagem quotidiana. O sinal de fogo de
Tróia para Micenas, que inaugura com Ésquilo o género literário da tragédia, anuncia
num único Bit a queda da fortaleza sitiada e, mesmo isto, só depois de arranjos prévios.
Por outro lado permanece questionável se uma telegrafia relatada por Pólibo, que
codificava o alfabeto grego em cinco vezes cinco símbolos luminosos e devendo,
portanto, poder transmitir frases acidentais, alguma vez teve uso.
47 Isto é, no plano da efectividade independentemente da apreensão. [N.T.] 48 No original: Hadern oder Lumpen – literalmente trapo, como é também conhecida a referência ao
Lumpenproletariado, literalmente o proletariado dos trapos. [N.T.]
49 No original: Wahrnehmung. Frequentemente traduzido por percepção, significa etimologicamente «a
tomada do verdadeiro». [N.T.]
50 No original: Trummelsprachen. [N.T.]
65
Os valores de informação que excederam os limites de performatividade da escrita
foram primeiro forçados pelo fluxo de ordens tanto nos exércitos conscritos massivos
como nas guerras nacionais, estandartizadas ao nível das técnicas de armamento. Estes
eram uma e a mesma coisa para Lakanal, membro do parlamento que presenteou a
França revolucionária de 1793 com um sistema geral de escolas básicas e direitos de
autor literários e que convenceu a Assembleia Nacional, um ano mais tarde, a construir
linhas telegráficas ópticas. Funcionou para a fundação desta revolução - cobrir a
superfície dos estados nacionais - o argumento de que apenas o telégrafo óptico de
Chappe podia facultar aquele processo eleitoral democrático que Rousseau tinha
aprendido, a partir de, como é sabido, a cidade de Genebra. Com um uso menos
público, contudo exclusivo, das redes de telégrafos, Napoleão trouxe à luz uma
estratégia que cessaria a idade da pedra dos fluxos de comandos. Divisões operacionais
independentes podiam lutar simultaneamente em mais frentes, porque a recém-criada
equipa general impunha, por telégrafo, o seu conhecimento cartográfico do solo real.
A telegrafia separou, portanto, o espaço público literário e o secretismo militar no
mesmo piscar de olhos histórico, já que o espaço público das elites foi alastrado a toda a
população. Uma nova elite, vinda das escolas de engenharia e das equipas gerais,
descobriu finalmente, com a guerra de 1809, o seu novo médium: a electricidade. Com a
deslocação da telegrafia de corrente óptica para corrente directa, não só desapareceram
as estações humanas (e, portanto, falíveis), mas também os 98 símbolos (escritos e
falados) de Claude Chappe. O código morse, com os seus pontos, traços e pausas, fazia
uma economia de signos na praxis, o que já Leibniz havia descoberto na teoria da
tipografia, expressa com o seu código binário. O despacho de informação, optimizado
segundo frequência de caracteres e estabelecido segundo o número de palavras, foi o
primeiro passo para a informática.
O telégrafo também teve, do ponto de vista organizacional e técnico,
repercurssões mundiais. A informação foi, pela primeiríssima vez, desemparelhada da
comunicação, enquanto fluxo sem massa de ondas electromagnéticas. Pelo controlo
remoto telegráfico, através de cabos terrestres, tornou-se possível uma rede sistémica de
caminhos de ferro; através de uma rede sistémica de caminhos de ferro tornou-se
possível um transporte acelerado de bens e pessoas o que, desde a Guerra Civil
Americana, foi também alvo de ordens telegráficas. Contudo, com o transporte de bens
e pessoas, os serviços de correio perderam duas das suas três funções tradicionais.
66
Foram forçados a tornar-se técnica de informação pura, baseada no standard da
numeração das caixas de casas, franqueação com selo e união dos serviços postais
mundiais.
A perda do solo terrestre, cujas distâncias (à semelhança da topografia
matemática sincrónica) não são agora calculadas, em contraste com todos os sistemas de
correio pré-moderno, já que apenas a velocidade absoluta conta, organizava assim a
internacionalidade: desde os relatórios da bolsa do comércio, passando pelas agências
telegráficas da imprensa mundial até aos impérios coloniais que, à semelhança do
império britânico, se baseavam num «fleet in Being» e, consequentemente, num
monopólio global de cabos marítimos.
As repercussões técnicas da telegrafia, enquanto concretizador discreto de tempo
de informação, foram descobertas consequentes que, de maneira paradoxal,
processavam precisamente as fontes de sinais. Passarei aqui pelo médium analógico da
fotografia, que merece um tratamento próprio, e farei apenas referência ao telefone, o
gramofone51
e o filme.
O telefone de Bell, essa que é a patente mais lucrativa da história, surge em 1876
e, de modo nenhum, na sua bem conhecida função, mas sim no seguimento da tentativa
de enviar simultaneamente mais mensagens através de um único cabo telegráfico. De
um modo completamente correspondente, surgiu, apenas um ano mais tarde, o
fonógrafo de Edison, no seguimento da tentativa de elevar os níveis de envio dos cabos
telegráficos. Finalmente, as séries de fotografias científicas de Muybridge que, em
1895, depois da descoberta da cruz maltesa e do celulóide, conduziram ao cinema,
foram também elas despoletadas por envios telegráficos eléctricos.
Filme e gramofone, essa concorrência ao fonógrafo de Edison, produtível em
massa, tornou possível armazenar dados ópticos e acústicos enquanto tais. Porque os
média analógicos ocorrem primeiro mecanicamente e depois electricamente, com os
elementos de psicofísica, determinados por Fechner, os fonemas linguísticos e os
intervalos musicais, nos quais a análise grega se tinha detido enquanto últimos
elementos alfabéticos, podem ser desde logo reconhecidos por mistura de frequências
invertidas, que então vêm aberta uma análise posterior que é, desde Fourier,
matemática. O conceito moderno fundamental de frequência, que desde Euler
51 No original: Schallplate, literalmente, placa de som. [N.T.]
67
subordinou de igual modo o cálculo de probabilidades, música e óptica, substituiu a arte
através de média técnicos. Esta física no processo de simulação do real não corresponde
mais, na ocorrência de recepção, a nenhuma mnemotécnica ou pedagogia numa base
linguística, mas sim a uma fisiologia do sentido, que garantiu aos média o seu sucesso
global e, graças à medida de informação de Shannon, um sucesso calculável. Ao mesmo
tempo, uma falha de conhecimento de, por um lado, efeios mediáticos desconhecidos e,
por outro lado, as inovações (que desde o primeiro laboratório de Edison são também
planeáveis), aconteceu que, apesar da emancipação das mulheres no telégrafo, telefone e
máquina de escrever, a alfabetização geral tenha sido contraída, excluindo em termos
práticos a comunicação sobre comunicação.
Foi decisivo para esta cesura, que pode bem ter apenas na descoberta da escrita o
seu igual, as equações de campos electromagnéticos de Maxwell, cuja testagem
experimental se deve a Heinrich Hertz. Desde o Natal de 1906, quando o emissor de
rádio de Fessenden emitiu frequências baixas de eventos aleatórios, ocorrendo no
sentido enquanto modulações de frequência ou amplitude de alta frequência, existem
canais imateriais. Desde 1906, quando de Forest desenvolveu, a partir da lâmpada de
Edison, a válvula controlável sem energia, a informação ficou aberta a toda a
amplificação e manipulação. O rádio de válvula, desenvolvido como telefonia sem
cabos para quebra do monopólio de cabos, tornou na primeira guerra mundial o novo
sistema de armamento, o avião e o Panzer52
controláveis à distância e, depois do final
da guerra, foi aplicado também à população civil.
Enquanto «segunda oralidade», passando ao lado da escrita, a rádio
estandartizou línguas não alfabetizadas, principalmente na emissão de ondas de baixa
frequência, transformando, deste modo, associações tribais colonizadas em nações
independentes. Correspondentemente, o telefone possibilitou, no seu percurso desde
sistema de marcação directa passado por frequência multiplex até emissão de satélite, a
conexão não hierarquizada primeiramente das cidades até, finalmente, de uma «aldeia
global». Mas os comprimentos de onda públicos e disponíveis mantêm-se, apesar da
sua saturação crítica, apenas uma fracção do espectro de frequências que, desde o
emissor de onda larga até ao radar decimétrico, são tomados para uso de exercícios de
controlo estatal e pelos serviços secretos, transgredindo todos os comprimentos de onda
públicos.
52 Tipo de tanque militar alemão. [N.T.]
68
A electrificação de informação recebida sensorialmente, através de transdutores
e sensores, permitiu à indústria do entretenimento emparelhar média de armazenamento,
primeiro uns com os outros e, em segundo lugar, com média de transferência. O filme
sonoro combinava armazenadores ópticos e acústicos e a rádio, antes da introdução do
magnétofone, transferiu essencialmente registos de gramofone; o primeiro sistema de
televisão, antes do desenvolvimento dos tubos de recepção, relia os registos
cinematográficos. Assim, o conteúdo dos média de entretenimento permanecia um outro
médium, o qual publicitavam. Mas estes emparelhamentos de técnicas, desde logo
individualmente estandartizadas, mesmo dando vida a formas estéticas desde as
rádionovelas passado pela música electrónica até ao videoclip, têm todos uma
deficiência decisiva: nenhum standard geral regra o seu controlo e a sua
retradutibilidade simultânea. Precisamente nestas lacunas saltam muitos dos heróis e das
heroínas da teoria dos média de Benjamin: cutters no filme, engenheiros do som na
cassete, todos apenas com montagem manual. Livrar-se desta obra humana e
automatizar um estandarte geral, tal estava reservado à técnica digital.
Técnica Digital
A Técnica digital funciona apenas numa base numérica, como um alfabeto. Ela
substitui as funções contínuas, que os média analógicos transformam em informação de
entrada através de releituras discretas em pontos temporais o mais equidistantes
possível, como os 24 frames por segundo ou a televisão, desde que o ecrã de Nisskow o
passou a fazer com muito mais frequência que anteriormente. Esta mesurabilidade,
seguida em sistema de código binário, é o requisito prévio para um standard de média
geral.
Segundo o teorema de scanning de Nyquist e Shannon, todas as formas de sinal
podem, quando apenas limitadas no intervalo de frequência por si próprias ou por
filtros, ser de novo inequivocamente reconstruídas a partir de valores relidos de, pelo
menos, uma frequência dobrada. O ruído da quantização, que necessariamente se
origina, permite, contrariamente a barulhos fisicamente determinados de sistemas
analógicos, toda a minimização, simplesmente porque obedece à regra de um sistema de
posicionamento valorativo de números.
A máquina discreta universal de Turing, de 1936, estabeleceu o princípio de
junção de todas as técnicas digitais. Ela emerge na extrapolação ou redução da
igualmente discreta máquina de escrever, tão simplesmente da ideia de uma tira de
69
papel interminável, que remontava a 1800. Desta «máquina de papel» até ao
armazenamento de informações, uma torre de escrita/leitura/apagamento podia escrever
os símbolos binários 0 e 1, enquanto um aparelho de transporte permitia aceder a um
endereçamento de informação aos símbolos vizinhos à direita e esquerda. Contudo,
Turing provou que estas máquinas simples e elementares, já que procedem em oposição
ao universo diáfano de Laplace, tomam um número de estados finito, igualando não só
qualquer matemático como resolvendo todos os problemas decisíveis da matemática
(nas palavras de Hilbert) – e, por simulação, de qualquer outra máquina programada
correctamente.
A máquina de Turing, na sua universalidade, concluiu todos os
desenvolvimentos sobre armazenamento, indexação e processamento de informações,
tanto alfabéticas como numéricas. No contexto do alfabeto, estes desenvolvimentos
conduziram a listas e catálogos, passando por índices, a partir dos quais, por volta de
1800, a literatura de Jean Paul e a Filosofia de Hegel tinham surgido, até à máquina de
Hollerith para os censos americanos de 1890. No campo numérico, um
desenvolvimento paralelo conduziu uma série de inovações, desde a calculadora de
Schickart para as quatro formas básicas de cálculo, passando pelos looms programáveis
de Jacquard, até ao pioneiro dos computadores, Babbage, cujo motor diferencial de
1822 e os seus desenvolvimentos em série reduziam o custo-tempo humano na
trigonometria e balística a equações diferenciais recursivas, enquanto o seu motor
analítico [analytical engine], planeado mais tarde, tornaria a análise geral contável com
comandos de salto condicionados/limitados. Para alcançar a universalidade
alfanumérica da máquina de Turing alias Computador, a álgebra lógica de Boole e o
teorema de incompletude de Godel tinham ainda de conduzir conjuntamente as duas
correntes de desenvolvimento, tornando assim expressões e axiomas tão manipuláveis
quanto números.
A máquina de Turing de 1936 era infinitamente lenta e a sua fita de papel
infinitamente longa, ou seja, inexistente.53
Em oposição, o computador, cuja sua
realização técnica resplandece através de uma economia de espaço e tempo, foi primeiro
tornado necessário pela Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo que a prova de
53 Kittler refere-a como «inexistente» porque os dispositivos tecnológicos não convivem com a ideia de
infinito. Funcionando concretamente, ocupando um espaço e tempo determinados, é apenas igualmente
nessa contingência que podem ser analisados. [N.T.]
70
Schannon era desenvolvida, consistindo na asserção de que simples relés [relays]
conectados em série ou em paralelo podem automatizar todas as operações da álgebra
de Boole, Zuse construía a partir de relés o primeiro computador, com vista à pesquisa
da Luftwaffe54
, enquanto o serviço de criptografia da Wehrmacht recusava a sua oferta
de automatização. Por contraste, no fim de 1943, surgia para a criptoanálise de Turing,
decisória para a guerra, um computador dos serviços secretos britânicos, que tinha por
base tubos modulados, precisamente para a emissora radiofónica secreta, a VHF, que
tinha possibilitado as Blitzkriege alemãs. Finalmente, em 1945, John von Neumann
pôde desenhar para a planeada bomba de urânio americana, cuja velocidade de explosão
estabeleceu novas medidas de tempo, computadores dotados das hoje em dia frequentes
sequências arquitectónicas que agem, contudo, em microsegundos.
O desenho de Von Neumann postulava os três seguintes elementos de sistema:
- Primeiro, uma centralidade do processamento, controlado por comandos de
informação alfanumérica, segundo ou regras aritméticas ou regras lógicas;
- Segundo, um armazenador para registar informações variáveis e um comando
pré-programável para informações fixas.
- Finalmente, em terceiro lugar, um sistema bus para transferência sequencial de
todas estas informações e comandos, indicados inequivocamente através de endereços
binários, segundo páginas e colunas.
Com estas três partes, as máquinas de Von Neumann articularam a estrutura de
técnicas de informação, num nível geral, enquanto interrelação de elementos de
hardware. Tal vigora sempre, quer o seu ambiente55
represente informação numérica ou
alfabética, produzindo portanto valores escritos ou gerados pelos média, sejam estes
comandos, informação ou endereços, interna e colectivamente representados por
números binários. A diferença clássica entre função e argumento, operadores e valores
numéricos, tornou-se agora permeável. O fim do alfabeto permite contudo aplicar
operações sobre operações e automatizar a ramificação. É por isto que os computadores
54 Uma das divisões da Wehrmacht, a sua força aérea. Significa literalmente armamento aéreo e, como
expressão amplamente conhecida, optamos por não a traduzir. [N.T.]
55 No original: Umwelt. Termo problematizado por incontáveis filósofos e pensadores, como Uexküll ou
Heidegger. O prefixo um atribui a ideia de circundante ou em redor, enquanto que Welt significa mundo.
[N.T.]
71
podem comportar todos os outros média e podem submeter as suas informações à
condução matemática do processamento de sinais.
O estabelecimento transversal de informação e o tempo de acesso dependem
apenas, neste caso, de parâmetros espaciais físicos. Desde 1948, o transístor substituiu
os quadros de circuitos sonoros da Segunda Guerra Mundial, e os circutos cambiantes
integrados substituiram desde 1968 o transístor individual, o que diminuiu a utilização
de espaço e tempo numa potência de dez - as análises de tempo real e as sínteses reais
de tempo de fluxos de dimensão unidimensionais (como a língua e a música) já não são
mais problema. O engenheiro de som pode portanto ir-se embora. Por outro lado, para
processamento pluridimensional de sinais em tempo real, como é requerido por imagens
televisivas ou animações computacionais, a arquitectura de Von Neuman torna-se um
gargalo. Já não está longe o dia no qual os processamento de sinais embaterá nas
fronteiras da exequibilidade física.
É nesta fronteira absoluta que a história das técnicas de comunicação chegará
literalmente a um fim. Permanece apenas, teoricamente, a pergunta sobre qual a lógica a
que esta conclusão final terá obedecido. De Freud a McLuhan, a respostá clássica a esta
pergunta foi um género de sujeito que, em oposição a uma natureza indiferente ou
perturbadora, teria tornado externa, sucessivamente, a sua motricidade, a sua
sensorialidade e, finalmente, a sua inteligência, através de próteses técnicas. Se,
contudo, a matematização da informação de Shannon se baseava na sua «ideia
fundamental», de inferir o «campo de eficiência tecnológico-comunicacional de uma
transferência perturbada» através de uma transferência conceptual, a partir de um campo
de eficiência criptoanalítico, então as interferências seriam inteligíveis apenas como
interferências de uma inteligência hostil e a história das técnicas de comunicação como
uma série de escalonamentos. Sem referência ao homem ou à humanidade, as técnicas
de comunicação ultrapassaram-se mutuamente até que, finalmente, uma inteligência
artificial proceda à intercepção de possíveis inteligências no espaço exterior.
Bibliografia
Assmann, Jan, Schrift, «Tod und Identitat. Das Grab als Vorschule der Literatur im alten Agypten», In: Assmann,
Aleida e Jan/Hardmeier, Christof [Ed.], Schrift und Gedachtnis. Beitrdge zur Archaologie der literarischen
Kommunikation I, Munique, 1983, pp. 64-93.
Bamford, James, NSA. Amerikas geheimster Nachrichtendienst, Zurique,Wiesbaden, 1986.
Beck, Arnold H., Worte und Welien. Geschichte und Technik der Nachrichteniibermittlung, Frankfurt/M, 1974.
72
Bell, D.A, Information theory and its engineering applications, 3ª Edição. Nova Iorque, 1955.
Benjamin, Walter, «Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit», 2ª edição, in: Gesammelte
Schriften,edição de Tiedemann, Rolf/Schwepphauser, Hermann, Frankfurt/M. 1972-85, Vol.l 2, pp. 471-508.
Beyrer, Klaus, Die Postkutschenreise, Tubingen, 1985. (Pesquisa do Ludwig-Uhland-lnstitut da Universidade de
Tubingen)
Blake, George G., History of radio telegraphy and telephony, Londres, 1928.
Blum, Prof. Dr. Ing, «Das neuzeitliche Verkehrswesen im Dienste der Kriegsfohrung» in Jahrbuch for Wehrpolitik
und Wehrwissenschaften, 1939, 73-92.
Cajori, Florion, A History of mathematical notations. I. Chicago 1928. II. Chicago 1929.
Chambers, William G., Basics of communication and coding. Oxford 1985.
Coy, Wolfgang, Industrieroboter. Zur Archaologie derzweiten Schopfung, Berlim, 1985.
Derrida, Jacques, Die Postkarte von Sokrates bis an Freud und jenseits, I. Berlim, 1982.
Dornseiff, Franz, Das Alphabet in Mystik und Magie. 1ª edição, Leipzig, 1922.
Eisenstein, Elizabeth, The printing press as an agent of change. Communications and cultural transformations in
earrymodern Europe, Vol. II, Nova Iorque, 1979.
Faulstich-Wieland, Hannelore/Horstkemper, Marianne, Der Weg zur modernen Burokommunikation. Historische
Aspekte des Verhdltnisses von Frauen und neuen Technologien, Bielefeld ,1987.
Fichte, Johann Gottlieb, Deducierter Plan einer zu Berlin zu errichtenden hoheren Lehranstalt. (1817]. In: Sämtliche
Werke, Immanuel Hermann Fichte (ed.) Vol. VIII, Berlim, 1845, pp. 97-203.
Freud, Siegmund, «Das Unbehagen in der Kultur» in: Gesammelte Werke, ordenado cronologicamente, vol. XIV
Frankfurt/M. 1940-68, pp. 419-506.
Goody, Jack, The domestication of the savage mind, Cambridge, 1977.
Gumbrecht, Hans Ulrich, «Beginn von 'Literatur'/Abschied vom Korper?» in Smolka-Koerdt, Giesela/Spangenberg,
Peter M.Aiilrnann-Bartylla, Dagmar (Ed.), Der Ursprung von Literatur. Medien, Rollen und
Kommunikationssituationen zwischen 1450 und 1650, Munique, 1988, pp. 15-50.
Habermas, Jurgen, Strukturwandel der Offentlichkeit. Untersuchungen zu einer Kategorie der burgerltchen
Geseilschaft, 5ª edição,. Neuwied/Berlim, 1971.
Hacking, Ian, The emergence of probability. A philosophical study of early ideas about probability, induction and
statistical inference, Cambridge, 1975.
Hagemeyer, Friedrich-Wilhelm, «Die Entstehung von Informationskonzepten in der Nachrichtentechnik. Eine
Fallstudie zur Theoriebildung in der Technik» in Industrie-und Kriegsforschung. Dissertação, FU Berlim, 1979.
Hagen, Wolfgang, «Die verlorene Schrift. Uber digitales Schreiben an Cornputern» in: Kittler, Friedrich A./Tholen,
Georg Chrisfoph (Ed.), Arsenale der Seele. Literatur- und Medienanalyse seit 1 870. Munique, 1989.
Havelock, Eric A., The literate revolution in Greece and its cultural consequences, Princeton, 1982.
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, Phanomenologie des Geistes (1807), Johannes Hofmeister (ed.), 6ª edição,
Hamburgo, 1952.
Hodges, Andrew, Allan Turing. The enigma, Nova Iorque, 1983.
Holmberg, Erik J., Zur Geschichte des cursus publicus, Dissertação, Uppsala, 1933.
Hyman, Anthony, Charles Babbage, 1791-1871. Philosoph, Mathematiker, Computerpionier, Estugarda, 1987.
Innis, Harold Adams, Empire and communications, Oxford 1950.
Kahn, David, The codebrakers. The story of secret writing, Londres, 1967.
Kennedy, Paul M., «Imperial cable communications and strategy, 1870-1914» in Kennedy, Paul M. (Ed..), The war
plans of the great powers 1880-1914,Londres, 1979, pp. 75-79.
Kenner, Hugh, The mechanic muse, Oxford, 1987.
Kittler, Friedrich A., Grammophon Film Typewriter, Berlim, 1986.
Kittler, Friedrich A., Aufschreibesysteme 1800/1900. 2ª edição, Munique, 1987.
Knies, Karl, Der Telegraph als Verkehrsmittel, Tubingen 1857.
Lerg, Winfried B., Die Entstehung des Rundfunks in Deutschland. Herkunft und Entwicklung eines publizistischen
Mitels. 2ª edição,. Frankfurt/M. 1970.
73
Leroi-Gourhan, Andre, Hand und Wort. Die Evolution von Technik, Sprache und Kunst. Frankfurt/M, 1980.
Lohmann, Johannes, «Die Geburt der Tragodie aus dem Geiste der Musik». in Archiv for Musikwissenschaft 37,
1980, pp. 167-186.
Luhmann, Niklas, «Das Problem der Epochenbildung und die Evolutionstheorie» in Gumbrecht, Hans Uirich/Link-
Heer, Ursula (Ed.), Epochenschwellen und Epochenstrukturen im Diskurs der Literatur- und Sprachhistorie,
Frankfurt/M. 1985, 11-33.
Luhmann, Niklas, «Wie ist Bewußtsein an Kommunikation beteiligt?» In: Gumbrecht, Hans Ulrich/Pfeiffer, K.
Ludwig (Ed), Materialität der Kommunikation, Frankfurt/M. 1988, pp. 884-905.
McLuhan, Marshall, Die magischen Kandle. Understandig Media, Dusseldorf/Viena, 1968.
Metropolis, Nicholas Constantine/Howletr, Jack/Rota, Gian Carlo (Ed.), A history of computing in the twentieth
century. A collection of essays, Nova Iorque, 1980.
Neumann, John von, «Allgemeine und logische Theorie der Automaten» in Kursbuch 8, 1967, pp. 139-175.
Nietzsche, Friedrich, Geschichte der griechischen Literatur. (Conferências de Basel 1874-76]. in Sämtliche Werke,
vol. V, Munique, 1922-29, pp. 67-284.
Oberliesen, Rolf, Information, Daten und Signale. Geschichte technischer Informationsverarbeitung, Reinbeck, 1982.
Ong, Walter J., Oralität und Literalität. Die Technologisierung des Wortes, Opladen, 1987.
Peters, John Durham,«John Locke, the individual, and the origin of communication», in Quarterly journal of speech,
Agosto, 1989.
Posner, Roland, «Milteilungen an die ferne Zukunft, Hintergrund, Anlaβ, Problemstellung und Resultate einer
Umfrage» in Zeitschrift fur Semiotik 6,1984, pp. 195-227.
Praun, Albert, Vernachlossigte Faktoren in der Kriegsgeschichtsschreibung. Das Nachrichtenverbindungswesen im
2. Weltkrieg, ein Stiefkind der militärischen Forschung. Wehrwissenschaftliche Rundschau, H.3, 1970, pp. 137-145.
Rabiner, Lawrence R./Gold, Bernhard, Theory and application of digital signal processing, Englewood Cliffs, 1975.
Riepl, Wolfgang, Das Nachrichtenwesen des Altertums. Mit besonderer Riicksicht auf die Romer,
Leipzig/Berlim,1913.
Rosenkranz, Karl, Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben, Berlim, 1844.
Schenda, Rudolf, Volk ohne Buch. Studien zur Sozialgeschichte der populdren Lesestoffe 1770-1910. Frankfurt/M.
1970.
Schenkel, Wolfgang, «Wozu die Agypter eine Schrift brauchten» in: Assmann, Jeida und Jan/Hardmeier, Christof
(Ed.), Schrift und Gedachtnis. Zur Archaologie der literarischen Kommunikation I, Munique, 1983, pp. 45-63.
Schiller, Friedrich, «Was heiβt und zu welchem Ende studiert man Universalgeschichte? Eine akademische
Antrittsrede», Jena, 1789, in Sämtliche Werke, vol. XIII, Eduard von der Hellen (ed.) Estugarda-Berlim, 1904, pp.3-
24.
Schivelbusch, Wolfgang, Geschichte der Eisenbahnreise. Zur Industrialisierung von Raum und Zeit im 19.
Jahrhundert, Munique, 1977.
Schon, Erich, Der Verlust der Sinnlichkeit oder die Verwandlung des Lesers, Estugarda, 1987.
Schwipps, Werner, «Wortschlacht im Ather» in: Deutsche Welle (Ed.), Wortschbcht im Ather. Der deutsche
Auslandsrundfunk im Zweiten Weltkrieg, vol.I, Berlim 1971, pp. 1-97.
Shannon, Claude Elwood, «A symbolic analysis of relay and switching circuits» in Transactions of the American
institute of electrical engineers, 1938, pp.713-723.
Shannon, Claude Elwood, «Communication in the presence of noise» in Proceeding of the insight of radio engineers,
nº 37, 1949a, pp. 10-21.
Shannon, Claude Elwood, «Communication theory of secrecy systems» in Bell System Technical Journal, 1949b, pp.
656-715.
Sickert, Klaus (Ed.), Automatische Spracheingabe und Sprachausgabe. Analyse, Synthese und Erkennung
menschlicher Sprache mit digitalen Systemen, Haar, 1983.
Stephen, Heinrich von/Satter, Karl, Geschichte der deutschen Post, vol. I, Berlim, 1928, vol. II, Berlim, 1935, vol.
III. Frankfurt/M. 1951.
Turing, Allan M., «Intelligence Sevice» in Ausgewahlte Schriften, Dotzler, Bernhard/Kittler, Friedrich (ed.), Berlim
1987.
Van Creveld, Martin L, Command in War, Cambridge, 1985.
74
Vemant, Jean-Pierre, Les origines de la pensée grecque, Paris, 1962.
Virilio, Paul, Krieg und Kino. Logistik der Wahrnehmung, Munique, 1986.
Voigt, Fritz, Verkehr, vol. I. Berlim, 1973, vol. II, Berlim, 1965.
Vorstius, Joris/Joost, Siegfried, Grundlage der Bibliotheksgeschichte, 7ª edição, Wiesbaden, 1977.
Wittfogel, Karl, Die Orientalische Despotie. Eine vergleichende Untersuchung totaler Macht, Colónia/Berlim, 1962.
Yates, Frances A., The art of memory, Londres, 1966.
Zglinicki, Friedrich von, Der Weg des Films. Die Geschichte der Kinematographie und ihrer Vorlaufer, Berlim,
1956.
Zuse, Konrad, Der Computer. Mein Lebenswerk, 2ª edição, Berlim, 1984.
75
EXORCIZAR O ESPÍRITO DAS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO56
Programa do Pós-estruturalismo
Introdução57
No outro lado da costa, na terra dos Gerasenos, um homem, que fazia dos
sepulcros a sua casa, acolhia, em dias há muito idos, um espírito sujo. Nada nem
ninguém o podia subjugar, nem grilhões nem correntes – quebrava as correntes e
despedaçava os grilhões. Quando Jesus desembarcou nesta costa, todo o homem lhe
pediu para não o castigar. Contudo, Jesus forçou o espírito a expressar um som e um
nome. A resposta: chamo-me Legião, porque somos muitos. Os espíritos apenas tinham
um desejo – não serem expulsos da sua morada actual. E porque, ali próximo do monte,
existia uma grande vara de porcos, Jesus consentiu aos espíritos que se dirigissem para
os porcos. Saíram portanto do homem e rolaram pela inclinação em direcção a dois mil
porcos ou espíritos, afogando-se no mar.58
Os espíritos desejam os muitos. O imundo não tem qualquer nome próprio, que
pertenceria apenas e só a ele. Também não utiliza essa arma contra os nomes, que são
conceitos, desde o engenho de Ulisses, ao chamar-se ninguém. Por um lado, ao conceito
pertencem todos e nenhum, ao nome «Legião», por outro lado, pertence uma autêntica
concentração de poder, que mal pode ser expandida ou colectável e que, nos tempos de
guerra, ou de armazenamento, não é contável.
56 Título original da obra: Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften. Austreibung remete
para exorcizar, expulsar, extrair. Mesmo que Geisteswissenschaften seja frequentemente traduzido por
Ciências Sociais e Humanas, uma tal tradução seria aqui completamente errada, já que a ideia que Kittler
quer transmitir é precisamente a necessidade de retirar o «espírito», que o século XIX produziu, nos
domínios da filosofia e ciências humanas, dos domínios do saber contemporâneo. Pelo facto de Kittler
fazer referência a vários tipos de Ciência [Wissenschaft] deixamos, excepcionalmente, a palavra original
referente à ciência no corpo de texto[N.T.] 57 A introdução ao volume Austreibung des Gestes aus den Geisteswissenschaften foi, enquanto editor,
tarefa da responsabilidade de Kittler. O volume conta com textos de, entre outros, Jacques Derrida e
Samuel Weber. Kittler contribui com esta introdução e mais um texto, «Autorschaft und Liebe» [Autoria e
Amor](pp.142-174). Referência da presente tradução: KITTLER, Friedrich, «Einleitung» in KITTLER,
Friedrich (ed.), Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften, Editora Ferdinand Schöningh,
Munique, 1980, pp. 7-14. [N.T.] 58 Nesta passagem Kittler versa livremente a partir do Envangelho segundo São Marcos 5:1-13. [N.T.]
76
Assim como os porcos. Os espíritos imundos sabiam bem para quem se
dirigiam, quando «O Espírito Único» os ameaçava. Um Tratado, o Da Essência das
Coisas, descreve que os porcos chafurdam no seu desejo, lama e imundice – um desejo
que o autor filosofador nomeia tão insaciável quanto inconcebível59
.
E a própria sujidade, que adere ao espírito e aos porcos, é pluralidade60
inumerável. Que as coisas da terra em todas as suas variações estejam ligadas aos seus
respectivos conceitos como, por exemplo, mulheres e homens estão milagrosamente
ligados à ideia de «O Homem61
» - Sócrates disse-o , durante toda uma vida, aos
atenienses. Apenas nomeava, para fazer crer que um conceito também ligava, neste caso
estranhamente, cabelos, sujidade e fezes62
.
Três histórias antigas, recontadas a partir de livros judaicos, gregos e latinos.
Mas existe um retorno não só do recalcado. Na Legião dos que andam de novo
[Wiedergänger]63
assombram também os proscritos64
. As histórias repetem-se porque
nelas está uma possessão, a de abandonar a morada do conhecimento.
Foi a reforma da educação do ano 1770 até ao ano de 1800, na sua violência e
esquecimento, que dissipou no ar as grandes nuvens coloridas que pairavam sobre o
Ocidente, judaicas, gregas, romanas. Incontáveis histórias de espíritos cairão, deste
modo, no silêncio. No lugar das muitas histórias, entrou em cena a História no singular,
o «colectivo-singular» que, daí em diante, «continha em si as condições de
possibilidade de todas as histórias individuais»65
. No lugar dos espíritos, que apareciam
enquanto visões de espíritos e sonhos, entrou em cena «O Espírito» no singular, que, daí
em diante, comandou todos os campos e todas as vias de conhecimento. Friedrich
Schlegel, ao descobrir nos indianos uma filosofia, precisou apenas de remover uma
última maioria das duas singularidades, isto é, a sua própria maioria – e a história do
espírito [Geistesgeschichte] escrevia-se numa palavra.
59 Lucrécio, De rerum natura, VI, 976-78: at contra nobis caenum taeterrima cum sit/spurcities, eadem
subus haec iucunda videtur,/insatiabiliter toti ut volvantur ibidem. 60 No original: Vielheit. [N.T.] 61 No original: das Menschen. [N.T.] 62 Platão, Parménides, 130 A-D. 63 Palavra que significa literalmente, «aquele que anda de novo». A palavra alude a uma complexa
mitologia germânica e escandinávia. [N.T.] 64 No original: Verpönte. [N.T.] 65 Reinhart Koselleck, «Wozu noch Historie?» in Seminar Geschichte und Theorie. Umrisse einer
Historik, H.M. Baumgartner e J. Rüsen (Ed.), Frankfurt/M, 1976, p.23.
77
Que esta reforma virou a ordem das posições das faculdades académicas e
tornou os últimos primeiros ou, dito de outro modo, os Filósofos em Senhores66
; que
ela se desencadeou desde logo enquanto unificação do conhecimento (‘Bildung67
’)
[formação], gerando a enorme proliferação de honradas ciências humanas
[Geisteswissenschaften] – tudo isso é conhecido. Menos conhecidas são as pequenas
pedagogias, nas quais se exorcizava antes demais os espíritos das crianças, de modo a
torná-las aptas68
para o ensino superior. Um manual escolar para crianças de 1788
mostra um porco lucrécio69
, que ensina a expressão sch e a frase «Vem, rola comigo
nos excrementos70
», convidando esse porco uma ovelha para psicoanalisar o seu «não»:
«és vaidosa, ovelha»71
. E, apesar disto ou por causa disto, escrevem-se fábulas e
manuais escolares para crianças, para que as crianças leitoras reproduzam a ovelha. É
que «o espírito único» também as tem de enfeitiçar – para o Narcisismo do homem.
História, Espírito, Homem-: os três elementos das ciências humanas
[Geisteswissenschaften] estiveram presentes a partir de um golpe ou um lance de dados.
Quando o dado foi continuado analisado segundo as regras da combinatória matemática,
deu-se o surgimento das muitas novas disciplinas, que o século dezanove estabeleceu
como cátedras72
. Desde logo, as combinações dos três elementos em duas classes abria
campos de pesquisa suficientes: o espaço entre a História e a Filosofia é coberto pelas
Filosofias da História e Histórias da Literatura; o espaço entre Espírito e Homem é
coberto pelas Antropologias e Filosofias da Linguagem; o espaço entre Homem e
Espírito é coberto pelas Histórias da Cultura e Teorias do Progresso.
Deste modo, uma massa imensa de conhecimento, que as ciências humanas
[Geisteswissenschaften] produziram, deu origem a um outro modo de tratamento73
. Na
época do seu grande boom, em 1900, surgem três formas de saber que não deram
continuação à proliferação das Ciências Humanas [Geisteswissenschaften], mas, pelo
66 Cf. Friedrich Paulsen, Geschichte des gelehrten Unterrichts auf den deutschen Schulen und
Universitäten vom Ausgang des Mittelalters bis zu Gegenwart, Leipzig-Berlim, 1919-21, R.Lehmann
(ed.), vol. II, p. 263. 67 A complexidade do termo Bildung deriva do facto de este significar formação num sentido totalizante
do termo – Bild como imagem, constituído. [N.T.] 68 No original: hochschulreife, literalmente, «maduras para a escola superior». [N.T.] 69 No original: lukrezischen Schwein. Atribui a lucrecidade ao porco. Esta adjectivação deriva da filosofia
de Tito Lucrécio Caro (séc. I a.C.). 70 No original: «Kommt, wälze dich mit mir im Kot». [N.T.] 71 Joachim Heinrich Campe, Neues Bilder Abeze. Nachdruck, D.Leube (ed.), Frankfurt/M, 1975, p.46. Cf.
Também o exemplo paralelo do mesmo ano em Karl Hobrecker, Alte vergessene Kinderbücher, Berlim,
1924, p.23. 72 No original: Lehrstühle. [N.T.] 73 No original: Handhabung. [N.T.]
78
contrário, cruzaram-nas. É a hora de nascimento do Estruturalismo, aquando ainda tal
não se chamava (pelos nomes chamam sempre outros, tal qual como na exorcização dos
espíritos). O estruturalismo «torna o ‘Homem’, que constitui nas Ciências do Humano
[Humanwissenschaften] a sua positividade, ‘avariado’74
[kaputt] ». Através de tal
negação de dois dos elementos da trindade científico-humanística
[geisteswissenschaftlichen] construíram-se: a Psicanálise, a Linguística Sistémica, a
Etnologia.
A combinação de «Espírito» e «Homem» não tem importância (para ouvidos
francófonos: é impertinent) na análise de um conhecimento que todas as pessoas têm
sem, por uma única vez, o terem de saber. Nestas falhas das Ciências Humanas
[Geisteswissenschaften] – o Inconsciente – entra, com os Estudos sobre Histeria75
(1895), a Psicanálise de Freud. A combinação de «Espírito» e «História» não tem
importância numa quantidade de factos lingúisticos que, malgrado as histórias das
mudanças fonéticas e desejos de fala, suspendem a diferenciação entre ouvidos e bocas.
Nestas falhas entra a linguística dos significantes, com o Cours de linguistique générale
(1915) de Sausurre. Em terceiro lugar, a combinação de «História» e «Homem» não tem
importância nas formas de vida que se extinguem quando a História, com as suas
canhoneiras76
, perante as suas praias, se limita a lançar âncoras. Nesta falha entrou,
desde o Totemism and Exogamy (1910) de Frazer, uma Etnologia a-histórica. Portanto,
temos aqui três formas de saber que articulam a tricotomia não desenvolvida do seu
inventor Sausurre: parole/langue/langage: dos chamados sofrimentos e delírios das
histéricas extrai-se simplesmente um discurso77
, dos chamados sons e caligrafia extrai-
se um jogo tão convincente como o xadrez, das chamadas pré-formas78
da família feliz
moderna extrai-se um fenómeno irredutível e total com regras e proibições próprias:
uma cultura.
Os três discursos, que por volta de 1900 transcedem as cesuras para a ciência
[Wissenschaft]79
, são um conhecimento de resíduos, em todos os sentidos da palavra.
74 Michel Foucault, Die Ordnung der Dinge, Eine Archäologie der Humanwissenschaften, Frankfurt/M,
1966, p.454.
Lembre-se que na alemanhã o título da obra de Foucault não foi «as palavras e as coisas» mas sim «a
ordem das coisas» [N.T.] 75 Edição portuguesa: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1990. [N.T.] 76 Embarcação armada com canhões. [N.T.] 77 No original: Rede. [N.T.] 78 No original: Vorformen. [N.T.] 79 No original: Schwelle. [N.T.]
79
Sendo resíduos das Ciências Sociais e Humanas[Geisteswissenschaften], têm o seu
resíduo nas coisas. E o resíduo tornou-se produzido em massa. A sujidade da
sexualidade e das palavras grosseiras80
, com as quais as pessoas falam a sua verdade,
torna a Psicanálise o único ponto de partida. Nos resíduos, os quais os colonizadores
produziam ou deixavam a alguém, a Etnologia podia tornar-se rica, não apesar de, mas
precisamente porque são resíduos. A salada de palavras de certos versos latinos antigos,
que os historiadores da literatura tresleram, estava à da loucura solitária de Saussure na
procura pelos nomes dos deuses81
. Assim recorrem, enquanto elementos da prática
estruturalista, as histórias de espíritos. Os seus média: as mulheres histéricas, os tristes
trópicos, os anagramas saturninos82
.
Tais elementos não têm sentido, no modo em que as ciências humanas
[Geisteswissenschaften] entendem e produzem sentido. O estruturalismo é, para tomar
um jogo de palavras de Derrida83
, um pas de sens [sem-sentido]: um passo de sentido e
um não-sentido. Daí brotam todas as simplicidades e urgências dos seus métodos. Onde
não existe o que não compreender e o que não interpretar, perante uma quantidade de
resíduos o primeiro passo é estabelecer uma ordem. Fantasias inconscientes, oposições
significantes, regras de casamento dos selvagens – todas elas serão articuladas. O que
conta é a relevância ou pertinência num jogo de puzzle, não o significado num mundo.
Estabeleceu-se a ilusão de que isso significava que algo se torna mais profundamente
compreensível através da Psicanálise do que entre as pessoas. Todas essas fantasias
inconscientes, oposições significantes e regras de casamento dos selvagens movem-se –
disse Freud - num Rébus84
. Pequenas ordenações (em colunas e séries, segundo regras
de compressão e deslocamento, em árvores genealógicas) são, contudo, estruturas.
Ordenação e taxionomia, os métodos do então estruturalismo clássico, têm
também os seus limites. Eles apreendem, mas fazem-no apenas sob a condição de que as
heterogeneidades escrutinadas brotaram de um mesmo campo homogéneo. O erro de
80 No original: Sprachschnitzer. [N.T.] 81 Cf. Jean Starobinski, «Les Anagrammes de Ferdinand de Saussurre» in Mercure de France, Fevereiro,
1964 e Michel Déguy, «La folie de Saussure», Critique, 25 (1969), p. 20-26. 82 Para não falar dos bisontes e anjos, pigmentos temporários e sonatas proféticas enquanto a única
imortalidade que Lolita e o seu amante podiam partilhar. 83 Neste volume, p.26.
Porque não traduzimos o volume mas sim apenas o ensaio de Kittler, para consultar este ensaio cf.
Derrida, Jacques, «Titel (noch zu bestimmen)» in KITTLER, Friedrich (ed.), Austreibung des Geistes aus
den Geisteswissenschaften, Editora Ferdinand Schöningh, Munique, 1980, pp.15-29. 84 Jogo no qual palavras e frases são representadas através de sinais ou desenhos que estabelecem
analogia com a palavra não mencionada. [N.T.]
80
Freud em Totem e Tabu consiste, deste modo, no facto de que os resíduos das histéricas
e dos neuróticos forçados não podem ser simplesmente misturados com os resíduos dos
loucos, sem com isso tornar a própria Psicanálise num fantasma. O pai primordial
[Urvater], que já contaminou, enquanto palavra, a Psicanálise e a Etnologia, pertence à
secção das ervas e raízes. Deste modo, projectos como os do Freud tardio não são
coincidência. A possibilidade de um discurso que ocorra, traduza e torne unificado, sem
discontinuidade85
e sem perda de selectividade, as três ciências da estrutura
[Strukturwissenschaften] seria sempre prometido pelas suas linhas de fuga e
permaneceria, por necessidade, ainda e sempre a salvo. Por isso, os estruturalistas falam
falam também da posição académica de um discurso, que está precisamente no lugar de
ou em vez de um discurso universitário, isto é, universal.
O que lá e aqui, também no subtítulo deste volume, se chama Pós-
estruturalismo, parte, presumivelmente, desta im-possibilidade86
e da resolução que ela
acarreta. Trata-se de projectos controlados metodicamente ao tomar, nos métodos
combinatórios das ciências da estrutura [Strukturwissenschaften], os seus três elementos
próprios. As descobertas linguísticas, psicanalíticas e etnológicas são as informações
resultantes de uma nova combinatória. Contudo, mesmo aí, a posibilidade de ordenação
taxionómica dissolve-se. A coexistência de hetrogeneidades heterogéneas não faz
apenas sentido; ela também cinde estruturas.
Na combinação da Psicanálise e Linguística Sistémica, como Lacan a instituiu, o
Complexo de Édipo, essa pedra das construções freudianas, torna-se praticamente um
estúpido dramazito87
e a linguística estrutural um absurdo: lalangue mienne. A
ignorância abismal de um correspondente de Paris atribuíu-lhe uma bela forma, ao
declarar que o «edifício teórico» de Lacan penetrou simplesmente «as raízes
psicológicas profundas das anedotas linguísticas francesas»88
. Neste facto reside a
pergunta se a ciência [Wissenschaft] que a Psicanálise continha, era Ciência
[Wissenschaft]89
. Inversamente, Foucault, na sua combinação de palavras, essas que a
linguística as analisava, e coisas da nossa cultura, como a etnologia a encarava, não
pode rebater a impressão enganadora de que Les mots et les choses seriam uma
85 Cf. Foucault, a.a.O., onde esta possibilidade e afirmada. 86 No original: Un-Möglichkeit. [N.T.] 87 No original: Dramollet. [N.T.] 88 Andreas Razumovsky, «Psychoanalyse als Kirche» in Frankfurter Allgemeine Zeitung, 5.2.1980, p.21. 89 Cf. Lacan, Schriften, N.Haas (Ed.), Olten/Freiburg/Br., 1973, vol. II, pp.233-57.
81
recorrência das ciências humanas [Geisteswissenschaften] e das suas totalidades
culturais fantasmagóricas. Dois sintomas da im-possibilidade de um discurso unificado.
As diferenças e separações entre pós-estruturalistas também recaem, no campo
dos jogos biográficos e institucionais, nesta im-possibilidade. Negações de qualquer um
elemento da ciências da estruturas [Strukturwissenschaft], funcionam na realidade como
matrícula da própria escola.
Os ensinamentos de Lacan são, obviamente, uma combinação de Psicanálise e
Linguística com a exclusão da Etnologia. Não que os primeiros escritos não quisessem
enfrentar Frazer e os canónicos «não-Lévi-Stauss» mas, com efeito, o olhar de Etnólogo
sobre a exclusão e inclusão da loucura na nossa cultura permanecia uma praxis analítica
proibida90
. Esta exclusão implícita marca também a Gramatologia de Derrida. Ela
decifra o falocentrismo filosófico, que, lança à tradição, desde logo no seu nome, um
olhar linguístico e psicanalítico malicioso, a partir de um lugar cuja abrangência foi
nomeada pelo próprio Derrida: uma perna dentro e uma perna fora da Metafísica. Os
etnólogos, quando não se chamam Duerr91
, tomam outra posição.
Inversamente, Deleuze e Guattari anunciam em Anti-Édipo uma esquisoanálise,
que curto-circuita os conceitos psicanalíticos fundamentais (não os seus modelos) com
uma etnologia dos selvagens, bárbaros e civilizados (o nosso nome). A combinatória
joga sob exclusão expressa da linguísta dos significantes. Tomada a partir da teoria da
informação e da teoria da corrente eléctrica que, no máximo, permitia uma aplicação de
Hjelmslev em vez de Saussure, elimina o conceito de articulação estrutural tanto
metodicamente como tematicamente (com o qual esta separação cai). E, para tornar
completamente compreensível a sequência da negação, a análise do discurso de
Foucault procede numa combinação de Etnologia e Linguística sob exclusão expressa
da Psicanálise. Um olhar estranho sob os últimos duzentos da europa e um ouvido, que
ensurdece o sonho de homens falantes, valida finalmente um poder, que as estruturas
desde logo cindem, visto que elas, desde as Ciências Sociais [Geisteswissenschaften]
em diante, estabeleceram-no92
. É por isso, contudo, que a Psicologia é, enquanto
processo de fazer crer às próprias pessoas no «Espírito», «Homem» e «História»,
90 Cf. A outra tomada de posição de Lacan face à unificação das três ciências da estrutura
[Strukturwissenschaften] em Radiophonie, Scilicet 2/3, 1970, p.60-67. 91 Cf. Hans Peter Duerr, Traumzeit: Über die Grenze zwischen Wildnis und Zivilisation, Frankfurt/M.,
1978, p.151-161. 92 Vgl. Fink Eitel in KITTLER, Friedrich (ed.), Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften,
Editora Ferdinand Schöningh, Munique, 1980, pp.55.
82
proibida. Os primeiros escritos do psicólogo Foucault não devem ser republicados; os
tardios colocam Freud, numa série irónica, ao lado de confessores e inquisidores.
As negações implícitas ou expressas sobre qualquer ciência da estrutura
[Strukturwissenschaft] desintegram com elas a unidade, essa que o título «Pós-
estruturalismo» sugeria. Os reunidos eram o nome «Legião». As várias combinações
produzem escolas e programas, mas nenhum programa. Deriva possivelmente daí esta
verdade: que a enorme produtividade das ciências [Wissenschaften], no limite, não
querer saber nada da verdade ou, dito de outro modo: fica na sua «paranóia bem-
sucedida»93
. Os programas pós-estruturalistas estão salvaguardados, desde logo, da
acção enterrar as suas disputas na terra de ninguém do geral e comum.
O presente volume volta a uma série de conferências, que o Studium Generale
da Universidade de Freiburg organizou nos anos 1978 e 1979. Se foram ou não
conferências no sentido deste título, tal fica por saber, desde logo no título das
primeiras. A figura peculiar do Trickster ou Joker, que joga e brinca com a ordem de
um discurso, assombra frequentemente as conversas que foram tidas no lugar de um
discurso universitário/universal. Eles aparecem na imagem espelhada do sujeito da
ciência [Wissenschaft] que, de modo muito diferente do sujeito da possessão, fica à
janela e, bem comportado, «devora a informação», esse tranquilizante.
Por consequência trata-se, pelo contrário, dos efeitos de um controlo. Os
programas pós-estruturalistas não foram escritos para serem reportáveis. É mais
significativo pô-los em jogo. Que as formas de conhecimento surjam, que os seus
elementos científico-humanísticos [geisteswissenschaftlichen] sistematicamente
disiputem e sejam capazes, de igual modo, de uma análise dos domínios onde o
«Espírito», «Homem» e «História» estavam em casa é, particularmente na Alemanha,
causa suficiente para procurar uma espécie de realimentação [Rückkopplung
(feedback)].
Assim, na retoma do dado, programas pós-estuturalistas serão reunidos com a
Ciência do Espírito [Wissenschaft des Geistes] (e as suas doenças). Três partes, cujas
regras de subdivisão oscilam entre o sentido disciplinar e o não-sentido alfabético,
passando os seus efeitos na Filosofia, Literatura e Teoria da Arte [Kunstwissenschaft],
Psicanálise e Psiquiatria. Que esta delimitação permaneça porosa, tal reside desde logo
93 Lacan, Schriften, vol. II, p.254.
83
no facto de que uma matriz, algo como a família matriarcal94
, prova o seu poder de igual
modo tanto em imagens como em textos e teorias. Que a dissimilaridade95
não se
extinga no contexto de um discurso único, tal reside na própria coisa.
Agradeço a Günter Schnitzler, que foi sucedido, através da palavra mágica
Studium Generale, na tarefa de trazer perante o microfone americanos, franceses e
alemães.
Penso em Maggie Rösinger e Joseph Heselhaus, que escutaram, e ao fazê-lo,
pertenceram, estando apenas longe.
Freiburg, Fevereiro 1980
F.A.K.
94 No original: mutterzentrierte. [N.T.] 95 No original: Verschiedenheiten. [N.T.]
84
SOBRE O ESTADO E OS SEUS TERRORISTAS96
Toda a vida vagueou em blocos de construção.
Ingebor Bachmann, Groβe Landschaft bei Wien
Minhas senhoras e Senhores, caros serviços,
Todos servimos um propósito maior. Eu, por exemplo, sirvo uma Grécia, na qual
não existem de todo serviços e na qual o diálogo livre tem lugar. Vós, por oposição,
tendes por certo, pelo menos espero, um futuro de guerras clássicas. Qualquer outra
atitude seria, face às duas superpotências que se confrontam nas costas do pacífico,
inocente. Só que quase ninguém quer saber do conhecimento do que as guerras clássicas
foram hoje. Os seus horrores superam tudo o que foi pensado.
Em vez disso, ficamos a contemplar aqui na europa, fascinados como o coelho
perante a cobra, um espectáculo de ficção entre dois inimigos absolutos, dos quais um
lado não é sequer um sujeito, segundo quaisquer leis nacionais, e para o qual os direitos
humanos das populações civis são algo a ser sistematicamente violado, enquanto que o
outro negligencia de forma inteligente a diferença entre algo como prosecução criminal
e lei marcial.
Numa longa tradição de pesquisa, que vai desde Carl Schmitt até Michael
Jeismann, a ainda mais longa pré-história do inimigo absoluto está bem explorada, esse
que é algo como um sistema de porcos ou de estados marginais que têm de ser
simplesmente erradicados. Hoje, fica por lembrar o que foram um dia os inimigos
relativos, quando la chevalerie, isto é, as ordens de cavaleiros, ainda se ocupavam da
guerra na Europa. Francisco I de França, a suprema majestade cristã, proferiu uma
96 Leitura apresentada em 2002 no contexto das «Mosse-Lectures», na qual participaram também
Étinenne Balibar e Martin van Creveld, na Humboldt-Universität zu Berlin, Faculdade de Filosofia,
Instituto de Literatura Alemã, financiadas pela Hilde Mosse Foundation, de Nova Iorque. Disponível em
http://edoc.hu-berlin.de/humboldt-vl/balibar-etienne-2002-11-21/PDF/Balibar.pdf a 03-02-2013[N.T.]
85
notável bon mot sobre Carlos V, imperador romano e rei alemão: « O meu irmão Carlos
e eu somos um coração e uma alma – ambos queremos Milão». O que não impediu a
empreitada sangrenta dos soldados97
victoriosos de Carlos na Batalha de Pavia, em
1525, ao atacar Milão; nem impediu o imperador de sequestrar o seu opositor vencido,
libertando-o novamente aquando o Tratado de Paz de Madrid. Nenhum dos dois chama
o outro de inumano. É que, como a bon mot e Lacan explicam: o desejo dos irmãos –
mesmo que sejam apenas tão nominais quanto os herdeiros coroados da Europa – é
sempre recíproco e funciona sempre enquanto reconhecimento do rival enquanto meu
igual. Tanto melhor ou pior para a lembrança das guerras clássicas, nas quais o inimigo
era apenas um opositor temporário de igual proviniência.
É do domínio da justiça, baseado na equivalência e reconhecimento, não utilizar
as mesmas medidas aquando a análise de guerras – relativas e absolutas – diferentes.
Temo que cada sistema de poder tenha o inimigo que produz.
Antes de ir na procura desta suposição polémica nos grandes sistemas de poder,
gostaria de tornar presente um exemplo da chamada história temporal [Zeitgeschichte].
I
Quando a bela Républica Federal [Alemã] pensava ter dito o adeus ao seu idílio
pós-guerra, caminhou para a Modernização ou – como outros chamam – a colonização
do seu mundo vivente [Lebenswelt]. A casa de família, para os presos retornados e as
suas mulheres tornadas distantes, que o governo de Adenauer tinha construído nas
periferias das cidades, deu origem a quase a uma infinita rajada de prédios, que exigia
espaço, aberto por um comando de serras eléctricas. Locais com nomes tão belos como
Freibug-Binzengrün ou Erftstadt-Liblar ascenderam nas alturas. Não
surpreendentemente, os habitantes de tais cidades-satélite, como eram chamadas, nessa
nova visão técnica do astro nocturno, estavam imersos em elevadores e rampas de lixo e
desenvolveram posturas de consumo e lazer estatisticamente monótonas. Tal significaria
terríveis filas nas autoestradas, não tivessem os planeadores desenvolvido,
simultaneamente, dispersão do tráfico. Depois de projectos de longa duração, cuja
execução tinha sido atrasada por uma Guerra Mundial, a República Federal
97 No original: Landsknechte. [N.T.]
86
transformou-se na superfície estatal com mais autoestradas da Terra. Brevemente, as
cidades satélites podiam gabar-se de possuir não só um enorme centro comercial, mas
também a sua própria saída na autoestrada. Na Alemanha Ocidental começou uma nova
época – e podemos dizer que estivemos presente no seu nascimento98
.
Apareceram festas, centros comerciais incendiados e roubos a bancos, cujos
perpretadores ficavam estranhamente desconhecidos. Só quando os criminosos, como
se chamavam, enviaram cartas com um logótipo claramente oriental é que a polícia
criminal soube, pelo menos, com quem estava a lidar, passando os casos não resolvidos
ao então Serviço Federal Criminal [Bundeskriminalamt- BKA]. Inicialmente, o
departamento também falhou mas depois lembrou-se de uma certa classe média social
democrata e de um Presidente da Polícia cujo sonho (contemporâneo ao de Oskar
Wiener) era o melhoramento contínuo da Europa Central. Este arauto99
da
modernização, que significa, desde logo, a digitalização dos métodos de busca,
compreendia este pensamento simples e, no entanto, profundo: cada sistema de poder
tem o inimigo que produz.
Os Terroristas (assim chamados daqui em diante) conseguiam navegar como
peixes de Mao na água das guerras dos partisans100
, isto porque tinham adaptado o seu
mundo de vida [Lebenswelt] às cidades-saltélite e às autoestradas. Conduziam os
mesmos BMWs rápidos, para poderem ficar sempre nas linhas de cedência de
passagem; alugavam novas residências, pintadas de barco, nos arranha-céus, onde
ninguém conhece o seu vizinho, e de lá atiravam as partes suspeitas dos restos das
bombas para rampas de lixo, desaparendo anonimamente; já para não falar que as tão
queridas áreas periféricas florestais forneciam o terreno perfeito para o treino com
pistolas. Quanto a BKA chegou ao fundo destes padrões de comportamento ou (do
ponto de vista dos afectados) deste mundo de vivência [Lebenswelt], os terroristas
também se deram bem por trás de grades que, como se lembrararão, foram
completamente inventadas e erguidas segundos os mesmos padrões de modernização. É
98 Kittler joga aqui com uma conhecida declaração de Goethe, aquando a Batalha de Valmy: «deste lugar
e a partir deste dia começou uma nova era na história do mundo, e podeis dizer que estivésteis presentes
». No original: «Von hier und heute geht eine neue Epoche der Weltgeschichte aus, und ihr könnt sagen,
ihr seid dabei gewesen» - Johann Wolfgang von Goethe: Die Kanonade von Valmy 1792, Editora Junker
und Dünnhaupt, 1936. [N.T.] 99 Kittler joga aqui com a homofonia entre Herald, «herói/arauto» e o nome desse chefe, Herold. [N.T.] 100 Apesar de significar «guerrilheiro», partisan têm uma conotação epocal e, portanto, optámos por não
traduzir em todas as ocorrências mas sim apenas naquelas em que o sentido está mais próximo do termo
traduzido. [N.T.]
87
que os ladrões de bancos, bombistas e assassinos não podiam seguir sob todos os
aspectos as formas de vida computacionais-técnicas101
da época: era igualmente
perigoso, por exemplo, pagar a renda normalmente, mesmo se tal fosse feito com um
nome falso. Assim, o Dr. Horst Herold, o espírito genial que liderava a BKA, propôs a
grelha negativa de busca: uma pesquisa de informação nacional segundo procedimentos
burocráticos quotidianos, que alguns inquilinos evitam de forma atípica. O fim é
conhecido e, no entanto, não necessariamente reconhecido. Só nas residências antigas
de hoje nos ocorre, pouco a pouco, o que é crescer num Estado Federal que enterrou os
seus restos terrestres sobre betão e asfalto.
Passemos de um pequeno exemplo a um mundial. Em vez de autoestradas, o
tráfego aéreo; em vez dos computadores da BKA, a vigilância da internet; em vez de
estranhos pagamentos de rendas, transferências bancárias sem sentido, baseadas apenas
na confiança e crença, como o que ocorre no Islão; em vez de Estugarda-Stammheim, a
Baía de Guantanamo. Apenas os arranha-céus não mudaram nestas três décadas,
excepto na sua altura. Colocando a questão por outras palavras: como é que o
superpoder de hoje obteve os inimigos que tem?
II
Para compreendê-lo, torna-se necessário, antes demais, um olhar para o passado
dos velhos impérios. O British Empire, antes da sua substituição definitiva pelos
Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, jazia sobre dois pilares, um extremamente
moderno e um completamente tradicional. A inovação, com a qual a Grã-Bretanha
entrou na Primeira Guerra Mundial, foi uma rede de telégrafos única, passando através
de todos os portos, que trouxe à Royal Navy a manutenção da sua hegemonia matítima.
Estes cabos «all red», ou seja, puramente britânicos, davam conta da «fleet in being»,
isto é, o estado das embarcações e não apenas o seu movimento futuro: todo o
movimento inimigo e todo o depósito de carvão reabastecido. Nenhum outro estado,
para não falar das potências médias, conduziu de tal modo as possibilidades de controlo
à distância para as guerras, tanto ao nível logístico como ao nível estratégico. Por outras
palavras: as potências médias assistiam, logo no segundo dia da Primeira Guerra
Mundial, a um bloqueio duplo: o bloqueio de mensagens, cortadas graças ao monopólio
101 No original: computertechnisch der Lebensform von damals folgen (…). [N.T.]
88
britânico do sistema de cabos; o bloqueio de reforço de recursos, como os nitratos
chilenos, graças à Royal Navy.
O segundo pilar no qual o British Empire se baseava assegurava os reforços, não
de recursos, mas de carne para canhão. Enquanto outras potências coloniais como
França e Bélgica reduziram os seus súbditos negros e amarelos segundo o modelo
espartano de simples trabalho escravo, a Grã-Bretanha, por oposição, aprendeu as lições
amargas provenientes do Muntínio de Sepoy, em 1857 e da Guerra dos Boers de 1899.
Foi a ligação por cabo telegráfico102
da sua guarnição de tropas dispersa que manteve a
vice-realeza contra a rebelião dos regimentos auxiliares indianos, numericamente
superiores; apenas a mobilização de soldados de cor ajudou o império contra os
guerrilheiros Boer sul-africanos, que queriam manter os seus escravos de cor.
Regimentos completamente formados por Sikhs, Gurkahs e outros grupos coloniais,
com os quais a East India Company tinha produzido sangrentas batalhas, matavam e
eram mortos, agora em nome da Imperadora Victória. Já aí a Sahib’s War, a guerra
entre senhores, como Kipling intitulou a sua história, acabava para os Boer em
concentration camps, rodeados por arame farpado.
O vencedor do prémio Nobel de 1907 também revelou o modo poético como os
«brancos de cor», esses ferros de madeira, surgiriam no mundo muito antes da CIA
financiar a Aliança do Norte. Kipling, o escritor de Mowgli e Kim, veio ao mundo no
domínio imperial da Índia, adquirindo portanto o Hindu antes do Inglês: as amas são
mais velhas que as mães. O fardo lírico de Kipling, ter de trazer cultura enquanto
homem branco a todas as outras etnias, veio presumivelmente a partir dos Mahdi, já que
em 1881, ou seja, muito antes dos reis saudis e dos seus Bin Ladens, já tinham um país
inteiro sobre o seu domínio – o condomínio anglo-egípcio de seu nome Sudão – através
dos ensinamenos de Muhammad ibn’Abd Al-Wahhab. O primeiro estado marginal
estava assim no mundo, a partir do momento em que a cabeça decepada de Gordon
Pascha (como que dando razão a Bataille) contemplava o céu azul vazio sobre a
muralha de Khartoum e o Empire foi auxiliado pelos seus armamento de destruição e
poetas. «We have the Maxim Gun and they have not», rimava Hillary Bellock já na
altura, indo ao encontro das diferenças de cor de pele, já que o armamento de destruição
seria, como posteriormente a bomba atómica, apenas desenvolvido e utilizado contra
gente não branca. Contudo, como já foi dito, o peso do fardo de Kipling tornou-se
102 No original: Verkabelung. [N.T.]
89
insustentável assim que esta divisão bélico-técnica foi arruinada: a partir de Outubro de
1899, os brancos testavam o seu armamento em brancos, os Boers trituravam brancos e
vice versa. Kipling extraiu daqui uma conclusão afiada: O império não podia mais
chegar a compromissos pútridos com as famílias dos tronos europeus que, mesmo sendo
aparentadas por sangue, não eram merecedoras de confiança, já que recebiam, por
exemplo, os presidentes Boer no castelo de Berlim. O império teve então de se apoiar
nos nativos negros, castanhos ou amarelos para assegurar um império onde - como
ocorreu no caso de Carlos V – o sol nunca se punha.
Assim Kipling descobriu (muito antes da CIA) um novo tipo de herói
romanesco; um novíssimo semi-órfão103
, Kim, sentado sobre Zam-Zammah, o antigo
canhão de bronze de Lahore, dançado entre magnatas e vice-reis, uma mãe indiana e um
pai, soldado colonial, perdido sem deixar rasto: Kim, um nómada viajando por metade
da Índia, conhecendo como ninguém as duas frentes e podendo assim fazer um
movimento decisivo no Great Game, colocando a Rainha Vitória contra o Czar Nicolau
no domínio do Afeganistão. Deste modo, um meio-sangue é bem-sucedido onde cem
funcionários estatais e vinte regimentos militares falharam: os nómadas salvam todas as
nossas casas sólidas. Dezenas de milhares de Gurkhas e Sikhs armados, ou seja, a elite
bélica colonial da Inglaterra, seguiriam o exemplo de Kim, para além de um tal de
Lawrence da Arábia, que tomou o romance histórico-colonial literalmente, para
incentivar os jovens e simplórios príncipes árabes, que apenas se preocupavam com
camelos, falcoaria e ibn-Abdul Wahhab, a triunfar sobre o inimigo turco. Menos de
trinta anos depois da victória sangrenta de H.H. Kitcher sobre os Mahdi, Lawrence
elevou inimigos absolutos a reis. As machineguns dos seus cavaleiros a camelo tinham
trazido, por fim, o sultanato à sua morte, terminando a antiga ordem do Oriente104
e
abrindo a sua expansão nomádica. Contudo, em oposição aos seus controladores à
distância, os agentes secretos de Londres permaneciam inconscientes em relação à
riqueza petrolífera escondida por debaixo dos desertos libertados. Numa manhã sem
vigilância, Lawrence da Arábia morreu a sua morte de motociclo. O fardo do homem
branco caiu dos seus braços, sendo tomado depois pelas cidades de Riad ou Mosul.
III
103 No original: halbwaises Halbblut schakelt Kim. [N.T] 104 No original: Morgenlandes. [N.T.]
90
Apenas depois deste prelúdio, conhecido como Primeira Guerra Mundial, é que
me parece legítimo tratar o presente e o futuro em geral; tudo o resto seria uma pré-
censura, como num comunicado de imprensa. Não existe até hoje nenhuma potência
mundial que se tenha erguido sem translatio imperii105
; basta pensar nisso. A grandeza
solitária da América emerge, como é conhecido, da Segunda Guerra Mundial, quando a
Inglaterra, num mar de sangue, suor e lágrimas, passou o seu império aos Estados
Unidos. Contudo, isto não aconteceu com o projecto de lei Lend-Lease de 1941, que
apenas dizia respeito à limpeza da área colateral de guerra do Alântico, mas sim com a
menos conhecida expansão para o oceano Índico e Pacífico. Numa manhã de domingo,
o ataque do Japão ao Haiti, que é sempre utilizado como prelúdio ao 11 de Setembro de
2011, tinha uma boa e triste razão: a recusa dos EUA em relação à participação desse
império, parco em recursos, na transição de carvão para o petróleo. Para isso, o Japão
mudou, em Abril de 1943, não apenas o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, mas
também toda a estratégia, o que iria ter também um enorme significado para o
desenvolvimento do pós-guerra na Ásia do Sul. É que, em vez do emprisionamento dos
povos escravos, como os militares tinham sonhado, entrou em cena uma «grande esfera
asiática de prosperidade», cujos frutos deveriam consistir em, ao lado do Japão, dar o
mesmo direito de auto-determinadação e exploração das fontes petrolíferas a todas as
ex-colónias ocupadas do Vietname, inclusive aos estados insulares da Indonésia e das
Filipinas. Quando os estudantes revolucionários da minha idade liam106
o seu «Hoh Chi
Mihn», de modo a recomendarem-se como futuros Ministros dos Negócios
Extrangeiros, não tinham muita noção em nome de que Tenno107
clamavam. Hoje em
dia, no momento em que a Al-Qaeda opera em Bali ou Mindanau, a história prossegue.
Nesta primeira situação, na qual o domínio sobre a Ásia oriental e o oceano
Pacífico está em jogo, os EUA empreendem uma revolução técnico-militar. O seu
esforço bélico logístico vai essencialmente no sentido de cobrir ambos os hemisfério e
todas as linhas de costa oceânicas da terra com vias terrestres e gares aéreas. Os EUA,
ao superarem uma potência mundial que dependia de uma convenção da quantidade
máxima da sua frota aérea, tornou-se, pela primeira vez na história mundial, com a sua
frota e logística, um império baseado no poder aéreo. É que a Segunda Guerra Mundial
105 O termo refere-se a transferências de poder. [N.T.] 106 No original: skandieren, aproximado ao verbo inglês scanning. [N.T] 107 Título imperial do Japão. [N.T.]
91
concedeu à US Air Force aeroportos na Europa Ocidental, América do Sul, África e na
Ásia do Sudeste, o que torna desde logo possível as operações mundiais contra três
eixos de poder; o Pós-Guerra conectou ainda mais imbrincadamente esta rede e
alastrou-a aos vencidos. Torna-se assim explicável qual o Pentagrama ou Pentágono
que, com os seus direitos de território aéreo sobre o Governo Federal [Alemão], nos dá
muitas dores de cabeça.
No Great Game dos nossos dias, contam acima de tudo os sítios exóticos e ilhas
que permitem ao poder aéreo mundial até ao interior da Mongólia, essas terras
centrais108
escondidas da Eurásia– para dizê-lo com Dali – viagens. Quando, no fim de
2001, os bombardeiros B-2, completamente munidos, descolaram para Candaar ou
Cabul, os seus depósitos de munições e vias de acesso ainda estavam em Digo García,
uma das ilhas solitárias abandonadas pela Grã-Bretanha nas profundezas do oceano
Índico, cuja população tinha sido realocada, em 1973, para as belas Seicheles. Assim
que Malta adquiriu, na Segunda Guerra Mundial, a fama de «transportadora aérea
invencível», por ter bombardeado a linha de fornecimento do Afrika Korps109
, as ilhas e
cidades costeiras de hoje resplandecem no brilho do sistema estratégico bélico.
Contudo, com este movimento, a potência mundial exorbita para o lado oposto.
O oposto de mar é o deserto, o oposto da cidade é a estepe. O processo civilizacional ou,
melhor dito, a infraestrutura militar dos EUA, desloca-se, passo a passo, para regiões
que até então permaneciam fechadas à civilização ocidental (esse conceito notável).
Surgem então casas de metal ou cultos de carregamento que deificam despojos
arruinados de um complexo militar-industrial. A cidade tropeça na estepe, a casa
tropeça na tenda, os nómadas são perturbados. Parece que, hoje em dia, é este o caso.
Quando Osama Bin Laden ainda emitia generosos comunicados110
de imprensa
mundiais, a sua propaganda de guerra consistia sempre nesse deserto sagrado dos
criadores de camelos, que providenciava às tropas americanas casernas, hangares e
hospitalidade.
Deste modo vamos bem encaminhados para proceder a uma curta excursão na
história da filosofia, antes de podermos avançar com a história da guerra e o seu futuro.
Quer o inimigo, o absoluto, seja nomeado «Império do Mal», como na terminologia de
108 No original: verborgene Herzlande. [N.T.] 109 Deutsches Afrikakorps: Forças alemãs responsáveis pela África do Norte durante a Segunda Guerra
Mundial. [N.T.] 110 No original: Communiqués. [N.T.]
92
Ronald Reagan ou «Estados Marginais»111
, segundo George Bush júnior, a lógica desta
dicotomia não muda: por um lado nós, os bons, por outro lado o próprio mal. A
diferença parece tão corrente ou evidente que, antes de Nietzsche, ninguém se tinha
questionado sobre ela. O segundo tratado na Genealogia da Moral, à qual Michel
Foucault acrescentou uma análise de mestre, apesar de não ser militar-histórica,
Nietzsche tenta encontrar provas de quão pouco a generalidade das pessoas112
exige essa
diferença. As culturas aristocráticas113
distinguiam, não apenas na Grécia pré-socrática,
o Bom do Mau [das Schlechte] de modo semelhante à distinção entre aristocratas e os
serventes: quando a sua boca pronunciava «bem», a sua língua implicava desde logo
«coragem» e não «moral». Segundo a análise informada de Nietzsche, as culturas que
opõem a distinção fundamental entre Mal [Böse] e bem podem ser retraçadas à doutrina
de Zaratustra, a figura histórica, outota propagada na fronteira entre a Pérsia e o
Afeganistão. Ormuzd e Arimã, um deus bom e um deus mau, pelejam pelo domínio nos
corações, de modo que a alma é obrigada a tentar expulsar Arimã deste mundo. Como
se Zeus não quisesse apenas castrar o pai mau, Kronos, mas também destroçar o mal
radical.
Estas novidades, pias ou ímpias, vindas da boca de Zaratustra, impressionavam
tanto os ouvidos gregos de Nietzsche que este propôs uma leitura diferente,
nomeadamente geopolítica, do Bem e do Mal. O Mal é, no sermão de Zaratustra aos
agricultores persas, o todo das tribos nómadas distantes, a Oriente, que, enquanto
criadores de grandes quantidades de gado, evitavam a sedentarização e, em vez dela,
preferiam atacar, periodica e regularmente, aldeias de agricultores. Ao fazerem-no,
tomavam os animais domésticos por presas e os filhos dos agricultores por escravos ou
máquinas de guerra, retornando depois para as estepes, como Chinghiz Aitmatov114
descreveu com toda a crueldade necessária. O Bem seria, inversamente, o conjunto dos
agricultores sedentários, na medida em que (segundo o exemplo dos seus dóceis animais
domésticos) prestavam obediência à palavra do «Bem Maior», isto é, o próprio
Zaratustra. E, como agradecimento pelas suas palavras, os agricultores seguiram, a
partir desse momento, o seu pastor, sendo que só pode ter semelhante título, mesmo nos
nossos dias, um bom pastor. Dizer que os agricultores têm especial predilecção em
dominar, com o arado, as terras virgens que se encontram sobre as ervas das estepes,
111 No original: Schurkenstaaten, ou, como são conhecidos em inglês, rogue states. [N.T.] 112 No original: Allgemeinheit. [N.T.] 113 No original: Adelskulturen. [N.T.] 114 Chinghiz Aitmatov (1928-2008) foi um dos maiores escritores do Quiquistão. [N.T.]
93
arrancando-as permanentemente aos nómadas, tal foi, acima de tudo, algo evitado pelo
pastor; isso foi feito apenas por Sófocles (Antígona, V. 337-340). Assim falou
Zaratustra, enquanto «Ministro do Estabelecimento Territorial» do velho Irão pérsico.
A distinção entre Bem e Mal não é portanto uma distinção moral mas sim uma
distinção entre formas de vida ou cultura, que, para se tornar susceptível de
implementação115
, se cobre, antes demais, com um véu de moral para os subservientes.
Por um lado a guerra pela guerra, ou seja, a Nomadologia no sentido de Deleuze e
Guattari; por outro lado, a paz para os agricultores, cujo valor acrescido se cristaliza na
ideia de cidade enquanto ícone da sedentarização. Ambas as formas de vida coexistem;
ambas são elegíveis. Nietzsche reconheceu, acertadamente e com fundamento que, para
levar esta mensagem inicial aos ouvidos, a reinvocação da moralidade dos escravos
tinha de estar na boca de todos os padres, que tinham, eles próprios, estabelecido esse
desastre no mundo. Apenas deste modo surgiu, em 1883, como prova Ecce homo, um
livro com o título de Assim Falava Zaratustra [Also sprach Zarathustra]: «Zaratustra
criou esse erro, o mais desastroso116
, a Moral; consequentemente, teve de ser o primeiro
que o reconheceu».
A análise de Nietzsche é mais actual que sempre. Quando Bin Laden ainda
desfrutava de liberdade de movimentos, em vez de ser obrigado a um sedentarismo
forçado num sistema de cavernas, preferia apresentar-se perante as câmeras a cavalo,
com a imagem e postura do próprio nómada; contudo, a verdade desta determinação é
outra. Quando os filhos de príncipes árabes cedem à sua paixão medieval por falcoaria,
utilizam não os belos cavalos árabes, dos quais se ouve falar, mas sim jipes modernos,
procurando contudo aquelas regiões tribais ou estepes fora dos estados, a Norte do
Paquistão que, desde há um ano, servem também os Talibã, enquanto último refúgio. E,
como que para interpretar esses jipes, Carl Schmitt escreveu Theorie des Partisanen
[Teoria dos Partisans], enfatizando, como expoente, a seguinte frase: «Os mortos
cavalgam depressa e, quando são motorizados, cavalgam ainda mais depressa».
O paradoxo reside no facto de que a motorização e a modernização bélico-
técnica dos nómadas hodiernos não ter sido – como no pequeno exemplo na nossa
República Federal [Alemã] – um assunto de falsificação de matrículas e roubos
nocturnos, mas sim um trabalho que a própria potência mundial produziu. É que, como
115 No otiginal: durchsetzungsfähiger. [N.T.] 116 No original: verhängnissvollsten Irrthum. [N.T.]
94
todos sabemos, esses nómadas existem desde há algum tempo – nomeadamente há mais
de uma década – enquanto ajuda preciosa, já que o inimigo do meu inimigo meu amigo
é. Mesmo o domínio mundial da estratosfera e ionosfera, dos bombardeiros e satélites
de reconhecimento, precisa da oportunidade de ter uma espada afiada em terra –
especialmente quando – como aconteceu desde o drama da Guerra do Vietname – quer
evitar a chegada de caixões de zinco ao porto da Califórnia. Assim, a CIA reproduziu
uma vez mais o modelo da Grã-Bretanha e, em vez de Gurkhas ou Sikhs, que eram tão
queridos a Kipling, mobilizou Pashtuns, povos do Tajiquistão e outras tribos do
Afeganistão contra o Exército Vermelho. Equipados com mísseis Stinger portáteis sobre
os ombros, tinham assim ordem para perturbar a superioridade aérea da outra potência
mundial, ou mesmo estilhaçá-la. Quando a diferença fundamental não é entre bem e
mal [Böse], mas sim entre bom e mau [Schlecht], então é bom todo aquele que sabe
matar ou morrer – e isto é o mínimo que se pode dizer dos níveis mais baixos da Al-
Quaida, os Mujahedin.
Contudo, é também o mínimo que se pode dizer das elites do US Army. Desde a
abolição do serviço militar obrigatório, que conduziu à limitação da guerra até à
fronteira da sua clarificação popular, parece ter começado a imitar os nómadas. Desde
que René Descartes colocou um fim à simbiose imemorial homem-animal, ou seja, a
coexistência de clãs familiares e animais domésticos, ao dizer que o animal é
comprendido como máquina construtível e os homens comprendidos no sentido de
sujeitos (sujeitados), os complexos militar-industriais – desde a École Militaire de Louis
XV até Los Alamos e Livemore – tomaram sempre esta Filosofia à letra.
Consequentemente, no lugar da boa velha cavalaria surgem helicópteros de guerra, no
lugar de exploradores a cavalo surgem satélites com ligação a um conjunto de
especialistas de guerra auxiliados por computadores para que, na última campanha do
Afeganistão, apenas o grau bélico-técnico das armas da Aliança do Norte a distinguisse
dos G.I.s117
. Os nómadas à antiga viajavam centenas de quilómetros das suas aldeias ou
povoações em direção a batalhas sangrentas; os novos nómadas deslocam-se, através da
força aérea, num piscar de olhos: ontem em Masar-i Sharif, amanhã o Norte de Baçorá.
As Rapid Deployment Forces, como outrora os vinkings, aparecem onde menos são
esperadas e desaparecem antes de alguém dar por isso. Assim, a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), essa camada de nada senão camadas de cebola que
117 GI, Government Issue, termo para aludir a membros do exército americano ou ao seu equipamento.
95
se estende a partir do Oeste de Washington, desaparece perante os nosso olhos. E não
sem uma dimensão simbólica anedótica: o comando geral destas guerras-relâmpago
mundiais118
é, de todos os sítios possíveis, a Florida, essa paródia turística de migração
de povos119
.
Ainda se espera por quem possa lidar com as consequências políticas e culturais
a longo-prazo que surgiram do facto de os exércitos – com excepção notável da grande
parte do exército alemão – terem sido libertados de conceitos como pátria [Vaterland]
ou terra-mãe [Muttererde], tornado-se, uma vez mais, nómadas, desta vez globais e
altamente técnicos: é impossível saber, desde logo porque a mântica e a profecia de
guerras vindouras são e sempre foram prerrogativa de Delfos.
IV
Já chega de pré-história, sigamos para o nosso negrume do presente. É que,
desde Setembro de 2001, é claramente visível quão precária e repentina se tornou a
diferença não entre Bem e Mal, mas sim entre nómadas criadores de gado ou
possuidores de maquinaria. Quando os dois arranha-céus do comércio120
foram
destruídos como castelos de cartas, ainda estava em funcionamento toda a imemorial121
raiva nómada em relação às cidades e sedentarismo que leva, por exemplo, os Beduínos
nos desertos de Negev a deixarem as suas casas de pedra, financiadas pelo governo
israelita, trocando-as por tendas portáteis. Mesmo Goethe, que ocupava uma casa na
espaçosa Frauenplan no centro de Weimar, observou que as tendas eram o sítio onde se
estava melhor. Contudo, naquela manhã de Setembro, o que foi novo e nunca antes
visto foi a imitação virtualmente perfeita através da qual um domínio aéreo exótico se
estabeleceu sobre a cidade de Manhattan. Os assassinos não sabiam, à semelhança dos
piratas aéreos ordenados por Yasser Arafat ou os que comandavam o avião sequestrado
para Mogadíscio122
, como lidar com armas manuais de fogo ou explosivos, mas sabiam
muito bem como funcionar com cabines de pilotagem, computadores de bordo, reservas
118 No original: Weltblitzkriege. [N.T.] 119 No original: Völkererwanderungen. [N.T.] 120 No original: Welthandelschochhäuser. [N.T.] 121 No original: uralte nomadische Wut. [N.T.] 122 Kittler alude ao episódio de 13 de Outubro de 1977, quando quatro membos da Frente Popular da
Libertação da Palestina sequestraram um avião da Luftansa de modo a garantir a libertação de elementos
da Facção do Exército Vermelho. [N.T.]
96
de querosene, e por aí em diante. Um sistema de realimentação123
, que estava velado à
nossa curiosidade de múltiplas maneiras, foi-lhes exposto. Só não tinham praticado, de
todo, a aterragem – à semelhança dos outrora kamikazes voadores do Japão. Para além
disto, por detrás destes executores voluntários, cuja bravura absoluta124
coloca enigmas
eternos, um planeamento estratégico teve de operar globalmente, quase ao nível da
superpotência. Caso contrário não seriam alcançáveis as vantagens da surpresa do
ataque. Jürgen Kaube foi o único, tanto quanto sei, que se lembrou da profecia de
Schmitt: que os partisans telúricos de outrora perderiam um dia o solo da pátria e
tornar-se-iam nómadas «astronauto-técnicos125
». Este perigo parece ter surgido. Temo
que ele se expresse a partir de medo enraivecido, como o que surgiu nos nómadas que
voam em business class, passando pelas chamadas de telemóvel, até ao lado mais
profundo de um Pentágono em chamas. Resumindo e concluindo, em estilo da Segunda
Guerra Mundial: o inimigo aprende126
.
Mas o amigo também. George Bush Jr. – em contraste brusco com os seus
governadores aqui na Europa Central, que falam determinada e fixamente no
crescimento económico – é capaz de pronunciar palavras claras: «estamos numa
recessão, estamos numa crise», foi o enquadramento da descrição do ponto da situação
dos EUA, no princípio do ano 2002, no State of the Union Adress. Seis meses mais
tarde, acrescentou frases cuja citação literal ficou nas bocas de todos. A nova Jerusalém
do outro lado do Atlântico significaria simplesmente Liberdade, Democracia e liberdade
de iniciativa. Quem discutir um destes três valores, seja ele um Estado Nacional ou
nómada, professor ou guerrilheiro, tem sempre sentimentos anti-americanos e será, daí
em diante, passível de retaliações preventivas. Para o bem e para o mal, o discuso de
Bush tem a capacidade127
de conjurar aquilo que convoca. As palavras claras de Bush
deixam a temer uma profecia que se auto-realize, ao chamar às armas ou, antes demais,
enfurecer aqueles cuja não-existência visa.
É que, com toda a reverência às vítimas que, como a maioria de nós aqui
presentes, não tinham o estatuto de combatentes, não me ocorre, a mim por exemplo,
como é que e possível esta contagem até três, na «tabela de valores» dos EUA – como o
Zaratustra de Nietzsche nomeava, com palavras eloquentes . A Liberdade é apreensível
123 No original: rückgekoppeltes System. [N.T.] 124 No original: Todesmut, literalmente, «coragem de morte». [N.T.] 125 No original: technisch-astronautische Nomaden. [N.T.] 126 No original: Feind lernt mit. [N.T.] 127 No original: Kraft, força ou capacidade. [N.T.]
97
desde os heróis de Homero; a Democracia desde Péricles; a ordenação fundamental
liberal-democrática desde Horst Herold; mas porquê e com que fim se dá a viragem no
terceiro valor da tabela, supondo que ele não seja retórico e redundante, ao converter a
política em ordem económica? A liberdade de iniciativa é um nome falso dos nómadas
de alta tecnologia, que preferem ficar anónimos quando pescam no nevoeiro dos nossos
desejos? Não é suposto que os empresários livres consigam uma penetração de mercado
sem o benefício do impluso128
ameaçador das guerras estatais preventivas129
? É que
Moscovo e Pequim fazem parte, desde há muito, da cadeia McDonalds – para tomar a
piada estúpida em série de Warhol130
. Aqui não se trata, de todo, de nós, os
consumidores131
.
As tecnologias e guerras têm sonhado, desde há mais de cem anos, estar na
posição do depois de amanhã. Em boa verdade, estão sempre na posição de uma
recursão que tem de penetrar em pré-histórias cada vez mais profundas, de modo a que
ainda tenha sucesso. A falta de fornecimento de nitratos para as armas imperiais alemãs
causou o falhanço do plano de ataque genial de Afred von Schieffen. Tal como o actual
design computacional está cada vez mais próximo de apreender o big bang132
, a
logística de guerra – independentemente dos desejos verdes - devora recursos cada vez
mais antigos. A Segunda Guerra Mundial começou com a mudança do carvão e
caminhos de ferro para o petróleo dos panzer e benzina dos aviões; a Pax Americana
começou com a exploração de urânio – que, na Alemanha, foi atríbuida a Hans-Martin
Schleyer133
. Finalmente, quando o Presidente dos EUA, Richard Nixon, decidiu acabar
com o padrão ouro, isto é, cancelar a convertibilidade do dólar para o seu antigo
referente em ouro, queria apenas por um fim aos trabalhos134
de roubo de Goldfinger
alias Gerd Fröbe. De um modo muito mais evidente, o padrão-ouro foi substituído por
um padrão-óleo implícito: caso contrário seria muito difícil interpretar o porquê dos
comércios nacionais mais individados do mundo ainda atrairem o maior volume de
capital estrangeiro. Mas toda a recursão, excluíndo as da matemática pura, não pode
128 No original: Nachdruck. [N.T.] 129 No original: Präventivkriegsandrohungen. [N.T.] 130 «The most beautiful thing in Tokyo is McDonald’s. The most beautiful thing in Stockholm is
McDonald’s. The most beautiful thing in Florence is McDonald’s. Peking and Moscow don’t have
anything beautiful yet» WARHOL, Andy, The Philosophy of Andy Warhol (From A to B and Back
Again), Editora Harcourt, Orlando, 1975, p.71. [N.T.] 131 No original: Endverbraucher. [N.T.] 132 No original: Urknall. [N.T.] 133 Empresário alemão, nacional-socialista, que foi assassinado pelo grupo Baader-Meinhof em 1977.
[N.T.] 134 No original: Handwerk. [N.T.]
98
ocorrer até ao infinito. Segundo os mais novos especialistas da DASA [Defense Atomic
Support Agency] que, enquanto sucessora do Centro de Pesquisa Militar de Peenemünde
[Heereversuchanstalt Peenemünde] , está bem informada, as fontes de petróleo do
nosso planeta, isto é, as suas estepes e desertos, são tão calculáveis quanto finitas.
Apesar de todas as explorações e inconvenientes (como a que ocorre sobre a costa da
Namíbia), não surgem novas fontes com dimensões sequer aproximáveis às da Arábia-
Saudita ou Iraque, que valem biliões (não é por acaso que, em 1941, a aviação alemã
[Luftwaffe] protegeu, com um punhado de Messerchmitts135
, a revolta efémera do tio de
Saddam Hussein contra os britânicos). Por volta de 2070, isto é, nem mais cedo nem
mais tarde, a última gonta de petrólio será extraída das areias do Deserto. DASA inquit.
Portanto, não consigo acompanhar Herfried Münkler, que disputa e nega a
relação entre objectivos de guerra e fontes de petróleo. Os agricultores não são apenas
inimigos das estepes virgens; também o poder aéreo mundial utiliza as suas companhias
petrolíferas para entrar cada vez mais no coração da Eurásia, essa Mongólia interna dos
sonhos narcóticos136
de Dali. De outro modo, os jipes teriam de ficar parados nas
garagens, os bombardeiros nos hangares ou nas frotas de transporte de urânio. Uma
estrutura, enorme e laboriosamente segura desde Pearl Harbor (coincidente, deste modo,
com a sua superpotência), seria assim apenas lixo. Desde que o esperançoso sonho de
futuro em relação a guerras de puro software morreu no querosene, desde logo porque
os servidores de espelho [mirror servers] do World Trade Center sobreviveram
miraculosamente e fizeram o ataque parecer, do ponto de vista computacional-técnico,
uma farsa, tudo é, uma vez mais, uma questão de harware, recursos e fontes de energia.
V
Cheguei ao fim desta confusa captação de um momento. O pequeno exemplo da
República Federal era gerível. Todos conhecemos e utilizamos a infraestrutura com a
qual as auto-proclamadas Facções do Exército Vermelho, com os seus nómadas
montados em BMWs, conseguiam sobreviver sobre ou sob a água, pelo menos por um
curto período de tempo. Por oposição, ninguém, mesmo nas posições mais altas,
135 Avião de caça alemão. [N.T.] 136 No original: Drogenträume. [N.T.]
99
segundo me parece, tem a mínima ideia sobre quais as redes de oleodutos, global
positioning system e bases de dados, rapid deployment forces e más utilizações dos
telemóveis que cobrem, hoje em dia, o planeta; isto é, em que labirintos se podem
encerrar e evaporar os nómadas. Quando os Talibã – incluíndo os estudiosos do Corão,
que têm de ser capazes de recitar de cor o Livro em árabe padrão, sem que
compreendam uma única palavra de árabe – causaram os primeiros problemas à CIA,
quase nenhum agente em Langley/Virginia os compreendia ou à sua língua. A
virgindade nem sempre é uma virtude. Alguém como Horst Herald teria primeiro de
discernir as grelhas ou padrões através dos quais a infraestrutura de hoje, esta extensão
mais ou menos sucedida dos EUA (para virar Marshal McLuhan dos pés à cabeça), cria
lobos em vez de cães domésticos.
Mas o Dr.Herold mora com a sua mulher e tem proibição de saída do solo de
uma barraca do Exército Federal [Bundeswehr], não pode escrever nem aparecer, como
se o seu próprio conhecimento se tivesse impregnado de peste negra – e seria o mais
habilitado para nos guiar na escuridão e, no meu lugar, identificar a situação.
Referências Bibliográficas
Bachmann, Ingeborg, Werk, Vol. I, Munique, Editora Piper, 1978.
Hilgruber, Andreas, Der Zweite Weltkrieg 1939-1945, Editora Kohlhammer, Estugarda, 1996.
Kipling, Rudyard, Kim, Editora Penguin, Harmondsworth, 1994.
Lacan, Jacques (1966), Écrits, éditions du Seuil, dois volumes, Paris, 1999.
Nietzsche, Friedrich, Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, ed. Giorgio Colli,
Deutscher Taschenbuch Verlag, Berlim, 2005.
Schmitt, Carl, Theorie des Partisanen. Zwischenbemerkung zum Begriff des Politischen, editora Dunker
& Humblot, Berlim, 1963.
.
100
PARA UMA ONTOLOGIA DOS MÉDIA137
Resumo
Este artigo visa a exclusão dos média físicos e técnicos da questão da Ontologia. É
defendido, primeiramente, que, desde Aristóteles, a Ontologia tem lidado com a forma e
a matéria das coisas em vez da relação entre as coisas no tempo e no espaço. Em
segundo lugar, é defendido que, porque os gregos não distinguiam entre elementos da
fala e letras alfabéticas, tem existido uma tendência para a filosofia negar a escrita como
o seu próprio médium técnico. Este artigo retraça estas tendências num espectro de
fontes filosóficas: de Tomás de Aquino e Descartes a Fichte e Hegel. É defendido, em
jeito de resposta, que é apenas com Heidegger que a consciência filosófica emergiu pela
primeira vez e que, hoje em dia, as ligações da matemática e média e de média e
Ontologia devem ser formuladas em termos mais precisos.
Palavras-chave: Heidegger, Ontologia, Média.
A questão de se os média podem ser pensados em termos de Ontologia europeia
é tão crucial como difícil. Existem, por muito boas razões, muitas teorias matemáticas
ou tecnológicas dos média e até – como em McLuhan ou Walter J.Ong – algumas
silenciosamente teológicas. A Ontologia, contudo, enquanto defenida na «Metafísica»
de Aristóteles, tem sido hostil aos média desde o seu princípio, quer sejam físicos ou
técnicos. Por isso, é apenas com o auxílio de Heidegger que podemos esperar
desenvolver algo como uma ontologia dos média técnicos.
Começo pela assunção que a Filosofia (ou, nos termos de Heidegger, a
Metafísica europeia) tem sido necessariamente incapaz de conceber média enquanto
média. Esta negligência começa com Aristóteles: primeiro, porque a sua Ontologia lida
apenas com as coisas, a sua matéria e forma, mas não com relações entre as coisas no
tempo e espaço. O próprio conceito de um médium (físico) – tò metaxú – é relegado
137 Kittler, «Towards an Ontology of Media», in Theory, Culture & Society 2009 (SAGE, Los Angeles,
London, New Delhi, and Singapore), pp.23-31.
Vol. 26(2–3): 23–31
101
para a sua teoria da percepção sensorial (aisthesis). Segundo, porque os gregos não
distinguiam entre elementos de discurso articulado e letras alfabéticas articuladas, o
conceito de escrita enquanto o próprio médium (técnico) da Filosofia está ausente a
partir de Aristóteles.
Procederei com uma curta história da sua negligência filosófica, passando de
Tomás de Aquino e Descartes até Fichte e Hegel, de modo a demonstrar que apenas
com Heidegger, que transformou filosofia em «pensamento», é que uma consciência
dos média técnicos emergiu. Primeiro, porque já em Ser e Tempo era tematizada a
inconspicuidade dos média quotidianos, tais como óculos ou telefone; segundo, porque
nos anos anos trinta do século XX, Heidegger descreveu os média de massa, como a
rádio, não mais em termos existênciais, mas sim em termos históricos; terceiro, porque
depois da Segunda Guerra Mundial, Heidegger conceptualizou o princípio dos
computadores como o fim fáctico da própria filosofia. Contudo, este fim, seguindo
Heidegger, torna ainda mais necessário colocar (em termos de Seinsgeschichte, História
do Ser) a questão de saber porque é que a Lógica Filosófica tal como inventada por
Aristóteles levou finalmente à sua maquinização por Turing, Shannon e outros.
Cinquenta anos depois de Heidegger, penso que esta questão tem de ser
retomada em termos mais precisos. O papel dominante da matemática na história dos
média não pode ser mais treslido como uma espécie de erro platónico. Muito pelo
contrário: a aritmética grega teve o mesmo papel fundamental que conceitos de Ser e
Tempo na fundação de uma época onde, pela segunda vez na história, um médium
universal de números binários é capaz de codificar, transmitir e armazernar o que quer
que ocorra, desde a escrita ou contagem até à imagética ou som.
I
No caso de Aristóteles, a ausência de média é quase demasiado óbvia. Levantar
as questões ontológicas de saber como e de quantas formas podemos falar de ser
enquanto Ser é equivalente a dar a resposta que Ser, no seu sentido pleno, tem o sentido
duplo de eîdos e húle, forma e matéria. Podemos evidentemente colocar outras questões,
como por exemplo, se uma coisa é preta ou branca, onde está e quando está: mas todas
estas categorias, como Aristóteles as nomeia, são secundárias em relação à forma e
matéria. Para dar apenas dois exemplos proeminentes dos doze livros que, infelizmente,
102
são portadores do título «Metafísica»: apenas se e quando um bocado de bronze
derretido, graças a um artista dotado, toma a forma humana concreta de um deus ou
deusa – para honrá-lo/a – é que um novo ser chamado escultura vem à existência.
Apenas e só quando o sémen do homem, repleto de informação formal, se mistura com
o sangue mestrual desenformado, é que um novo indivíduo nascerá na espécia humana.
Assim, apesar de, para cada ser do mundo, quatro condições serem necessárias e
suficientes – da condição eficiente à final – as condições formal e material figuram
como as duas mais necessárias.
«Caro Claude», começa uma carta escrita em 1971 por Marshall McLuhan para
o Presidente da sua Universidade,
«no Domingo fiz a maior descoberta da minha vida. Aconteceu quando estava a
trabalhar para o prefácio do Império e Comunicação» de Innis, que a University Toronto
Press está a publicar (novamente). Numa palavra, a descoberta é esta: durante 2500
anos os filósofos do mundo Ocidental excluíram toda a tecnologia da forma-matéria no
tratamento enteléquico. Innis passou muita da sua vida a tentar explicar como a cultura
grega tinha sido destruída pela escrita e os seus efeitos na tradição oral. Innis também
passou grande parte da sua vida a tentar chamar a atenção para as consequências
psíquicas e sociais das tecnologias. Apenas não lhe ocorreu que a nossa filosofia exclui
sistematicamente a techné das suas meditações. Apenas as formas naturais e vivas são
classificadas como hilemórficas138
. (Cartas, 429)
Portanto, podem ver, ou melhor, ouvir139
, que as descobertas de grandes
historiadores dos médias são induzidas pelo erro. A análise/leitura da Metafísica de
Aristóteles por MacLuhan vira o seu significado verdadeiro de pernas para baixo.
Temos boas razões para supor, bem pelo contrário, que forma e matéria são categorias
surgidas originalmente a partir de coisas técnicas e, mais ou menos forçadamente,
transferidas também para coisas naturais.
A Origem da Obra de Arte de Heidegger defende com grande plausibilidade que
a forma e matéria se apresentam de uma forma muito mais evidente em esculturas do
que em árvores ou pedras. Contudo, é precisamente este facto que transforma o curioso
erro filológico de McLuhan numa verdade histórica. É precisamente porque a oposição
entre forma e matéria emerge da tecnologia e não de formas naturais e vivas que a
138 Isto é, compostas por matéria e forma. [N.T.] 139 Há que ter em conta que este texto foi inicalmente concebido para ser lido a um público. [N.T.]
103
Ontologia excluí sistematicamente as tecnologias dos média do seu domínio. O
ajuntamento140
e concrescência destas duas categorias numa única e mesma coisa
presente suprime toda a distância, ausência e negação da sua entelequia. O Ser, seja
natural ou técnico, tem sido pensado durante 2500 anos (para concordar com
Heidegger) nos termos metafísicos de um «estar-aí»141
e presença, entelécheia e ousía,
não nos seus muitos opostos, tais como passado e futuro, armazenamento e transmissão.
Contudo, por mais surpreendente que seja, os média em Aristóteles existem. Não
como parte da sua Ontologia, mas como parte do homem psícofísico142
. Ainda mais
explicitamente no seu livro Dos Sentidos do que Da Alma, a percepção tem de presupor
média ou elementos físicos, de modo a ligar um ser forma-matéria percepcionado com a
alma animal perceptível. Aristóteles contradiz fortemente os seus predecessores
atomistas, de acordo com os quais imagens imperceptivelmente pequenas ou eidola
separavam-se de um dado objecto, viajavam sem encontrar nenhuma resistência através
de tò kenón, o vácuo, espaço vazio, de modo a finalmente chegarem à soleira dos nossos
olhos ou ouvidos. Não, diz o filósofo cujo pai, não por acaso, tinha sido o físico de um
grande rei. No caso da audição, tem de existir ar entre a coisa e o tímpano assim como
entre o tímpano e a cóclea. No caso da visão as coisas são ainda mais complicadas.
Entre a coisa e a íris humana – cujo belo nome aristotélico, já agora, é noiva – tem de
existir ar, enquanto que entre a íris e a retina tem de existir água. Desde Empédocles,
fogo e água, terra e ar têm sido as quatro raízes dividas que Afrodite mistura
sensualmente para formar o nosso cosmos harmónico. Desde Leucipo e Demócrito,
atomistas gregos, este quarteto é também um quarteto de letras e elementos. Contudo,
Aristóteles fala de dois elementos, nomeadamente ar e água, enquanto dois «entre». Por
outras palavras, é o primeiro a transformar uma preposição grega comum – metaxú,
«entre» – num nome ou conceito filosófico: tò metaxú, «o médium». «No meio» de
ausência e presença, distância e proximidade, ser e alma, não existe mais nada senão
uma relação medial. Es gibt Medien143
, poderiamos dizer com a abordagem tardia de
Heidegger sobre Ser e Tempo. Portanto, em vez de cobrir Aristóteles, injustamente, com
140 No original: togetherness. [N.T.] 141 No original: hereness. [N.T.] 142 No original: psyschophysical man. [N.T.] 143 Em alemão na versão original. Traduzido por: Existem média. A expressão francesa aproximada será
«Il y a», já que «Es gibt» remete para o verbo geben – dar, e o pronome determinante es, referente ao
sujeito neutro, nem feminino nem masculino, que existe em alemão – literalmente, «é dado». [N.T.]
104
ironia e culpa, McLuhan deveria agradecer o maior cunhador grego de termos pela sua
mensagem: a de que existem média, pelo menos naturais ou físicos.
Inversamente, a declaração do canadiano segundo a qual «o médium é a
mensagem» seria impensável para Aristóteles pela razão válida que quase nenhum
grego, exceptuando ele mesmo, poderia traçar qualquer distinção entre sons orais e a
sua representação escrita. A identidade singular entre poesia, música e o primeiro e
único alfabeto vocal estava tão profundamente enraizada na cultura grega que abriu os
olhos do atomista para as quatro letras ou elementos, enquanto constituintes do próprio
cosmos. Mesmo com Aristóteles, a distinção entre fonema e grafema, voz e escrita, foi
traçada apenas uma vez, quando escreveu que, enquanto os sons da fala são signos de
seres, letras escritas são apenas signos secundários desses sons. Então, a Metafísica –
como Derrida notou justamente, mas de um modo demasiadamente geral – esquece
sempre e desde logo os média técnicos, da própria escrita ao livro escrito: a sua
condição prévia.
II
Seria uma história longa e dolorosa explorar esta coincidência insana de
esquecimento e mudança tecnológica com todo o detalhe histórico. Que seja suficiente
preferir por um momento Harold Adam Innis ao seu suposto seguidor McLuhan e
indicar algumas mudanças epocais que alteraram, num e no mesmo momento, a feitura
de livros e a feitura de ontologias. Podem chamar-lhe uma questão disparatada ou
trivial, mas nem os filósofos implicados nem Derrida, auto-nomeado desconstrutor, a
colocaram por uma única vez. Contrastando bem com iluminadores-ilustradores,
pintores, cientistas, historiadores e poetas, os pensadores tendem a esquecer o seu
próprio médium. Esta ausência de uma Ontologia dos Média pode bem ter sido a sua
mais profunda (e isto quer dizer abissal) raison d’être. Dar-vos-ei alguns exemplos.
Os filósofos antigos, dos pré-socráticos até Aristóteles e os seus vulgarizadores
latinos, gatafunhavam letras em rolos de papiro. Os leitores tinham de abrir estes
chamados volumina com a sua mão direita, ler o texto em voz alta e rolar a matéria lida
de volta com a sua mão esquerda para formar de novo um médium de armazenamento
conciso. Na era clássica, quando toda a criatura pensante excepto o velho proletário
Sócrates sabia ler e escrever, isto era razão suficiente para aprender e ensinar. A palavra
105
grega lógos tinha um duplo sentido imbutido: significava que todas as razões que damos
são equivalentes a todos os fundamentos na natureza sobre a qual falamos. Apenas
quando a língua latina falhou fatalmente na interpretação desta ambiguidade grega é que
o logos, no primeiro sentido, se tornou oratio e, no segundo sentido, ratio. Pode-se dizer
que Roma introduziu, apesar de não conceptualizar, uma primeira distinção entre média
técnicos e físicos. Isto explica provavelmente porque é que a dualidade aristotélica de
phoné e logos, voz e fala, significante e significado, tenha sido substituída por uma
trindade helenística tardia: Crisipo, o estóico, distingue não apenas tà semíntonta de tà
semainónema, os significantes e o significado, mas sim toda a a matéria/forma medial
de tà túnchana – os eventos contigentes mudos que Tiquê (fortuna) adora fazer
acontecer. (D.L.VII 62) Pela primeira vez na nossa história, a linguagem já não parecia
coextensiva ao Ser: fala e texto, enquanto meros e pobres média perderam o seu apoio
em tudo o que é.
Não obstante este heroismo estóico, as práticas de leitura de volumes antigos em
Roma não mudaram radicalmente. Enquanto cada pensamento dependesse, por menos
reconhecido que fosse, de Homero e dos poetas, não existia de todo necessidade de
fazer comparações entre este e aquele livro. Apenas quando uma heresia criminosa (a
cristã) sucedeu em subverter completamente Roma é que uma mudança na tecnologia
do livro foi urgentemente exigida. Sobre os pais/escritores da igreja como Agostinho
caíu o desafio inédito de comparar três tradições conflituosas de livros: uma tarefa tão
terrível, impossível e idiótica que – apesar de antecipar o que na realidade temos de
fazer – Afrodite me poupou a esta amarga tarefa.
Santo Agustinho, de modo a reconciliar (ou refutar) através dos seus próprios
livros os muitos e contraditórios volumes de Homero, Moisés e os Apóstolos, teve uma
grande vantagem medial sobre os chamados pagãos. Os escritores cristãos estavam entre
os primeiros a mudar de volumes de papiro para livros de pergaminho compilado. Esta
mudança de tecnologia de média tornou comparações simultâneas e concordâncias entre
fontes de livros diferentes muito mais fácil. Tinha efeitos sistémicos, não só na forma da
Filosofia, mas também nos seus conteúdos. Enquanto que os doxógrafos gregos
discutiam os filósofos anteriores ao seu tempo em forma cronológica simples – por
exemplo de Sócrates a Xenofonte e de Platão a Aristóteles – os pensadores escolásticos
tal como Tomás de Aquino tinham acesso a uma ampla variedade de livros. Por isso,
106
para estabelecer cada questão na sua Summa Theologiae, Aquino referia frases bíblicas,
definições aristotélicas e divisões de cabelo patrísticas antes de tomar a sua decisão.
Obviamente, a famosa imprensa de Gutenberg pôs fim a toda esta racionalidade
polifónica, ainda caligrafada. Graças à Imprensa e à configuração de tipos, os livros
tornaram-se cada vez mais vernaculares e isso significava cada vez mais nacionais, para
que René Descartes pudesse começar um tipo completamente diferente de Ontologia.
Ele escreveu a maioria dos seus livros em francês mas publicou-os, por boas razões
políticas, nos Países Baixos protestantes. Esqueceu-se – ou pelo menos fingiu que se
esqueceu – de todas as escolas tradicionais, autores e autoridades, de modo a colocar-se
como autor no sentido moderno. O seu famoso ego, enquanto pensava, era apenas um
corpo solitário sentado em frente a uma fogueira, com acesso a tinta, pena e muitas
páginas de papel vazio. Os únicos argumentos que Descartes aceitaria, por motivo da
sua insuperada clareza e distinção, eram (estranhamente ou talvez mesmo
evidentemente) os operadores e operantes da álgebra moderna, isto é, as 26 letras
alfabéticas e as suas declinações matemáticas tais como mais e menos, o sinal da raiz
quadrada e por aí em diante. Por outras palavras: a Ontologia tornou-se de novo – quase
como com os pitagóricos gregos – um dos ramos da álgebra elementar.
Como sabem, através de Michel Foucault, este método cartesiano podia ordenar
todo o ser no datum no universo cosmológico moderno – exceptuando o homem
enquanto tal. Quando Immanuel Kant deu aos seus seguidores alemães a ordem de
colocar o seu ego transcendental no meio da Ontologia, tal não era tarefa fácil. As lições
universitárias de Fichte, por exemplo, desproviam os alunos dos tradicionais manuais
que os filósofos tinham utilizado para comentar ou «interpretar» desde os dias de São
Tomás de Aquino. Em vez disto, em cada semana do Verão, Fichte escreveu um
capítulo da sua obra prima que leu aos alunos pela primeira vez e, somente depois,
publicou para o público geral em pequenas folhas impressas. Ao fazê-lo, Fichte não
podia simplesmente prever ou antever a conclusão filosófica final que as suas lições
alcançariam no final desse longo período do Verão de 1794. De alguma forma, podemos
assim dizer que o idealismo alemão já antecipava não só a nova liberdade académica de
Humboldt mas também os muito mais famosos fragmentos filosóficos tardios de
Nietzsche.
Deixem-me terminar este esboço da próprio história medial da Ontologia. Com
sorte, compreenderam que a filosofia, apesar de lidar de tempos a tempos com média ou
107
elementos tais como éter, luz e água, negligenciou completamente os seus média
técnicos dos antigos volumes até aos bestsellers modernos. Por isso, é mais que tempo
de passar à revolução chamada Ser e Tempo. Como devem saber, em 1927 o jovem
Heidegger fez apelo à «destruição da Metafísica» enquanto tal. Isto provou-se
equivalente a comprovar que a presença efectiva não era o mais um nobre atributo
ontológico. Muito pelo contrário, seres, como nós próprios, são distintos de outros pela
dupla ausência de futuro e passado. A distância prova ser uma componente prominente
do nosso ser-no-mundo. A matéria, como, por exemplo, a pele de umas botas artesanais,
não é apenas matéria aristotélica, mas relaciona-se desde já e sempre com animais
mortos e portanto com a natureza em geral. Formas, por exemplo a de um martelo de
ferro, tomam formas mais adequadas è nossa mão e ao seu futuro trabalho. O espaço em
geral e o local em particular não são de todo coordenadas cartesianas abstractas, mas
relacionam-se com o nosso andar e ver, falar e ouvir. Portanto, por exemplo, um amigo
que Heidegger aborda na rua está muito mais próximo de alguém que sofre miopia que
não só do asfalto mas também dos óculos no seu nariz. Quando Heidegger telefona a
Hanna Ardendt, a sua voz amada vai muito mais próximo que o próprio receptor de
telefone. E, finalmente, o homem moderno tornou-se um consumidor de notícias
radiofónicas, que o distraem, com notícias globais, da sua autenticidade existencial.
Nos primeiros dois exemplos, como devem ter observado, os óculos e o telefone
respondem um por um aos ouvidos e olhos de Aristóteles. Os média técnicos
substituíram os psicofísicos. Mesmo no seu fim ou destruição, a Ontologia transforma-
se numa ontologia das distâncias, transmissões e média. No terceiro exemplo, isto ainda
é mais avassalador. A rádio ou Rundfunk, como Heidegger e qualquer alemão do tempo
lhe chamava, foi explicitamente introduzida como uma invenção recente através da qual
«a tendência existencial do homem para ‘desdistanciar’, diminuir distâncias, tem sido
implementada historicamente.»
Esta conclusão é obviamente errada. Não quero dizer que Heidegger deveria
atribuir a invenção da rádio a Heinrich Hertz e Guglielmo Marconi; simplesmente não a
deveria atribuir ao homem. É por isso que, apenas dez anos mais tarde, Heidegger falou
de aviões e emissões de rádio enquanto média técnicos exclusivamente característicos
da nossa época cartesiana. Trinta anos mais tarde, até compreendeu que as ferramentas
maquínicas modernas e, acima de tudo, os computadores pós-guerra, não podem ser
mais pensados enquanto objectos externos e extensivos que o nosso sujeito imaterial
108
cartesiano representaria para si próprio. Pelo contrário, a tecnologia computacional por
um lado e o homem por outro lado estão inseparávelmente ligados por uma infinito arco
retroactivo [feedback loop], pela essência da tecnologia enquanto o perigo em si
mesmo. Na medida em que a Lógica aristotélica não é mais a tarefa de um professor,
mas sim uma implementação nos computadores digitais, a Filosofia enquanto tal chega
ao seu fim histórico; na mesma altura, contudo, o amanhecer ou a tarefa de pensar
acabou de começar. Heidegger pede-nos, em palavras simples, para repensar pela
primeira vez a história dos média da Europa enquanto tal, e isto no momento em que o
pensamento europeu desaparece pela sua expansão global. Esta recursão deve começar
com os primeiros pensadores/poetas gregos, passar pela distinção fatal de Aristóteles
entre Física e Lógica e levar à nossa mais recente maquinaria lógica e aritmética. É
precisamente isto que, até agora, tentei esboçar para vós em termos não demasiado
heideggerianos.
Deixem-me concluir esta tarefa fazendo duas observações críticas que
provavelmente marcam apenas a distância histórica entre o ano de 1964 de Heidegger e
o nosso ano de 2009. Primeiro e, penso, de uma forma bastante errónea, Heidegguer
atribuiu a introdução da matemática na Ontologia a Platão que, de facto, foi o promotor
da sua demorada separação. Descrevendo a «História do Ser» como uma sequência de
pensadores epocais e apenas eles, Heidegger negligenciou as inovações cruciais que ao
mesmo tempo ocorreram na matemática. Seria claramente exequível apesar de
demasiado extenso, a correlação entre, por exemplo, a Metafísica platónica e o seu
grande percursor, a teoria pitagórica dos números naturais, ou correlacionar questões
escolásticas numeradas e livros com a introdução de números indo-árabes. Finalmente,
o caso de Descartes e Leibniz são mais expressivos. Ambos tornaram as suas
matemáticas em novas ontologias correspondentes e vice versa. É que os média
técnicos, geralmente falando, não são senão a face visível de uma uma qualquer lua cuja
face negra144
seria a Matemática e a Física; a omissão desta omissão heideggeriana seria
de muito uso para alcançar o nosso objectivo comum.
Em segundo lugar, o sonho vitalício de Heidegger, o de destruir a oposição
binária entre forma e matéria, pode ser mais fácil de obter com a ajuda da matemática e
144 No original: dark side. Sobre a preferência de Kittler pela banda Pink Floyd e, mais especificamente,
The Dark Side of The Moon cf. «Die Gott der Ohren» Draculas Vermächtnis, Reclam Verlag, Leipzig
1993, p. 130-148. [N.T.]
109
da ciência computacional. Certamente, a matéria ainda importa145
e a forma ainda está
viva em palavras como informação. Mas se uma Ontologia dos Média deseja ser
enformada pelo estado das coisas 146
técnico, deve saber como ler esquissos, layouts,
designs de placa-mãe147
, mapas de planeamento industrial e por aí em diante, de modo a
compreender as suas próprias categorias desde a base, nomeadamente desde o hardware
de alta tecnologia [high tech]. Dado o facto a chamada arquitectura de von Neumann
não ser provavelmente a mais optimizada mas ser, hoje em dia, a mais estandartizada,
aludimos a registos, buses e memória de acesso arbitrário [RAM]. Estruturalmente, os
bits armazenados em registos perfazem148
operações lógicas e calculos aritméticos, os
vários buses transportam ordens, informação e endereços equanto que RAM fornece
sítios de armazenamento para ordens, endereços e informação. Além disso, esta
arquitectura tripla, que é sempre claramente um arco retroactivo [feedback loop], repete-
se em muitas dimensões fractais, de nanómetros através de milímetros até estratos149
visíveis com os quais os utilizadores podem interagir. Contudo, ordens, endereços,e
informação isto é, processadores, transmissões e memórias, podem ser encontrados não
apenas nas arquitecturas computacionais mas em toda a história recursiva dos média
técnicos. As bibliotecas são média de armazenamento para média de armazenamento
chamados livros. Os cabos de telégrafo têm sido, desde a Guerra Civil Americana,
média de transmissão para ordens militares. Um processamento fundamental de
informação esteve em jogo sempre que o pensamento ontológico ou a escrita
matemática mudaram o curso da história cultural. Em vez de ainda submeter os
humanos, seres e máquinas à dicotomia de forma e matéria, poderíamos aprender a
aplicar, pelo menos por agora, esta nova trindade feita de comandos, endereços e
informação. Seria uma Ontologia dos Média sobre as condições duplas da física de
silício sólido e a arquitectura de von Neumann que estão, como talvez saibam,
intricadamente ligadas.
«Chegará o dia em que a sagrada Troia terá sido destruída» - foi um dos
famosos ditos de Heitor na Ilíada de Homero. Não podemos prever mas sim apenas
perspectivar, obscuramente, a noite desse fogo. Talvez um novo amanhecer róseo se
145 No original: matter still matters. [N.T.] 146 No original: state of the art. [N.T.] 147 No original: mainboard. Também conhecida por motherboard. A placa-mãe aloja as ligações entre os
componentes do computador. Uma das primeiras existentes foi a AT (advanced technology) que Kittler
trata no outro artigo presente neste trabalho, Não existe Software. [N.T.] 148 No original: perform. [N.T.] 149 No original: layers. [N.T.]
110
levante e compreenda o sonho mais querido dos físicos do sólido: computadores
baseados em estados quânticos, em vez de grandes ligações de silício em série. Nesse
momento eu, ou antes, os meus sucessores, retiraremos este artigo.
111
II
112
113
CÓDIGO OU COMO ALGO PODE SER ESCRITO DE OUTRO MODO*
Friedrich Kittler
Códigos – a palavra e a coisa - são aquilo que hoje nos determina e sobre os
quais temos, portanto, de nos pronunciar, para não sermos por eles submergidos. Eles
são a linguagem do nosso tempo, precisamente porque a palavra e a coisa «código» são
muito antigas, como gostaria de demonstrar numa curta incursão pela História. Estejam
tranquilos: já voltarei ao presente.
Imperium Romanum
Os códigos consistem em processos de codificação, os quais, segundo uma
elegante definição de Wolfgang Coy, «são, numa perspectiva matemática, a
representação de um conjunto finito de caracteres de um alfabeto que está numa
sequência simbólica próprio
*Conferência proferida no festival Ars Electronica, 2002. Referência KITTLER, Friedrich: Code oder wie
sich etwas anders schreiben lässt. aus: G. Stocker, Ch. Schöpf, Code - The Language of our Time, Linz,
2003, pp.88-98.
150. Esta determinação clarifica desde logo dois factos: primeiro, os códigos não são,
contrariamente à opinião circulante, uma particularidade da técnica computacional ou até
mesmo da tecnologia genética; enquanto sequências temporais de sinais, eles pertencem a
toda a técnica de comunicação, todo o médium de transmissão. Par além disto, muitas
evidências apontam para o facto de que os códigos só se tornaram pensáveis e fazíveis, a
partir do momento em que, para a codificação das línguas naturais, passaram a existir não
apenas ideogramas ou logogramas, mas sim verdadeiros alfabetos. Estes são, como foi dito,
sistemas de símbolos enumeráveis, recorrentes e iterativos que, de forma mais ou menos
inequívoca e inflexível, representam completamente os sons da fala em caracteres. Um
alfabeto fonético deste tipo constitui uma invenção original grega151
que, com fundamento,
se tornou posteriormente louvada como a «primeira análise total de uma língua»152
,
parecendo, de facto, uma condição necessária para o surgimento de códigos – embora,
ainda assim, insuficiente. Porque aquilo que os gregos não alcançaram – excepto em
alusões esporádicas ao uso de uma escrita secreta153
, que se encontram em Ésquilo, Enéas,
o Táctico e Plutarco – foi precisamente a segunda condição de toda a codificação: uma
manifesta tecnologia da informação. Não me parece portanto uma mera coincidência que as
notícias que temos do surgimento de sistemas informativos secretos coincidam unicamente
com o advento do Império Romano. Na sua obra Vida dos Césares, Suetónio, que serviu
ele próprio como escrivão de um grande imperador, relata que tinha descoberto cartas
criptografadas nos escritos póstumos tanto do divino César como do divino Augusto. César
havia decidido deslocar quatro posições todas as letras do alfabeto latino, escrevendo assim
D em vez de A, E em vez de B, e assim por diante; por sua vez, o seu filho adoptivo
Augusto terá proposto que se saltasse um caracter e, em falta de uma perspectiva
150150 Wolfgang Coy (1995) Aufbau und Arbeitsweise von Rechenanlange. Eine Einführung in
Rechnerarchitektur und Rechhnerorganisation für das Grundstudium der Informatik (2ª edição revista e
aumentada). Braunschweig/Wiesbaden, p. 5. 151 Para consultar o estado actual da investigação: Barry B. Powel (1991) Homer and the Origin of the Greek
Alphabet: Cambridge. 152 Johannes Lohmann. 153 Cf. Wolfgang Riepl ([1913] 1972) Das Nachrichtenwesen des Altertums. Mit besonderer Rücksicht auf die
Römer, Darmstadt..
115
matemática clara, substituiu o X por um duplo A como último caracter154
. O propósito era
óbvio: quando a leitura era feita em voz alta por pessoas não autorizadas (e os romanos não
eram qualificados literariamente), esta resultava em saladas de consoantes. Como se não
fossem suficientes as invenções de criptografia deste tipo, Suetónio conta que, muito pouco
tempo antes, César inventara os seus boletins de guerra, que são enviados a partir da
campanha de Gália para o Senado em Roma, em várias colunas, onde eram compiladas
quase como páginas de livros; Augusto alcançará uma glória ainda maior, estabelecendo
através de cavaleiros e estalagens o primeiro sistema de correspondência rápida da Europa,
exclusivamente militar155
.
Por outras palavras, foi o Imperium enquanto tal, em contraste com a República
romana ou meros escritores efémeros como Cícero, que fundou por fim o encontro entre
comando, código e tecnologia de informação. Chama-se imperium tanto ao imperativo ou
comando como ao seu efeito: o império mundial. «Comando, Controlo, Comunicações,
Inteligência» foi por isso, até há bem pouco tempo, no Pentágono, a divisa imperial ; só
mais recentemente o encontro entre técnicas de informação e máquinas de Turing fez soar
como novo grito de batalha os 4Cs : Comando, Controlo, Comunicação, Computadores –
De Orontes até à Escócia, de Bagdade até Cabul.
Os Romanos não só chamam imperia às ordens do Imperador, mas também aos
codicilos, pequenos blocos de maneira descascada nos quais o revestimento de cera
permite a inscrição. A raiz da palavra codex, do latim antigo caudex , aparentado
originariamente com o alemão «hauen» [cortar], adquiriu nos inícios da época imperial o
significado de «livro», cujas páginas, diferentemente dos rolos de Papiro, permitiam pela
primeira vez o acto de folhear. Entrou finalmente em circulação aquela palavra que, no seu
caminho conturbado para o francês e inglês, nos trouxe até aqui a Linz156
: código
significou, desde o Imperador Teodósio até ao Empereur Napoléon, simplesmente o livro
compilado das leis, ou seja, codificação enquanto acto jurídico-burocrático, todo o fluxo de
cartas ou ordens imperiais e o modo como elas, através dos séculos, percorreram as vias de
154 Cf. Caius Suetonius Tranquillus, Vitae Caesarum, I 56, 6 e II 86. 155 Cf. Suetonius, I 56, 6 e II 49, 3. Em cursus publicus, no qual o próprio Augustus gravou passes, ordens e
cartas datadas com o momento exacto do dia e noite (Suetonius, II 50), ver Bernhard Siegert (1991) «Der
Untergang des römischen Reiches» in Paradoxien, Dissonanzen, Zusammenbrüche. Situationen offener
Epistemologie. ed. Hans Ulrich Gumbrecht e K. Ludwig Pfeiffer: Frankfurt, pp.495–514. 156 Lugar onde o autor do texto proferiu esta conferência [N.T.].
116
correspondência rápida do império para manter a permanência de um único conjunto de
leis. Para a transmissão de informações far-se-ia o armazenamento de dados157
, como
puros acontecimentos ordenados em série. A este respeito, o Codex Theodosius e o Codex
Iustinianus são ainda o que permitiu chegar até nós hoje um antigo código europeu de
direitos e obrigações, ao passo que a anglo-americana Common – literalmente comum -
Law, o deturpou. Porque Copyrights e Trademarks, num Codex ou Código, são (no
mínimo) simples absurdos no Corpus iuris.
Estados Nacionais
Resta agora saber porque é que o sentido técnico do termo código pôde obscurecer
tão fortemente o seu sentido jurídico. Os sistemas de direito de hoje falham frequentemente
na concepção e consequente protecção dos códigos, quer seja perante os seus ladrões e
compradores, quer seja perante os seus descobridores e escribas, e vice-versa. A resposta
parece simples: o que nós sempre registámos como código, desde os escritos secretos do
imperador romano até ao arcana Imperii dos tempos modernos, foi chamado, a partir da
Idade Média Tardia, «cifra». Pela noção de código entende-se, durante muito tempo, um
conjunto de procedimentos criptográficos bem diferentes, em que a possibilidade de uma
enunciação se mantinha conservada, sendo que palavras obscuras ou inofensivas
substituíam simplesmente as secretas. Cifra, por outro lado, foi outro nome para zero, sifr
(em árabe: «o vazio»), que na altura chegou à Europa vindo da Índia através de Bagdade,
contribuindo para o poder matemático e técnico. Desde então existem para sons da fala e
números (de maneira muito diferente do que acontecia na terra dos gregos), conjuntos de
símbolos completamente diferentes: aqui o alfabeto das pessoas, lá a cifra dos portadores de
segredos (daí que a palavra alemã Ziffer, significando numeral, é mais uma derivada da
pronunciação da palavra árabe sifr). Conjuntos de símbolos separados são, com efeito,
frutíferos: juntos revelam-nos criaturas fabulosas que de modo nenhum teriam ocorrido aos
gregos e romanos. Sem a Álgebra moderna, não teria havido nenhuma nova forma de
codificação, sem a imprensa de Gutenberg, nenhuma criptologia moderna. Battista Leoni
Alberti, o inventor da perspectiva linear, compreendeu em 1462 ou 1463 dois factos
157 Sobre média espaciais e temporais e o processo de transição do Império para a Alta Idade Média
monástica, ver Harold A. Innis (1972). Empire and Communications (2ª edição): Toronto, pp. 104–120.
117
simples: primeiro, os sons ou letras têm em todas as línguas frequências variáveis, o que
segundo Alberti é comprovado pela configuração da caixa tipográfica compartimentalizada
onde Gutenberg armazenava os seus caracteres. A criptoanálise podia assim revelar, a partir
das frequências das letras usadas, o texto efectivo das mensagens secretas, nomeadamente
daquelas que faziam uso de uma deslocação ou troca de caracteres, como as que provinham
de César e Augusto. Portanto, e em segundo lugar, torna-se insuficiente um sistema de
troca fixa de letras. A proposta de Alberti, que fazia corresponder a cada um dos caracteres
mais um caracter no alfabeto secreto, foi válida até à época da Segunda Guerra Mundial158
.
Um século depois de Alberti, François Viète, fundador da álgebra moderna, mas também
decifrador ao serviço de Henrique IV, cruza ainda mais intimamente números e letras. É
somente desde Viète que existem equações com incógnitas e coeficientes gerais, nos quais,
através da localização159
, os números são codificados como caracteres. É assim que procede
ainda hoje aquele que escreve numa linguagem de programação avançada, que além disso
atribui variáveis a ambos (de um modo matematicamente mais ou menos correcto) como
nas equações. Esta improvável base, que associa o código polialfabético de Alberti, a
álgebra de Viète e o cálculo diferencial de Leibniz permitiu aos modernos estados-nação
avançarem tecnicamente para a sua modernidade.
Transporte internacional
A Modernidade, porém, começou com Napoleão. Em vez de mensageiros a cavalo
apareceu, a partir de 1794, um telégrafo óptico que controlava os exércitos de França à
distância, através de códigos secretos. E as Leis e privilégios que persistiam desde tempos
antigos foram substituídos em 1806 pelo Código «Napoleón» constituindo um todo
integrado. Em 1838, Samuel Morse visitaria uma empresa gráfica em Nova Iorque para
saber, a partir da caixa tipográfica compartimentalizada – seguindo a interpretação de
Alberti - quais os caracteres que ocorrem com maior frequência e que tinham, portanto, de
158 Sobre Alberti, ver David Kahn (1979). The Codebreakers. The Story of Secret Writing (9ª edição). Nova
Iorque. Sobre o enigma do Exército Alemão (Wehrmacht), ver Andrew Hodges (1983). Alan Turing: The
Enigma. Nova Iorque, pp. 161–170. 159 O próprio Viète escolheu vogais para as incógnitas e consoantes para os coeficientes. Desde a Geómetrie
(1637) de Descartes, os coeficientes começam no princípio do alfabeto e as incógnitas do fim (a, b,c..., x, y,
z). Desde então, x^n + y^n = z^n tem sido o exemplo clássico de uma equação matemática sem quaisquer
números, o que seria inconcebível para os Gregos, Indianos e Árabes.
118
ser enviados mais rapidamente em símbolos Morse160
. Pela primeira vez uma escrita era
optimizada com base em critérios técnicos, sem consideração pela semântica, embora não
fosse ainda chamada de Código Morse. Este foi o resultado da publicação de certos livros,
os então chamados Universal Code Condensers que, pelo transporte internacional por cabo,
forneceram conjuntos de palavras acordados para abreviação, significando isso o
embaratecimento dos telegramas oferecidos, através dos quais a mensagem fornecida pelo
emissor era codificada uma segunda vez. Desde então chama-se «descodificar» e
«codificar», àquilo que outrora se designava como «decifrar» e «cifrar». Todo o código que
o computador hoje em dia processa está sujeito portanto ao teste de Kolmogorov: é mau
todo o input que é em si mesmo mais extenso que o seu output; no caso do «ruído branco»
são os dois igualmente extensos; finalmente, o código é elegante quando o seu output é
muito mais longo do que ele próprio. O século vinte fez assim do «Code Condenser», como
uma espécie de alto princípio economicista do capitalismo, a plena consumação do rigor
matemático.
O Presente – Turing
Com estas considerações chego ao estado de coisas actual. Fica apenas por
questionar como este estado surgiu, ou como – em outras palavras – a matemática e a
criptação contrairam esse casamento inseparável que vigora sobre nós. O facto da resposta
ser Alan Turing é algo que muitos de vós indubitavelmente já sabem. Porque a máquina de
Turing de 1936, como circuito básico dos computadores que são realmente possíveis,
resolveu um problema fundamental dos tempos modernos: o modo como os números reais,
isto é, na generalidade, números de extensão infinita, nos quais se baseiam os
conhecimentos técnicos e de engenharia desde o tempo de Viète, podem ser representados
por números inteiros. A máquina de Turing provou que, apesar de tudo, nem para todos os
números reais isto é possível, mas sim para um subconjunto distinto, que Turing baptizou
como números computáveis, computable numbers161
. Um número finito de signos de um
alfabeto enumerável, o qual, como sabemos, pode ser simplificado até ser apenas composto
por zero e um, veio banir desde então a infinitude dos números.
160 Cf. Coy, Aufbau, p. 6. 161 Cf. Alan M. Turing (1987). Intelligence Service, Schriften, editado por Bernhard Dotzler e Friedrich
Kittler. Berlim, pp. 19–60.
119
Ainda mal Turing tinha estabelecido estes princípios, e já a séria questão da sua
aplicação criptoanalítica se colocava. Na primavera de 1941, na Code and Cipher School da
Grã-Bretanha, os proto-computadores de Turing decifraram, rapidamente e de modo quase
decisivo para o desfecho da guerra, os códigos secretos das forças armadas alemãs que
(para sua própria desgraça) tinham permanecido fiéis a Alberti. Nos nossos dias, quando os
computadores podem decifrar quase completamente o tempo atmosférico ou o genoma –
quer isto dizer, segredos físicos e cada vez mais, também, biológicos – esquecemo-nos com
frequência que essa não é a sua função primeira. O próprio Turing levantou a questão de
saber para que seriam os computadores realmente criados e indicou primeiro, como o seu
mais elevado propósito, a simples descodificação da nossa linguagem humana.
«A aprendizagem de línguas seria, acima das […] chamadas aplicações possíveis, a
mais impressionante, por ser a mais humana das actividades. No entanto, este domínio
parece depender demasiadamente dos órgãos sensoriais e da capacidade de locomoção. A
criptografia era talvez o campo de aplicação mais vantajoso. Há um paralelismo notável
entre os problemas de um físico e os de um criptógrafo. O sistema a partir do qual uma
mensagem é decifrada corresponde às leis do universo, as mensagens intereceptadas
correspondem às evidências alcançáveis e a chave válida num dado momento ou para uma
dada mensagem corresponde a importantes constantes naturais que têm de ser
determinadas. O paralelismo é muito rigoroso mas, enquanto a criptografia pode facilmente
levar a cabo as suas funções através de máquinas discretas, o caso da física não é tão
simples.»162
Conclusões
Traduzido em estilo telegráfico, isto significará algo como: se tudo no mundo é ou
não codificável, tal está no segredo dos deuses. Garantido à partida parece estar apenas o
facto de que o computador, operando ele próprio por códigos, pode decifrar códigos que lhe
são estranhos. Os alfabetos são, desde há três milénios e meio, o protótipo de tudo o que é
discreto. Se a física, apesar da sua teoria quântica, somente será quantificável enquanto
conjunto de partículas, e não como superposição de ondas, tal suposição não está de modo
162 Turing, Intelligence Service, p. 98.
120
nenhum comprovada. Finalmente, está ainda em aberto a hipótese de saber se todas as
línguas, que fazem do ser humano, ser «humano», e das quais, a partir da terra dos gregos,
o nosso alfabeto emergiu, são modeláveis como códigos, nomeadamente na sua sintaxe e na
sua semântica.
O conceito do código é, deste modo, tão inflacionável como questionável. Se cada
período da história assenta sob uma filosofia primeira, então a nossa está sob a do código, o
qual - num estranho retorno do significado primeiro de «Codex» – tem a última palavra no
que respeita à legalidade em todos os casos e, deste modo, almeja fazer exactamente o que,
na primeira filosofia dos gregos, era da exclusiva competência de Afrodite163
. Código
significará porventura, tal como Codex significou também outrora, precisamente a lei
daquele império que nos mantém sujeitos e que nos proíbe até de proferir esta frase. Em
todo o caso, conforme preconizam com certeza triunfal as grandes instituições de
investigação, que são também as que mais beneficiam dessa certeza, não existe nada no
universo que não seja código, do vírus até ao Bing Bang. Devemos por isso precaver-nos –
tal como Lily Kay fez no caso da biotecnologia - relativamente a metáforas que diluem o
conceito legítimo de código, sempre que – usando o exemplo do ADN – não se acha uma
correspondência de um para um, entre elementos materiais e unidades de informação. Dado
que a palavra já significou, no seu longo percurso histórico, «transposição», «transmissão»–
de caracter para caracter, de número para letra e vice-versa – trata-se de uma palavra
bastante vulnerável, nomeadamente, a uma transmissão errada. Na cintilação actual da
palavra código, reluzem hoje ciências que ainda nem a sua tabuada e alfabeto dominam e
que, ainda menos, causam que de uma coisa se produza outra, a não ser por meio de
metáforas em que as coisas encontram nomes diferentes.
Por «códigos» devemos por conseguinte entender unicamente aqueles alfabetos que,
no sentido da matemática moderna, são totalmente inequívocos e finitos, ou seja, séries o
mais curtas possível de símbolos que, graças a um sistema gramatical, possuem uma
incrível capacidade de se reproduzirem infinitamente: sistemas de Thue-Semi, cadeias de
Markov164
, formalismo de Backus-Naur, etc. Isso e apenas isso distingue tais alfabetos
163 «daímohn hê pánta kubernâi» (Deus, aquela que controla tudo) é o que Afrodite chamava a Parménides
(DK 8, B 12, 3). 164 Sobre as cadeias de Markov, ver Claude E. Shannon (2000) Ein/Aus. Ausgewählte Schriften zur
Kommunikationsund Nachrichtentheorie, editado por Friedrich Kittler et al. Berlim, pp. 21–25.
121
modernos daquele outro que nos é familiar, do qual provêm as nossas diferentes línguas e
que nos ofereceu os versos de Homero165
, mas que não pôs em marcha nenhum mundo
técnico, ao contrário do que fazem os códigos dos computadores hoje em dia. Porque,
enquanto a máquina inventada por Turing conseguia gerar números reais unicamente a
partir de numeros inteiros, as suas sucessoras – nomeadas segundo o seu nome – deram
lugar ao domínio total166
. A técnica implementa hoje o código na realidade, codificando
assim o mundo.
Se com isto a língua, enquanto casa do ser, foi abandonada, tal não posso dizer. O
próprio Turing, quando questionado sobre a possibilidade de uma máquina aprender uma
língua, partiu do princípio que só robôts, e não apenas computadores, – isto é, máquinas
com sensores, actuadores, ou seja, com conhecimento do envolvimento embutido nelas –
poderiam aprender essa arte elevada, a da fala. Mas foram precisamente os novos
conhecimentos customizados do ambiente, aplicados aos robôts, que se tornaram
novamente obscuros e escondidos para os próprios programadores que os lançaram com as
primeiras versões do código. As chamadas hidden layers da função de rede neuronal dão-
nos um bom, embora trivial exemplo, de como os próprios cálculos iniciais podem escapar
aos construtores, mesmo se o resultado em si correr bem. Assim, ou escrevemos código,
que se apresenta como determinação da constante natural da própria coisa, e por isso
gastamos milhões de linhas de códigos e biliões de dólares em hardware digital ou, em vez
disso, deixamos às máquinas a tarefa de derivar código a partir do seu próprio ambiente,
sendo que deixaremos então de poder ler e pronunciar esses códigos. O dilema entre código
e linguagem parece no fim irresolúvel. Quem já alguma escreveu código em autêntica
linguagem computacional ou até em assembler sabe, por experiência própria, duas coisas
muito simples: primeiro, que todas as palavras, com as quais o programa nasce e se
desenvolve, conduzem necessariamente a muitos erros, falhas ou bugs; segundo, que o
165 Sobre Homero e o alfabeto de base vogal, ver Barry B. Powell, Homer and the Origin of the Greek
Alphabet, Cambridge, 1991. 166 Cf. Turing, Intelligence Service, p. 15.
122
programa correrá por si mesmo assim que a sua cabeça esteja absolutamente esvaziada de
palavras. Isto verifica-se no contacto com outros, em que não se pode comunicar através do
código que nós próprios escrevemos. Espero que tal não tenha ocorrido comigo e convosco
nesta palestra.
Tradução de Jorge Rodrigues
Revisão de Maria Teresa Cruz
123
COMPUTAÇÃO GRÁFICA:
UMA INTRODUÇÃO SEMI-TÉCNICA 167
I(x, x') = g(x,x’)+[p(x,x’,x’’) l(x’,x’’)dx’’]
J. T. Kajiya
Minhas senhoras e meus senhores: perdoem-me por começar com uma trivialidade.
Quando a conversa se aproxima da questão das imagens, ouvimos frequentemente
disparates como os que se seguem. As imagens computacionais são o output de computação
gráfica. Gráficas computacionais são programas de software que, desde que correndo no
hardware apropriado, fornecem algo para ver e não apenas para ler. À primeira vista, todos
sabemos isto. À primeira vista, o que os nossos olhos podem ver no ecrã forma uma
percepção óptica tal como qualquer outra. E, uma vez que a teoria da arte aprendeu
recentemente a perguntar «o que é uma imagem?» podemos prosseguir com uma questão
relacionada com «o que são imagens computacionais?»; podemos segui-la perguntando nós
mesmos «o que são imagens computacionais?». A tese de Bredekamp, segundo a qual os
museus e os gabinetes de curiosidades, as artes e as técnicas invocam o mesmo dispositivo,
tornou possível colocar tais perguntas.
1.
A minha introdução semi-técnica à computação gráfica apenas proporcionará, no
entanto, uma resposta parcial : uma resposta que não poderá, nomeadamente, considerar a
167 Conferência pronunciada em Basel, Junho de 1998.
124
comparação necessária entre pintura e imagens de computador, ou entre mistura subtractiva
e aditiva de cores. Seguindo esta simplificação, uma imagem de computador é uma mistura
aditiva, a duas dimensões, de três cores de base mostradas na moldura ou parergon, da
instalação do monitor. Por vezes, a imagem computacional é, enquanto imagem, uma
realidade pouco notória, como acontece com o interface gráfico dos sistemas operativos de
última moda; outras vezes, torna-se bastante mais presente, enquanto «imagem», no pleno
sentido do termo. No mínimo, a geração de 1998 subscreve de bom grado a falácia apoiada
por milhões de dólares, segundo a qual computadores e computação gráfica são uma e a
mesma coisa. Só hackers com alguma idade abrigam ainda na memória o facto de que nem
sempre foi assim. Houve um tempo em que a visualização no ecrã do computador consistia
em pontos brancos num fundo âmbar ou verde, como se se tratasse de nos lembrar que as
raízes tecno-históricas dos computadores não residem na televisão mas sim no radar, um
médium da guerra.
Os ecrãs dos radares, no entanto, devem ser capazes de se relacionar, em todas as
dimensões com estes pontos que lhes aparecem como indícios de aviões inimigos atacantes,
e abatê-los com o click de um rato.
A imagem computacional deriva precisamente deste endereçamento dos primeiros
sistemas de aviso, mesmo se este substituiu as coordenadas polares do ecrã do radar por
coordenadas cartesianas. Em contraste com o médium semi-analógico da televisão, também
as linhas verticais, e não apenas as linhas horizontais, encontram uma resolução em
unidades de base. A massa destes chamados «píxeis» forma uma matriz bi-dimensional que
atribui a cada ponto da imagem uma certa mistura das três cores fundamentais: vermelho,
verde e azul. A natureza discreta ou digital, tanto das coordenadas geométricas como dos
seus valores cromáticos, torna possível o artifício mágico que separa os gráficos
computacionais do cinema e da televisão. Agora, pela primeira vez na história dos média
ópticos, é possível visar exclusivamente um pixel na linha 849 e na coluna 720, de modo
directo, sem ter que percorrer tudo o que está antes e depois dele. A imagem de
computador é assim susceptível de falsificação num grau que dá já arrepios aos produtores
de televisão e aos cães de fila da ética; na verdade ela é falsificação incarnada. Ilude o olho,
que não deverá poder diferenciar entre píxeis individuais, com a ilusão ou a imagem de
125
uma imagem, quando na verdade a massa de píxeis, dada a sua endereçabilidade, está na
realidade estruturada como um texto inteiramente composto por letras individuais. Por esta
razão – e apenas por esta razão – alternar entre modo de texto e modo gráfico não
representa qualquer problema para um computador. No entanto, a digitalidade dupla das
coordenadas e do valor de cor cria certas áreas problemáticas, entre as quais deverão ser
mencionadas pelo menos três.
Primeiro, os três cânones tradicionais de monitores de televisão ou de computadores
não são simplemente suficientes para produzir todas as cores fisicamente possíveis. Pelo
contrário: experiências, que a indústria parece ter considerado demasiado caras, mostraram
que seriam necesários nove cânones de cores para começarmos a aproximarmo-nos sequer
do espectro visível168
. No seu estado actual, o chamado «cubo RGB», matriz tridimensional
dos valores discretos do vermelho, verde e azul, é um típico compromisso digital entre
engenheiros e especialistas de gestão. Em segundo lugar, as matrizes discretas – a matriz
bidimensional das coordenadas geométricas, assim como a matriz tridimensional dos
valores de cor – colocam o problema fundamental da mesurabilidade.
Nem a natureza, tanto quanto julgamos compreendê-la, nem a hiper-natureza (tal
como aquela que é produzida por música de computador e por computação gráfica)
acontecem na realidade para serem reduzidas a unidades digitais básicas. Por esta razão, a
digitalização, em termos da nossa percepção, quer também dizer sempre «distorção». O
barulho estalido ou, tecnicamente falando, o barulho da quantização, que paira na música
gravada digitalmente, ocorre em imagens de computador como um efeito escalonado ou de
interferência, como uma discontinuidade ou continuidade ilusória. O efeito de
mesurabilidade descrito por Nyquist e Shannon não apenas desbasta curvas fluidas
transformando-as em blocos, conhecidos entre os especialistas de computação gráfica como
geometria de blocos de Manhattan, dado que os urbanistas americanos gostam de acima de
tudo de ângulos rectos. A mesurabilidade também produz formas contínuas e por isso
Notas
168 Cf. Alan Watt, Fundamentals of Three-Dimensional Computer Graphics. 2. Aufl. Wokingham-Reading-
Menlo Park-Nova Iorque-Don Mills-Amsterdão-Bonn-Sidney-Singapura-Tókio-Madrid-San Juan 1990, p.
353.
126
espantosas, mesmo não sendo essa, de modo algum, a intenção da linguagem de
programação. Em terceiro lugar, a digitalidade da computação gráfica cria um problema
que é desconhecido para a música computacional. Num ensaio sobre Time Axis
Manipulation
169, cuja leitura ainda espero de alguns de vós, procurei anteriormente mostar a margem de
manobra produzida pelo facto de o sampling digitial de qualquer sequência musical recair
sobre três elementos (uma tríade é algo que nos é familiar a partir da teoria dos números
naturais de Peano)170
: um acontecimento ou estado com a duração de um milésimo de
segundo, o seu predecessor e o seu sucessor. Os três podem ser integrados ou diferenciados,
trocados ou misturados até os limites da música académica e popular moderna serem
realmente explorados. Em princípio – e isto significa, infelizmente, dado um tempo de
processamento exponencialmente crescente – estes truques poderiam ser transferidos e
adaptados da unidimensionalidade da música para a bidimensionalidade das imagens
digitais. O resultado, contudo, tende a ser tão caótico que é como se a percepção
regressasse à sensação pura de David Hume ou de Kaspar Hauser. A razão para isto é
elementar e, ao mesmo tempo, não trivial. Toda a imagem ( no sentido da arte, não da
matemática) tem um cima e um baixo, lado esquerdo e lado direito. Os píxeis, na medida
em que são construídos algebricamente como matrizes bi-dimensionais e,
geometricamente, como grelhas ortogonais, têm necessariamente mais do que um vizinho.
Nos começos heróicos da ciência da computação, quando alguns grandes matemáticos
começaram por formular truismos, surgiram os conceitos de vizinhança de elementos de
Ashby e de vizinhança de elementos de Von Neumann. O primeiro considera que um dado
elemento é apenas rodeado pelo cruzamento dos seus vizinhos de cima, de baixo, da
esquerda e da direita ; o segundo, que cada elemento é rodeado por um quadrado dos acima
mencionados elementos ortogonais, mais quatro vizinhos adicionais na diagonal. Uma
diferença que poderia perfeitamente descrever, se quiserem, a diferença entre a construção
da cidade de Manhattan e de Tóquio, respectivamente.
169 Cf. Friedrich Kittler (1993). «Real time analysis. Time axis manipulation» in Draculas Vermächtnis.
Technische Schriften. Reclam: Leipzig, pp. 182-207.
170 Os axiomas de Peano supõem os números naturais e visam definir um sistema simples que os caracterize e
permita assim, segundo as regras da Lógica, a dedução de todas as suas propriedades. [N.T.]
127
Ora o segredo conhecido das máquinas de Turing, das arquitecturas de Von
Neumann, e dos micro-processadores, i.e., o hardware de todos os computadores hoje
existentes, é o de que eles reduzem o chamado mundo a números naturais e, também deste
modo, à relação sequencial de Peano. Armazenadores de memória e contadores de
programa estão do lado do hardware; funções e programas, do lado do software; correm
todos sequencialmente. Assim, todas as dificuldades que os computadores encontram no
processamento paralelo ou na computação de redes também se aplica à computação gráfica.
Pois, em contraste com a música, cada ponto numa imagem tem na realidade um número
infinito de vizinhos possíveis, e contudo também oito, de acordo com a poderosa
idealização de Von Neumann. Por esta razão, ainda temos que esperar algum tempo antes
de as máquinas de Turing serem capazes de interpretar automaticamente a querida escrita
antiga e humanista europeia em estilo Fraktur171
. Cada algoritmo dispende para a filtragem,
processamento e reconhecimento do conteúdo de uma imagem um montante significativo
de trabalho neste número sobredeterminado de relações entre vizinhos - e isto é
precisamente o que, antes de mais, constitui as imagens. Visto por outro lado, é até possível
que esta sobredeterminação pudesse oferecer standards para, ou respostas para a questão de
Gottfried Böhm a respeito do que constitui a densidade das imagens. Imagens que o
algoritmo de Ashby pode reconhecer teriam menos densidade do que outras que
necessitariam, digamos, do algoritmo de von Neumann para serem decifradas. (Para não
falar da possibilidade das imagens, seja por inerência seja pelo seu design, ortogonais ou
arquitecturais, poderem ser demasiado complexas para a análise computacional, por uma
questão de princípio).
Heidegger colocou, como sabem, o enigma da percepção do seguinte modo: «no
aparecer das coisas, em momento algum apreendemos à partida ou de modo essencial um
171 Kittler alude a um estilo de caligrafia estabelecido no início do século XVI no então Sacro-Império
Romano-Germânico, no qual as letras apresentam com muito mais curvas e ligações que na grafia latina
clássica. Esta grafia foi frequentemente utilizada como fonte para a imprensa nos países nórdicos e
germânicos até ao início do século XX. Por apresentar as letras quebradas ou alongadas a sua escrita também
é conhecida como «escrita quebrada» (Gebrochene Schrift). Fraktur significa precisamente fractura. [N.T.]
128
fluxo da sensações»172
. Para os entes que habitam a linguagem, tudo o que é visto ou
ouvido mostra-se já sempre como algo. Para a análise de imagem suportada pelo
computador, contudo, este algo-como-algo permance um objectivo teórico distante, cuja
realização não está sequer assegurada. Por esta razão, adiaria a questão da análise
automática da imagem, a ser discutida num simpósio sobre percepção, para daqui a mais de
uma década, limitando-me agora a tratar o problema da síntese automática da imagem. Não
se trata aqui, portanto, do modo como os computadores simulam a nossa percepção óptica,
mas antes e apenas do modo como a iludem. Parece pois ser exactamente esta capacidade
exorbitante que eleva o médium do computador acima de todos os media ópticos da história
ocidental.
2.
Os média ópticos, não por acaso em simultâneo com a imprensa de Gutenberg,
transformaram a cultura ocidental, abordando sempre a óptica como óptica. Da camera
obscura à câmara de televisão, todos os média simplesmente tomaram sempre a antiga lei
da reflexão e a moderna lei da refracção e lançaram-na para dentro de um determinado
hardware. Reflexão e perspectiva linear, refracção e perspectiva aérea são os dois
mecanismos da doutrinação ds percepção europeia, malgrado os contra-ataques da arte
moderna. Aquilo que anteriormente podia ser apenas manualmente conseguido nas artes
visuais ou, no caso de Vermeer e a sua camera obscura173
, apenas de modo semi-
automático, foi agora tomado a cargo por média tecnológicos totalmente automáticos. Num
belo dia, Henry Fox Talbot pôs de lado a sua câmara clara, à qual a imperfeição da sua mão
desenhadora fornceu o seu suporte relativamente imperfeito, e adoptou a fotografia que ele
mesmo celebrou como o próprio lápis da natureza. Num dia menos radioso, o Nathanael de
E.T.A. Hoffmann deixou a sua amante Clara, colocou um pequeno telescópio ou binóculos
nos seus olhos e saltou para a morte certa174
. A computação gráfica está para estes média
172 Martin Heidegger (1963). «Der Ursprung des Kunstwerks» in Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, p. 15
173 Cf. Arthur K. Wheelock jr. (1995). Vermeer and the Art of Painting. New Haven: Londres.
174 Cf.. Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1960). Der Sandmann in Fantasie und Nachtstücke, ed. Walter
Müller-Seidel: Munique, p. 362.
129
ópticos como os média ópticos estão para o olho. Tal como a lente da câmara simula o
olho, literalmente enquanto hardware, o qual é literalmente wetware, também o software,
enquanto computação gráfica, simula o hardware. As leis ópticas da reflexão e da refracção
continuam a vigorar, com efeito, para os dispositivos de output, tais como os monitores ou
ecrãs LCD, mas o programa cujos dados dirigem estes dispositivos transpõe essas leis
ópticas, uma vez que obedece a leis puramente algébricas. Deve dizer-se à partida que estas
leis não são, geralmente, de modo algum todas as leis ópticas válidas para os campos da
visão e das superfícies, sombras e efeitos de luz; o que está em jogo são estas leis
específicas e não, como nos media ópticos, apenas os efeitos que elas produzem. Não
admira pois que o historiador de arte Michael Baxandall possa inclusivamente sugerir que a
computação gráfica providencia o espaço lógico relativamente ao qual qualquer pintura em
perspectiva constitui um subconjunto mais ou menos rico175
.
A completa virtualização da óptica tem a sua condição de possibilidade na completa
acessibilidade de todos os píxeis. A matriz tridimensional de um espaço perspectivo
constituído por elementos discretos pode ser convertido a uma matriz tridimensional de
filas e colunas discretas sem ambiguidade, mas não bijectivo. A cada elemento posicionado
em frente ou atrás, à direita ou à esquerda, acima ou abaixo, é atribuído um ponto de
correspondência virtual, sendo a sua representação bidimensional aquilo que num dado
momento aparece. Apenas o facto bruto do espaço RAM disponível limita a riqueza e
resolução do detalhe de tais mundos , e só a escolha inevitável, ou unilateral, do modo
óptico para governar tais mundos limita a sua estética.
A seguir, gostaria de tentar apresentar os dois modos ópticos opcionais mais
importantes: raytracing e radiosity. Dito isto, é importante sublinhar, à partida, a revolução
que representa o facto de a computação gráfica tornar o modo óptico opcional,
nomeadamente quando comparada com os media ópticos analógicos. Para sermos mais
precisos, a fotografia e o cinema permitem a escolha entre lentes de grande abertura ou
teleobjectiva e uma ampla variedade de filtros de cor. Mas uma vez que o hardware
fotográfico sempre fez simplesmente o que tinha que fazer, sob as condições físicas dadas,
a questão nunca foi saber qual seria o algoritmo óptimo para as suas imagens.
175 Michael Baxandall (1995). Shadows and Enlightenment. New Haven: Londres.
130
Comparativamente, a computação gráfica, na medida em que é software, consiste
em algoritmos e só em algoritmos. O algoritmo óptico para a síntese automática da imagem
pode ser determinado tão facilmente como a síntese de imagens não-algorítmicas. Ele teria
de calcular simplesmente todas as equivalências ópticas, isto é, electromagnéticas, que a
electrodinâmica quântica conhece para espaços mesuráveis, tal como em espaços virtuais,
testando-as de uma ponta à outra; dito de um modo mais simples, verter os três volumes das
Lectures on Physics176
de Richard Feynman em software. Então o pêlo dos gatos, visto que
constitui superfícies anisotrópicas, brilharia como pêlo de gato. Os raios num copo de
vinho, porque mudam o seu índice de refracção em cada ponto, converteriam as luzes e as
coisas por detrás de si em totais tons espectrais.
Teoricamente, nada impede o caminho de tais milagres. As máquinas universais
discretas, vulgo para computadores, podem fazer tudo o que é programável. Mas não
apenas em Malte Laurids Brigge177
, de Rilke, mas também na electrodinâmica quântica são
as «efectividades lentas e indiscritivelmente detalhadas»178
. A óptica perfeita não poderia
ser programada num tempo finito, e, por causa dos intermináveis momentos de suspensão
do monitor, teria de adiar a redoação da imagem perfeita pelos intermináveis momentos de
suspensão do monitor. A computação gráfica distingue-se de efeitos baratos de média de
entretenimento visual em tempo real pela capacidade de perda de tempo que rivalizaria com
a dos pintores antigos, se suposéssemos que os usuários fossem mais pacientes. É
exclusivamente apenas em nome da impaciência que a computação gráfica se baseiam em
idealização, que aqui funciona, em oposição à Filosofia, como pejorativo.
Uma primeira idealização basilar consiste em tratar corpos como superfícies. Em
oposição à medicina computada que, por necessidade, tem de registar os corpos a três
dimensões, a computação gráfica reduz automaticamente as dimensões do seu input às duas
dimensões do seu output. Isso exclui não apenas coisas transparentes ou parcialmente
176 Versão portuguesa: Richard P. Feynman, Robert B. Leighton, e Mathey Sands. (2008). Lições de Física de
Feynman. Editora Bookman: Porto Alege, 2008. [N.T.]
177. Versão portuguesa: Rainer Maria Rilke. (1955). Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. trad. Paulo
Quintela. Coimbra: Instituto Alemão da Universidade de Coimbra. [N.T.]
178 Maria Rilke Rainer (1955-1966). Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge. Sämtliche Werke, ed.
Ernst Zinn. Badn VI, Wiesbaden: Frankfurt am Main, p. 854
131
transparentes como os referidos raios num copo de vinho. Também é mais óbvio que coisas
como o pêlo dos gatos ou nuvens de lã de ovelha não têm nem duas ou três dimensões
completamente numeradas (pelo menos desde Benôit Mandelbrot), mas sim a denominada
dimensão de Hausdorff do exemplo 2.37179
. Não por coincidência, os filmes gerados
computacionalmente, como Jurassic Park, não tentam de todo concorrer seriamente com os
casacos de pele de Os Embaixadores de Hans Holbein: contentam-se antes com
dinausauros armados e, portanto, não adornados.
Figura 1: Hans Holbein, Os Embaixadores. National Gallery, Londres.
179 Ver Benoît Mandelbrot (1991). Die fraktale Geometrie der Natur. Basileia: 1991.
132
Mesmo aquando esta redução dos corpos a superfícies, de dimensões de Hausdorff a
material imagético, a computação gráfica fica perante a questão de saber quais os
mecanismos virtuais que devem estar visíveis para que superfícies. Apresentam-se duas
opções algorítmicas, que contudo se contradizem e, consequentemente, encerram sob o seu
jugo uma estética em relação a todas as outras. Gráficas computacionais realisticas, isto é,
as que se distinguem de simples modelos de grelha180
, devem poder concorrer com artes
tradicionais, podendo ser raytracing ou radiosity – mas nunca ambos ao mesmo tempo.
A
Raytracing
Por fidelidade à história devo começar com o modelo de traçamento de raios
simplesmente porque, pelas melhores ou piores razões do mundo, é muito mais velho que o
algoritmo de radiosity. Como Axel Roch brevemente tornará público, o conceito de
raytracing não surgiu de todo da computação gráfica, mas sim do seu antecessor militar: a
localização de aviões inimigos com radar. E, como o programador de computação gráfica
Alan Watt mostrou recentemente, o raytracing é algo ainda mais venerável do ponto de
vista histórico. O primeiro raio de luz, cuja reflexão e refracção constituiu uma imagem
virtual, foi construído no ano 1637 de Nosso Senhor, por um tal de René Descartes181
.
Dezoito anos mais cedo, no Novembro bélico de 1619, Descartes recebeu uma
iluminação e três sonhos. A iluminação consistia numa ciência maravilhosa, que mais tarde
seria a Geométrica Analítica. Contudo, os sonhos começaram com uma tempestade que
paralisou Descartes do lado direito, três ou quatro vezes, para depois rodopiar em torno da
sua perna esquerda. Suspeito, contudo, que o sonho e a ciência são um. No sonho, o sujeito
tornou-se um ponto inextensível ou, mais precisamente, um ponto médio, em trono do qual
o próprio corpo, enquanto res extensa, procedeu a uma tridimensionalização, descrevendo a
figura geométrica de um círculo. A filosofia cartesiana trata, como é sabido, da res cogitans
180 Modelo que apresenta um objecto tridimensional utilizado para gráficos 3D, através da localização de
todos os pontos de intersecção de superfícies contínuas, formando grelhas. (no original e em inglês:
Drahgittermodellen, wireframe models) [N.T.]
181 ver Watt, Fundamentals, p. 154 - 156.
133
e da res extensa; a Geometria Analítica trata, de um modo muito menos conhecido, de
movimentos algébricos descritíveis ou áreas. Pela primeira vez na história da Matemática,
Descartes tornou possível a apresentação de figuras dadas enquanto mais do que
simplesmente figuras celestiais-geométricas, mas sim figuras construidas como funções de
uma variável algébrica. O sujeito enquanto res cogitans viajou de igual modo todos os
valores de função de uma equação, até ao momento em que, no sonho inicial do círculo de
Descartes, de 1619, ou, viagem de Münchhausen182
sobre a bola de canhão, a parábola foi
descrita.
Quando o retirado Descartes, em 1637, entrou com o seu Discours de la Méthode na
luz do público, juntou, além da Geometria, dois suplementos sobre óptica: um ensaio sobre
a lei da refracção e um sobre o arco-irís.
Figura 2: Esquema de Descartes para representar a refracção e reflexão num arco-íris. A partir de Les
météores: de l’arc-en-soleil, 1637.
182 Karl Hieronymus von Münchhausen (1720-1797) foi um militar e latifundiário alemão a quem eram
atribuídas as aventuras mais mirabulantes, entre elas viagens em bolas de canhão e a salvação de um pântano
através do puxar dos próprios cabelos [N.T.].
134
Os dois ensaios aplicavam a sua Geometria Analítica directamente a cores e aparências.
Para desembaraçar a luz do arco-irís da sua correspondente teologia, Descartes pediu a um
soprador de vidro para fornecer um simulacro de uma única gota de chuva ampliada cem
vezes. Este globo oco foi apenas a promessa de uma experiência de pensamento, na qual o
percurso do sujeito-ponto cartesiano se aproximava da esfera a partir de todos os ângulos
possíveis. O próprio sujeito desempenha portanto o papel de um raio de luz, vindo do sol na
gota de chuva e a perfazer todas as Refracções e Reflexões possíveis, até que a mais
simples luz solar desintegrar-se-á no espectro do arco-íris, segundo leis trigonométricas183
.
É certo que Herão de Alexandria já havia formulado as leis da reflexão e que
Willibrod Snell as da refracção. Ficou pois reservado a Descartes emparelhar as leis, no
caminho de um único raio de luz em repetidas aplicações. O sujeito cartesiano constitui-se
através de aplicação do próprio ou, falando informaticamente, através de recursão. É
precisamente a razão pela qual o traçar de raios não pode inspirar nenhum pintor e nenhum
médium óptico analógico. Apenas computadores e, mais precisamente, linguagens
computacionais, que permitem funções recursivas, dispõem de poder de processamento
para localizar os incontáveis casos cambiantes ou o destino de um raio de luz, num espaço
virtual repleto de superfícies virtuais.
O programa de raytracing começa, de modo mais elementar, por definir o monitor
do computador como uma janela bidimensional para uma tridimensionalidade virtual.
Seguem-se então dois aguçadores interactivos sobre todas as linhas e colunas do monitor,
até que um raio de visão de um olho virtual, em frente ao monitor, tenha alcançado os
aglomerados de píxeis. Estes raios virtuais continuam a vaguear por detrás desses píxeis,
para explorar diferentes casos. A maioria tem a sorte de não encontrar nenhuma superfície e
podem portanto executar rapidamente a tarefa de reflectir uma cor como a do céu. Outros
raios, contudo, são aprisionados num globo de vidro do tipo de Descartes, onde são
submetidos a inumeráveis refracções e reflexões, quando a impaciência dos programas de
computação gráfica não limita artificialmente as recursões máximas permitidas. Isto é
necessário porque um jogo de raios de luzes, que é colocado entre dois espelhos paralelos e
183 Cf. René Descartes (1953). Les météores. in Oeuvres et lettres, ed. André Bridoux. Paris: Les Belles
Lettres, p. 230-244.
135
perfeitos, nunca terminaria, já que os algoritmos não são definidos por um uso temporal
finito.
Raytracing produz, em súmula, imagens reluzentes e reais a partir do jogo conjunto
de um interminável e fino raio de luz com uma massa de superfícies bidimensionais em
espaço virtual. Todas as superfícies, que a Geometria Analítica desde Descartes pode
definir algebricamente, são permitidas, todas as interacções entre luzes e superfícies
espelhadas ou parcialmente visíveis são modeláveis. Sempre que encontrar uma imagem
computacional, cujas luzes reflectidas estão próximas da celestial Jerusalém e cujas
sombras tenebrosas próximas do inferno, trata-se de raytracing elementar. Isto também
significa, infelizmente, que a opção óptica de seu nome raytracing mostra mais e menos
que a percepção directa. Simplesmente porque o raio de luz é infinitamente fino e, portanto,
de dimensão nula, os efeitos máximos tornam-se localizados e os globais, em contrapartida,
suprimidos. A interacção não se joga entre superfícies luminosas e iluminadas, mas sim
entre pontos de luz e pontos de superfícies. Por isso é que as luzes reflectoras parecem
hiperreais, enquanto que as reflexões em tonalidades mate ficam simplesmente omissas. Tal
e qual como o cálculo diferencial de Newton e Leibniz, que emergiu como consequência
matemático-histórica do sujeito-ponto cartesiano, assim será o raytracing, visto
formalmente, resultado único de uma diferenciação parcial. O que conta é que, dentro da
diferença de pontos, o que é sublevado são as semelhanças de superfícies. As imagens de
raytracing que queiram fazer concorrência à maravilhosa Menina com o Chapéu Vermelho
de Vermeer não teriam, portanto, quaisquer dificuldades com a luz reflectida apurada e
definida, que é a fonte de luz lançada a partir da direita para a ponta do nariz e o lábio
inferior mas, contudo, dificuldades intermináveis com os reflexos vermelhos, nos quais o
chapéu submerge toda a metade esquerda da face. Raytracing é, à semelhança do sujeito-
ponto cartesiano, simples idealização necessariamente malograda face à Menina com o
Chapéu Vermelho de Vermeer.
B
Radiosity
136
Deu-se pois, desde 1986, que a congregação programadores de computação gráfica
se mudou para o lado contrário sem, contudo, embandeirar arco. Interior holandês segundo
Vermeer não é o nome de uma imagem consumidora de tempo entre outras, mas sim um
programa de programador.
Figura 3: Interior holandês segundo Vermeer:. A partir de Foley et. Al.
Radiosity ou (numa clarificação atabalhoada) o cálculo da energia luminosa devia
vincular que um mundo visível não pode ser derivado de raios e pontos de superfície, mas
137
sim por superfícies luminosas e iluminadas. Com isto, a cor do chapéu vermelho pode
finalmente fazer aquilo que é prometido pelo ensaguentado termo técnico «sangrar»: a
energia da luz de uma superfície activa flui, exactamente de acordo com Vermeer, a todas
as superfícies passivas vizinhas que não estão no ângulo próprio da superfície activa. O
processo de radiosity não se presta à objecção demasiado humana que os olhos compensam
tais difusões de cor de modo a reconhecer as coisas. Trata simplesmente do cálculo de um
mundo que os nossos olhos poderiam ver, se apenas pudessem ver. Dito tecnicamente: a lei
de cosine, proposta para superfícies perfeitamente difundidas, em 1760, por Johann
Heinrich Lambert, é cumprida pela integração de todas as áreas de superfície integradas.
Pior para a teoria, na sua elegância matemática, que em nada se origina a partir da
computação gráfica, tal como o que ocorre no raytracing. A origem da radiosity está nos
poblemas caros, em todos os sentidos da palavra, lançadas pelos problemas da reentrada
dos foguetões na atmosfera terrestre. A sua superfície metálica entrava em ruptura no
conflito entre temperaturas terrestres extremamente frias e altas temperaturas de fricção, até
que a NASA modernizou a teoria analítica da difusão do calor de 1807, elaborada por
Fourier (não mencionando o acidente do Challenger).
Radiosity é, em oposição a raytracing, um algoritmo de necessidade. A Integração
só podia ser definida enquanto função revertida de diferenciação, na sua elegância prévia,
já que, na cruel verdade empírica e numérica, consome tempo de processamento
dramaticamente elevado. Os programas de radiosity tornaram-se utilizáveis a partir do
momento em que deixaram de prometer resolver o seu sistema de equivalências num único
movimento. Dito prosaicamente: começa-se os algoritmos, depara-se de seguida com trevas
completas, faz-se uma das pausas, daquelas afamadas entre os programadores de
computadores, para, depois de uma ou duas horas, saudar os resultados satisfatórios da
distribuição global da energia luminosa. O que a chamada «Natureza» cria em
nanosegundos com o seu cálculo paralelo, conduz o seu suposto equivalente digital à
sobrecarga.
Por isto, sujeito cartesiano, idealizado como era, oferecia todas as vantagens da
elegância. Em oposição, o século XIX, com Fourier, Gauss, Maxwell e Boltzmann,
começou a calcular energias, integrais de superfície e termodinâmica, tornando este tema,
no mínimo, disfuncional e, no máximo – como se sob uma fita de Möbius – simplesmente
138
louco. O passo da mecânica ao campo, de derivadas a integrais, passou um cheque em
branco que o progredir do século cobraria. Os computadores digitais são, como Vilém
Flusser nunca deixou de enfatizar, a única resposta possível à pergunta sobre o que
constituiu a grandeza e miséria do século XIX.
Os computadores digitais são apenas só computadores digitais. Conhecem apenas
sequências intermináveis de 0 e 1 ou, dito de outro modo, somas arbitrárias de potências de
dois em números inteiros. Já o número π, do qual todos os círculos, esferas e vertigens
cartesianas emergem, é um computable number de Turing apenas na condição de ser
aproximado a um valor limitador desejado. Isso devora tempo, que os programadores de
computação gráfica não possuem em ilimitado. Portanto, o processo de radiosity isola todas
as superfícies cuja curva gaussiana não é e não permanece zero. Enquanto os raytracers
estão tudo menos predestinados para esferas e fitas de Möbius, cálices e vasos, nos
programas de radiosity um pré-processador reduz toda a beleza geométrica primeiro a
modelos de grelha, que são depois montados a partir de elementos de área, como triângulos
e quadrados. O aspecto não inventivo da arquitectura da Bauhaus torna-se a honra da
computação gráfica, simplesmente porque as integrais que necessitam de soluções seriam,
deste modo, como uma bela fórmula estabelece, proibitivamente difíceis. Tais trivialidades
não determinam apenas quais as superfícies apresentáveis mas também, o modo como a
interacção entre elas será matematicamente modelada. É claro que uma superfície plana
luminosa comunica a sua energia para vermelho, verde e azul com todas as outras
superfícies, na exacta medida Lambert-Maß requerida pelo ângulo, que passa apenas uma
vez entre as superfícies. Isto forçaria, horrible dictu, o recurso ao número π . Por isso, a
superfície luminosa não pode ser olhada como um semicírculo, na qual toda percepção se
fia; ela constrói-se antes a partir de alicerces de economia de cálculo, numa geometria de
bloco Manhattan, de modo a reduzir o tempo de processamento. Nas imagens de radiosity
interagem, portanto, de um modo não muito diferente de uma imagem de Mondrian,
rectângulos com rectângulos, mesmo que nenhum possua, de todo, um ângulo recto. Toda a
luz reflectida, que o raytracer faz resplandecer, desvanece-se em integrais numéricas
aproximadas, que são como que o próprio aborrecimento. Por outras palavras: enquanto
radiosity, a arquitectura computacional olha para si própria no seu olho binário. What you
139
get is what you see, esse grandioso mote para interfaces gráficas de utilizador modernas184
,
encontra-se por um momento com a sua verdade dialéctica: What you see is what you get.
And what you got, is a computer chip.
A expressão «computação gráfica» é literal. Por detrás do negócio de biliões, que
promete mais um mundo óptico, esconde-se o anão jogador de xadrez de Wolfgang von
Kempelen e de Walter Benjamin. Desde que o seu funcionamento permaneça com a
arquitectura do plano de John von Neumann, os computadores digitais estabelecem pontos
sem dimensão, isto é, pixéis ou bits, aglomerando-os em espaços de armazenamento
octogonais, sequências de comandos, etc. Isto não é nem necessário nem elegante, mas sim
barato. Sabemos todos, por exemplo, que os favos hexagonais de uma colmeia podem ser
mais compactados e que as possibilidades de interacção são, portanto, maiores. Mas, for the
time being, portanto no ser e tempo hodierno, vigoram leis idiotas. Raytracing é o auto-
retrato de um ponto sem dimensão, que é apenas razoavelmente alumiado pela luz
reflectida ou enevoado pelos registos de recursão. Radiosity é, inversamente, um auto-
retrato da superfície octogonal de um chip de memória, apenas um pouco curvado ou
evanescente pelas difusões de cor ensaguentadas e subdivisões de superfícies laboriosas.
Raytracing, enquanto cálculo diferencial, abre virtualmente uma infinidade que, à
semelhança de Caspar David Friedrich, pode ser reflectida no nosso igualmente finito e
romântico mundo. Radiosity, enquanto cálculo de integrais, encerra um sistema virtual
cujas condições de limite têm de permanecer constantes, tal como nas imagens de camera
obscura de Vermeer. Pintura de paisagem claustrofóbica e pintura histórica claustrofóbica –
ambas ascenderam a formas de topo de gráficas computacionais.
Se tivesse prometido meras receitas, em vez de uma introdução semi-técnica, esta
curta palestra teria já acabado. Amantes de interiores apanhariam programas de radiosity da
Internet, amantes de horizonte aberto, por seu turno, programas de raytracing. E agora que,
pelo menos desde o Linux, existem as Blue Moon Rendering Tools, a decisão tornou-se
irrelevante. Este software, não menos admirável que uma lua azul, calcula mundos
imagéticos virtuais, primeiro num movimento de acordo com dependências globais, em
sentido de radiosity, e em segundo lugar, por oposição, de acordo com singularidades
184 Literamente, superfícies de utilização. [N.T.]
140
locais, em sentido de raytracing. Promete assim uma coincidentia oppositorum que,
segundo tudo o que foi dito, não pode ser uma simples soma. Aqui e hoje seria ir
demasiado longe ao explicar o porquê de um tal processo de dois passos, em que não
apenas o segundo passo está em função do primeiro, mas mesmo o primeiro está desde
logo enviezado para o segundo. De outro modo, os quatro casos de transmissão de energia
óptica não podiam ser tidos em conta.
Por sorte, as lições de Blue Moon Rendering Tools podem ser mais breve e
formalmente colhidas. Desde logo, processos de computação gráfica de dois passos
mostram a verdade cruel, que a refracção e reflexão difusas não podem ser tidas ao mesmo
tempo que reflexão especular e refracção especular. Localidade ou especularidade é e
permanecerá o contrário de globalidade ou difusão, porque integração é o oposto de
diferenciação e radiosity o oposto raytracing. O tempo da imagem de mundo, como a ira de
Heidegger definia, já em 1938185
, o nosso presente de controlo informacional, vai a par com
a observação de que nenhum algoritmo pode elaborar uma imagem do mundo que seja, ao
mesmo tempo, detalhada e integral. Entre aquilo que é e o que é, coordenadas e
superfícies, derivações e integrais, eventos e iterações, existem sempre apenas
compromissos, nunca sínteses. Deve-se portanto reconhecimento às gráficas
computacionais enquanto tais, pois foram capazes de fazer compromissos a partir da
exclusão. Pois o que a outrora a estética filosófica, mais proeminientemente na Crítica da
Faculdade de Julgar186
de Kant, determinou sobre a alegada diferença entre linha e cor,
derivação e integral, não é correcto nem para as pinturas nem para a computação gráfica187
.
3.
185 Cf. Martin Heidegger (1969) «Die Zeit des Weltbildes» in Holzwege, op. cit., p. 104.
186 Immanuel Kant. (1992). Crítica da Faculdade do Juízo. trad. Valério Rohden e António Marques. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
187 Ver Friedrich Kittler, Farben und/oder Maschinen denken. In: Hyperkult, hrsg. XXX, YYY, ZZZ, S. AAA
- BBB.
141
As coisas, segundo as palávras memoráveis de Anaxágoras, aparecem e
desaparecem na medida da justiça. Tentei demonstrar o contrário, que as imagens –
certamente não apenas enquanto gráficas computacionais – aparecem na medida da
injustiça. Os olhos dos vertebrados dividem entre pauzinhos e pequenas varas enquanto
sensores para o que é e aquilo que é, imagem de gozo e guerra evenemencial. Para
prosseguir a linha de Time Axis Manipulation, também no caso de manipulação de espaço,
que desde logo poderia vantajosamente substituir o conceito gasto de imagem, também se
deve lembrar Dennis Gabor que, em 1946, traduziu o princípio mecânico quântico de
incerteza na linguagem simples da técnica noticiosa. Quem pergunta pela coordenada de
pontos da imagem perde os seus vizinhos de vista e quem, inversamente, pergunta por
relação de vizinhos a um ponto, isto é, uma superfície, perde o choque que cada ponto pode
ser. Quem considera, além disto, que este dilema é potenciado pela transição da Geometria
para a Óptica, chega mais próximo da pergunta, cuja não-resposta é: computação gráfica.
Então, a manipulação do espaço não ocorreria simplesmente entre superfícies e pontos, mas
sim entre superfícies e pontos de superfície de um lado e corpos luminosos e pontos do
outro lado. Por outras palavras: integrais e diferenciais tornar-se-iam funções de integrais e
diferenciais. O que está no lado direito da equação depende do lado esquerdo e
inversamente. A haver justiça gráfica computacional, ela seria portanto uma integral de
Fredholm de segundo tipo, isto é, «um tipo de integral cuja função desconhecida ocorre
tanto dentro como fora da integral» e cuja «aplicação mais importante» é, notavelmente,
«na dinâmica de partículas físicas quânticas»188
. Em 1986, quando os primeiros programas
de radiosity estavam a começar a fazer concorrência aos bons velhos programas de
raytracing, um tal Kajiya do California Institute for Technology teve a ousadia de colocar
a sua rendering equation ou descrição da igualdade geral de um modo não menos paradoxal
ou menos imbuído do espírito da física moderna. Na equação de Kajiya, a nossa preguiça,
que é nossa parte constitutiva, necessita apenas de substituir uma ou o grupo de variáveis
com constantes fictícias de modo a derivar raytracing ou radiosity enquanto substratos
algorítmicos. A beleza da electrodinâmica quântica não é porém servida pela preguiça.
188 Alan und Mark Watt, Advanced Animation and Rendering Techniques. Theory and Practice (1992).
Wokingham-Reading-Menlo Park-Nova Iorque-Don Mills-Ontario-Amsterdão-Bonn-Sidney-Singapura-
Tókio-Madrid-San Juan-Mailand-Paris-Cidade do México-Seoul-Taipe, p. 293.
142
Pelo contrário: desde a rendering equation, toda a computação gráfica fica perante um
objectivo, cujo carácter inalcançável augura a possibilidade de um dia conduzir a um fim
não mais inglório do que a impiedosa perspectiva linear geométrica de Brunelleschi. A
computação gráfica só seria computação gráfica no momento em que pudessem dar a ver o
que aparece como não visível – os valores ópticos parciais de dinâmicas de partículas
distribuidas de um modo físico quântico.
Na vista etimologicamente curta de Heidegger, a fenomenologia, palavra mágica de
Lambert mais filosofica e historicamente poderosa, é: legein ta phainomena, a junção da
aparição. Na vista ampla da computação gráfica tal junção já não necessita mais de
qualquer Dasein, já que superfícies de radiosity iluminadas podem ser reduzidas às mais
confortáveis superfícies de projecção, enquanto que pontos luminosos podem ser reduzidos
ao mais rápido percurso de um raio de luz. Os projécteis levaram a oposição
sujeito/objecto, a mais estúpida das oposições, para a campa do cemitério. Os nossos olhos
não estão portanto apenas disseminados pelo mundo no HS 293189
190
e nas suas crianças de
cruise-missile; eles devem aguardar, desde a rendering equation de Kajiya, que o próprio
mundo, num dia indizível – pelo menos no chapéu mágico dos microchips – lhes lance a
sua imagem. Legein ta phainomena, a junção da aparição, não será, através disso,
facilitada.
Tradução de Maria Teresa Cruz e Jorge Rodrigues
189 Míssil guiado utilizado na II Guerra Mundial contra embarcações. [N.T.]
190 Sobre estas bombas, as primeiras a explorar a óptiva televisiva, ver Theodor Benecke, Karl-Heinz Hedwig
e Joachim Herrman (1987) Flugkörper und Lenkraketen. Die Entwicklungsgeschichte der deutschen
gelenkten Flugkörper vom Beginn dieses Jahrhunderts bis heute. Koblenz: Bernard & Graefe, p. 111.
143
NÃO EXISTE SOFTWARE191
The Eastern World is exploding, cantava Barry McGuire. Na primeira vez, para
dissuadir todos os seus amigos, nos loucos anos sessenta, através de vinil ou cassetes, da
crença que nós não vivemos na véspera da destruição. Na segunda vez, depois de um
remake electrónico brilhante, que tornou a sua antiga canção de vinil o número um192
digital da A.F.N193
de Dammam194
, para dissuadir os guerreiros ocidentais da Desert
Storm195
, através de onda ultra curta, da crença que eles ou nós vivemos na véspera da
destruição196
.
McGuire (ou muito mais o processador digital de sinais, que pôde apagar uma
negação fonográfica imortalizada, novamente e sem vestígios) teve razão das duas
vezes, mas apenas porque as explosões já não contam. Não tem qualquer importância
se as torres de perfuração de petróleo ou mísseis scud197
, esses herdeiros do V2
dependentes do Reich, explodem pelos ares. O Oriente gosta de explodir
silenciosamente, sendo que apenas conta o que ocorre agora no mundo ocidental : uma
explosão antes demais das altas tecnologias e, consequentemente, também a de um
plano de significantes198
que, caso contrário, possivelmente ainda se continuaria a
chamar espírito do mundo199
. Sem técnica computacional nenhuma desconstrução -
dizia triunfalmente Derrida. Consequentemente, escritos e textos (incluindo-se o que
agora vos leio) não existem mais em tempo e espaço perceptível mas sim nas células de
transístor200
dos computadores. E aí, os feitos heróicos criados pelo Silicon Valley201
191 «Es gibt keine Software» in KITTLER, Friedrich, Draculas Vermächtnis – Technische Schriften,
Edição Reclam Verlag Leipzg, 1993, pp. 225-242 [N.T.] 192 No original: Spitzenreiter – favorito, número um, primeiro da lista. [N.T.] 193 O autor refere-se à American Forces Nework, que inclui sistemas de difusão de rádio. [N.T.] 194 Kittler refere-se à localidade ad-Dammam, situada na Arábia Saudita, onde o exército americano
estabeleceu uma das mais importantes bases militares durante a Primeira Guerra do Golfo. [N.T.] 195 O nome Desert Storm refere-se ao nome de código americano da Guerra do Golfo – Operation Desert
Storm [N.T.] 196 Expresso o meu agradecimento a Wolfgang Hagen/ Rádio Bremen, que demonstrou aos seus ouvintes
a comparação do texto entre as duas versões da música Eve of Destruction. 197 Scud é um míssil balístico de origem soviética, com alcance curto. [N.T.] 198 No original: Signifikantenszene. [N.T.] 199 No original: Weltgeist – Welt significa mundo, Geist é um conceito mais problemático frequentemente
traduzido por espírito. Ese espírito de mundo a que Kittler se refere é o concebido por Hegel em
Phänomenologie des Geistes. [N.T.] 200 No original: Transistorzellen. [N.T.]. 201 Região americana onde se situam as indústrias de vanguarda tecnológica. [N.T.]
144
nas últimas três décadas, comprimindo202
o tamanho das células de transístor até
dimensões submicrométricas, isto é, com menos de um micrómetro, podem descrever
doravante a nossa actual situação de escrita203
apenas em conceitos de geometria fractal:
enquanto auto-semelhança204
dos caracteres durante cerca de seis décadas, desde os
anúncios das firmas no topo dos edifícios até ao homogéneo bitmap205
, que é
dimensionado como transístor. No princípio alfabético da história subjazia entre um
camelo e o guímel, o seu caracter hebraico, apenas duas décadas e meia; em oposição,
com a miniaturização de todos os símbolos para medidas moleculares, o acto de escrita
desapareceu.
Todos sabemos e apenas não o dizemos: hoje em dia ninguém escreve. A escrita,
este tipo peculiar de software, laborava melhor na sua incurável confusão entre uso e
referência. Até ao dia dos Hinos de Höderlin, a mera referência a algo como um trovão
parecia ainda ser evidência suficiente para o seu possível uso poético206
. Contrariamente
a hoje, após a transformação do relâmpago em electricidade, a escrita humana ocorre
através de inscrições, que não são apenas gravadas através da litografia electrónica no
silício, mas que são eles próprios, diferentemente de todos os intrumentos de escrita da
história207
, capazes de ler e escrever.
O último acto histórico da escrita pode bem ter sido aquando, no final dos anos
setenta208
, uma equipa de engenheiros da Intel, sob a orientação do Dr. Marcian E.Hoff,
estenderam uma dúzia de metros quadrados209
de papel de esquisso210
sobre o espaço
vazio do chão de uma garagem de Santa Clara211
, para esboçar a arquitectura de
hardware no seu primeiro microprocessador integrado. Este layout manual de dois mil
transístores e os seus canais de ligação seria, num segundo passo mecanizado, reduzido
ao tamanho de um polegar do chip real e, em terceiro lugar, escrito no silício por
202 No original: drücken [N.T.] 203 No original: Schreibszene [N.T.] 204 Conceito de Geometria fractal. Ocorre auto-semelhança numa figura quando « se apresenta sempre o
mesmo aspecto visual a qualquer escala quer seja ampliada ou reduzida, ou seja, se parte de uma figura se
assemelha à figura vista como um todo» (NUNES, Raquel, 2006) [N.T.] 205 Também conhecido por imagem raster, que se opõe à imagem vectorial, já que contém a descrição de
cada píxel [N.T.] 206 Cf. Thomas Hafki, Elektrizität und Literatur 1750-1816. 207 No original: Schreibwekzeugen. [N.T.] 208 A versão inglesa declara no início dos anos setenta («in the early seventies»); a alemã para o final dos
anos setenta («in den späten Siebzigern»). A ideia para o microprocessador foi no entanto proposta em
1969, pelo que o período da versão alemã é o correcto. [N.T.]. 209 Em 1978, no Design do processador Intel 8086, este esquisso ocupou 64 m2 em papel milimétrico. Cf.
Klaus Schrödl, 1990, Quantensprung. DOS, Folha 12, p. 102. 210 No original: Zeichenpapier. [N.T.] 211 É no vale de Santa Clara que se localiza Silicon Valley. [N.T.]
145
aparelhos electro-ópticos. Após isto, em quarto lugar, o produto final, o 4004,
protóptipo de todos os microprocessadores posteriores, encontrou também lugar nas
novas calculadoras dos clientes japoneses da Intel e a nossa situação de escrita pós-
moderna acabava assim de começar.
Entretanto, na complexidade de harware dos microprocessadores
contemporâneos, as técnicas manuais de esboço não têm mais nenhuma hipótese. Para
desenvolver todas as próximas gerações de computadores, nenhum papel de esboço
ajuda, mas sim o Computer Aided Design212
: as capacidades geométricas da última
geração de cálculos são suficientes para delimitar a tipologia das suas gerações
subsequentes. Assim ficam, uma vez mais na soleira da porta, os pés daqueles que serão
conduzidos.
Marcian E. Hoff tinha assim dado, já com o seu primeiro esquisso213
, o exemplo
quase acabado de uma máquina de Turing. Desde a dissertação de Turing de 1937, cada
acto de cálculo pode, seja por homens ou máquinas, ser formalizado como um conjunto
numerável de ordens, que trabalham sobre uma tira de papel214
infinitamente longa e
sobre os seus símbolos discretos. O conceito de Turing, em relação a uma tal máquina
de papel215
, cujas operações apenas compilam ler e escrever, avançar e recuar, provou-
se como equivalente matemático de todas as funções calculáveis e portanto zelou para
que a descrição do trabalho inocente do computador a partir de um sentido maquínico
fosse completamente suprimido216
. Às Máquinas Universais de Turing precisa apenas
ser fornecida a descrição (o programa) de uma qualquer outra máquina para
efectivamente imitar essa máquina. E porque, desde Turing, se deve primeiro abstrair da
diferença de hardware entre ambos os aparelhos, ocorre a chamada Tese de Church-
212 Auxiliador de desenho de computador como o software CAD, bem conhecido dos arquitectos. [N.T.] 213 No original: Blaupause. [N.T.] 214 No original: Papierband [N.T.] 215 Cf. Alan M. Turing, 1937,« Über berechenbare Zahlen. Mit einer Anwendung auf das
Entscheidungsproblem» in Turing, 1987. 216 O quão esta supressão progrediu, tal é demonstrado pelos autores ou compiladores dos Programmer’s
Reference Manuals da Intel: no comando do pponto de flutuação f2xm1, portanto na segunda potência de
uma grandeza de input menos um, será traduzido em inglês quotidiano não em algo como «Compute 2^x-
1» mas sim em algo como «Computer 2^x-1». Cf. Intel Corporation, 1989, 387 DX User’s Manual.
Programmer’s Reference, Santa Clara/Califórnia, 1989, pp.4-9, assim como Intel Corporation, 1990, i486
Microprocessor. Programmer’s Reference Manual, Santa Clara/Califórnia, pp.26-72.
146
Turing217
na sua forma mais forte, nomeadamente física, que leva a esclarecer a partir
dela a própria Natureza218
enquanto Máquina Universal de Turing.
Esta asserção, enquanto tal, teve como efeito duplicar a implosão de harware
através de uma explosão de software. Desde que os computadores puderam ser
implementados, a partir de 1943 com base em condutores e a partir de 1949 com base
em transístores, emergiu também o problema de ler e escrever de algum modo estas
universais mas também ilegíveis máquinas de leitura-escrita. A sua solução chama-se,
como é conhecido, software, ou seja, desenvolvimento de linguagens de programação
superiores. O monopólio primordialmente antigo219
da linguagem quotidiana, que era a
sua própria metalíngua, não havendo portanto outro do outro, colapsou220
, sendo o seu
lugar tomado por uma nova hierarquia de linguagem de programação. Esta Torre de
Babel pós-moderna221
vai assim desde simples códigos de ordem222
, cuja extensão
linguística ainda é uma configuração de hardware, passando pelo assembler223
, cujas
extensões são exactamente todos os códigos de comando, até às chamadas linguagens
superiores, cuja extensões se chamam assembler, com todos os desvios possíveis, desde
interpreter, compiler e linker224
. Assim sendo, escrever hoje em dia também é, enquanto
desenvolvimento de software, uma cadeia quase infinita de auto-semelhanças, tal como
a geometria fractal as descobriu. Ocorre apenas que, diferentemente do modelo
217 A tese de Church-Turing postula que um algoritmo é apenas computável quando é computável por
uma máquina de Turing. É uma tese ou hipótese porque não é demonstrável formalmente. [N.T.] 218 Pelo facto de essa natureza aludir à pressuposta entidade, apresenta-se como nome próprio em
maíuscula. [N.T.] 219 No original: Das uralte Monopol. O adjectivo uralt acaba por funcionar como uma paráfrase que
reforça o sentido da antiguidade – ur já aponta para primordial, alt significa antigo ou velho. [N.T.] 220 Aqui reforçamos a ideia de «caiu com», portanto co-lapsou, . No original: zusammengebrochen [N.T.] 221 Cf. Wolfgang Hagen, 1989, «Die verlorene Schrift. Skizzen zu einer Theorie der Computer» in
Arsenale der Seele. Literatur- und Medianalyse seti 1870, Edição de Friedrich A.Kittler e Georg
Christoph Tholen, Munique, p.221: «Na estrutura linguística da lógica maquínica de Neumannschen
existe já o princípio que funda o colapso de software e documentação-software, e assim acumula-se desde
1945 uma torre de programas de performances computacionais, cuja utilização já não tem nada que ver
com a utilização propositada de uma linguagem maquínica. Uma torre de software com erros não
documentados, com dialectos, desesperados e complicados, e uma acumulação de actos linguísticos que
ninguém consegue compreender.» Numa imagem menos precisa e, por isso mesmo, mais desesperada, um
especialista em UNIX formula o seguinte: «quase todos os sistemas operativos distinguem-se, depois de
uma determinada duração, através de um ‘grau de poluição’. Eles proliferam em todas as direcções e
deixam a impressão que são como que ruínas, que apenas ainda são sustentadas com muita dificuldade».
(Horst Drees, 1988, UNIX. Ein umfassendes Kompendium für Anwender und Systemspezialisten, Haar, p.
19). O especialista em UNIX é demasiado educado para atribuir a esta proliferação o nome próprio de
uma empresa, como Microsoft Corporation. 222 No original: Befehls-Codes. [N.T.] 223 Assembler é o nome dado ao tipo de programa que converte ordens de computação básicas num
conjunto pré-definido de bits. Reduz a necessidade de escrever em código puro. [N.T.] 224 As linguagens computacionais superiores [Hochsprachen] serão aquelas que mais distam da escrita
pura de código, ou seja, aquelas que recorrem a um maior conjunto de Assemblers para efectuar as
operações, sejam essas operações interpretar, compilar ou ligar. [N.T.]
147
matemático, o alcance de todos estes estratos225
permanece uma impossibilidade físico-
fisiológica. Consequentemente, as tecnologias modernas dos média são, já desde o
filme e o gramofone, calculadas por princípio para ocorrerem na percepção sensorial.
Não podemos, pura e simplesmente, saber o que os nossos escritores fazem e muito
menos no caso dos programadores.
Como ilustração desta situação bastam contudo casos quotidianos, como por
exemplo o programa de processamento de texto do qual provêm as minhas palavras. O
locus genial de Palo Alto produziu226
o primeiro e o mais elegante sistema operativo,
mesmo que, perdoado seja, um feito inferior da Microsoft Corporation restrinja o seu
exemplo ao mais idiótico de todos eles.
Para processar textos, ou seja, mesmo para se tornar uma máquina de papel num
IBM AT 227
através de Microsoft DOS228
, implica por consequência a compra de um
pacote comercial de software em casa. Seguidamente, um par de informações deste
pacote tem de ser portador os nomes de extenção .EXE ou .COM; caso contrário, um
processador de texto de DOS nunca pode arrancar. As informações executáveis, elas e
apenas elas, estabelecem uma relação peculiar com o seu próprio nome. Por um lado,
portam de boca cheia nomes autoreferencias grandiloquentes como WordPerfect; por
outro lado, são portadoras de um acrónimo229
mais ou menos críptico, porque não-
vocal230
,como WP. O nome completo serve, só e acima de tudo, para as estratégias
publicitárias das casas de software, feitas necessariamente cada vez mais em linguagens
quotidianas, porque a captura de dados do Disk Operating System alias DOS não
poderia ler mais de oito letras. Por isto, os impronunciáveis acrónimos ou abreviações,
livres se possível de vogais/vocais231
, na reinvocação de uma inovação elementar grega,
225 No original: Schichten, referindo-se a camada ou estratos. [N.T.] 226 No original: hervorgebracht. [N.T.] 227 IBM Personal Computer AT é o nome do computador de segunda geração da IBM - International
Business Machines Corporation; AT foi então sigla para Advanced Technology. [N.T.] 228 Sistema operativo da Microsoft utilizado e desenvolvido durante os anos 80 e 90, sendo que DOS é a
sigla para Disk Operating System. [N.T.] 229 Apesar de, em alemão, WP ser um acrónimo, em português só pode ser considerado sigla: «Repare-se
que aquilo que distingue uma sigla de um acrónimo é apenas a sua concordância/não-concordância com a
estrutura silábica da língua em causa. Uma unidade como ONU é uma sigla (porque é formada pela
primeira letra de cada uma das palavras que constituem a designação — Organização das Nações
Unidas), mas é também um acrónimo (porque a sua estrutura silábica é conforme à estrutura do
português). Por seu turno, unidades como CGTP ou UGT (União Geral de Trabalhadores) apenas podem
ser consideradas siglas.» (Correia e San Payo de Lemos – Inovação Lexical em Português 230 No original: vokallos. Significa simultaneamente avocal e sem vogais, observação que é retomada na
temática kittleriana do alfabeto grego, cuja invenção de agrupamentos de consoantes com vogais (sílabas)
representa a condição de possibilidade da Literatura e canto lírico ocidentais. [N.T.] 231 Pela polissemia alemã referida na nota anterior, mantivémos as duas significações. [N.T.]
148
não só são necessários para a escrita pós-moderna, como também completamente
suficientes. Eles parecem facultar de novo poderes mágicos ao alfabeto, pela primeira
vez desde a sua descoberta. A contracção «WP» faz precisamente aquilo que diz. Por
contraste, não apenas com a palavra WordPerfect, mas também com antigas palavras
europeias esvaziadas como «espírito» [Geist232
] ou «palavra», as informações
computacionais executáveis cobrem todas as rotinas e informações que são necessátias
para a sua realização. O acto de escrita de pressionar, numa consola AT, os botões de
teclado «W», «P» e «enter», não perfaz a palavra completa e, contudo, inicia uma
efectiva ocorrência do WordPerfect. Tais triunfos são concedidos pelo software.
Daqui decorre que o paperware233
subjacente, mais ou menos inflacionado,
duplica ainda os poderes mágicos, para não permanecer por detrás das linhas de
comando. Os manuais correntes de software, que já reconciliam o abismo entre
linguagem formal e quotidiana, electrónica e literatura, apresentam o seu pacote de
programa enquanto agentes linguísticos, cuja omnipotência sobre recursos de sistema,
espaço de endereços e parâmetros de hardware dos computadores implicados
simplesmente exige: WP, invocada com o argumento X na linha de comandos,
mudaria234
o monitor do modo A para o modo B, estabeleceria o modo C, retornaria
finalmente ao modo D e por aí em diante235
.
Todas as acções que o agente WP completa em paperware, são só
completamente virtuais, porque cada acção individual, como é dito, ocorre, como se diz,
«sobre» DOS. Factualmente, os sistemas operativos trabalham apenas na sua shell :
COMAND.COM procura, através do buffer236
do teclado, nomes de entradas de 8-bits,
232 A problemática da palavra Geist nas Ciências Sociais e Humanas é amplamente conhecida, pelo que
apenas sinalizamos que esse era o termo aplicado na versão original. [N.T.] 233 A parafernália de artigos feitos de papel. [N.T.] 234 No original: schalten. Verbo semelhante ao switch inglês, designa a ligação/desligação de um
mecanismo. É uma palavra central na teoria kittleriana e muitos os seus estudiosos (Axel Roth em Hegel
is Dead, disponível em http://www.heise.de/tp/artikel/35/35887/1.html a 30/10/2012) garantem que as
suas últimas palavras, na cama de um hospital, foram precisamente «Alle Apparate abschalten»
[Desliguem todos os aparelhos]. [N.T.] 235 O único contra-exemplo que conheço surge, não por coincidência, a partir da Richard Stallmans Free
Software Foundation, que travou, pelo software-copyright uma luta tão heróica quanto desesperante. O
contra-exemplo é o seguinte: «Quando dizemos que >C-n se move para baixo verticalmente uma linha <
estamos a aludir a uma distinção que é irrelevante em uso quotidiano mas que é vital para compreender
como customizar Emacs. É a função next-line que é programada para se mover para baixo verticalmente.
C-n tem este efeito porque está ligado a essa função. Se se reconectar C-n à função foward-word então C-
n mover-se-á para a frente através de palavras» (Richard Stallman, 1988, GNU Emacs Manual. 6ª edição,
Cambridge/MA., p.19). 236 Buffer do teclado é um espaço de memória intermédia que armazena os caracteres pressionados pelo
utilizador. [N.T.]
149
traduzindo os endereços de uma informação eventualmente encontrada em termos
absolutos, carregando esta versão modificada a partir de um armazenador de memória
no RAM237
de silício e, finalmente, passando temporariamente para a execução do
programa as primeiras duas linhas de um escravo chamado WordPerfect.
O mesmo argumento pode contudo ser utilizado contra o DOS, porque sistemas
operativos são, em última análise, simples extensões de um sistema básico de
input/output, de seu nome BIOS. Nenhum programa de utilizador poderia, por uma vez
que fosse, inciar o microprocessador subjacente se um par de funções elementares que
figuram como parte insolúvel do hardware e, por isso, fundidas no silício por motivos
de segurança, não se adequassem à capacidade de Münchhausen de se conseguir puxar
para fora do pântano pela sua própria cabeleira.238239
Cada transformação material de
entropia em informação, de uns milhões de células dormentes de transístor em
diferenças eléctricas de voltagem, pressupõe como necessário um resultado material
chamado reset.
Esta declinação de software em hardware, de níveis dos observação mais altos a
mais baixos, pode ocorrer, em princípio, durante muitas décadas. De facto, as
operações de código elementares, apesar das suas capacidades metafóricas como call ou
return, reduzem-se a manipulação de signos absolutamente local e, com isto, culpe-se
Lacan, a significantes de potencial eléctrico. Toda a formalização, no sentido de
Hilbert, tem por efeito abolir a teoria, simplesmente porque «a teoria de um sistema não
é mais uma declaração significante, mas sim um sistema de frases como sequências de
palavras, cujas sequências de palavras são por seu lado caracteres. Por isso pode-se
apenas, com base na forma, diferenciar de onde partem: quais as frases de combinação
de palavras, quais as frases axiomáticas e quais as frases enquanto consequências
imediatas de outras»240
.
Se o significado se contrai em frases, as frases se contraem em palavras, as
palavras se contraem em caracteres, não existe portanto software. Ou mais ainda: não
237 Random-acess Memory (RAM) é uma forma de armazenamento de dados computacionais. [N.T.] 238 O autor alude às famosas histórias em torno de Hieronymus Carl Friedrich von Münchhausen (1720-
1797), conhecido por Barão de Münchhausen, conhecido contador de histórias supostamente ocorridas
nas campanhas militares contra os Otomanos com um carácter fantástico. As narrações de Münchauser
inspiraram a Literatura da época, sendo-lhe atribuídas capacidades fantásticas como ser capaz de se salvar
de um pântano puxando os próprios cabelos. [N.T.] 239 Isto pode passar como tradução livre do termo computacional Booting. 240 Stephen C.Kleene, ap ud Robert Rosen, 1988, Effective Processes and Natural Law in Herken, 1988,
p.527.
150
existiria, se os sistemas computacionais pudessem, não desde há muito tempo, coexistir
numa relação de vizinhança com a linguagem quotidiana. Este ambiente241
existe
contudo desde uma das mais conhecidas e dupla descoberta grega242
de caracteres e
moedas, letters and litters. Estes bons fundamentos económicos foram entretanto
fundamentalmente erradicados pela humildade de Alan Turing, que na idade da pedra
da era computacional preferiu expressões maquinais binárias a expressões maquinais
decimais243
. Em oposição, a chamada filosofia da chamada244
comunidade do
computador faz de tudo para ocultar o hardware por detrás do software, isto é, os
significantes electrónicos por detrás do interface humano-máquina. Cheios de
filantropia245
, os manuais de programação para linguagens superiores246
avisam sobre o
estilhaçamento espiritual que entra em erupção na escrita de funções trigonómicas em
assembler247
. Cheios de simpatia, os procedimentos BIOS (e os seus autores
especializados) assumem a função de «esconder as particularidades de controlo do
hardware subjacente ao seu programa»248
. Levando o pensamento ao seu termo, seria
também ocultado, de um modo não muito diferente do gradualismo da idade média,
com a sua hierarquia de anjos, o BIOS de funções de sistemas operacionais como
COMMAND.COM ou o sistema operativo de programas de utilizadores como o
WordPerfect – até que, finalmente, nos derradeiros anos, dois rearranjos no design
computacional (no conceito de conhecimento do pentágono) conduziriam todo este
sistema secreto ao seu encerramento bem sucedido.249
De seguida, seriam desenvolvidos interfaces gráficos utilizáveis, tendo em vista
níveis superficiais que, porque escondem na programação sempre actos de escrita
absolutamente necessários, extraem toda a máquina dos utilizadores. É que o
compêndio autorizado de gráficas IBM nunca tornaria a programação de sistemas mais
241 No original:Umwelt. [N.T.] 242 Cf. Johannes Lohmann, 1980, Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, Archiv für
Musikwissenschaft, 37, p.174. 243 Cf. Andrew Hodges, 1983, Alan Turing: the enigma, Nova Iorque, p.399. 244 Sempre que Kittler utiliza «die so genannte», exprime uma desconfiança. A sua referência ao humano
é sempre expressa nesses termos ao longo da sua obra. [N.T.] 245 No original: Menschenfreundlichkeit. [N.T.] 246 Hochsprachen – relação com o hochdeutsch – uma linguagem hoch é no caso das línguas humanas,
contrariamente à linguagem computacional, uma linguagem padrão. 247 Cf. TOOL Praxis, 1989, Assembler-Programmierung auf dem PC, Ausgabe 1, Würzburg, p.9. 248 Nabajyoti Barkalati, 1989, The Waite Group’s Macroassembler Bible, Indiana/IL, p.528. 249 Com o apagamento do procedimento de programação em código puro, as linguagens comunicacionais
vêm os seus fundamentos completamente branqueados, o seu primeiro procedimento de inscrição em
silício completamente esquecido, devindo o termo «programação» uma metáfora branca (Derrida).
Tornar secreto um conhecimento que já é de poucos é tarefa fácil, daí as instituições de poder poderem
hoje em dia ocultar as linguagens de programação. [N.T.]
151
rápida ou eficiente que simples linhas de comando250
. Em segundo lugar surgem,
contudo, em relação directa com ADA251
, a língua de programação do pentágono, níveis
microscópicos do próprio hardware, uma nova forma de sistema de processamento de
seu nome protected mode252
que, segundo a informação do Microprocessor
Programming Manual da Intel, tem por único propósito prevenir o acesso a recursos de
sistema como canais de inserção/distribuição de núcleos de sistemas operativos por
parte de «untrusted programs» [programas suspeitos] e «untrusted users» [utilizadores
suspeitos]. Neste sentido técnico, os utilizadores não são merecedores de confiança e,
em Protected Mode (no qual prevalece algo como UNIX253
), não devem de todo
controlar as suas máquinas.
Esta inexorável marcha triunfal do software é uma reversão particular da prova
de Turing, que diz que não pode existir nenhum problema calculável em sentido
matemático que uma simples máquina não seja capaz de solucionar. Precisamente, no
lugar desta máquina, o teste físico de Church-Turing, que já fazia equivaler, para efeitos
de cálculo, o hardware com o algoritmo, criou um lugar vazio que o software pôde
ocupar, não sem nisto deixar de aproveitar da sua escuridão.
É que as linguagens superiores de programação, quanto mais superiores e
quotidianas, mais fazem crescer a sua Torre de Babel e trabalham simplesmente como
250 Cf. James D.Foley, Andries van Dam, Steven K.Feiner, John F. Hughes, 1990, Computer Graphics.
Principles and Practice, 2ª edição, Reading/MA., p.397: «a manipulação [gráfica] directa é por vezes
apresentada como sendo o melhor estilo de interface de utilizador. É certamente muito poderosa e é
especialmente fácil de aprender. Mas a interface Macintosh pode ser lenta para utilizadores experientes
que seriam geralmente mais rápidos. Destacar o ficheiro ‘Capítulo 9’ Com manipulação directa requer
que a representação visual do ficheiro seja visívil e seleccionada, implicando depois a ordem ‘imprimir’.
Encontrar o ícone do ficheiro pode envolver pesquisar através de um grande número de items. Se o
utilizador conhece o nome do ficheiro, digitalr ‘imprimir capítulo 9’ é mais rápido. De modo semelhante,
eleiminar todos os ficheiros de tipo .txt requer encontrar e seleccionar cada ficheiro do tipo, arrastando-o
para uma pasta de reciclagem. O comando de estilo Unix >rm*.txt<, que utiliza o trunfo * para encontrar
todos os ficheiros cujo nome acaba em >.txt<.» Daqui segue-se a desintegração, porque o propósito do
próprio computador é mal utilizado: «Algumas aplicações, como a programação, não levam a uma
manipulação directa.» 251 Sobre a relação entre o Pentágono, ADA e o iAPX432 da Intel, o primeiro microprocessador em
Protected Mode, cujo falhanço económico causou a industrialização standard do 80286 até ao 80486, cf.
Glenford Myren jr., 1982, «Overview of the Intel iAPX 432 Microprocessor» in Advances in Computer
Architecture, Nova Iorque, p.335-344. (Agradeço a Ingo Ruhmann/Bonn). Quem se quiser aproximar do
falhanço, medite longamente sobre esta frase de uma reunião de assemblers: «O 432 pode ser
caracterizado como uma arquitectura three-address-storage-to-storage, onde os refistos não são visíveis
aos programas.» (p.342). 252 Kittler trata o tema Protected Mode noutro texto, publicado no mesmo livro que o presente ensaio e
que o antecede. Cf. KITTLER, Friedrich, «Protected Mode» in Draculas Vermächtnis – Technische
Schriften, Edição Reclam Verlag Leipzg, 1993, pp. 208-224. [N.T.] 253 Sistema operativo baptizado em 1969, criado por Ken Thompson a partir da reescrita do sistema
operativo anterior, Multics. [N.T.]
152
as chamadas funções infinitas das mais jovens criptografias matemáticas254
. Na sua
forma standard, tais funções são calculáveis com dispêndio de tempo justificável, por
exemplo quando o tempo de processamento das máquinas parte apenas de expressões
polinominais255
da complexidade da função. Em oposição, o dispêndio de tempo para
encontrar a forma inversa, isto é, a partir do resultado de uma função retraçar o seu
percurso até aos seus parâmetros de entrada, aumenta em relação exponencial e,
portanto, insustentável à medida que a complexidade da função aumenta. Por outras
palavras: as funções unidireccionais protegem os algoritmos dos seus próprios
resultados.
Esta propriedade criptográfica serve como uma luva256
ao software. Ela requer
um caminho confortável para contornar o facto que, depois do Teste de Turing, o
conceito de propriedade espiritual tornou-se impossível e ridículo257
e, no caso dos
algoritmos, ainda mais impossível e ridículo. Precisamente porque o software, enquanto
capacidade independente da máquina, não existe, tanto mais se pode insistir nele
enquanto médium comercial ou americano. Todas as licenças, dongles258
e patentes,
registadas para o WP assim como para o WordPerfect, comprovam a funcionalidade das
funções unidireccionais. As leis americanas até confirmaram recentemente, contra a
própria matemática, pretensão de copyright sobre os algoritmos.
Não admira que o nível mais novo e mais superior, de seu nome IBM, tenha
aberto a caça a formas matemáticas, que podem ser avaliadas segundo a sua
originalidade dos seus algoritmos, desde a medida de informação de Shannon ao
conteúdo de informação de Kolmogorov. A IBM acusa desde logo Shannon pelo facto
de, nos bons velhos tempos da teoria da informação, nos quais máxima informação e
máximo ruído até certo ponto coincidiam, as séries de lances de dados serem premiadas
matematicamente . Mas também a medida de Kolmogorov, que premeia o mais curto
de todos os algortismos possíveis para a produção de um output constante, não a
254 Para explorar o tópico, cf. Patrick Horster, 1982/1985, Kryptologie: eine Anwendung der
Zahlentheorie und Komplexitätstheorie., Mannheim-Viena-Zurique, p.23-27. 255 Uma expressão algébrica polinomial é a soma de duas ou mais constantes multiplicada por variáveis
com expoentes. [N.T.] 256 No original utiliza-se a expressão «kommt wie gerufen», expressão idiomática que quer dizer
literalmente «vem como foi chamada» e exprime uma adequação perfeita. [N.T.] 257 No original é apenas utilizada uma palavra: unmöglich. No entanto, esta palavra quer dizer tanto
ridículo como impossível e, dada a perspectiva de Kittler sobre os direitos de autor, decidimos aplicar os
dois termos para ressalvar a ambiguidade. [N.T] 258 Um dongle de protecção de software é uma pequena peça de hardware que se liga ao computador e
sem a qual um programa não funciona, utilizado para prevenir a cópia ou utilização noutro equipamento.
[N.T.]
153
contenta. De acordo com Kolmogorov, toda a atribulação voltaria a desaparer com o
cálculo de um quadro trigonométrico ou astronómico nas equações simples que lhe
subjazem. Poranto a nova medida IBM, chamada profundidade lógica, na sua confusão
entre habilidade de permanecer sentado e rabo pesado259
, é assim definida:
«O valor de uma mensagem (… ) parece residir não na sua óbvia redundância
(repetições verbais, frequências digitais desiguais), mas sim naquilo que pode ser
chamado a sua redundância enterrada – partes apenas com dificuldade previsíveis,
coisas que que o receptor poderia em princípio ter percebido sem lhe ter sido dito, mas
só com custo considerável em dinheiro, tempo ou computação. Por outras palavras é a
quantidade de trabalho matemático ou outro trabalho plausivelmente realizado pelo seu
originador, trablho que o receptor é salvaguardado de repetir»260
.
A medida da profundidade lógica de IBM, na sua severidade matemática, podia
com isto substituir todos os velhos, necessários e imprecisos conceitos de originalidade,
autoria e copyright, isto é, fazê-lo num processo coercível. Dá-se apenas o caso,
infelizmente, que o algoritmo do cálculo da originalidade dos algoritmos não é ele
próprio calculável segundo Turing261
.
Nesta situação trágica, o código penal, pelo menos na Alemanha, deixou cair o
conceito de propriedade espiritual262
, num igualmente imaterial software e, em vez
disto, definiu-o como «coisa». O parecer do Tribunal Federal de Justiça
[Bundesgerichtshof], de que nenhum programa de computador ocorreria sem corrente
eléctrica apropriada nos circuitos de silício263
, prova uma vez mais que a
indecidibilidade virtual entre software e hardware não é de modo nenhum apenas, como
os teóricos do sistema gostam tanto de acreditar, uma mudança de perspectiva
259 No original: Sitzfleisch., literalmente, «carne sentada»[N.T.] 260 Charles H. Bennet, 1988, Logical Depth and Physical Complexity, in Herken, 1998, p.230. 261 Agradeço a Oswald Wiener/Dawson City. 262 No original: Geistiges Eigentum [N.T.] 263 Cf. M. Michael König, 1991, Sachlich sehen. Probleme bei der Überlassung von Software, caderno 3,
p.73.
154
observacional subjacente264
. Boas razões clamam muito mais pela impossibilidade de
acordo mútuo265
e também, consequentemente, pela precedência do hardware.
É que máquinas com recursos de tempo e espaço ilimitados, com disposição de
papel infinita e velocidades de cálculo sem limites existiram apenas uma vez: no artigo
de Turing, On Countable Numbers, with an approximation ot the
Entscheidungsproblem. Todas as máquinas fisicamente exequíveis, por contraste,
estabelecem nestes parâmetros fronteiras estritas no próprio código. A incapacidade do
Microsoft DOS reconhecer entradas de informação com mais de oito caracteres como,
por exemplo, WordPerfect, ilumina no seu modo obsoleto e trivial não apenas um
problema que levou a cada vez maiores incompatibilidades entre diferentes gerações de
processadores de 8, 16 e 32 bits. Ela relega também de uma impossibilidade teórica da
digitalização: a de contar o corpo dos números reais, isto é, a outrora chamada
Natureza266
.
Contudo, isto quer dizer, nas palavras de Los Alamos National Laboratory, que:
«utilizamos os computadores digitais,cuja arquitectura nos é dada na forma de uma peça de maquinaria,
com todos os seus constrangimentos artificiais. Temos de reduzir uma descrição algorítmica contínua a
uma codificável num aparelho cujas operações fundamentais são contáveis, e fazemo-lo através de várias
formas de recortar em bocados, a normalmente chamada discretização… O compiler, posteriormente,
prossegue a redução deste modelo a uma forma binária determinada amplamente por constrangimentos
maquínicos.
O resultado é uma imagem de mundo discreto e sintético do problema original, cuja estrutura é
fixada arbitrariamente por um esquema diferencial e uma arquitectura computacional escolhida ao acaso.
O único resto do algoritmo contínuo é o uso de aritmética radix, que tem a propriedade de ponderar bits
desigualmente e, para sistemas não lineares, é a fonte de singularidades espúrias.
264 Antes podia-se fazer um processo semelhante ao que Dirk Baecker ilustrou: «suspeitar que a diferença
entre hardware e software é um reaparecimento da diferença que se preocupou entre programabilidade e
não-programabilidade no campo da programabilidade. Ela existe tanto para a calculabilidade da técnica
como no sentido da própria técnica. Ela só pode existir, porque a ‘unidade’ do programa só pode ser
realizada quando a igualdade e a calculabilidade forem divididas em dois lados, sendo um lado sempre
apenas operativo em relação à disposição e o outro lado constantemente controlado.» 265 No original: Unabdingbarkeit – isto é, a propriedade daquilo que não cede ao outro. [N.T.] 266 Não compreendo como é que o conhecido papel de Turing, que dita na primeira fraze que «descreve os
números calculáveis, em abreviação, como números reais», «cuja expressão decimal pode ser calculável
com meios finitos» (Turing 1937, p.19), definindo assim a quantidade de números calculáveis como
contáveis, pôde nomear π como «limite de uma sequência calculável convergente» (p.49).
155
É o que na realidade fazemos quando computamos um modelo do mundo físico com aparelhos
físicos. Este não é o procedimento idealizado e sereno que imaginamos quando normalmente discutimos
sobre as estruturas fundamentais da computação, e dista muito da Máquina de Turing.»267
Não se trata portanto mais de retraçar a tese física de Church-Turing e, com isso,
«injectar um comportamento algoritmico no comportamento do mundo físico, processo
cuja validade não está provada»268
. Se o mundo não foi originado por um lance de
dados divino, a relação algorítmica das nuvens de chuva269
ou as ondas marítimas não é
in-cluída, mas sim ex-cluída270
, para que as suas moléculas, substituídas por
computador, trabalhem a sua própria actividade. Inversamente, resume-se tudo a
calcular o próprio «preço da programabilidade». Esta capacidade decisiva dos
computadores não tem obviamente nada que ver com software; depende só e
unicamente do grau no qual um dado hardware pode acomodar o mesmo que um
sistema de escrita. Quando Claude Shannon provou, em 1937 («no mais consequente
trabalho de mestrado que já foi escrito»271
), que simples redes de telégrafo podiam
implementar toda a álgebra booleana, um tal sistema de registo instalou-se272
. E quando
o circuito eléctrico integrado conduziu, no início dos anos setenta, do transístor de
Schockney a um chip feito do elemento silício, esse resístor273
controlável, que foi então
combinado com o seu próprio óxido, este isolador quase ideal, a programabilidade da
matéria pôde, tal como a profecia de Turing ditava, «tomar o controlo»274
. Software, se
então o existisse, seria apenas um negócio milionário em torno de um dos elementos
mais baratos sobre a terra. É que na sua relação com o chip, silício e o óxido de silício
servem como hardware quase perfeito. Por um lado, milhões de elementos de ligação
trabalham sobre as mesmas condições físicas, o que é, acima de tudo, decisivo para os
parâmetros críticos da temperatura do chip e prevenção das crescentes diferenças
exponenciais na tensão dos transísitores; por outro lado, estes milhões de elementos de
267 Bros Hasslacher, 1988, Algorithms in the World of Bounded Resources, in Herken, 1988, p.421. 268 Hasslacher, 1988, p.420. 269 No original: Regenwolker. [N.T.] 270 Nota: aproximamos a mudança de prefixo no verbo, no original: ausschließen, einschließen (excluir,
incluir). [N.T] 271 Friedrich-Wilhelm Hagemeyer, 1979, Die Entstehung von Informationskonzepten in der
Nachrichtentechnik. Eine Fallstudie zur Theoriebildung in der Technik in Industrie- und
Kriegsforschung, Dissertação em filosofia pela FU Berlin, p.432. 272 No original o termo é Aufschreibesystem, que dá título à tese de doutoramente de Kittler,
Aufschreibesysteme 1800/1900 referência. Traduzido em inglês por discourse networks, acreditamos que
dá mais conta de um sistema de registo e inscrição que determina um período ou contexto. [N.T] 273 Peça utilizada em informática para converter energia eléctrica em térmica ou para limitar energia.
[N.T.] 274 Turing, 1959, Intelligente Maschinen. Eine häretische Theorie, in Turing, 1987, p.15.
156
ligação isolados permanecem electricamente conectados uns com os outros. Apenas esta
relação paradoxal entre dois parâmetros físicos, a continuidade térmica e a
discretização275
eléctrica, permite a circuitos eléctricos digitais integrados não
simplesmente serem autómatos, como tantas outras coisas sobre a terra, mas sim
aproximar cada Máquina Discreta Universal , com o nome do seu inventor Turing
desde há muito submerso.
Esta diferença de estrutura pode ser ilustrada muito facilmente. Por exemplo:
«um nó combinatório é um autómato finito, mas não é normalmente decomponível num
conjunto de componentes elementares-tipo que podem ser reconfigurados num sistema
físico arbitrário. Por consequência, não é programável estruturalmente e, neste caso, é
programável efectivamente apenas no sentido limitado que o seu estado pode ser
configurado para alcançar uma classe limitada de comportamentos». Por contraste, «um
computador digital utilizado para simular um nó combinatório é programável
estruturalmente já que o comportamento é alcançado através da sintetização deste a
partir de um conjunto canónico de componentes de ligação elementares»276
.
Contudo, os componentes de ligação sejam redes telegráficas, tríode277
ou
símplesmente transístores de silício, pagam um preço pela sua capacidade de
desmantelamento ou discretização. Excluíndo processamento de texto trivial, porque é
um caso discreto, que contudo quase desaparece por detrás de todos os outros campos
operacionais do computador, entenda-se, o científico, militar e industrial, as
calculadoras digitais são, para além disto, enquanto único «agente sim-não no sentido
forte da palavra»278
, um ambiente contínuo de nuvens, guerras e ondas no lado oposto.
Esta avalanche de números grandes e reais, como Ian Hacking diria, dá conta apenas da
adição extensiva de cada vez mais elementos de ligação, até aos 2000 transístores do
Intel 4004 se tornarem nos 1,2 milhões do Intel-Flagship279
. É demonstrável
matematicamente que a taxa de crescimento da ligação possível entres elementos e,
portanto, a performance de cálculo enquanto tal, tem uma função de raíz quadrada como
limite superior. O sistema, dito de outro modo, não pode «manter-se a par com taxas de
275 Acção de tornar discreto, objectal. [N.T.] 276 Michael Conrad, 1988, The Prize of Programmability, in Herken, 1988, p.289. 277 No original: Elektrinenröhren. Um tríode é um aparelho amplificador que é portador de três eléctrodos
activos. [N.T.] 278 Cf. John von Neumann, 1951/1967, Allgemeine und logische Theorie der Automaten, Manual nº8,
p.150. 279 Kittler traduz flagship para o alemão Flaggschiff, nau capitânia, nome do produto da Intel. [N.T.]
157
crescimento polinomiais da tamanho do problema»,280
para não falar de taxas
exponenciais. Mesmo a isolação entre elementros discretos ou digitais, que assegura as
capacidades da sua função pelo menos tanto em condições tropicais como árticas,
restringe tambem o tamanho de ligações possíveis à vizinhança local de cada elemento.
Passando pela interação global, tal como os chips digitais conhecem pela sua térmica, a
conectividade pode, «de acordo com leis da força»281
e da combinatória lógica
resultantes, escalar até a uma barreira superior, na qual residiria o número quadrado de
todos os elementos envolvidos.
Esta conectividade optimal distingue precisamente o outro lado físico, o de
sistemas não programáveis, sejam eles ondas ou seres. Na base da sua interação global,
tais sistemas, independentemente de consistirem em ondas ou seres, poderiam
demonstrar nas taxas de crescimento polinomiais em complexidade, que por isso
também apenas seriam calculáveis por máquinas, já que elas próprias não têm de pagar
o preço da programabilidade. Este tipo hipotético mas necessário de máquina
apresentar-se-ia, obviamente, em harware puro: um aparelho físico que, num ambiente
circundante, trabalharia com nada senão aparelhos físicos, e seria sujeito às mesmas
restrições de recursos que eles. Software, no sentido frequente de uma abstração sempre
exequível, não existiria mais. Os procedimentos de uma tal máquina, apesar de ainda
estarem abertos a notação algorítmica, teriam de trabalhar essencialmente num substrato
material, cuja conectividade permitiria as reconfigurações transitórias das suas células.
E apesar de este «substrato também poder descrito em termos algorítmicos, por via da
simulação», a sua «caracterização é de tamanha importância para a eficiência (… ) e é
tão imbrincada na escolha de hardware»282
, que a sua programação não teria mais que
ver com máquinas de Turing aproximadas.
Tais máquinas urgentemente necessárias e, portanto, não assim tão distantes,
sendo discutidas pela informática actual e das quais a indústria de chips já se
aproxima283
, devem fazer levar a cabo, nalguns olhos observadores de Dubrovnik, a
tentativa de reecontrar, vestido evolucionáriamente ou não, o rosto familiar do homem.
Pode ser que sim. Mas, simultaneamente, o nosso não menos familiar harware de silício
280 Conrad, 1988, p.293. 281 Conrad, 1988, p.290. 282 Conrad, 1988, p.304. 283 A isto aspira algo como a primeira Rede Neuronal integrada, criada a partir do Império discreto de
chips da Intel que, tanto quanto vejo, volta a criar, pela segunda vez na história das empresas, depois do já
bastante híbrido processador de sinais i2920, simples amplificadores de operações analógicos.
158
obedece hoje em dia a muitas das exigências de sistemas não programáveis altamente
conectados. Entre os seus milhões de células de transístor encontram-se um milhão por
quadrado de interações: a difusão de electrões e o efeito de túnel da mecânica quântica
ocorrem por todo o chip. As técnicas de produção contemporâneas tratam tais
interacções como barreiras sistémicas, efeitos físicos secundários, fontes distorcidas, e
por aí em diante. Todo o ruído, que é impossível prevenir, não é minimizável de todo: é
exactamente esse o preço que a indústria de computadores paga por máquinas
estruturalmente programáveis. A estratégia inversa, maximizar o ruído, encontrava-se
não apenas no caminho de IBM a Shannon; ela seria também a única via para todo o
corpo de números reais, o que anteriormente se chamava caos.
«Can’t you understand what I’m tryin’ to say» declara-se – sem remake – em Eve of
Destruction.
159
INTRODUÇÃO ÀS OBRAS
160
161
GRAMOFONE, FILME, TYPEWRITER284
Prefácio
Tape285
my head and mike my brain,
Stick that needle in my vein.
Pynchon
Os média determinam a nossa situação286
que (apesar disto ou por causa disto)
merece uma descrição.
Pontos de situação, grandes pelo meio-dia e pequenos pela tarde, eram
organizados, como é sabido, pelas forças armadas287
: de frente a cartografias militares288
e caixas de areia, tanto na guerra como na chamada paz. Até que o Dr. Gottfried Benn,
escritor e médico sargento, elevou o conhecimento da situação a tarefa também da
literatura e da ciência literária289
. A sua justificação (numa carta ao um amigo):«Como
sabe, eu assino: O Chefe do Alto Comando da Wehrmacht: em nome de Dr.Benn.»290
E disse-o com verdade: em 1941, através do conhecimento de documentos e
tecnologias, posições inimigas e planos de invasão, mesmo tendo a sua posição de
284 O título em alemão inclui a palavra inglesa typewriter e não Schreibmaschine. Quando Kittler se quer
referir à máquina de escrever, utiliza sempre o termo alemão ( ex: «Gramophon, Film, Schreibmaschine»
1986:4). O autor confere enorme importância ao facto de a escrita dactilográfica da máquina de escrever
ter sido uma tipologização absoluta dos caracteres. Assim, a máquina de escrever é, como o termo inglês
sublinha uma «escritora de tipos».
Referência da Tradução KITTLER, Friedrich, Gramophon, Film, Typewriter, Editora Brinkmann & Bose,
Berlin, 1986, pp.3-33. 285 No original de Pynchon não está escrito tape (colar) mas sim tap (tocar, bater). Este erro ou, como
Wintrop Young prefere chamar, «creatively enhanced misquotation» foi apontado por Winthrop-Young
na nota de rodapé nº5 do seu artigo «’Well, what socks is Pynchon wearing today? A Freiburg Scrapbook
in Memory of Friedrich Kittler.’» in Cultural Politics, vol.8, issue 3, Duke University Press, 2012, p.372. 286 No original: Lage. [N.T.] 287 No original: Generalstab. [N.T.] 288 No original: Stabskarten. [N.T.] 289 No original: Literaturwissenschaft. Refer-se portanto ao campo da Literatura como um saber, um
conjunto organizado de conhecimento. [N.T.] 290 Benn, 10. 4. 1941/1977-80: I 267.
162
serviço na rua Bendlerstraβe de Berlim, no Quartel General do Alto Comando da
Wehrmacht [OKW], ainda deveria ser possível conhecer a situação291
.
A situação de hoje é mais obscura. Primeiro, as actas relevantes
permanecem nos arquivos, que serão secretos precisamente durante o mesmo número de
anos em que exista uma diferença entre actas e factos, objectivos planeados e execução.
Em segundo lugar, as próprias actas secretas perdem poder quando o fluxo real de
informação292
, contornando a escrita e os escritos293
, circular apenas enquanto sequência
de números ilegível entre computadores interligados.
Contudo, as tecnologias, que não só subvertem os escritos mas sim absorvem-
nos, descomprometem-se da chamada humanidade, tornando a sua descrição possível.
Cada vez mais, fluxos de informação, outrora em livros e mais tarde em discos e filmes,
desaparecem nos buracos das gavetas, que enquanto inteligências artificiais, se
despedem de nós e partem em direcção a comandos superiores294
sem nome. Nesta
situação permanecem apenas reminescências, isto é, histórias295
. Prescrever como é que
isto aconteceu296
e o que já não existe em nenhum livro, tal cabe ainda especialmente
aos livros. Trabalhando a zona limítrofe, os média obsoletos também serão sensíveis297
o suficiente para registarem os símbolos e indícios de uma situação. Aí originam-se, de
igual semelhante ao das superfícies de corte298
de dois média ópticos, grelhas299
e
padrões de moiré300
: mitos, ficções científicas, oráculos…
Este livro é uma história destas histórias . Congrega, comenta e enquadra
posições e textos, nos quais a novidade dos média técnicos se registou nas velhas folhas
de papel. Muitos destes papéis são velhos ou já completamente esquecidos; mas desde
logo, no tempo fundador dos média técnicos, o seu terror funciona tão
291 Sobre a precisão do «Conhece a situação!» de Benn, cf. Schnur, 1980:911-928. Aí fica também claro,
que a consequência imediata da máxima poética «lida com os teus defeitos, avança a partir das tuas
continuidades, não dos teus slogans!» (Benn, 1949b/1959-61:II 232) simplesmente alude a problemas
com a distribuição de matérias primas durante a guerra. 292 No original: Daten. [N.T.] 293 No original: Schreiberschaft. [N.T.] 294 No original: zu namenlosen Oberkommandos unterwegs. [N.T.] 295 No original: Erzählungen. [N.T.] 296 Expressão idiomática: wie es dazu kam. [N.T.] 297 No original: empfindlich [N.T.]. Relacionado com a sensibilidade. Termo complexo que originou a
Empfindlichkeit heideggeriana, essa capacidade de ser sensível, essa disposição intuitiva. [N.T.] 298 No original: Schnittfläche. Apesar de poder ser traduzido por secção, salvaguardamos o seu carácter
etimológico Schnitt (corte), Fläche (superfície) para estabelecer concordância com o modo de produção
do cinema.[N.T.] 299 No original: Raster. [N.T.] 300 Um padrão moiré consiste na sobreposição de grelhas com dimensões, incidências de ângulo ou outro
posicionamento diferente. [N.T.]
163
omnipotentemente, que a Literatura o regista exactamente como o aparente pluralismo
de média de hodiernos, onde qualquer coisa serve301
, desde não perturbe começo da
dominação mundial dos circuitos de Silicon Valley.
Por outro lado, uma técnica de informação cujo monopólio chega agora ao fim,
regista exactamente esta notícia: Estética do Horror. O que chega ao papel dos escritores
surpreendidos sobre o gramofone, filme e máquina de escrever revela uma foto
fantasmática302
do nosso presente enquanto futuro303
. É com aparelhos aparentemente
inofensivos e precoces, que armazenam os sons, rostos e escritos enquanto tais, podendo
portanto também separá-los, que começa uma tecnicização da informação que já
possibilitava, na reminescência das histórias, o fluxo autorecursivo de números
hodierno.
É óbvio304
que tais histórias não podem estabelecer uma história da técnica305
.
Mesmo que tais histórias fossem e permanecessem inumeráveis, falham o Real do qual
todas as inovações despertam. Inversamente, séries de números, esquissos ou circutos
em diagrama306
nunca se transformam em escrito: apenas num aparelho307
. Nada mais e
nada menos implicava já a bela frase de Heidegger, de que a própria Técnica oculta toda
a experiência da sua essência. Acima de tudo, a confusão, na prática livresca308
de
Heidegger, entre escritos e experiência, não tinha de o ser: em vez de questões
filosóficas essenciais, é suficiente simples conhecimento.
As informações técnicas e históricas, nas quais se baseiam os textos de escritores
sobre média, são também passíveis de serem colocadas. Apenas aí chega o novo e o
antigo, os livros e as suas substituições técnicas, enquanto informações que são.
Compreender os média permanece – apesar de Understanding Media, título de
McLuhan – uma impossibilidade, precisamente porque, inversamente, cada uma das
técnicas informacionais prevalecentes controla toda a compreensão e causa todas as
suas ilusões. Mas parece factível ler nos próprios esquissos ou circuitos de diagramas,
que tenham controlo quer sobre a imprensa escrita quer sobre computadores, figuras
301 No original: weiterlaufen darf. Semelhante ao inglês anything goes. [N.T.] 302 No original: Geisterphoto. [N.T.] 303 Cf. Schwendter, 1982. 304 No original: liegt auf der Hand. Expressão idiomática que quer dizer literalmente «jaz na mão». [N.T.] 305 Existe em alemão Technik e Technologie. Fizemos traduzir por «técnica» e «tecnologia». A versão
inglesa utiliza obviamente tecnology, já que o primeiro termo não existe neste uso, o que é muito
indicativo da posição do termo na grelha conceputal anglosaxónica. [N.T.] 306 No original: Schaltplänen. [N.T.] 307 Heidegger, 1950:272. 308 No original: schulbuchmäβige Verwechslung. [N.T.]
164
históricas desse desconhecido de seu nome «corpo». Das pessoas existe apenas aquilo
que os média armazenam e transmitem. Com isto não conta a mensagem ou conteúdo,
com os quais as técnicas de informação estofam309
literalmente as chamadas almas para
a duração de uma época técnica, mas sim - estritamente segundo McLuhan - apenas os
seus circuitos, esse esquematismo mesmo de perceptibilidade.
Quem for bem sucedido em ouvir, no som do sintetizador310
dos Compact Discs,
o próprio circuito de diagrama, ou conseguir ver, na tempestade de laser das discotecas,
o próprio diagrama de circuitos, encontrará uma felicidade. Uma felicidade para além
do gelo, teria dito Nietzsche. No piscar de olhos da subjugação impiedosa de leis, cujos
casos somos, extingue-se o fantasma do homem enquanto inventor de média. E a
situação tornar-se-á reconhecível.
Já em 1945, no protocolo semi-queimado das máquinas de escrever do último
ponto de situação do Quartel General do Alto Comando da Wehrmacht, a guerra era já
chamada o pai de todas as coisas: ela fez - para interpretar livremente Heraclito - a
maioria das invenções técnicas311
. E mais tarde, a partir de 1973, quando Gravity’s
Rainbow de Thomas Pynchon foi publicado, ficou claro que a verdadeira guerra não se
passa entre pessoas ou pátrias, mas sim guerra entre diferentes média, técnicas de
informação, fluxos de informação312
. Grelhas e padrões de Moiré que nos esqueceram…
Por isso ou apesar disso: sem as pesquisas e contributos de Roland Baumann,
este livro não teria sido escrito. E não teria sido existente sem Hedi Beck, Norbert Bolz,
Rüdiger Campo, Charles Grivel, Anton (Tony) Kaes, Wolf Kittler, Thorsten Lorenz,
Jann Matlock, Michael Müller, Clemens Pornschlegel, Friedhem Rong, Wolfgang
Scherer, Manfred Schneider, Bernhard Siegert, Georg Christoph (Stoffel) Tholen, Isolde
Tröndel-Azri, Antje Weiner, David E. Wellbery, Raumar Zons e
Agia Galini, Setembro 1985
Introdução
309 No original: ausstaffieren. [N.T.] 310 No original: Synthesizersound. [N.T.] 311 Hitler, Janeiro 1945, in Schramm, 1982:IV 1652. Cf. também Hitler 30.5.1942 in Picker, 1976:491,
onde o fragmento de Heraclito aparece enquanto intemporalmente verdadeiro e é estabelecido enquanto
«premissa profunda de um grande filósofo militar». Mas como Jünger, 1926ª:125 denota, as Guerras
Mundiais estabelecem, em vez de lutarem com «meios imutáveis», dependem da inovação enquanto tal. 312 Cf. Pynchon, 1973, 606.
165
Ligação por cabo313
. As pessoas estarão ligadas a um canal de informações, que
é bom para qualquer média – pela primeira vez na história ou no seu fim. Quando filmes
e músicas, chamadas e textos chegam a casa por via óptica, os média separados,
televisão, rádio, telefone e correio postal coincidem, estandartizados segundo
frequências de transmissão e formato de bit. Acima de tudo, o canal óptico electrónico
será imune contra perturbações que poderiam alietoriezar os belos padrões de bit por
detrás da imagem e do som. Imune, isto é, contra a Bomba. É que, como é sabido, as
explosõres nucleares espalham na inductibilidade de cabos comuns de cobre um pulsar
electromagnético (EMP) que, de modo fatal, infectaria de igual modo os computadores
interligados.
O Pentágono planeia com um olhar amplo: apenas a substituição de cabos de
metal por cabos de fibra torna possível os imensos índices e volumes de Bits, que a
guerra electrónica requer, dispende e festeja. Então, estarão finalmente ligados a
computadores todos os sistemas iniciais de alarme, instalações de radar, bases de
mísseis e corpos militares da contracosta, a Europa314
, a salvo de EMP, sendo que,
também em caso de emergência, passam a ser operáveis. Num tempo intermédio ainda
há espaço para o prazer: as pessoas podem converter qualquer média de entretenimento.
Os cabos de fibra óptica transmitem assim cada informação imaginável exceptuando a
que conta – a Bomba.
Antes do fim, algo chega ao fim. Na digitalização geral de informações e canais
desaparecem as diferenças entre média individuais. Apenas ainda enquanto efeito de
superfície, que chega aos consumidores com o belo nome de interface, existe som e voz,
voz e texto. Os sentidos serão deceptivos315
. O seu glamour, produzido pelos média,
sobreviverá durante um tempo intermédio enquanto subproduto de programas
estratégicos. No próprio computador, contrariamente, tudo é número: quantidade sem
imagem, som ou palavra. E quando a ligação por cabo transformar os outrora separados
313 No original: Verkabelung. [N.T.] 314 Com o título de «Nostris ex ossibus. Pensamentos de um optimista», Karl Haushofer, «senão i
principal representante do termo técnico Geopolítica», pelo menos «o seu principal introdutor na sua
forma de aparição alemã» (Haushofer, 2.11. 1945/1979: II 639): «Depois da guerra, os americanos
apropriar-se-ão de uma faixa relativamente larga da costa oeste e sul da Europa e, ao mesmo tempo,
anexar de algum modo a Inglaterra, cumprindo o ideal de Cecil Rhodes da costa oposta. Ao fazerem-no,
procederão de acordo com a velha ambição de aglomerar todo o poder marítimo para ganhar controlo da
costa oposta e governar o oceano entre ambas. A costa oposta é no mínimo toda a costa oeste do
Antlântico e, para atingir o domínio de todos os «sete mares», possivelmente também toda a costa oese do
pacídico. Portanto, a América quer com isto conectar o crescente com o ‘eixo’». (Haushofer, 19.10.
1944/1979:II 635) 315 No original: Blendwerk. [N.T.}
166
fluxos de informação numa série de números estandartizados, cada média pode passar a
ser qualquer outro. Com os números nada é impossível. Modulation, transformation,
synchronisation; desaceleração, armazenamento, transposição; scrambling, scanning,
mapping – uma combinação total de média em base digital que eliminará o próprio
conceito de médium. Em vez de ligar as pessoas às técnicas, o conhecimento absoluto316
ocorre como um arco infinito.
Mas ainda existem média, ainda existe entretenimento317
.
A posição de hoje inclui sistemas combinatórios parciais de média, que ainda
são compreensíveis através de McLuhan. O conteúdo de um média forma, como está
escrito, sempre outros média: filme e rádio, na combinação de média «televisão»;
cassetes e gravações, na combinação de média «rádio»; filmes mudos e magnetofone,
na combinação de média «cinema»; texto, telefone e telegrafia, na combinação de média
do semi-monopólio do correio. Desde o princípio do século, quando o tubo eléctrico
controlável foi desenvolvido por Von Lieben na Alemanha e de Forest na Califórnia, é
em princípio possível amplificar e transmitir sinais. Os maiores sistemas combinatórios
de média, que existem desde os anos trinta, podem assim apreender os três média de
armazenamento, escrita, filme e fonografia, cujos sinais emparelham e enviam de
acordo com a intenção.
Mas entre os próprios sistemas combinatórios existem canais de informação não
compatíveis e diferentes formatos de informação. O sistema eléctrico ainda não é
electrónica. No espectro do fluxo de informação geral a televisão e rádio, cinema e
correio constituem as suas próprias janelas delimitadas, que ocorrem sobre os sentidos
das pessoas. Radiações de infravermelhos ou ecos de radar de mísseis que sobrevoam
ocorrem – em contraste com os cabos ópticos do futuro – ainda através de outros canais.
Os nossos sistemas combinatórios de média distribuem apenas palavras, barulhos e
imagens do modo em que as pessoas os podem enviar e receber. Mas não calculam estas
informações. Não libertam um output enformado, através de controlo computacional de
quaisquer algoritmos ou quaisquer efeitos de interface, ao ponto de as pessoas turvarem
os sentidos. Cálculo é somente a qualidade de transmissão de média de armazenamento,
316 No original: absolute Wissen. Conceito hegeliano que Kittler faz corresponder nesta fase à
digitalização total do real. [N.T.] 317 No original: Unterhaltung. Ressalve-se que esta expressão significa tanto entretenimento como
conversa de ocasião, assemelhando-se ao chat inglês. Existindo ainda média, existe assim tanto
entretenimento quanto conversa, já que, quando as mediações forem uma, não existirá do que falar. [N.T.]
167
que se firmam como conteúdos nos sistemas combinatórios. Quão mau o som na
televisão ou quão forte é o brilho da imagem no cinema ou quão entrecortada uma voz
amada do telefone deve ser, tal é regrado, de cada vez, por um compromisso entre
engenheiros e compradores. As suas variáveis dependentes são a nossas
sensibilidades318
.
Um make up a partir da voz e rosto que mantém a calma, mesmo quando contra
um opositor de debate televisivo de seu nome Richard M. Nixon, sendo telegénico e
ganhando, como no caso de Kennedy, as eleições presidenciais. Isto por oposição às
vozes, que num plano de pormenor óptico se tornariam imediatamente traiçoeiras, sendo
radiogénicas319
e dominado o VE301320
, o receptor popular da Segunda Guerra
Mundial. É que, como o discípulo de Heidegger reconheceu sob o pensamento
radiofónico inicial, «a morte é um tema radiofónico primário»321
.
Estas sensibilidades tiveram de ser antes primeiramente produzidas. Domínio e
emparelhamento dos média técnicos requer uma coincidência no sentido de Lacan: que
algo cesse de não se escrever. Muito antes da electrificação dos média e muito mais
antes do seu fim electrónico, existiam modestos aparelhos criados a partir de mecânica
simples. Não podiam amplificar, não podiam transferir e, mesmo assim, tornaram
informações sensíveis, pela primeira vez, armazenáveis: o filme mudo armazenava
história e o fonógrafo de Edison armazenava os sons (contrastando com o gramofone
tardio de Beliner que era capaz de gravação e reprodução).
A 6 de Dezembro de 1877 Thomas Alva Edison apresentava, enquanto senhor
do primeiro laboratório de investigação da história da técnica, o protótipo do fonógrafo.
A 20 de Fevereiro de 1892 seguia-se, no mesmo Menlo Park em Nova Iorque, o
chamado cinetoscópio e, três anos mais tarde, tanto os irmãos Lumière em França como
os irmãos Skaladanowsky na Alemanha tiveram apenas de providenciar uma
modalidade de projecção para, a partir do desenvolvimento de Edison, fazer o Cinema.
318 No original: Sinnlichkeiten. [N.T.] 319 No original: funkisch. [N.T.] 320 No original: Volksempfänger. Literalmente, «receptor popular», o modelo VE301 foi desenvolvido
por Otto Griessing a pedido de Joseph Goebbels para tornar mais acessível os receptores de rádio – um
esforço de massificação à semelhança do que aconteceu com os veículos Volkswagen, que significa, como
é do conhecimento de todos, literalmente ,«carro do povo». [N.T.] 321 Cf. Hoffmann, 1933 in Hay, 1975a:374.
168
Desde estes períodos de hiato epocal [Epochenschwellen322
] existem
armazenadores que podem reter e reenviar informaçãoes ópticas no seu próprio fluxo
temporal. Os olhos e os ouvidos tornaram-se autónomos. E isso mudou mais a efectiva
posição das coisas que a fotografia e a litografia, que meramente conduziram, no
primeiro terço do século, a obra de arte à época da possibilidade da sua
reprodutibilidade técnica - de acordo com a tese de Benjamin. Os média «definem
aquilo que é efectivamente323
»324
; estão sempre já fora da estética.
O que o fonógrafo e o cinematógrafo, esses que obtiveram os seus nomes, não
por acaso, a partir da escrita, tornaram armazenável, foi o tempo: enquanto mistura de
frequências de sons no domínio acústico, enquanto movimento de uma sequência de
imagens únicas no domínio óptico. Toda a arte tem no tempo a sua fronteira. Ela tem de
suspender o fluxo de informação do quotidiano, antes de o poder transformar em
imagem ou signos. O que em arte se chama estilo é apenas o mecanismo325
de
captação326
e selecção. Esse mecanismo é também subordinador para essas artes que são
conduzidas através da escrita de um fluxo de informação em série, ou seja, de
temporalidade móvel. A literatura, para armazenar as sequências sonoras da fala, tem de
colocar em marcha um sistema de vinte e seis letras, sequências de sons previamente
suspensas. E este sistema contém, não por acaso, enquanto subsistema, também as sete
notas cuja diatónica – de dó a si327
- jaz na fundação da música ocidental. E, para conter
322 Conceito utilizado por Hans Blumenberg para periodizar períodos «entre épocas». Cf.
BLUMENBERG, Hans, Aspekte der Epochenschwelle, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1976.
[N.T.] 323 No original: was wirklich ist. Pelo facto de wirklich querer dizer «efectivamente» ou «realmente»,
sendo que a realidade [Wirklichkeit] não é senão o efectivado, traduzimos, mesmo quando representa uma
preposição de modo, por efectividade. [N.T.] 324 Bolz, 1986:70f. 325 No original: Schaltwerk. [N.T.] 326 No original: Abtastung. Aproxima-se ao inglês scanning que neste caso não pode ser traduzido por
digitalização, já que não é um processo de captação através de tecnologias algorítmicas, mas sim um
processo de captação analógico, daí traduzido por simples captação em vez de digitalização[N.T.] 327 Kittler utiliza os nomes das notas germânicos e anglo-saxónicos, que se organizam por letras – de A a
G, reconhendo como mais alta a nota H (Sol##, discutivelmente igual a Lá) . Utilizado a denominação
românica, íncluímos as sete notas da escala musical (já que a oitava é precisamente a oitava da primeira)
[N.T.]
169
um caos acústico, como o da música exótica atacando os ouvidos europeus,
Figura 4
liga-se como intermédio – segundo uma proposta do musicólogo von Hornbostal – um
fonógrafo que regista o caos em tempo real e pode ser repetido a par de uma lupa
temporal. Aí, quando os ritmos se desgastam e, com «temporalidades328
únicas, até tons
únicos soam sós», o alfabetismo ocidental pôde, com o seus sistema de notas, proceder
à «notação precisa»329
.
Textos e partituras – a Europa não tinha outros armazenadores de tempo. Ambos
se baseiam, conjuntamente, numa escrita cujo tempo é simbólico (no conceito de
Lacan). Com planos e reversões, este tempo memoriza-se a si próprio – como uma
cadeia de cadeias. Por oposição, o que ocorre no nível físico ou (de novo com Lacan) no
nível do Real, cega e imprevisivelmente, não poderia virtualmente ser codificado.
328 No original: Takte. [N.T.] 329 Abraham/Hornbostel, 1904:229.
170
Todos os fluxos de informações teriam de passar, caso fossem efectivamente fluxos de
informações, pelo gargalo dos significantes330
. Monopólio alfabético, gramatologia331
.
Figura 5: A mais antiga imagem da Imprensa (1499) – enquanto dança dos mortos.
Quando um filme chamado História se rebobina, torna-se um arco infinito em
loop332
. O que acabará em seguida, no monopólio dos bits e dos cabos de fibra óptica,
começou com o monopólio da escrita. A História foi o campo homogénio que apenas as
culturas da escrita incluíram como objecto de estudo. De outro modo os
acontecimentos333
e a sua narração (o duplo sentido da palavra história334
) não seriam de
todo passíveis de emparelhamento. As ordens e os juízos335
, os anúncios e escritos
330 No original: den Engpaß des Significanten passieren. Engpaß significa tanto gargalo de uma garrafa
quanto, literlamente, passagem estreita. Kittler joga aqui com a ambiguidade da palavra Flüsse, que em
alemão tanto significa «fluxo» como «corrente de água» ou «rio». [N.T.] 331 Para compreender o uso de gramatologia, um conceito que Kittler apreende do jovem Derrida, cf.
DERRIDA, Jacques, De la grammatologie, Les Éditions de Minuit, Paris, 1967. 332 No original: Endlosschleife. [N.T.] 333 No original: Ereignisse. Apesar de também significar evento, neste caso o processo da história é o que
está em causa e portanto utilizámos palavra mais comum, «acontecimentos». [N.T.] 334 Entenda-se como essas duas dimensões: a história enquanto conjunto de acontecimentos ou a narração
do vivido e a, muitas vezes desnecessariamente distinta, estória. [N.T.] 335 No original: Urteile. Para uma descrição poética da riqueza da palavra Urteil (literalmente separação
[teilen] primordial [ur]), cf. HÖDERLIN, Friedrich (1795), Theoretische Schriften - Urteil und Sein,
Stuttgart 1962.
171
prévios (militares e jurídicos, religiosos e médicos), a partir dos quais emergiram as
montanhas de cadáveres, ocorreram num único e mesmo canal, monopólio sobre o qual
recaiu também, finalmente, a descrição destas montanhas de cadáveres. Por isso, tudo o
que aconteceu chegou às bibliotecas.
Foucault, o último historiador ou o primeiro arqueólogo, apenas precisou de
consultar. A suspeita de que todo o poder emana dos arquivos e a eles retorna foi
brilhantemente confirmada, pelo menos no domínio do jurídico, médico e teológico.
Tautologia da História ou da sua posição de crânio336
. É que nas bibliotecas, nas quais a
arqueologia seria tão rica, os papéis estavam muito distinguidos, colectados e
categorizados segundo endereços e palavras-chave, segundo técnica de escrita e graus
de secretismo – o arquivo de Foucault enquanto a entropia de um posto de correios337
.
Também a escrita, antes de recair nas bibliotecas, é um médium de informação cuja
tecnologia o Arqueólogo simplesmente se esqueceu. Por isso a sua análise histórica
detém-se imediatamente naquele ponto temporal no qual outros média e outros correios
minaram completamente as livrarias. Para o arquivo sonoro ou as pilhas de bobines de
cinema, a análise discursiva não é competente.
De qualquer modo, enquanto se movia, a História era de facto os «infinitos
rumores338
das palavras»339
. De modo mais simples, mas não menos técnico que os
cabos de fibra óptica vindouros, a escrita funciona enquanto médium geral – o conceito
de médium não existia340
. O que ocorresse recaía sobre o filtro das letras ou ideogramas.
A «Literatura», escrevia Goethe, «é fragmento do fragmento; a parte menor
daquilo que ocorreu e foi falado foi escrito, do que foi escrito permaneceu um resto, a
menor parte»341
.
336 No original: Schädelstätte. [N.T.] 337 Cf. Campe, 1986:70f. 338 No original: Geblöke. [N.T.] 339 Foucault, 1975:101. 340 Mais uma vez, não existindo média concorrentes, o próprio conceito de médium não era analisável,
porque estava apenas latente. [N.T.] 341 Goethe, 1829/1904: XXXVIII 270.
172
De um modo correspondente, debate-se hoje uma oral history em oposição à do
monopólio da escrita dos historiadores; um teórico dos média como Walter J. Ong
que,
Figura 6: sistema de cabos telefónicos, Nova Iorque, 1888.
enquanto padre jesuíta, deve ter estado preocupado com o sagrado espírito dos mistérios
do pentecostes, festeja uma oralidade primária das culturas étnicas em oposição à nossa
oralidade secundária da acústica dos média. Tais pesquisas não eram pensáveis quando
o conceito oposto a «História» (de novo com Goethe) se chamava simplesmente
173
«Lenda»342
. A Pré-história desaparece no seu nome mítico; a definição de Literatura de
Goethe não precisava, por uma vez que fosse, de mencionar os fluxos de informações
ópticos ou acústicos. E também as lendas, esses segmentos oralizados do ocorrido,
sobreviviam, equanto registos, através de condições pré-técnicas, se bem que literárias.
Desde que é possível gravar em fita acústica o poema épico de cada último bardo
homérico, que até recentemente divagavam pela Sérvia e Croácia, as mnemotécnicas
orais ou culturas tornaram-se reconstituíveis de um modo completamente diferente343
.
Mesmo a Eos de dedos róseos de Homero converteu-se assim numa deusa dentro de um
bocado de dióxido de cromo, armazenada na memória do rapsodo, e é combinável com
outras peças para formar épicos completos. Oralidade primária ou oral history são
sombras tecnológicas de aparelhos, que, no fim do monopólio da escrita, documentam.
Contudo, a escrita armazenava escrita, nada mais e nada menos. Os livros
sagrados atestam-no. O segundo livro de Moisés contém no capítulo 20, como cópia de
uma cópia, o que Javé originalmente escreveu com os seus próprios dedos e duas tábuas
de pedra: a Lei. Só que dos trovões e relâmpagos, das nuvens densas e de uma trompa
muito forte, que segundo a primeira escritura da Bíblia deve ter acompanhado Moisés
até ao sagrado Monte Sinai, a mesma Bíblia armazena necessariamente meras
palavras344
.
Ainda menos é escrito sobre os pesadelos e aflições de um nómada, de seu nome
Maomé, depois da sua fuga para a sagrada montanha Hira. O Corão não começa senão
quando um único Deus toma o lugar dos vários demónios. Do sétimo céu desce o
arcanjo Gabriel com uma escritura em rolo e com a ordem de decifração do rolo. «Lê»,
diz a Maomé, «lê em nome do teu Senhor, que tudo criou e que criou o homem a partir
de sangue coagulado. Lê, pois o teu Senhor, o glorioso, ensina o uso da pena e, aos
homens, aquilo que não sabiam»345
.
Contudo, Maomé responde que ele, o nómada, não sabe ler - até mesmo a
mensagem divina da origem da escrita e da leitura. Primeiro o arcanjo tem de dar mais
uma vez a sua ordem para que um analfabeto se torne o fundador de uma religião do
Livro. Pois cedo, ou demasiado cedo, este rolo ilegível faz sentido e dá a ler todo o
texto aos olhos de Maomé, miraculosamente alfabetizados por Gabriel que, por duas
342 Goethe, 1810/1904: XXXX 148. 343 Cf. ONG, 1982:27 e (mais certeiramente) 3. 344 Êxodus 24:12-34:28. 345 Corão, sura 96, vv. I-6.
174
vezes, o exprimiu enquanto ordem oral. É com o próprio nonagésimo sexto Sura que
começam, segundo a tradição, as iluminações de Maomé – começadas e, então,
«aprendidas por decoração dos crentes e escritas em superfícies primitivas tais como
folhas de palmeira, pedras, madeira, osso e bocados de pele, para serem, acima de tudo,
recitadas, sempre de novo, por Maomé e crentes escolhidos, especialmente no mês do
Ramadão»346
.
A escrita armazena assim apenas o facto da sua autorização. Ela festeja o
monopólio de armazenamento de Deus, que a descobriu. E, porque o domínio deste
Deus consiste em símbolos, que apenas para os não leitores não significam nada, todos
os livros são livros dos mortos, à semelhança dos livros egípcios, com os quais a
Literatura começou347
. O reino dos mortos, para além de todos os sentidos e para o qual
somos atraídos, coincide com o próprio livro. Quando Zenão, o estóico, questionou o
oráculo délfico sobre como deveria viver no seu melhor, foi-lhe concedida a resposta
«’Quando copular com os mortos’. Ele compreendeu-a como leitura dos antigos»348
.
O modo como a instrução de um deus, que ensinou o uso da pena, após Moisés e
Maomé, alcançando cada vez mais pessoas simples - esta longa história ninguém pode
escrever, porque ela própria foi a História. De modo análogo, as capacidades de
armazenamento nos computadores, que coincidirão proximamente com a guerra
electrónica, gigabyte sobre gigabyte, excedem assim as capacidades de processamento
dos escritores da História.
Basta dizer que um dia – na Alemanha talvez já durante a época de Goethe – o
médium homogéneo da escrita também se tornaria sócio-estatisticamente homogéneo. A
educação geral obrigatória inundou as pessoas de papel. Elas aprendiam uma escrita
que, enquanto «uso impróprio da língua» (segundo Goethe), não tinha mais de lutar
contra convulsões musculares e letras individuais mas que procedia ainda através de
inebriação e trevas. Aprendiam um «ler silencioso para si» que, enquanto «triste
substituto da fala»349
, podia consumir símbolos escritos sem esforço – evitando assim o
aparelho vocal. O que enviavam e recebiam era também escrita. E, como apenas existe
o que pode ser enviado, entravam os próprios corpos sob o regime do simbólico. Hoje
impensável, outrora efectivo: nenhum filme armazenava os movimentos que eram feitos
346 Winter, 1959, 6. 347 Cf. Assmann, 1983, 68. 348 Nietzsche, 1874/1922-29: V 213. 349 Goethe, 1811-14/1904: XXII 279.
175
ou vistos, nenhum fonógrafo armazenava os sons, que eram produzidos ou ouvidos. É
que o que exisita falhou perante o tempo. Silhuetas350
ou desenhos a pastel estabelecem
expressões faciais351
e partituras falham no armazenamento dos sons. Mas quando uma
mão prensa352
uma pena, acontece353
o milagre. Aí, cada corpo, que não cessa de não se
escrever, deixa por trás de si vestígios estranhamente inevitáveis.
Envergonho-me de o contar. Envergonho-me da minha caligrafia. Ela mostram-me de espírito
completamente descoberto. Na escrita estou mais nu que sem roupas. Nenhuma perna, nenhuma
respiração, nenhuma roupa, nenhum som. Nem voz nem reflexo. Tudo desmantelado. Em vez disso toda a
corpulência de um homem, encarquilhada354 e deformada no seu rabisco. As suas linhas são o seu resto e
a sua propagação. O desnivelamento entre traços de escrita e papel vazio, tão mínimo que mal táctil pelas
pontas dos dedos de um cego, constitui a última proporção que envolve completamente um gajo.355
A vergonha que assola o herói sempre que vê a sua própria caligrafia, na última
história de amor de Botho Strauß, A Dedicatória356
, existe apenas enquanto
anacronismo. O facto de que o desnivelamento mínimo entre traços de escrita e papel
vazio não pode armazenar nem a voz nem o reflexo de um corpo pressupõe, nesta
exclusão, a invenção do cinema e da fotografia. Se ainda estivessem por aparecer, a
escrita poderia afirmar-se como asseguradora de vestígios, completamente desprovida
de concorrência. Escreve-se e escreve-se, pleno de energia e, idealmente, sem cessar.
No fluxo contínuo de tinta ou signos de escrita, o indivíduo alfabetizado tinha a sua
«aparência e exterioridade»357
, como Hegel tão certeiramente reconheceu.
Tal como a escrita, a leitura. Quando o indivíduo alfabetizado teve também de
cair da sua exterioridade privada da caligrafia para a exterioridade anónima impressa, de
modo a assegurar, para além da distância e da morte, «o seu resto e a sua propagação» -
os indivíduos alfabetizados, «Leitores» portanto, podem reverter novalmente este gesto
de exteriorização. «Quando se lê bem», escrevia Novalis, «desdobra-se na nossa
350 No original: scherenschnitte. Literalmente, cortes de molde. [N.T.] 351 No original: Minenspiel. Literalmente, jogos de expressões (faciais). [N.T.] 352 No original: griff. Lembremos que o verbo greifen –apreender, prensar, agarrar tem afinidades claras
com a palavra «conceito», Begriff, que seria então aquilo que seria prensável, apreensível, captável. Para
respeitar esta afinidade que é, a nosso ver, transversal à cultura literária (incluíndo a Filosofia),
traduzimos griff por «prensa». [N.T.] 353 No original: geschah. O verbo geschehen, traduzível por acontecer, tem por base o verbo scheinen, que
significa brilhar, resplandecer. Sem querer traçar o paralelo com o grego antigo e sem retirar as devidas
consequências, não podíamos deixar de o assinalar. [N.T.] 354 No original: verschrumpelt. [N.T.] 355 Strauss, 1977:21f. 356 Edição portuguesa: STRAUß, Botho, A Dedicatória, Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 1987. [N.T.] 357 Hegel, 1807/1968 :IX 175.
176
interioridade um mundo efectivo e visível de acordo com as palavras»358
. E o seu amigo
Schlegel acrescentou que «crê-se ouvir aquilo que apenas se lê»359
. Precisamente estes
fluxos de informações acústicos e ópticos, que não cessam de não se escrever sob o
monopólio da escrita, são suplementados por um alfabetismo perfeito. A escrita tornou-
se realizável sem esforço e a leitura sem som, confundido a escrita com a natureza. Nos
caracteres, através dos quais os leitores formados podiam tresler, as pessoas tinham
faces e sons.
Por volta de 1800 o livro tornou-se simultaneamente filme e disco sonoro – não
na realidade médio-técnica mas sim no imaginário das almas dos leitores. Contribuiu
para isso a escolaridade obrigatória e as técnicas de alfabetização. Como substituto para
fluxos de informações não armazenáveis, o livro alcançou o poder e a glória360
.
Em 1774, um editor chamado Goethe tornou impressa um conjunto de
correspondência caligrafada ou Os Sofrimentos do Jovem Werther361
. Também «a
mistura desconhecida» (como é chamada na dedicatória de Fausto362
) deve «soar a um
sofrimento do mesmo modo que algumas velhas lendas semi-desaparecidas» que
evocavam «amor e amizade»363
. A nova receita de sucesso do trabalho poético364
:
converter vozes ou caligrafias imperceptivelmente em gutenbergiana. A última carta de
Werther, antes do suicídio, ainda selada mas não enviada, dá à sua amada a promessa do
próprio trabalho poético: no seu tempo de vida teria de pertencer a um marido não
amado, Albert, mas seria posteriormente reunida com o seu amor perante «o olhar do
infinito num abraço eterno»365
. Com efeito: a destinatária das cartas de amor
caligrafadas, que seriam depois impressas por um mero editor, não apelariam a uma
imortalidade senão a do próprio romance. Apenas e só ele constitui um «belo mundo»366
no qual, em 1809, os amantes das Afinidades Electivas, de acordo com a esperança do
romancista, «ressuscitarão juntos uma vez mais»367
. Eduard e Ottilie tiveram
358 Hardenberg, 1798-99/1960-75: III 377. 359 Schlegel, 1799/1958 ff.: IX 175. 360 Cf. Kittler, 1985ª: 115-130. 361 Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. Erlon José Paschoal. Posfácio de Willi Bolle. São Paulo:
Clube do Livro, 1988. [N.T.] 362 Fausto,. Tradução de Agostinho D'Ornellas. Editora Martin Claret, 2004. [N.T.] 363 Goethe , 1797/1904: XIII 3 f. Sobre as razões da existência de uma literatura completamente
alfabetizada na oralidade simulada, cf. Schlaffer 1986, 7-20. 364 No original: Dichtung. Pode referir-se a poesia ou prosa, pelo que optámos por traduzir como
«trabalho poético» [N.T.] 365 Goethe, 1774/1904: XVI 137. 366 Benjamin, 1924-25/1972.85: I 1, 200. 367 Goethe, 1809/1904: XXI 302.
177
surpreendentemente já em vida uma e a mesma caligrafia. A sua morte só os podia levar
ao paraíso, que sob o monopólio da escrita porta o nome de trabalho poético.
E esse paraíso era possivelmente mais efectivo do que os nossos sentidos,
controlados pelos média, nos permitem sonhar. Lendo correctamente, os leitores
suicidários de Werther percepcionaram, a partir das palavras o seu herói, um mundo
visível e efectivo. E as apaixonadas leitoras femininas desejavam, como Bettina
Brentano, morrer com a heroína das suas Afinidades Electivas, para depois, através do
«génio» de Goethe, serem mais uma vez «nascidas em bela juventude»368
. É possível
que os alfabetizados perfeitos de 1800 fossem uma resposta viva à pergunta de cineasta,
com a qual Chris Marker conclui o seu ensaio cinematográfico Sans Soleil (1983):
Perdido no fim do mundo na minha ilha, Sal, na companhia dos meus cães que vagueiam,
lembro-me daquele Janeiro em Tóquio, ou melhor, lembro-me das imagens que filmei em Janeiro em
Tóquio. Elas estabeleceram-se no lugar das minhas memórias, elas são as minhas memórias. Pergunto-me
como é que se lembram as pessoas que não filmam, que não fotografam, que não registam sons, como é
que a humanidade procedia para se lembrar.369
É como com a língua, que apenas faculta a oportunidade de ou reter as palavras
perdendo o sentido ou, inversamente, reter o sentido perdendo as palavras370
. Desde que
as informações ópticas ou acústicas podem vaguear em média de armazenamento, a
memória, emagrecida, desaparece das pessoas. A sua «libertação»371
é o seu fim.
Enquanto o livro tinha de suscitar todos os fluxos de informação em série, as suas
palavras invocavam sentido e memória. Toda a paixão da leitura consistia no elucidar de
um sentido entre caracteres e linhas: o mundo visível ou audível da poética romântica. E
toda a paixão da escrita consistia (segundo E.T.A. Hoffmann) no desejo do poeta de
«pronunciar com todas as suas cores resplandecentes e sombras e luzes» a «criação
interior» destas alucinações, de modo a «afectar como um choque eléctrico» os «bons
leitores»372
.
A própria electicidade colocou um fim a isto. Quando as memórias e sonhos,
mortes e espectros se tornam tecnicamente reprodutíveis, torna-se supérflua a tarefa de
368 Brentano, 1835/1959-63: II 222. 369 Marker, 1983, 23f. 370 Cf. Deleuze, 1965:32: « L’alternative est entre deux puretés, la fausse et la vraie, celle de la
responsabilité et celle de l’innocence : celle de la mémoire ou celle de l’oubli. […] Ou bien l’on se
souvient des mots, mais leur sens reste obscur ; ou bien le sens apparaît, quand disparaît la mémoire des
mots.» 371 Leroi-Gourhan, ap ud Derrida, 1967b/1974:154. 372 Hoffmann, 1816/1960: 343.
178
alucinação tanto no escritor como no leitor. O nosso reino dos mortos deixou os livros,
nos quais por tanto tempo se abrigaram. Não mais «somente pela escrita os mortos
permanecem na lembrança dos vivos», como Diodoro Sículo outrora escreveu.
O escritor Balzac já invocava um novo medo perante a fotografia, como
reconheceu a Nadar, seu pioneiro. Se, em primeiro lugar, o corpo humano, segundo
Balzac, é constituído por inúmeras camadas sobrepostas e infinitamente finas de
«espectros» e se, em segundo lugar, o espírito humano não consegue criar a partir do
nada, então o daguerreótipo tem de ser um truque sinistro: ele fixa, isto é, rouba uma
camada após a outra, até finalmente nada restar dos espectros e, com isso, do corpo
reflectido373
. Os álbuns de fotografia alcançam um reino dos mortos de um modo
infinitamente mais preciso que o que era existente na empreitada literária concorrente de
Balzac, a Comédia Humana. Os média, diferentemente das artes, não estão pois
limitados a trabalhar com a grelha do simbólico. Eles reconstroem corpos, isto é, não
apenas um sistema de palavras ou cores ou intervalos de tons. Os média (e apenas eles)
cumprem mais as «altas exigências» que nós, de acordo com Rudolf Arnheim,
«estabelecemos para a reprodução» desde a invenção da fotografia: «Não só têm de ser
semelhantes ao objecto, mas sim conferir a garantia desta semelhança de modo a que
sejam um resultado do próprio objecto, isto é, produzidas mecanicamente a partir dele
próprio – do mesmo modo que os objectos iluminados da efectividade embutem a sua
imagem, mecanicamente, no estrato fotográfico»374
ou do mesmo modo que as curvas
de frequência de sons inscrevem a sua forma ondular no disco fonográfico.
373 Nadar, 1899: 6. 374 Arnheim, 1933/1977:27.
179
Uma reprodução autenticada pelo próprio objecto tem precisão física. Ela diz
respeito ao real dos corpos que trespassa, necessariamente, todas as grelhas simbólicas.
Figura 7: Fotograma espírito (1904).
Os média produzem já sempre aparições espectrais. É que a palavra «cadáver» é
já, segundo Lacan, um eufemismo para o Real375
.
Claro que as sessões espíritas, com as mensagens dos espíritos telegrafantes 376
a
partir do reino dos mortos, são também consequência da invenção do alfabeto morse de
1837. Claro que as placas fotográficas – também e especialmente com a abertura do
obturador fechada – produz a reprodução de espíritos ou fantasmas, cuja
indistinguibilidade preta e branca ainda sublinha mais a garantia de semelhança.
Finalmente, uma das dez aplicações que Edison previa na North American Review para
375 Cf. Lacan, 1978/1980: 294. 376 No original: Klopfgeister. Literalmente, os espíritos que pressionam ou apertam botões. [N.T.]
180
a fonografia, que tinha descoberto, consistia na retenção «das últimas palavras dos
moribundos».
De um tal «arquivo familiar»377
, com as considerações desses que existiam de
novo378
, para as ficções, nas quais vivos e mortos se ligavam por cabos telefónicos, foi
apenas um passo. O que Leopold Bloom simplesmente desejava em Ulysses379
(1904)
para as suas meditações sobre o cemitério de Dublin380
já tinha sido tornado em ficção
científica por Walther Rathenau no seu papel duplo de presidente da AEG381
e escritor
futurista. Na história de Rathenau, Resurrection Co., o administrador do cemitério de
uma cidade chamada Necrópolis em Dacota, nos EUA, funda com a sua filha, na
sequência de um escândalo, que consistia no acidental enterro de vivos em 1898, uma
sociedade chamada «Dacota and Central Resurrection Telephone and Bell Co.» com
um capital social de 750 000 dólares e o único propósito de, pelo sim ou pelo não382
,
ligar os enterrados à rede pública de telefone. Decorrendo daí que aos mortos é também
concedida a oportunidade, muito antes de McLuhan, de provar que no conteúdo de um
médium reside outro médium – no caso concreto, uma déformation professionelle.383
As vozes paranormais de fita acústica ou rádio, exploradas desde 1959 e, desde o
disco de Laurie Anderson de 1982, Big Science, eternizadas musicalmente pelo rock384
,
informam os seus exploradores das frequências de rádio em que preferem emitir-se. Tal
como já em 1898 no caso do presidente do Senado, Schreber, aquando uma paranormal
«linguagem fundamental ou de nervos» tornava públicos, numa bela autonomia, o seu
código e o seu canal emissor385
, coincidindo canais e notícias. «Escolhe-se um
377 Edison, 1878, ap ud Gelatt, 1977:29. As últimas palavras fonografadas estabelecem a visão, de que «o
tempo fisiológico não é reversível» e que «no campo do ritmo e do tempo em geral não existe simetria»
(Mach, 1886:108). 378 No original: Wiedergänger. Literalmente, que andam de novo. [N.T.] 379 JOYCE, James. Ulisses, tradução e Nota de João Palma-Ferreira. Lisboa: Livros do Brasil, 1989.
[N.T.] 380 Cf. Joyce, 1922/1956: 129 e também Brooks, 1973: 213-14. 381 AEG refere-se a Allgemeine Elektizitäts-Gessellschaft, fundada em 1883 por Emil Rathenau. [N.T.] 382 No original: sicherheitshalber. [N.T.] 383 Rathenau, 1918-29; IV 347. Dois exemplos de déformation profissionelle dos mortos de Necrópolis:
«Um escritor está insatisfeito com o seu epitáfio. Um empregado da companhia utiliza intervalos longos e
curtos, como uma espécie de alfabeto morse, como crítica do seu sucessor.» - O Rei Alexandre, Herói da
obra teatral de Bronen Ostpolzug, declara tudo o que há para dizer sobre telefonia e Hades enquanto, de
acordo com as didascálias, «o telefone está a tocar»: «Oh, sua besta negra, crescendo em caules castanhos
e gordos, sua flor do intemporal, seu coelho do quarto escuro! A tua voz é o nosso além e suprime o nosso
céu.» (Bronnen, 1926-27: 133). 384 A faixa Example #22 combina efectivamente o anúncio e o som de «exemplo nº 22» («Daqui fala
Edgar», «Hier spricht Edgar» (Schäffer, 1983:11)), que, estranhamente, deve ter migrado de uma cassete
paranormal para livro, de Friburgo para os Estados Unidos da América. 385 Cf. Lacan, 1966/1973: II 69.
181
programa de conversa de onda curta, média ou longa ou o chamado «ruído branco»386
,
que reside entre duas estações, ou a onda de Jürgenson, que diferindo de local se
localiza em algo como 1450 até 1600 kHz entre Viena e Moscovo»387
; liga-se em
seguida uma fita acústica ao rádio e, quando se rebobina, soam vozes espíritas que não
surgem de nenhuma estação de rádio conhecida mas que, como as conversas noticiosas
estatais, também funcionam por autopublicitação radiofónica. É que aquilo que é e
onde se localiza a onda de Jürgenson foi descoberto por «Friedrich Jürgenson, o Mestre
da pesquisa vocal»388
.
O reino dos mortos é, deste modo, tão vasto quanto as possibilidades de envio e
armazenamento de uma cultura. Os média, como será legível em Klaus Theweleit, são
sempre também aparelhos de vôo para o além. Se a pedra tumular vigorou como
símbolo do princípio de uma cultura389
, a nossa técnica de média traz de volta os deuses
reunidos. De um só golpe calam-se os velhos lamentos sobre a transitoriedade390
, que
sempre foram escritos e que medem apenas a distância entre escrita e sensorialidade391
.
Na paisagem dos média existem novamente imortais.
War on the Mind é o nome de um relatório sobre a estratégia psicológica do
Pentágono. Relata que as equipas de planeamento da guerra electrónica, que por seu
lado apenas continua a batalha marítima do Atlântico392
, calculavam já listas dos dias
que, na crença de cada povo, são considerados auspiciosos ou desastrosos. Assim, a US
Air Force pode «sincronizar o ponto temporal dos seus ataques de bomba com as
previsões de divindades locais». As vozes destes deuses são também armazenadas em
fita acústica para, a partir dos helicópetros, «assustar as guerrilhas nativas e retê-las nas
suas aldeias». E, finalmente, o Pentágono desenvolveu um projector de filme especial,
com o qual é possível projectar os deuses tribais como filme nos blocos de nuvens mais
baixos393
. O Além implementado tecnologicamente…
Evidentemente, as listas de dias belos e sinistros não estão no Pentágono
enquanto caligrafia. A técnica burocrática vai a passo da técnica de média. O cinema e o
386 No original: weiβe Rauschen. Para o problema de tradução, consultar a tradução de Code oder wie sich
etwas anders schreiben lässt, presente neste trabalho. [N.T.] 387 Schäfer, 1983:3. 388 Schäfer, 1983:2. 389 Cf. Lacan, 1966/1973-80: I 166. 390 No original: Vergänglichkeit. O carácter do que passou, a transitoriedade, aludindo à propriedade e não
à época em si – o passado, Vergangenheit. [N.T.] 391 No original: Sinnlichkeit. [N.T.] 392 Cf. Gordon, 1981, passim. 393 Watson, 1978/1982: 28.
182
fonógrafo, os maiores desenvolvimentos de Edison, com os quais o presente começou,
encontram o seu terceiro elemento na máquina de escrever. Desde 1865 (na contagem
europeia) e 1868 (na contagem americana), a escrita não é mais o vestígio de tinta ou
grafite, cujos sinais ópticos e acústicos ocorriam outrora irrecuperáveis, para (pelo
menos para o leitor) se evadir na capacidade de substituição sensorial394
da escrita. Para
que séries de sons e rostos possam ter encontrado o seu próprio armazenador, a técnica
de armazenamento da velha Europa tinha antes de ser mecanizada.Hans Magnus Johan
Malling Hansen em Copenhaga e Christopher Latham Sholes em Milwaukee
desenvolveram máquinas de escrever prontas para produção em série. «Coisa
seminal395
», comentava Edison, quando Sholes o visitou em Newark para lhe
apresentar o seu modelo patenteado e convidar, para uma cooperação, o homem que
inventou a própria invenção396
397
.
Mas Edison recusou a oferta – como se o fonográfo e o cinetoscópio
aguardassem já em 1868 o seu futuro inventor e lhe confinassem o tempo. Em vez
disso, a oferta foi tomada por uma fábrica de armas que, já em 1865, no fim da guerra
civil americana, lamentava uma quebra de vendas. Remington, e não Edison, tomou
conta da espingarda discursiva de Sholes.
Não existiu uma figura única maravilhosa da qual derivaram os três média dos
tempos modernos. No princípio do nosso presente está, pelo contrário, uma separação
ou diferenciação398
. Por um lado dois média técnicos, que fixaram pela primeira vez
fluxos de informações irregistáveis e, por outro lado, uma «coisa ‘intermédia’399
entre
um instrumento e uma máquina», como Heidegger escreveu tão precisamente sobre a
máquina de escrever400
. Por um lado, a indústria do entretenimento, com a sua nova
sensualidade e, por outro lado, uma escrita que divide papel e corpo, desde logo ao nível
da produção e não (como os caracteres tipográficos móveis de Gutenberg) na
reprodução. As letras são, a par da sua ordenação, estandartizadas desde logo enquanto
tipos e teclados, ao passo que os média, de um modo precisamente inverso, existem no
394 No original: Ersatzsinnlichkeit. [N.T.] 395 No original: zukunkftstächtige Sache. [N.T.] 396 Kittler alude aqui ao facto de Edison ter sido o primeiro a criar laboratório de invenção técnica. [N.T] 397 Cf. Walze, 1980:133. 398 Cf. Luhmann, 1985:20-22. 399 No originall: ein ‘Zwischending’ [N.T.] 400 Heidegger, 1942-43/1982:127. A profissionalização desta declaração é confirmada por Klockenberg,
1926:3.
183
fumo do Real – enquanto opacidade das imagens no cinema e ruído colateral na
gravação em fita acústica.
Figura 8
No texto estandartizado, papel e corpo, escrita e alma separam-se uns dos outros.
As máquinas de escrever não armazenam o indivíduo, os seus caracteres não transmitem
um Além, sobre o qual os perfeitamente alfabetizados poderiam alucinar enquanto
significado. Tudo o que duas novidades dos média técnicos assumem, desaparece na
escrita tipográfica. O sonho de um mundo efectivo, visível ou audível a partir das
palavras, é interrompido401
. Com a simultaneidade histórica de cinema, fonografia e
dactilografia os fluxos de informações da óptica, acústica ou escrita tornaram-se,
portanto, tão separados quanto autónomos. Que os média eléctricos ou electrónicos se
possam recombinar não muda o facto desta diferenciação.
Ainda em 1860, cinco anos antes da bola de escrita mecânica [Skrivekugle] de
Malling Hansen, essa primeira máquina de escrever pronta para a produção em série,
Gottfried Keller proclamava, nas suas Miβbrauchte Liebesbriefe a ilusão da própria
poesia: os amantes têm apenas a alternativa impossível de ou «falar com tinta preta» ou
«deixar o sangue vermelho falar»402
. Quando, contrariamente, dactilografar, filmar ou
401 No original: ausgeträumt – literalmente, terminado de ser sonhado. [N.T.] 402 Keller, 1865/1961:376.
184
fonografar se tornam três opções igualmente possíveis, a escrita perde tais substituições
sensoriais. Por volta de 1880, a poesia tornar-se-ia literatura. Os caracteres
estandartizados não transmitem mais sangue vermelho como em Keller ou criação403
em
Hoffman, mas sim uma nova e bela tautologia técnica. De acordo com a observação
imediata de Mallarmé, a literatura significa nem mais nem menos do que o que ela torna
existente a partir das vinte e seis letras404
.
A «distinção metodológica» de Lacan405
entre Real, Imaginário e Simbólico é
uma teoria (ou ainda um efeito histórico) desta diferenciação. O simbólico inclui desde
logo os símbolos de fala na sua materialidade e tecnicidade. Eles constituem, isto é,
formam caracteres e cifras de uma quantidade interminável, sem que o Infinito de
significação filosoficamente sonhado chegue a seu termo. O que conta são apenas as
diferenças ou (para dizê-lo numa linguagem dactilográfica), os espaços entre os
elementos de um sistema. Por isso, em Lacan, «o mundo simbólico [é] o mundo da
máquina»406
.
Por oposição, o imaginário constitui-se como o fantasma espelhado de um corpo
que parece mais perfeccionado, do ponto de vista da motricidade, que o próprio corpo
da criança. É que no Real tudo começa com asfixia, arrefecimento e tontura407
. Com
isso, o imaginário implementa precisamente as ilusões ópticas, cuja exploração também
jaz no berço do cinema. Um corpo desmembrado ou decepado (no caso da recepção
cinemática) embate na continuidade ilusória de movimentos de espelho ou cinemáticos.
Não por coincidência, Lacan gravou reacções jubilatórias de crianças ao seu dulplo
espelhado408
com o meio de prova do filme documental409
.
Finalmente, a partir do Real não existe mais nada a trazer à luz do dia senão o
que Lacan, com a sua actualidade, requeria – nomeadamente, nada410
. Constituia-se um
resto ou resíduo que nem o espelho do imaginário nem a grelha do simbólico pode
capturar – acidentes fisiológicos, desordenamentos estocásticos dos corpos. É óbvio que
as distinções metódológicas de uma psicanálise moderna coincidem com as distinções
técnicas dos média. Toda a teoria tem o seu apriori histórico. E o estruturalismo,
403 No original: Gebilde. [N.T.] 404 Cf. Mallarmé, 1893/1945:850. 405 Lacan, 1966: 720. 406 Lacan, 1978/1980:64. 407 Cf. Lacan, 1966/1973-80: III 50. 408 No original: Spiegeldopelgänger. [N.T.] 409 Cf. Lacan, 1966/1973-80: III 13. 410 Cf. Lacan, 1966/1973-80: I 43.
185
enquanto teoria, pronuncia apenas aquilo que ocorreu, na mudança de século, nas
informações e nos canais de informação.
Apenas a máquina de escrever produz uma escrita, que é selecção de uma
quantidade contável e ordenada do seu teclado. Nele vigora, literalmente, aquilo que
Lacan ilustrou utilizando a antiquada caixa de letras411
. Em oposição ao fluxo da
caligrafia, encontram-se elementos discretos separados por espaço. O simbólico tem
portanto o estatuto de escrita em bloco. O cinema foi o primeiro a armazenar todo o
duplo [Doppelgänger] movente, no qual o homem, distintamente de outros primatas,
pode (re)conhecer o seu corpo. O imaginário tem portanto o estatuto do cinema. E o
fonógrafo foi o primeiro a gravar os sons que a laringe expele antes de qualquer
ordenamento simbólico e significado semântico. Para poder ter desejo, os pacientes de
Freud não tinham mais de desejar o Bem dos filósofos. Tinham simplesmente de dizer
«blabla»412
. Portanto o Real – especialmente na talking cure de seu nome psicanálise –
tem o estatuto da fonografia.
Por volta de 1800, com a diferenciação técnica de óptica, acústica e escrita, por o
monopólio de armazenamento de Gutenberg explodiu e o chamado homem tornou-se
factível. A sua essência evade-se para os aparelhos. As máqinas conquistam funções do
sistema nervoso central e não apenas simplesmente, como todas as máquinas
precedentes, da musculatura. E só com isto – e não com máquinas de vapor ou
caminhos de ferro – se chega à higiénica separação de matéria e informação, de real e
simbólico. Para poder inventar o fonógrafo e o cinema, não são suficientes os sonhos
primordialmente velhos413
da humanidade. Olho, ouvido e cérebro têm de se tornar, na
sua própria fisiologia, condições de pesquisa. Para optimizar maquinalmente a escrita,
ela não pode ser mais sonhada enquanto expressão dos indivíduos ou enquanto vestígio
dos corpos. As formas, diferenças e frequências dos seus próprios caracteres têm de
chegar a fórmulas. O chamado homem desintegra-se na fisiologia e nas técnicas de
informação.
Quando Hegel conduziu o alfabetismo perfeito do seu tempo a um conceito, este
conceito chamo-se espírito [Geist]. A legibilidade de toda a História e de todo o
discurso fazia do homem ou filósofo Deus. A revolução dos média de 1880 dispôs as
possibilidades fundamentais para teorias e prácticas que não confundem mais 411 Cf. Lacan, 1966/1973-80: II 26. 412 Cf. Lacan, 1975: 53 e 73. 413 No original: uralte Menschheitsträume. [N.T.]
186
informação com espírito. Em vez do pensamento, começa a álgebra booleana414
, em
vez da consciência um inconsciente, que faz da Purloined Letter de Poe (pelo menos
desde a leitura de Lacan) uma cadeia de Markoff415
. E que o simbólico se chame
«mundo da máquina», tal confisca a ilusão do chamado homem, de através de uma
«qualidade» chamada «consciência», ser outra coisa e mais que uma «máquina de
calcular». É que ambos, pessoas e computadores são «sujeitos ao apelo do
significante»416
, isto é, ambos ocorrem segundo programas. «São ainda humanos»
pergunta-se, Nietzsche, já em 1874, oito anos antes de comprar uma máquina de
escrever, «ou talvez apenas máquinas de pensar, escrever e calcular?»417
.
Em 1950, Alan Turing, o estagiário entre matemáticos ingleses, deu a resposta à
pergunta de Nietzsche. Ela expressa, com elegância formal, que a pergunta não o é. O
ensaio de Turing, Computing Machinery and Intelligence, aparecido, de todos os jornais
possíveis, na revista filosófica Mind, propunha, para clarificação uma estrutura de
experimentação, o chamado jogo de Turing:
Um computador A e um humano B transitam informação via uma qualquer
ligação de interface de tipo de escrita remota. A troca de texto é supervisionada por um
censor C, que também apenas possui informação escrita. A e B fazem a troca como se
ambos fossem humanos. C tem de decidir, qual dos dois não simula e qual é a máquina
de pensar, escrever e calcular de Nietzsche. Mas porque a máquina, sempre que falha –
seja através de erros ou muito mais provavelmente por falta deles – pode optimizar o
seu programa com aprendizagem, permanecendo a partida sempre eternamente em
aberto418
. No jogo de Turing o chamado homem coincide com a sua simulação.
E isto porque, obviamente, o censor C não acede a caligrafia mas sim a textos de
máquina de escrever ou impressões de outprint. É certo que os programas de
computador também poderiam simular a mão humana com as suas rotinas e lapsos e
portanto a sua chamada individualidade – mas Turing, enquanto inventor da Máquina
Discreta Universal, era um dactilógrafo. Apesar de não ser melhor ou mais ágil que o
seu gato Timothy, que também era autorizado a saltar sobre o teclado no gabinete
caótico de Turing nos serviços secretos419
, era menos catastrofal que a sua caligrafia. Na
414 No original: Shaltalgebra. [N.T.] 415 Cf. Lacan, 1966/1973-80: I 44-54. 416 Cf. Lacan, 1966/1973-80: I 47. 417 Nietzsche, 1873-76/1967: III, 1, 278. 418 Cf. Turing, 1950/1967: 116; Hodges, 1983: 415-417. 419 Hodges, 1983: 279.
187
Public School Scherborne mal lhe podia ser «perdoado» o modo caótico como vivia e o
modo como borrava a tinta. Trabalhos brilhantes em matemática colhiam maus
relatórios apenas porque a sua caligrafia «era pior que qualquer uma já vista»420
. Os
sistemas escolares têm controlo, devotamente, através das suas ordens de incentivo421
,
sobre uma caligrafia bela, coesa e individual, criando indivíduos - no puro sentido da
palavra. Contudo, Turing, mestre da subversão de toda a educação422
, evadiu-se: fazia
planos para a invenção de uma máquina de escrever «extraordinariamente primitiva»423
.
Destes planos, nada surgiu. Mas quando, nos campos de Grantchester, os
campos de toda a lírica inglesa, dos românticos até aos Pink Floyd, lhe ocorreu a
Máquina Discreta Universal, os seus sonhos de estudante foram realizados e
transformados. A patente da máquina de escrever de Shole de 1868, reduzida ao
princípio puro, suporta-nos até hoje. Turing apenas se livrou de uma vez por todas do
homem ou estenotipista que a Remington & Son precisavam para a leitura e escrita.
E isto porque a Máquina de Turing é ainda mais extraordinariamente primitiva
que o esquisso da máquina de escrever de Sherborne. Tudo aquilo com que tem de
operar é uma folha de papel que apresenta simultaneamente o seu programa e o seu
material informativo, o seu input e o seu output. Nesta folha de papel unidimensional
Turing redimensionou a página comum da máquina de escrever. Mas a poupança vai
ainda mais longe: a sua máquina não precisa dos muitos e redundantes caracteres,
números e símbolos de um teclado da máquina de escrever: ela opera com um símbolo e
a sua ausência, com 1 e 0. A máquina pode ler esta informação binária ou (no termo
técnico de Turing), scan424
. Pode, consequentemente, deslocar a folha de papel um
campo para a direita ou um campo para a esquerda ou não deslocar de todo, trabalhando
também assim tão repentidamente, isto é, discretamente, quanto uma máquina de
escrever que, em oposição à caligrafia, tem blocos de caracteres, teclas de retorno e
tecla de espaço. (Numa carta a Turing escreve-se: «Perdoe-me o uso da máquina de
escrever: comecei a preferir máquinas discretas a contínuas»425
O modelo matemático
de 1936 não é mais um hermafrodita entre máquina e um simples instrumento: está
depende da leitura o acto de a máquina deixar permanecer ou apagar o símbolo ou,
420 Hodges, 1983:30. 421 No original: Andressur. [N.T.] 422 No original: Bildung. [N.T.] 423 Hodges, 1983:14. 424 No original: abtasten. [N.T.] 425 No original: Pardon the use of the typewriter: I have come to prefer discrete machines to continuous
ones.[N.T.]. J.Good, 16.9.1948 ap ud Hodges, 1983:387.
188
inversamente, deixar um lugar vazio ou ainda se o inscreve com um símbolo, e por aí
em diante.
É tudo. Mas nenhum computador que tenha sido construído ou venha a ser
construído pode fazer mais. Mesmo as mais modernas máquinas de Von Neumann (com
armazenadores de programa e unidades de cálculo) funcionam mais rápido, mas não,
por princípio, de um modo diferente que o modelo infinitamente lento de Turing. Para
além disso, nem todo o computador tem de ser uma máquina de Von Neumann,
enquanto que todos os aparelhos concebíveis de processamento de dados são meramente
um estado n da Máquina Discreta Universal. Alan Turing provou-o em 1936, dois anos
antes de Konrad Zuse, em Berlim, construir, a partir de simples relés426
, a primeira
calculadora programada. E com isto o mundo do simbólico tornou-se de facto um
mundo da máquina427
.
A Era dos Média – diferentemente da História, que ela acabou – ocorre
repentidamente como a folha de papel de Turing. De Remington, passando pela
Máquina de Turing, até à Microelectrónica, da mecanização passando pela
automatização da implementação de uma escrita que é dígito e não sentido – um século
bastou para transferir o monopólio primordialmente velho da escrita para uma
omnipotência dos circuitos integrados. De modo semelhante ao correspondente de
Turing, todos passam das máquinas análogas para as discretas. O Compact Disc
digitaliza o gramofone, a câmera de vídeo o cinema. Todas as correntes de informação
fluem para um estado n da Máquina Universal de Turing, números e figuras tornam-se
(apesar do Romantismo) chaves de todas as criaturas.
426 No original: Relays. [N.T.] 427 Cf. Zuse, 19.6.1937, in Zuse, 1984:41. «Pensamento decisivo, 19 de Junho de 1937/ Reconhecimento
que existem operações elementares às quais toda a computação e operações do pensamento podem ser
reduzidas./ Um tipo primitivo de cérebro mecânico consiste numa unidade de armazenamento, sistema de
escolha e um simples aparelho que consiga lidar com as mudanças condicionais de duas ou três ligações.
Com tal forma do cérebro tem de ser teoricamente possível resolver todas as operações da mente que
podem ser pensáveis a partir de mecanismos, independentemente do tempo envolvido para tal. Cérebros
mais complexos reúnem apenas execuções mais rápidas que os antecessores».
189
PREFÁCIO À TRADUÇÃO RUSSA DE MÉDIA ÓPTICOS [OPTISCHE MEDIEN]428
Imagem : Vermeer, Jan, A rapariga com o chapéu vermelho, 1665-1666,
Galeria Nacional de Arte de Washington D.C.
Para Joulia Strauss
428 Kittler, Friedrich (1999), Optische Medien – Berliner Vorlesung, Merve Verlag, Berlin, 2011, pp.9-12.
190
Este livro não foi escrito para contrapôr média técnicos e artes ópticas: muito
pelo contrário. Quem entrar no templo de Apolo na na Bassai arcádia ou vir os ídolos de
mármore nas Cíclades suspeitará do que se trata. Por isso alegro-me particularmente que
a tradução russa (contrariamente à edição alemã) mostre, já na capa, a mais bela pintura
que encontrei na vida: A rapariga do chapéu vermelho de Vermeer, de 1665.
Infelizmente, enquanto leitor, vê apenas uma reprodução (tal como eu): uma
obra de arte que aparece no agora [Jetztzeit] através de fotografia e impressão a quatro
cores. Sobre a obra de arte na época da possibilidade de reprodutibilidade técnica, não
queremos conduzir lamentações sem sentido, mas sim chamar a atenção para o facto de
que o absolutamente original de Vermeer está pendurado na National Gallery of Art de
Washington – no fim das intrincadas transacções monetárias. No Outono de 1997,
quando fui professor convidado na Universidade de Columbia em Nova Iorque,
queríamos imperetrivelmente vê-lo. Primeiro: porque nenhuma fotografia do mundo é
até hoje capaz de sugerir a incompreensível reflecção luminosa de Vermeer. Segundo:
em frente às imagens de Vermer não se formam filas do estilo «Mona Lisa». Mas enfim,
não era para ser. No estado de Nova Iorque vigora uma lei que dita que o aluguer de
carros se faz com regras estritas: carta de condução e cartão de crédito têm de estar
associados ao mesmo nome. No nosso caso tal não acontecia: apenas a minha mulher
tem uma carta de condução, apenas eu os cartões de crédito. A rapariga do chapéu
vermelho, nunca verei o seu brilho. (Assim como a proibição de fumar; assim como os
Estados Unidos da América)
Vermeer está morto, a jovem holandesa está morta. Os seus olhos jazem
profundos na sombra, para nos denotar a nós homens, que o amor correspondido é tão
imprevisível quanto abençoado. E assim brilhará esta boca vermelha e ardente enquanto
os olhos se mantiverem abertos para a arte. Desde que foram descobertas a perspectiva
central em Florença e a pintura a óleo na Flandres, a Arte pôde oferecer prova, durante
quinhentos anos, que Sócrates (para não dizer a Crítica da Faculdade de Julgar de
Kant) estava no camino errado429
: não existe de todo «o belo em si» enquanto ideia;
existem apenas (como em Hípias de Élis) «belas raparigas».
Mas também as pinturas iniciais de Vermeer seguem ainda ideias platónicas.
Elas mostram corpos à distância, a partir de uma transcendência, que se pode denominar
de platónica ou cristã. Antony van Leeuwenhoek, o amigo e executor testamentário de
429 No original: auf dem Holzweg war. [N.T.]
191
Vermeer, aparece uma vez enquanto astrónomo, uma outra vez enquanto geómetro – um
homem no meio de todos os seus média ou aparatos. Só nas últimas imagens de
Vermeer é que os olhos do pintor se encontram tão perto dos modelos como um homem
que, no próximo piscar de olhos, tem as amadas nos braços e as beija. Numa rapariga
brilha na orelha, numa sedução opala, a pérola, numa outra, o chapéu vermelho.
Pelo menos aparentemente. Pois está provado que quase todas as pinturas de
Vermeer estão em dívida a uma camera obscura, este aparelho tornado perspectiva. No
primeiro plano, a face da rapariga; à esquerda, na parede, está a janela, através da qual o
sol penetra; na porta para o quarto em frente, que nunca aparece enquanto tal, está a
posição [Gestell] da camera obscura, atrás do seu visor o pintor colecta os seus pincéis
e paletas. Apenas graças a uma lente que o amigo de Vermeer, Leeuwenhoek, «cortou»,
por assim dizer, enquanto objectiva, esta camera obscura pode também simular ou
focar um plano aproximado. A sua abertura não era mais um simples buraco, mas sim
uma óptica. Uma distância de cinco metros podia assim virtualmente tornar-se a
próxima proximidade430
.
E isso era – como já no caso da lanterna mágica – uma novidade, um passo
decisivo de Brunelleschi a Alberti. Já desde o holandês por opção, Descartes, a
Modernidade estabelece-se não como simples apresentações [Vorstellungen], mas sim–
segundo a visão de Heidegger – enquanto a própria apresentação [Vorstellen]: se, os
meus sonhos ou sentimentos de felicidade forem falsos, são, contudo, enquanto
representações [Vorstellungen] (repraesentationes), imperturbavelmente verdadeiros (O
dorminhoco e o apaixonado Descartes era, no fumo do tabaco ou haxixe, tudo menos
racionalista).
É precisamente isso que Vermeer van Delft desenhou: o maior mas mais discreto
artista de uma grande época. Não é naturalmente a própria pele da testa de qualquer
rapariga, que se faz tingir, pelo chapéu vermelho brilhante, em vermelhidão. Também
não é a própria bochecha, na qual o chapéu vermelho e o vestido azul se misturam em
verde. Só aparece a sua imagem enquanto tal, como a camera obscura se apresenta aqui
e agora perante os olhos do pintor. A rapariga também não é a grande Afrodite, a
imortal origem profunda do desejo. Que a mão do pintor torne imortal a aparição
fugidia de uma rapariga, um jogo de luz, tal não é mais arte, não, é amor.
430 No originial: zur nächsten Nähe werden. [N.T.]
192
Arte vem de habilidade, habilidade vem de gosto431
. Contudo, gostar, dizia
Heidegger em «linguagem ocidental», vem de amor. Quase todos os pintores que
utilizaram a camera ou mais tarde (como desde Ingres) utilizam a câmara como
aparelho fotográfico zelavam muito por esconder o segredo médium-técnico por detrás
da sua obra de arte. Isso, pensavam, subia o seu preço de mercado. Portanto calculavam
os pigmentos, como a testa no chapéu da rapariga inimitavelmente apresenta, para bem
conduzir as cores. (Desde Helmholz pode-se demonstrar que os pigmentos seguem leis
fisiológicas). Assim, pintavam regiões que permaneciam turvas no ecrã, porque do
ponto de vista da perspectiva estavam muito longe ou muito perto do foco,
artificialmente acutilantes. Os pintores da Modernidade eram – sob a pressão da ciência
– do ponto de vista médium-técnico, uma longa falsificação. Só a época do computador
(com as mais belas imagens de Gerhard Richter) fez cair tudo isso radicalmente.
E antes dele, primeiro: Vermeer van Delft. A bela rapariga senta-se numa bela
cadeira, cuja inclinação segue duas cabeças de leão talhadas a madeira. Elas estão
demasiado próximas da camera obscura para fornecer uma imagem clara na tela. As
cabeças de leão castanho escuro radiam ou brilham também na luz da janela, quase
tanto quanto o lenço, as jóias e os dois lábios, mas tão indistintos quanto um sonho
diurno. Por isso, a boca da rapariga permanece aquilo que é e onde é: no ponto de fuga
do desejo.
Ela olha-nos – e não nós a ela. Não é classicamente bela: é mais como como
uma rapariga de dezanove anos da Holanda, na altura em que as raparigas só se
mestruavam com catorze. Os seus olhos permanecem pequenos e estreitos.
Para isso a sua boca. Ela beijou, já mais que um homem. Ela amou e ama
também agora. Caso contrário nunca contemplaria o pintor tão sensualmente.
A arte que pensa é sempre arte que sabe e expõe o seu jogo432
com os média.
Refugiada nos média, deixa que a physis se revele. Tudo o resto desde Picasso, Warhol
e companhia, a isso chamamos valor de mercado. É que o mercado esquece-se do sol.
Não existe, contudo «Nada de mais belo sob o sol que estar sob o sol…»
(Ingeborg Bachmann).
431 No original: Kunst kommt von können, können kommt von mögen. [N.T.] 432 No original: Zusammenspiel. [N.T.]
193
ENTREVISTAS
194
195
O MODELO FRIO DA ESTRUTURA433
Entrevista a Friedrich Kittler por Christoph Weinberger
C.W. – Encara a sua reorientação para a Música, alfabeto e Matemática na Grécia
Antiga enquanto cesura ou continuidade do seu trabalho dos anos oitenta? Existe uma
«viragem434
» no pensamento de Friedrich Kittler?
F.K. – Não, de todo! Recentemente diverti-me a descrever o Aufschreibesystem -300435
nos meus novos textos. Isto porque consegui reconstruir, com relativa precisão, o modo
como Aristóteles foi aculturado e alfabetizado. E, assim sendo, também o modo como a
sua obra gerou uma teoria determinada que, entre quase todos os gregos, apresentava
um grau insano de dificuldades : a diferença entre som, sons e letras. Aqui vejo uma
continuidade e noto um fascínio e ligeira irritação pelo facto de as pessoas que não
simpatizam particularmente comigo declararem que me afastei dos média, como se
fosse algo do género: agora quero estudar apenas gregos! Em relação a isto tenho o
sentimento que chego agora, finalmente, no que concerne a nossa cultura, ao solo onde
tudo começou.
C.W. – Portanto é uma expansão do foco de Aufschreibsysteme 1800/1900, que já se
apresenta como uma espécie de documento fundador dos Estudos dos Média alemães
[Medienwissenschaft1]?
F.K. – Exacto. Trata-se de efectivamente dar à Europa, no final – também no interesse
dessa Europa – um fundamento de pensamento viável436
, voltando aos gregos.
Queremos voltar a algo como o Novo Testamento, o Velho Testamento ou queremos o
Corão? Pelo Deus do céu437
, não!
433 «Das Kalte Modell von Struktur» in Zeitschrift für Medienwissenschaft, número 1, Editora Akademie
Verlag, Berlim, 2009, pp.93-102. 434 No original: Kehre. O uso da palavra não é inocente, já que esta é aplicada ao momento em que um
filósofo muda o rumo da sua investigação ou metodologia, de que é exemplo a famosa Kehre de
Heidegger. [N.T.] 435 Kittler alude aqui ao seu Aufschreibesysteme 1800/1900, no qual analisou as redes discursivas ou
sistemas de registo do século XVIII e início do século XIX. A voltar aos gregos, uma tal análise das redes
de inscrição não podia deixar de ser relativa ao século III a.C.. [N.T.] 436 No original: lebensfähig. Literalmente, com capacidade para viver. [N.T.] 437 No original: Um Himmeswillen . Literalmente, pela vontade do céu. [N.T.]
196
C.W. – Anteriormente, tomou «o homem» como sistema cibernético de processamento
de informação . No entanto diz que o homem é o único ser que possui o «logos».
F.K. – Não se pode sempre colocar uma certa brusquidão negra perante si. Um caro
conhecido perguntou-me uma vez «qual é afinal a diferença entre Aufschreibesysteme e
o primeiro volume do Musik und Mathematik?» E aí disse: «Que um era uma faca e o de
agora é um garfo». Não se pode estar todo o tempo a cuspir no prato dos professores e,
no limite, no próprio prato. Era era já a grande acusação a Aufschreibesysteme, aquela
que mais me afecta: que eu estava a cuspir na mão que me deu de comer. Chamava-se,
na época, Estudos Germânicos.
C.W. – Sob o título programático de Austreibung des Geistes aus den
Geisteswissenschaften [Exorcização do Espírito das Ciências do Espírito], concebeu,
nos anos oitenta, uma crítica radical da historiografia baseada na história das ideias.
F.K. – Sim. Na minha palestra actual, atestei-o novamente, pela calada438
. Trata-se de
mostrar o quão belo é Les Mots et les Choses de Michel Foucault e o quão radicalmente
nos mudou. Isto significa simplesmente cindir o continuum da História, o que era
também a crítica total dos meus escritos para a habilitação académica. O livro era
sempre mal citado. Aufschreibesysteme 1800 até 1900. Não se aperceberam de todo da
barra entre 1800 e 1900.
C.W. – Então relativizaria hoje certas coisas que disse em Aufschreibsysteme? Não se
trata de um gesto provocador, sensacionalista439
?
F.K. – Não creio. É um raio440
de um livro erudito. E a erudição esconde-se sempre por
detrás deste estilo provocante. Creio que certas coisas, como a obsessão das palavras de
Sigmund Freud no gesto de fundação da psicanálise, são descritas correctamente. Essa
[obsessão de Freud] é tão encoberta pelos revisionistas. Todos querem – diferentemente
de mim – fazer sempre gestos conciliatórios. Que posso dizer – as épocas rodaram não
180 graus, mas sim 170 graus. Mas, apesar disso, as coisas são feitas por muitos como
se se tratasse de um alegre continuum de 1897. Penso que tive razão. Tudo tem um
index histórico, os textos fundadores pertencem a um determinado sistema e não são,
fora deste sistema, capazes de sobreviver. Como Foucault sempre disse: Marx não é
uma inovação, nada como um peixe na água da episteme do seu tempo.
438 No original: so klamm und heimlich – quando algo é feito discretamente, nos bastidores. [N.T.] 439 No original: effekthascherische. [N.T.] 440 No original: verdammt. [N.T.]
197
C.W.- Também o «espírito» não flutua num espaço sem ar441
.
F.K.- Sim, por exemplo, uma constelação mediática – como O Pote de Ouro442
em
Hoffmann - é essencial ao texto. Continua-se a ignorar que fui muito corajoso:
consegui duas espécies de interpretações em Aufschreibesystemen. Imagino que
interpretei O Pote de Ouro melhor que muitos outros. Também acho que captei
bastante bem, na sua contemporaneidade, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge443
,
subtraindo as suas partes históricas. Com isto tornei possível uma leitura que era
efectivamente mais eficaz e que podia tratar mais textos. Li tanta Psicologia da época de
1800, e tanta psiquiatria de 1900. As pessoas deveriam, antes demais, fazer algo
semelhante.
C.W. – É um germanista e romanista erudito…
F.K. – Sim, sim. Isso é algo que é suscitado de um modo completamente falso. Como
se fosse um facto comprovado que o Estruturalismo explodiu de Paris para Freiburg nos
seminários alemães – nos Estudos Germanísticos – sob a forma de Klaus Theweleit e
Friedrich Kittler. E isso num momento algures nos anos setenta. Isso é tão
absolutamente mentira!
C.W. – Ambos teriam importado o (Pós) Estruturalismo, portanto Lacan, Foucault e
Derrida?
F.K. – Sim, ambos. Isso é idiótico. Primeiro, não foi no final mas sim no início dos anos
setenta. Em 1973 traduzi os dois terços importantes de um ensaio decisivo de Lacan e,
em 1975, lancei-o entre as pessoas. Não quero dizer agora que estava sozinho; Norbert
Haas e um par de outros em Berlim e Estrasburgo também o descobriram por si
mesmos. Mas, no meu caso, foi completamente marcante444
. Tinha o meu grau
académico de francês e tinha lido todos os poetas porque tive um romanista brilhante
como professor. E fiquei extasiado por ter descoberto este tipo de teoria, que ainda era
mais bela. Foi ainda melhor ler Lacan que contentar-se com poetas medianos ou
escritores como Camus ou Sartre.
441 Espaço sem ar não é o mesmo que vácuo, que é a ausência de matéria, por isso não optámos por esse
termo, que soaria melhor. No original: im luftleeren Raum. [N.T.] 442 HOFFMANN, Ernst (1819), O Pote de Ouro, trad. Maria Luísa Mascarenhas, Edição Europa América,
Lisboa, 2002. 443 RILKE, Rainer Maria (1910), Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução de Paulo Quintela,
edição de “O Oiro do Dia”, Porto, 1983. 444 No original: spürbar. Neste caso, refere-se ao que deixa marcas, consequente. [N.T.]
198
C.W.- Há quem diga que é uma espécie de existencialista, que procurou apresentar o
absurdo da nossa era dos média.
F.K. – As coisas que occorrem às pessoas! Penso que os Aufschreibesysteme [sistemas
de anotação] estabeleceram épocas pelo meu uso impiedoso das das datas. Eu próprio
fiquei impressionado pelo facto de que tudo tinha um facto, um endereço, um local e um
dia. E também uma lista de pessoas, algo cómica, que desempenharam todas as
profissões que se pode imaginar. E isso era anti tudo o que era então predominante na
Alemanha.
C.W. – O que é que se passou realmente, quando Aufschreibesysteme teve de ter treze
avaliações para ser tomada como tese de habilitação académica?
F.K. – Um dos três avaliadores, que eu próprio tinha escolhido, disse em conversa que
eu era um homem simpático mas que esta tese de habilitação tinha de ser abafada445
para que não surgisse um segundo Foucault.
C.W.- Era esse o conceito de inimigo na altura?
F.K. – O Estrutualismo. O terceiro avaliador queria torná-lo mais amigável para a
consciência. Mas não conseguia refutar! E eu fui a pobre vítima…
C.W.- E, para si, contra o que é que escrevia? Hermenêutica e Ciência Social de
Esquerda?
F.K. – Ambas, sim. Aufschreibesysteme surgiu quando a Hermenêutica, de um modo
habilidoso, tinha selado uma aliança com Habermas. Ou o inverso. Foi sim, penso eu,
Habermas que, no fim, empurrou Gadamer para a sua lista de triunfantes e vencedores.
E, assim, não havia mais forma de ultrapassar. Na altura da minha dissertação esta
aliança ainda não estava selada. Apenas se tinha de atacar a Hermenêutica com um
pouco de Foucault e Lacan.
C.W. – O que é que tornou estas contra-leituras tão urgentes?
F.K. – Quando eu distribuí essa tradução de Lacan – aos estudantes e doutorandos – tal
não alegrou o Professor. Ele queria atormentá-los com Adorno e Habermas. E estavam
todos habituados a isto, nesta água nadavam. As dissertações produzidas eram
concebidas e escritas neste estilo e eis que surjo eu com um modelo frio de estrura
completamente diferente. Chocou as pessoas, mas a maioria, curiosamente, mudou.
445 No original: zu Fall bringen. [N.T.]
199
C.W. – A sua análise literária média-materialista [medienmaterialistische] forneceu –
como diz sempre – resultados «auto-evidentes» [selbstredende] inclusive na forma de
números, datas, factos, que aparentemente não necessitam de mais interpretação.
F.K.- Não obstante, há por vezes interpretações muito sucedidas que me apareceram.
Tenho um orgulho desmesurado446
da exposição do Don Carlos447
de Schiller. Não
creio que Schiller tenha notado, mas ele apenas romanceou a partir da sua própria
aculturação. E transpôs o todo para Espanha. É talvez a megalomania em mim que tem
de esmagar as outras pessoas. Tenho o sentimento: That’s it! [É isso!]. Foi isso. Não
preciso de escrever um segundo ensaio sobre Don Carlos ou rever o primeiro. Nem
lamentar, a partir da sabedoria da velhice: na altura era ignorante. Não, o quadro448
,
puramente mecanizado, algorítmico de Carlos é esta Escola-Carlos449
[Carlos-Schule].
C.W. – De um modo diferente dos cultural studies, para si trata-se menos do significado
de textos dos média e a sua legibilidade semiótica que do seu efeito.
F.K. – Esse é um problema – o de ser pouco diferenciável os Estudos dos Média
[Medienwissenschaft] em relação ao quotidiano, as evidências constantemente
produzidas. Aqui tenho de dizer que a densidade pessoal nestas pessoas não é muito
profunda, com estas ofertas de teoria que servem logo para a próxima moda. Fico
sempre muito chocado com esta produção de sentido nos E.U.A., que pega numa
qualquer descoberta neurofisiológica a partir das ciências sociais e humanas
[geisteswissenschaftlich] e que, durante meio ano, determina a imprensa.
C.W. – Uma das suas teses centrais, que toma de Nietzsche, é que os instrumentos de
escrita co-redigem o nosso pensamento. Quais foram, no seu caso, os instrumentos de
escrita?
F.K. – Numa altura qualquer distanciei-me de versos escritos à mão, daqueles que se
escrevem até aos nove, dez ou onze anos. Depois fiquei com a máquina de escrever dos
meus pais. Subitamente os poemas ou bocados de prosa ficaram com uma visão externa
e interna mais estável. Depois passou do mecânico para o semi-eléctrico até ao
completamente eléctrico. A dissertação foi semi-eléctrica, as provas de aptidão
académica completamente elécritas, com bolas de escrita cursivas e gregas.
446 No original: wahnsinnig stolz. [N.T.] 447 SCHILLER, Friedrich (1787), Don Carlos, Infante de Espanha, trad. Frederico Lourenço, Edições
Cotovia, Lisboa, 2008. [N.T.] 448 No original: Gerüst. [N.T.] 449 Karlsschule foi a academia militar em Estugarda que Schiller frequentou. [N.T.]
200
C.W. – E depois veio o quê?
F.K. – Depois de ter aproveitado as maravilhas dos livros e da máquina de escrever,
pensei: talvez exista ainda algo diferente para além das letras. E portanto decidi-me
tratar electrónica. Acho abominável quando estudiosos dos média
[Medienwissenschaftler] divagam sobre computadores, mesmo sem nunca terem aberto
uma unidade de sistema.
C.W. - Compara isto aos germanistas que também escrevem ou colectam eles próprios
poemas.
F.K. – Exacto. Uma história hedionda – alguém me disse: «para ser germanista, não se
precisa de ter escrito poemas». Obviamente – disse eu – tem de se ter escrito poemas!
C.W. – O Professor é um fundador de discursividade. O Aufschreibesysteme e a sua
perspectiva tornaram-se incontornáveis.
F.K. – Não me acho tão original. Apenas utilizei, o melhor que sabia, as caixas de
ferramentas de Foucault e Lacan e deixei de lado, talvez, os escapes de Foucault. Mas as
teses de Aufschreibesysteme são muito mais modestas que as de Les mots et les choses.
Por isso são mais meticulosas e não fazem erros tão grandes como os que Foucault fez.
C.W.- Mas o que o faz escrever? Esconde-se tanta paixão e sangue do coração450
nos
seus textos…
F.K. – Alguém me contou uma vez que queria prevenir sempre as catástrofes e que, por
isso, tinha estudado Direito. Isso, simplesmente, nunca quis. Queria construir modelos
de pensamento. Modelos regionais, que não são tão ambiciosos como toda a História do
Ser em Heidegger, com uma Navalha de Ockham451
, no sentido não positivo. Algo é, de
algum modo, tudo. E que Foucault e eu tenhamos um tal interesse em máquinas que
funcionam – e portanto não em máquinas avariadas [kaputten] como em Anti-Édipo – é
talvez aquilo que nos liga.
C.W. – Se existir sempre, em cada época, uma totalidade medial, ela parece determinar-
nos sem deixar resto: pode aí sobrar algum lugar para diferença ou para liberdade?
450 No original: Herzblut. [N.T.] 451 Nome de um princípio lógico elaborado por William de Ockham, no século XIV, também designado
pela expressão latina Lex Parsimoniae (Lei da Parcimónia), que postula que a teoria explicativa com o
menor número de premissas e entidades deve ser assumida. [N.T.]
201
F.K. – Acho inconsolável quando os livros querem dar consolo. A liberdade deve ser
tomada pelo próprio. Nenhum livro pode pré-simular a liberdade. Para mim foi como
para Dürrenmatt, cujas regras para a comédia ditavam que as coisas devem ser sempre
tornadas algo pior do que são. Isso pode também ter, no final, uma tensão trágica, como
em Aufschreibesystemen. Não estou muito feliz que, neste livro, tudo acabe no barulho
das máquinas.
C.W. - É um artista da hipérbole?
F.K. – Sim, um artista da hipérbole. Mas sou-o puramento pelo motivo de que não
quero aborrecer-me demasiado a mim próprio nem aos outros. São incríveis, esse livros
que estão sempre a pesar os prós e os contras452
. Também tenho orgulho que
Aufschreibesysteme seja uma das poucas provas de habilitação académica que
permaneceu sustentável dos anos oitenta até hoje. Todas as outras provas de habilitação
académica floresceram e murcharam graças ao espírito do tempo [Zeitgeist] dos anos
oitenta e noventa.
C.W. - Como encara a Escola que ocorreu, indubitavelmente, em ligação consigo?
F.K.- Isso, curiosamente, agrada-me. É reconhecido mundialmente que investimos
muito trabalho. Em McLuhan é comprovável que uma em cada cinco frases é errada e
que cada uma em dez é divertida e muito genial. E Harold Innis nunca alcançou os
detalhes técnicos. Mas eu penso que, à medida que os média se tornarem mais activos453
e presentes, mais urgente se torna compreender a sua estrutura maquínica.
C.W. – Pensa que o a balança vai pender brevemente numa outra direcção454
?
F.K. – Teme-se um pouco, sim. Com estas tentativas constantes de, a partir de um único
cérebro, deduzir o mundo. Tomo isto por loucura. Penso que o cérebro do homem só
existe dentro da língua. E estes neurofisiólogos sabem-no e negam-no com toda a frase
que exteriorizam teoricamente. E o objectivo era fundamentar os resultados e terrores,
se não com a cultura, pelo menos com a nossa própria cultura, uma cultura, tornando-os
mais compreensíveis que antes, a partir desta medialidade. Assim pareço sempre
eurocêntrico, mas essa é, na verdade, a fronteira da minha caixa de ferramentas.
452 No original: abwäglerischen Bücher. [N.T.] 453 No original: brenzliger. [N.T.] 454 A expressão original é das Pendel in eine andere Richtung ausschlagen – o pêndulo vai oscilar noutra
direcção. [N.T.]
202
C.W. – Como experiencia o facto que tenha avançado de um marginal455
para um
clássico, de um marginal para um professor? Como pôde o seu ponto de partida tornar-
se uma tal história de sucesso?
F.K.- Bem, isso era previsível. «Não quero um segundo Foucault!» também significa:
«o trabalho é óptimo, mas não condiz comigo ideologicamente. Mas revela algo da
Literatura alemã que era visível ao ponto de bradar aos céus456
, mas que nunca tinha
sido visto verdadeiramente». Isso foi um elogio enquanto condenação.
C.W.- O Estudo dos Média [Medienwissenschaft] está também, desde há algum tempo,
institucionalizado…
F.K.- Isso entristece-nos um pouco a todos, porque perdeu aquele momentum
fundador457
.
C.W.- Em que medida é que faz sentido conduzir o Estudo dos Média enquanto
disciplina?
F.K. – Penso que o pior é que os académicos desempregados da Sociologia
apresentaram rápido provas de habilitação em Estudos dos Média. Eles não têm a
sensibilidade para contrapôr as fraquezas de uma disciplina, por exemplo as fraquezas
dos Estudos Germânicos, com Estudos dos Média, as fraquezas da Filosofia, com
História dos Média. Para os sociólogos é sempre um e o mesmo café rescaldado.
É-lhes perfeitamente igual pesquisar sobre televisão ou sobre sociedades da experiência
hedonista [Erlebnisgesellschaften458
]. Estou-lhe a dizer: a capacidade para uma pesquisa
que não seja simplesmente indiossincraticamente organizada está subdesenvolvida na
Alemanha. Nos Estudos da Cultura459
. Por vezes, o Der Spiegel procede
arqueologicamente melhor que nós nas Universidades.
C.W. - Onde estão os média da imagem em Aufschreibesystemen? Não existem média
senão, aparentemente, o médium universal da poesia alemã de 1800?
455 No original: Auβenseiter. [N.T.] 456 No original: himmelschreiend. [N.T.] 457 No original: Gründerschwung. [N.T.] 458 O termo Erlebnisgesellschaft é frequentemente utilizado na sociologia alemã para frisar as sociedades
que são motivadas pela necessidade de experienciar radicalmente o mundo a partir de uma suposta
subjectividade. [N.T.] 459 Pela mesma razão de Medienwissenschaft, Kulturwissenschaft não é de todo a manta de retalhos
frequentemente designada por Cultural Studies. [N.T.]
203
F.K.- O meu velho crítico japonês – muito conhecido – notou por escrito que já em
Gramophon, Film, Typewriter, o filme era tratado como que com menos gosto. De uma
forma menos charmosa que os outros aparelhos. E tenho simplesmente de o admitir.
Tenho um interesse fervoroso por imagens eróticas, mas consigo escrever mal sobre
isso.
C.W.- Quando se compara Aufschreiebesysteme com o segundo grande livro,
Gramophon, Film, Typewriter, qual a diferença?
F.K.- A intenção era completamente clara: Aufschreibesysteme para crianças. Com
imagens e textos originais não abreviados. Portanto um autêntico livro para
folheamento, para se ler na totalidade460
. E também um livro feliz, em vez de um livro
de negrume, de toda esta melancolia que continha a minha alma. Também podia
escrever interminavelmente sobre os média enquanto média. Não me tinha mais de
subjugar aos formatos standard dos novos Estudos Germânicos – em que os média
emergem sempre em relação à Literatura.
C.W. – Esconde-se algo de iluminista461
na sua abordagem caracteristicamente anti-
humanista?
F.K.- Disse-se uma vez, sobre mim, que eu seria um professor de escola para adultos 462
enraivecido. Foi escrito numa coluna da taz [Die Tageszeitung]. Isso agradou-me
desmesuradamente. Já que a única coisa que sempre achei extenuante em Lacan é
aquele elaboração estilística entrecortada, aforítica. Ele sabe o que diz, mas então
porque é que não o diz?
C.W.- A viragem para os gregos extende os Aufschreibesysteme [sistemas de registo]
quase para trás [no tempo]. Mas como é na outra direcção, para a frente? O
Aufschreibesystem 2000 era assim também outro projecto…
F.K. – Isso só existiria enquanto conteúdo de todos os servers do mundo. Isso não pode
ser escrito por nenhum homem. Seria… ah!
460 No original: zum Auslesen. [N.T.] 461 No original: etwas Aufklärisches. Pode significar também «algo de iluminador» ou, no limite, «algo
de pedagógico». O anti-humanismo é frequentemente oposto ao iluminismo pelos que entrevistam
filósofos, e aqui não parece ser excepção. [N.T.] 462 Trata-se do modelo da Volkshochschule, escola para a formação voluntária de adultos, comum na
Alemanha. [N.T.]
204
C.W. - Nos seus textos mostra como a os média produzem e geram realidades463
.
Simultaneamente, os média também abrem a via para o Real, o que será armazenável –
e, portanto, não apenas simbolicamente codificado. Algo como o gramofone.
F.K. – Sim. Isso foi sempre a disputa com Luhmann e os construtivistas. E aí é uma
disposição distintiva única [Alleinstellungsmerkmal], como se diz em neoalemão, da
cultura europeia, entretanto tornada global. Que a cultura produza não apenas oráculos
para o clima, mas sim sistemas computacionais metereológicos e aparelhos de medição.
Que vejamos televisão ao domingo e possamos planear, se viajamos até ao mar báltico,
se o sol brilhar no fim-de-semana. É mesmo pura loucura!
C.W. – Pende sob si a acusação de que o seu materialismo medial
[Medienmaterialismus] seria ontológico ou ontologizante464
e não sustentável do ponto
de vista epistemológico465
.
F.K.- A palavra «ontologização» é desde logo ridícula, porque soa a deliberação.
Quando se quer permanecer fiel à prima philosophia, tem de se insistir ao nível das
categorias finais à la Aristoteles. Daí que duvidar que a coisa aqui não existe não faz
grande sentido. Existem ouvidos, existem tímpanos. Acabei de me curar de uma otite
média466
. Não creio que apenas eu contrua o meu mundo.
C.W. – Então qual é o conceito de média na sua obra?
F.K. – Entrei muito tarde no domínio conceptual-histórico. Simplesmente tomei-o de
Understanding Media467
de McLuhan. Era na época um livro tão contra o espírito do
tempo [Zeitgeist] da Alemanha de 1964. E todos tinham decidido que estava errado.
Por causa de Adorno. E eu decidi que não, não está errado!
C.W.- Para si uma técnica apenas é um médium quando pode processar, transferir e
armazenar informação. Em 1800, a Literatura alemã fá-lo, contudo, enquanto média
único. Os média, no plural, surgem então por volta de 1900 com gramofone, filme e
máquina de escrever. Isto apenas para hoje desaparecerem de novo, por assim dizer, no
médium universal do computador…
463 No original Wirklichkeiten, ou seja, permutável por «efectividades» [N.T.] 464 No original: ontologisierend. [N.T.] 465 No original: in erkenntnistheoretischer Hinsicht. [N.T.] 466 Inflamação no espaço anterior à membrana timpânica. [N.T.] 467 MCLUHAN, Marshall, Understanding the Media. The Extensions of Man, The MIT Press, Cambridge,
Massachusetts, 1997. [N.T.]
205
F.K. – Porque todos os média convergem nele. Existem interfaces fisiológico-físicos do
computador que se podem continuar a encarar como média. Dentro dele, no hardware
ou software, não existe nada de imaginário, neste sentido: os média são lados visíveis,
face às pessoas e leigos, de um mundo que a ciência invoca como dark side of the
moon468
.
C.W.- Professor Kittler podia, para encerrar, dizer mais uma vez o que faz quando opera
nos Estudos dos Média?
F.K. – Uma História do Ser que seja, por assim dizer, up to date. Penso que, no meu
seguimento, existe o estabelecimento de uma pesquisa histórica relativamente precisa.
Somos, de momento, líderes mundiais. Na História da Ciência os americanos são
melhores. Mas que eles estejam a estreitar os laços com a Filosofia e, aparentemente,
ainda se orgulhem disso, não acho tão bom.
C.W. – Então a herança filosófica estabelece a diferença?
F.K. – Sim. Caso contrário não seria tão traduzido mundialmente. Agora já em nove ou
dez línguas. Disso já se pode ter um pouco de orgulho.
468 A utilização da expressão dark side of the moon como metáfora deriva da paixão de Kittler pelo álbum
de 1973 da banda Pink Floyd e é um motivo recorrente na sua obra. [N.T.]
206
ENTREVISTA A FRIEDRICH KITTLER
Por José Bragança de Miranda469
José Bragança de Miranda – Uma parte importante do seu trabalho trata a relação entre
cultura, literatura e tecnologia. Ocorreram mudanças neste domínio de estudos?
Friedrich Kittler – Acredito que, no tempo da Grécia Antiga, esta relação entre
tecnologia, física, ciência e matemática é absolutamente próxima e fundadora, mas na
Europa moderna esta relação entre tecnologia e cultura, para além das artes, começou a
ser de algum modo esquecida e é por isso que ainda tendemos a opôr tecnologia
enquanto uma parte técnica e física do mundo contra outra parte do mundo que
chamamos humanística, literária ou artística. A emergência dos computadores é um
evento histórico que provou empiricamente que a capacidade de processar componentes
textuais, ópticos ou acústicos difere das culturas anteriores de escrita e cálculo. E, do
meu ponto de vista, não existe acontecimento catastrófico ou pessimista na cultura
europeia. Pelo contrário, sentado aqui na costa marítima, reflito sobre as possibilidades
muito limitadas da arte tradicional e sobre o modo como texto e poesia tiveram de lidar
com este evento fractal mais ou menos caótico das ondas marítimas. E apenas com o
advento dos computadores é que se tornou possível desenvolver um sentido mais lógico
do que pode ser feito, do que pode ser computado, do que pode ser simulado, do que
pode, neste sentido matemático ou cultural, ser compreendido. É verdade que, quando
as emoções humanas estão implicadas, os cientistas ainda deixarão muito a desejar de
uma ou outra forma, mas provavelmente os computadores não são ferramentas
inventadas pela humanidade para tornar as nossas vidas mais fáceis, mas sim
ferramentas inventadas pela natureza para se compreender a si própria.
J.B.M. – Não acredita portanto que existem duas culturas, uma científica e uma literária.
F.K. – Foi um inglês que inventou esta oposição de duas culturas. Os americanos
provavelmente não teriam pensado sobre esta oposição ou hiato entre culturas.
469 Entrevista acessível em http://www.interact.com.pt/memory/interact7/entrev/entrev1.html a 02/2012.
As referências ao mar devem-se ao facto de a entrevista ter sido realizada, literalmente, à beira-mar.
Entrevista realizada em 2006[N.T.]
207
J.B.M. - Pensa que existem muitas diferenças entre a invenção da escrita - um tipo de
invenção técnica – e a invenção da computação – uma espécie de codificação, como é o
caso da linguagem digital… Pensa existir continuidade ou, antes, uma mudança radical
entre estas duas invenções?
F.K. – Existe, num primeiro olhar, continuidade. A escrita alfabética, inventada pela
época de 800 a.C. (na Grécia), foi a primeira a ter não apenas significação vocal e
vogais mas também significação numérica. Alpha era ao mesmo tempo A e um e beta
era dois ao mesmo tempo que era B e é precisamente esta coincidência entre letras e
números a origem de uma cultura que pode ser digitalizada. Sem esta ideia grega que os
números são letras e as letras são números não poderíamos ter chegado às máquinas
computacionais, que surgiram a partir da matemática. O aspecto físico da máquina, nos
primeiros dez anos, era muito menos importante que a sua dimensão matemática. E
portanto não deveríamos recear estas máquinas. No fim de contas, o alfabeto era
entendido enquanto auxílio à humanidade470
, porque articulava o que éramos incapazes
de articular antes. Mas hoje em dia, a velocidade e a complexidade e o aspecto inumano
do que ocorre dentro dos computadores é difícil de explicar a pessoas que não são
técnicos ou programadores computacionais. Neste sentido, a humanidade não é
auxiliada.
J.B.M. – Os críticos mais prementes tendem a concentrar-se nas questões hermenêuticas
– no significado enquanto algo que concerne a antiga tecnologia de escrita, significado
enquanto central para a organização textual – e agora muitos temem que não exista
significado, que apenas existam procedimentos mecânicos ou computacionais, que o
significado tenha desaparecido. O que pensa desta crítica hermenêutica?
F.K. – Infelizmente, não é uma questão que eu me atreveria a responder. Provavelmente
existem formas hermenêuticas, não apenas no mundo mas nos nossos corações, que são
difíceis de traduzir em algoritmos e, enquanto formos capazes de proceder sem este tipo
de semântica, melhor. Vamos ver quão longe chegamos na utilização de pura síntaxe,
sem qualquer semântica. Nos casos em que se revelar impossível, certamente teremos
de voltar à hermenêutica. As coisas foram supreendentemente longe sem semântica. No
tempo de Chomsky era suposto a análise automática da linguagem atravessar todos
estes sistemas embutidos da sintaxe e gramática de Chomsky. Mas isto seria, em termos
470 Entenda-se por humanidade [mankind] o conjunto de seres humanos, já que para Kittler, o conceito do
chamado humano [sogennante Mensch] é apenas um efeito mediático. [N.T.]
208
computacionais, demasiadamente próximo à linguagem humana e imensamente caro.
Hoje em dia, os investigadores tomam o rumo absolutamente contrário e limitam-se a
inventar estatísticas. Em termos computacionais, para compreender o que digo,
traduzindo, por exemplo, o aqui e agora para algum output computacional, não existe
hermenêutica envolvida, apenas as probabilidades estatísticas computacionais dos meus
fonemas e morfemas.
J.B.M. – Creio que algumas pessoas nos tentam impôr a ideia de interactividade como
uma espécie de nova ideologia. De acordo com as teses dessas pessoas, estamos a viver
num novo mundo de liberdade interactiva, sem autoritarismo, onde todas as assimetrias
cessam e todas os hiatos se encerram. Este novo mundo exige um corpo conectado.
Pensa que estamos perante um novo princípio ou, melhor, um fim da nossa cultura
assimétrica?
F.K. - Não estou muito imerso nessa discussão mas, não obstante, acredito que devemos
distinguir entre a abordagem hegeliana de esquerda a esta questão da conectividade
como uma nova espécie de democracia básica e fonte aberta [open source] e por aí em
diante… e isto acho pelo menos agradável e empático. Por outro lado existe a posição
de Alvin Toffler e outros, que ligam os liberais e, digamo-lo, a estrutura capitalista da
sociedade americana, a esta nova conectividade constituída pela Internet, imaginando
uma espécie de triunfo da imaterialidade e do espírito sobre o materialismo e Karl Marx
e por aí em diante, como está escrito no Cyber Manifesto. Não sou muito apologista
desta posição. Mas quer na esquerda quer na direita, a conectividade é concebida como
este uso optimista do mundo enquanto conectividade ou interligação entre aqueles que
comunicam, sem nunca colocar esse sistema em questão.
Mas o problema é que os sujeitos da conectividade são os próprios
computadores: nós somos apenas números ou utilizadores múltiplos sentados como
clientes passivos, enquanto as máquinas comunicam umas com as outras. Qualquer
utilizador final do Microsoft Windows XP comunica com o grande servidor em
Redwood, Washington, dando involuntariamente os seus segredos mais pessoais à
Microsoft e outras companhias interligadas, conectadas, para fins de publicidade e
outros.
E este é o lado negativo das coisas, mas o lado positivo é que os computadores
não estão mais sós, como nos velhos tempos da computação pessoal, quando tínhamos
computadores de mesa solitários e pesados; tornaram-se tão interligados e conectados,
209
em termos mundiais, que o seu poder computacional cresce exponencialmente.
Qualquer problema sério em matemática é hoje em dia resolvido por esta conectividade.
Pela noite posso ligar o meu computador à questão da existência ou inexistência de
inteligência extraterreste e o meu computador contribuirá para responder à questão
daqui a dez anos porque dezenas de milhares de computadores estão conectados e
calculam respostas a partir do espectro electromagnético e, certamente, alguma
inteligência aparecerá ou não. E a transferência de software pelo mundo torna-se tão
mais fácil em comparação ao tempo em que se tinha de ir à loja e se compravam
disquetes [floppy disks], que passado dois dias se tornavam elásticas [floppy] e podiam
ser deitadas fora. E agora descarrega-se o seu código-fonte, graças a Deus, o seu
próprio código fonte e não apenas o seu binário na net, podendo-se olhar para o código-
fonte e dizer «ah, ali está um bug no meu código-fonte», dizer aos programadores que o
desenvolvem e eles mudam-no em 24 horas. Isso é, no meu ponto de vista,
conectividade.
J.B.M – Creio que esta ideologia considera a dialética do mestre-escravo terminada,
graças à tecnologia.
F.K. – Os mestres chamam-se hoje servidores e os escravos chamam-se clientes: é o
mesmo conceito. Os servidores têm privilégios que os clientes não têm. As firewalls,
por exemplo, demonstram que os servidores permanecem servidores e os clientes
permanecem clientes471
. A dialética deveria desejadamente funcionar mais mas não
funciona…
J.B.M. – Última pergunta. Sobre a sua caracterização da música e matemática (sei que
faz parte de um novo instituto na Universidade Humboldt, em Berlim): para onde
aponta com este novo desenvolvimento do seu pensamento?
F.K. – Bem, esta é uma questão séria… Na academia alemã, duas grandes questões
foram tratadas durante os últimos vinte anos – texto e imagem e texto e oralidade. Isto
está bem mas é um pouco narcíssico do meu ponto de vista. Os textos espelham-se nas
imagens e o inverso também se passa e o mesmo ocorre com a oralidade. Neste novo
projecto, penso que se tomarmos em consideração a tripla relação entre textos, imagens
e números (isto é, matemática) poderemos alcançar uma visão aceitável da cultura
471 Sobre o tema das Firewalls, cf. . KITTLER, Friedrich, «Protected Mode» in Draculas Vermächtnis –
Technische Schriften, Edição Reclam Verlag Leipzg, 1993, pp. 208-224. [N.T.]
210
europeia na medida em que apenas esta cultura, através da sua explosão e expansão para
a América, Ásia, e por aí em diante, com o seu provável desgaste, inventou a
Modernidade. É difícil explicar o triunfo dos navegadores portugueses em termos de
Botticelli ou mesmo Dante. É mais fácil explicar o seu sucesso através de pessoas que
inventaram mapas, geografia, astronomia e astrolábios e, por exemplo, todo esse
conhecimento árabe, judaico e cristão da idade média. O nosso medo proverbial perante
a matemática tornou-a uma força oculta na cultura europeia. A minha preocupação
pessoal reside, por mais paradoxal que seja, não em imagens, não em textos, não em
números, mas nos sons, porque os sons são tão impossíveis de reter, registar, calcular e
enumerar. Acho a música tão convincente e diferente… outro lado do mundo que coloca
tantos problemas diferentes à matemática e escrita. Portanto tento descobrir, por um
lado, como é que a música necessitou de desenvolvimentos matemáticos, desde os
tempos gregos, e como é que os desenvolvimentos matemáticos, por outro lado,
tornaram possível novas, mais extremas e maravilhosas formas de música. E, sentado à
beira mar, penso em Ulisses e nas sereias e creio que tudo começou com essas músicas.
J.B.M. – Lembro-me da sua análise do Som Primordial [Ur-Geräusch] (1919) de Rilke
e dos seus comentários sobre a fragmentação da percepção. Acredita que os seus novos
estudos sobre o som recomporão as nossas noções de média e percepção?
F.K. – Espero que sim. Não tenho a certeza. Existe uma crença algo mística em mim de
que, no fim da minha vida, uma nova síntese será possível, exequível para mim, porque
depois de ter escrito tantos livros e ter falado em tantas lições e tantas conferências por
esse mundo fora fica-se com a sensação que se repete cada vez mais; isto deve ser um
segundo começo. É por isso que começo com Ulisses.
211
DAS REDES DISCURSIVAS À MATEMÁTICA CULTURAL472*
Uma entrevista com Friedrich Kittler
Por John Armitage**
Redes discursivas
John Armitage: Professor Kittler, gostaria de começar esta entrevista por questioná-lo
sobre os seus interesses intelectuais de juventude. Eram exclusivamente respeitantes à
Filosofia Alemã? Como é que, por exemplo, fez a sua transição para a academia?
Friedrich A. Kittler: Os meus interesses intelectuais de juventude não estavam
completamente envolvidos com a Filosofia Alemã. Contudo, pode dizer-se que uma das
principais razões pelas quais frequentei a Universidade de Freibug foi a minha leitura
dos trabalhos de Martin Heidegger e das suas ligações com Freiburg. Quanto à minha
transição para a Academia, é talvez importante que os seus leitores saibam que nasci na
Alemanha Oriental em 1943 e que ainda tenho algumas memórias turvas da Segunda
Guerra Mundial e, posteriormente, de quando o Exército Vermelho estava por toda a
parte. E, certamente, na Alemanha Oriental, durante os anos quarenta e cinquenta, era
muito difícil obter uma educação universitária sob aquele governo em particular,
especialmente, como no meu caso, quando os pais eram socialmente aversos ao regime.
Foi por isso que os meus pais deixaram a Alemanha Oriental em 1958, para conceder-
me a oportunidade de ter a melhor educação universitária alemã possível. Para mais,
esta experiência explica provavelmente o porquê de eu ser um estudante tão empenhado
na universidade e o porquê disto me ter separado até certo ponto dos meus muitos
amigos, que simplesmente iam lá com base no entendimento de que era seu direito fazê-
lo, ou como uma espécie de hobby. Pois, ao contrário deles, eu estava realmente
comprometido com a universidade. Estou portanto grato ao meu pai não apenas pelo
facto de ter começado a minha vida na Alemanha Oriental, mas também porque pude
entrar no sistema universitário da Alemanha Ocidental.
472 KITTLER, Friedrich, «From Discourse Networks to Cultural Mathematics», entrevista por John
Armitage, in Culture & Society, 2006 (SAGE, Londres, Thousand Oaks e Nova Deli), Vol.23 (7-8): 17-
38. **Professor de Média e Comunicação (Media and Communication) na Universidade de Northumbria, em Inglaterra. É editor associado da revista Theory, Culture& Society e co-editor, com Ryan Bishop e Douglas Kellner, da revista Cultural Politics, da editora Berg.
212
J.A: Como descreveria o principal impulso do seu trabalho filosófico na história e
crítica literária de hoje?
FK: Nos anos mais recentes dei por mim a pensar em mim próprio como um filósofo
que, não obstante, está entusiasticamente interessado na realidade das coisas, em
oposição a, supondo, um filósofo que reflecte sobre reflexões. Quanto aos meus
interesses sobre crítica e história literária, particularmente na minha juventude,
começaram como um modo de contornar a dificuldade de dizer coisas em nome próprio.
Isto porque, na Alemanha dos anos setenta e oitenta, tinha de se fingir que o que se
escrevia tinha sido anotado nalgum livro que se tinha consultado. Portanto, o meu
trabalho em crítica literária era não apenas um pretexto mas também uma necessidade
histórica que, de qualquer forma, me permitia
falar sobre poetas alemães ao mesmo tempo que dizia coisas que queria declarar em
nome próprio, mas que não me atrevia a formular. Pode perguntar porque é que era tão
difícil dizer coisas em nome próprio. Bom, excluindo o facto de que sou uma pessoa
tímida, era muito difícil naquela época, na Alemanha, ir além do estudo da dialéctica e
da reflexividade do eu. Consequentemente, tinha de encobrir tudo o que queria dizer
com boas histórias sobre jovens poetas alemães. Por outras palavras, o meu trabalho em
história e crítica literária começou como uma tentativa de encontrar um modo de falar
sobre relações transitivas entre sujeitos, em vez de relações reflexivas do próprio,
relações constituídas por, por exemplo, fascínio ou amor. Como diz Jacques Lacan, nos
seus anos tardios: li grandes filósofos unicamente pela sua teoria do amor. Foi portanto
este o princípio do meu interesse pela filosofia, pela história e crítica literária.
JA: Os seus escritos, pelo menos no mundo anglófono, estão principalmente associados
com a sua concepção de Discourse Networks 1800/1900 (1990)473
. O que são redes
discursivas e porque é que são tão importantes?
FA: O conceito de redes discursivas emergiu a partir do meu trabalho com pessoas da
Universidade de Stanford e da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Elas
criaram o termo em resposta ao problema da tradução do título original do livro alemão,
um tanto idiossincrático, que era Aufschreibesysteme474
1800/1900. Tomei a noção de
Aufschreibesysteme de um livro muito famoso escrito por um alemão louco, ex-
funcionário público, Daniel Paul Schreber (1955 [1903]). Ao fazer apelo à noção de
Aufschreibesysteme, essa pessoa visava insinuar que tudo o que fazia e dizia dentro do
asilo era escrito ou registado imediatamente e que não havia nada que alguém pudesse
fazer para evitar ser registado, por vezes por anjos bons e ocasionalmente por anjos
maus. Naturalmente, os meus orientadores e títulares universitários sabiam do texto do
louco e do seu contexto e, também, que eu tinha escrito o livro para obter um cargo
473 Discourse Networks (1990), não traduzido para português, à semelhança de toda a restante obra do
autor. [N.T]. 474 A ambiguidade da palavra Aufschreibung justifica a dificuldade de tradução de Aufschreibesysteme
(sistemas de Aufschreibung) . A significação da palavra oscila entre registo, escrito, descrição, prescrição,
subscrição, etc. Assim Aufschreibesysteme seria algo como sistemas de inscrição, sistemas de anotação.
[N.T.]
214
universitário. A minha escolha de Aufschreibesysteme 1800/1900 para título do meu
livro foi então considerada pouco usual para a época, se não um pouco provocadora, já
que retirar o título de uma prova de aptidão do texto de um louco não era coisa que se
fizesse.
A ideia por detrás das redes discursivas era muito simples na época em que a
desenvolvi, apesar de me ter sido pedido mais tarde para escrever um posfácio
metodológico a Discourse Networks 1800/1900 de modo a elucidar a sua importância.
O conceito de redes discursivas é essencialmente uma aplicação livre da teoria da
informação de Claude E.Shannon (Weaver and Shannon, 1949). Daí que a teoria de
Shannon, fundada em fonte de informação, canal de informação e receptor de
informação, isto é, em inputs informacionais, transmissão e outputs, é o modelo de
engenharia ou o modelo técnico por detrás da minha experimentação literária. Contudo,
Discourse Networks 1800/1900 é também profundamente influenciado por Michel
Foucault. Mas, na altura em que estava a escrever o meu livro, e não penso que isto seja
um erro, ocorreu-me que o que está errado em As palavras e as coisas (1966)475
, é que
se limita a descrever a produção de discursos. Não existem, por exemplo, descrições no
livro de Foucault sobre a fonte destes discursos, os canais ou os receptores do discurso
na forma de, digamos, leitores ou consumidores. A minha ideia era então muito simples.
Apenas pensei sobre a fonte de duas redes discursivas, e não sobre uma rede discursiva
particular na história. Como resultado, o meu trabalho focou-se inicialmente em 1800,
porque me parecia que, a respeito de uma certa ideia da mãe enquanto educadora
primeira, uma certa ideia da boca da mãe, se produzia, em 1800, um reexame do poder
maternal e também a uma transformação daquilo que eu chamei «a materialidade da fala
aculturante». Os novos tipos de livros que começaram a emergir e que confiavam às
mães, inicialmente, a educação física e mental dos seus filhos e, posteriormente, a sua
alfabetização, são provas desta transformação. Esta inserção das mães na fonte do
discurso era o pré-requisito para a produção de poesia clássica, com a mãe como
primeiro Outro que teria que ser considerado pelos filósofos da Hermenêutica Poética.
Já a respeito de 1900, pareceu-me que a fonte da rede discursiva havia sido criada
arbitrariamente, como uma espécie de fonte ruído. Consequentemente, o primeiro
problema era filtrar sinais e ruído. Obviamente, haveria também que perguntar a que
475 Em inglês o título escolhido foi The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences
(London: Pantheon Books, 1970). Edição Portuguesa: As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das
Ciências Humanas, Lisboa: Ed. 70, 2002.
215
pessoas importa este tipo de rede discursiva. Mas tenho que admitir que tive
dificuldades em responder a esta questão em termos de construção de algum tipo de fase
de consumo, no fim do processo. Então, desesperado como estava, tomei alguns
escritores e poetas desesperados da viragem do século XIX e XX, tais como Friedrich
Nietzsche e Christian Morgenstern, como exemplos de consumidores da rede discursiva
ou, talvez mais acertadamente, abusadores da rede discursiva.
JA: Seria correcto dizer, portanto, que a filosofia pós-estruturalista de Foucault e
talvez a fenomenologia de Heidegger são as duas principais influências na sua própria
história e crítica literária em Discourse Networks 1800/1900 e noutros escritos?
FK: Foucault foi muito influente na minha escrita porque era um filósofo que se
aventurava para além do trabalho convencional da Filosofia no modo como comentava
outros filósofos; o mesmo sucede na obra de Jacques Derrida. Além do mais, Foucault
tinha lido todo o tipo de autores interessantes em sânscrito, da psiquiatria e da
tecnologia. E isto foi muito importante para o meu trabalho porque me ajudou a ter uma
compreensão da realidade. Mas antes de ter descoberto Foucault, e acho que estive entre
os primeiros na Alemanha a fazê-lo, devo também mencionar a influência de Jacques
Lacan, que permanece uma inspiração significativa e sobre a qual podemos falar mais
tarde. Para mim, a importância de Foucault e de Lacan reside no facto que os seus
escritos são duas formas possíveis de retornar a Heidegger sem o nomear. É preciso
lembrar que em Freiburg, aquela cidade universitária fabulosa onde cresci e onde dei os
meus primeiros passos académicos, existia uma série de pessoas ligeiramente mais
velhas do que, que se dividiam entre aquelas que odiavam Heidegger ou aquelas que o
adoravam demasiadamente. Efectivamente, muitos daqueles que adoravam Heidegger
demasiadamente nunca saíram da sua sombra intelectual, na medida em que
simplesmente imitavam a sua linguagem e liam e escreviam livros «heideggerianos». A
minha ideia era manter uma distância crítica relativamente a Heidegger para poder
seguir o meu próprio caminho. Isto era em parte necessário porque existiam pessoas
(que eu conhecia), pessoas que Heidegger (que se tinha retirado na altura, mas cuja
presença e influência eram ubíquas), tinha deixado desfeitas, talvez intencionalmente.
Por exemplo, conheci realmente pessoas que, depois de uma entrevista ou até uma
conversa de apenas uma hora com Heidegger, nunca terminaram os seus doutoramentos,
já que as perguntas e respostas dele eram tão brilhantes.
216
Para além disto, uma diferença entre Heidegger e Foucault é a de que Foucault
tem pouco a dizer sobre a questão da técnica. Efectivamente, Foucault chegou até a
dizer o seguinte, na sua conferência final de aniversário, uma conferência a que não
assisti mas que obtive na forma de uma transcrição dactilografada. Nessa conferência,
Foucault comenta que Heidegger tinha lidado brilhantemente com a relação do homem
com o canto, o canto na história do Ser, na Europa, e tinha também especialmente
considerando a recente tecnologização dessa relação que prossegue hoje em dia. Em
conformidade e correctamente, na minha opinião, Foucault (1997, pp. 223-251)
começou a voltar-se para os problemas associados com as «tecnologias de si». Contudo,
é importante relembrar que a questão surgiu nessa relação com Heidegger. A
conferência de Foucault é também interessante, mesmo que cronologicamente inexacta,
porque enfatiza que, enquanto a invenção do computador pessoal (PC) é um importante
desenvolvimento contemporâneo, não devemos ignorar a invenção do aide-mémoire sob
a forma de uma placa de cera, que foi uma descoberta igualmente significativa em
tempos antigos. Quanto às origens dos meus próprios escritos, contrariamente a alguns
filósofos, devem-se ao facto de que não consigo escrever artigos puramente teóricos,
isto é, artigos sem nenhum conteúdo histórico. Preciso de ser capaz de comunicar com
as minhas próprias ideias adormecidas, com a minha intuição, ou ter algo para o qual
olhar ou algum problema a considerar.
JA: Até que ponto é que a investigação que subjaz a Discourse Networks 1800/1900 foi
um programa de investigação «inocente»? Ou foi explicitamente estabelecido para
desafiar o papel predominante da Hermenêutica na Alemanha, com o intuito de instituir
uma espécie de Crítica Pós-hermenêutica?
FK: O programa de investigação não só não era inocente como era um manifesto contra
a interpretação e contra aqueles que tentaram persuadir-me do valor da Hermenêutica,
mas que falharam. Foi esta a razão pela qual me voltei para Foucault. Mas, no princípio,
o próprio Foucault apenas concebeu a análise discursiva como uma forma de minar, de
analisar famílias de sistemas e a história. Por isso, quando descobriu que a análise
discursiva podia ser usada politicamente, tal como, por exemplo, na descrição do
sistema universitário, isso levantou receios. Este era também todo o meu problema em
Freiburg na altura. Mas quando escrevi Discourse Networks 1800/1900, nem sequer
reconheci que era um livro agressivo. Soube-o depois, quando as pessoas mo disseram.
217
A minha intenção explícita era escrever um livro de baixo para cima, e não de cima para
baixo. Por exemplo, comecei com um conjunto de citações que eu tinha dactilografado.
Depois comentei sobre as citações antes de juntar as citações e os meus comentários de
modo a produzir uma história corrente do todo, utilizando o modelo de Shannon.
Contudo, a ideia por detrás de Discourse Networks 1800/1900, que foi perturbadora
para algumas pessoas, foi a de que eu fui o primeiro leitor deste material a tomar tudo
literalmente. Não tinha de todo interesse em expôr ou utilizar metáforas. Nem desejava
prosseguir um estudo ideológico ora contra ora a favor dos poetas alemães, quer fossem
católicos, ateus, ou românticos. Estava tão farto de ideologia. É e tem sido minha crença
que o meu trabalho não está preocupado com interpretação porque não sou eu que estou
a falar ou escrever mas sim os próprios textos. Por exemplo, todo o académico, em
alguma altura, tem de produzir um artigo para uma dada conferência, e acontece às
vezes não se saber bem o que dizer. No caso do amor e da felicidade, e em épocas
diferentes da minha vida, tive sobre estes tópicos algumas ideias e essas ideias podem
ser objectivadas e podem ser quase provadas, mesmo no campo profuso da literatura.
Posso explicá-lo através do caso do poeta Friedrich von Schiller, no qual eu fiz
realmente várias descobertas, a respeito das quais as pessoas da ala Hermenêutica mais
conservadora me disseram posteriormente: «É muito estranho que tenha demorado 200
anos a descobrirem-se estas coisas em Schiller. Mas você fê-lo. Porquê?» Eu disse-lhes
que não equacionei fazer estas descobertas, já que é impossível encetar uma excursão
neste sentido. Como Picasso sempre disse, tendo sido citado por Lacan, não é possível
procurar algo. Ou está lá ou não está. Nesse sentido só se pode encontrá-lo. Mas, em
mim, era forte a suspeição que, fora do texto, existia alguma relação com o texto
interior, com o o conteúdo interior do texto, alguma conexão forte, distante, objectiva e
histórica. No caso de Schiller, por exemplo, pude mostrar que era alguém bastante
diferente da sua imagem tradicional.
JA: Uma componente importante do seu trabalho teórico envolve uma síntese e
desenvolvimento de textos pós-estruturalistas, não simplesmente de Foucault mas
também de Lacan e Derrida. Quais são as conexões entre as suas próprias
preocupações filosóficas e aquelas dos psicanalistas pós-estruturalistas como Lacan ou
filosófos e teóricos literários como Derrida?
FK: Para mim, a psicanálise lacaniana foi uma saída para a psicanálise freudiana.
Porém, para começar, a leitura de Lacan causou discussões entre a minha mulher e eu,
218
já que ela desejava manter-se profissionalmente fiel a Freud. Mas, tal como eu, ela era
também fascinada pelo trabalho de Lacan e especialmente depois de ele nos ter visitado
uma vez por um fim-de-semana (Kittler, 2004, pp. 119-26). Isto proporcionou-se em
grande parte porque Lacan queria ser influente na Alemanha, no país da língua materna
de Freud. Contudo, quando Lacan viu quão novos e quão parcos em influência nós
eramos nessa época nos círculos intelectuais alemães, ficou desapontadíssimo. Mesmo
assim, fizemos o nosso melhor com amigos em Berlim para promover os escritos de
Lacan e durante algum tempo trabalhámos juntos com ele contra o pensamento
hermenêutico na Alemanha, o que atribuiu ao nosso trabalho uma dimensão política.
Hoje em dia, com certeza, é difícil captar o quão esmagadoramente influente foi o
pensamento hermenêutico dos anos setenta e oitenta. Nesse contexto os escritos de
Lacan eram, para mim, uma importante saída das questões da subjectividade e auto-
reflexão. É que o seu trabalho não posicionava o ego no coração das coisas e os pais,
por sua vez, como imagens periféricas, como na psicanálise freudiana. Ao invés, Lacan
olhava para os pais, o que eles dizem aos seus filhos e quão eficiente os discursos
parentais eram sobre a sua descendência. E foi este tipo de perspectiva lacaniana que
tomou lugar central tanto no meu doutoramento (Kittler, 1977) como no meu trabalho
subsequente sobre redes discursivas. Por exemplo, na pesquisa para Discourse Networks
1800/1900, procurei um poeta alemão que tinha tido experiência pessoal concreta de
sanatórios. Além do mais, não só encontrei tal poeta mas também os diários que a sua
mãe escreveu sobre ele quando era uma criança muito nova e que já possuíam um
temperamento poético. Também pude corroborar estas experiências e diários, já que a
família era muito conhecida e influente na cidade de Zurique. Então era realmente
possível produzir uma leitura psicanalítica lacaniana do trabalho do poeta e dos
discursos dos seus pais, discursos que estavam tão mal editados que ninguém os tinha
lido, embora os tenha achado cativantes. Mas claro que a posição de Lacan hoje em dia
no sistema universitário alemão foi de algum modo manchada pelos seus supostos
amigos e relações francesas, publicando colecções do seu trabalho, politicamente
orientadas e de má qualidade.
Quanto a Derrida, também ele estava em desespero total pelo declínio do
impacto académico de Lacan, mas também não havia modo de ele o combater. Os
franceses parecem ter criado um negócio global a partir de pessoas sinceras, tais como
Lacan e Derrida. E por isso, infelizmente, que o Pós-estruturalismo se tornou, na minha
219
opinião, um tipo de indústria mundial. Apesar disto, eu e Derrida éramos muito
próximos um do outro e ele foi muito prestável no início da minha carreira quando tive
problemas na Alemanha com a publicação de Discourse Networks 1800/1900. Para
mais, tivemos uma longa permuta sobre a história dos direitos de autor476
, já que tanto
eu como Derrida escrevemos contra a ideia de propriedade intelectual, uma questão que
eu creio que apenas se tornará mais dramática na União Europeia nos próximos anos.
Derrida estava, por exemplo, bastante interessado nos meus escritos sobre os efeitos
discursivos da propriedade intelectual e na minha insistência de que não só se trata de
uma completa invenção, como de facto é, mas, mais crucialmente ainda, de uma
invenção muito recente na história europeia. Com efeito, um amigo meu escreveu um
livro desconhecido e maravilhoso sobre propriedade intelectual e Derrida auxiliou-nos
em grandes partes desse livro.
Não obstante, apesar de Derrida e eu concordarmos amplamente no campo da
história contemporânea literária e filosófica, eu descobri que quando se tratava de
discutir história antiga grega, Derrida não tinha de todo ideia dos reais contextos
históricos ou filosóficos que considerava nos seus escritos. É por esta razão que tenho
reservas em relação às interpretações históricas de filósofos como Platão. Já que,
contrariamente a ele, eu tive uma formação bem fundada na história. É este sentido
profundo de história que por vezes está em falha no caso de Derrida e que não está em
falha no caso de Foucault. Na famosa batalha entre Derrida e Foucault sobre Descartes,
tive então de estar do lado de Foucault, já que ele era o historiador e Derrida apenas um
intérprete. Na minha avaliação, Derrida tinha pouca consciência do tempo e do espaço.
Por exemplo, sempre me surpreendeu o quão diferentes as pessoas podem ser e viver no
decurso da história, nas profundezas do tempo e do espaço. Digamos, por exemplo, que
se viaja ao Sri Lanka e se conhece uma menina de dez anos numa estrada do campo.
Com certeza tenta-se falar um tipo de linguagem gestual com ela, já que nenhum dos
participantes é fluente na língua do outro. Mas o que se sente em todos os momentos é
uma diferença total de cultura não simplesmente no tempo mas também no espaço. E,
para mim, Derrida nunca compreende isto de um modo suficientemente forte.
Efectivamente, ele escreve como se pudéssemos falar com Platão, como se ele estivesse
diante de nós. No entanto, a verdade é que não podemos fazê-lo. Por conseguinte, o
problema é que Derrida se embrenha por vezes tão profundamente nos textos que
476 No original, copyright [N.T]
220
escreve que falha o ponto crucial. É o que acontece, por exemplo, no seu longo
comentário sobre Rousseau, sobre a voz, em Gramatologia (Derrida, 1967) onde falha
na identificação da coisa mais importante, que é a ligação que Rousseau estabelece entre
a voz e a melodia.
JA: Poderíamos dizer, no caso dos seus próprios textos, que o elemento mais crucial é o
facto de eles assumirem a exterioridade, um «pensar o fora» reactivamente ao qual o
objecto de estudo não é o que o texto significa, mas por que meios o texto se inscreve?
Seria correcto retratar esta perspectiva como uma espécie de «análise de inscrições»
focada em materiais e marcas, mecanismos e média técnicos?
FK: Deixe-me explicar. Nos meus escritos, uma das ideias mais importantes é que não
existem tais coisas como pensamentos. Existem apenas palavras. A literatura não é uma
ilha mas perfila-se em relação com o campo exterior dos média técnicos. E, portanto, a
minha pesquisa conduziu-me tanto para além da, como de volta à, literatura. É apenas
na minha existência intelectual tardia, por exemplo, que eu retornei ao estudo das odes
gregas e de Homero em particular. Mas o meu objectivo é considerar como o
pensamento literário e a poesia começaram na Europa, já que para mim esta é uma
questão importante hoje em dia. O que é que faz, por exemplo, de Homero, um caso
muito mais belo do que qualquer outro poeta no mundo? Esta é uma questão que me
preocupa e que ainda tem de ser respondida. Mas para voltar à sua pergunta, eu não sou
certamente contra o significado, todos temos de lidar com o significado. Contudo, se
tomarmos uma pista de um filósofo como Gottlob Frege, podemos começar a distinguir
entre significado e significante. Pois Frege defendia que a estrela da manhã e a estrela
da tarde têm um significado diferente mas o mesmo significante. Gostei desta ilustração
de Frege, de 1905, ou pelo menos gostei até descobrir que foi nem mais nem menos
Pitágoras que fez a identificação da estrela da manhã e a estrela da tarde como sendo a
mesma estrela. Em todo o caso, se aceitarmos esta imagem da estrela literalmente,
podemos dizer que o aspecto externo é a estrela da manhã e o aspecto interno é a estrela
da tarde. Tomemos o caso do drama inicial de Schiller, que eu decifrei. Não é
fundamental que Schiller tenha nascido num lugar particular, perto de Estugarda, e
Johnann Wolfgang von Goethe não? Ou que Schiller tenha sido educado numa escola
de elite fundada por um príncipe? Estas coisas estão inscritas nos textos de Schiller.
Mas ninguém antes de mim fez notar estes factos (Kittler, 1984, pp. 241-73). Contudo, é
221
claro que Schiller foi produzido por meio da instituição que foi a sua escola e os seus
professores. Pense na nossa própria carreira académica ou escolar [a de Kittler ou a de
Armitage] e no modo como ambos fomos produzidos pelas nossas escolas, pelas nossas
universidades e pelos nossos professores. Somos portanto o efeito desses discursos
externos ou exteriores. Isto não significa que toda a gente concorde com a minha
perspectiva. Por exemplo, quando recebi um convite para participar numa grande
conferência em Berlim há alguns anos, um crítico literário extremamente famoso ficou
pessoalmente muito zangado comigo por eu declarar que o alfabeto nos é ensinado
literalmente através de uma espécie de violência estrutural. Mas não consigo vê-lo de
outro modo. De que outro modo teria eu aprendido o alfabeto? Certamente não o teria
aprendido por meu próprio convénio. Efectivamente, sem ser sujeito a esta violência
estrutural, ainda seria uma criança de cinco anos.
JA: Críticos das Discourse Networks 1800/1900 podem dizer que a ideia de 1800/1900
implica uma espécie de pensamento binário. Porque existem apenas duas redes
discursivas e não muitas?
FK: Na realidade, na altura em que estava a escrever Discourse Networks 1800/1900,
tinha um conhecimento muito limitado dos materiais com os quais estava a trabalhar.
Mas desde aí tornei-me muito mais familiarizado com eles. Na verdade, descobri a
possibilidade de desenvolvimento de talvez centenas de redes discursivas. Por exemplo,
e tomando uma interpretação totalmente interna dos textos, tenho estudado desde o ano
passado alguns artigos escritos por alunos da Grécia Antiga, nos quais tropecei. E
analisei estes artigos exactamente do mesmo modo que examinei Schiller e outros em
Discourse Networks 1800/1900. O resultado final foi que pude agora escrever outro
Discourse Networks 1800/1900, com base nestes artigos de alunos da Grécia Antiga e
nas suas relações com a Poética de Aristóteles. O aspecto interessante e importante
desta investigação é evidentemente que mais ninguém tinha investigado a Grécia Antiga
deste modo. Os eruditos da Grécia Antiga, por exemplo, não aplicam a minha
metodologia e não pensam nestes moldes. É contudo crucial para mim focar-me no
básico, no facto, por exemplo, de que Aristóteles teve de aprender a ler e a escrever e
que tudo isto pesou na sua concepção sobre o que é uma palavra, o que é uma sílaba e o
que é uma frase. Por isso hoje em dia poderia utilizar, se quisesse, os artigos desses
alunos gregos juntamente com a Poética de Aristóteles para descrever a existência de
uma rede discursiva que estava a funcionar antes de 350 a.C.. E farei isto um dia. Mas
222
não posso imaginar a cultura e civilização da antiguidade a não ser que retenha os
factos, ou mesmo os artefactos, nas minhas mãos, artefactos e informação que podem
levar muito tempo a investigar ou a adquirir. Neste sentido, não estou interessado em
divinizar ou imaginar os factos da antiguidade, mas antes em provar coisas sobre ou em
relação a eles. Por outro lado, a sua crítica do meu trabalho é totalmente correcta. É que
Discourse Networks 1800/1900 é um texto um tanto idealizado e desarrumado. Foi em
parte produzido em nome de Foucault. O meu objectivo era deixar omitir toda a
segunda metade do século XIX de modo a poder distinguir entre dois períodos da
história literária. Todavia, Discourse Networks 1800/1900 foi um choque metodológico
tanto para os meus leitores como para os meus colegas. Para ser exacto, alguns dos
meus colegas estavam tão profundamente afundados numa espécie de narcisismo focado
na mais ínfima diferença entre, por exemplo, Goethe e Schiller, que acharam o meu
trabalho, a princípio, incompreensível.
No que concerne ao que chama o meu estilo de escrita declamatório, este
também é, penso, uma ressaca da minha admiração por Foucault. O meu estilo é,
portanto, bastante contrário ao estilo «Oxbridge» no qual os filósofos ingleses começam
sempre por colocar perguntas deles próprios e uns dos outros como, por exemplo: o que
estamos a fazer quando fazemos filosofia? Contrariamente ao meu, portanto, o seu estilo
é muito mais aquele de colegas polidos tomando chá uns com os outros numa faculdade
de Oxford. Portanto, como me disse anteriormente, quando escrevo por exemplo as
palavras inaugurais do Prefácio ao meu Gramophone, Film, Typewriter477
(Kittler,
1999, p. xxxix): os «media determinam a nossa situação» – faço-o em grande parte para
mim próprio. Isto é, tendo a exagerar de modo a conseguir transmitir a ideia, assim
como a induzir em mim próprio a coragem para escrever um livro! É assim, porque a
verdade é que acho terrivelmente difícil começar um livro, ao passo que acho
incrivelmente fácil começar um artigo. Mas começar um livro é tão loucamente difícil.
O Complexo Militar-industrial
JA: Para além de redes discursivas, outro tema central do seu trabalho teórico é
associado com o complexo militar-industrial. Porque é que a militarização da cultura e
da sociedade contemporâneas é tão importante para si?
477 Na versão inglesa, Gramophone, Film, Typewriter. Não está traduzido em português.[N.T.]
223
FK: Existem duas razões para o meu interesse no complexo militar-industrial. Primeiro,
desde o início da minha infância, a minha mãe levou-me com frequência ao local na
Alemanha de Leste onde os mísseis V2478
eram desenvolvidos durante a Segunda
Guerra Mundial. O que mais me fascinou a respeito destes locais e destes mísseis foi o
facto de ninguém dizer uma única palavra sobre eles. E, contudo, os vestígios deste
aspecto particular do complexo militar-industrial alemão, que estava localizado numa
ilha muito idílica e romântica de modo a não ser visto, estavam por toda a parte. Tive
portanto de encontrar a minha própria explicação para esta parte oculta da história. Mas
era difícil fazê-lo, porque era quase proibido falar do complexo militar-industrial na
Alemanha de Leste ou até falar sobre o lado alemão do esforço de guerra de um modo
mais geral, e especialmente sobre tudo o que tocasse o lado tecnológico da guerra.
Consequentemente, a minha primeira motivação foi tentar descobrir algo sobre o tempo
do qual eu vim. Por exemplo, apesar de viver numa pequena cidade muito distante, vi os
fogos sobre Dresden de noite, mesmo que esta seja hoje uma memória difusa para mim.
Apesar disso, na minha vida oficial enquanto escritor, a minha consciência do complexo
militar-industrial chegou muito tardiamente. De facto, a segunda razão para a minha
curiosidade sobre ele apenas surgiu depois de visitar a Califórnia e depois de ter sido
confrontado com o impressionante potentado do sistema computacional americano, um
tópico a que podemos dar seguimento mais tarde.
JA: Em « Media and Drugs in Pynchon’s Second World War»479
(Kittler, 1997, pp. 101-
16) e outros ensaios, a sua preocupação profunda com o complexo militar-industrial
parece coincidir frequentemente com os escritos sobre este tópico em Paul Virilio,
como no seu Guerra e Cinema480
(1984). De que modo é que a sua concepção de
complexo militar-industrial está em correspondência com a de Virilio (se é que isso
realmente sucede, ou que factores são igualmente significativos, ou mais significativos
para si?
FK: A ideia de investigar o complexo militar-industrial surgiu-me efectivamente como
uma onda de choque, na Califórnia, quando cheguei a Berkeley, para me encontrar com
várias pessoas que conhecia, embora, nessa fase, apenas através da troca de
478 Primeiros mísseis balísticos utilizados na Segunda Guerra Mundial. O seu nome oficial era A4
(Aggregat 4) mas a designação Vergeltungswaffe 2 (Arma de vingança/represália 2 – V2) tornou-se o seu
nome comum. [N.T]. 479 «Media and Drugs in Pynchon’s Second World War» (Kittler, 1997, pp. 101-16) 480 Edição brasileira: Guerra e Cinema, trad. Paulo Roberto Pires, Editora Página Aberta, São Paulo,
1993.
224
correspondência. E foi em Berkeley que uma das pessoas que lá conheci me presenteou
com uma cópia de O Arco-Íris da Gravidade481
, um livro que me impressionou
muitíssimo. Não apenas porque Pynchon discute os mísseis V2, mas também porque o
livro levantou uma espécie de véu negro dos meus olhos relativo às minhas próprias
memórias de infância dos mísseis V2. Foi portanto este acontecimento que me alertou
para a significação do complexo militar-industrial, para além da importância pessoal,
que havia tido na minha própria experiência. O livro de Pynchon é tão maravilhoso que
ainda volto a ele constantemente.
Quanto às relações entre o meu trabalho e o de Virilio, diria que estamos mais
ligados por amizade do que por influência singular ou mútua dos nossos escritos.
Contudo, pode-se dizer que Guerra e Cinema de Virilio influenciou o meu trabalho
tardio porque ele sabia, na altura em que o seu livro foi publicado, muito mais sobre a
história militar do cinema do que eu. Por outro lado, quando conheci Virilio pela
primeira vez, ele tinha 60 anos e eu estava nos meus quarenta. Além disso, estava a
escrever códigos-fonte computacionais dia e noite, uma forma de escrita sobre a qual
Virilio não tem a mínima ideia e da qual não teve qualquer experiência. Deste modo,
uma diferença fulcral entre Virilio e eu é a de que eu gosto de escrever apenas sobre
coisas que efectivamente levei a cabo, na prática. Mas, como sabe, Virilio não está
sozinho nisto, já que, para meu desespero, muitos dos teóricos dos média de hoje
escrevem extensivamente livros sobre computação ou sobre a Internet sem nenhum
experiência concreta de como estas coisas efectivamente funcionam.
Relativamente a outras questões, deixe-me ser franco e directo sobre a minha
compreensão do complexo militar-industrial. Primeiro, não sou um desses teóricos que
desprezam o Wehrmacht482
alemão e as suas operações militares. Tem havido, por
exemplo, muita prosa recentemente sobre a brutalidade da Wehrmacht na campanha
russa durante a Segunda Guerra Mundial e eu compreendo. Não obstante, é óbvio, não
apenas para Virilio, mas também para mim, que o verdadeiro quebra-cabeças da
Segunda Guerra Mundial é: como foi possível à Blitzkrieg483
de Hitler conquistar toda a
Europa, excepto a Finlândia, em dois anos? Isto, para mim, era um acontecimento
incrível. Aí, novamente, o que me interessa é que a Blitzkrieg de Hitler, a estratégia de
481 Edição Portuguesa (que surgiu já na altura em que a presente entrevista estava em revisão): O Arco-
Íris da Gravidade, trad. Jorge Pereirinha Pires, Ed. Bertrand, Lisboa, 2012.[N.T.] 482 Conjunto das forças armadas do III Reich. [N.T.] 483 Guerra-relâmpago [N.T.]
225
«guerra relâmpago», ainda está em uso. Muitas das vitórias recentes de Israel sobre os
seus vizinhos, por exemplo, são claramente baseadas no modelo do Wehrmacht em
termos da sua utilização surpresa e da velocidade. De facto, muito do mesmo pode ser
dito a respeito da guerra dos E.U.A. no Iraque em 2003 e a respeito do ataque de
«choque e temor» em Bagdade em particular. Tal como Donald Rumsfeld, o Secretário
de Estado para a Defesa dos E.U.A., coloca a questão, a tomada de assalto de Bagdade
foi a primeira Blitzkrieg na história que se fez na capital do inimigo. Claramente,
Rumsfeld estava a fazer alusão ao facto de, durante a Segunda Guerra Mundial, a
Wehrmacht alemã ter tomado Kiev e quase ter tomado Leninegrado, mas ter falhado na
tomada de Moscovo. Neste sentido, a Blitzkrieg não apenas deteve, como mantém, um
significado histórico.
JA: Virilio argumenta que a guerra é o seu «laboratório» e para si também,
aparentemente, é a «mãe de todas as tecnologias». Contudo, contrariamente a Virilio,
está profundamente preocupado com a guerra como mecanismo internacional de
transferência de tecnologia. Qual é, para si, o significado de, por exemplo, a
transferência de tecnologias como o programa de mísseis da Alemanha nazi para a
América depois da Segunda Guerra Mundial?
FK: O que lhe posso dizer é que acredito que a guerra é, pelo menos, a mãe de todas as
tecnologias da informação e de comunicações de alta velocidade. Tal como Pynchon,
estou muito interessado no tema da transferência de tecnologias. A questão fulcral para
mim é: que tecnologias ou que tipo de transferência tecnológica causou o Império
Americano contemporâneo? Obviamente, a primeira fonte do Império Americano é o
Império Britânico, que era originalmente compelido por um sistema de frota baseado no
carvão mas que, desde a Segunda Guerra Mundial, foi transformado num sistema
baseado no petróleo e fundado na força aérea. Naturalmente, a segunda fonte é a
Alemanha nazi, que deu grandes passos no desenvolvimento tecnológico, não apenas do
míssil V2 mas também do tanque. Por exemplo, em 1939, a Alemanha nazi foi o único
país no mundo que tinha um rádio em cada um dos tanques do seu exército. De outro
modo, a Blitzkrieg não teria simplesmente sido possível. Claramente, os americanos não
demoraram muito a adoptarem esta ideia e, no final de 1942, existiam rádios em tanques
dos E.U.A.. Mas, como discutimos anteriormente, a guerra também tem uma forma de
transferir a sua linguagem. É particularmente o caso do negócio de alta tecnologia de
hoje quando fala de «logística», «estratégia» e até «oficiais de serviço», todos termos
226
que surgem do complexo militar-industrial. É por esta e outras razões que o Presidente
dos E.U.A., Dwight Eisenhower falou brilhantemente, quando cunhou o termo
complexo militar-industrial, pois ele viu imediatamente conexões entre guerra,
tecnologia e comércio. Contudo, é difícil para nós europeus investigarmos história
militar e tecnocientífica americana, um tema que tem sido bem investigado pelos
próprios americanos, adquirindo até documentos desclassificados sobre a Segunda
Guerra Mundial, e por aí adiante, o que é muito difícil, como sei por experiência
própria. Tenho contudo que confessar que não posso estar em solo americano com
muito prazer. De facto, a minha antipatia para com a América é uma das principais
razões pelas quais eu evito frequentemente falar do complexo militar-industrial, já que
para mim, falar do diabo é falar com o diabo. Como me disse recentemente um bom
amigo, na Alemanha não devemos dizer nada sobre a guerra americana no Iraque ou
falar mais da aparentemente interminável necessidade de reformar a Alemanha. Não
devemos esquecer tudo isso, e não devemos também falar disso. Em vez disso, devemos
concentrar-nos em mudarmo-nos a nós próprios e em falar de outras coisas. Por isso
perguntei o que deveríamos então discutir em alternativa, e ele respondeu que devemos
falar sobre amor na Europa.
JA: Contudo, nos seus escritos sobre o complexo militar-industrial, não podemos deixar
de sentir que, ao mesmo tempo que parece desacreditar ou refutar o agenciamento
humano, está bastante convencido do agenciamento tecnológico, em particular do
agenciamento das tecnologias militares, que descreve como estando em guerra umas
com as outras. Seria correcto dizer que, ao conceder agenciamento a tecnologias
militares, está secretamente convencido da ideia de que elas serão talvez um dia
autónomas?
FK: Para mim, não é uma questão de simplesmente refutar o agenciamento humano.
Pelo contrário, penso que é uma boa ideia, e uma ideia que descobri ser verdadeira: a
ideia de que a história militar e a história dos média podem ser contadas, pelo menos
parcialmente, como a história de uma séria de passos de escalada onde nenhuma
inovação da tecnologia triunfa realmente sobre o seu precursor. Considere-se, por
exemplo, o caso da invenção de Hitler das unidades do exército Panzer, rápidas,
tecnologizadas, blindadas, que devastaram através das fortificações fronteiriças da
França, a linha Maginot, durante a Segunda Guerra Mundial. Outra forma de a abordar
seria tomar o exemplo do matemático inglês, o trabalho seminal sobre criptografia em
227
Bletchley Park contra tanques alemães e submarinos. Não conduziu este trabalho ao
próximo passo da escalada, a invenção do computador? Portanto, em ambas as
instâncias diria que a mudança da telegrafia para o rádio de tanque, para o computador e
para a intercepção de ordens codificadas de rádio não foi uma simples história de
agentes humanos livres lutando uns contra os outros mas também a história da
tecnologia militar. Do meu ponto de vista, as pessoas são mesmo demasiadamente
antropomórficas quando se trata de discutir tecnologia. É que as tecnologias militares e
dos média adiantam-se realmente umas às outras. Para além do mais, a história da
tecnologia não é uma história de um contínuo desenrolar mas uma história de choques e
saltos. Como Foucault diz ironicamente algures, a história é uma série de sacudidelas
que podem ser proveitosamente comparadas com os efeitos de luz estrobotópicos que se
encontra numa discoteca. A imagem de Foucault é uma imagem de que gosto muito
porque aprecio a ideia de um súbito clarão e depois a aparência de um estado estável,
não sendo obviamente necessário descrever esse último. E, portanto, o meu trabalho
sobre o complexo militar-industrial não está interessado nos detalhes das vidas das
pessoas ou em como as coisas realmente eram, por exemplo, na República de Weimar,
já que isto tomaria demasiado do meu tempo de escrita. Indubitavelmente, as relações
entre agenciamento humano, tecnologia e autonomia é uma relação complexa. Uma das
ideias reactivas à história mais maravilhosa de Heidegger, que ninguém na Alemanha
excepto eu assumiu, é a sua proposta de que a história do ser, das relações entre o
mundo e o eu, é também a de uma história de choques e saltos. Não foi o Cristianismo
uma surpresa para a Europa, ou Roma um salto tecnológico depois da Grécia? Como
escreveu Heidegger no seu ensaio sobre Parménides, o filósofo da Grécia antiga que
estimulou o seu pensamento sobre a máquina de escrever, o facto de utilizarmos nós
mesmos alguma vez ou não a máquina de escrever não é importante. O que é importante
é o facto de, quer queiramos ou não, todos nós termos sido lançados na era da máquina
de escrever. Com certeza, o próprio Heidegger preferiria continuar o seu trabalho na sua
própria caligrafia.
JA: Para além de Heidegger, existe um certo número de escritores revolucionários
conservadores alemães e teóricos controversos do período de Weimar que estão
presentes no seu trabalho sobre o complexo militar-industrial, como Ernst Jünger e
Carl Schmitt. Porque deveriam os leitores anglófonos consultar estes autores hoje em
228
dia? O que é que nos têm a dizer sobre a nossa condição cultural, social e política, tal
como a guerra dos E.U.A. no Iraque?
FK: Comecemos por Jünger. É inquestionável que por vezes era um mau escritor mas,
para mim, Jünger foi uma pessoa maravilhosa porque foi alguém que viveu tudo, tanto o
pior como o melhor. Como sabe, Jünger não apenas sabia como foram as trincheiras da
Primeira Guerra Mundial, como conhecia também a maioria desses «brilhantes»
generais alemães que estavam estacionados com ele em Paris, durante a ocupação da
Segunda Guerra Mundial. Além disto, Jünger foi uma das pessoas que experimentou
LSD e, claro, sendo ele quem era, experimentou-o juntamente com Albert Hofmann, o
inventor suíço do LSD. Portanto, para mim, Jünger era, em primeiro lugar e acima de
tudo, um homem muito corajoso. E, porque eu próprio não sou tão corajoso, procuro
algumas vezes nele ajuda a este respeito. Quanto à sua obra sobre o bélico, a tecnologia
e a indústria, seria correcto dizer que gosto de quase todos os escritos de Jünger sobre
estes tópicos. É por exemplo, fácil para mim apreciar o seu trabalho sobre conceitos
como «mobilização total» (Jünger, 1998, pp. 119-39; Armitage, 2003, pp. 191-213).
Não devemos igualmente esquecer as conexões e interconexões entre Jünger e
Heidegger (1993, pp. 307-41) em termos da sua perspectiva sobre a tecnologia. Mas em
comparação com Heidegger, sempre senti que Jünger é o mais superficial dos dois
quando discute questões de tecnologia. Da minha parte, sempre assumi que a
superficialidade de Jünger no que concerne à tecnologia era um resultado da sua
ignorância da História da Filosofia.
Mas o que gostaria de transmitir a si e aos seus leitores anglófonos é que, apesar
de ser adepto de teóricos conservadores alemães como Jünger, estou igualmente
interessado, a respeito da Europa, como disse anteriormente, numa ideia como a do
amor. Deixe-me ser muito claro. Quando falo sobre amor na Europa, é mesmo isso que
quero dizer. É algo que coloco em acção, algo sobre o qual escrevi em artigos e falei em
conferências de que as pessoas gostaram muito. E esta é uma diferença significativa
entre, digamos, Jünger e eu. Para lhe dar um exemplo, uma das minhas preocupações
actuais é a luta contra todos os deuses monoteístas que, até recentemente, eram
representados no mundo por três heróis humanos: Sadam Hussein, George W. Bush e
Ariel Sharon. Eu luto contra estes guerreiros porque os três acreditam não simplesmente
num único Deus mas também num deus masculino. Recusam-se portanto a ter uma
Deusa feminina a seu lado. Ora alguns podem considerar que aquilo contra o que estou
229
a lutar é um equívoco. Contudo, é muito importante para mim argumentar que Afrodite,
a Deusa do amor e da beleza, é uma deusa para todos os animais, incluindo o homem e a
mulher. O que estou a tentar sugerir é, portanto, já que alguns leitores anglófonos
associam teóricos como Jünger ao Nazismo, algo contra o qual Jünger era
completamente contra. É demasiado fácil assumir que todo o conservador alemão, tal
como eu, é à partida um fascista ou um amigo de Hitler.
Esta diferença entre conservadorismo e fascismo é fundamental para mim, não
apenas politicamente, mas também porque me afectou profundamente na minha própria
vida pessoal. Por exemplo, sou aparentado por casamento a pessoas que eram Nacional-
Socialistas. Um pertencia inclusivamente à Waffen SS. Entretanto, ao passo que a minha
família era «reaccionária» [stokkonservativ], como se diz na Alemanha, ninguém nela,
pelo que sei, teve algo que ver com Hitler ou com as suas hordas políticas.
Quanto ao actual revivalismo schmittiano, bom, como sabe, o seu trabalho e em
particular a distinção de Schmitt (1996) entre «amigo e inimigo» fascinou até Derrida. E
talvez Derrida seja a razão pela qual Schmitt é agora uma estrela controversa e, no
entanto, em ascensão, tanto no mundo anglófono como francófono. Mas, para mim, a
razão real para a renovação do interesse em escritores como Schmitt é muito simples. É
que sempre que nós, europeus, tentamos analisar a ideologia do Império Americano,
temos falta de um antídoto forte contra a conversa dos E.U.A., rasa e frequentemente
néscia, sobre as virtudes da democracia americana. Examinemos, como propõe, o caso
da guerra actual no Iraque. Não é óbvio que o Império Americano, presentemente numa
situação económica crítica, quereria controlar o segundo maior campo petrolífero do
planeta? Portanto, para mim, a guerra dos E.U.A. no Iraque é principalmente sobre
petróleo, mesmo que uma boa parte dela seja também para auxiliar o amigo da América,
Israel, a prosseguir os seus objectivos no Médio Oriente. De qualquer modo, do meu
ponto de vista, os problemas que o sistema dos E.U.A. enfrentam brotaram da era de
Nixon nos anos setenta, quando a América proclamou ao mundo que iria abandonar o
padrão-ouro. Mas o que os E.U.A. não divulgaram foi que estavam silenciosamente a
trocar o padrão-ouro pelo padrão-petróleo suportado pela Arábia Saudita. E agora, sem
surpresa, tanto os valores do dólar como as reservas de petróleo da América estão a
desaparecer rapidamente. Em consonância, o futuro próximo é altamente problemático
para a máquina de guerra americana porque é preponderantemente baseada no petróleo,
com apenas um ou dois dos seus porta-aviões a ser alimentado a energia atómica. Há
230
portanto algo quase jüngeriano, quase demasiadamente natural ou darwiniano na
máquina de guerra americana, fundada no petróleo, a regressar, pouco a pouco, à
própria fonte do seu poder. Por conseguinte, nós europeus devemos ser muito claros
sobre o que aceitamos e o que não aceitamos do Império Americano e da sua máquina
de guerra. De facto, escrevi recentemente um artigo que discute o Discurso sobre o
Estado da União484
de 2002, no qual os três declarados valores fundamentais
americanos são liberdade, democracia e algo chamado «liberdade empresarial». E eu
escrevi que, não discordando dos valores da liberdade e da democracia, discordo do
chamado «valor» da «liberdade empresarial», já que para mim é um valor em excesso. É
que o que Bush quer dizer com «liberdade empresarial» é a imposição pelos E.U.A. da
Coca-cola e das calças de ganga em todo o cidadão do mundo, uma ideia que eu não fui
capaz de suportar desde que tenho sido um ser humano consciente.
Tecnologia
JA: Um elemento contínuo do seu trabalho é associado com uma concepção particular
das tecnologias culturais modernas, tais como o gramofone, o filme e a máquina de
escrever assim como as tecnologias pós-modernas de informação e comunicações como
o computador. Como sucedeu inicialmente esta curiosidade pelas questões da
tecnologia? Ou surgiu de uma consideração da natureza específica destas tecnologias?
FK: Os meus escritos estão preocupados tanto com as tecnologias modernas como com
as tecnologias pós-modernas, sendo as últimas distintas das anteriores, para mim,
simplesmente com base na invenção do computador na Segunda Guerra Mundial e no
desenvolvimento subsequente da digitalização por Turing e Shannon. Quanto ao meu
interesse pela tecnologia em geral, apenas posso dizer que me limitei a observar as
minhas próprias acções no quotidiano, acções que me fizeram compreender que gostava
mesmo do meu gramofone e da minha câmera Super 8. Para além do mais, não poderia
simplesmente ter escrito o meu doutoramento sem o auxílio de uma máquina de
escrever. A minha curiosidade pelas tecnologias surgiu portanto de experiências diárias,
por exemplo, pôr Pink Floyd no gramofone e, sem estar completamente preocupado
com isso, perguntar subitamente a mim próprio: o que estava a fazer nesse preciso
momento, para quem e para quê? Sou, por isso, fascinado pela máquina e pelas suas
484 Trata-se do cada vez mais mundialmente mediatizado State of the Union, no qual o Presidente
americano em funções se pronuncia perante o Congresso sobre o estado do país. [N.T.].
231
funções. Em relação a outros teóricos, como me disse anteriormente, existe também
aqui uma ligação nebulosa, por exemplo, entre a obra de Jean Baudrillard (1990) sobre
as qualidades sedutoras da tecnologia e o meu próprio trabalho. Contudo, apesar de ter
conhecido Baudrillard bastante tarde na minha vida e de ele ser uma pessoa muito
simpática, o facto é que tenho estado a pensar sobre tecnologia e sedução muito antes de
ter encontrado Baudrillard. Não obstante, outros também notaram a relação entre os
escritos de Baudrillard e os meus próprios escritos a respeito do tema da tecnologia.
Contudo, uma importante diferença entre a obra de Baudrillard sobre tecnologia e a
minha é que ele está, de algum modo, desinformado sobre o «quando» e «onde»
histórico da tecnologia, ao passo que a minha pesquisa é fundamentada numa
abordagem histórica em profundidade.
No que diz respeito à especificidade de tecnologias particulares, tomemos o caso
da máquina de escrever. O que me cativou na máquina de escrever não foi o facto de
que existem vários monógrafos de alta qualidade na história desta tecnologia. Foi antes
o que aparece tão claramente a partir desses monógrafos: que a introdução de jovens
mulheres solteiras na produção de discursos foi uma consequência imediata da invenção
da máquina de escrever no final do século XIX. E, no entanto, tão poucas pessoas o
notaram, incluindo as numerosas historiadoras da cultura, ao passo que, para mim, a
criação da máquina de escrever foi uma cesura foucauldiana ou uma quebra de enorme
magnitude. Por exemplo, quando a minha mulher se tornou uma profissional, não teve
opção senão aprender a dactilografar, algo contra o qual ela se tinha posicionado.
Normalmente, ela deixava a dactilografia para mim! Agora compreendo que esta é uma
declaração simples e óbvia. Mas, na altura em que estava a escrever Gramophone, Film,
Typewriter, quase toda a gente que conhecia no campo da teoria literária e dos estudos
culturais estava preocupada com as condições sociais circundantes de várias figuras
literárias. Apesar disto, nenhuma delas, ao confrontar a questão da tecnologia no
Fausto485
(1969, 2004) de Goethe, por exemplo, considerava a introdução de jovens
mulheres nas universidades no século XIX como estando relacionado com o
desenvolvimento da máquina de escrever. Daí, apesar da conversa dos meus colegas
sobre a importância das condições socio-históricas da produção da literatura, eu ter sido
o único que considerou a história da máquina de escrever. Era, na altura, uma espécie de
485 Inserir referência portuguesa e data do original [N.T.].
232
sociologia da literatura que tinha de ser feita, mesmo que poucas pessoas o
compreendessem nesse momento.
JA: Como é que o seu trabalho sobre média técnicos se relaciona, se é que isso
acontece, com a «arqueologia dos média» de Wolfgang Ernst (2002), que também está
sediado aqui na Universidade Humboldt? Por exemplo, está no centro das suas
preocupações, à semelhança de Ernst, um desenvolvimento tecnológico e histórico não
linear? Ou está mais envolvido com uma análise social da aparecimento e
desaparecimento de tecnologias dos média específicas?
FK: Devo dizer que, no âmbito da abordagem da história social dos média técnicos, que
demorei muito tempo a compreender o que o termo arqueologia dos média significava e
a natureza exacta do projecto de Wolfgang. Mas, agora que o compreendo, é importante
frisar que os seus escritos não surgiram a partir dos meus. Há no entanto semelhanças,
no sentido em que Wolfgang, como muitos outros hoje em dia, tenta sair de abordagens
narrativas da história, um projecto que aceito e aprecio muito. Não obstante, as
preocupações de Wolfgang não são as minhas preocupações. Não me interprete mal. Eu
gosto de história. Na verdade, sou doido por história e li-a desde que era um rapaz
muito pequeno. Contudo, o que aprendi, em parte com Wolfgang, é que temos de parar
de narrar a história da escrita, da computação, da matemática ou da música enquanto
história linear. É, portanto, o que tenho tentado desde há algum tempo, como no ensaio
«Global Algorithm: The History of Communication Media» (Kittler, 1996, pp. 1-16).
Consequentemente, sinto que em vez de focar a história linear, deveríamos sim pensar
sobre aquilo que chamo «história recorrente», na qual a mesma questão é tomada e
retomada em intervalos regulares mas com conotações e resultados diferentes.
Tomemos o caso das sereias, essas ninfas marinhas da Grécia Antiga cujo canto sedutor
era entendido como atraindo os marinheiros até chocarem nas rochas que ocupavam.
Não é verdade que, sempre que os europeus assumiram a história não linear da música
ou da acústica, isto é, sempre que houve um salto tecnológico neste campo, as sereias
são uma vez mais evocadas, quer seja a sua memória, quer seja numa qualquer espécie
de mutação? No Cristianismo primitivo, por exemplo, as sereias retornaram como
monstros horríficos. E, novamente, na Alta Idade Média, como foi documentado em
manuscritos na Universidade de Oxford, escritos em francês arcaico, a sereia retornou
233
como um ser anfíbio, uma menina marinha486
, vivendo tanto fora como dentro de água,
uma característica que estava ausente do mito grego original. E então, em 1819, um
jovem engenheiro francês inventou a sereia487
ou sirene, técnica moderna que emite um
som alto de lamento. Ele nomeou-a sereia ou sirene precisamente porque funciona tanto
dentro como fora de água. Para além disto, a sereia ou sirene técnica tem sido uma
componente importante da teoria moderna do som, sobretudo na segunda metade do
século XIX, quando era utilizada em experiências sobre os extremos da audição humana
e outras questões relacionadas com a invenção e desenvolvimento da rádio. Em
conformidade, para mim, a sereia ou sirene é um bom exemplo de história recorrente
porque retorna, uma e outra vez, a nós.
No que respeita ao aparecimento e desaparecimento das tecnologias dos média
particulares, a minha resposta é a seguinte. Primeiro, na Alemanha de hoje está em voga
entre os professores falar sobre a Internet como se fosse um médium técnico que tivesse
sido forjado a partir de outros média, eles próprios ainda presentes e que estarão
presentes para sempre. Apesar disto, a minha suspeita é a de que ao dizer estas coisas os
professores estão na realidade a enunciar que esperam que os seus professorados
estejam aí para sempre já que têm um interesse investido em garantir que os média
técnicos, enquanto área de estudo, não desapareçam. Sou portanto muito céptico em
relação à ideia de que os média técnicos, que aparecem a dado momento, não
desapareçam também da história. Por exemplo, consideremos o sistema arcaico de
escrever volumes completos em papel de rolo. Claro que o papel ainda é produzido e
vemo-lo em redor de nós ainda nos nossos dias. Por outro lado, alguém argumentaria
que escrever em papel de rolo sobreviveu? Não acredito. Foi pois a invenção do codex
que significou a mudança do rolo para o manuscrito. Além disso, tudo nos escritos da
Antiguidade demonstra que foi o Cristianismo que assumiu o risco histórico, o salto
tecnológico, do médium do rolo de papel para o codex. Por exemplo: tanto quanto sei, é
proibido até hoje a transcrição da Torá, os ensinamentos religiosos judaicos, do rolo
para codex. E, a este respeito, pode-se argumentar que foi o Cristianismo que
486 Kittler joga aqui com os termos siren e mermaid, ambos significando sereia em inglês. O primeiro
também pode significar, tanto em português (sirene, sereia) como em inglês, qualquer aparelho que
produz som grave ou estridente, presente em locomotivas, navios, automóveis e fábricas, entre outros. O
segundo termo deriva do inglês arcaico merewif, recomposto mais tarde em mermaid, formado pela
palavra mere, mar em inglês arcaico, com maid, menina ou rapariga jovem. Escolhemos emparelhar
sereia ou sirene, para denotar esta dupla dimensão.[N.T.] 487 Nome do mecanismo em que o vapor, ar comprimido, ou electricidade produz um som grave ou
estridente, mais conhecido por sirene. [N.T.]
234
desempenhou o papel modernizador nas batalhas tecnológicas da antiguidade, ao passo
que o Judaísmo enveredou por um caminho conservador. Esta é, obviamente, uma
explicação muito simples. Mas o que penso que demonstra é que, mesmo que as
tecnologias dos média continuem a aparecer e apenas um pequeno número a
desaparecer, é porém igualmente correcto dizer que as tecnologias dos média se podem
tornar e tornam-se realmente obsoletas.
JA: Posso questioná-lo sobre o o trabalho que tem estado recentemente a desenvolver
sobre música e matemática como influências sociais e culturais e, especialmente, sobre
a sua relação com a tecnologia? Por exemplo: em que medida é que esta sua
investigação recente está em correspondência com a teoria contemporânea da cultura e
sociedade? É um desenvolvimento dos seus escritos anteriores ou um abandono deles?
FK: Sim, estou presentemente a escrever um livro sobre música e matemática que se
inspira, parcialmente, em descobertas na teoria musical respeitantes à harmonia e à
tonalidade. O que me fascinou inicialmente nestes temas foi que todos eles eram
componentes de um acontecimento mais amplo do século XVIII, que foi a descoberta de
que a música, a harmonia e a tonalidade eram, todas elas, baseadas na matemática. E, no
ponto em que estou presentemente, a relação entre música e matemática é muito
importante, já que é uma das coisas mais entusiasmantes que me aconteceu aqui em
Berlim. Até fundámos um pequeno centro, no qual um dos nossos mais famosos
matemáticos é o Director e eu sou o Vice-Director, graças a Deus. Mas o que nos
preocupa é a matemática enquanto força cultural. Por exemplo, estamos actualmente a
investigar questões como a invenção do cálculo por Isaac Newton em Inglaterra e a obra
com ele relacionada de Gottfried Wilhelm von Leibniz na Europa continental. Envolver-
me neste trabalho tem sido tremendamente estimulante. É que compreendi que, sem a
descoberta das equações de diferenciação parcial, nenhum barco moderno ou receptor
de rádio ou transmissor poderia ser concebido ou construído. Contudo, o problema é
que a matemática é demasiado difícil para explicar às pessoas e provavelmente não
compensa a longo prazo. É por esta razão que escolhi o exemplo da música como uma
espécie de matemática cultural. Consideremos um instrumento musical como a harpa.
Trata-se, não apenas de um instrumento musical mas também de uma ferramenta
tecnológica matematicamente concebida, de uma precisão tal que, como tem sido
provado, está harmonizada com todos os ouvidos humanos, incluindo o das crianças.
235
Em certa medida, portanto, podemos ouvir a matemática. Esta foi uma descoberta
importante dos pitagóricos, que pressentiram que o mundo era estruturado
matematicamente, um mundo onde toda a oitava é imediatamente escutada por todo o
ouvido como maior, menor ou perfeita. Consequentemente, para mim, à semelhança de
filósofos matemáticos como Leibniz, a música tem sido sempre um desafio à
matemática e permanece-o até aos nossos dias.
Não estou tão certo que possa responder à forma como o meu livro sobre música
e matemática se relaciona com a teoria social e a teoria cultura dos nossos dias, já que é
um trabalho bastante abstracto. Para além disto, é também, digamos, mais «escondido»
que os meus anteriores escritos. Na realidade, olhando retrospectivamente para livros
como Gramophone, Film, Typewriter, fico com a sensação de que fui excessivamente
cativado por bricolage, engenharia e por homens como Thomas Alva Edison. Edison,
por exemplo, é ao mesmo tempo uma figura interessante e, de certa forma, algo néscia.
Não é difícil explicar, por exemplo, a sua invenção do gramofone. Mas é muito mais
difícil colocar em palavras simples a ideia de onda senoidal, o modelo matemático por
detrás do gramofone. Por conseguinte, fui estando cada vez mais interessado em
questões relacionadas com tons musicais, um tema que pode ser um pouco enervante
quando se tenta explicá-los a pessoas durante duas horas de cada vez como eu próprio
tentei já fazer! Portanto, deixei-me da bricolage e de pensar em inventor heróicos como
Edison e comecei a pensar em ondas sinoidais e semitons. Pois sem a existência destes
conceitos, conceitos produzidos por matemáticos, não se pode sequer conceber a ideia
de gramofone. É também aqui que tenho de revelar a minha pequena desilusão com
Heidegger, já que ele permaneceu convencido durante toda a sua vida que qualquer
acontecimento na história de ser é naturalmente a província exclusiva de pensadores
como Parménides, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino. De facto, para Heidegger,
eram estes e outros filósofos e não matemáticos as únicas pessoas relevantes para
qualquer discussão do mundo em que vivemos. É por isso que, à semelhança de
Foucault, estou menos interessado hoje em dia em comentar Hegel ou quem quer que
seja, do que em considerar o trabalho de figuras relativamente desconhecidas na história
do pensamento musical e matemático. Em particular, estou empenhado em dissipar o
mito difundido de que a matemática grega foi desenvolvida por si mesma e para si
mesma. É que nada podia ser mais distante da realidade.
236
JA: Finalmente, queria perguntar-lhe se a sua preocupação actual com a matemática
musical e cultural significa uma progressiva indiferença face a questões relacionadas
com as novas tecnologias de informação e comunicação como a Internet? Ou existem,
por exemplo, outros teóricos da sociedade e da cultura da tecnologia cujos trabalhos
toma em consideração?
FK: Estou longe de ser indiferente à tecnologia. Mas no que diz respeito aos
desenvolvimentos pós-modernos como a Internet, tenho de dizer que uma coisa que
acho terrível hoje em dia é que as pessoas continuam a imaginar que a Internet é o meio
pelo qual as próprias estão ligadas a outros mundialmente. Pois o facto é que os seus
computadores estão conectados a outros computadores. Portanto a ligação efectiva não é
entre pessoas mas entre máquinas. Contudo, estas discussões, dominadas pela América,
tendem a obscurecer este facto simples. Tomemos o caso do Linux, que desenvolveu
um sistema operatório para a Internet. Não é o Linux um dos mais brilhantes desfechos
da Internet desde há dez anos ou assim? Porém, como sabemos, Linus Torvalds
começou simplesmente como uma única pessoa que coloca o seu código-fonte na
Internet para outros lerem, algo que eu também posso fazer. Apesar de tudo, a coisa
mais notável relativamente ao Linux para mim é o modo como outras pessoas
continuam a aparecer para melhorar o código-fonte de Torvald, tornando-o mais e mais
poderoso a cada dia. E, no que me diz respeito, a Internet está no seu melhor quando
está a operar como um auto-reflexo dos sistemas de computação, quando aprofunda a
evolução da tecnologia. É também por isso que, como discutimos anteriormente, não
acredito que seres humanos se estejam a tornar ciborgues. De facto, para mim, o
desenvolvimento da Internet tem muito mais que ver com seres humanos tornarem-se
um reflexo das suas tecnologias, da relação ou resposta às exigências da máquina.
Afinal de contas, somos nós que nos adaptamos à máquina. Portanto, não estou de todo
convencido que o projecto de design computacional de ponta serve para ligar os nossos
corpos às máquinas; as máquinas estão tão claramente separadas de nós. Se fosse o caso
de as tecnologias pretenderem ser ciborguianas, isto é, pretenderem estar ligadas ao
corpo humano, então o desenvolvimento do computador nos últimos cinquenta anos
teria tomado a direcção oposta da que tomou. Além disso, seguir a visão ciborguiana
teria também significado que a velocidade incrível da Lei de Moore, que diz que o
poder computacional duplica, aproximadamente, de 18 em 18 meses, teria sido
impossível de alcançar. Logo, do meu ponto de vista, a indústria computacional está
237
menos interessada no desenvolvimento de ciborgues do que no desenvolvimento de
software.
A respeito de outros autores da teoria social e cultural da técnica, apenas posso
dizer que o controlo da Onternet pelos americanos contribui unicamente para me tornar
cada vez mais nervoso. Sem dúvida, quanto a mim, os americanos não apenas têm já
demasiada influência sobre as juventudes do mundo, como estão também a continuar a
sua política de imperialismo através da inundação do planeta inteiro com os seus jeans e
a sua marca particular de individualismo. Apesar disto, creio que existem algumas
pessoas na América que estão a trabalhar temas semelhantes e a tratá-los de modos
comparáveis com o modo como trabalho, pessoas que abordam questões sobre
tecnologia de um ponto de vista relacionado. O mais óbvio entre estes é Timothy Lenoir
(Lenoir, 1998) na Universidade de Stanford, que escreveu alguns artigos muito bons
sobre a história da tecnologia e matemática. Outra teórica que tenho em alta
consideração é Avital Ronell. Gostei muito de The Telephone Book: Technology,
Schizophrenia, Electric Speech (Ronnel, 1991). Além disso, Avital é alguém que me
tem sido muito próximo desde há muitos anos, apesar de ela ser muito mais nova que
eu. Também acho que é provavelmente correcto dizer que contribuí mais para o seu
trabalho do que ela para o meu, mas foi uma amiga muito próxima até ficar muito
doente. Na realidade, The Telephone Book foi traduzido para alemão porque eu o
propus. Não obstante, mesmo aqui existem grandes diferenças entre nós, já que os
escritos de Avital são mais «esquizofrénicos» que os meus, principalmente porque a sua
investigação se inspira na anti-psiquiatria de Gilles Deleuze e Félix Guattari. É por isso
que o trabalho de Avital é bastante mais metafórico do que o meu, mas ela tem, na
minha avaliação, produzido alguns livros maravilhosos. E, de novo, como sabe, Deleuze
e Guattari não fazem parte, de todo, do meu gosto. Mas não sou parcial em relação ao
seu Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia488
(Deleuze e Guatari, 1984) pelo mero
facto de ser tão anti-Lacaniano. Portanto, como vê, nunca vacilei na minha crença de
que Lacan estava certo quando disse que os seres humanos são estruturalmente
formados pelo seu inconsciente e não apenas por acontecimentos, e por aí em diante. Na
verdade, acredito realmente que existe algo como o destino e é isto que me separa do
mundo onírico de Deleuze e de Guattari onde a liberdade está sempre ao virar da
488 Publicado originalmente com o nome L'Anti-Œdipe. Capitalisme et Schizophrénie I (1972). Encontra-
se disponível uma tradução portuguesa: O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1., Joana Moraes
Varela e Manuel Maria Carrilho, Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 2004.
238
esquina. Consequentemente, não subscrevo as suas posições de todo. Por outro lado, tal
não ocorre porque me considero uma pessoa feliz, que se contenta em de viver sem a
ideia de liberdade, na medida em que um das minhas mais profundas convicções é a de
que a tarefa dos livros não é a de produzir esperanças desnecessárias. Pelo contrário,
acho que a tarefa dos livros é tornar as coisas ainda piores do que elas são, isto é, se
quiser, opôr ódio ao ódio. E é por isto que, para mim, a coisa mais importante a fazer no
presente é contar a história de como o amor tem sido proibido desde o tempo da Grécia
Antiga até hoje.
John Armitage conduziu esta entrevista a 23 de Julho de 2003 na Universidade de
Humboldt de Berlim (Humboldt-Universität zu Berlin). Agradece a Mike Featherstone o
seu encorajamento pessoal e intelectual e ao Centro Theory, Culture & Society da
Universidade de Nottingham Trent (Nottingham Trent University) pelo apoio
organizacional e financeiro. Tem também uma dívida de gratidão para com Sean Cubitt,
Nicholas Gane, Joanne Roberts, Geoffreu Winthrop-Young e para com os revisores
anónimos, os quais amavelmente leram e comentaram os esboços prévios desta
entrevista. Finalmente, está particularmente agradecido a Friedrich A. Kittler pela
prontidão com que acedeu dar esta entrevista.
Aristotle (2004). Poetics. Londres: Penguin.
Armitage, J. (2003). «On Ernst Jünger’s “Total Mobilization”: A Re-evaluation in the Era of the War on
Terrorism». Body & Society 9(4): 191–213.
Baudrillard, J. (1990). Seduction. Londres: Macmillan.
Deleuze, G. e F. Guattari (1984). Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. Londres: Athlone.
Deleuze, G. and F. Guattari (1988). A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Londres:
Athlone.
Derrida, J. (1967). Of Grammatology. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press.
Ernst, W. (2002). Das Rumoren der Archive. Berlim: Merve Verlag.
239
Foucault, M. (1970). The Order of Things: An Archeology of the Human Sciences. Nova Iorque: Pantheon
Books.
Foucault, M. (1997). «Technologies of the Self», in Ethics, vol. 1 of the Essential Works of Foucault
1954–84, ed. by Paul Rabinow. Londres: Penguin, pp. 223–51.
Goethe, J.W. (1969). Faust, Part 2. Londres: Penguin.
Goethe, J.W. (2004). Faust, Part 1. Londres: Penguin.
Heidegger, M. (1993). «The Question Concerning Technology». in David Farrel Krell (ed.) Basic
Writings: Martin Heidegger. Londres: Routledge, pp. 307–41.
Holub, R. (1992). Crossing Borders: Reception Theory, Poststructuralism, Deconstruction. Madison:
University of Wisconsin Press.
Jünger, E. (1998). «Total Mobilization». in Richard Wolin (ed.) The Heidegger Controversy: A Critical
Reader. Cambridge, MA: MIT Press, pp. 119–39
Kittler, F. (1977). Der Traum und die Rede. Eine Analyse der Kommunikationssituation Conrad
Ferdinand Meyers. Berna: Francke.
Kittler, F. (1984). «Carlos als Carlsschuler». in W. Barner et al. (eds) Unser Commercium: Goethes und
Schillers Literarurpolitik. Estugarda: Cotta, pp. 241–73.
Kittler, F. (1990). Discourse Networks, 1800/1900. Stanford, CA: Stanford University Press.
Kittler, F. (1996). «Global Algorithm: The History of Communication Media». Ctheory,
http://www.ctheory.net/printer.asp?id=45: 1–16.
Kittler, F. (1997). «Media and Drugs in Pynchon’s Second World War». in John Johnston (ed.) Literature
Media: Information Systems. Amsterdão: G+B Arts International, pp. 101–16
Kittler, F. (1999). Gramophone, Film, Typewriter. Stanford, CA: Stanford University Press.
Kittler, F. (2004). Unsterbliche. Nachrufe, Erinnerungen, Geistergespräche. Munique: Fink.
Lenoir, T. (ed.) (1998). Inscribing Science: Scientific Texts and the Materiality of Communication.
Stanford, CA: Stanford University Press.
Pynchon, T. (1973). Gravity’s Rainbow. Nova Iorque: Vintage.
Ronell, A. (1991). The Telephone Book: Technology, Schizophrenia, Electric Speech. Lincoln: University
of Nebraska Press.
Schmitt, C. (1996). The Concept of the Political. Chicago: Chicago University Press.
Schreber, D.P. (1955 [1903]). Memoirs of My Nervous Illness. Londres: WM Dawson and Sons and Sons.
Virilio, P. (1989). War and Cinema: The Logistics of Perception. Londres: Verso.
Weaver, W. and C.E. Shannon (1949). The Mathematical Theory of Communication. Urbana: University
of Illinois Press.
240