Artigo - Procedimentalismo e Substancialismo

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Ano 2 (2013), nº 8, 8665-8678 / http://www.idb-fdul.com/ ISSN: 2182-7567 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL: NOTAS SOBRE PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO Caio Henrique Lopes Ramiro 1 Luiz Henrique Martim Herrera 2 Resumo: Neste artigo nos ocuparemos basicamente de investi- gar a possível relação entre procedimentalismo e substancia- lismo como eixos analíticos de interpretação constitucional. Para tanto, leva-se em consideração o confronto entre as cor- rentes com a tentativa de se expor seus argumentos. Com efei- to, não se pretende esgotar o tema nesta breve reflexão, nota- damente em razão da amplitude e complexidade. O objetivo específico é ao final tentar alinhavar tais eixos analíticos e con- cebê-los, frente à Constituição Federal de 1988, como concep- ções que se complementam. Importa dizer, de como a dicoto- mia de aludidas correntes de interpretação filosófica implicam numa dialética possível e salutar frente uma leitura hermeneu- ticamente correta da norma constitucional. Palavras-chave: Filosofia do direito, Interpretação Constitucio- nal, Procedimentalismo, Substancialismo. 1 Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM/ Marília - SP. Possui especialização em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Lon- drina UEL/Pr. Integrante dos grupo de pesquisa Bioética e Direitos Humanos UNIVEM/CNPq. Bolsista CAPES. Advogado. 2 Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM/Marília SP. Pós- graduado em Filosofia Moderna e Contemporânea e Pós-graduado em Filosofia Política e Jurídica ambos pela Universidade Estadual de Londrina UEL/Pr. Ex- bolsista da FUNADESP. Professor de Direito Constitucional. Integrante do grupo de pesquisa Bioética e Direitos Humanos UNIVEM/CNPq. Advogado.

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  • Ano 2 (2013), n 8, 8665-8678 / http://www.idb-fdul.com/ ISSN: 2182-7567

    INTERPRETAO CONSTITUCIONAL: NOTAS

    SOBRE PROCEDIMENTALISMO E

    SUBSTANCIALISMO

    Caio Henrique Lopes Ramiro1

    Luiz Henrique Martim Herrera2

    Resumo: Neste artigo nos ocuparemos basicamente de investi-

    gar a possvel relao entre procedimentalismo e substancia-

    lismo como eixos analticos de interpretao constitucional.

    Para tanto, leva-se em considerao o confronto entre as cor-

    rentes com a tentativa de se expor seus argumentos. Com efei-

    to, no se pretende esgotar o tema nesta breve reflexo, nota-

    damente em razo da amplitude e complexidade. O objetivo

    especfico ao final tentar alinhavar tais eixos analticos e con-

    ceb-los, frente Constituio Federal de 1988, como concep-

    es que se complementam. Importa dizer, de como a dicoto-

    mia de aludidas correntes de interpretao filosfica implicam

    numa dialtica possvel e salutar frente uma leitura hermeneu-

    ticamente correta da norma constitucional.

    Palavras-chave: Filosofia do direito, Interpretao Constitucio-

    nal, Procedimentalismo, Substancialismo.

    1 Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM/ Marlia - SP. Possui

    especializao em Filosofia Poltica e Jurdica pela Universidade Estadual de Lon-

    drina UEL/Pr. Integrante dos grupo de pesquisa Biotica e Direitos Humanos UNIVEM/CNPq. Bolsista CAPES. Advogado. 2 Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM/Marlia SP. Ps-graduado em Filosofia Moderna e Contempornea e Ps-graduado em Filosofia

    Poltica e Jurdica ambos pela Universidade Estadual de Londrina UEL/Pr. Ex-bolsista da FUNADESP. Professor de Direito Constitucional. Integrante do grupo de

    pesquisa Biotica e Direitos Humanos UNIVEM/CNPq. Advogado.

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    Abstract: In this article we will deal basically to investigate the

    possible relationship between proceduralism and substantialism

    as analytical axes of constitutional interpretation. To do so, it

    takes into account the confrontation between the chains with

    trying to expose their arguments. Indeed, it is not intended to

    exhaust the subject in this brief reflection, mainly because of

    the breadth and complexity. The specific objective is to try to

    end basting such analytical axes and conceive them, facing the

    Federal Constitution of 1988, as concepts that complement

    each other. It is, of how the dichotomy alluded currents imply a

    dialectical philosophical interpretation possible and salutary

    front hermeneutically correct reading of constitutional rule.

    Keywords: Philosophy of law, Constitutional Interpretation,

    proceduralism, Substantialism..

    I. INTRODUO

    debate acerca de procedimentalismo e substacia-

    lismo ou entre procedimentalistas e substancialis-

    tas se encontra, atualmente, no centro das aten-

    es dos tericos da Constituio, sobretudo

    acerca das concepes contemporneas sobre o

    valor da constituio e a atividade jurisdicional no Estado De-

    mocrtico de Direito. Importa ressaltar, entretanto, que o estu-

    do de aludidos eixos analticos no original do Direito, sendo

    antes correntes de interpretao filosfica protagonizadas por

    pensadores como Hegel (encarado como substancialista) e

    Kant (visto como um procedimentalista), o que demonstra que

    ambas as linhas de pensamento irradiam acuidade e relevncia

    acadmica.

    Em outras palavras, quando discutimos a maneira de in-

    terpretar a Constituio temos de um lado, os chamados subs-

    tancialistas que trabalham sob a tica de jurisdio constituci-

  • RIDB, Ano 2 (2013), n 8 | 8667

    onal como instrumento de defesa dos direitos fundamentais e, do outro, os procedimentalistas, segundo a qual teramos a ju-risdio constitucional como instrumento de defesa do proce-

    dimento democrtico3. A teoria substancialista defende, enquanto funo da

    Constituio, a adoo de determinados valores/princpios re-

    putados relevantes para sociedade e, por conseguinte, a sua

    retirada do mbito decisrio popular. Na fileira dos substancia-

    listas destacam-se nomes como Mauro Cappelleti, Ronald

    Dworkin,, Laurence Tribe, Ingo Wolfgang Sarlet, Paulo Bona-

    vides, Eros Roberto Grau, Fbio Konder Comparato, Jacinto

    Nelson de Miranda Coutinho, Clmerson Merlin Clve, Lenio

    Luiz Streck, dentre outros. Em sentido oposto temos o proce-

    dimentalismo. De acordo com esta teoria, a Constituio se

    encontra desprovida de derivaes valorativas. Defensores des-

    ta corrente destacam-se Marcelo Cattoni, Rogrio Gesta Leal,

    Gisele Cittadino, Cludio Pereira de Souza, Jrgen Habermas e

    John Hart Ely.

    O desdobramento da discusso entre procedimentalismo

    e substancialismo enorme4. Com efeito, no se pretende esgo-

    tar o tema nesta breve reflexo, notadamente em razo da am-

    plitude e complexidade. O objetivo demonstrar os fundamen-

    tos de cada uma das correntes, para ao final alinhavar tais eixos

    3 Cf. BINEMBOJM, Gustavo. A nova jurisdio constitucional Legitimidade democrtica e instrumentos de realizao. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 4 Sobre o tema: CAPPELLETTI, Mauro. Juzes Legisladores? Porto Alegre, Fa-

    bris,1988. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia Distributiva. Elemen-

    tos da Filosofia Constitucional Contempornea. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1999.

    HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997. VILHENA, Oscar. A constituio e sua reserva de

    justia, 2001, p. 93 e seg. SOUZA NETO, Cludio Pereira de. Teoria constitucional

    e democracia deliberativa, 2005. STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m)

    Crise uma explorao hermenutica da construo do Direito, 8. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Consti-

    tuio, Hermenutica e Teorias Discursivas, Porto Alegre, Livraria do Advogado,

    2006. BONAVIDES, Paulo. A Constituio Aberta. Belo Horizonte, livraria Del

    Rey, 1993.

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    analticos e conceb-las, frente a Constituio Federal de 1988,

    como concepes que se complementam. Importa dizer, de

    como a dicotomia de aludidas correntes de interpretao filos-

    fica implicam numa dialtica possvel e salutar frente uma lei-

    tura hermeneuticamente correta da norma constitucional.

    II. AS DIMENSES SUBSTANCIALISTA E PROCE-DIMENTALISTA DA CONSTITUIO

    O procedimentalismo pode ser encarado como um mto-

    do ou forma de anlise e fundamentao de pretenses norma-

    tivas, sendo que tais procedimentos so totalmente isentos de

    contedo axiolgico. Segundo Andr Ramos Tavares, ao ar-

    gumentar a par de um procedimentalismo ligado ao jurdico,

    aduz o seguinte:

    De acordo com esta teoria, a Constituio se

    encontra desprovida de derivaes valorativas. A

    Constituio, nestes termos, no possui qualquer

    contedo ideolgico, predisposio ao humano, ao

    social ou ao econmico. Sua preocupao central

    seria apenas estabelecer procedimentos formais de

    composio de interesses, quaisquer que sejam es-

    tes. (TAVARES, 2007, p. 338-339)

    A anlise procedimental do direito defende a idia de que

    o direito depende de uma fundamentao moral de princpios, o

    que caracteriza esta teoria como crtica do positivismo jurdico,

    inclusive sendo nominada por alguns autores como ps-

    positivismo.

    Habermas (2003, p.213) argumenta que somente as teori-

    as da justia e da moral ancoradas no procedimento prometem

    um processo imparcial para a fundamentao e a avaliao de

    princpios. Ainda, o autor de Direito e Democracia esclarece:

    [...] o direito procedimentalista depende de

    uma fundamentao moral de princpios, e vice-

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    versa, no mera suposio sem fundamentos. A

    legalidade s pode produzir legitimidade na medida

    em que a ordem jurdica reagir necessidade de

    fundamentao resultante da positivao do direito,

    a saber, na medida em que forem institucionaliza-

    dos processos de deciso jurdica permeveis a dis-

    cursos morais [...]. Os procedimentos oferecidos

    pelas teorias da justia para explicar como poss-

    vel julgar algo sob o ponto de vista moral s tm

    em comum, o fato de que a racionalidade dos pro-

    cedimentos deve garantir a validade dos resulta-dos obtidos conforme o processo. (HABERMAS,

    2003, p. 215-216)

    Neste sentido, a fundamentao moral de princpios no

    encarada como um contedo que deve ser dado ao direito,

    principalmente a Constituio, uma vez que baseada em Kant,

    esta teoria que encara a moralidade como procedimental signi-

    fica dizer o estabelecimento de procedimentos para anlise das

    aes humanas conforme a lei moral.

    Desse modo, o que pretende a teoria procedural definir

    procedimentos para que sejam institucionalizados processos de

    deciso jurdica que carregam consigo debates acerca de prin-

    cpios, sejam estes morais ou polticos que j esto ou podem

    ser positivados.

    A corrente conhecida hoje como ps-positivismo, que

    tem em Robert Alexy5, talvez, seu principal expoente, debate,

    inclusive, as possveis distines entre princpios e regras, ca-

    racterizando estes ltimos como espcies do gnero norma ju-

    rdica. Assim, o procedimentalismo o ponto de vista moral,

    de mtodo ou formal, que est ligado s questes de justia,

    defendendo a tese de que preciso um procedimento para de-

    terminar a validade das normas, inclusive as Constitucionais.

    5 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virglio Afonso da

    Silva. So Paulo: Malheiros, 2008.

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    Habermas, nesse ponto prope um modelo de democracia

    constitucional que no tem como condio prvia fundamentar-

    se nem em valores compartilhados, nem em contedos substan-

    tivos, mas em procedimentos que asseguram a formao demo-

    crtica da opinio e da vontade e que exige uma identidade

    poltica no mais ancorada em uma nao de cultura, mas, sim, em uma nao de cidados.

    A Constituio um instrumento de garantia de compe-

    tncias e procedimentos bem aos moldes do Estado mnimo de

    ideologia liberal. A segurana jurdica assume um vis formal,

    tolerando que os direitos e garantias preconizados no texto

    constitucional possam vir a ser, de fato, um elenco esvaziado

    de contedo.

    Por outro lado o substancialismo liga-se teoria material

    da constituio. Seria olharmos a jurisdio constitucional co-

    mo instrumento de defesa dos direitos fundamentais. Nessa, a

    democracia vai alm do respeito s regras do jogo, de cunho procedimental: vem coligada idia de maior efetividade da

    jurisdio constitucional.

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de

    1988 inaugurou o paradigma do Estado Democrtico de Direi-

    to, que veio agregar o Estado Liberal de Direito com o Estado

    Social de Direito, fazendo com que o Direito passasse a ser

    transformador. Significa dizer que o texto constitucional pas-

    sou a deter as condies de possibilidade para o resgate das

    promessas da modernidade (STRECK, 2002, p. 75).

    Nesse sentido, preciso entender a Constituio do Bra-

    sil como algo substantivo, uma vez que contm valores (direi-

    tos sociais, fundamentais etc.) que o pacto constituinte estabe-

    leceu como passveis de realizao. Por isso de se deixar as-

    sentado que em seu texto h um "ncleo essencial", no-

    cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernida-

    de, que necessita ser resgatado (STRECK, 2001, p. 115).

    a Constituio, pois, este texto que consagra direitos

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    fundamentais, princpios e fins pblicos que realizam relevan-

    tes valores de uma sociedade (justia, liberdade e igualdade), e

    que os juzes e tribunais podem implementar tais aspiraes

    constitucionais para que tais valores no se transformem em

    promessas esquecidas.

    [...] mais do que equilibrar e harmonizar os

    demais poderes, o Judicirio deveria assumir o pa-

    pel de um intrprete que pe em evidencia, inclusi-

    ve contra maiorias eventuais, a vontade geral im-

    plcita no direito positivo, especialmente nos textos

    constitucionais, e nos princpios selecionados como

    de valor permanente na sua cultura de origem e na

    do Ocidente. O modelo substancialista que, em grande parte aqui subscrevo trabalha na perspec-tiva de que a Constituio estabelece as condies

    do agir poltico estatal, a partir do pressuposto de que a Constituio a explicitao do contrato so-

    cial. [...] Na perspectiva substancialista, concebe-se

    ao Poder Judicirio uma nova insero no mbito

    das relaes dos poderes de Estado, levando-o a

    transcender as funes de checks and balances.

    (STRECK, 2000, p. 40)

    Gilberto Bercovici bem pondera que a constituio no fixa apenas os meios, sem se comprometer com os fins (BERCOVICI, 2002, p. 280). Corrobora-se a isso o prescrito

    no art. 3 do texto constitucional que estabelece os objetivos

    fundamentais da Repblica Federativa do Brasil, que direcio-

    nam todo o agir dos poderes pblicos e tambm dos particula-

    res.

    Em outras palavras, a teoria substancialista defende, en-

    quanto funo da Constituio, a adoo de determinados valo-

    res/princpios reputados relevantes para sociedade e, por con-

    seguinte, a sua retirada do mbito decisrio popular. Integra

    uma pauta de valores previamente estabelecidos, especialmente

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    por se tratar da realizao, pelo Direito, de princpios jurdicos

    j admitidos socialmente.

    Com efeito, as posturas substancialistas tm valorizado a

    Constituio como instrumento vinculante e programtico,

    argumentativo da conservao do Estado Democrtico de Di-

    reito que ainda resguarda a ordem e a liberdade nos pases de

    modernidade tardia, no olvidando a politicizao do Direito.

    Pretende conciliar a idia de constituio com

    duas exigncia fundamentais do estado democrti-

    co constitucional: 1) a legitimidade material, o que

    aponta para a necessidade de a lei fundamental

    transportar os princpios materiais informadores do

    estado e da sociedade, 2) a abertura constitucional:

    pois a constituio deve possibilitar o confronto e a

    luta poltica dos partidos e das foras polticas por-

    tadores de projectos alternativos para a concretiza-

    o dos fins constitucionais. (Canotilho, 2003, p.

    1336)

    A postura substancialista revela, pois, que a jurisdio

    constitucional deve proteger a primazia da Constituio, sendo

    o meio do Estado contemporneo para a realizao dos valores

    superiores e fundamentais que os homens reconhecem como

    tais, por exemplo, dignidade humana, liberdade, igualdade etc.

    O Intervencionismo substancialista, alberga, assim, o cumpri-

    mento dos preceitos e princpios nsitos aos Direitos Funda-

    mentais sociais e ao referencial de Estado Social.

    Em suma, para os substancialistas, uma Constituio de-

    ve consagrar direitos fundamentais, princpios e fins pblicos

    que realizem relevantes valores de uma sociedade: justia, li-

    berdade e igualdade. Para que tais valores no se transformem

    em promessas esquecidas, os juzes e tribunais podem imple-

    mentar tais aspiraes constitucionais.

    J os procedimentalistas no vem no intrprete constitu-

    cional a possibilidade de s-lo um aplicador de princpios de

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    justia. Seria ele um fiscal do correto funcionamento do pro-

    cesso poltico. S extrairia da Constituio "condies proce-

    dimentais da democracia", cabendo jurisdio constitucional

    proteg-las.

    III. DA DICOTOMIA COMPLEMENTARIDADE: PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO CO-

    MO EIXOS ANALTICOS DA CONSTITUIO

    No desenvolvemos o presente trabalho com o objetivo

    de defender uma teoria constitucional adequada que permita

    equacionar as dimenses procedimentais e substancias da

    Constituio de 1988, vistas, possivelmente por conta do deba-

    te entre procedimentalismo e substancialismo, como antagni-

    cas.

    Entendemos, de outra ordem, ser necessrio revitalizar a

    autonomia do direito, superando a velha dicotomia do proce-

    dimentalismo e substancialismo, para evoluir a uma nova etapa

    de anlise onde as duas concepes possam ser reunidas, do-

    tando a jurisdio constitucional de um novo olhar, mesmo

    sendo da compreenso dos tericos que, no Brasil, longe esta-

    mos de identificar a aplicao de qualquer das correntes.

    [...] na esteira das teses substancialistas, en-

    tendo que o Poder Judicirio (especialmente a jus-

    tia constitucional) deve assumir uma postura in-

    tervencionista, longe da postura absentesta, prpria

    do modelo liberal-individualista-normativista que

    permeia a dogmtica jurdica brasileira. Importa

    ressaltar, entretanto, que, no plano do agir cotidiano

    dos juristas no Brasil, nenhuma das duas teses

    (procedimentalismo e substancialismo) percept-

    vel. (STRECK, 2009, p. 48).

    Para tanto, buscamos a confrontao das concepes

    substancialistas e procedimentalistas, para compreender-se que

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    a construo da legitimidade do judicirio implica num dilogo

    com dois caminhos de legitimao: a aceitao de valores for-

    mal-procedimentais abertos na constituio, com a processu-alizao de seus contedos, e a concretizao de direito funda-

    mentais por uma atividade hermenutica concretizante da nor-

    matividade constitucional.

    As teorias procedimentalistas, segundo Robert Alexy, ca-

    racterizam-se pela plasticidade, ou seja, nelas cabe tudo. Em-

    bora se deva reconhecer a importncia do procedimento na

    concretizao constitucional, a adoo de uma teoria procedi-

    mental no ser a soluo para todos os procedimentos consti-

    tucionais (BERCOVICI, 2002, p. 278).

    Nessa altura, no difcil sustentar que a defesa de um

    substancialismo material-constitucional no prescinde e no pretende prescindir , do papel fundamental que deve ser exer-cido pelo procedimento. Na verdade, o problema exatamente

    o oposto, ou seja, o problema est na pretenso de autonomiza-

    o das teorias processuais. Ora, a Constituio no pode ser

    meramente procedimental a dispor sobre regras de formao de

    vontade poltica exclusivamente. Entretanto, aduz, tambm no

    poder ser uma ordem dura de valores. sim, uma simbiose que

    assume as formas jurdicas e se limita s suas contigncias, ao

    seu tempo e a ao seu povo (SAMPAIO, 2002, p. 19).

    Nesse sentido, Leurence Tribe (apud, STRECK, 2006, p.

    20) corrobora a crtica dos valores adjetivos ou procedimenta-

    listas, para as quais a constituio somente garante o acesso aos

    mecanismos de participao democrtica no sistema. Nesse

    sentido, afirma que o procedimento deve complementar-se com

    uma teoria dos direitos e valores substantivos.

    Com efeito, a perspectiva procedimentalista no deve ser

    completamente descartada, at porque denuncia eventuais ex-

    cessos e vicissitudes de uma viso substancialista menos ape-

    gada s dificuldades concretas na busca de efetivao dos an-

    seios constitucionais. Contudo, o procedimentalismo tambm

  • RIDB, Ano 2 (2013), n 8 | 8675

    tem seus perigos.

    Ser que as bandeiras procedimentalistas tais como liber-

    dade de participao, a no violncia e a fora do melhor ar-

    gumento sempre sero preservadas? Ser que a exagerada plas-

    ticidade dos procedimentos no permitiria a incluso de lgicas

    egosticas e manipulaes de vontade distantes do bem co-

    mum? Quem domina os contedos a serem aferidos no discur-

    so estritamente procedimental? Os afetados pela via procedi-

    mental sempre estaro satisfeitos com os resultados alcana-

    dos? As escolhas feitas to somente pela via procedimental

    refletiro sempre a vontade dos atingidos pelo procedimento?

    Finalmente, ainda que os procedimentos sejam democrticos,

    srios, bem intencionados e despidos de coero, ser que

    sempre a vontade da maioria est escorreita? E os interesses de

    minorias hipossuficientes? E se as escolhas procedimentais

    aparentemente democrticas violarem clusulas ptreas? A

    propsito:

    Como ter cidados plenamente autnomos,

    como Habermas propugna, se o problema da exclu-

    so scia no foi resolvido? Como ter cidados

    plenamente autnomos se suas relaes esto colo-

    nizadas pela tradio que lhes conforma o mundo

    da vida? (STRECK, 2002, p. 174).

    Para procedimentalistas de vulto necessrio solidificar

    um processo de complicada desjuridificao, mecanismo que aparentemente favorecia o racionalismo e o pluralismo jurdi-

    co, ampliando espaos de participao e elevando, conseqen-

    temente, a cidadania. Em sntese, os procedimentalistas no

    tem pudor de dizer que a Constituio no seria capaz de disci-

    plinar as sociedades atuais e suas complexidades, devendo di-

    minuir sua amplitude. Atacando, com virulncia, a tese de des-

    juridificao no constitucionalismo brasileiro, Gilberto Berco-

    vici aponta o seguinte:

    Os adeptos dessas teorias entre ns esque-

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    cem-se de que a desjuridificao, no Brasil, deve

    ser entendida de modo distinto do que nos pases

    europeus ou nos Estados Unidos. Como muito bem

    afirmou Marcelo Neves, o nosso problema no de

    juridificao, mas de desjuridificao da realidade

    constitucional. Aqui, a desjuridificao, bem como

    a inconstitucionalizao, favorecem a manuteno

    dos privilgios e desigualdades (BERCOVICI,

    2002, p. 18)

    Cumpre ainda dizer que muitas das orientaes procedi-

    mentalistas, principalmente as regras das cartilhas de Alexy e

    Habermas, ao tentarem aquilo que se chama de reabilitao da razo prtica, servem primordialmente como instrumento de fundamentao de valores.

    O procedimento s se justifica, portanto, se tiver como

    horizonte que seu aperfeioamento e cumprimento escorreito

    resultar em escolhas notadamente axiolgicas, substanciais,

    principiolgicas. Portanto, parece que a razo de ser do proce-

    dimento o encontro de assertivas materiais.

    IV. CONSIDERAES CONCLUSIVAS

    importante tambm revelar que at alguns axiomas nas

    regras iniciais do discurso procedimental so notoriamente

    materiais. Toda vez que forem expressas, por exemplo, termi-

    nologias clssicas como ausncia de violncia, no limita-o para a participao de todos no procedimento, seriedade e fora do melhor argumento, em verdade, estas pretensas bandeiras procedimentais so sinnimos de diretrizes substan-

    ciais como liberdade, igualdade, tolerncia e justia. Desta

    forma, aquilo que se considera como estritamente procedimen-

    tal tem um contedo mnimo substancial dirigente.

    Por fim, cabe ainda lembrar que procedimentalistas de

    destaque (Habermas e Alexy) tambm so capazes de indicar

  • RIDB, Ano 2 (2013), n 8 | 8677

    que as premissas meramente procedimentais nem sempre so

    facilmente reproduzveis na prtica, de maneira que seriam

    reputadas como contrafticas. Ora, se se reconhece que at

    mesmo o procedimentalismo incapaz de integral adoo con-

    creta, no producente menosprezar o vis substancialista ape-

    nas porque ele tambm enfrenta problemas de tornar efetivas as

    promessas constitucionais. O fato de dizermos que deve haver

    uma constituio procedimental no significa que o texto se

    reduza a apenas um esqueleto normativo, sem sustncia, sem

    verbo, sem esprito, sem matria.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AARNIO, Aulis. Problemas abiertos en la filosofia del dere-

    cho. Trad. Juan Ruiz Manero. In: Doxa. Cuadernos de

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