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    Cincias & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010Disponvel em:

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    Temas para a compreenso do atualquadro lingustico de Timor-Leste

    Regina Helena Pires de Brito*

    ResumoColonizada pelos portugueses, Timor-Leste vivenciou, entre 1975 e 1999, uma poltica dedestimorizao, aplicada pelo dominador indonsio, que, no plano lingustico, represen-tou a incluso de uma nova forma, manifestada na imposio da lngua indonsia, na mi-nimizao do uso da lngua nacional, o ttum, e na proibio da manifestao em portu-gus. Em 1999, a ONU chega a Timor-Leste a fim de garantir o restabelecimento da paz e de

    iniciar a reconstruo do pas. Com a independncia e a constituio da Repblica Demo-crtica de Timor-Leste, em maio de 2002, a lngua portuguesa assume o estatuto de oficial,ao lado da lngua ttum. Acrescente-se a esse painel, as outras dezenas de lnguas locais alifaladas. Partindo do conceito de lusofonia, este estudo apresenta aspectos da situao atualdo portugus em Timor-Leste e perspectivas para a sua reintroduo, ilustrada com a expe-rincia do Projeto Universidades em Timor-Leste.

    Palavras-chave: Lusofonia. Timor-Leste. Lngua portuguesa.

    1 Para introduzir: lusofonia e Timor-Leste

    [...] a lusofonia s poder entender-se como espao de cul-tura. E como espao de cultura, a lusofonia no pode dei-xar de nos remeter para aquilo que podemos chamar o in-dicador fundamental da realidade antropolgica, ou seja,para o indicador de humanizao, que o territrio ima-ginrio de paisagens, tradies e lngua, que da lusofoniase reclama, e que enfim o territrio dos arqutipos cultu-rais, um inconsciente colectivo lusfono, um fundo mticode que se alimentam sonhos.

    (Moiss Martins, 2006)

    Neste artigo, centrado em aspectos da questo lingustica leste-timorense no escopo do denominado espao lusfono, vale sintetizaralgumas informaes acerca do que se entende por lusofonia.

    A ideia da lusofonia ter-se-ia iniciado com a expanso martimaportuguesa a partir do sculo XV, que espalhou e que, em certa medida,

    * Doutora em Letras pela Universidade de So Paulo, ps-doutora pelo Instituto de Cin-cias Sociais da Universidade do Minho (Portugal). Docente do Programa de Ps-Graduaoda Universidade Presbiteriana Mackenzie.(E-mail: [email protected]).

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    difundiu sua lngua e cultura, pela atuao de missionrios e colonosdiante de povos contatados. Como primeiros teorizadores desse idealde lusofonia, comum a referncia ao Padre Vieira (por exemplo, nosSermes de S. FranciscoXavier, 1694), com o projeto messinico do QuintoImprio, e a Fernando Pessoa, que o teria retomado e reformulado scu-los depois (em Mensagem, 1934, e, em especial, no Livro do Desassossego),ao conceber a lngua portuguesa como um espao do futuro imprio es-

    piritual, caracterizado pela universalidade: a minha ptria a lnguaportuguesa.1

    Tratar do tema traz tambm aspecto de natureza semntica e eti-molgica que subjaz ao substantivo abstrato lusofonia que no pode serdesprezado , pois a forma luso remete tanto a lusitano, quanto ao que relativo a Portugal (alm da aluso Lusitnia, provncia romana perten-cente Hispnia, habitada pelos lusitanos).

    Nesse sentido, [...] fora do espao Portugal, esse fatorsemntico acarreta, por vezes, certo desconforto pela evo-

    cao que faz centralidade da matriz portuguesa em re-lao aos sete outros pases [de lngua oficial portuguesa](BRITO; BASTOS, 2006, p. 65).

    Falar de lusofonia evoca, ainda, a Comunidade dos Pases de LnguaPortuguesa (CPLP), criada em 1996 e definida como foro multilateralprivilegiado para o aprofundamento da amizade mtua, para a concen-trao poltico-diplomtica e da cooperao entre os seus membros,2com o intuito de uniformizar e difundir a lngua e aumentar o intercm-

    bio cultural entre os pases de lngua portuguesa. Em torno disso, Eduar-

    do Loureno (2001, p. 182) intelectual portugus que tem analisadocriticamente a temtica lusfona afirma que a Comunidade dos Povosde Lngua Portuguesa, tal como existe, ou queremos que exista, seria umrefgio imaginrio e que os ideais da lusofonia seria um projeto, umaaposta, na qual deve residir alguma verdade uma vez que foi imagi-nada (LOURENO, 2001, p. 176). As colocaes que o autor faz ao longode sua obra no deixam dvidas sobre a viabilidade da lusofonia; noentanto, entrev-se a inviabilidade da instituio de uma ideologia lus-fona que nasa e corra por conta de interesses poltico-econmicos dachamada globalizao.

    1 A esse respeito, analisa Loureno (2001, p. 183): Creio que no ter escapado a ningumque fale portugus, ou se reclame de uma mtica lusofonia, o uso e o abuso que, a partir deum dado momento digamos, o da revoluo de Abril , tem sido feito da famigerada frasede Pessoa a minha ptria a lngua portuguesa. S podia ter inventado esta frase, destina-da a tanto sucesso, quem imaginasse como hiptese vivel e era o seu caso que tambmteria outra ptria se noutra lngua se exprimisse.2 CIMEIRA CONSTITUTIVA DA COMUNIDADE DOS PASES DE LNGUA PORTUGUE-SA. Estatutos da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa. Lisboa, 17 de julho de 1996.

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    A lusofonia deve, na nossa perspectiva, ser compreendida comoum espao simblico lingustico e, sobretudo, cultural no mbito da lnguaportuguesa e das suas variedades lingsticas, que, no plano geo-sociopoltico, abarca os pases que adotam o portugus como lngua ma-terna e oficial (Portugal e Brasil) e lngua oficial (Angola, Cabo Verde,Moambique, So Tom e Prncipe e Guin-Bissau que constituem osPases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste.

    Entretanto, no se pode restringir a lusofonia ao que as fronteiras nacio-nais delimitam. Nesse modo de conceber a lusofonia, h que se conside-rar as muitas comunidades espalhadas pelo mundo e que constituem achamada dispora lusa e as localidades em que, se bem que nomeiem oportugus como lngua de uso, na verdade, ela seja minimamente (setanto) utilizada: Macau, Goa, Ceilo, Cochim, Diu, Damo e Mlaca.Alm disso, a lusofonia inconcebvel sem a incluso da Galiza (LOU-RENO, 2001). Somam-se a isso outras regies de presena portuguesano passado e/ou onde, relativamente, se fala portugus ainda hoje: na

    frica Annobn (Guin Equatorial), Ziguinchor, Mombaa, Zamzibar;

    na Europa Almedilha, Cedilho, A Codosera, Ferreira de Alcntara, Ga-liza, Olivena, Vale de Xalma (Espanha).

    Essa sntese do mundo lusfono que se procura reunir na noode lusofonia (mesmo que miticamente) pretende conciliar diversidades eafinidades lingusticas e culturais com a unidade que estrutura o sistemalingustico do portugus.

    Tem-se, nessa breve descrio, a dimenso geogrfica da lngua por-tuguesa a espalhar-se por espaos mltiplos, numa rea extensa e descon-tnua e, que, como qualquer lngua viva, se apresenta internamente carac-terizada pela coexistncia de vrias normas e subnormas. Essas divergemde maneira mais ou menos acentuada num aspecto ou noutro, numa dife-renciao que, embora no comprometa a unidade do sistema lingustico,possibilita-nos reconhecer diferentes usos dentro de cada comunidade.Assim se reconhecem, por exemplo, o Portugus Europeu e o Portu-gus Brasileiro (e os muitos falares dentro de cada um), da mesma formaque j se esboam, felizmente, estudos descritivos acerca do portugus nosdemais espaos da CPLP: se queremos dar algum sentido galxia lus-fona, temos de viv-la, na medida do possvel, como inextricavelmenteportuguesa, brasileira, angolana, moambicana, cabo-verdiana ou so-

    tomense(LOURENO, 2001, p. 112).Desse modo, necessrio ter clareza quanto aos papeis distintos quea lngua portuguesa forosamente cumpre em cada localidade; pensar alusofonia , igualmente, pensar na funo que o portugus desempenhaem cada um dos contextos de sua oficialidade , por exemplo, lnguamaterna no Brasil, mas, ao mesmo tempo, totalmente desconhecida emmuitos espaos moambicanos ou timorenses. Assim sendo, do lado afri-cano h consideraes que concebem a lusofonia como um conceito vago,uma estratgia poltica e cultural sem qualquer correspondncia com aalma e o sentir dos povos africanos (PACHECO, 2000); outros entendem

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    que o fato de Angola pertencer Comunidade dos Pases de Lngua Por-tuguesa (CPLP) e aos Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa(PALOP) poderia reforar essa presena [do portugus no territrio] seuma poltica lingustica clara e consequente fosse aplicada perante o ensinoda lngua portuguesa dum lado e das lnguas autctones do outro(KUKANDA, 2000, p. 112).3

    A fim de compreender a situao atual da lngua portuguesa no que

    se denomina espao lusfono, preciso recorrer a informaes acerca daentrada do portugus nas diferentes colnias. Como se sabe, ao contrrio doque fizeram outros colonizadores europeus, nunca houve por parte de Por-tugal uma relao entre expanso martima e expanso lingustico-cultural.A histria transparente nesse sentido, revelando a ausncia de uma pol-tica de implantao lingustica e mostrando que a difuso que a lnguaportuguesa alcanou deveu-se, sobretudo, presena de mercadores, mari-nheiros, navegadores, aventureiros, deportados e missionrios, os quais,por motivos e circunstncias dos mais diversos, chegaram s novas terras.

    Os compndios relatam sobre a grande massa emigratria de por-

    tugueses (principalmente a partir da conquista de Ceuta) para as terrasrecm-descobertas, mas que ocorreu de modo um tanto assistemtico. Foide tal forma intensa a disperso dos portugueses pelo mundo que h refe-rncias preocupadas com o esvaziamento populacional do reino portugus Garcia de Resende (poeta e cronista do Humanismo), por exemplo, de-monstrou-se apreensivo com a sada em larga escala dos portugueses doreino, que, dificilmente, regressavam, acarretando em entraves para o de-senvolvimento interno de Portugal.

    Apesar disso, indicaes oficiais quanto atividade de colonizaode terras africanas apenas ocorrem no sculo XIX, s vsperas da Indepen-dncia do Brasil: nas crticas circunstncias em que nos achamos, neces-srio dar uma particular ateno aos nossos estabelecimentos de frica eilhas adjacentes a Portugal assinala o Relatrio sobre o Estado e Adminis-trao do Reino, de Fernandes Toms, apresentado s Cortes em 1821. Comiminente ruptura com o Brasil, recomendava-se uma concentrao detodos os esforos e de todos os meios em Portugal e nas possesses dafrica e sia que lhe restariam (ALEXANDRE, 1998, p. 61).

    O incio do sculo XX ser marcado por divergncias acerca de umprograma a ser adotado nas provncias de ultramar, que culminar com

    a elaborao de um novo projeto de poltica colonial. da essncia orgnica da Nao Portuguesa desempenhara funo histrica de possuir e colonizar domnios ultra-marinos e de civilizar as populaes indgenas que nelesse compreendam, exercendo tambm a influncia moralque lhes adstrita pelo Padroado do Oriente (ACTO CO-LONIAL Art. 2).

    3 Outros comentrios sobre lusofonia e percepes da lusofonia pelos diferentes povos: Brito eBastos (2006); Martins (2006); Namburete (2006); Fiorin (2010); Brito e Hanna (2010).

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    Assim determina o artigo 2 doActo Colonial (1930), no qual Sala-zar apresenta o projeto poltico para as colnias e recupera a ideia davocao e do direito histrico de Portugal s atividades colonialistas: osdomnios ultramarinos e Portugal denominam-se colnias e constituemo Imprio Colonial Portugus (art. 3). De maneira centralizadora, ascolnias passam a estar totalmente integradas e subordinadas s necessi-dades, s decises administrativas e aos interesses da metrpole. No as-

    pecto educativo e cultural, o artigo 24 doActo considera como instituiesde ensino as misses religiosas, que atuariam como instrumento de civili-zao e de influncia nacional. Essas colocaes ajudam a ilustrar o fatode que apenas nesta altura que preocupaes (especificamente de or-dem econmica) da metrpole para com as colnias no americanas co-meam a delinear-se.

    2 Timor-Leste e a questo lingustica

    Foi a Lngua Portuguesa que os nossos dirigentes usarampara contactar um ao outro, no interior e no exterior; isto, nos pases amigos da lngua oficial portuguesa paraconvocar a SOLIDARIEDADE. Por isso, no h razo nen-huma de rejeitar a adopo da Lngua Portuguesa comonossa lngua oficial porque no estamos a andar sozin-hos.4

    (TIMORENSE, 45 anos, 2001)

    A ilha de Timor, dividida em Timor Oeste (parte legtima da Indo-nsia) e Timor-Leste, situa-se entre o sudoeste asitico e o Pacfico sul, a

    500 km da Austrlia, e uma das mais orientais do arquiplago indonsio,no grupo das ilhas Sunda. Com cerca de 480 km de comprimento e 100 kmde largura no seu ponto mais extenso, Timor-Leste tem em si uma rea dequase 19.000 km2, constitudo pelo enclave de Oe-Cusse (na costa norte departe ocidental), pela ilha de Ataro (a 23 km de Dli), o ilhu de Jaco (se-parado por canal da ponta leste) e a metade oriental da ilha de Timor.

    Historicamente, o territrio foi colnia portuguesa desde o sculoXVI; esteve ocupado pelo Japo durante trs anos, na altura da 2 GrandeGuerra Mundial, e foi invadido pela Indonsia em 7 de dezembro de

    1975, numa incurso que se prolongou at 1999. Ao longo desses 24 anos,com a tolerncia da comunidade internacional, a populao foi vtima derepresso, como tortura e assassinatos, e explorao, como trabalho es-cravo e semi-escravo; em decorrncia disso, calcula-se que cerca de 300mil timorenses foram mortos o que, proporcionalmente ao nmero de

    4 Os depoimentos de cidados timorenses datados de 2001 so transcries exatas dosoriginais manuscritos. Material coletado in loco durante atividades por ns desenvolvidasno mbito do Programa Alfabetizao Solidria em Timor-Leste, nos meses de junho eagosto de 2001.

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    habitantes, corresponde ao maior genocdio depois do holocausto nazis-ta. Alm disso, como parte estratgica de sua dominao, os invasoresindonsios foraram o ensino da lngua indonsia, proibiram o uso dalngua portuguesa e desprezaram o ensino da lngua de coeso nacional,o ttum.

    Somente em maio de 1999, instalou-se no territrio a Misso deAssistncia das Naes Unidas ao Timor-Leste (UNAMET) e em 30 de

    agosto realizou-se um plebiscito junto populao, que votou majorita-riamente favor da independncia: 78,5% (do total de 97% de eleitoresque compareceram s urnas). As milcias pr-anexao Indonsia, in-conformadas com o resultado da consulta popular, executaram timoren-ses, incendiaram casas, perseguiram e mataram funcionrios do rgo derepresentao da ONU em Timor-Leste. O relato de Forganes (2002,p. 11), primeira jornalista brasileira a l chegar, ainda em setembro de1999, impressiona:

    O resultado foi a destruio quase total do pas. Durantedias e noites sem fim, o exrcito indonsio e as milcias formadas e pagas pelos generais mataram, violaram, pi-lharam, queimaram. A violncia, que tinha comeadomuito antes das eleies, ficou incontrolvel a partir dodia 4 de setembro, quando os estrangeiros comearam aser evacuados. Os ltimos funcionrios das Naes Uni-das saram no dia 14. At 23 de setembro, quando as tro-pas internacionais desembarcaram em Dli, todo o pas fi-cou entregue violncia. Sem testemunhas.

    Logo depois, entraram em ao no pas as foras multinacionais da

    ONU para restabelecer a paz, tendo sido instituda uma administraotransitria (UNTAET United Nations Transitory Administration EastTimor), chefiada pelo brasileiro Srgio Vieira de Mello,5 a fim de propi-ciar, na medida do possvel, uma agenda segura de independncia e dereconstruo para o pas.

    Inmeras so as preocupaes de uma terra totalmente destruda,na qual se busca a reconstruo: habitao, sade, alimentao, emprego,economia, educao. No caso de Timor-Leste, ainda h outro detalhe oportugus uma lngua adormecida:

    Durante o 24 anos de ocupao de imperialistas Indonsiaaqui em timor Leste, durante nestes tempos que ns nofalamos a lngua portugues. Portanto que ns podemosrecoperar outra vez com esta lingua de portugues como alngua oficial para este novo pas de Timor Leste, ptimopara o nosso futuro.

    (TIMORENSE, 43 anos, 2001)

    5Srgio Vieira de Mello foi morto em atentado ao escritrio das Naes Unidas no Iraque,no dia 19 de agosto de 2003, enquanto desempenhava suas funes como representante daONU.

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    Nesse sentido, no se pode, tambm, ignorar que a lngua portu-guesa no a lngua da maioria da populao timorense (em algumaslocalidades, como no enclave de Oe-Cusse e Lautem h quem no a co-nhea). Pode-se afirmar que a segunda lngua (depois do ttum, lnguanacional e veicular), e at, para alguns, a terceira lngua, depois da local edo ttum (alm, claro, da lngua indonsia).

    Contudo, na perspectiva do linguista Luiz Filipe Thomaz (2002, p.

    143), a lngua portuguesa, ao lado da religiosidade, um dos fatores capa-zes de viabilizar a concretizao da unidade nacional timorense:

    [...] a difuso de uma cultura luso-timorense, fruto de umaaculturao paulatina ao longo de quatro sculos e meiode contacto. Atravs dessa cultura mestiada (de que o ca-tolicismo e a lngua portuguesa so talvez os dois elemen-tos-chave) a populao timorense em geral e a sua classedirigente em especial integram-se num universo culturalmais amplo, o da civilizao lusfona.

    Assim que em Timor-Leste se torna possvel a presena de brasi-leiros auxiliando na educao no formal (por exemplo, com a alfabetiza-o de jovens e adultos); de portugueses trabalhando com o ensino dalngua portuguesa para as crianas; de profissionais ligados s reas so-cial e educacional, provenientes de diferentes pases lusfonos. Todosfalantes do portugus, mas carregando consigo a diversidade dos usos edas aplicaes que o sistema propicia.

    Para alcanar a relevncia da questo lingustica no contexto timo-rense, preciso conhecer um pouco da histria das muitas vozes dessepas. As dezenas de lnguas originais do pas pertencem famlia das ln-

    guas austronsias (ou malaio-polinsicas) ou famlia das lnguas papuas(ou indo-pacficas), diversidade lingustica que se explica principalmentepor Timor ter sido parte de rotas de migraes de diversos povos. Comolngua integradora dessas lnguas locais, fala-se o ttum, reconhecido ofi-cialmente como lngua nacional a partir de outubro de 1981. Essa lnguaapresenta-se de duas formas: como lngua materna em algumas regies(Alas, Balib, Bato-Gad, Fato-Berlio, Fatumea, Fohorn, Lacluta, Luca,Samoro, Suai e Viqueque) e como forma veicular em praticamente todo oterritrio.

    A adoo do ttum como lngua oficial da Igreja Catlica de Timorfoi em parte responsvel por essa rpida propagao, adoo e efetiva uti-lizao pelos timorenses. Dessa forma, o ttum funciona como lngua vei-cular, como se pde constatar, por exemplo, nos momentos em que pessoasde procedncias diversas conversam informalmente, a lngua utilizada sempre o ttum da ser reconhecida como lngua de coeso nacional.

    Em O futuro da Lngua Portuguesa em Timor Leste, Marcosaponta que, tendo a lngua portuguesa chegado ao Timor somente no scu-lo XVI, tornou-se uma das mais faladas na ilha. Convm, entretanto, desta-car que, antes do perodo indonsio, em termos de difuso territorial e

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    entre pessoas de lnguas maternas diferentes, o ttum era usado em quasetodas as situaes cotidianas, enquanto a Lngua Portuguesa se restringia escrita ou s atividades relativas a determinados fins de ordem cultural ouadministrativa.

    A variedade do portugus observada em Timor-Leste (cf. parme-tros propostos por VILELA, 1999, p. 176) parece sofrer interferncias dasdemais lnguas ali faladas (sobretudo do ttum, da bahasa indonsia e

    das dezenas de lnguas locais), j que perceptvel que muitos enuncia-dos so realizados numa lngua (o portugus) segundo o modelo de ou-tra (normalmente, o ttum ou a lngua indonsia). Verifica-se, tambm,uma segmentao de usos de acordo com a situao comunicativa. Porexemplo, na escola ministra-se a norma do portugus europeu; em casa,fala-se o ttum; entre os alunos adolescentes utiliza-se a bahasa indon-sia. Presenciou-se situao de diglossia entre adultos que participavamde um curso de capacitao de professores: conosco procuravam expres-sar-se em portugus; quando dialogavam com indivduos vindos do seuSuco, utilizavam a lngua local; quando de origens diversas, conversavamem ttum ou bahasa indonsia (observou-se que poucas vezes o portu-gus era utilizado em tais circunstncias).

    No dizer de Vilela (1999, p. 197), seria uma lngua exgena nocaso, o portugus que filtra as mltiplas e dspares culturas em Mo-ambique. Em Timor-Leste, esse papel integrador nacional cabe ao ttum lngua local que j funcionava por quase todo o territrio antes mesmoda chegada dos portugueses, pois era falada pela tribo dos beloneses, amais poderosa do lugar.

    Algumas datas ajudam a revelar o lento caminhar da presena do

    portugus em Timor-Leste, iniciada em 1562, com a instalao dos domi-nicanos. O ano de 1834, com a extino das ordens religiosas (e, portanto,com a reduo da presena portuguesa na colnia), registra um retroces-so na instruo e no uso do portugus, ainda que em Dli continue a serde uso mais ou menos corrente. Convm assinalar que, no final do sculoXIX, muito pouco do territrio timorense tinha sido ocupado pelos por-tugueses: alm de Dli, a presena portuguesa limitava-se a sete coman-dos militares na costa norte e trs na sul, que se reduziam a

    Uma paliada [] sem consistncia nem condies defen-

    sivas de valor, a uma casa para o oficial, outra para o sar-gento, e barracas para cinco ou seis soldados europeus queconstituam a guarnio, conjuntamente com dez ou quin-ze moradores ou soldados [timorenses] de segunda linha.No indo a sua ao alm da rea contgua ao forte, todo ointerior, sem um comando, sem um posto que marcassema soberania portuguesa, se encontrava entregue ao dom-nio dos rgulos dos respectivos reinos, com os quais o po-der colonial fazia alianas de circunstncia. (DUARTEapud BETHENCOURT, 1998, p. 203-204).

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    A administrao direta do territrio acontecer com Celestino daSilva, governador de 1894 a 1908, que, com a mobilizao dos arraiaisdos reinos aliados para submeter os rgulos rivais (BETHENCOURT,1998, p. 204), tenciona ocupar militarmente o interior, instalando postos,ligados por linhas telegrficas e por estradas. Desse modo, ainda que aslocalidades estivessem sob o controle das autoridades tradicionais, ocontrole efetivo estaria nas mos dos chefes de posto. Em decorrncia

    dessa forma de administrao, algumas revoltas ocorreram e foram re-primidas com interveno armada.

    A reorganizao das misses catlicas em 1877 e a criao, em1898, do Colgio de Soibada (dirigido por jesutas at 1910) contribuiupara a formao de professores-catequistas, cujo intuito era o de alfabeti-zar, doutrinar e (porque no dizer) aculturar as populaes rurais. Em1938, planeja-se criar em Dli um colgio-liceu semioficial, que foi arrui-nado pelos japoneses durante a ocupao que fizeram ao territrio du-rante a Segunda Grande Guerra (1942-1945), e que s volta a funcionar

    em 1952. de se destacar, ainda, a presena dos chineses em Timor-Leste:via de regra, os homens dominavam o portugus nas modalidades oral eescrita, mas utilizavam o ttum como lngua de comunicao cotidianacom a populao local. Mantinham escolas pelo pas (18 primrias e 1secundria), mesmo com a administrao portuguesa exigindo, apenas, aincluso das disciplinas lngua e cultura portuguesas.

    Certo que a lngua portuguesa nunca chegou a tornar-se lnguanormal de comunicao oral, nem lngua de contato entre etnias diferen-tes papel que sempre coube ao ttum. Manteve, via de regra, o carter

    de lngua clerical, administrativa e de cultura; embora sua funo sejarelevante no plano interno, articulando a unidade cultural por meio deuma pequena elite de letrados nativos e, no plano externo, procurandoassociar a cultura local ao universo lusada.

    Vale lembrar, ainda, que o modelo de colonizao portuguesa, emque se destacam o processo de miscigenao com os timorenses (quelevou assimilao de hbitos) e a converso ao catolicismo, dentre ou-tros aspectos, contriburam para a incorporao natural de algumas pou-cas estruturas morfossintticas e de muitos elementos lexicais portugue-ses ao ttum. evidente que a administrao colonial privilegiava o por-tugus como lngua de instruo, ensinada nas escolas, veiculando con-tedos da cultura lusa, e que se empregava na modalidade escrita, ematividades ditas culturais ou administrativas. Contudo, em termos decomunicao espacial e entre pessoas de lnguas maternas diferentes, ottum era usado nas situaes cotidianas.

    Antes da invaso indonsia ocorrida em 1975, a situao lingusti-ca apresentava-se assim distribuda:

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    a) lnguas locais ou regionais veculos de comunicao nas diver-sas localidades, como o bunak, o kemak, o galole, o fataluko etc.;

    b) lngua veicular o ttum, funcionando como elemento de inte-grao;c) lngua administrativa o portugus nica lngua normalmen-te escrita. O portugus tambm exercia certa funo integradora,pelo menos na camada dirigente e no ambiente letrado.6

    Diversamente do que ocorreu em muitos pases na poca de des-colonizao, em 1975, Timor-Leste tinha certa unidade lingustica, garan-tida pelo uso do ttum. Alm disso, apesar de criticar o colonialismo sa-lazarista, tanto a Fretilin (Frente Revolucionria do Timor-Leste Inde-pendente) quanto a Apodeti (Associao Popular Democrtica Timoren-se, favorvel indexao pela Indonsia) continuaram a valorizar alngua portuguesa como elemento ancestraleintegrado na cultura nacio-nal (HULL, 2001, p. 37).

    Durante o domnio indonsio, Timor-Leste sofreu um processo de

    destimorizao em diversos planos da vida da populao, que, no mbi-to comunicativo, incluiu uma nova forma lingustica, traduzida na imposi-o de uma variante do malaio, a bahasa (ou lngua) indonsia, como lnguado ensino e da administrao, na minimizao do uso do ttum e naproibioda expresso em lngua portuguesa.

    A partir de 1999, com a chegada das foras de paz da ONU, novaslnguas em especial, e com sua fora natural, o ingls (tambm lngua davizinha Austrlia) comeam fortemente a fazer parte do dia a dia timo-rense. Como resultado, atualmente, o pas se apresenta como um complexomosaico lingustico: alm do ttum e das dezenas de outras lnguas locais,

    os timorenses falam a bahasa indonsia, procuram recuperar a memria doportugus (no caso dos mais velhos) ou aprend-lo (no caso das novasgeraes), e tentam expressar-se em ingls.

    Timor-Leste acaba de sair de um perodo em que falar portuguspoderia significar a morte. Neste novo momento (comemoraram-se, em 20de maio de 2010, 8 anos de independncia) de pas em reconstruo dasestruturas fsicas, da organizao da Nao e da identidade do cidado ,no por acaso que, por deciso do Congresso do Conselho Nacional deResistncia Timorense, em 29 de agosto de 2000, o portugus declaradolngua oficial. Na ocasio, disse o ento lder da Resistncia, Xanana Gus-

    mo:7 Tendo em mente a nossa histria, ns devemos fortalecer a nossalngua materna, o ttum, disseminar e aperfeioar o domnio da lnguaportuguesa e manter o ensino da lngua indonsia. Mais adiante, j comoPresidente eleito da Repblica Democrtica de Timor-Leste, ao ratificar

    6Para mais detalhes ver THOMAZ, 2002, p. 140-144.7Alexandre Kay Rala "Xanana" Gusmo foi o primeiro presidente eleito, governando de2002 a 2007 (sucedido pelo Nobel da Paz Jos Ramos-Horta), quando passou a exercer ocargo de primeiro-ministro de Timor-Leste.

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    essa declarao, acaba conferindo, oficialmente, lngua portuguesa umpapel de resgate de valores socioculturais:

    A opo poltica de natureza estratgica que Timor-Lesteconcretizou com a consagrao constitucional do Portu-gus como lngua oficial a par com a lngua nacional, o t-tum, reflete a afirmao da nossa identidade pela diferen-a que se imps ao mundo e, em particular, na nossa re-

    gio onde, deve-se dizer, existem tambm similares e vn-culos de carcter tnico e cultural, com os vizinhos maisprximos. Manter esta identidade vital para consolidar asoberania nacional.8

    Apesar desse papel que parece lhe caber, ainda muito pouco se temsistematizado acerca das peculiaridades do portugus falado em Timor-Leste o que se configura como mais um desafio para o momento atual emque se busca a alfabetizao de jovens e adultos no pas: que portugusser esse que uma parcela do povo timorense traz na memria?9

    Nos ltimos anos, quando a solidariedade internacional se voltou,nos vrios setores, para essa meia ilha no sudeste asitico, questes sobre alegitimidade dessa ajuda se colocam. Uma delas envolve a reintroduoda lngua portuguesa. Seria uma nova forma de colonialismo? Por que,sobretudo, portugueses e brasileiros, de diferentes maneiras, tm-se dirigi-do para l? Despertar o portugus significaria ameaar as lnguas locais?Representaria o auxlio no resgate da identidade timorense ou a sua perda?

    Na verdade, a funo e a necessidade da revitalizao da lnguaportuguesa em Timor-Leste so temas constantemente discutidos pelostimorenses. Compreende-se o portugus como elemento capital tanto paraa salvaguarda das lnguas nacionais, quanto para a preservao da identi-dade nacional, conforme acentua Hull (2001, p. 39):

    [...] se Timor Leste deseja manter uma relao com seupassado, deve manter o portugus. Se escolher outra via,um povo com uma longa memria tornar-se- numa na-o de amnsicos, e Timor Leste sofrer o mesmo destinoque todos os pases que, voltando as coisas ao seu passa-do, tm privado os seus cidados do conhecimento daslnguas que desempenharam um papel fulcral na gneseda cultura nacional.

    Isso tambm se pode entrever nas afirmaes que se coletou junto populao timorense em 2001:

    8 Alocuo do presidente Xanana Gusmo, proferida em Braslia, no dia 1 de agosto de2002, durante a IV Conferncia de Chefes de Estado e de Governo da CPLP Comunidadedos Pases de Lngua Portuguesa. Disponvel em:. Acesso em: 03 ago. 2010.9 Essa indagao foi um dos motes que levou ao desenvolvimento do Projeto Universidadesem Timor-Leste, do qual se falar adiante.

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    A lngua portuguesa um caminha para comunicarmosoutras naes amigas.

    Durante 24 anos que a lngua portuguesa nunca se perdeno meu corao.

    A lngua portuguesa vai ser a lngua oficial e como umcaminho que liga os pases que falam Portugus, nas rela-es diplomticas e negcios. A lngua portuguesa desen-volve em Timor contribui no desenvolvimento e progresso

    e combater a Ignorncia e a pobreza.

    Nesse contexto, o futuro do portugus, lngua de cultura, comolngua oficial de/em Timor-Leste, depender muito da poltica edu-cacional e cultural, da mobilizao dos vrios setores da sociedade, dadisposio da comunidade e do apoio dos pases lusfonos. no mbitoda cooperao internacional10 que se insere o Projeto Universidades emTimor-Leste, experincia que se descreve a seguir.

    4 Uma ao em Timor-Leste Projeto Universidadesem Timor-Leste11

    (depoimento de timorense, 2004)

    10 A iniciativa foi apoiada pelo Governo Federal e pelo Ministrio das Relaes Exterioresdo Brasil e pela ABBA (Academia Brasileira de Belas Artes).11 A Revista Pessoa, em seu nmero zero, lanada na Bienal do Livro de So Paulo (agosto de2010), traz reportagem a respeito do Projeto, mostrando a atualidade da ao. Disponvelem: . Acesso em: 2 set. 2010.

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    O Projeto Universidades em Timor-Leste foi realizado12 emao conveniada entre a Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM),Universidade de So Paulo (USP) e a Pontifcia Universidade Catlicade So Paulo (PUC-SP) pelo lado brasileiro , com o apoio da Univer-sidade Nacional de Timor-Leste (UNTL) e do Instituto Nacional deLingustica (INL), pelo lado timorense. Foi com o subprojeto Cano

    popular e cultura brasileiras em Timor-Leste: hibridismo cultural e comunita-rismo lingustico em execuo e discusso, de nossa autoria e em coautoriacom Benjamin Abdala Junior (USP), com a contrapartida do linguistatimorense Benjamim Corte-Real, que a ao ocorreu entre agosto e de-zembro de 2004.

    Apoiando-se em investigao sociolingustica, aliada a debatescom Benjamin Corte-Real13 e Geoffrey Hull,14 o Projeto fundamenta-seem estudos descritivos da situao lingustica e cultural do pas, a partirde entrevistas, consultando-se indivduos pertencentes a diferentesfaixas etrias, classes sociais, localidades, escolaridade, profisses e

    sexo. Complementarmente, foram recolhidos e analisados textos produ-zidos por timorenses e coletados elementos de natureza diversa, comomsicas, receitas, jornais, cartazes, panfletos etc. o que forneceu sub-sdios para anlises contrastivas15 que evidenciaram especificidadeslingusticas e culturais de cada Distrito timorense.

    Essa iniciativa, submetida aprovao de instncias governa-mentais, educacionais e lingusticas timorenses, define-se como pro-grama pedaggico-cultural para auxiliar na difuso e na sensibilizaopara a comunicao e a expresso em portugus, em conformidade com

    a poltica nacional de cooperao entre os pases de lngua portuguesa,utilizando-se, neste caso, da cano popular brasileira como motivaodidtica. Diante da proposta do Projeto, em documento de outubro de2003, assim se expressou o Presidente Xanana Gusmo:

    12 Esta primeira edio do Projeto teve patrocnio da INFRAERO Empresa Brasileira deInfra-Estrutura Aeroporturia e apoio cultural da Nestl do Brasil.13 Linguista timorense, Diretor do Instituto Nacional de Lingustica e atual Reitor da Uni-versidade Nacional de Timor-Leste.14 Linguista australiano especialista em ttum e defensor da oficializao do portugus emTimor-Leste.15 Ver, por exemplo, Brito e Corte-Real, 2003.

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    O Projeto envolveu a seleo, preparao, deslocamento e fixao

    de um grupo de 20 graduandos ligados, sobretudo, s reas de Letras,Comunicao, Artes e Educao das trs universidades brasileiras. Comrelao constituio da equipe, segundo as autoridades timorenses, ofato de ser constituda no por profissionais formados foi um grandediferencial, facilitando o entrosamento pela horizontalidade entre univer-sitrios brasileiros e participantes timorenses. O acompanhamento did-tico foi realizado in loco por uma coordenao acadmica, que se dirigiaao Conselho Executivo e Coordenao Lingustica e Didtico-Peda-ggica, baseados no Brasil.

    Situando-se no mbito da cultura brasileira, convm assinalar que

    se, por um lado, o Projeto no privilegia o ensino da gramtica normativa,por outro, no deixa de contribuir como auxiliar do processo de reintrodu-o da lngua portuguesa no pas, apoiado em msica popular brasileira eem textos literrios de expresso em lngua portuguesa.

    Quanto ao pblico-alvo, inicialmente, o projeto fora idealizado paraatingir a um recorte especfico da populao mais resistente ao aprendizadodo portugus e que ainda no tinha sido contemplada, diretamente, poroutro programa de cooperao internacional. Contudo, quando da apresen-tao do Projeto s autoridades, em 2003, verificou-se o interesse de outros

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    segmentos, fazendo com que a clientela se ampliasse. Dessa forma, inclu-ram-se alunos da Escola Primria Duque de Caxias;16 integrantes das Forasde Defesa de Timor-Leste; funcionrios do Ministrio da Educao, Cultura,

    Juventude e Desporto; Organizao da Juventude e dos Estudantes de Ti-mor-Leste e, ainda, docentes da Faculdade de Letras e Educao da UNTL.Assim, as atividades desenrolaram-se em diversas instituies oficiais, esco-lares e comunitrias, atendendo a cerca de 600 leste-timorenses. Cada turma

    participava de dois encontros semanais, com durao de 1h40 cada um, mi-nistrados por equipes de 3 monitores, que planejavam as atividades tendoem vista o Descritivo de atividades mdulo a mdulo17 material elaborado nocomo um manual de instrues, mas como um norteador das aes didticasque garantisse a homogeneidade dos trabalhos, sem, contudo, limitar a cria-tividade da equipe.

    Partindo de uma concepo sociofuncional dos fatos da linguagem,associando elementos musicais e lingusticos ao conjunto da cultura brasi-leira, em atividades epilingusticas, de operao e de reflexo sobre os tex-tos e alguns fatos de lngua, as atividades organizaram-se em 14 mdulos,

    formados por msicas brasileiras e textos em torno de temas como amor,religiosidade, futebol, carnaval, saudade, esperana, tempo, loucura, cons-truo potica, saudaes e cumprimentos. As msicas foram selecionadasconsiderando-se serem do interesse do pblico ou j serem conhecidas (eindicadas!) por timorenses, s quais acrescentaram-se outras relacionadascom os temas. Aps os 7 e 14 mdulos, foram realizadas avaliaes parci-ais (preparao e apresentao de trabalhos em cada turma) e uma avalia-o final (apresentao de coral, peas de teatro, jogral etc., apreciados pelopblico timorense no auditrio da UNTL).

    O contato com msicas e com textos de modalidades vrias permi-tiu a abordagem, ainda que indiretamente, de tpicos como os papis dacultura brasileira e da lngua portuguesa no contexto mundial e em Timor-Leste. Procurou-se apresentar a diversidade da msica brasileira e as vari-edades lingusticas, o conhecimento de outras culturas expressas via lnguaportuguesa, aspectos da multiplicidade lingustica de Timor-Leste, a im-portncia da comunicao, a relao entre lngua e cultura e a problemticatraduo palavra-por-palavra. As aulas recorreram reproduo origi-nal das canes em CDplayer e execuo ao vivo, procurando sensibilizaros alunos para o aprendizado do manuseio dos instrumentos musicais

    utilizados, bem como para as atividades de composio musical e de ma-nejo de recursos lingusticos bsicos.Tambm no se podia pensar numa atuao significativa sem esta-

    belecer uma relao com a realidade da cultura local e desconsiderando aviso de mundo que a modalidade do portugus timorense (e, naturalmen-

    16 O nome da escola uma homenagem ao patrono do Exrcito Brasileiro, uma vez que foiapadrinhada por diversos contingentes brasileiros no perodo de 1999 a 2005, quando lestiveram, atuando como foras de paz das Naes Unidas.17De nossa autoria, juntamente com Rosemeire Faccina e Vera Busquets.

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    te, a das lnguas locais) revela. impossvel ignorar que as lnguas sofatos culturais e que o aprendizado de uma lngua supe, ao lado do seudomnio, o conhecimento da cultura que a sustenta e o respeito multipli-cidade de olhares. Nesse sentido, so significativas as impresses do entro-samento entre brasileiros e timorenses registradas no Relatrio Avaliativodo Projeto encaminhado pela UNTL:

    O sucesso de fundo do projecto no deixa de ser o ter-sepromovido uma interaco cultural entre jovens da comu-nidade e do espao lusfonos, um principiar tentativo, masde evidente rendimento; o gerar-se de uma amizade e soli-dariedade entre gente que nunca imaginava antes podercruzar-se. A electricidade que se sentiu no aeroporto, a-quando da despedida dos estagirios serve de ilustrao.Foi uma singular e espontnea exibio de cantares e danastradicionais, assinalando uma camaradagem invejvel entre

    jovens de latitudes to opostos mas unidos por um denomi-nador comum que o do seu passado histrico, a lngua e acultura portuguesas. (Benjamim Corte-Real).

    Outra preocupao do Projeto foi tornar os usurios conscientes deque cada sistema configura-se diversamente, mostrando-se, por exemplo,que a estrutura da lngua portuguesa diferente do ttum ou da lnguaindonsia, embora o contedo da mensagem seja preservado. Em outrostermos, alm das palavras e das regras gramaticais, preciso aprender,tambm, a pensar na outra lngua.

    Quanto aos resultados, destacam-se:a) a sistemtica e a dinmica desenvolvidas que se mostraram ino-vadoras e eficazes para atingir os objetivos no contexto timorense;

    b) o material didtico que foi elaborado especificamente para a si-

    tuao timorense e se revelou instrumento fundamental para o su-cesso das atividades de sala de aula, garantindo a homogeneidadede contedo na sua aplicao nas diversas turmas;c) a ideia de ter uma equipe constituda de jovens universitrios(e no de profissionais formados) foi um grande diferencial, facili-tando o entrosamento pela horizontalidade;d) aps momentos iniciais de certo estranhamento em relao proposta, os timorenses, paulatinamente, passaram de uma posi-o tmida, submissa e retrada, para uma atitude mais participati-

    va, entusiasmada, ativa, altamente receptiva;e) o nmero (oficial) de timorenses beneficiados beirou os 600alunos, excluindo-se aqueles que assistiam s aulas esporadica-mente, os que participavam sem estarem regularmente inscritos e,ainda, os timorenses que tiveram nossos prprios alunos comomultiplicadores das atividades do Projeto, numa atitude naturaldo convvio cotidiano. Tambm vale registrar o uso que muitosprofessores timorenses vm fazendo do mtodo e do nosso mate-rial didtico em suas aulas.

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    Pensando no grande objetivo, ou seja, na sensibilizao para a comu-nicao em lngua portuguesa, registrou-se que o fato de as turmas seremconstitudas por indivduos de diferentes nveis de conhecimento, domnio euso da lngua portuguesa no influenciou no resultado geral observado, noque diz respeito aproximao com a Lngua Portuguesa, simpatia pelaexpresso em lngua portuguesa, ao interesse pelo aprendizado da LnguaPortuguesa, curiosidade pela cultura brasileira e pelas semelhanas com a

    timorense e com a portuguesa, a certa desinibio para a expresso oral emportugus, ao notvel esforo para o registro escrito em portugus.Percebe-se uma alterao na postura de muitos frente ao portugus,

    que, afinal, no to difcil assim como registram relatrios dos parti-cipantes e de autoridades e depoimentos de alunos timorenses.

    [...] de carcter informal e recreativo, alm do usufruto domaterial pedaggico seleccionado para adequar ao gostodo pblico-alvo, o projecto conseguiu relaxar uma tensoque nem deveria existir, mas que subsistiu por muitotempo no seio da juventude e a larga populao no-

    escolar. O projecto, atravs da sua seriedade cientfica edos seus excelentes actores, conseguiu conquistar novosespaos fora das paredes do ensino formal, abrindo canaisauxiliares para o florir efectivo e afectivo da lngua na lar-ga sociedade timorense. A msica e a poesia permitiramao aprendente informal o empolgar do conceito do espaolusfono e das mais valias que lhe so inerentes.[...] Deve-se notar que um dos factores importantes do su-cesso do projecto foi o facto de o pblico timorense adoraras msicas brasileiras. Estas possuem um poder cativante,donde brota toda uma curiosidade que pode levar vo-luntria busca da compreenso dos dizeres. (BenjamimCorte-Real).

    Alm disso, procurou-se levar a Timor-Leste uma maneira diferentede pensar-se a disseminao da lngua portuguesa, outra possibilidade deacesso educao formal em portugus, um enriquecimento cultural mtuo.

    4 Para concluir

    Uma lngua no tem outro sujeito seno aqueles que a fa-lam, nela se falando.

    Ningum seu proprietrio...(Eduardo Loureno, 2001, p. 123).

    Aps o perodo em que a lngua portuguesa foi silenciada em Ti-mor-Leste, as atividades desenvolvidas pelo Projeto Universidades emTimor-Leste procuraram propiciar um espao de interao em que foigarantido o direito expresso em portugus e em que o sujeito foi prota-gonista de seu aprendizado. Para outras atividades semelhantes que ve-nham a concretizar-se futuramente, os aspectos aqui tratados podem ser

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    considerados para o bom desenvolvimento de um programa socioculturale educativo que objetive a motivao para a aprendizagem de uma lngua.

    A fim de que se efetive a expanso do uso da lngua portuguesa emTimor-Leste e o fortalecimento da sua lngua nacional, muito ainda h a serfeito. Para tanto, conforme se discutiu na Conferncia internacional para ofuturo da lngua portuguesa no contexto mundial, realizada em Braslia(maro de 2010), governos e universidades podem contribuir para o pro-

    cesso, por exemplo, assumindo papeis de membros ativos e cooperativosna CPLP Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa e na sua vertentecultural, aAULP Associao das Universidades de Lngua Portuguesa.

    Como assinalou-se em Brito e Martins (2004), tendo sempre emvista que, no mbito da lusofonia, no se pode assumir uma posio ingnua de senhor da lngua portuguesa. Em Timor-Leste, como emcada um dos outros espaos de sua oficialidade Angola, Brasil, CaboVerde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom e Prncipe a lnguaportuguesa conhece e constri a sua prpria histria. E, por isso, estmuito longe de poder ser tratado como um idioma uniforme. com essaperspectiva que se deve encarar o desafio da lngua portuguesa emTimor-Leste: est-se diante de mais uma variedade do portugus. E,como tal, devemos atentar para a necessidade urgente de uma descriodo portugus ali praticado (observando-se as influncias que recebe docontato com as demais lnguas ali faladas) e incentivar a descrio esistematizao da lngua ttum, respeitando, sobretudo, as experinciasparticulares, os valores diferentes, a especificidade cultural e a viso demundo que a sociedade timorense vem imprimindo na construo danorma do portugus timorense, ao mesmo tempo em que reconstri a sua

    identidade como nao.Por fim, cabe chamada comunidade lusfona acreditar na forado portugus e valoriz-la. Sendo a sexta lngua mais falada no globo,deve v-la como uma forma de unio e tambm, no caso aqui em desta-que, perceb-la como um dos mecanismos de insero dos timorenses nomundo que se quer globalizado.

    Recebido em setembro de 2010.Aprovado em outubro de 2010.

    Topics for the understanding of the Current Linguistic Landscape of East Timor

    AbstractColonized by the Portuguese, East Timor experienced a policy of "destimorization" between1975 and 1999, carried out by the Indonesian ruler. At the linguistic level, it represented theinclusion of a new form, manifested in the imposition of the Indonesian language, in orderto minimize the use of the national language, Tetum, and the prohibition of the Portugueselanguage. In 1999, the UN arrives in East Timor with the purpose of maintaining peace andinitiating the reconstruction of the country. With the independence and the constitution ofthe Democratic Republic of East Timor, in May 2002, the Portuguese language assumes thestatus of official language alongside Tetum and dozens of other local languages spoken

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    there. Based on the concept of Lusophony, this study presents aspects of the currentsituation of the Portuguese language in East Timor and the prospects for its reintroduction,illustrated by the experience of the Universities Project in East Timor.

    Keywords: Losophony. East Timor. Portuguese language.

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