Artigo Sobre a Negatividade Em Hegel

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Artigo sobre a negatividade em Hegel.

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  • Negatividade dialtica e a autodeterminao do nada absoluto

    Marcos Lutz Mller, Doutor, Unicamp, GT Hegel.

    Palavras Chave: Hegel; Nishida; Dialtica; Ser; Nada. Resumo: O presente trabalho objetiva apresentar a recepo de Hegel por Nishida no contexto do que historiograficamente se convencionou designar por Escola de Kyoto. O ponto de encontro

    para a apropriao crtica que Hegel recebe de Nishida a sua lgica especulativa. Nessa direo, ao observarmos o prprio percurso especulativo de Nishida, exporemos o problema do comeo da filosofia como questo fundamental para um discurso filosfico autntico e tematizaremos a dialtica do Ser e do Nada, enquanto momentos do discurso hegeliano

    apropriados por Nishida. Em seguida ser reconstruda a crtica de Nishida Hegel atravs da exposio da tese da anterioridade do Nada absoluto em relao dialtica do Ser e do Nada, e

    de como o autoodespertar emerge do Nada absoluto. Por fim se efetuar uma reconstruo crtica da dialtica hegeliana no horizonte da perspectiva de Nishida.

    Em fevereiro de 1931, ento com 60 anos (*19.05.1870), Nishida redige uma srie de reflexes sobre a dialtica de Hegel1, antes de tudo a sua lgica especulativa, que um balano

    crtico da sua relao a Hegel, um acerto de contas com o autor que ele diz ter comeado a ler aos vinte anos, e que mesmo hoje no deixa a minha cabeceira2. Em 15 de maio de 1937 ele acrescenta a essas consideraes numeradas o seguinte: meu pensamento hoje comporta vrias coisas que me foram ensinadas por Hegel; todavia, mesmo se eu me considero como mais prximo dele do que de qualquer outro pensador, tenho ao mesmo tempo muito a dizer contra ele. (NH, 40)3

    1.O comeo da filosofia na experincia pura e o lugar do nada absoluto.

    1 Nishida, Kitaro, La dialectique de Hegel considere de ma position (1931), trad. Ibaragi Daisuk e Michel

    Dalissier, in : Philosophie, n 103, automne 2009, Les ditions de Minuit, Paris, pp. 51-75. As citaes no corpo do texto sero indicadas pelas maisculas NH (Nishida-Hegel), seguidas da numerao dos pargrafos da edio japonesa original NKZ, XII, pp. 64-84, incorporada na traduo. 2 Dalissier, M., Prsentation, ibid., p. 51.

    3 No perodo em que Nishida exerceu a docncia na Universidade Imperial de Kyoto, entre 1910 e 1928, ele

    ofereceu quatro cursos sobre a Cincia da Lgica (1916-1917; 1920-1921; 1921-1922 e 1922-1923), um curso sobre a Fenomenologia do Esprito (1925-1926) e um sobre as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (1927-1928). Cf. Yusa, Michiko, Zen and Philosophy. An intellectual Biography of Nishida Kitaro, University of Hawaii Press, Honolulu, 2002, pp. 218-219.

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    A inteno principal de Nishida nesse confronto no tanto uma crtica a Hegel, muito menos uma crtica externa, mas uma pergunta sobre o que torna possvel a lgica hegeliana e o que permite compreender o seu conceito central de negatividade. A pretenso de Nishida muito mais a de mostrar como a lgica dialtica uma forma derivada de uma lgica mais

    fundamental, que a sua lgica do lugar ou lgica tpica. Partindo de sua convico primeira de que a lgica especulativa no pode fundamentar logicamente o prprio solo em que

    ela se desenvolve, a saber, o puro pensar, Nishida, com a pergunta sobre a condio de possibilidade da lgica hegeliana, quer recuar a uma dimenso anterior do puro pensar, na qual ela se desenvolve como uma teoria apriori das categorias. Essa dimenso anterior ao pensamento denominada, no Ensaio sobre o Bem4 de experincia pura, na qual o pensamento est inicialmente fundido com ela numa identidade originria de saber, sentir e querer, que forma um sistema originariamente unitrio (G, 33; 6) da conscincia. Nishida concebe tambm essa identidade originria entre experincia e pensamento recorrendo a W. James, para o qual o pensamento uma funo da experincia s relativamente distinta dela: a experincia pura e imediata a funo unificadora, bsica da conscincia, e o pensamento, a sua funo de diferenciao, derivada daquela (G, 48-50; 17-19) Como experincia pura e experincia imediata so uma s coisa (G, 29; 3) ela conduz a um acesso imediato realidade tal como ela verdadeiramente , antes que nos voltemos a ela pelo pensamento (G, 82; 49). Conduzir experincia da realidade no que ela verdadeiramente a maneira como Nishida concebe desde o incio a tarefa da filosofia. o pensamento abstrato da conscincia reflexiva que transforma a funo unificadora da conscincia no seu acesso imediato realidade verdadeira num sujeito que se ope ao que foi unificado como objeto. A linguagem e a predicao exprimem na cpula do juzo, de maneira derivada, a fora unificadora do sistema da conscincia, de tal sorte que a experincia pura permanece sempre mais rica do que as significaes que surgem da sua diferenciao predicativa: a experincia pura a experincia do factual tal como ele . Ela no tem significao. (G, 36; 8) Por isso ele afirma mais adiante que a significao da experincia ou do juzo no enriquece o contedo prprio da experincia (G, 37; 9). Mas no pensamento concreto, que ele compreende, citando a Cincia da Lgica de Hegel, como uma autodiferenciao do universal concreto, h uma coincidncia imediata da sua efetivao

    4 Nishida, K., ber das Gute, trad. Peter Prtner, Insel Verlag, Frankfurt am Main, 1989. Nishida, K., An Inquiry

    into the Good, trad. Masao Abe e Cristopher Ives, Yale University Press, New Haven and London, 1990. A obra, publicada em 1911, ser citada pela maiscula G, seguida do nmero da pgina da traduo para a lngua alem e inglesa, separadas por ponto e vrgula.

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    atravs da sua diferenciao com o desenvolvimento da fora unificadora da conscincia na pura experincia em direo a uma unidade sempre mais ampla. (G, 48; 17)5

    A experincia pura no sentido de um acesso imediato realidade originria, nas vrias configuraes conceituais que ela assumir ulteriormente atravs das crticas a que ela vai ser

    submetida, nunca deixar de ser o comeo verdadeiro da filosofia. O percurso filosfico posterior de Nishida, no sulco da experincia da meditao e da assimilao da tradio do

    pensamento budista do vazio como nada, vai aprofundar a experincia pura e imediata do sistema da conscincia em direo ao conceito de lugar do nada absoluto. O conceito de lugar (basho), elaborado entre 1924 e 1926, quando publicado o estudo sobre o Lugar (Basho)6, vai substituir o conceito de campo da conscincia do Ensaio sobre o Bem. Ele concebido originalmente no contexto da lgica do predicado7 como um campo ou mbito em que os predicados atribudos aos objetos nos juzos de subsuno formam um sistema coerente, passando ele a ser a condio das relaes e da coerncia dos predicados entre si. O prprio Nishida pensa a metfora espacial contida no conceito de lugar a partir da chora platnica, mas dela difere porque ao invs do sentido cosmolgico que tem em Plato ele designa o conceito de campo de conscincia. Assim como o predicado gramatical abarca ou engloba no

    ato judicativo o sujeito gramatical, o basho abarca a autoconscincia, possibilitando o acesso intuitivo ao si-prprio.8 Concebido como o lugar do nada absoluto9, o basho pensado na sua amplitude mxima como uma espcie de receptculo, que permite surgimento de todas as coisas

    5 O texto que segue diretamente a meno tese de que o universal a alma do concreto no poderia revelar mais

    claramente sua inspirao hegeliana: A experincia pura se desdobra sistematicamente, por isso a fora unificadora continuamente atuante no seu fundamento tem de ser de maneira imediata e em si a universalidade do conceito. O desenvolvimento da experincia imediatamente o avano do pensamento. Isso quer dizer que o fato da pura experincia a auto-efetivao do assim chamado universal. (G, 48; 17) A traduo inglesa vertendo o conceito especulativo de conceito no plural (os conceitos) encobre parcialmente a extrao hegeliana do texto. Nishida acompanha a ruptura hegeliana com a oposio metafsica tradicional entre o pensamento e experincia, segundo a qual o pensamento apreende o universal e a experincia apreende o particular; para Hegel e Nishida a autodiferenciao do universal concreto que engendra o particular e atua no seu interior, como a semente numa planta (G, 49; 18). Se o universal a fora unificadora que se autodiferencia e atua no seio do particular, ento desaparece logicamente a diferena entre pensamento e experincia (G, 49; 18), no sentido de que o particular no s resultado da determinao espao-temporal, mas que ele tem de ser particular no seu contedo prprio. O universal aquele particular que alcanou o extremo do seu desenvolvimento. (G, 50; 18) 6 Nishida, K, Ort (Basho)(1926), in: Logik des Ortes. Der Anfang der modernen Philosophie in Japan, ed. e trad.

    Rolf Elberfeld, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1999. A obra ser citada pela inicial maiscula B, seguida do nmero da pgina da edio mencionada. 7 Numa carta a Mutai Risaku, de 8 de junho de 1926, ms do publicao do ensaio sobre o Lugar, Nishida explora

    sua inteno: este ensaio, Basho, ainda no est claro, mas aquilo em que estou empenhado definir a conscincia logicamente como o que se torna predicado gramatical e no sujeito gramatical contra a definio de substncia de Aristteles como aquilo que se torna sujeito gramatical e no pode tornar-se predicado gramatical. [...] De todo modo, com a idia de topos sinto que alcancei a meta filosfica que estava procurando, Tentarei reconstruir minhas idias anteriores a partir da perspectiva do basho. Yusa, Michiko, Zen and Philosophy. An intellectual Biography of Nishida Kitaro, University of Hawaii Press, Honolulu, 2002, pp. 204-205. 8 Yusa, Michiko, Zen and Philosophy. An intellectual Biography of Nishida Kitaro, University of Hawaii Press,

    Honolulu, 2002, pp. 202-209. 9 Nishida, K., Die intelligible Welt, Drei philosophische Abhandlungen (1930), ed. e trad. Robert Schinzinger, De

    Gruyter, Berlin, 1943, pp. 117, 121. Citao pelas maisculas IW, seguidas da pgina.

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    no seu modo de ser irredutivelmente singular, e, simultaneamente, o acesso ao si-prprio verdadeiro, que se defronta com a sua prpria nadidade numa operao originria de esvaziamento e de esquecimento de si. O nada absoluto uma forma de negao originria, anterior ao pensamento, que se enraza na vida profunda do si-prprio, e que Nishida conceber

    ativamente como autodeterminao do nada absoluto. (NH, 31, 39) O conceito de autodeterminao, que remonta a Kant e ao idealismo alemo, retomado especialmente a

    partir da autodeterminao do conceito em Hegel, para pensar o aspecto ativo do lugar do nada absoluto, que seria para Nishida o fundamento da negatividade absoluta hegeliana e a sua condio de possibilidade. O conceito de lugar do nada absoluto, vai ser concebido no dilogo com Hegel ativamente como autodeterminao do nada absoluto. Partindo de um confronto

    direto com a dialtica inicial do ser e do nada, com a qual comea a lgica de Hegel, Nishida inicia o seu ensaio perguntando, hegelianamente, como possvel pensar e existir aquilo que

    traz uma contradio em si mesmo?10

    2. O comeo absoluto com a dialtica do ser e do nada.

    Mas antes de examinar esse confronto, indispensvel uma rpida apresentao dessa dialtica do ser e do nada, que para Hegel o ponto de partida do pensamento filosfico. Com

    efeito, como saber radical, para alm dos saberes parciais, a filosofia no pode nada pressupor como previamente dado e j determinado, nem o seu prprio objeto, que tem de ser gerado pela atividade do puro pensar que pensa e determina a si mesmo na lgica, nem o seu mtodo. O ser puro, sem qualquer determinao, enquanto ele resulta do saber absoluto que se suspende a si mesmo enquanto puro saber ao termo da Fenomenologia do Esprito, aparece para o puro pensar que ps de lado todas suas opinies, preconceitos e reflexes, como a figura imediata do comeo lgico. (WL, I, 54) Ele , assim, a imediatidade simples, o ser em geral (WL, I 54), sem qualquer relao e desprovido de toda determinao ou distino. Mas o puro ser pensado nesta imediatidade indeterminada11 (WL, I, 66), em que ele no possui nenhuma diferena interna em si mesmo, nem uma diferena externa em relao a outro, inteiramente vazio, e como tal, idntico ao nada. O nada, por sua vez, como substantivao de um no absoluto e de

    uma negao total e abstrata, , na sua perfeita vacuidade, sem determinao e sem contedo

    10 Para que um movimento dialtico seja pensvel e exista preciso primeiramente perguntar se o que traz uma

    contradio em si mesmo pensvel e existe. Como sustentar tal proposio? (NH, 1) 11

    Hegel, G.W.F., Wissenschaft der Logik, ed. G. Lasson, Meiner, Hamburg, 1963 (Philosophische Bibliothek, v. 56). A obra ser citada pelas iniciais WL, seguida pela indicao dos volumes I ou II, mais a indicao da pgina. H uma traduo recente de excertos da Cincia da Lgica para o portugus: Hegel, Cincia da Lgica. Excertos. Seleo e traduo de Marco Aurlio Werle, Barcarolla, So Paulo, 2011.

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    (WL, I, 67), o mesmo intuir vazio ou pensar vazio que o puro ser (WL, I, 67). Essa identidade entre o puro ser e puro nada, em que se exprime a capacidade de abstrao absoluta do pensamento, est, para Hegel, na origem tanto conceitual e como histrica da metafsica e de toda cincia ocidental. Ela no uma unidade estvel ou esttica, mas, como diz Hegel

    metaforicamente, uma inquietude incessante e sem sustentao (WL, I, 93), que a linguagem dialtica descreve como o desaparecer de cada um no seu contrrio, como um puro passar

    imediato de um ao outro, e que ela procura captar conceitualmente como o suprimir/ suspender (aufheben) de cada um no outro. Eles mesmos so algo de inanalisvel (WL, I, 60), e a sua diferena indizvel (WL, I, 77), pois se a intuio quiser visar e o pensamento dizer aquilo no que seriam diferentes, ou se introduziria subrepticiamente uma determinao, e

    neste caso ser e nada no seriam mais um imediato indeterminado, portanto, um comeo sem pressupostos, ou se permanece na intuio vazia e no pensamento vazio, onde so idnticos. Por

    isso, no comeo, ser e nada, intuir e pensar esto numa identidade de indiferenciao. Ambos so idnticos entre si, e idnticos com o prprio pensamento e o intuir vazios.

    A resposta hegeliana a esta aporia do comeo, em que a identidade imediata do ser e do nada, resultante da tentativa de pens-los absolutamente neles mesmos, deve gerar o movimento

    e a diferenciao, dizer que eles s so diferentes no movimento que simultaneamente anula e faz surgir a sua diferena. Isso o que constitui o vir-a-ser, a forma mais elementar do

    movimento.12 Portanto, s nessa passagem incessante e sem sustentao do ser ao nada e do nada ao ser que a sua diferena torna-se real no mesmo ato e instante em que ela suspensa. Assim, no vir-a-ser, ou melhor, nesta unidade que o pensamento apreende como o vir-a-ser, ser e nada passam a ser momentos. Eles decaem (WL, I, 92) da sua pretensa autonomia e da sua diversidade absoluta, que s existe na representao e na linguagem, a momentos dessa unidade que os abrange enquanto vir-a-ser. Nesse, ser e nada se distinguem e simultaneamente anulam a sua distino, pois real somente a direo inversa desse movimento da passagem de um ao outro, do nada ao ser, surgir, nascer, e do ser ao nada, perecer.

    3. Elementos hegelianos da crtica de Nishida a Hegel.

    Contra essa primeira dialtica do ser e do nada, que constitui o comeo absoluto da lgica hegeliana com o imediato indeterminado, Nishida faz uma objeo global a partir de um conceito de nada que provm em parte da sua lgica do predicado e do lugar, em parte da tradio oriental, principalmente da tradio budista do esquecimento/esvaziamento de si mesmo. Por

    12 a natureza dialtica imanente do prprio ser do prprio nada que faz com que eles mostrem a sua unidade, o

    vir-a-ser, como sua verdade. (I, 92)

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    meio do conceito de nada absoluto Nishida quer ultrapassar a dialtica hegeliana e a metafsica ocidental em direo a uma dimenso mais profunda, anterior ontologia do ser e ao princpio da subjetividade moderna. Ele quer por em questo no s a primazia do sujeito na figura do cogito cartesiano, do eu transcendental de Kant e de Fichte, e, tambm, da fenomenologia

    husserliana, mas principalmente na verso mais radical da lgica hegeliana, na qual a autonomia do puro pensar enquanto conceito princpio do desenvolvimento de um sistema categorial e da

    sua efetivao nas estruturas racionais profundas da realidade efetiva. Como Hegel, ele tambm quer pensar um nada absoluto, s que para Hegel o vazio do seu nada absoluto, no comeo, uma negao inteiramente abstrata, imediata, sem relao, o mero no absolutizado (WL, I, 68); no desenvolvimento categorial posterior o nada torna-se negao determinada, o operador central da progresso dialtica atravs das oposies, e na sua forma mais elevada, negao auto-referencial, negao que se nega a si mesma, a negao da negao, que opera a

    superao e integrao dos opostos numa unidade mais alta. Nishida reconhece que a negao e a negatividade absoluta no sentido da negao que se nega a si mesma so o centro da dialtica hegeliana, mas aponta como sendo a sua falha a de que ela s o momento intermedirio da dialtica, cujo fim e pice , em Hegel, a suspenso (Aufhebung) das determinaes opostas numa unidade mais abrangente (a dimenso positivo-racional da dialtica), em que elas so, ao mesmo tempo, apreendidas na sua oposio e integradas como momentos num todo mais rico e

    diferenciado.13 Este esquema dialtico est presente em teses centrais do Ensaio sobre o Bem,

    certamente de maneira transformada, porque ele atua no no interior do puro pensar que pensa a si mesmo, mas no interior da experincia pura como uma forma de acesso imediato realidade verdadeira. Como a realidade somente um fenmeno da nossa conscincia, i. , um fato da experincia imediata, a apreenso do princpio de unificao e diferenciao do sistema da conscincia e dos seus fenmenos simultaneamente a apreenso do princpio de unificao e diferenciao da realidade. Neste ponto central Nishida indiretamente ainda tributrio, neste ensaio, da identidade metafsica entre lgica e ontologia, mesmo que a identidade parmendica

    entre ser e pensar, que Hegel pe na origem da metafsica, e cuja jutificao o programa da sua lgica, seja por Nishida repensada como a identidade de ambos princpios na dimenso da experincia pura. Depois de afirmar que a fora unificadora que opera nos fenmenos da conscincia e nos fenmenos materiais do mundo exterior da mesma espcie, ele conclui: A

    13 Hegel, G.W.F., Enzyklopdie der philophischen Wissenschaften Im Grundrisse (1830). Erster Teil. Die

    Wisssenschaft der Logik, eds., Moldenhauer, E. e Michel, K.M., Suhrkamp, 1975, v. 8, 81-82. - Enciclopdia das Cincias Filosficas em Compndio (1830). Primeira Parte. A Cincia da Lgica, trad. Paulo Meneses, Loyola, So Paulo, 1995, 81-82.

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    fora de unificao na base do nosso pensamento e da nossa vontade imediatamente idntica com a fora de unificao na origem de todos os fenmenos csmicos. (G, 93; 56)14 Trata-se para o primeiro Nishida de um princpio (G, 99; 61), anterior diferena entre sujeito e objeto, entre saber, sentir e querer, entre esprito e matria, um princpio que no podemos ver como

    objeto da conscincia, e que no pode ser apreendido pela linguagem e pela reflexo. Ele independente e autrquico, criativo, (G, 99; 61), mas podemos, enquanto ele nos dado como fato da experincia pura (G, 82; 47), nos desenvolver nele e agir de acordo com ele (G, 99, 61). H a no s a reconduo da fora unificadora da conscincia e da fora unificadora do mundo a um fundamento unitrio (G, 100; 62), mas, tambm, no processo de desenvolvimento da realidade e da conscincia, um primado do movimento de unificao sobre o

    movimento da diferenciao, porque a diferenciao resulta do princpio unitrio, na medida em que a diferena e a oposio j esto a contidas, e a meta antes de tudo produzir a mxima unidade do sistema da conscincia e da realidade. (G, II Parte, Seo 7; cap. 11)

    nesta mesma perspectiva metafsica que Nishida explicita, na III Parte, a sua teoria tica, o energetismo, na qual o bem concebido hegelianamente como a auto-realizao do si-prprio (165; 125); essa auto-realizao consiste em agir em funo da unidade mais ampla da conscincia, enquanto ela expressa a fora unificadora do universo, que atua nas exigncias internas mais fortes e profundas do si prprio. (G, III Parte, Sees 10 e 11; caps. 24 e 25) A importante ressalva de que ele concebe o bem absoluto como a atualizao da personalidade (no sentido kantiano) (G, 172, 132), e, por sua vez, a atualizao da verdadeira personalidade, j num horizonte budista, como o abandono/erradicao das esperanas da personalidade e o esquecimento de si-prprio (G, 171; 130), no abala o fundamento metafsico da sua tica.15 A concluso tico-teolgica da 3 parte corrobora isso mais uma vez: Nosso verdadeiro si-prprio a substncia do universo. O conhecimento do verdadeiro si-prprio nos conecta no s com o bem universal da humanidade, mas tambm nos une com a substncia do universo e com a vontade de Deus. Aqui religio e moral vo juntas. (G, 187; 145)16

    14 Ver a este propsito as Sees 6, 7, 10 da II Parte, na traduo alem, e os captulos 9, 10, 14, na traduo

    inglesa. 15

    Se, porm, como descrito acima, os fenmenos de conscincia so a nica realidade, ento nossa personalidade enquanto tal imediatamente o atuar da fora unificadora do universo; i. , uma forma de aparecimento especfica, adequada s circunstncias, da nica realidade, na qual a separao de esprito e matria est suspensa. (G, 171; 131) A unidade absoluta [do si-prprio subjetivo] se instaura somente quando ele descarta inteiramente a sua unidade subjetiva e se absorve na unidade objetiva. (G, 192; 151) 16

    Toda conscincia surge da unidade. Essa unidade no , contudo, a pequena unidade que no dia a dia mantm coesas nossas conscincias individuais, mas a grande unidade de conscincia do universo. (...) O mundo natural um sistema de conscincia constitudo a partir dessa unidade trans-individual. Nossa subjetividade individual unifica a experincia do si-prprio pessoal, a subjetividade trans-individual unifica as experincias de todos os homens, e o mundo natural surge como objeto da subjetividade trans-individual. (G, 201-202; 161) Aqui Nishida se aproxima muito do conceito hegeliano de esprito.

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    Essas so algumas das teses onto-teo-lgicas do Ensaio sobre o Bem, com as quais Nishida ainda opera, fundadas no essencial em intuies e em algumas categorias oriundas da dialtica hegeliana mais visivelmente tributrias de uma metafsica identitria. Esta breve incurso vai permitir destacar, todavia, a relevncia das suas crticas lgica hegeliana no sulco

    da elaborao do conceito de lugar do nada absoluto, que vamos agora examinar.

    4. A anterioridade do nada absoluto dialtica do ser e do nada.

    A sua objeo mais geral dialtica do ser e do nada a de que o puro ser, enquanto primeira figura do comeo absoluto implica uma prioridade do ser sobre o nada e impede de

    pensar um nada que no seja somente um oposto ao ser. De fato, o ser como comeo da filosofia a base (Grundlage) presente que se mantm em todos os desenvolvimentos posteriores (WL, I, 56), e a identidade processual do ser e do nada, a sua sntese imanente (WL, I, 82) no vir-a-ser, a primeira verdade que subjaz (zugrunde liegt) a todas as determinaes do pensamento ulteriores (WL, I, 70). Isso corrobora a crtica de Nishida secreta pr-eminncia do ser sobre o nada no comeo lgico, pois precisamente quando se quer pensar o ser na sua

    indeterminidade o nada irrompe imediatamente nele (I, 85), mas desde logo ele capturado pelo ser na gnese do vir-a-ser e integrado como momento da unidade em repouso (WL, I, 93) do ser-a (Dasein), que o vir-a-ser posto na determinidade do ser. Essa captura do nada pelo ser e sua preeminncia perduram em toda a progresso categorial ulterior, na qual a negatividade, na figura da negao determinada, sempre um momento sucessivamente suspenso numa determinao positiva mais complexa, que culmina na verdade do ser enquanto conceito e na Idia. Por isso, o nada que Hegel quer pensar como absoluto, na sua indistino nele mesmo e como a vacuidade perfeita (WL, I, 67) , na verdade, um nada relativo ao ser, um nada opositivo (WL, I, 83), pois ele na verdade um no-ser, e no o nada verdadeiro. Para Nishida ainda um gnero de ser, uma espcie de ser potencial17, que, como o no-ser do Parmnides de Plato e de toda metafsica ocidental, no pensado em sua verdadeira absolutidade.

    Hegel poderia retrucar objeo de Nishida dizendo que a diversidade absoluta de ser e nada no comeo no ainda nem uma relao e nem uma oposio, Hegel quer pens-los neles mesmos, na sua abstrao plena, no-proposicionalmente, sem afirmao ou predicado

    17 Quando o nada que est frente e frente ao ser subsume tudo como um conceito genrico, o nada torna-se uma

    espcie de ser potencial (B, 82)

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    (satzlos ohne Behauptung oder Prdikat)18, pois eles esto inicialmente numa total alteridade que os deixa fora da relao. Neste aspecto, Nishida compreende de maneira equivocada a identidade imediata do ser e do nada, resultante do fracasso em pens-los na sua separao, como uma determinao recproca de ambos. O fato de que precisamente na sua pretensa

    separao/alteridade absoluta eles se tornam idnticos constitui justamente a primeira figura de uma contradio real a ser pensada, cuja condio de possibilidade Nishida quer precisamente investigar. Mas, enquanto para Hegel a contradio se resolve na categoria do vir-a-ser, para Nishida s possvel pens-la a partir do nada absoluto, que rompe com essa identidade inicial e fundamental do nada e do ser, que simultaneamente a identidade programtica de ser e pensar, que constitui o solo da metafsica e da cincia ocidental (WL, I, 74).

    Considerado a partir da lgica do lugar, esse nada relativo o lugar do nada opositivo (B, 83), no qual se constituem a conscincia em geral no sentido kantiano e os objetos enquanto fenmenos.19 Ele o mbito em que o objeto aparece como fenmeno, mas no na sua verdadeira realidade: na conscincia em geral no podemos conhecer a verdadeira realidade, pois a coisa em si permanece a como algo inacessvel ao saber. (B, 103) Do ponto de vista da lgica do predicado, o nada o campo de conscincia, que substitui as diferentes figuras do eu

    penso, onde se configuram as relaes entre os predicados que podem definir o objeto atravs dos atos de conscincia que produzem os diferentes juzos.20 Mas mesmo que como equivalente da conscincia em geral esse nada relativo negue todo ente a presente e ultrapasse todos os conceitos genricos, nessa sua oposio ao ser ele no abandona a sua determinidade de gnero (B, 83). No contexto da crtica metafsica interessante destacar a observao de Nishida, de que desse nada que ainda uma modalidade de ser potencial, surge uma metafsica espiritualista (ibid).

    O verdadeiro nada para Nishida aquele que anterior oposio entre ser e nada, e que por isso torna possvel o prprio surgimento do ser e tambm o da sua oposio ao nada: o verdadeiro nada no , todavia, esse nada opositivo, mas aquele que abrange/compreende em si o ser e o nada (B, 83). Nessa sua abrangncia o lugar do nada absoluto determinado como o universal mais concreto, o universal dos universais21, que se equipara ao que o Ensaio

    18 Hegel, G.W.F., Wissenschaft der Logik. Das Sein (1812). Philosophische Bibliothek v. 375, Meiner, Hamburg,

    1986, p. 58. 19

    Numa surpreendente proximidade ao Sartre de tre et le Nant, Nishida vai dizer que esse nada opositivo e relativo o lugar onde emerge a conscincia subjetiva que se defronta com o ser. Estamos prximos do nada sartriano, que transforma a intencionalidade husserliana numa nadificao do ser, entendida como abertura ao aparecer do mundo. 20

    Stevens, Bernard, Invitation la Philosophie japonaise. Autour de Nishida, CNRS Editions, Paris, 2005, p. 89. 21

    A presena de argumentos e conceitos hegelianos, certamente mobilizados noutro registro e noutra direo, revela-se no uso dos termos abrangncia ou englobamento, que remetem ao conceito bergreifen, que descreve a operao fundamental do conceito (Begriff) no sentido especulativo, que, precisamente enquanto universal

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    sobre o Bem chama de o campo da conscincia, que se esvazia verdadeiramente, e no qual, graas a esse esvaziamento, os objetos no s aparecem, mas se espelham tais como eles so (B, 84), na sua taleidade. Ao contrrio da dialtica hegeliana inicial, em que o ser passa ao nada, a segunda figura do comeo lgico, aqui o ser surge, no sulco vazio deixado pelo nada e

    graas a ele, assim como a espuma se forma no cncavo da onda22. Essa metfora de Nishida remete, primeiro, a uma diferena central da respectiva compreenso que ambos tem da

    negatividade como cerne da dialtica; segundo, remete tambm, inteno de uma crtica positiva a Hegel, positiva porque quer pensar as condies de possibilidade da dialtica hegeliana e revelar o seu sentido verdadeiro (NH, 16). Mas de fato ela o esforo de pensar uma outra lgica dialtica e um outro comeo com propsitos profundamente diferentes23.

    Assim, se em Hegel a negatividade enquanto negao determinada o elemento dinmico da lgica especulativa, que faz progredir a autodeterminao do pensamento enquanto conceito

    em direo Idia, isso s possvel para Nishida na medida em que o nada absoluto esvazia a unidade alcanada em cada nova determinao, precipitando-a / abismando-a na sua ausncia de fundamento. Os verbos precipitar e abismar, nos quais ressoam o significado dos respectivos substantivos, precipcio e abismo, exprimem muito bem o sentido metafrico dessa operao

    de esvaziamento, que sorve como um torvelinho a unidade j alcanada e as determinaes opostas em sua oposio, a fim de tornar possvel a operao infinita de unificao e superao

    das oposies que a Aufhebung hegeliana implica. Nishida objeta a Hegel de no ter pensado suficientemente o princpio dinmico de sua dialtica, a negatividade, pois essa originariamente a operao de esvaziamento que unicamente torna possvel a suspenso e a unificao dos opostos. Essa operao de esvaziamento na origem da unificao conceituada como autodeterminao do nada absoluto. Ela no uma espontaneidade da razo ou de um sujeito, seja emprico, transcendental ou absoluto, mas uma atividade annima e trans-individual, que atua na vida profunda do si-prprio e no despertar a si e em si (NH 6, 7), urgindo o

    concreto, se alastra sobre e abrange/abarca os seus momentos internos, a universalidade, a particularidade e a singularidade, bem como a realidade, que ele torna adequada a si e nela reconhece sua prpria objetividade na medida em que a perpassa e dela se apodera, outro sentido, alis, do verbo bergreifen. Nishida concebe, de resto, os trs nveis tpicos da sua lgica do lugar, o do ser, o do nada relativo e o do nada absoluto, como mbitos que se abrangem/englobam sucessivamente. Por isso o nada absoluto o universal dos universais. 22

    A propsito do vazio dos atomistas, Hegel diz que a abstrao do vazio a que chegaram mais rica, tem uma determinidade maior do que o puro ser de Parmnides e o vir-a-ser de Herclito: Esta maneira de ver, segundo a qual o vazio constitui o fundamento do movimento contm o pensamento profundo, de que reside no negativo em geral o fundamento do vir-a-ser, da inquietude do auto-movimento. Mas a, porm, o negativo no para ser tomado como o que est mais prximo da representao do nada, mas enquanto a verdadeira negatividade, como o infinito. WL, Das Sein (1812), p. 107. 23

    Aos meus olhos, sua lgica dialtica no adquire forma logicamente tal como ele a pensou, mas, antes, no fato de considerar o processo lgico como um processo resultante do autodespertar do nada, maneira como eu o entendo. A razo, no seu caso, pode ser entendida como a determinao resultante do autodespertar do si-expressivo [que o si-judicativo ( 8)]; a sua significao dialtica a razo [s] a possui enquanto autodespertar a si do nada. (NH, 32)

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    desprendimento da sua particularidade e o abandono da sua singularidade egica. O nada se encontra no fundo do nosso despertar a si. (NH, 19)

    5.A autodeterminao do nada e o autodespertar.

    H aqui uma simultaneidade e interao, talvez se pudesse falar de interpenetrao, uma

    vez que Nishida recusa o conceito hegeliano de determinao recproca, entre o despertar a si e em si e a autodeterminao do nada. Essa interpenetrao aparece no conceito de despertar a si e em si do nada (NH, 12, 18, 32), que aponta para a relao ntima entre o nada e o autodespertar, na qual o nada como receptculo do autodespertar passa a exercer ele mesmo a

    atividade do despertar a si. A expresso em si, reiteradamente usada, remete lgica do lugar, e significa o lugar em que, um onde no espacial no sentido de um universal que se

    autodetermina e abrange os sujeitos dos diferentes juzos. O despertar a si, o autodespertar traduz o conceito japons jikaku, que na filosofia de Nishida tem um espectro semntico muito amplo, uma vez que ele verte para o japons o conceito clssico de autoconscincia da filosofia moderna, especialmente o das teorias da autoconscincia do Idealismo Alemo, para incorporar,

    a partir dos anos trinta, progressivamente um sentido budista e religioso.24 Este texto do confronto com Hegel, de 1931, assinala, talvez, o incio dessa confluncia de autoconscincia e autodespertar, i. , da impregnao crescente da conscincia de si pelo autodespertar pensado segundo a tpica do nada.

    Assim, ele define a conscincia de si numa perspectiva intuicionista mediante o conceito de ver, tomado emprestado de Plotino25, como ver o si no si (HN 6); logo em seguida, compreende tambm o despertar como um ver, mas um ver sem sujeito que v, como uma espcie de reflexo em si pr-reflexiva, no sentido de um espelho que se ilumina e reflete em si e que estaria aqum da oposio sujeito objeto, cognoscente conhecido: o despertar em si significa que o si se v sem cessar em si mesmo (NH, 10). Mas a concepo clssica, especular, de autoconscincia como transparncia a si, vazada inteiramente nos termos da

    metafsica da luz, presente em toda tradio religiosa e teolgica do pensamento ocidental e oriental, vai sofrer uma transformao profunda ao ser pensada a partir do lugar do nada como

    autodespertar a si e em si do nada (NH, 21, 26). A transformao est em que no despertar a si concebido como autodespertar do nada esse ver-se incessante a si mesmo, diz Nishida, tambm furta-se ininterruptamente a si mesmo, como o que vai se extinguindo infinitamente em seu prprio seio, como o que traz uma contradio existente em si mesmo (NH, 24).

    24 Elberfeld, R., Logik des Ortes, Glossrio, p. 303. Para a indicao completa da obra, ver nota 4.

    25 Stevens, Bernard, Invitation La philosophie japonaise. Autour de Nishida, Paris, CNRS, Editions, 2005, p. 87.

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    Respondendo sua pergunta inicial se uma contradio pensvel e existe, Nishida detecta nesse furtar-se ininterrupto a si mesmo, que solapa essa translucidez definidora da autoconscincia e acompanha o autodespertar, o lugar no qual uma contradio efetivamente existe, pois a frase seguinte diz que o contraditrio constitui a autodeterminao do lugar do

    nada (ibid.). O nada atua aqui contraditoriamente nessa transparncia da autoconscincia escavando infinitamente as profundezas do verdadeiro despertar a si, que escapa sem cessar

    vista (ibid.).26 No contexto da sua complexa lgica do predicado, que, como j foi indicado,

    desempenha um papel central na formulao da lgica do lugar27, mas cujo exame nos levaria muito alm do nosso tema, Nishida vai recorrer diferena e correlao que a anlise

    husserliana da intencionalidade estabelece entre noesis e noema (NH, 6, 7).28 Essa diferena lhe fornece uma base para diferenciar fenomenologicamente a sua tpica do lugar do nada.

    Nishida elabora nesta fase do seu pensamento uma tripartio do lugar: h, primeiro, o lugar do ser, isto dos entes enquanto fenmenos do mundo objetivo, depois, o lugar do nada relativo, que o campo dos atos de conscincia e dos juzos de conhecimento, e, por fim, o lugar do nada absoluto, que engloba os lugares anteriores enquanto universal mais concreto e que tudo abrange

    como um fundo sem fundo donde tudo provm e ao qual tudo retorna, e que no pode ser visto nem objetivado. Essa tpica inclui uma hierarquia de abrangncia, em que o lugar do nada absoluto, ilustrado pela figura do crculo cujo centro est em toda parte e que no tem circunferncia, engloba os dois outros, e o lugar do nada relativo engloba o lugar do ser. Nesse contexto, ento, ele introduz uma diferena, que ser tambm importante para a sua crtica a Hegel, entre um autodespertar notico, que ele vai correlacionar com o lugar do nada absoluto, e

    26 A conscincia de si, contrariamente maneira pela qual foi abordada at agora, sob o aspecto da adequao do

    cognoscente ao conhecido, consiste em ver o si no si. (NH, 6) Declarar que o si v-se a si mesmo no seio do si no sustentar que ele ento se furta constantemente vista, que ele se extingue? Ou ainda, que ele se define como o que vai se extinguindo infinitamente em seu prprio seio, como o que traz uma contradio existente em si mesma? Como expliquei mais acima, todavia, o contraditrio constitui a autodeterminao do lugar do nada (...) (NH, 24). 27

    A fim de elaborar a sua prpria lgica em face da lgica aristotlica do sujeito que no pode ser predicado Nishida comea na verdade por colocar-se na perspectiva kantiana que ele define como sendo a do predicado que no pode ser sujeito. Sua prpria lgica ser uma lgica do predicado, permitindo, porm, atingir o si-prprio no fundamento ltimo de sua realidade auto-identicamente contraditria. [...] O fato de que este objeto [o objeto da experincia no sentido kantiano] seja englobado em suas condies de possibilidade no plano daquilo que o sujeito lhe fornece predicativamente a priori faz do discurso que o determina uma lgica predicativa, uma lgica do predicado. Eis o sentido que assume a posio kantiana quando revisitada atravs do prisma nishidiano. Stevens, B., Invitation..., p. 89. (ver nota 20) 28

    Na mencionada carta a Mutai a respeito do Basho (nota 7), j aparece implicitamente no quadro da lgica do predicado essa diferena entre a direo da noesis e a do noema: Enquanto o sujeito gramatical se move, na sua transcendncia, indefinidamente em direo ao particular, o predicado gramatical, na sua transcendncia, se move indefinidamente em direo ao universal. Quando essa ltima direo torna-se idntica com o universal, chegamos nadidade, que abraa o ente, aquilo que puramente se espelha, ou aquilo que material, e ela contm ainda o que Plotino chama de o um. Yusa, Michiko, Zen and Philosophy. An intellectual Biography of Nishida Kitaro, University of Hawaii Press, Honolulu, 2002, p. 205.

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    um autodespertar noemtico, correlacionado com o lugar do nada relativo, a que se restringiria a lgica hegeliana. O que existe na conscincia possui uma direo infinita na oposio recproca das direes notica e noemtica. (NH, 7) 6. O autodespertar noemtico e o autodespertar notico.

    No autodespertar noemtico o si v-se a si mesmo no modo da autoconscincia clssica,

    ele se conhece, e, assim, quando ele objetivado no pensamento ele representa o indivduo (NH, 5). o despertar a si da conscincia a si, que acompanha e perpassa todo conhecimento judicativo, tanto do mundo objetivo, quanto do mundo subjetivo, e que se diferencia e se dissemina infinitamente na multiplicidade dos saberes e do conhecimento. No o mesmo que a

    conscincia intencional husserliana, tomada na primazia do seu sentido cognitivo, pois esta para Nishida um modo diminudo desse autodespertar noemtico do si-prprio que se expressa

    em juzos29, o si-judicativo ou si-expressivo, pois o que lhe interessa o aprofundamento do aspecto existencial da noesis. Assim como na conscincia intencional a significao do autodespertar foi minimizada (NH, 6), o conhecimento objetivo e classificador analogamente um modo atrofiado da autodeterminao do predicado, no qual ele se funde

    como sujeito, permanecendo um conceito abstrato que no atinge um conceito concreto (NH, 9).

    O autodespertar notico, em contrapartida, aquele que vai no sentido contrrio do recuar e remontar dimenso de profundidade existencial, quela unidade originria do conhecer, sentir e querer, cuja forma mais profunda est no autodespertar voluntrio (NH, 8), no qual querer sempre agir.30 Este o modo mais profundo de autodeterminao, que se exerce no cncavo do esvaziamento que o nada absoluto opera: a verdadeira significao do despertar em si est no si-agente; acrescentemos que o fato de ver-se a si mesmo pelo agir no seno o fato de ver-se a si mesmo como o nada. (NH, 8) Mas mesmo o si-prprio volitivo e agente, cujo pice a conscincia moral, tem de ser transcendido: primeiro, porque a idia do bem somente uma sombra do absoluto que sem-forma (IW, 109), e segundo, porque o si-agente, na sua relao essencial com a idia do bem, est ainda envolvido na contradio de que quanto mais se ele aproxima dessa idia, tanto mais dela se afasta, mais precisamente no sentido de que quanto mais

    ele agua a sua conscincia moral, tanto mais se sente culpado. Essa contradio da conscincia

    29 O juzo adquire forma na medida em que o si verdadeiro, que se v a si mesmo maneira do nada, determina-se

    noematicamente. Se, alm disso, considera-se que o pensamento de uma determinao autodesperta significa originariamente o fato da autodeterminao do universal, ento se pode dizer que o juzo adquire forma se o universal determinado. (NH, 11) 30

    Aqui, como j no Ensaio sobre o Bem, a vontade o fundamento e o centro da funo unificadora da conscincia e da razo. (G, 61-62; 29)

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    moral remete aspirao pela libertao desse enredamento na culpa, que s pode ser resgatada pela conscincia religiosa enquanto a forma mais radical de transcendncia do nosso eu em direo ao nosso verdadeiro si-prprio. S no nada absoluto temos acesso a ele, e Nishida acrescenta, o lugar do nada absoluto pode ser pensado como a conscincia religiosa. (IW, 172)

    A diferena entre o autodespertar notico e noemtico pode ser esclarecida mediante a imagem da correnteza de um rio. O autodespertar noemtico que est por trs do conhecimento

    judicativo do mundo objetivo e subjetivo e o torna possvel, flui a jusante, em direo foz.31 Ele o lugar do nada relativo em que surge o campo de conscincia, que produz e no qual se inscrevem os sulcos em que o conhecer, o sentir e o querer se diferenciam e se multiplicam. O autodespertar notico vai a montante, em direo nascente, numa dinmica de escavar o fundo

    sem fundo do lugar do nada absoluto. Essa dinmica foi denominada de trans-descendncia, um movimento no qual a dialtica ascendente em direo ao que est alm do ser

    simultaneamente o movimento da dialtica descendente que vai aprofundando o sulco de esvaziamento que o nada absoluto escava. ele que torna possvel o lugar no qual os fatos se autodeterminam (NH, 27, 28, 32, 37) e as coisas so o que verdadeiramente so a partir de si mesmas (B, 84).

    7. Transdescendncia e o caminho progressivo e retrocedente da dialtica especulativa.

    Esse convergir na trans-descendncia das direes clssicas, geralmente opostas, da dialtica ascendente e da dialtica descendente num movimento conjunto de transcendncia do ser, que ao mesmo tempo um movimento de abismamento no fundo sem fundo do nada, uma apropriao transformadora de uma das intuies mais profundas da dialtica especulativa hegeliana. H, com efeito, tambm na lgica hegeliana um movimento simultneo de expanso e de concentrao, de determinao e de aprofundamento crescentes, de exteriorizao e interiorizao, de sntese e de anlise, cujas direes aparentemente opostas so no fundo, diferena de Kant, simultneas e paralelas. A determinao mais rica e completa alcanada ao

    fim do processo o seu fundamento originrio. diferena de Nishida, o originrio no est na experincia pura e imediata, pois ele s est no comeo enquanto imediatidade restabelecida por

    uma mediao plena que se suspende a si mesma. (WL, II, 501-502) Cito uma frase da pequena lgica da Enciclopdia, que provavelmente aquela com que Nishida mais, ou talvez, exclusivamente, se confrontou: A determinao progressiva [do ser enquanto conceito no incio somente em si] um por-para-fora [expandir] e um desdobrar do conceito sendo em si, e,

    31 A explicitao das duas direes notica e noemtica do autodespertar mediante a imagem da correnteza do rio foi

    proposta por Dalissier (NH, nota 8, p. 58).

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    simultaneamente, o adentrar-se em si do ser, um aprofundar-se do ser em si mesmo. (E 59; WL, II, 503) Na considerao retrospectiva final da grande lgica sobre a dialtica enquanto caminho percorrido (A Idia Absoluta), enquanto mtodo da verdade (II, 499), o enriquecimento resultante da exteriorizao e da expanso do pensamento que se determina e

    concretiza progressivamente apresentado simultaneamente como um movimento de adentrar-se em si, de intensificao do pensamento na sua dimenso mais profunda e singular e, ao mesmo

    tempo, mais trans-individual. O que mais rico por isso o mais concreto e o mais subjetivo, e o que se retoma na profundidade a mais simples o mais potente e o mais abrangente. (WL, II, 502)

    interessante registrar aqui que Hegel caracteriza este pico mais alto e mais agudo/afiado da lgica com o conceito de personalidade pura, e Nishida, ao final da 3 Parte do Ensaio sobre o Bem, utiliza o conceito kantiano de personalidade para designar a fora unificadora mais originria do si-prprio (G, 172; 132); alm disso, o bem consiste precisamente em manter e desenvolver a personalidade como essa fora unificadora (G, 170; 130), que est na base do primado da unificao sobre a diferenciao. Mas para Nishida, e a intervm a tradio budista, a verdadeira personalidade somente se expressa, porm, quando ela abandona as suas esperanas e esquece o seu si-prprio, tornando-se esta fora de unificao infinita que atua imediatamente e espontaneamente no interior de cada singular (G, 171; 130-131). Para Hegel este pice da lgica dialtica a personalidade pura no sentido da subjetividade absoluta da Idia, que exclusivamente por meio de sua dialtica absoluta [...] tudo apreende e sustenta em si mesma (WL, II, 502). Para Nishida, pelo contrrio, a dialtica tem de ser pensada no a partir da razo e da unidade do pensar e querer na Idia, mas, como vimos, a partir do despertar a si e em si do nada enquanto fato de nossa vida interior (NH, 32): a verdadeira dialtica no a do conceito, mas a do universal concreto enraizado nas profundezas da vida que despertou a si mediante o esvaziamento progressivo da autodeterminao do nada absoluto. No pargrafo final do seu confronto com Hegel ele diz: o movimento dialtico deve constituir o lugar em que se atinge passo a passo o nada absoluto enquanto determinao autodesperta do

    nada absoluto (NH, 39). Ele empreende uma espcie de gnese transcendental da lgica hegeliana a partir do universal da vida concreta, a qual, para ele, no escapa dialtica (NH, 32), e cuja forma originria o autodespertar notico do nada a si mesmo.32 Hegel pensou a razo dialtica atrs do fato originrio do autodespertar do nada na vida interior, ao invs de pensar este fato originrio como estando ele atrs da razo (NH, 33). Assim, a razo dialtica

    32 A lgica verdadeiramente concreta, enquanto ela constitui por si mesmo uma vida, no escapa dialtica. A

    necessidade interna da lgica dialtica de Hegel no deve ser buscada na determinao noemtica, mas na determinao notica. (NH, 32)

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    e a necessidade da lgica de Hegel so para Nishida derivadas, porque elas se constituem ao nvel da determinao noemtica. O puro ser e o puro nada do comeo absoluto so apenas determinaes do pensamento.

    8. A autodeterminao do presente e a reconstituio crtica da dialtica hegeliana.

    Para acentuar o carter originrio da autodeterminao do nada absoluto que desperta noeticamente a si no fundo do si-prprio, no qual inclusive o prprio elemento volitivo (o si-prprio agente) e sua primazia deve desaparecer (NH, 27) , preciso que haja na raiz do si algo absolutamente no-racional, pois s num tal autodespertar anterior razo a realidade

    efetiva se determina unicamente a si mesma (NH , 27). Essa autodeterminao da realidade efetiva e dos fatos no fundo do si-prprio desperto, no qual ela e eles so liberados da sua

    positividade imediata, do entrave do ser, s possvel se a realidade o presente que se determina ele mesmo. Isso [que a realidade efetiva se autodetermina] quer dizer que o presente se determina ele mesmo, e que no h nada no fundo do presente. (NH , 28) E na frase que segue imediatamente: A isso preciso acrescentar que o verdadeiro tempo adquire forma por

    meio da autodeterminao do presente; o passado e o futuro so determinados pelo fato de que o presente se autodetermina. (NH, 37)

    A tese segundo a qual o verdadeiro lugar do tempo o presente que se determina a si mesmo no si-prprio ser cada vez mais estreitamente vinculada ao conceito do autodespertar, principalmente a partir do estudo publicado no ano seguinte, em 1932, intitulado A determinao do nada conforme o autodespertar. Essa relao estreita entre o autodespertar e a autodeterminao do presente visa tambm mostrar tambm que o presente o lugar em que se constitui a realidade efetiva na sua verdadeira atualidade: a autodeterminao do presente tem de ser compreendida, diz Nishida, no sentido em que Aristteles declara que a energeia anterior dynamis (NH, 28). Se o presente fosse determinado causalmente ou condicionado pelo passado, o si prprio deixaria de ser o lugar do autodespertar do nada absoluto, ele teria um resto

    ontolgico, ele se torna uma coisa; e se ele fosse determinado pelo futuro, ele se torna um simples meio e perde a sua liberdade. (NH, 28) Em ambos os casos, o si-prprio seria determinado exteriormente e perderia o sentido do autodespertar, pois no h nada de substancial, nem mesmo de potencial, no fundo do si. No despertar a si e em si do nada o presente se faz o lugar da autodeterminao do si e da realidade enquanto energeia, e a os fatos se autodeterminam (ibid.).

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    A autodeterminao do presente torna-se, assim, o centro de gravidade33 do tempo e da realidade efetiva, pois o passado s enquanto passado do presente, e tambm o futuro s enquanto futuro do presente (NH, 30): neste sentido Nishida diz que o presente ao mesmo tempo a autodeterminao do agora eternamente novo [...] e o despertar a si do verdadeiro nada (ibid.). O presente o lugar do tempo porque em cada agora em que ele desaparece e aparece o presente toca o nada absoluto. J o Ensaio sobre o Bem concebe o curso do tempo como o movimento de um foco unificador que o agora (G, 98; 61). S que aqui este foco ou centro unificador concebido como a autodeterminao do nada absoluto no sentido do agora eternamente novo, em que atingimos o eterno, Deus. (NH, 39) Nesta correspondncia profunda entre a autodeterminao notica (subjetiva) do nada absoluto e a autodeterminao do agora eternamente novo se encontra a contradio, que ele no incio perguntava se pensvel e existe (NH, 1). Nishida a designa aqui como autocontradio (NH, 30).34 Ele conclui: nosso si, assim como o tempo, se apresentam como aquilo cuja prpria existncia constitui uma autocontradio. Assim, o tempo o devir eterno de um agora sempre renovado, no qual desaparecer equivale a aparecer, o morrer, a nascer (ibid.).

    Para a anlise racional, essa autodeterminao do presente que absolutamente nada, sem

    algo que determina, aparece como no-racional, pois a posio racional, a razo dialtica no sentido hegeliano, a perspectiva que v o determinante a partir do determinado (NH, 29). Com efeito, para o sujeito racional, que tem nas suas crenas e desejos uma espcie de subjacncia no-racional, um hypokeimenon, diz Nishida, o no-racional est antes e fora do racional, e este se ope ao no-racional. Ao contrrio, na perspectiva do autodespertar do nada o fato originrio e no-racional da autodeterminao do presente o que torna possvel na sua imanncia a constituio da razo dialtica e a a racionalizao de si mesmo. o no-racional do ponto de vista do determinado, da razo dialtica constituda, que est na origem do universal concreto da vida, no qual o no-racional no mais exterior e oposto ao racional. (NH, 29).

    Assim, no intuito de compreender o verdadeiro sentido da lgica de Hegel e reconstituir a sua gnese a partir da vida concreta (NH, 34), Nishida prope curiosamente inverter a direo do processo lgico hegeliano, comeando de trs para a frente, da Idia enquanto telos do processo em direo ao seu comeo com o puro ser.35 Essa inverso primeira vista

    33 Tremblay, Jacynthe, Auto-veil et temporalit. Les dfis poss par la philosophie de Nishida, LHarmattan, Paris,

    2007, p. 91. 34

    O que subjetivamente entendido como uma autodeterminao do nada absoluto, i. , do lugar, deve corresponder a uma autodeterminao do agora eternamente novo, determinao verdadeiramente autodesperta do nada. (NH, 30) 35

    A lgica de Hegel deve ser compreendida, segundo o meu ponto de vista, no fato de abstrair [as determinaes] a partir da vida concreta, procedendo contrariamente ao desenvolvimento lgico, e seguindo a determinao resultante do autodespertar do nada. ( 34)

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    plausvel, pois tambm para Hegel a vida uma forma da Idia, a sua forma imediata, mas para ele trata-se da vida na sua estrutura conceitual, da vida lgica, ao passo que Nishida quer recuar vida concreta do si-prprio que, como fato do despertar notico do nada absoluto a si, anterior lgica dialtica e sua condio de possibilidade. Por isso Nishida, na sua reconstituio

    crtica da gnese me-ontolgica da dialtica hegeliana, vai situar essa ltima no registro derivado do despertar a si noemtico do nada, no qual a determinao notica do autodespertar

    foi reduzida/atrofiada, de sorte que na razo dialtica a determinao notica se une e se confunde com a determinao noemtica (NH, 36). Se a razo tem o seu lugar no seio da vida que a abrange, ento razo e realidade efetiva no so idnticas (NH, 36). Por isso, a contradio efetivamente existente que a lgica hegeliana quer pensar, e que a perspectiva

    existencial de Nishida antes aproxima do paradoxo de Kierkegaard (NH, 36), tem seu fundamento na vida profunda e autodesperta, em relao qual a contradio da razo

    dialtica derivada.36 Mas essa leitura a contrapelo da determinao progressiva da lgica hegeliana nada mais

    tem a ver com o ductus regressivo/retrocedente da lgica especulativa, na qual expanso e aprofundamento, exteriorizao e interiorizao, abrangncia e intensidade crescem juntos e, nesse sentido, correm paralelos para definir o pice de liberdade. (WL, II, 502-503) Nishida parte do autodespertar notico do nada a si mesmo nas profundezas da vida concreta (Hegel diria, de um universal concreto imediato, como j o era a experincia pura), a fim de conceber, numa proposta que fica em grande parte programtica, as determinaes anteriores do ductus progressivo como etapas de um processo de reduo da determinao notica do despertar a si do nada sua determinao noemtica. Seria um processo de empobrecimento do universal da vida concreta e de atrofiamento progressivo (NH, 9) do autodespertar notico do nada, que seria sucessivamente mergulhado (NH, 25) e absorvido na determinao noemtica, eliminando a cada etapa uma significao da determinao notica (NH, 34). Assim, a riqueza da Idia hegeliana, que contm em seu seio a memria de todas as negaes determinadas, geneticamente explicada pelo aprofundamento da negatividade do nada (com o que, a meu ver, o Hegel esotrico, leitor de Boehme, estaria de acordo), seria progressivamente preenchida pelo ser. Este preenchimento noemtico do autodespertar notico, a contrapelo da

    determinao progressiva da lgica hegeliana, marca para Nishida a preeminncia do ser sobre o nada que impera nela como forma acabada da metafsica ocidental. A determinao ideal [da lgica hegeliana] pensada no fato de reduzir a determinao notica do que eu chamo o

    36 A razo assume o seu lugar no seio da vida, assim como o sujeito se encontra necessariamente englobado no

    predicado, e o noema na noesis. A contradio que se encontra no fundo da razo deve ser antes de tudo uma contradio da vida profunda. (NH, 36)

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    despertar a si do nada ao despertar a si noemtico do nada. (NH, 34)37 Nesta viso crtica, a progresso dialtica e a suspenso dos contrrios numa unidade superior, tornada possvel pela operao de esvaziamento do nada, teria o seu sentido profundo numa re-ontologizao da dialtica, que encobriria o lugar central que o prprio Hegel atribuiu negatividade.

    9. Religio e filosofia.

    O lugar do nada absoluto enquanto ele lana as suas razes na vida profunda e desprovida de fundamento do si-prprio pensada j no ensaio sobre O Mundo Inteligvel (1928) como o lugar da conscincia religiosa (IW, 117). Ela surge nessa dimenso no-racional da autodeterminao do nada, na qual o si-prprio se abisma e aniquila (IW, 119), e da qual surge a afirmao do mundo no seu ser tal como ele . Assim, a conscincia religiosa que funda o

    pensamento filosfico como surgindo dessa experincia anterior ao pensamento, cujo contedo s est a presente como vivncia (Erlebnis) (IW, 118). Mas se o contedo da conscincia religiosa irredutivelmente uma vivncia que s pode ser experienciada na nadificao do si-prprio, a partir do ponto de vista da filosofia, especificamente, da lgica do lugar do nada, que

    possvel dizer que a religio a experincia e o ponto de vista do nada absoluto. (IW, 121) precisamente do ponto de vista filosfico que posso afirmar que h que apreender a religio

    dessa maneira. Aqui reside o ponto de contato de religio e filosofia. (IW, 121) O contato est em que o ponto de vista filosfico surge de uma reflexo da conscincia religiosa em si mesma, ele a autoreflexo do si-prprio absoluto (IW, 121-122). Mas a prpria experincia ou vivncia religiosa do nada absoluto, na medida em que nela no h nem mais si-prprio nem Deus enquanto sujeito transcendente, est alm dessa autoreflexo da conscincia religiosa, pois nela no h mais esse espelhamento infinito do si em si mesmo que se intui em si mesmo. (IW, 122)38

    37 Ns surpreendemos, assim, o movimento que vai da Idia ao conceito, do conceito essncia, de essncia ao ser,

    no fato de ir eliminando cada vez uma significao da determinao notica; alm disso, [esse movimento] visto dialeticamente enquanto um aspecto abstrato da vida concreta. E si a significao do despertar a si resplandece ainda no conceito, ela se encontra dissimulada [ao nvel da] essncia; quanto ao ente, ele torna-se mediao recproca. (NH, 34) 38

    Aqui interessante mencionar as trs crticas de Tanabe, num artigo publicado em maio de 1930, contra o perigo de um quietismo que a fundamentao da filosofia na religio poderia encorajar, especialmente contra o que ele julga ser uma confuso entre intuio religiosa e a misso da filosofia. Pode a filosofia sistematizar a conscincia religiosa, que sustenta que perder-se a si mesmo realmente encontrar-se a si mesmo? (1) Para a filosofia assumir a posio da filosofia da religio (...), postular um universal ltimo que incompreensvel, e interpretar ento a realidade como a autodeterminao desse universal, conduziria negao da prpria filosofia. (2) A autoconscincia [termo que no contexto nishidiano adquire tambm sentido de autodespertar] enquanto princpio filosfico e o absoluto no mundo da religio no podem ser unidos no conceito de autoconscincia do nada absoluto. (3) Esta declarao de independncia de Tanabe em face de Nishida marca para um aluno de ambos, Tosaka Jun, num artigo publicado em 1932, o momento inaugural do que passou a se chamar de Filosofia da Escola

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    Na sua ltima obra, publicada poucos meses depois da sua morte em 1945, Lgica tpica e viso religiosa do mundo39 ele retoma a correlao destas duas teses, a de que a conscincia religiosa na sua reflexo sobre si que funda o pensamento filosfico, e de que s a lgica tpica permite compreender filosoficamente a religio como lugar do nada absoluto, o que para Nishida

    um avano da autocompreenso budista do nada. Ou, na sua formulao tardia, s a lgica tpica nos faz compreender que na conscincia religiosa retornamos de maneira auto-

    identicamente contraditria nossa origem, ao absoluto (OrW, 250). A isso ele vai chamar de converso (ibid.). O conceito de autoidentidade absolutamente contraditria do uno e do mltiplo, do finito e do infinito, graas qual o mundo se configura criativamente como expresso e manifestao da vontade divina (OrW, 229-231), a reformulao final, em registro religioso, disso que ele chamara anteriormente autodeterminao do nada absoluto. Estes dois conceitos de origem dialtica mostram como Nishida conseqente na busca de uma formulao

    filosfica para a experincia imediata, religiosa do nada absoluto na tradio zen-budista. Eles encaminham uma resposta positiva pergunta inicial e convico fundamental que Nishida partilha com Hegel, de que existem e podem ser pensadas estruturas e coisas que trazem uma contradio em si mesmas. Por isso ele pode dizer, um tanto paradoxalmente para ns, que,

    apesar da proximidade ao zen-budismo disso que se chamou de mstica ocidental de tradio dialtica (Plotino, Nicolau de Cusa, Mestre Eckhardt e Jacob Boehme, a includo o pensamento de Hegel), ela fundamentalmente no rompeu com a lgica objetiva (OrW, 269), mas que antes o pensamento da sabedoria budista mahayana que , no sentido radical, absolutamente dialtico (OrW, 228).

    de Kyoto. Cf. Yusa, Michiko, Zen and Philosophy. An intellectual Biography of Nishida Kitaro, University of Hawaii Press, Honolulu, 2002, pp. 231-232. 39

    Nishida, K, Ortlogik und religise Weltanschauung, in: Logik des Ortes. Der Anfang der modernen Philosophie in Japan, ed. e trad. Rolf Elberfeld, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1999. Citada pelas inicias OrW, seguidas o nmero da pgina.