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    Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, n. 58, p. 37-52, 2013.

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    REFLEXES SOBRE O PRINCPIO DA TOLERNCIA

    REFLECTIONS ON THE PRINCIPLE OF TOLERANCE

    Marcos Augusto Maliska*

    Regina Ftima Wolochn**

    RESUMO:O objetivo deste artigo provocar uma discusso sobre a importncia do princpio

    da tolerncia e as suas consequncias na rea jurdica, especialmente no Direito Constitucional.Tolerncia um conceito filosfico cuja importncia tem sido identificada como fundamentalpara a resoluo de problemas trazidos pelas sociedades atuais pluralistas. Pretende-se abordar aquesto principalmente no contexto histrico e nas semelhanas entre tolerncia e solidariedadepara depois verificar a sedimentao desses princpios ao longo do tempo, especialmente na ordemjurdica brasileira. As vrias guerras civis, os problemas de intolerncia religiosa, a discriminaosexual, conflitos tnicos demonstram a crise que domina as sociedades contemporneas, comdestaque para a intensificao dessas diferenas e dos processos de excluso. Esses problemasno podem ser resolvidos exclusivamente no mbito privado das relaes individuais, mas comoeles se relacionam com a aceitao das diferenas entre os grupos sociais, a distribuio de bense o acesso s garantias jurdicas. Atravs dos autores pesquisados pode ser visto, ao longo dotempo, as ligaes entre a tolerncia e a liberdade de conscincia, o desejo de igualdade e asreivindicaes para a diferena. Assim, a teoria constitucional do Estado de Direito deve refletirsobre estas questes, pois os temas so constitudos como parmetros objetivos para a realizaoda democracia.

    PALAVRAS-CHAVE:Tolerncia. Democracia. Pluralismo jurdico. Teoria constitucional.

    ABSTRACT:The purpose of this article is to provoke a discussion about the importance of

    the principle of tolerance and its consequences in the legal area especially in ConstitutionalLaw. Tolerance is a philosophical concept whose importance has been identified as criticalto solving problems brought by the current pluralistic society. Intend to address the issueprimarily in historical context and the similarities between tolerance and solidarity and thesedimentation of these principles over time, especially in our legal order. The various civil wars,

    * Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil, em

    Curitiba. Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto Universidade Federal do Paran. Mestre (1998-

    2000 UFPR), Doutor (2001-2003 UFPR-LMU-Munique) e Ps-Doutor (2010-2012 Instituto Max

    Planck de Heidelberg, Alemanha) em Direito. Foi Professor Visistante nas Universidades de Bayreuth,Alemanha (2007), Wroclaw, Polnia (2008 e 2010) e Karaganda, Cazaquisto (2012). Professor Visitante

    Permanente na Faculdade de Direito de Francisco Beltro (Cesul).E-mail:[email protected].

    **Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia na UniBrasil. Professora da Universidade

    Estadual de Ponta Grossa. Procuradora do Municpio de Ponta Grossa-PR.E-mail:[email protected].

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    the problems of religious intolerance, sex discrimination, ethnic conflict, demonstrate the crisisthat dominates contemporary societies, highlighting the intensification of these differences andexclusion processes. These problems cannot be resolved exclusively in the private sphere ofindividual relationships, but how they relate to the acceptance of differences between socialgroups, distribution of goods and access to legal safeguards. Through the authors surveyedcan be seen, over time, the links between tolerance and freedom of conscience, the yearning forequality and the claims for the difference. Thus, the constitutional theory of the democraticstate should reflect on these issues, because the subjects are constituted as objective parametersfor the realization of democracy.

    KEYWORDS:Tolerance. Democracy. Legal pluralism. Constitutional theory.

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    1 INTRODUO

    O propsito deste artigo provocar uma reflexo sobre a importncia

    do princpio da tolerncia e sua repercusso na rea jurdica, em especial no

    Direito Constitucional. As reivindicaes de direitos pelas minorias demonstram

    a atualidade dessa discusso nas sociedades contemporneas bem como o grauelevado de intolerncia que ainda h com o diferente, impondo o dever republicano

    de buscar se evitar os fenmenos da discriminao e da excluso, to facilmente

    perceptveis nessas relaes marcadas por desigualdades. O princpio da tolerncia

    se apresenta hoje como fundamental para a compreenso das sociedades pluralistas.

    Tolerncia como instrumento de regulao harmoniosa de diversas culturas

    em um mesmo espao apresenta-se como um recurso que pode ser aplicado em

    diversas reas do conhecimento, especialmente no Direito. Assim, o conceito queganhou expresso nas reflexes da filosofia poltica caminhou para o campo das

    relaes internacionais, bem como se inseriu no Direito Constitucional tendo

    marcado decises importantes do Poder Judicirio. A modernidade afirmou a

    liberdade, a igualdade e a fraternidade como lema de uma vida autnoma, fundada

    em direitos. A convivncia com o diferente longe de implicar em assimilao exige

    respeito. Nesse sentido, a ideia de fraternidade passa a se vincular fortemente a

    de tolerncia.O presente texto procura refletir sobre essas questes apontando ainda os

    limites da tolerncia, uma discusso difcil em razo da sempre presente relao de

    dominao que se opera entre as partes envolvidas. O dever de tolerncia apenas

    com os tolerantes pode desconsiderar o tipo de relao existente entre as partes

    envolvidas? Que tipo de consenso se faz necessrio para que se possa estabelecer

    uma relao estvel de tolerncia recproca?

    2 O CONCEITO DE TOLERNCIA EM DIFERENTES CORRENTES DEPENSAMENTO

    O conceito de tolerncia vem de uma consolidao histrica que perpassa

    diversas correntes filosficas. O termo tolerncia foi empregado primeiramente

    nos debates religiosos que envolviam catlicos e protestantes sobre a possibilidade

    da convivncia de duas ou mais religies dentro de um mesmo Estado. Assim, a

    tolerncia era vista como a possibilidade de aceitao das convices dos outros.Neste escopo, destacam-se as obras de Locke, em cujos fundamentos esto

    as liberdades individuais, as restries ao poder coercitivo do Estado e a defesa

    da diversidade de opinies. Nas Cartas acerca da Tolerncia, Locke (1980,

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    p. 11) defende as liberdades individuais, em especial a liberdade de expresso e de

    culto, como direito fundamental do indivduo na demarcao entre os limites de

    atuao da Igreja e da sociedade civil: a comunidade uma sociedade de homens

    constituda apenas para a preservao e melhoria dos bens civis de seus membros.

    Interpretando os princpios da religio crist, Locke assevera que a Igrejadeveria tolerar o diferente, no perseguir os que praticam religio diversa e respeitar

    as diferenas de pensamento e crena: A tolerncia para com os defensores de

    opinies opostas acerca de temas religiosos esto to de acordo com o Evangelho

    e a com a razo que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma

    luz to clara(LOCKE, 1980, p. 10). O indivduo no pode ser despojado de seus

    bens e direitos pelo fato de no professar determinada religio, pois os direitos

    civis so independentes do credo religioso.

    O escritor iluminista Voltaire (2000), em seu Tratado sobre a Tolerncia,

    tambm parte da ideia da busca pela tolerncia como medida necessria de

    represso contra a intolerncia. O pensador francs relata exemplos de convivncia

    harmnica entre diferentes religies, sendo particularmente crtico para com a

    religio catlica, normalmente colocando-a como intolerante e contrria aos

    ensinamentos de Cristo. Entendia que o aumento do conhecimento contribuiria

    para atenuar as discrdias.

    Voltaire relaciona a tolerncia com a indulgncia, a doura, a prudncia e a

    aceitao do outro. Afirma a igualdade de todos apoiando-se na ideia de filiao

    divina e assim conclama todos ao exerccio da tolerncia e ajuda mtua para

    superar os desafios da vida.

    Evidencia-se nesses autores a relao entre o conceito de tolerncia com o de

    liberdade de expresso (Locke) e com a ideia de igualdade (Voltaire). No entanto,

    durante esse perodo a tolerncia era vista mais com uma atitude filosfica do que

    poltica e voltava-se especialmente para a liberdade religiosa e de expresso, no

    abarcando as demais situaes sociais que envolvem o indivduo.

    Essas ideias sobre a tolerncia vo progressivamente mudar a relao entre

    o Estado e a Igreja, colocando a religio como assunto de foro privado. A partir

    disso fortalece-se a liberdade de pensamento, de expresso e de imprensa, fazendo

    com que a concepo de tolerncia se transfira a outros campos, como forma de

    garantir a coexistncia de concepes polticas diversas.

    Com o desenvolvimento do pensamento liberal, o conceito de tolerncia serelaciona com o de liberdade. Os direitos de liberdade so os direitos do individuo

    burgus, consistentes no direito vida, propriedade, liberdade e segurana.

    O Estado deveria limitar-se a garantir tais direitos, sem intervir na sua promoo.

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    Para Mill (1991, p. 60), a liberdade individual pode ser observada sob trs

    pontos de vista: a) o da liberdade de conscincia, abrangendo o pensamento e

    sua livre manifestao pblica; b) o da autodeterminao na conduo da vida

    privada; c) a liberdade de associao. Nesta perspectiva, a tolerncia representa a

    capacidade de estar aberto s crticas quanto as suas opinies e conduta bem comoo afastamento da ideia de uma verdade absoluta: se todos os homens menos um

    fossem de certa opinio, e um nico da opinio contrria, a humanidade no teria

    mais direito de impor silncio a esse um do que ele a fazer calar a humanidade.

    Nesse contexto, a tolerncia baseia-se na coexistncia da diversidade livre de

    opinies, costumes e culturas.

    Apesar das diversas declaraes e cartas de direitos, que marcaram as

    revolues burguesas nos sculos XVII e XVIII, terem proclamado que os

    homens so livres e iguais, a excluso ainda era um fenmeno social significativo.As mulheres, os pobres e os analfabetos no podiam participar da vida poltica.

    Assim, as revolues burguesas, embora tivessem acabado com os privilgios do

    absolutismo, no solucionaram as questes das demais desigualdades sociais. Os

    movimentos revolucionrios socialistas comearam a pregar a necessidade da

    igualdade, apontando as desigualdades econmicas e sociais do capitalismo. Esses

    movimentos vo dar incio a ampliao dos direitos civis e polticos, em especial

    com a introduo do voto universal.Direitos econmicos e sociais passaram a ser introduzidos na legislao com

    vistas a obter a igualdade material. Diferentemente do liberalismo que pregava

    a no interveno do Estado, passou-se a exigir que o Estado garantisse aos

    indivduos o bem-estar social representado pelo fornecimento de determinados

    servios a todos, com o fim de diminuir as desigualdades.

    A noo de tolerncia dos liberais (liberdade indiferente) no se mostrou

    suficiente para garantir relaes sociais estveis e justas, principalmente frente a

    outras formas de intolerncia provocadas por questes tnicas e polticas. Passou

    a ser necessrio ampliar o conceito de tolerncia para abranger no somente as

    questes ligadas liberdade, mas tambm agregar a ideia de igualdade de valores

    e prticas polticas e sociais, para adequar s necessidades dos diversos grupos

    integrantes da sociedade.

    Na viso de pensadores contemporneos, a tolerncia, alm de reunir a luta

    pela liberdade e pela igualdade, seria a base do direito diferena, no sentido de

    garantir a possibilidade aos diferentes da existncia livre e igual em uma sociedadepluralista1.

    1 Sobre o difcil equilbrio entre consenso moral e acordo razovel, sob a perspectiva do liberalismo

    igualitrio de Rawls, ver Vita (2007, p. 282).

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    Nesse sentido, Rawls (2002, p. 6-10) enfrenta a questo da difcil obteno

    da justia e do bem-estar em uma sociedade desigual. Como conciliar as diversas

    posies do que venha ser uma vida feliz e virtuosa numa sociedade liberal? O

    autor norte-americano preocupa-se em descrever uma sociedade onde o bem estar

    seja garantido aos que esto em pior situao social, sem prejuzo da liberdade.Uma sociedade justa quando ela garante a igualdade de oportunidades a todos

    em condies de plena equidade e que os benefcios so distribudos privilegiando-

    se os menos afortunados. Assim, os mais talentosos devem aceitar a diminuio

    de sua participao em bens em favor dos desassistidos. Os que esto em pior

    situao, desta forma, podero ampliar seus horizontes e expectativas.

    Estando alm do liberalismo clssico, no qual a tolerncia restringia-se ao

    espao privado, Rawls desloca o debate para a questo da distribuio equitativa

    dos custos e vantagens na sociedade. Assim, seu discurso em favor da justia

    implica em uma limitao dos benefcios em funo da equidade na distribuio.

    H evidente predominncia do justo sobre o bom. As liberdades individuais devem

    ser concedidas sob a tica da equidade, uma vez que os princpios de justia so

    independentes das concepes particulares do que seja uma vida boa.

    Bobbio (2002, p. 17), em Elogio da Serenidade, trabalha o tema da

    tolerncia sob dois prismas, o da verdade e o da diversidade. No primeiro caso,

    a tolerncia aparece como remdio contra as verdades absolutas, ela exige uma

    reflexo sobre a compatibilidade terica e prtica de verdades contrapostas; no

    segundo, apresenta-se como forma de combate ao preconceito e a discriminao:

    verifica-se a tolerncia diante daquele que diverso por razes fsicas ou sociais, o

    que coloca em destaque a questo do preconceito e da consequente discriminao.

    As razes que se podem apresentar em defesa da tolerncia nas duas formas

    mencionadas, no so as mesmas. A primeira deriva da convico de possuir a

    verdade; a segunda se fundamenta em um preconceito.Quando se refere questo da compatibilizao das diversas concepes

    de verdade Bobbio (2002, p. 138) separa duas posies: a dos monistas, que

    supe existir apenas uma concepo de verdade e em face disto podem adotar

    quatro tipos de posicionamentos: a) acreditar que a verdade ao longo do tempo

    se estender necessariamente sobre os erros, e neste caso, a tolerncia uma

    atitude de espera de que as crenas errneas caminhem em direo verdade; b)

    acreditar que com o trabalho de difuso da verdade, esta racionalmente avanarsobre o erro, sem a necessidade do uso da fora; c) manter-se inerte, propondo

    a aceitao do erro por ser um mal menor; d) ser benevolente, pois embora se

    acredite que a verdade seja nica deve-se aceitar que ela est destinada a conviver

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    com o erro. Essa convivncia se d em respeito pessoa humana. Para o pensador

    italiano possvel crer em uma verdade nica e ainda assim ser tolerante com os

    posicionamentos diversos.

    Para outra corrente, porm, a verdade no nica, mas mltipla e, sob

    esse enfoque, tambm se apresentam quatro posturas distintas: a) a sincrticaque acaba por fundir verdades de doutrinas opostas; b) a ecltica que postula a

    reorganizao e conciliao de diferentes doutrinas; c) a historicista, que analisa a

    verdade em funo do contexto do tempo e lugar e, d) a pluralista, para a qual as

    verdades so infinitas e dignas de serem apreciadas em respeito pessoa humana

    enquanto portadora de verdades pessoais e vlidas (BOBBIO, 2002, p. 143).

    Quanto questo da tolerncia em face da diversidade, Bobbio (2002,

    p. 103) coloca o preconceito como uma opinio errnea, uma predisposio emcreditar como verdade algo que de interesse ou um sentimento irrefletido. A

    discriminao uma consequncia direta de tal predisposio. Para enfrent-la,

    Bobbio (2002, p. 42-43) apresenta a serenidade como virtude capaz de combater

    o preconceito mediante a prtica contnua da tolerncia. A serenidade a virtude

    das pessoas simples nas suas relaes consigo mesmo e com os demais. Pode ser

    enfocada de forma passiva no mbito particular, no exerccio da pacincia e da

    tranquilidade, ou de forma ativa, representando a relao do indivduo para com

    os outros, no ato de suportar ou abrandar o peso que o outro carrega, tornando a

    convivncia mais solidria:

    como modo de ser em relao ao outro a serenidade resvala o territrio da tolerncia e

    do respeito pelas ideias e pelos modos de viver dos outros. No entanto, se o indivduo

    sereno tolerante e respeitoso, no apenas isso. A tolerncia recproca; para que

    exista tolerncia preciso que se esteja ao menos em dois. Uma situao de tolerncia

    existe quando um tolera o outro. Se eu tolero e voc no me tolera, no h um estado de

    tolerncia, mas ao contrario, de prepotncia. (BOBBIO, 2002, p. 42-43).

    3 A POSIO DA ONU E DAS CONFERNCIAS INTERNACIONAIS

    O surgimento da Organizao das Naes Unidas ONU tem como

    fundamento a convivncia pacfica das naes. A declarao Universal dos

    Direitos Humanos demonstra j desde o seu incio a preocupao com a abolio

    da discriminao. Deste modo o art. 1: todos os seres humanos nascem livres eiguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia e devem agir em

    relao uns aos outros com esprito de fraternidade.Dentro deste contexto no

    h espao para a intolerncia, uma afronta ao dever de fraternidade.

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    No Encontro sobre a Tolerncia na Amrica Latina e no Caribe, organizado

    pela UNESCO e UFRJ no Rio de Janeiro em 1994, de acordo com Cardoso (2003,

    p. 125-172), procurou dar-se um tratamento scio-poltico e bastante original

    referindo-se tolerncia com suas articulaes com a diversidade e a desigualdade.

    Relata o professor da Unesp que nos trabalhos apresentados a conquista datolerncia estaria condicionada busca de alternativas de desenvolvimento scio

    econmico aos modelos que produzem e reproduzem a desigualdade social pela

    dominao entre os indivduos. A nfase na identidade implica em superioridade

    de uns em face dos outros; a prevalncia da diversidade implica em isolamento e

    exacerbao de posies que destroem a prpria ideia de tolerncia. A articulao

    entre estas duas categorias (identidade e diversidade) dependeria da conscincia

    clara da prpria identidade e do valor de sua cultura. Nessa linha, informa que

    as abordagens trazidas na referida Conferncia apontam para duas linhas de

    pensamento: uma neoliberal e outra social progressista. A linha neoliberal centra-

    se na valorizao da diversidade cultural como realizao concreta da liberdade de

    pensamento, expresso e modo de existir de cada grupo. A garantia da tolerncia

    est inserida na legislao. J para a tendncia social progressista o que se

    verifica que alm da diversidade cultural, se sobressai a desigualdade social. Os

    postulados propostos em face das discusses do encontro podem ser sintetizados

    em quatro pontos: a) a construo da cultura da tolerncia implica na satisfao

    das necessidades fundamentais das maiorias excludas do bem-estar material

    e espiritual; b) a tolerncia deve ser uma ao solidria na superao destas

    desigualdades; c) a tolerncia deve reconhecer a diversidade cultural dos diversos

    extratos sociais;2d) a tolerncia tem limite na no aceitao da intolerncia nem

    da explorao entre grupos sociais. (CARDOSO, 2003, p. 147-151).

    Em 1995 a ONU elaborou a Declarao de Princpios sobre a Tolerncia

    a partir dos resultados de sete grandes conferncias regionais3. A declaraocontm seis artigos e quatro pontos especficos: o primeiro ponto refere-se ao

    significado de tolerncia como virtude e como atitude de abertura de esprito e

    de rejeio ao dogmatismo e ao absolutismo. Significa que toda pessoa tem livre

    2 Ver a interessante anlise de Scholler (2007, p. 160) sobre o choc des cultures no contexto do

    pluralismo jurdico autctone e a moderna unidade jurdica na frica.

    3 As sete Conferncias so: Conferncia Internacional sobre democracia e tolerncia em Seul na

    Coreia do Sul; Conferncia Internacional sobre Tolerncia e Lei, em Siena na Itlia; Conferncia sobre

    Ensino da Tolerncia na rea Mediterrnea, Cartago na Tunsia; Encontro Regional da sia e pacfico sobre

    Tolerncia, em Nova Dli na ndia; Conferncia sobre compreenso mtua e Acordo, Moscou na Rssia;

    Simpsio sobre Tolerncia, Istambul na Turquia; Conferncia sobre Tolerncia na Amrica Latina e no

    Caribe, no Rio de Janeiro.

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    escolha de suas convices e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade.

    o respeito, a aceitao e o apreo da riqueza e da diversidade das culturas de

    nosso mundo, o sustentculo dos direitos humanos, do pluralismo, da democracia

    e do Estado de Direito. O segundo ponto refere-se ao papel do Estado como

    responsvel por garantir a tolerncia interna, atendendo para que os grupos maisvulnerveis possam tambm desfrutar de oportunidades econmicas e sociais sem

    discriminao. O terceiro ponto atenta para o recrudescimento da intolerncia e

    da importncia de se estabelecerem mecanismos para combat-la, garantindo-se

    pluralidade cultural e justia social. O quarto ponto refere-se necessidade da

    educao para a tolerncia, entendida como meio mais eficiente para prevenir a

    intolerncia. (CARDOSO, 2003, p. 118-119).

    A Declarao de Princpios sobre a Tolerncia implica na assuno de

    compromissos para aplicao do contedo colocado, incluindo-se tambm a

    proclamao do Dia Internacional da Tolerncia (16 de novembro), o combate

    dos fenmenos de intolerncia, o empenho dos organismos internacionais para

    promover a declarao de princpios sobre a tolerncia e o incentivo aos programas

    de pesquisa e ensino sobre os problemas relacionados com a tolerncia e o

    pluralismo4.

    4 AS RELAES ENTRE TOLERNCIA E SOLIDARIEDADE

    Efetivamente as questes inerentes tolerncia tm importncia quando

    se referem necessidade de convivncia pacfica nas sociedades multiculturais

    e em especial onde ainda se apresentam enormes desigualdades sociais oriundas

    de processos sociais de discriminao. Desta forma, se faz necessrio estabelecer

    mecanismos que permitam a convivncia pacfica e a igualdade de oportunidades

    em meio da pluralidade de projetos de vida.Thiebaut (2004) defende que o pluralismo uma caracterstica que se

    manifesta no espao pblico, pois nele que somos chamados a ser tolerantes com

    a diferena. no espao pblico que as diferenas se entrecruzam em relaes

    desiguais de poder. Assim, os diferentes e despossudos de poder se vem mais

    ameaados do que os diferentes e por vezes minoritrios quantitativamente mas

    possudos de poder. Garcia Bar (2004) aponta para a necessidade de uma tica

    4 Outro evento marcante na discusso sobre a tolerncia foi realizado em Lima, Peru, em janeiro

    de 2004, o XV Congresso Interamericano de Filosofia e II Congresso Ibero Americano de Filosofia. Os

    trabalhos apresentados deram nfase conceituao de tolerncia e de suas relaes com o pluralismo com

    preocupao com a convivncia pacfica e na abertura de dilogo nas sociedades onde coexistem diversas

    concepes de bem-estar.

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    da responsabilidade para com o outro, que seria um ponto alm da tolerncia. Ao

    invs da liberdade de viver e deixar viver, se teria a responsabilidade de viver e

    conviver. Igualmente Dussel (2004) menciona que a solidariedade se apresentaria

    como um dever capaz de fazer retornar dignidade as vtimas da discriminao.

    Disso resulta claro que a tolerncia e a solidariedade so conceitos que searticulam na eliminao dos processos de excluso. Efetivamente o que se observa

    na atualidade, quando se buscam instrumentos jurdicos eficazes para promover a

    convivncia justa, livre e igualitria nas sociedades pluralistas, a retomada dos

    princpios da Revoluo Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Analisando

    os modelos de Estado Constitucional Hberle (1998, p. 87-92) prope trs teses:

    1789 como irrenunciabilidade do passado; 1789 como princpio de esperana;

    1789 como princpio de responsabilidade. Em primeiro lugar, do ponto de vistadogmtico, 1789 representa a garantia constitucional da separao dos poderes, da

    proteo aos direitos humanos e da primazia da Constituio. Em segundo lugar,

    1789 representa um princpio de esperana que se reflete no modelo de sociedade

    aberta, composta de cidados com uma imagem moderadamente otimista, que

    resguarda os valores da liberdade, igualdade e fraternidade. (HBERLE, 1998,

    p. 99). Em terceiro lugar, Hberle (1998, p. 90) aponta 1789 como princpio de

    responsabilidade colocando como exigncia premente da consagrao jurdico-

    positiva do postulado da fraternidade que se concretiza na ideia de cidado como

    concidado, vinculando a sociedade sua funo social.

    Nas lies de Bonavides (2007, p. 562),

    em rigor o lema revolucionrio do sculo XVIII, esculpido pelo gnio poltico francs,

    exprimiu em trs princpios cardeais todo o contedo possvel dos direitos fundamentais,

    profetizando at mesmo a sequncia histrica de sua gradativa institucionalizao:

    liberdade, igualdade, fraternidade.

    Sob o ponto de vista histrico, as Constituies liberais comearam a trazer

    em seu contedo os direitos ditos de primeira gerao, direitos do indivduo frente

    ao Estado, impondo o dever de absteno deste na esfera da autonomia privada do

    indivduo. Depois e principalmente em face dos efeitos da Revoluo Industrial as

    Constituies de Weimar (1919) e do Mxico (1917) trouxeram a segunda gerao

    de direitos os direitos sociais, econmicos e culturais, que se colocaram como

    prestaes positivas do Estado, realizadas por meio de polticas pblicas. Naatualidade, as sociedades se deparam com as dificuldades da convivncia entre os

    diferentes, a discriminao, as dificuldades para eleger princpios comuns de vida

    e de bem estar, o que faz emergir a terceira gerao de direitos, cujo objetivo a

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    proteo do gnero humano so os direitos paz, ao meio ambiente equilibrado,

    diferena, comunicao e informao, ao pluralismo5.

    A evoluo do constitucionalismo moderno implica, pois, na positivao

    dos princpios colocados na revoluo francesa de forma efetiva, em especial o

    princpio da solidariedade ou da fraternidade, que, articulado com a liberdadee igualdade, podero servir de instrumento para a construo de uma sociedade

    democrtica e de respeito dignidade humana.

    5 TOLERNCIA E FRATERNIDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL

    A aplicao do princpio da fraternidade est diretamente ligada ao

    conceito de dignidade humana, que o cerne de todos os direitos fundamentais.

    A dignidade humana representaria assim o contedo mnimo, denominadocomo mnimo existencial (BRITTO, 2007, p. 98). A fraternidade, por sua vez,direciona as relaes entre os indivduos, garantindo a convivncia pacfica, como propsito de dar uma soluo justa aos conflitos, razo pela qual ocasionou osurgimento do denominado constitucionalismo fraterno. A meno ao princpioda fraternidade ou solidariedade vem aparecendo de forma expressa nos textosconstitucionais da atualidade, em especial na Constituio Portuguesa de 1976

    e na Constituio Brasileira de 1988. A Carta brasileira coloca como objetivofundamental da Repblica Federativa a construo de uma sociedade solidria,livre de preconceitos de raa, cor, sexo ou idade (artigo 3). Britto (2003, p. 218)tem afirmado a importncia de se interpretar a Constituio no apenas sob oenfoque da liberdade ou da igualdade, mas tambm da fraternidade: fraternidade o ponto de unidade a que se chega pela conciliao possvel entre os extremos daliberdade, de um lado e, de outro, da igualdade. A comprovao de que tambmnos domnios do Direito e da Poltica a virtude sempre est no meio (medius in

    virtus). Sendo assim, a fraternidade se presta expanso do conceito de dignidadehumana, ela deve alcanar os grupos sociais que historicamente esto em situaode desvantagem, tais como as mulheres, os idosos, os negros, os homossexuais.

    Para Mendes (s/d),

    no limiar deste sculo XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas segundo o

    valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a fraternidade pode

    constituir a chave por meio da qual podemos abrir vrias portas para a soluo dos

    principais problemas hoje vividos pela humanidade em tema de liberdade e igualdade.A tolerncia nas sociedades multiculturais o cerne das questes que este sculo nos

    convidou a enfrentar em tema de liberdade e igualdade.

    5 Ver a abordagem de Scholler (2010, p. 173) acerca da tolerncia como Princpio de Integrao.

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    No desenvolvimento do tema Mendes ressalta que em respeito igualdade e

    tolerncia necessria entre os diversos grupos no sistema democrtico, a liberdade

    de expresso no pode ser vista de forma absoluta, uma vez que o prprio texto

    constitucional coloca limites em funo da proibio de contedos discriminatrios

    e racistas. Menciona que em 2003, no julgamento do Habeas Corpus n 82424,conhecido como caso Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal STF apreciou a

    questo da condenao do escritor e scio de editora pela publicao, distribuio e

    venda de obras de contedo antissemita. Nessa ocasio, o STF sustentou que para

    a preservao dos valores inerentes sociedade pluralista e dignidade humana, a

    liberdade de expresso no alcanaria a intolerncia racial e o estmulo violncia,

    sob pena de sacrificarem-se inmeros bens jurdicos de base constitucional.

    Em 2004, no julgamento das ADIs 3105 e 3128 o STF entendeu serconstitucional a contribuio previdenciria de inativos (Emenda Constitucional

    n 41-2003), baseando a deciso na solidariedade, ou seja, no fato de que a

    manuteno do sistema previdencirio deve contar com a participao de todos,

    tanto ativos como inativos, de modo a se dividirem os custos e possibilitar a

    continuidade da prestao.

    Por ocasio do julgamento da ADI 3.768-4 em 2007 foi garantido aos idosos

    a gratuidade no uso dos transportes pblicos urbanos e semiurbanos. Na deciso

    consta que aos idosos nessa fase da vida assiste o direito a ser assumido pela

    sociedade quanto ao nus decorrente do uso do transporte pblico, novamente

    reafirmando-se o dever de fraternidade, quando aqueles que muito contriburam

    devem usufruir benefcio suportado por aqueles em melhores condies.

    Em maio de 2008, o STF autorizou pesquisas com clulas-tronco

    embrionrias (ADI 3510), julgamento este que teve grande participao de diversos

    grupos da sociedade, colocando argumentos cientficos, morais e religiosos. Para

    a maioria da Corte, o artigo 5 da Lei de Biossegurana no merece reparo, tendo

    o Ministro Relator da ADI 3510 votado pela total improcedncia da ao sob o

    argumento de que dispositivos da Constituio Federal garantem o direito vida,

    sade, ao planejamento familiar e pesquisa cientfica. Destacou, tambm, o

    esprito de sociedade fraternal preconizado pela Constituio Federal, ao defender

    a utilizao de clulas-tronco embrionrias na pesquisa para curar doenas. Ayres

    Britto qualificou a Lei de Biossegurana como um perfeito e bem concatenado

    bloco normativo.No caso conhecido como Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu, no

    julgamento da Pet 3388, a legalidade da demarcao contnua da reserva indgena

    Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na ocasio, a Corte definiu 19 condicionantes

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    que, segundo o ministro Gilmar Mendes, se aplicam Raposa Serra do Sol, mas

    tm tambm um efeito transcendente para os demais casos de demarcao. O

    Tribunal assentou, por exemplo, que reas j demarcadas no sero mais objeto

    de reviso, sejam elas anteriores ou posteriores Constituio. Com isso garante-se

    s comunidades indgenas o direito de desenvolverem-se e manterem sua culturasem a ameaa ou presso de grupos econmicos.

    Outro tema julgado pela Corte Constitucional refere-se s aes afirmativas

    resultantes do sistema de cotas para incluso de minorias no sistema educacional

    (ADPF n 186). Na tramitao da ao judicial perante o STF, abriu-se a

    oportunidade para a realizao de audincia pblica com a participao de

    diversos segmentos da sociedade, apresentando seus posicionamentos e interesses,

    o que contribuiu para a deciso proferida. No contexto de uma sociedade

    pluralista com um passado escravista e uma experincia de crescimento econmicoconcentrado com ampla desigualdade social, o STF em sua deciso contribuiu

    para a efetivao do princpio constante do art. 3, inciso III, da Constituio,

    que elenca como objetivo fundamental da Repblica brasileira erradicar a

    pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Aspectos

    importantes da constitucionalidade da poltica foram contemplados, como o seu

    carter temporrio e o princpio do acesso aos nveis mais elevados do ensino, da

    pesquisa e da criao artstica segundo o desempenho individual (art. 208, incisoV, da Constituio).

    6 OS LIMITES DA TOLERNCIA

    Tema complexo e necessrio no tocante a tolerncia encontra-se na

    discusso sobre os seus limites. De certa forma falar em tolerncia significa afastar

    todas as formas de dogmatismos e absolutismos existentes. Significa reconhecer a

    falibilidade humana, o pressuposto de que no existem verdades absolutas, que oconhecimento, a experincia e a existncia so relativas, pois esto diretamente

    ligadas cultura na qual se vive, ao tempo, s condies climticas. Assim

    tolerncia implica no reconhecimento do diferente, ainda que para isso voc no

    tenha que abrir mo de suas convices, pois quando se fala em tolerncia religiosa,

    por exemplo, no significa dizer que a f tenha que ser relativizada em razo do

    pluralismo religioso. A f tem carter absoluto e a tolerncia religiosa no procura

    descaracteriz-la. O que est em jogo que to absoluta quanto a f de um a fdo outro e assim cada um tendo a religio como o espao individual ou de grupos,

    mas no necessariamente da totalidade, expressam seu modo de viver espiritual

    respeitando a convico de quem diverge dessa crena.

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    A questo dos limites da tolerncia encontra-se exatamente nesse consenso

    de que para que cada um ou grupos possam viver sua maneira, a totalidade deve

    ter como premissa de que ser tolerante com o diferente uma questo fundamental

    da existncia dessa pluralidade. Aqui se pode inclusive especular acerca das boas

    intenes de todos no sentido de que no esto motivados a subverter essa ordem.O risco da subverso um indcio forte dos limites da tolerncia.

    Para Forst (2002, p. 10) o limite da tolerncia poderia ser encontrado

    onde a intolerncia comea, ou seja, a tolerncia seria exercida apenas em

    face dos tolerantes, tratar-se-ia de uma questo de reciprocidade. No entanto,

    observa que quando se analisa a questo sob o ponto de vista do contedo da

    constituio da ideia de tolerante e intolerante as coisas tomam rumo diferente.

    Assim, a concretizao do conceito de tolerncia leva intolerncia em face daarbitrariedade dos assim chamados intolerantes, ou seja, a tolerncia sempre

    uma melhor ou uma pior forma encoberta de intolerncia. O recurso ao discurso da

    tolerncia em grande medida uma manobra retrica no campo da luta de poder

    entre partidos, dos quais no se pode levantar para si nenhuma medida maior de

    legitimidade como esta que a maioria dos conceitos de tolerncia erradamente

    toma. Quem fala de tolerncia no pode silenciar sobre o poder!

    Deve-se, no entanto, ter cuidado com a desconstruo retrica do conceitode tolerncia. Nesse sentido apresentam-se dois sentidos de intolerncia: (i)

    o daqueles que esto alm dos limites da tolerncia, ou seja, que rejeitam a

    tolerncia como norma; (ii) o daqueles que no toleram essa rejeio. No existe a

    possibilidade de se extrair o conceito de tolerncia no arbitrariamente, seno de

    forma imparcial sob a perspectiva de uma moral superior (FORST, 2002, p. 11).

    A desconstruo do conceito de tolerncia leva ao reconhecimento de que

    o conceito normativamente aberto e vazio. Tolerncia no propriamente umvalor, mas uma garantia (Haltung) referente a outros valores ou princpios que

    devem ser considerados de forma imparcial. Para no cair num vazio conceitual,

    Forst elenca seis caractersticas do conceito de tolerncia: (i) deve-se atentar para o

    contexto da tolerncia pais e filho, amigos, membros de diferentes comunidades

    religiosas, cidados do mundo, cidados de um Estado; (ii) as crenas ou prticas

    toleradas so condenadas em sentido normativo como erradas ou ruins; (iii) essa

    rejeio uma face positiva do componente de aceitao, ainda que no remova avalorao negativa, indica em contexto relevante razes pelas quais certas crenas

    ou prticas ainda devam ser toleradas; (iv) pertence ao conceito de tolerncia a

    marca do seu respectivo limite, onde argumentos para uma rejeio so mais fortes

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    do que para a aceitao; (v) s se pode falar em tolerncia quando o seu exerccio

    voluntrio e no est vinculado a uma aceitao imposta; (vi) o conceito de

    tolerncia nos leva a uma prtica poltica jurdica dentro de uma comunidade

    poltica com liberdade, garantia, virtude (FORST, 2002, p. 11-13).

    Cardoso (2003, p. 147) possui uma compreenso mais ampla da ideia doslimites da tolerncia. Ele a vincula dimenso social de desigualdade entre

    indivduos, grupos e povos: a conquista plena da tolerncia est condicionada

    busca de alternativas de desenvolvimento socioeconmico aos modelos que

    produzem e reproduzem a desigualdade social pela explorao e dominao entre

    indivduos, grupos e povos. Outro aspecto importante que ressalta diz respeito

    relao entre identidade e diversidade:

    tolerncia o reconhecimento da diversidade cultural a partir da valorizao da

    identidade da prpria cultura. O que isso signifca? Signifca que o respeito de um povo

    s culturas diferentes depende fundamentalmente da conscincia clara da identidade e

    do valor de sua prpria cultura. A identidade cultural, por sua vez, no algo esttico,

    acabado. Est sempre se transformando com a dissoluo de aspectos culturais do

    passado e com a assimilao de novas culturas no contato com outros povos. (CARDOSO,

    2003, p. 149-150).

    Para Cardoso (2003, p. 150), a conscincia de sua identidade passa

    necessariamente pelo conhecimento das relaes histricas com as outras culturas.

    A, ento, toma-se conscincia tambm das relaes de dominao entre as culturas

    ou de reconhecimento entre elas.

    As referncias a Forst e Cardoso mostram perspectivas diversas que o tema

    tolerncia possui. De um lado, um autor europeu que est inserido na discusso

    sobre liberdade religiosa, em especial sobre questes polmicas como a existnciado crucifixo nas salas de aula, o uso da burca pelas mulheres mulumanas ou at

    mesmo o uso do instituto do casamento nas relaes homoafetivas. De outro, tem-se

    um autor latino-americano que analisa o tema da tolerncia no importante marco

    caracterizador da sociedade latino-americano: a relao desigual entre colonizador

    e colonizado, entre o senhor branco e o negro escravo. Esse ltimo ao reivindicar

    conscincia da sua prpria cultura para compreenso das relaes de dominao

    entre culturas procura compreender o conceito de tolerncia como instrumento deemancipao social. A tolerncia no deve ser entendida como uma concesso em

    relao a uma cultura menor, mas um instrumento de compreenso e convivncia

    harmoniosa de diversas culturas em condies de igualdade.

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    Recebido: 27/08/2013

    Aprovado: 18/11/2013