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artigo Algumas observações gerais sobre o problema do trabalho* PeterBerger Trabalho é uma das categorias humanas fundamen- tais. O homem é o animal que modelou ferramentas e construiu um mundo. O homem é, portanto, o único animal que vive em dois mundos: o natural. que reparte com todos os outros habitantes do planeta, e aquela outra natureza, a nature artificielle (como os antropo- logistas franceses a denominam), feita por ele mesmo. Uma vez que é este segundo mundo çonfeccíonado pelo' homem que provê o contexto para qualquer conduta que possa ser propriamente reconhecida como humana, o processo pelo qual a base física deste mundo é cons- truída é de significação humana crucial. Isto pode ser dito indepen~entemente da questão se o edifício sirnbô- líco, que necessariamente abarca o mundo humano, deve também ser entendido como um resultado do trabalho e, portanto, o trabalho mental sendo entendido como cor- relato ou mesmo derivativo do trabalho físico. Ser humano e trabalhar parecem ser noções inexora- velmente correlatas. Trabalhar significa modificar o mundo tal qual é encontrado. Somente através de tal modificação é quê o mundo pode ser transformado numa arena para a ação humana, significados humanos, sociedade humana ou, por que não, existência humana r 'em qualquer sentido que esta palavra possa ter. Não é surpreendente" portanto, que a grande revolução no caráter do trabalho humano tenha envolvido transforma- ções da existência humana em sua totalidade, desde a assim chamada revolução neolítica até a Revolução Industrial, que continua transformando a nossa prépría existência ainda hoje. Também não é surpresa que o trabalho esteve imbuído, desde o primórdio dos tempos, de significação religiosa. Se construir significa construir um mundo, então ele envolve •.numa perspectiva relígío- , sa, a repetiçio ou imitação de atos divinos pelos quais o mundo foi originalmente construído - e quem sabe talvez mesmo uma competiçfo, com os atos divinos, como sugere o mito de Prometeu. Trabalhar não é algo fácil. Trabalhar é imitar a própria criaçlo. Trabalho, como uma imitação dos deuses, está mui- to longe da questão que vem sendo desenvolvida neste volume. De uma maneira ou de outra, estas questões têm girado em tomo do problema do significado do trabalho. e, portanto, importante verificar que este é um proble- ma particularmente moderno, relacíonado. como vere- 1lÍ0s daqui a pouco, a desenvolvimentos estruturais e ideológicos na moderna história ocidental. Na maioria das sociedades anteriores. o problema dificilmente exis- tia nesta forma. Por um lado, trabalho era um dever reli- gioso, por outro. o sofrimento era entendido como parte do destino do 'homem. Então, por exemplo, a palavra hebraica avodah quer dizer serviço - 'tanto no sentido ordinário da palavra, como no sentídorelígioso de servir à divindade. isto é, culto. Uma combínaçãc similar de significados provavelmente está contida na palavra grega leitourgia. A palavra latina labor, por outro lado, signi- fica tanto trabalho como esforço fatigante, no sentido geral de sofrimento. E esta última implicação aparece de maneira ainda mais clara nos derivados latinos tais como trabalho em português, trabajo em espanhol, travail em ' francês e inglês, os quais provavelmente vêm da palavra trepalium, que se refere, a um instrumento de tortura. Há muito pouco, ou nada, em tudo isso que nos leve às questões que hoje associamos com trabalho. lidar com "o problema do trabalho", como faze- mos neste volume, é lidar com um fenômeno particular- mente moderno. O foco do "problema" é a questão do "significado". Ora, fenômenos sociais são sempre "signi- ficativos", mas na maioria dos casos os' significados são· assumidos como dados, organizados em instituições e totalmente legitimados no sistema simb6licoda socie- dade .. Isto é. "significado" não é ordinariamente um "problema". Ele se torna problemáticç como resultado de transformações específicas dentro da sociedade, trans- fOrIllaç,isesque colocam em questão as instituições e legi- timaç~esanteriormente dadas como certas. e, portanto, lógico; perguntar quais as transformações que tomaram nosso' "problema" particular )!ossível. Parece-nos que dois desenvolvimentos foram.de importância decisiva a , este respeito: estruturalmente, a extrema intensificação, da divisão de trabalho ocasionada pela Revolução Indus- ' trial ainda em processo; ideologicamente, a secularízação do conceito de vocação. A seguir, abordaremos rapida- mente esses dois desenvolvimentos. A divisão de trabalho é provavelmente tão velha quanto a própria sociedade humana, uma vez que esta última dificilmente seria possível sem, pelo menos, uma certa dose da primeira. Com os avanços da tecnologia do trabalho,a divisão do trabalho naturalmente aumentou em complexidade. A ~evolução Industrial, entretanto" coma sua proliferação de' técnicas e talentos, levou a uma intensificação da divisão do trabalho que é única na história. Nós, ainda, estamos no meio deste processo, e não há sinais de que o mesmo esteja em fase de amorte- cimento, como foi ilustrado de forma clara pela referên- cia de Evan à crescente lista de títulos ocupacíonaís. Mais ainda, a Revolução Industrial trouxe uma sempre crescente fragmentação de processos específicos de tra- balho, distanciando sempre mais o trabalhador do pro- duto de seu trabalho. O caso clássico, dessa fragmenta- ção, é a linha de produção, tio bem descrita na contrí- bwçlo de Chínoy. No caso da linha de produção de au- tomóveis ainda há o conhecimento, por parte do traba- Rev. Adm. Empr., Rio de JaneiJo. 23(1): 13-22 jan./mar. 1983

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artigo

Algumas observaçõesgerais sobre o

problema do trabalho*

PeterBerger

Trabalho é uma das categorias humanas fundamen-tais. O homem é o animal que modelou ferramentas econstruiu um mundo. O homem é, portanto, o únicoanimal que vive em dois mundos: o natural. que repartecom todos os outros habitantes do planeta, e aquelaoutra natureza, a nature artificielle (como os antropo-logistas franceses a denominam), feita por ele mesmo.Uma vez que é este segundo mundo çonfeccíonado pelo'homem que provê o contexto para qualquer condutaque possa ser propriamente reconhecida como humana,o processo pelo qual a base física deste mundo é cons-truída é de significação humana crucial. Isto pode serdito indepen~entemente da questão se o edifício sirnbô-líco, que necessariamente abarca o mundo humano, devetambém ser entendido como um resultado do trabalho e,portanto, o trabalho mental sendo entendido como cor-relato ou mesmo derivativo do trabalho físico.

Ser humano e trabalhar parecem ser noções inexora-velmente correlatas. Trabalhar significa modificar omundo tal qual é encontrado. Somente através de talmodificação é quê o mundo pode ser transformadonuma arena para a ação humana, significados humanos,sociedade humana ou, por que não, existência humana

r 'em qualquer sentido que esta palavra possa ter. Não ésurpreendente" portanto, que a grande revolução nocaráter do trabalho humano tenha envolvido transforma-ções da existência humana em sua totalidade, desde aassim chamada revolução neolítica até a RevoluçãoIndustrial, que continua transformando a nossa prépríaexistência ainda hoje. Também não é surpresa que otrabalho esteve imbuído, desde o primórdio dos tempos,de significação religiosa. Se construir significa construirum mundo, então ele envolve •.numa perspectiva relígío-

, sa, a repetiçio ou imitação de atos divinos pelos quais omundo foi originalmente construído - e quem sabetalvez mesmo uma competiçfo, com os atos divinos,como sugere o mito de Prometeu. Trabalhar não é algofácil. Trabalhar é imitar a própria criaçlo.

Trabalho, como uma imitação dos deuses, está mui-to longe da questão que vem sendo desenvolvida nestevolume. De uma maneira ou de outra, estas questões têmgirado em tomo do problema do significado do trabalho.e, portanto, importante verificar que este é um proble-ma particularmente moderno, relacíonado. como vere-1lÍ0s daqui a pouco, a desenvolvimentos estruturais eideológicos na moderna história ocidental. Na maioriadas sociedades anteriores. o problema dificilmente exis-tia nesta forma. Por um lado, trabalho era um dever reli-gioso, por outro. o sofrimento era entendido como partedo destino do 'homem. Então, por exemplo, a palavrahebraica avodah quer dizer serviço - 'tanto no sentidoordinário da palavra, como no sentídorelígioso de servirà divindade. isto é, culto. Uma combínaçãc similar designificados provavelmente está contida na palavra gregaleitourgia. A palavra latina labor, por outro lado, signi-fica tanto trabalho como esforço fatigante, no sentidogeral de sofrimento. E esta última implicação aparece demaneira ainda mais clara nos derivados latinos tais comotrabalho em português, trabajo em espanhol, travail em 'francês e inglês, os quais provavelmente vêm da palavratrepalium, que se refere, a um instrumento de tortura. Hámuito pouco, ou nada, em tudo isso que nos leve àsquestões que hoje associamos com trabalho.

lidar com "o problema do trabalho", como faze-mos neste volume, é lidar com um fenômeno particular-mente moderno. O foco do "problema" é a questão do"significado". Ora, fenômenos sociais são sempre "signi-ficativos", mas na maioria dos casos os' significados são·assumidos como dados, organizados em instituições etotalmente legitimados no sistema simb6licoda socie-dade .. Isto é. "significado" não é ordinariamente um"problema". Ele se torna problemáticç como resultadode transformações específicas dentro da sociedade, trans-fOrIllaç,isesque colocam em questão as instituições e legi-timaç~esanteriormente dadas como certas. e, portanto,lógico; perguntar quais as transformações que tomaramnosso' "problema" particular )!ossível. Parece-nos quedois desenvolvimentos foram.de importância decisiva a ,este respeito: estruturalmente, a extrema intensificação,da divisão de trabalho ocasionada pela Revolução Indus- 'trial ainda em processo; ideologicamente, a secularízaçãodo conceito de vocação. A seguir, abordaremos rapida-mente esses dois desenvolvimentos.

A divisão de trabalho é provavelmente tão velhaquanto a própria sociedade humana, uma vez que estaúltima dificilmente seria possível sem, pelo menos, umacerta dose da primeira. Com os avanços da tecnologia dotrabalho,a divisão do trabalho naturalmente aumentouem complexidade. A ~evolução Industrial, entretanto"coma sua proliferação de' técnicas e talentos, levou auma intensificação da divisão do trabalho que é única nahistória. Nós, ainda, estamos no meio deste processo, enão há sinais de que o mesmo esteja em fase de amorte-cimento, como foi ilustrado de forma clara pela referên-cia de Evan à crescente lista de títulos ocupacíonaís.Mais ainda, a Revolução Industrial trouxe uma semprecrescente fragmentação de processos específicos de tra-balho, distanciando sempre mais o trabalhador do pro-duto de seu trabalho. O caso clássico, dessa fragmenta-ção, é a linha de produção, tio bem descrita na contrí-bwçlo de Chínoy. No caso da linha de produção de au-tomóveis ainda há o conhecimento, por parte do traba-

Rev. Adm. Empr., Rio de JaneiJo. 23(1): 13-22 jan./mar. 1983

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lhador, sobre as características dQ prod~tofinal. O autordeste .artigo conheceu vários trabalhadores engajados em'linhas de produção que nio sabiam. sequer para o que oproduto no qual trabalhavam tinha sido projetado,exceto que tinha algo a ver com "mecanismo. de preci-são" - por tudo quanto soubessem os trabalhadorespoderiam estar trabalhando num componente de umabomba de hidrogênio. Nem, deve ser adicionado, sequerestavam eles particularmente interessados na. questão.Esta fragmentação do trabalho não esteve restrita aoprocesso de manufaturação, mas tem afetado, cada vezmais, também as ocupações burocráticas e de serviço.Grandes escritórios são instalados sob princípios muitosiritilares àqueles usados nas linhas de produção, e pelasmesmas razões. Mesmo algumas das assim chamadas pro-fissões liberais foram sujeitas ao impacto dessas forças -existem hoje situações de linha de produção de medi-cina, linha de produção para assuntos legais, e até mesmolinha dê produção para pesquisa científica, com médicos,advogados e cientistas alocados a pequenos fragmentosdo processo total do trabalho de maneira muitosinúlarcomo o trabalhador da indústria de automóveis estáalocado ao "seu" lugar na linha de produção. Trabalhonestas circunstâncias não precisa ser duro nem penoso(isto não seria nada novo), mas a questão do seu sígníâ-cadopoderá tomar-se mais consciente do que em situa-ções em que o trabalhador se relacionava com o processode trabalho até que o produto final emergisse.

Como resultado do progresso tecnológico, adicional-mente, há constantes mudanças na organização social dotrabalho, Certas especialidades ocupaçíonaís tomam-seobsoletas, enquanto outras aparecem "de novo". Hojeem dia, nós estamos bastante familiarizados pelas crisestrazid~ pela obsolescência ocupacional devida à auto-mação, sendo que essas crises têm se tomado cada vezmais centrais nas disputas recentes entre sindicato e ad-ministração na indústria. E não é necessãríà muíta.ímagi-nação para entender as tragédias humanas que estio en-volvidas neste processo (embora mesmo esta pouca ima-ginação, normalmente, 040 se faça presente quando dainsatisfação pública com certos sindicatos por se mante-rem leais a certas regras "fora de moda" - isto porqueenquanto nós temos um número suficiente de engenheí-rospara "atualizar" o trabalho, nós nJo temos sido'bem-sucedidos no desenvolvimento de maneiras. paralidar com trabalhadores "fora de moda"). Entretanto,isto é apenas parte do problema humano básico, a parteexterna ou' sócío-econõmíca. Mas há também umaparte interna ou psicossocial.

~ justamente pelo fato de o trabalho ter sido portanto tempo uma categoria humana fundamental, queum trabalho em particular tem sido não somente ummeio de ganhar a vida, mas também Uma fonte de auto-ídentífícação -.Tomando um exemplo chMtico, o artedohinducultua suas ferramentas não somente para expres- .sar o significado religioso de seu trabalho, mas também,ao mesmo tempo, essencíalmente o faz para se definirem termos, de seu trabalho. 'Colocando a. questlo demaneira mais simples, durante a maipr parte 'da históriaos homens "foram" o que ''faziam''.lsto.nlo quer dizerque eles particularmente gostavam do que faziam -oproblema "satisfaçlo no trabalho" é tio modernoquanto o do "significado do trabaUio ". Dizer "~'So\l

um campOnês" era" mÚito prOvavelmente, algo muitodistante do orgulho, entusiasmo, ou mesmo contentamen-to. Mesmo assim, provia uma auto-identificação para oindivíduo que era estável, consistente e reconhecidadesta maneira tanto pelos outros como por ele próprio.Ou, símplifícando novamente, trabalho provia o indíví-

, duo com um perfil fixo. Este não é O caso da maioria dostrabalhos na sociedade industrial. Dizer "eu sou umbombeiro de estrada de ferro" pode ser uma fonte deorgulho; mas o orgulho é tão precário quanto o títuloocupacional. Dizer' "eu sou um técnico de eletroencefa-lografia" não tem o menor sígnifícado para a maioria daspessoas a quem isto édito. Dizer "eu sou um operadorde máquina deendereçamento" não' tem o menor signi-ficado por uma razão diferente, não porque as pessoasnão entendem o tipo de trabalho que deve ser desenvol-vído, mas porque é quase impossível derivar qualquertipó de auto-identificação de uma ocupação como esta,nem mesmo a auto-identificação com um proletariadooprimido que manteve muitos trabalhadores nas primei-ras fases da industrialização. O trabalho fragmentado esempre alterado tende, portanto, a divorciar-se daquelasrelações sociais e eventos dos quais o indivíduo deriva asua auto-ídentíficação e ipso facto começa a. aparecerpara ele como problemático senão totalmente sem signi-ficado. .

Uma conseqüência disto tem sido a concentração deesforços do indivíduo ra procura por significado e iden-tidade na chamada esfera privada, o que. é também umfenômeno peculiarmente moderno, sobre o qual falareium pouco mais adiante. Outra conseqüência, entretanto,tem sido uma luta feroz por status entre um grandenúmero de ocupações. Status e identidade. baseados notrabalho, têm se tomado fluidos, inseguros e, conseqüen-temente. sujeitos a manipulação. Se uma pessoa não temmais a possibilidade de humanamente identificar-se comseu trabalho, em muitos casos, esta pessoa pode. ainda"projetar uma imagem" e, se bem-sucedida, tirar distovárias vantagens econômicas e sociais. Em outras pala-vras, o status ocupacional tornou-se suscetível à auto-promoção". Na verdade, háocupações que podem existirapenas em função deSsa "autopromoção". O atendente .hospitalar, cujo trabalho mais baixo na hierarquia hospi-talar Incluí a remoção de restos repulsivos da atividadetn~dica, pode descrever a si próprio como um "cuspido-rologiSta".e, provavelmente, conseguirá "se virar" com'esta deflJliçio, ao menos fora do hospital. O que está porbaixo da idéia de profissionalizáçã'o, em muitos casos,nlo está longe deste patético truque confidencial. AsOCUpações nlosomente tornam-se obsoletas, comomuito antes disso poderão ter que defender sua razão deser. Outras ocupações recém-egressas do limbo e já aspi-rando o status de. "profissão" têm que ser mais estriden-tesem seus-clamores para a vida, respeito e uma porçãosaudável do boleeeonômíco. Por isso, o cenário ocupa-cional está hoje repleto de uma variedade de organiza-ções de, defesa e agências de propaganda, totalmentedesconcertantepara o cidadfo médio e, freqüentemen-te, desconcertante para vúiasentidade$ oficiais chamadas .para licenciar, julgar e supervisionar nesta selva de proje-çlO de imagens competitivas. Esta sítuação levanta ques-tões nlo somente sobre conceitos tio antigos quanto a"dipidade do trabalho" , mas evoca de novo O espectro

..da falta ~sentido sobre todo o cenário ocupacional.

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Um resultado muito importante da Revoluçlo In-dustrial, já mencionado anterionnente, tem sido a crista-lizaçfo da chamada esfera privada da vida, um novofenômeno social' localizado na interseçio das grandesinstituições públicas. Embora essa esfera privada seja, éclaro, dependente das instituições públicas (especíalmen-te as econômicas e políticas) ela prevê para o indivíduouma fonte alternativa decisiva de. auto-identificaçio esignificado pessoal. Isto tem importantes conseqüênciassocíolôgicas e psicossociais ,que nÓSnão podemos perse-guir aqui. O que nos interessa é qúé esta esfera privada é,quase que pordefíníçâc, segregada da esfera do trabalho.De fato, foi a industrialização do trabalho que de iníciotomou possível a emergência desta nova área da vidasocial, O caso típico e normal na sociedade industrial équando as pessoas não trabalham no mesmo local onde.se dão suas vidas privadas. As1duas esferas estiogeogr.fica e socialmente separadas. E:uma vez que é nestaúltima que pessoas típica e normalmente localizam suasidentidades essenciais, pode-se dizer que elas não moramonde trabalham. A ''vida real" e o "autêntico eu" deuma pessoa supostamente estão centrados na esfera pri-vada. A vida no trabalho, portanto, tende a assumir umcaráter de pseudo-realidade e pseudo-identidade: "euapenas trabalbo aqui, mas se você quer me conhecer damaneira como eu realmente sou, venha a minha casa econheça a minha família". Em termos de -instituições,oprocesso mais importante envolvido em tudo isto temsido a segregação da família do mundo do trabalho, e asua transformação de agente econômico produtivo paraagente econômico consumidor. E, é claro, é a família,para a maioria das pessoaselli nossa sociedade, o princi-pal foco da vida privada.

Esta, assim caracterizada, desvalorízação ontológicado mundo do trabalho tem tido conseqüências profun-das quer do ponto de ..vista psicológico como moral. Avelha defíníção de perfil dada pelo trabalho é substituídapor uma peculiar dicotomizaçio da vida. A esferapri-vada, a família em especial, toma-se a expressão daquiloque "alguém realmente é". A esfera do trabalho, conver-samente, é apreendida como a região na qual a pessoa"não é ela mesma", ou, usando um termo de 'ciências

'sociais que tem se tomado cada vez mais freqüente nodiscurso popular, esta região é apreendida como uma naqual à pessoa apenas "representa um papel". A descriçãodo homem de propaganda, feita porLewis, demonstraesta situação de maneira bastante lúcida, mas a mesmademonstração pode ser encontrada em outras partes deste.livro - com a possível exceção do "executivo", emboraeu não esteja certo de que O imaginário magnata dosseguros descrito por Underwood do tenha se tomadovitima de sua própria retórica de relações públicas aolongo de seu relato de autodefiníção. Se um indivíduo seauto-apreende em termos de uma psicologia dupla, não énem um poueo surpreendente que ele subscreva a umamoralidade dv,pla - como, de fato, o tipo descrito porUnderwood faz de maneira bastante aberta, Moralidadeprivada e moralidade pública tomam-se universos .'bas-tante diferentes de discurso. Aqui é preciso tomar cui-dado para não assumir esta moralidade dupla em termosde "hipocrisia". Dada a dicotomização estrutural acimareferida, a dicotomização da. teoria ética e da prãticamoral é apenas "realista", isto é, apropriada à realidadesocial predominante. .

Problemll do trtIbtIIho

Nós defenderíamos a tese de que esta metamorfosedo trabalho, na sociedade industrial, mudou fundamen-talmente seu caráter humano. Nas sociedades antigasuma pessoa poderia distinguir entre trabalho "nobre" e otrabalho "humilde". Enquanto o nosso "executivo"encontrava-sevsem dúvida, engajado em trabalho "no-bre", tal.qaal julgadopor ele próprio e por quase todomundo, e o nosso "faxineiro de edifício" faz um traba-lho decididamente considerado "humilde";' a velha dís-tinçlO siJÍlples não se aplica para a maioria dos outroscasos. Nós sugeriríamos uma classífícação do trabalhoem três categorias, em termos de sua Significação hu-mana. Em prímeíro lugar, existe o trabalho que aindaprovê ocasião para auto-identificação primária e umcomprometimento do indivíduo - para a "auto-reali-zação", se possível. Em terceiro lugar, há o trabalho queé apreendido como uma verdadeira ameaça a auto-íden ti-ficação, uma indignidade, uma opressão. E em segundolugar, entre os dois pólos, há o trablho que não é nem"realização" nem "opressão", um .certo cinza, uma'região neutra na qual urna pessoa nem se regozija nemsofre, mas' uma situaçio que as pessoas vão levando commaior ou menor graça pelas outras coisas que se supõemais importantes - sendo que estas coisas estio típica-mente conectadas com a vida privada das pessoas. Comocom qualquer tipologia, haverão de surgir dificuldadesespecfficas para classificar qualquer situação de trabalhoou ocupação. Mas, na maioria dos casos, acreditamos quea decisão não será difícil. Na primeira categoria, é claro,devem ser colocadas boa parte das chamadas profissõesliberais e a camadasuperior das posições existentes nosaparatos bnrocrétícos. Na terceira categoria, devem con-tinuar muitas das ocupações que não requerem talentosespeciais, aquelas do "porão" do sistema industrial. E nomeio, na segunda categoria, devem estar situados ogros-so do trabalho industrial ou mesmo de escritório e ser-viços.

Para melhor ou ~apior (e, pela maioria dos críté-rios possíveis, para melhor) a primeira e a-terceira cate-gori. têmdímímifdo-em favor da segunda. Isto pareceser uma inevitável conseqüência do processo de indus-tríalízação em andamento.' A racionalização do trabalho,a burocratização da máquina administrativa, organizaçãoem massa para produção em massa e consumo em massa- estas necessidades funcionais do sistema industriallevam.dnevitavelménte, a um encolhimento da primeiracategoria de trabalho. Somente no topo e em certasposições especiais, ao longo da estrutura, há espaçosufi-ciente para envolver uma pessoa em sua totalidade. J!mais comum <> empresário ser substituído pelo buró-crata, o profissional individualista pelo grupo e o artesãopela máquina. Mas ao mesmo tempo em que a demandapara "senhores" diminui, a demanda por escravos tam-bém sofre quedas.

O trabalho vai-se tomando mais seguro e limpo, suasdemandas em. termos de tempo e energia tornam-se maisabrandadas. Se .é verdade que algumas pessoas têm me-nos prazer no trabalho, a maioria tem menos pesar. Oque quer que se possa pensar sobte este balanço da con-tabilidade humana, ficará claro que esta 'expansão daárea do meio gerará seus próprios problemas, diferentese, provavelmente, menos horripilantes que aqueles dasgerações anteriore,s, mas da mesma maneira prementes. ~

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entre estes problemas lodo "significado" do trabllho écentral.· I. •

-,Nosso "problema do trabalho" precisa, então, ser. entendido num determinado contexto histórico e, por-tanto, relativo, levando em consideraçlo· o pano defundo e os processos estruturais específicos da SOCieda~industrial moderna. Mais ainda, entretanto, há umdesenvolvimento ideológico a ser considerado, a saber, asecularízaçâo do conceito de vocação. Nós nlopodemosapresentar aqui a teoria de Max Weber sobre o assunto, eprecisamos limitar-nos à obServaçlo de quetal teoria écrucial para o entendimento da dímensão ideológica dotrabalho na sociedade moderna. Weber mostrou de ma-neira convincente como; especiabnente através da me-diação do protestantismo, o conceito medieval de VOC!l-ção religiosa foi transformado no. conceito moderno detrabalho secular como vocaçâo, isto é, como açlo querequer o mais alto comprpmetírnentorelígíoso e éticbpor parte do indivíduo. Mesmo os que .crítícem a teoriade Weber concordarão que o trabalho no começo da .hístôría .ocidental moderna assumiu um significadomuito diferente daquele que tinha tido em períodosanteriores e em outrascivilizaçi5es - não somente umdever religioso a ser fielmente cumprido, não somenteumaatívídade herdada com pesadas pré e pôs-criações(tal como, por exemplo; o dhamuz· da casta hindu), masum "chamado", no sentido de exigir do indivíduo umcomprometimento total e apaixonado, canalizando.a suavida inteira para a realização de altos objetivos e, portan-to, dando um alto significado à sua vida. Não é necessã-rio dizer, esta atitude em relação ao trabalho precisa servista em relaçãó: à imensa energia que o homem modernoocídentelínvestíu em atividades econômicas e tecnoló-gicas, uma energia (que Weberchamou de a força do"asceticismo mundano interior") que se localiza nonascedouro tanto do .capitalismo mOderno coUto doindustrialismo moderno. Mas, mesmo que apenas poucosindivíduos. hoje, assumam suas vocações como uma ta-refa alCr feita "pela glória maior de Deus", O conceitode trllbalho como portador de altos signíficados éticos emorais ainda persiste. Em outras palavras, o conceítoevocação persiste em uma forma secularizada, de formamáxima na constante noção de que o trabalho proverá a"realizaçã'o'~ última da. vida do indivíduo, e .de marieirarnínimàna expectativa de que, de alguma maneira ouforma, o trabalho terá algumsigni~cado para ele.

Se agora nós tentarmos ver os desenvolvimentosestruturais e ideológicos juntos, seremos confrontadospor uma situação paradoxal ri até mesmo irônica. Osdesenvolvimentos estruturais, como procuramos demons-trar,.tornam cada vez menos provável que um indivíduoconsiga "realizar-se" em seu trabalho, força-o a procurartal "auto-realização" em outro lugar, transforma o tra-balho de um exercício de um "chamado" para a repre-sentação de um "papel". Ao mesmo tempo, persiste umaideologia de trabalho que continua a apresentar ao indi-víduo a expéctativa de que ele deve achar seu trabalho."signiflcatívd" e que ele deve ter "satisfação" nele, umaideologia que é institucionalizada no sistema educacional(por exemplo, o "aconselhamento vocacional"), nosmeios de comunicação e, por último,· mas não menosimportantes, nas várias organizações ocupacionais e pro-fission-ais. A sociedadecontemporânea fazmui«'-pQUcopara preparar seus membros para atividades "sem senti-

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do" :mesmoque estas sejam,ao mesmo tempo, sem so-frimento. Ao contrário, ela os.impregna de uma expecta-tiva generalizada de uma realização- ainda mais plena de. "significado" em tudo o que eles fazem. ~ uma pena queesta-expectativa precise então ser levada a cabo nummundo no qual tenha muito.pouca chance de ser alcan-çada. De fato, com base em conhecimentos sociológicosapriori, pode-se esperar que a ideologia do trabalho gra-dualmente adapte-se à realidade estrutural. De fato, nóslançaríamos o argumento de que. o "prívatismo" discu .•tido acima constitui, ao menos em parte, precisamentetal adaptaçiro ideológica. Entretanto, enquanto a velhaexpectativa ideológica persistir, nosso "problema dotrabalho" continuará a ser particularmente claro.

Como o pensamento sociológico tem lidado .com onosso problema? Antes de olharmos às recentes contri-buiçõesamericanas, nós consideraremos o tratamentodado ao assunto pelos sociólogos clássicos.

Não deve haver muita dúvida de que boa parte dopensamento sociológico, concernente ao assunto dotrabalho até hoje, deve-se a Karl Marx. Isto não só pelainfluência de suas. teorias econômicas,· mas quem sabemuito mais .devído às suas premissas antropológicasbásicas, muitas das quais (comumente sem o conheci-

- mento da fonte) tornaram-se pressupostos dados comocertos por várias ciências sociais. A antropologia mar-xista, é, de fato, .baseada em conceito de trabalho. Ohomem é essencíalmente o ser que "produz". Ele nãosomente produz o seu próprio mundo, mas, ao fazê-lo,ele produz a si próprio. O trabalho físico e o trabalhomental estio conectados no processo de produçãohumana' de maneira inseparável. A tragédia da história.entretanto, é que o homem alienou-se de seu trabalho,isto é, o mundo que ele produziu tomou-se uma reali-dade autônoma e até mesmo hostil que o confrontacomo algo estranho e separado dele próprio. A alienaçãosepara o homem do produto de seu trabalho, de seuscompanheiros homens, e, fmalmente, de si mesmo. Sobas condições de trabalho alienado, o homem trabalhanfo'parasúa realizaçlo (o modo antropologicamente"correto" de. trabalhar); mas por necessidade e por-razões de sobrevivência. Este fato forma a base da críticade Marx ao capitalismo. Evidentemente, nós não pode-mos discutir aqui os méritos nem as profundas impli-cações dessas pressuposições. Nós enfatizaríamos apenasque a Concepção antropológica marxista do homem .como o ser que produz, especialmente como o ser queproduz um mundo (ou, como diriam os cientistas sociaisamericanos hoje, produz cultura), é indispensável paraque possamos entender a centralidade do trabalho naexistência humana. E isto pode ser dito mesmo que aseguir passemos a rejeitar a aplicação que Marx faz desta

. concepção em suas teorias a respeito da moderna socie-dade capitalista.

Muitas das idéias de Thorstein Veblen sobre o tra-balho podem ser entendidas como modificações peculiar-mente americanas da concepção de Marx. Tal comoMarx, Veblen pressupõe que o homem é essencialmente(''instintivamente'')homo faber (trabalhador). EnquantoMarx, entretanto, analisou as conseqüências sociais daalienação do trabalho humano em termos da oposiçãoentre exploradores e explorados, Veblen viu a oposiçãomais como sendo. entre homens autoconfiantes e suas"marcas" definitivamente, uma mudança como. o

_ReviBta âeAdminirtTtlção de Empresas,

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"gostinho americano". Desde cedo na hist6ria aparecemaqueles que conseguem "viver pelas suas bocas", fazendoisto à custa. daqueles que continuam ''vivendo pelas suasmãos". "Propriedade" e "habilidade em vender" 510 o .oposto de "habilidade para o trabalho". Há, portanto,ocupações de indústria e ocupações de desperdício. Talcomo Marx, Veblen também. ínteresscu-se pelos efeitospsicossociais do trabalho moderno (a "disciplina damãquína"; como ele o chamou). N6s argiliríamos que,parao nosso problema, Veblen não adiciona muito queseja relevante além da concepção marxista - exceto noaspecto da "autopromoção", da elaboraçiode imagem,sem a qual muito do que acontece nas situações contem-porâneas não faz sentido.

Retomando aos socíélogcs clássicos da Europa, umdos trabalhos principais de Bmíle Durkheim, Sobre adivislo do trabalho ria sociedade, dedica-se ao nossoproblema. Durkheim .concorda com Marx·(o qual,inci-dentalmente, adotou o conceito de Adam Smith e DavidRicardo) que a diviSão do trabalho é pelo menos um dosprincipais agentes de mudança hist6rico-sociais. ParaDurkheim, a.mudança se dá acima de tudo, no caráter desolidariedade existente na sociedade - desde a "solida-riedade mecânica" das sociedades, menos complexas, nasquais há pouco espaço para a diferenciação individual,até a ."solidariedade orgânica" das sociedades complexascom uma diferenciação acentuada de trabalho. e, conse-quentemente, com uma organização social extrema-mente diferenciada. A última; entretanto, também traz'consigo uma possibilidade mais sinistra: a anomia (como.Durkheim a denomina), a qual é um estado no qual osindivíduos perderam seu enraizamento social e sentem-seabandonados num mundo estranho. Durkheim aplicoueste conceito especíâcamente à questão do trabalho,juntamente com outros fenOmenossociais, e fala de"trabalho anõmiço" - apesar de enormes diferençaste6-ricas, este termo pode Ser relacionado ao "trabalho alie-nado" de Marx. Entretanto, há um toque de otimismoburguês bastante forte nas noções de Durkheim sobre oassunto: o desenvolvimento da "solidariedade orgânica"faz com que a aplicação de força bruta para manter osistema social seja desnecessária, havendo,portanto,uma díminuição em conflito de classes e anemia, inclusi-ve "trabalho anõmico".

. Em um de seus trabalhos menores, Weber escreveusobre o trabalho industrial de uma maneira muito maispróxima à sociologia americana contemporânea do queos autores acima mencionados. Entretanto, suas perspec-tivas mais importantes sobre o nosso problema são en-contradas 'em seu principal trabalho WiTtschaft undGesellschaft (Economia e sociedade). O aspecto centralaqui é o da racionalização, como Weber o denomina T" oprocesso. global na moderna história ocidental que tornacada parte do sistema social cada vez mais racional emsua organização, procedimentos e Idéias: A teoria daburocracia de Weber, ainda o fundamento de quasetodos os trabalhos socíolôgicos sobre este assunto, é

.'parte desta concepção ~eral de racionalização. Nisto estáimplícito, muito embora não tenha sido elaborado porWeber, um fenômeno psícossoeial - o surgimento detipos humanos adequados a participarem num sistemasocial e econômico altamente racionalizado.

Marx, Durkheim e Weber suprem a maioria das fer-ramentas teóricas com as quais os sociólogos contempo-

Problemll do trQbalho

râneos abordamo fenômeno do trabalho, com Veblenfazendo as vezes de um mediador americano das idéiasdos primeiros. No que tange a fontes te6ricas não-socio-lógicas, estas devem ser pensadas primordialmente nadíseíplína da psicologia, muito embora n6s niopossamosperseguir estaquestlo. Se agora n6s dermos uma rápidaolhada aos desenvolvimentos americanos mais recentes,na análise sociolôgica do trabalho, deveremos darespe-cíal atenção a dois deles - sociologia industrial e socio-logia das ocupações.

Snquanto os psícólogos americanos mostraram uminteresse pela indústria que vem desde antes da I GuerraMundial, a sociologia industrial americana pôde prova-velmente ter seu início demarcado com os famosos expe-rimentos na fábrica da Western Electríc, em Hawthorne,Illinois, os quais tiveram ínícíe no meio dos anos zo,Esses experimentos, que haviam sido _planejadoS paratestar uma grande variedade de fatores que influenciam aprodutividade do trabalhador, tomaram um curso decisi-vamente/ sociol6gicó com o descobrimento (será que foiisto mesmo que aconteceul] da importância do gruposocial informal para a produtividade. A principal figuraque popularizou os resultados .encontrados e os integrouem uma teoria geral de "relações humanas" na indústriafoi Elton Mayo, um especialista australiano em assuntosindustriais e que mais tarde tomou-se professor naEs-cola de Administração de Harvard (Harvard BusínessSchool). Mayo teve sucesso acima de tudo em provocar ointeresse da classe administradora nos resultados de suanova disciplina, e desde então a sociologia industrial temtrabalhado em estreita cooperação com a administraçãoíndustríal, em especial uma ramificação desta última(que também desenvolveu-se ao menos numa disciplinasemi-acadêmica) que trata. da administração de pessoal.Pesquisas posteriores em Hawthome tiveram o envolvi-•mento de duas outras figuras importantes para o desen-volvimento da disciplina: Fritz Roethlisberger e W.Lloyd Warner. O foco da sociologia industrial continuoua ser aquele déterminado pela descoberta' de Hawthorne_ a relação entre os sistemas sociais informais criadospelos pr6prios trabalhadores e a organização' de trabalhotal qual projetada pela gerência. Em vista disto; não ésurpreendente que a disciplina tem sido acusada de terum viés administrativo, prestando-se à nefasta manipu-lação dos trabalhâdores.

Não haveria razão para delinear ainda mais a hístóríadesta disciplina, a não ser para mostrar seu enorme de-senvolvimento desde à. 11 Guerra Mundial. tornando-se"uma das ramificações principais dq empreendimentosociológico tanto nos EUA como fora dele. Seus méto-dos tornaram-se suficientemente amplos de maneira quesua aplicação é possível, além do trabalho industrialpropriamente dito, como por exemplo no exército e emorganizações burocráticas dos mais variados tipos.

A sociologia das ocupações tem um histórico bas-tante distinto. Ela deriva da chamada sociologia urbanada Escola de Chicago, a qual, fundada por Robert Parkfloresceu particularmente entre os anos 20 e 30. Park eseus alunos estavam interessados em todos os aspectospossíveis da vida urbana. O estudo das ocupações foram,de início, mais ou menos um subproduto desse ávidointeresse. No princípio os sociólogos de Chicago estavamprimordialmente interessados nas ocupações de baixareputação (se é que assim se pode chamá-las), como, por

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, exemplo, bailarinu de aluguel (~~i-glrb)e l~ Pf&f1SSionais.Esses estudos,' entretanto, tomaram-se mode-los padrões para a análise cuidadosa dos mundos sociaisconstruídos 'com base numa determinada ocupaçlo. Amudança de interesse na direçlo pelo estudo do traba-lhador de estrada de ferro publicado em 1940. Depoisdisso, a disciplina não pôde mais ser vista como parte <,IaEscola de Chicago.

Desde a 11Guerra Mundjal, a' sociologia das ocupa-ções teve. um grande desenvolvimento, principa1mente

I sob a liderança de Everett Hughes, o qual durante muitosanos ensinou na Universidade de Chicago, onde treinouuma geraçló inteira na sua maneira de encarar o mundodo -trabalho, Nesse livro, n6s apontaríamos o eloqüentedepoimento de Gold sobre 'a peculiar inspiração.Hughes para esse tipo de pesquisa. Tendo pubUcado ~maior parte de seus trabalhos no AmeriCtln Joumal 01SociolDgy, Hughes e seu grupo geraram um número con- .:siderável de monografias num espectro bastante amplode. ocupações. Muito embora a sociologia das ocupaçõesnrotenha atingido o mesmo destaque da sociologiaindustrial junto à sociedade acadêmica e de pesquisa(fato que pode ser facilmente explicado não SÓ pela suapouca idade como também pela sua relativamente baixaaplícabílídade): ela é hoje uma especializaçlo bastanterespeitável e é ensinada em vários .lugares. Sua principalênfase pode ainda ser identificada com uma daspressu-posições básicas de Park é sua escola: que nem:huma ati-vidade humana é suficientemente humilde' ou sem graçaa ponto de não ter interesse para o.socíôlogo.

Não é necessário enfatizar que as páginas!anterioresnão poderiam ter tido o objetivo de. servir eomo umaintrodução adequada ao-que hC!jeé um corpoimpressio-nante de teoria e dados. Essas páginas terlo sido úteiscaso o leitor tenha se conscientizado de que as contri-buições apresentadas nesse livro têm, através de si, umalonga tradição intelectual, sobre a qual, de maneira im-plícita ou explícita, elas foram construídas. O que nóspropomos rias páginas seguintes desse comentário éesboçar três aspectos que, acreditamos, devem ser enfati-zados em qualquer análise sociol6gica' do trabalho:' oestrutural, o psicossocial e o ideológico. Estes três aspéc-tos podem servir para coloc~ ~. co?tribui~ões. de.stevolume num quadro de referência maa amplo e, 'alémdisso, poderá ser útil por apontar umaabord.m socio-lógica que sequer foi mencionada até aqui.

Toda ocupação opera dentro de estruturas sociaisespecíficas. Tais estruturas podem ser analisadas sob doisaspectos: o macrossociale omicrOssocial.Jsto é,po4e-seanalisar a ocupação em termos de sua posiçlo relativadentro da sociedade mais ampla, sua base econômica,suaorganização política e social, e pode-se, também, an.alisaruma ocupação em termos das situãçks individuais detrabalho qUe dela derivam, com cada uma dessas situa-

. ções, bem como todas elas, constituindo um pequenosistema soeíal, N6s afirmaríamos que u,m estudo com-preensivo do trabalho deve incluir tanto os aspectosmacrossociais como os microssociais.

A estrutura macrossocial é um mundo em miniaturacriado por aqueles que trabalhamjuntos, ou; de maneiramais acurada, criado por eles' nas' círcunstâncias de seutrabalho. Como foi hem demonstrado pelos. soci6logosindustriais, esse mundo é apenas' parcialmenteplanejadQe controlado por aqu~esencarregados de sua geatlO

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oftcial. Normalmente,' é, ao menos em parte, um "con-ttmtundo" criado por a(J.l~.1esde. quem se espera que .trabalhem no mundo oficialmente defmldo pela admínís-tração. Mesmo um trabalho de 'baixo status e baixo nívelde recompensa é capaz de gerar esse tipo de mundo,dando a seus habitantes pelo menos aquele pouco desatisfaçlo que qualquer grupo social tem a oferecer. Adiscussão de' Gold sobre a sociabilidade interna do grupodo faxineiro nos dá uma imagem viva dessa questão.Subjetivamente, a iniportância desse mundo toma-seconsciente para o indivíduo quando da ameaça de SUl!separaçlo dele, como nos casos de desemprego e aposen-tadoria. Do ponto de vista de anomia, mesmo as situa-ções de trabalho, que eram concebidas em termos deuma atividade desinteressante e maçante, acabam assu-mindo o brilho intenso de um mundo ao qual o indiví-duo pertenceu.

As situações de trabalho, é claro, diferem bastanteem termos dos mundos. sociais que elas criam. Os cincoestudos deste livro devem tomar claro este ponto. Ofaxineiro; o trabalhador. da indústria dê autom6veis e oengenheiro trabalham num mundo dominado por obje-tivos físicos e pOJ:tarefas físicas. Os seres humanos sãoagrupados e interagem ao redor desses objetivos ~ latasde lixo, carrocerias de automóveis que se movem, umavariedade de equipamentos. O homem de propaganda e oexecutivo, em contraste, trabalham num mundo cons-truído quase que totalmente pela fala e pela escrita. Emcada umdestes mundos há uma complexa rede de rela-cionamento e posições de status, na qual o indivíduotem de encontrar e manter seu lugar. Isto é verdadetanto para o faxineiro como para o executivo. Solidarie-dades sIo formadas, manipuladas e a seguir abandonadas.Na descriçlo de Gold n6s éncontramos uma fascinanteimagem de um mundo social coeso, criado em tomo deuma das menos edificantesocupações que se pode ter nanossa 'sociedade, .inas .com seus pr6prios valores e suapt6pria ética. O mundo descrito por Chinoy tem dentrode si o poderoso agente mediador capaz de gerar solida-riedade que é o sindicato; mas à parte dele. existe ummundo daanonímídade, no qual os mais variados tiposde relação social podem realizar-se. ~ situação de traba-lho, analisada por Evan, é, acima de tudo, marcada pelaexístêncía de um homem frustrado, e, parece, desespe-

. rado, em busca de status, na margem de outra ocupação(a do engenheiro), cuja valori;zaçlo popular na culturaamericana' deve ser particularmente írrítante para aquelescondenados. a assisti-la do lado de fora; E temos; ainda,os mundos glamourosos descritos PQr Lewis e Under-wood, aquele do homem de propaganda como um "cor-tigiano" moderno e aquele do executivo como um"príncipe" moderno, repletos de formas de poder e glô-gia que nemmesmo Castiglione ou Machiavelli poderiam .ter concebido. A literatura nesse campo está repleta dedescrições de mundos &ORiaisbaseados em ocupações .diferentes ainda-daquelas com as quais lidamos aqui'(apenaspàra mencionar dois estudos particularmentefascinantes: o mundo do restaurante e do hospital. cadaum dos quais com o seu "palco" e "bastidor",· comoErving Goffman adequadamente denominou essas duasáreas da dramaturgia da vida diária), com a sua manipu-lação de consumidores e pacientes por um pessoal hie-rarquicamen~ estruturado, cada qual desenvolvendo-seao redor de' uma figura usbequiana de esplendor no topo

R~de Ad~ de Emprelltl$

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da escala de status - o cozinheiro e o doutor, respecti-vamente, sob a maravilhosa brancura de suas vestimentascerimoniais,

Seria tentador, a esta altura, fazer algumas compa-rações em detalhes entre esses mundos microssociais,comparações estas bastante raras na literatura que temuma tendência justificável para se tomar ~oi1ográfica.Tal intento, entretanto, quebraria o formato destas,observações gerais. N6s preferimos enfatizar agora ooutro aspecto a ser analisado na estrutura do trabalho, omacrossocial. As ocupações, ou a maioria delas, nãosomente geram numerosas situações sociais nas quais osindivíduos interagem face a face, mas também consti-tuem grandes sistemas sociais, freqüentemente bastanteorganizados, que entram em btteraçlo complexa comoutros sistemas e subsistemas da sociedade em geral.Enquanto esse mundo macrossocíal não ê idêntico àsvárias organizações que o representam e o administram(por exemplo, o mundo' da medicina é maior que a somatotal das organizações médicas), tais organizações consti-tuem-se nas melhores oportunidades para o estudo dasua estrutura.

Aqui, situa-se um grande número de problemassocíológicos para análise: a relação entre' a ocupação'organizacional e a ocupação como um todo, o statuslegal das organizações ocapacionais (como, por exemplo,em seus poderes de lícenciação e supervisão); a estrutura'de poder interna da organização (que pode variar ampla-mente como, por exemplo, em diferentes sindicatos), e apolítica de poder da organização na sociedade como umtodo {em termos de pressão junto a organismos de repre-sentação política, publicidade e assim por diante). Esseaspecto da estrutura do trabalho tem sido estudado,primordialmente em conexão com o sindicalismo. Se,por um lado, essa é uma área de investigação, cuja impor-tância é óbvia, por outro, não lhe é feita a devida justiça.O mundo das organizações ocupacionais é tal que umavisão veblenesca de um enorme "golpe" sendo aplicado équase um imperativo metodológico. Isto pode ser maisfacilmente visto no fenômeno chamado "profissionali-zação", isto é, uma situação na qual uma ocupação saibuscando convencer o público de que ela agora tem odireito ao status das profissões mais antigas e respeitadas(entre as quais medicina e direito são protótipos). Ossociólogos elaboraram uma lista de características, apa-rentemente sérias, que dariam o direito a uma ocupaçãode reclamar um status profissional para si mesma. Istopode ser considerado uma tarefa digna de mérito, masnós ainda afirmaríamos que se perde muito da realidadeem questão se não se consegue alcançar as fantásticasmanobras que' têm lugar no processo de se adquirir taiscaracterísticas ou, mais adequadamente, no processo dese manufaturar tais características. A característica maisimportante de uma profissão, segundo o senso comum, éa posse de um corpo de conhecimentos distintos, que étransmitido sob os auspícios da profissão, e uma éticaprofissional, que é supervisionada ainda sob os mesmosausp(cios. A questão da' ética não é tãoproblemática'.Mesmo porque, a maioria dos grupos profissionais fun-cionam com base num mínimo de' regras básicas, para aSUa própria proteção, senão para a proteção do público,e e$S8S regras podem 'ser facilmente codificadas. ~ nocorpo de conhecimentos que a dificuldad!,começa. Qualé, ao fim e ao cabo, o corpo de conhecimentos que pro-

Problemtl do trabalho

priamente. pertencem ao trabalho social, trabalho fune-rário, ou relações públic~ -. apenas para mencionar tr6sgrupos que recentemente, porém de maneirà ruidosa,andaram reclamando seus respectivos status profíssío-nais? A grande máxima poderia, neste caso, ser assimcolocada: "Se. um corpo de corihecirnentos não existe,entlo precisa ser produzido". Nlo é preciso dizer queesta não é uma tarefa fácil, especialmente ~ envolve aelaboração de um currículo plausível para os centros detreinamento de uma profissão nascente.

O aspecto psicossocial do trabalho ocupa-se, acimade tudo, com o que o pensamento monástico chama de"formação", isto é, a moldagem do caráter de acordocom as demandas da vocação. Usando um termo demaior respeitabilidade na sociologia, trabalho envolveprocessos de soéializaçlo. Esta socialização poderé ser'voluntária ou involuntária. Em alguns casos, O. indivíduoprocura avidamente moldar-se de acordo com as deman-das vocacionais, em outros, ele nlo tem esse desejo, oupelo menos não tem consciência do processo que dequalquer forma está em andamento ..Essa qualidade indi-vidual da socializaçlo é, essencialmente, um fenômenopsicossocial que pode ser observado. de maneira geral, suamanifl'~taçlo no mundo do trabalho é apenas urna entrevárias outras manifestações. Incidentalmente, mesmo noscasos em qqe o indivíduo submete-se, por sua própriavontade, ao' processo de .socíalízação, normalmente elenão tem condições de antecipar ou imaginar as conse-qüências últimas que terão lugar.

Qualquer tipo de trabalho socializa, ao menos. umpouco, na medida em que o desempenho eficiente notrabalho tem alguns pré-requisitos psicológicos. Mesmo acategoria mais baixa de trabalho (do ponto de vista detalentos e esforços necessários) faz um mínimo dedemandas psicológiCas, como por exemplo, pontualidadee aparência predizível. Por exemplo, a função de guardanoturno pode não envolver nada além da presença doíncumbente da função, mas, por outro lado, existirá ademanda de que. a sua presença seja confiável (certa) emhoras determinadas e específicas. A medida em que um .indivíduo ascende na hierarquia ocupacional as deman-das, psicológicas obviamente crescem, o processo "desocialízação toma-se mais complexo e set.QJesmais am-plos da personalidade são afetados. Como resultado,tipos psicológicos mais distintos são "formados". Comocomentamós anteriormente; o trabalho industrial mo-derno, em seu amplo estrato médio, tem muito poucacapacidade de criar "perfis" estáveis. A capacidade,en-tretanto, é intensificada à medida que se examinam pos-tos mais altos da hierarquia. Essa capacidade é aindamuito forte em determinàdas profissões. Nos escalõesexecutivos de administração es~a capacidade é desenvol-vida sob a égide de políticas expressas.

~ importante enfatizar que a socialização ocorre nãosomente, ou mesmo primordialmente, em função de po-líticas e programas expressos. O mais importante agentesocializador é a própria situação de trabalho, a qual, cer-tamente, faz aparecer um ambientepsiçossocial que temum impacto inevitável no indivíduo. Isto mo quer dizerque este ambiente age como uma força que não pode ser.resistida de maneira alguma. O ponto verdadeiramente.importante é que mesmoquando é resistido ou mesmoquando indivíduos elaboram algum tipo de compromisso

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com ele, o ambiente exerce uma presslo psicológica noindivíduo, 'enquanto resiste ou, entra "em compromisso.Cada situação de trabalho pode, portanto, ser entendidacomo um ambiente psicossocial, no qual o indivíduoentra com sua personalidade mais ou menos escancaradaà influência deste. Isto é verdade parà a fábrica, o escri~tório, a executive suite, e a associáçio de professores,embora, é claro, os detalhes psicossociais variem ampla-mente de um para o outro, i

.: ' Os ambientes, p~cossociais dos cinco e~tudos ~estehvro são bastante diferentes entre si. Nós tendemos aachar que apenas as duas ocupações mais altas (executívoe. homem de propaganda) sãosuscetíveís à produç~o detipos humanos reconhecíveis; isto é, reconhecíveis comopertencentes às ocupações em questão , ao menos 'pelaspessoas que conhecemos., O personagem princip~ deUnderwood dificilmente seria reconhecido como' algodiferente de um executivo, embora um nível maior deínícíação seria necessário para, reconhecê-lo conio umexecutivo do ramo de seguros. Os, tipos humanos quehabitam a selva da conta-de-despesas-oficiais, descritapor Lewis, do rapidamente reconhecidos como' tipospelo público em geral. Um técnico em engenharia, entre-tanto, mistura-se com uma categoria muito mais geral detrabalhador qualificado da baixa classe média. E um tra-balhador da indústria automobilística poderia, ,igualmen-te, ser um mecânico de oficina, da mesma maneira comoo faxineiro poderia ser um recruta do exército um tantofatigado. Mas nós não estamos 1lqui fazendo imputaçõessem o dev.ido embasamento, O executivo' descrito porUnderwood sabe e até orgulha-se do 'fato de seu trabalhorequerer um comprometimento total de seusrecursoshumanos - ele é um candidato totalmente oônscio paraas agonias que se passam na executive suüe. E os homensde propaganda de Lewis são, também, da mesma maneiracandidatos cônscios para The MIm in' the Gray FIIlnnelSuit e Theroad to Miltown. Por outro lado, o técnicoem engenharia descrito ~r Evan sabe muito bem quenão pode ser reconhecido - de fato, esse é um de seusgrandes problemas: Os trabalhàdores .da indústria 'auto-mobilística descritos por Chínoy queixam-se da anoni-midade na linha de produção 'e os faxineiros de Gold dáfalta de reconhecimento com que os moradores ostratam.

O ambiente' psicossocial do trabalho não é usual-mente uma entidade fixa, mas é sujeita a rápidas mudalt-ças COmoresultado de mudanças administrativas e tecno-.Iôgicas. Observe, por exemplo, a revolução psicossocialq~~ ocorre com a introdução de, procedimentos queVIsam o aumento do ritmo de produção e o pagamentopor peça produzida numa fábica, ou quando secretáriasque atuam individualmente 510 colocadas em um pool desecretaria, ou quando professores de uma universidadese vêem brindados com o fechamento de um projeto dehabitação para o corpo docente. Nesses casos, todo oambiente psicossocial pode mudar do dfà para a noite:amizades são destrufdas, velhas Solidariedades slo substi-tuídas por novas, status é perdido por uns e ganho poroutros, 'novos e potentes mecanismos de fofoca se põem'em marcha.

Falando em termos gerais, sOcializaçlo em nossocaso significa a modelação de uma 8:uto-im8Fm ocupa-cionalconsistente com as,demandas das situ~s «;tetra.~

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, balho ou com a ~açlo como um todo. Isso se compli-ca pelo fato de tais dem~das serem sempre, algo ambí-guas e pelo fato do indivíduo ser confrontado com defi-nições contraditôriasde seu papel ocupacional. Essasdefinições discrepantes (contraditórias) podem ser dis-tribuídas dentro de uma profissão (por exemplo, a dís-crepâneía entre policiais "durões" e policiais "moles").Ou, pode haver discrepâncias na defInição de papéis porparte do incumbente e do cliente (por exemplo, entreassisteqtes' sociais que procuram "esclarecer os conflitosíntimos" de seus clientes, enquanto estes procuramadquirir, alguma vantagem econômica desse procedímen-to). ',Mais ainda, podem haver discrepâncias na maneiracomo os vários esqalõef defínema situàção de trabalho eseu, relacionamento social (por exemplo, o "paternalis-mo" adminiStrativo versus o "contratualísmo' dos traba-lhadores).

Um do.s mais interessantes fenômenos da psicologiasocial do trabalho é o que Goffinan chamou de "distân-cia do papel". Isso se dá quando indivíduos representamde maneira consciente o papel ocupacional (ou qualqueroutro papel) estritamente de maneira prescrita, fazendoexatamente o que é deles esperado, mas, às vezes, man-tendo de forma veemente uma distância íntima comrelaçlo a esse seu papel. Essa atitude está intimamenteassociada com o que Goffman chama de "trabalhando o 'sistema" (worlcing the system). Déve ficar evidenciadoque, com exceção daqueles mais psicopatologicamenteinclinados, esse exercício de equilíbrio extrai uma consi-derável taxa de energia psicológica.

Agora, con<\entraremos nossa atenção no terceiroaspecto a ser considerado numa análise compreensiva dotrabalho: o ideológico. Ideologias ocupacionais variam

" bastante tanto em' escopo como em sofisticação. Algu-mas ideologias não envolvem nada além do que algumasproposições simples que expressam o ponto de vista daocupação. Outras envolvem construções intelectuaisextremamente elaboradas, que, em alguns casos, chegama florescer na forma de teorias completas sobre a socie-dade. Por exemplo, a ideologia (se é que assim pode serchamada) de um lavador de pratos de restaurante podeser constituída de algumas poucas normas éticas, em suamaioria projetadas para protegê-lo da opressão constanteque sofre, dos demais membros da hierarquia do restau-rante, e talvez alguma forma inversa e negra de orgulhopelo fato de ele estar se maatendo em um dos piorestrabalhos imagináveis. Os médicos americanos, por outro

'lado! ao menos através de sua organizaçlo profissional,acharam ser necessário desenvolver toda uma teoria de 'livre empresa, governo e direitos individuais para servirde base às sues proposições ideológicas. Nós acreditamosque, ainda que em forma bem rudimentar, ideologiasocupacionais estio presentes mesmo nas profissões demais baixo status. No mínimo, a ideologia interpretará aprôpria ~upação de, forma a aumentar sua importância.No máximo, a ideologia produzirá uma definição detodo um setor, ou até mesmo da sociedade inteira queesteja em concordância cornos interesses particulares da,()CUpação. E· no meio desses dois pólos, é claro, podemser encontradas uma grande variedade de formas menosextremas. '

O material, neste livro, é bastante rico em ilustra-:ç('Sçs sobre e$S8S formas de ideologia ocupacionais. Oexecutivo" descrritopor UnderwOOd representa o pólo

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mãxímó de maneirabastante clara. A questão se se deveou não assumir suas proposições ideológicas como ex-pressões genuínas de sua auto-imagem é completamenteoutra (Underwood assume que as pressuposiçj'Ses sejam aexpressão da auto-ímagem, nós temos nossas dúvidas).De qualquer maneira, seja ela "sincera" ou não, a ideolo-gia contém uma teoria de comércio totalmente integradae articulada, bem como uma teoria igualmente articuladasobre, a posição do comércio na sociedade em geral. A,ideologia contém, também, algo que só pode ser chama-do de esquema de valores aristocráticos, com altos impe-rativos morais em termos de uma responsabilidade socialgeral, "dramaturgia" pública e preocupação e zelo paracom subordinados. ~ muito interessante notar como estaideologia serve para legitimar aspectos específicos daposição do executivo, fazendo-os parecei" não somentenecessários, mas, também, corretos. A moral aristocrá-tica assume que existem certos traços de caráter espe-ciais, presumivelmente inerentes a certos indivíduos (unspoucos, é clarol) que os habilita a exercer o poder exe- 'cutivo. Isto, nem é preciso dizer, tem sido sempre umacaracterística da ideologia dos "chefões". Um poucomais complexo é o pressuposto ideológico de que a"compaixão humana" ou mesmo o "amor cristão" s10adequadamente levados adiante, através de atos de bene-volência para com determinados subordinados. Nósafirmaríamos que concepção individualista de "compai-xão" pode servir para aliviar a pressão psicológica criadapor atos que, em grande escala, poderiam envolver a,bru-talidade para com os outros (embora nós não' possamosdizer se isto se aplicaria ao caso descrito por Vnder-wood). Provavelmente, a característica mais saliente,nessa ideologia de executivo, é a, bela conexão existenteentre o "bom negócio" e o "amor ou o sumo da bonda-de humana", A conexão consiste na premissa de quetanto o comércio (os negócios) quanto o indivíduo ne-cessitam do desenvolvimento das "potencialidades ple-nas", Uma vez que os indivíduos com algo menos do que"potencialidades plenas" são, normalmente, liquidadosna operação do sistema comercial, a sua liquidação podeser então interpretada em termos de "suas próprias limi-tações", Quase nada precisa ser acrescentado sobre aconveniência dessa interpretação.

Os faxineiros descritos por Gold representam o pólomínimo da ideologia ocupacional. O trabalho deles, semdúvida, é de tal maneira desagradável que possa ser in-terpretado em termos outros que não repugnante. Mes-mo assim, a "cobertura dourada" é enfatizada sempreque possível - por exemplo, na noção que o faxineiro éo "seu próprio patrão", uma proposição no mínimodúbia, mas obviamente auto-enaltecedora e atenuadorade frustrações. As fantasias de poder escapar do universodo porão para uma espécie de paraíso da classe médiatem uma função similar - por exemplo, na preocupaçãocom possibilidades bastante precárias de especulaçãotom imóveis. Mas talvez o aspecto mais tocante daideologia do faxineiro é sua auto-imagem de "guardiãoda casa". Nesse, caso; se é quase que tentado a pensar emum caso arquétipo de, motivo mitológico. O faxineirodefine a si mesmo em termos que remontam aos espíri-tos beneficerites da velha morada; a fornalha suja 'deum prédio de apartamentos em Chicago é, subitamente,.transformada numa visão da terra flamejante - e-damesma maneira, pelo menos porum breve momento,

Problema do trabalho

também transfonna-se o faxineiro. Essa ideologia, entre-tanto, 010 se estende para além dos limites do mundomicroscópico para o qual foi criada como forma.de legi-tirnaçfo. Além desse mundo, "eles" é que mandam - osmais poderosos, os mais bem-sucedidos. NeS$Cconceito,'de "eles" podemos ver claramente o espaço social quase 'infinito que separa o faxineiro do executivo - sociedadecomo sendo o domínio "deles" para um e sociedade co-mo um' horizonte aberto para "nossas" ações para osoutros. Mais interessante ainda, é o fato que tanto o faxi-neiro como o executivo sentem a necessidade de desen-volver proposições ideológicas que, em parte pelo menos,são baseadas em ilusões.

Entre esses dois pólos a densidade (se é que se podeusar este termo) de ideologias ocupacionais cresce à me-dida em que se ascende na hierarquia de status. O mate-rial apresentado por Chinoy faz menção à ideologia, masnós suspeitaríamos que seus trabalhadores da indústriade automôeeis estão sob a grande influência dos pontosde vista ideológicos gerais da classe trabalhadora organi-zada, pelo menos no que toca às suas percepções sobre asituação imediata de trabalho e os problemas que nela sedesenvolvem. Os técnicos em engenharia apresentadospor Evan, é claro, vivem ou gostariam de viver nummundo de profissões de classe média. O seu maior pro-blema ideolôgíco é como fazer que se tome plausível .para o público e, talvez, para eles mesmos. a idéia de quea sua ocupação lhes dá o direito a essa pçsíção. E Evannos dá algumas boas indicações sobre como é que elesfazem isso. Quando vemos o homem de propaganda des-crito por Lewis no campo senão no topo do poder eco-nômico, a ideol9giatorna«predizivelmente mais "den-sa". Lewis nos dá uma discussão particularmente esclare-cedora sobre a discrepância entre complexos ideológicospúblicos e privados, com o primeiro seguindo de perto aretórica usada pelo executivo na Câmara de Comércio,mas que ninguém, na Av. Madison, acredita (exceçãofeita pata alguns tipos de escolas tradicionais descritospor Lewís), e a última uma espécie de conjugação deironia com "realismo" selvagem que ao menos dá ao in-divíduoa noção gratificante senão, de fato, .acurada, deque ele está segurando "o sistema" pelas pontas. O quetambém é bastante instrutivo, na análise de Lewis, é odestino de temas ideológicos derivados dos primeiros

_estágios do desenvolvimento econômico. Nós apontaría-mos aqui para a estranha existência de uma velha moralartesanal num certo vácuo ou a persistência de idéiasmorais não-maquiavélicas num verdadeiro mundo floren-tino, numa mútua selvageria por interesses. Para quemgosta de terminologia sociológica, nós poderíamos darcontinUidade à análise desse último fenômeno em termosde "descompasso cultural" (cultural lag]. .

Nós enfatizarfamos, uma vez mais, o aspecto de dis-.torção que, é uma parte indispensável de uma ideologiaocupacional. Esse aspecto oferece vários pontos intrigan-tes que exigem uma análise mais detalhada. A strip-teaserque defimea si, mesma como uma "artista" engaja-senuma distorção' ideológica que em pouco difere da doinstrutor de aulas introdutórias de inglês que vê a si pró-prio como "educador". O agente funerário sugere que osfunerais baratos que são oferecidos pelas cooperativas

. sãonão-americanos, e o psicoterapeuta acredita que aspráticas de qualquer grupo de psicoterapeutasque não oseu próprio são não-científicos. Cada disciplina acadê-

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Page 10: artigo - SciELO · 2013-06-28 · artigo Algumas observações geraissobre o problema dotrabalho* PeterBerger Trabalho é uma das categorias humanas fundamen-tais. O homem é o animal

mica (sociologia tanto quanto asootras) desen'{olveidéias pelas quais os seus próprios joguinhos .ganham aaparência de exercícios na eterna procura do homempelaverdade, enquanto que os passatempos intelectuaiSde outras pessoas podem ser interpretados como nãobem :pensados e não sérios. E assim por diante. O mundoocupacional, percebido como a arena para todas as reí-vindicações conflitantes de importância, finalmenteassume o caráter de um carnaval fantástico, uma comé-dia humanar B nós sugeriríamos que somente essa per-cepção fan.. a. a devi.. da jUStil a esse.'fenômeno, mesmo dO.ponto de vista sociológico. .

As observações anteri res foram, por necessidade,apenas um esboço. Elas t~rlo\atingido seu objetivo setiverem colocado os estudds individuais deste livro numcontexto mais amplo e se elas tiverem indicado algunsdos problemas gerais clamando por mais profundas aná-lises sociológicas. ,

Voltando uma vez mais aos cinco tipos apresentadosneste. volume, cada um deles está dizendo, à sua maneira,aquilo que o acendedor de lampiões disse na obra deAntoine de Saint-Exupéry, O pequeno prfncipe: "Je {ais1àun métier tembleí" E é, realmente, um "negócio ter-rível" para todos eles,embora os afete de maneiras dife-

'rentes. Nós teríamos que rejeitar, de fato, conto tipica-mente ideológico, a imagem harmônica' no velho hinoinglês sobre o "rico homem em seu castelo, opobreho-mem, em sua' cabana". Mesmo assim nós podemos tiraralgum consolo da humanidade comum que une o nosso

, faxineiro ao n6SSOexecutivo nessa empreitada geral W;tentar ser o que não seé.

* Titulo originIll: Some genmzl oblelWltion on the problml ofWOI'k.Extrtzfdo de: Bobo, P., The hum~ shape of worlc.New

, York, Mllcmi1lan, 1964, p. 211-41. 'I'trul. Moy", Aron PIu-cienni1c.

As notllB e referincftJ' do texto orlginIlIfOl'tlm exc1uúku porlimittzç40 de npaço, o autOl'faz constante, referincitJllI outTOIartigo, do mermo livro, lo CQIQ dos trtzbalhQlde: Underwood,Chinoy, Gold, Evtln e Lewi&.

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EIVlSE

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