Artigo Para Ulepicc 2014

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V Encontro Nacional da Ulepicc-Brasil – Rio de Janeiro – 26 a 28/11/2014 A Ética da Informação e O Individualismo Ético 1 Rosely A. Romanelli 2 Resumo: Este artigo pretende discutir as implicações do individualismo ético como possibilidade de contribuição para a manutenção da ética na informação, neste caso considerando a divulgação científica. A base teórica para esta discussão utilizará as noções de individualismo ético apresentadas como decorrência da teoria cognitiva proposta por Rudolf Steiner e posteriormente desenvolvida em seu caráter epistemológico por Marcelo da Veiga, além das noções éticas propostas por Edgar Morin no sexto volume d’ “O Método”, dedicado à ética vista pela Antropologia da Complexidade. A intenção é suscitar o debate da postura pessoal do sujeito em seu trabalho como pesquisador e/ou divulgador da ciência para a sociedade civil. Acredita-se ser imprescindível para a ética na Ciência da Informação, especialmente na relação da ciência com sua divulgação. Palavras-chave: Ética, individualismo ético, ciência da informação, pesquisa, divulgação científica. Abstract: This paper discusses the implications of ethical individualism as a possible contribution to the maintenance of ethics in information, in this case considering the science divulgation. The theoretical basis for this discussion will use the notions of ethical individualism presented as a result of cognitive theory proposed by Rudolf Steiner and in its later epistemological development by Marcelo da Veiga, beyond the 1 Trabalho apresentado no GT6 – Ética, política e epistemologia da informação. 2 Prof.ª Dr.ª Rosely A. Romanelli, Adjunta nível CIII na Universidade do Estado de Mato Grosso no Departamento de Jornalismo no campus de Alto Araguaia – MT. [email protected]

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ética e economia política da informação

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V Encontro Nacional da Ulepicc-Brasil Rio de Janeiro 26 a 28/11/2014

A tica da Informao e O Individualismo tico

Rosely A. Romanelli

Resumo: Este artigo pretende discutir as implicaes do individualismo tico como possibilidade de contribuio para a manuteno da tica na informao, neste caso considerando a divulgao cientfica. A base terica para esta discusso utilizar as noes de individualismo tico apresentadas como decorrncia da teoria cognitiva proposta por Rudolf Steiner e posteriormente desenvolvida em seu carter epistemolgico por Marcelo da Veiga, alm das noes ticas propostas por Edgar Morin no sexto volume d O Mtodo, dedicado tica vista pela Antropologia da Complexidade. A inteno suscitar o debate da postura pessoal do sujeito em seu trabalho como pesquisador e/ou divulgador da cincia para a sociedade civil. Acredita-se ser imprescindvel para a tica na Cincia da Informao, especialmente na relao da cincia com sua divulgao.Palavras-chave: tica, individualismo tico, cincia da informao, pesquisa, divulgao cientfica.Abstract:This paper discusses the implications of ethical individualism as a possible contribution to the maintenance of ethics in information, in this case considering the science divulgation. The theoretical basis for this discussion will use the notions of ethical individualism presented as a result of cognitive theory proposed by Rudolf Steiner and in its later epistemological development by Marcelo da Veiga, beyond the ethical notions proposed by Edgar Morin in the sixth volume of The Method, dedicated to the ethical view in Anthropology of Complexity. The intention is to provoke discussion on the individual position of the subject in his work as a researcher and / or disseminator of science for civil society. It is believed to be essential for ethics in information science, especially in the relationship between science and its dissemination.

Keywords: ethics, ethical individualism, information science, research, science communication.Em seu artigo, tica, poltica e epistemologia: interfaces da informao, Schneider, (2013), afirma que a cincia da informao pode contribuir para desvelar a intrincada trama que aproxima e isola os problemas centrais da tica (ou filosofia moral), da filosofia poltica e da epistemologia (ou filosofia da cincia)? (SCHNEIDER, 2013, p. 57). De acordo com o autor, pode-se vislumbrar o papel desse campo de conhecimento no desvelamento entre bem e mal, poder e impotncia, verdade e mentira. Neste artigo, parte-se deste pressuposto para refletir sobre o papel do sujeito que exerce sua ao neste caminho de esclarecimento.

Para tanto, alm da reflexo de Schneider, possvel trazer ao debate a viso de complexidade sobre o conhecimento e dentro deste, da tica, trazida luz por Morin (2005). Em sua obra, O Mtodo, composta em seis volumes que discorrem sobre o estudo dessa complexidade, e cujo sexto exemplar dedicado tica, ele afirma que esta se manifesta ao ser humano como um imperativo, uma exigncia moral. Segundo este autor:

O seu imperativo origina-se numa fonte interior ao indivduo, que o sente no esprito como a injuno de um dever. Mas ele provm tambm de uma fonte externa: a cultura, as crenas, as normas de uma comunidade. H, certamente, tambm uma fonte anterior, originria da organizao viva, transmitida geneticamente. Essas trs fontes so interligadas como se tivessem um lenol subterrneo em comum (MORIN, 2005, p.19).A partir destas afirmaes, Morin argumenta a respeito destas fontes que determinam o impulso tico humano, tanto na vida pessoal quanto na interao social. Seu discurso considera o egocentrismo e o altrusmo e a oscilao entre os dois estados do sujeito, bem como as interaes deste sujeito com o outro e com a comunidade. Conforme o momento vivido, o indivduo vivencia, dependendo das circunstncias, o egosmo que recalca o altrusmo ou sente este ltimo superando o egocentrismo: cada um vive para si e para o outro de maneira dialgica, ou seja, ao mesmo tempo, complementar e antagnica. Ser sujeito associar egosmo e altrusmo. (MORIN, 2005, p.20-21).

Para Morin, o princpio egocntrico inclui a potencialidade da concorrncia e o antagonismo que pode ocorrer em relao ao semelhante, pois o sujeito carrega em si tanto a morte do outro quanto o amor por ele. A oscilao entre um e outro em graus diferentes vai determinar as aes humanas.

O autor ressalta a necessidade de se olhar sobre a tica considerando-a como uma exigncia vivida pela subjetividade, pois mesmo que no haja um ritual ou culto, um sentimento religioso de dever experimentado pelo indivduo leigo, dando uma especificidade de aspecto semelhante ao do mstico. Segundo ele, o dever tico parece emanar de uma ordem de realidade superior realidade objetiva e parece derivar de uma injuno sagrada (2005, p. 21). Segundo o autor, o sujeito deve estar possudo por um deus ou uma ideia para ter fora que o sustente na ao tica, pois o aspecto mstico, sagrado, fidesta, intrnseco ao dever tico parece emanar de uma herana da ascendncia religiosa da tica. Para ele, este aspecto de quase possesso pode vir do mais antigo, mais profundo, a tripla fonte bio-antropo-sociolgica (idem).

Morin cita Ozment (1973 apud MORIN, 2005:21) que sustenta que o humanismo de Liberdade-Igualdade-Fraternidade tinha uma fonte mstica e no racional e se prope a complexificar esta tese. Para isso este autor considera que esse humanismo comporta o que ele qualifica de uma simbiose de racionalidade/universalidade e de uma f quase mstica. E conclui que no possvel eliminar nem o componente racional e nem o mstico do universalismo tico, sendo que o componente da f est destacadamente contido neste conjunto simbitico, dizendo: assim, efetivamente, eu tenho f na minha liberdade, f na fraternidade (idem). Morin, por sua vez, afirma que a tica apresenta elementos de religao: Todo olhar sobre a tica deve perceber que o ato moral um ato individual de religao; religao com o outro, religao com a comunidade, religao com uma sociedade e no limite, religao com a espcie humana (idem, ibidem).

Segundo Morin, existe ainda o aspecto individual da tica que inclui o indivduo na comunidade e o impulsiona para o amor e amizade, levando ao altrusmo que tem valor de religao. Ao mesmo tempo esta comunidade fonte de regras e normas que impem o comportamento solidrio aos indivduos. Mas o autor convida a refletir sobre a dupla natureza do ser humano, que tambm regido por um princpio egocntrico que o faz tender ao egosmo enquanto a sociedade comporta rivalidade, competio, lutas entre egosmos, podendo at mesmo o seu governo ser ocupado por interesses egostas (MORIN, 2005, p. 22). Dessa forma, a sociedade no consegue impor as suas normas ticas a todos os indivduos (idem). Segundo Morin, isto dificulta superao do egosmo, bem como a integrao dos vnculos tradicionais e favorece o desenvolvimento do individualismo, nem sempre em bases ticas.

Morin considera tambm que existe um princpio de incluso inscrito na auto-scio-organizao biolgica do indivduo, transmitida geneticamente e que determina o senso comunitrio com o enfrentamento de seus conflitos de egocentrismos e a solidariedade em relao aos inimigos exteriores. O autor ainda segue o caminho histrico do surgimento da autonomia do ser humano, que de acordo com ele, comea a desenvolver uma conscincia moral individual relativamente autnoma com o progresso da individualidade que surge numa manifestao clara em Atenas, sculo V a. C. Com a democracia, o indivduo participante precisa atuar criticamente, necessitando do esprito livre para esta participao. Sendo assim, Morin considera que a conscincia moral individual se desenvolve historicamente e se complexifica pela relao trinitria indivduo/espcie/sociedade. A superao dos pontos da relao trinitria indivduo/espcie/sociedade repe o esprito individual, num nvel superior, no circuito trinitrio (2005, p. 25).

possvel pensar na discusso sobre a tica sustentada por Morin e no caminho cognitivo steineriano como uma forma de superar os impasses enumerados nela. Pode-se comear pela questo crucial levantada por Morin de que o individualismo, fonte de responsabilidade pessoal pela sua conduta de vida, tambm fonte de fortalecimento do egocentrismo (2005, p. 26). Para Steiner (1988) a tica se constri junto com o conhecimento do sujeito. Desta forma, superar o egocentrismo torna-se uma questo a ser respondida pelo indivduo ao seguir sua intuio autoconsciente num processo autoeducativo.

Morin apresenta uma crise que se estabelece a partir da perda de fundamentao da tica devido a eroso do sentido sagrado da palavra dada, do sentido sagrado da hospitalidade, (...) das razes mais antigas da tica (2005, p. 26). E chama a ateno para o esvaziamento dos valores fundamentais desta tica. Para o autor, existem vrias razes para que isso ocorra: aumento da deteriorao do tecido social em inmeros campos; enfraquecimento, no esprito de cada um, do imperativo comunitrio e da Lei coletiva; fragmentao e dissoluo da responsabilidade que se manifesta na compartimentao e burocratizao das organizaes e empresas e finalmente a realidade social tomando um aspecto cada vez mais exterior e annimo em relao ao indivduo. Isto tudo reforando o que ele denomina de hiperdesenvolvimento do princpio egocntrico em detrimento do princpio altrusta, pela desarticulao do vnculo entre indivduo, espcie e sociedade. E ainda o processo de des-moralizao que chega no anonimato da assim chamada sociedade de massa, na avalancha miditica e na supervalorizao do dinheiro (2005, p. 28). O que leva Morin a afirmar que:

O desenvolvimento do individualismo conduz ao niilismo, que produz sofrimento. A nostalgia da comunidade desaparecida, a perda dos fundamentos, o desaparecimento de sentido da vida e a angstia que disso resultam podem acarretar a volta aos antigos fundamentos comunitrios nacionais, tnicos e/ou religiosos que trazem segurana psquica e religao tica. (...) O sculo XX, sculo do individualismo, viu muitas adeses dos indivduos mais crticos f nacional e a f totalitria, que integram totalmente a pessoa e fornecem uma certeza tica (idem).

Segundo o autor, existe um abismo niilista que resulta da individualizao extrema e decomposio do tecido social que conduz a reintegrao e restaurao destas instncias ticas de carter regressivo, quase numa tentativa ingnua desejosa de adaptar a tica ao sculo em lugar de pensar uma dupla adaptao em crculo: adaptar o sculo tica, adaptar a tica ao sculo (p. 29). Caso contrrio, ou seja, caso no se pense esta circularidade a tica torna-se uma emergncia que no sabe de que surge, pois ela depende das condies sociais e histricas que a permitem surgir. No entanto, no indivduo que se situa a deciso tica: cabe a ele escolher seus valores e suas finalidades (2005, p. 29).Mas como o indivduo adquire seus valores? De que forma ele descobre suas finalidades, aquelas que do sentido aos seus ideais e sua atuao no mundo? Talvez seja pela aquisio do conhecimento e pela forma como este lhe apresentado, pela maneira como este indivduo educado. neste ponto da reflexo que possvel apresentar a importncia da educao esttica para o ser humano atravs, dos estudos de Veiga. Para este autor, o homem steineriano atinge o auge de seu ser atravs da arte, uma vez que confere a si mesmo a liberdade como forma de sua existncia e transforma o mundo em beleza, ou seja, em expresso imediata da verdade e da liberdade que conseguiu individualizar (VEIGA,1994, p.14).

A Cosmoviso Antroposficasurgiu da busca steineriana de apontar o caminho que o homem poderia percorrer atravs de sua vivncia interna fazendo com que esta se refletisse no exterior (ROMANELLI, 2000). Este reflexo, no entendimento de Steiner, significava a diferena entre a heteronomia e a autonomia do ser humano, ambas representadas pela aquisio da liberdade permeada pela tica e pela moral. O caminho trilhado por ele inclua a vivncia religiosa e o conhecimento cientfico, que ele transmitiu aos outros por meio de sua teoria cognitiva baseada na cosmoviso goethiana. Seus estudos cientficos e filosficos lhe permitiram cumprir essa tarefa e ampli-la at transform-la num sistema terico passvel de aplicao no mbito social e educacional, como em outros em que lhe foi permitido aprofundar-se.

O empenho de Steiner em fazer-se entender fez com que ele lanasse mo do discurso cientfico de sua poca, mesmo diante da dificuldade de adequao ao tema desenvolvido. O paradigma clssico envolve seu contedo de origem hermtica ao longo de extensa obra. Na atuao cotidiana, entretanto, a vitalidade deste contedo refaz o caminho do homem, sem negar a imagem e o sentimento. Assim, atravs da cognio o homem, sob a perspectiva antroposfica, torna-se criador e criativo. Seu ato cognitivo transforma-se em atuao artstica ordenadora da realidade qual ele pertence. Ecologia profunda, nas palavras de Veiga (1994). A verdade surge, como produto livre do esprito humano. A liberdade fruto da auto-educao, permitindo educar outros seres humanos, sob o mesmo signo. O trabalho do artista social, sob o ponto de vista tico e moral. Educao e auto-educao conduzem observao ampliada.

Ao admitir o homem como co-criador ativo do processo csmico, e a cognio como o membro mais perfeito no organismo do universo, Steiner admite tambm que o ser humano produza seus ideais morais livremente, sem a necessidade de uma tica normativa. Sua imagem humana trimembrada, em corpo, alma e esprito, semelhante ao homem tradicional durandiano, traz a alma de volta ao seu papel mediador original. A revelao do homem tradicional o pensamento intuitivo, a auto-reflexo que Steiner prope atravs do desenvolvimento cognitivo ampliado.Com esta breve apresentao do pensamento steineriano, pode-se tecer uma conexo com a tica do pensamento elaborada por Morin (2005). Segundo ele, existe uma relao dialgica entre pensamento e tica, refletida como tica do conhecimento e conhecimento da tica. Iniciando com uma frase de Pascal, trabalhar para pensar bem, eis o princpio da moral, que Morin considera um paradoxo, uma vez que a moral subjetiva e o saber, adquirido pelo ato de pensar, pretende ser uma verdade objetiva. Sendo assim, a conduta moral deve-se ligar ao conhecimento pela qual se exerce e isto, para ele, est indicado na frase de Pascal como um vnculo entre o saber e o dever, que precisa ser incessantemente renovado (MORIN, 2005, p. 60).

Morin afirma que a tica do conhecimento luta contra a cegueira e a iluso ticas inclusive, e o reconhecimento das incertezas e das contradies, ticas inclusive (2005, p. 60). Pelo princpio de conscincia intelectual chega-se ao esclarecimento do princpio de conscincia moral, do que Morin conclui que Pascal queria dizer que a tica deve mobilizar a inteligncia para enfrentar a complexidade da vida, do mundo e da prpria tica (idem, p. 60). Estes dois princpios conscientes so inseparveis. Uma vez estabelecido/reconhecido este vnculo pode-se perceber a autonomia da tica, reconhecida pelo exerccio do pensamento complexo, ao mesmo tempo em que esta religada pelo estabelecimento do vnculo entre o saber e o dever.

Segundo este autor, a fragmentao, a compartimentao e a atomizao do saber so responsveis pela impossibilidade de se imaginar um todo com elementos solidrios, impossibilidade esta que vai atrofiando o conhecimento das solidariedades e a conscincia de solidariedade (MORIN, 2005, p. 62-63). Desta forma o indivduo fica fechado num setor e inclinado a reduzir sua responsabilidade somente a este espao, ao qual se encontra circunscrito, enquanto sua conscincia de responsabilidade atrofiada por este mesmo espao, ou pela ausncia/incapacidade de viso do todo/complexidade. Da a necessidade de uma ampliao cognitiva atravs da qual ele possa observar todos os problemas interligados, sobretudo os ticos, conforme Morin.

Na viso de complexidade estabelecida por Morin o indivduo se religa ao todo, libertando os conhecimentos da limitao citada anteriormente, abandonando o ponto de vista mutilado das disciplinas separadas, buscando um conhecimento polidisciplinar ou transdisciplinar. Utilizando o mtodo para tratar esta complexidade, o pensador deve obedecer a um princpio que se prope a distinguir e religar ao mesmo tempo, reconhecendo a multiplicidade na unidade e a unidade na multiplicidade, superando assim o reducionismo e ligando holisticamente as partes do todo. Dessa forma torna-se capaz de reconhecer os contextos e o complexo, que permite inserir a ao moral na ecologia da ao (p. 62).

O presente, tempo no qual a ao ocorre, est inscrito numa relao circular, que no esquece a urgncia do que essencial, incluindo o clculo e a quantificao nos meios de obteno do conhecimento, concebendo uma racionalidade aberta que enfrenta e reconhece as incertezas e contradies atravs da dialgica que supera a lgica clssica. Desta maneira permite a autonomia, o indivduo, a noo de sujeito e a conscincia humana que atinge diagnsticos que consideram a relao local com o aspecto global.

Neste ponto importante avanar para a viso de tica e cincia, pois preciso lembrar que toda esta exposio pretende chegar s sugestes de possveis aes ticas do sujeito que a pratica e/ou daquele que a divulga/populariza. Morin (2005) considera que a cincia autnoma devido ao postulado de objetividade que se imps a partir do sculo XVIII. Esta objetividade estabeleceu uma disjuno entre saber e tica, protegendo apenas o imperativo de conhecer por conhecer, sem considerar as repercusses morais, polticas ou religiosas: Inicialmente marginal nas sociedades ocidentais, a cincia introduziu-se nas universidades, no sculo XIX, depois no sculo XX, no corao das empresas industriais e, enfim, nos Estados, que financiam as pesquisas cientficas e recolhem os bons resultados para seus fins. O desenvolvimento cientfico determina agora o desenvolvimento da nossa sociedade, o qual determina o desenvolvimento cientfico. Aquilo que valia para a cincia nascente, marginal e ameaada, no vale mais nesta poca, sculos XX e XXI, em que a cincia gigantesca e onipresente (MORIN, 2005, p. 69). Atualmente, a relao entre cincia e tcnica tornou-se indissocivel, ao ponto que Morin a torna responsvel pela cunhagem do termo tecnocincia. Atravs das tcnicas de experimentao e verificao que foram se forjando e consolidando na busca pelo conhecimento possibilitou-se ento a manipulao das tcnicas a servio da cincia instaurando a tambm a recursividade pela qual a manipulao tcnica est a servio da cincia que por sua vez encontra-se a servio desta manipulao e o desenvolvimento do conhecimento pelo conhecimento, propriamente cientfico, agora inseparvel do desenvolvimento do domnio, propriamente tcnico (MORIN, 2005, p.70).Surge ento a tecnocincia, a big science, conforme Morin, hipertecnicizada, engendrando-se poderes titnicos (idem). Segundo Morin, a tcnica gera, sem cessar, poderes novos que so postos a servio da economia para criar e desenvolver as indstrias, os transportes, as comunicaes o que impulsiona todo o desenvolvimento econmico contemporneo, mantm a pesquisa cientfica, em domnios de ponta, como a qumica e a gentica, tambm entra no mundo dos lucros e, com isso, leva esse mundo para a cincia (idem, ibidem).Morin cita casos emblemticos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, nos quais o conhecimento escapou dos cientistas e foi utilizado em benefcio do poder poltico. Alm disso, comenta a angstia e o remorso dos pesquisadores que propiciaram a concentrao destes conhecimentos nas mos de empresrios e potncias estatais. Ao que o autor conclui:

A cincia produziu uma extraordinria potncia associando-se cada vez mais estreitamente com a tcnica, cujos desenvolvimentos ininterruptos impulsionam de maneira ininterrupta a economia. Todos esses progressos ligados transformam em profundidade as sociedades. Assim, a cincia onipresente, com interaes-retroaes incontveis em todos os campos, criadora de poderes gigantescos e totalmente impotente para control-los. O vnculo cincia/tcnica/sociedade/poltica evidente. A poca em que os juzos de valor no podiam interferir na atividade cientfica est encerrada (MORIN, 2005, p. 71).Segundo Morin, existe uma dificuldade em conceber que a cincia, identificada razo, ao progresso e ao bem, possa tambm ser profundamente ambivalente em sua natureza. A conscincia dessa possibilidade s comea a surgir, de acordo com o autor, a partir da dcada de 80 do sculo passado, quando se torna claro a ameaa de duas grandes catstrofes: a nuclear e a ecolgica, que seriam impossveis sem o desenvolvimento da cincia. Para ele, preciso reconhecer a disjuno entre a subjetividade humana, reservada poesia e filosofia, e a objetividade do saber, caracterstico da cincia. Esta disjuno permite que a cincia crie os modos mais refinados para conhecer todos os objetos possveis, mas a torna cega para a subjetividade humana e em relao ao prprio avano da cincia, que sem se conhecer, tambm no pensa nos mtodos de que dispe para este avano (MORIN, 2005, p. 72).A viso cientfica clssica determinista e reducionista elimina a conscincia, o sujeito e a liberdade, afirma Morin. A responsabilidade s acontece a partir do ser humano, mas as cincias humanas compartimentadas pela hiperespecializao desintegram a noo de homem, por vezes trocando sua presena por uma noo de comportamento ou pulso. Dessa forma, Morin entende que no possvel conceber a responsabilidade humana, tanto quanto no se concebe o prprio homem (2005, p. 72).Diante de uma situao quase sem sada, Morin lembra que os cientistas no so apenas cientistas e conta com o fato de que eles tm uma vida dupla, ou tripla, sendo pessoas privadas, cidados, seres que possuem convices metafsicas ou religiosas. Sob imperativos morais humanistas e/ou religiosos eles no se tornam frios e insensveis, ou para resumir numa palavra de acordo com o debate proposto, antiticos. Parafraseando Schneider (2013, p. 58), quais so as vantagens e as desvantagens de ordem tica, poltica ou epistemolgica dos saberes serem compartimentados, isolados em departamentos, em reas e outras divises encontradas nas universidades, nos institutos de pesquisa, nas agncias de fomento que classificam os saberes em listas de grandes reas, reas e subreas? Qual a razo da fragmentao dos saberes, alm da fragmentao dos poderes que ento podem ser concentrados nas mos que forem mais vidas por eles?

Certamente a reflexo indica que necessrio superar os impasses ticos do campo cientfico para que a cincia da informao para a qual se conduzem as reflexes maiores para as quais se dirigem as proposies a seguir.

Ao considerar as afirmaes de Morin sobre o fato de que os cientistas so antes de tudo seres humanos e que isso possibilita que eles pensem alm do mtodo cientfico, prevendo conscientemente os riscos de suas descobertas ou experimentos cientficos, pode-se encontrar um caminho que reforce a potencialidade de que exeram a tica em seu trabalho. ento que retomamos o individualismo tico proposto tanto por Morin quanto por Steiner. Assim, algumas afirmaes de Morin so devem ser retomadas para que se entenda qual seu entendimento sobre o individualismo tico. Ele acredita que inicialmente existe uma harmonia preestabelecida que estimula os indivduos a aderirem a uma tica de solidariedade dentro de uma comunidade e que leva a sociedade a impor aos indivduos uma tica de solidariedade. Este pensamento leva a considerar a moral como natural ao homem, pois corresponde ao seu comportamento como individuo incluso numa sociedade. No entanto, o egosmo e o egocentrismo se exacerbam numa sociedade competitiva que estimula a rivalidade e a competio. Consequentemente, a sociedade no consegue mais impor as suas normas ticas.Para que o ser humano atingisse sua autonomia moral, foi necessrio o desenvolvimento de sua individualidade que trouxe junto com esta autonomia a possibilidade do egosmo e do egocentrismo j citados acima. Morin ento tece uma reflexo sobre este caminho que o homem e a sociedade perfazem nessa evoluo e conclui que necessria uma superao que una indivduo/sociedade/espcie para alm das oposies e antagonismos dessa relao trinitria.

Se o desenvolvimento do individualismo para atingir a autonomia apresenta aspectos antagnicos, como o enfraquecimento da tutela comunitria que conduz ao mesmo tempo ao universalismo tico quanto ao desenvolvimento do egocentrismo, preciso apelar para as razes e fontes da tica que esto presentes como sentimento de dever, obrigao moral. No entanto, deve-se compreender que nesse ponto, segundo Morin, a tica s tem a si mesma como fundamento, dependendo ento da vitalidade do circuito indivduo/espcie/sociedade, que por sua vez depende da vitalidade da tica: o ato moral um ato de religao: com o outro, com uma comunidade, com uma sociedade e, no limite, religao com a espcie humana (Morin, 2005, p. 29). Portanto, no se trata de encontrar um novo fundamento para a tica, mas ao mesmo tempo, de dar-lhe novas fontes, novas energias e de regener-la no circuito de religao (p. 30). A forma de atingir este patamar leva a retomada de Steiner e Veiga. Para Steiner, o pensar colocado como instrumento humano para compreenso das coisas, da realidade. Para compreend-lo preciso pensar sobre ele como sobre qualquer outro objeto. Conceitos e ideias so caracterizados por serem correlaes em si. Qualquer contedo do pensar uma relao que se manifesta conscincia de forma diferente do que surgem as percepes. Estas so recebidas prontas enquanto conceitos e ideias so elaborados pela prpria atividade pensante. Conceitos e ideias no podem ser acolhidos prontos. Eles precisam ser produzidos e o xito dessa produo consiste em se visualizar a ordem intrnseca desse contedo pensado. Seguindo-se essa ordem, prpria ao conceito intudo, segundo Steiner (1985), alcana-se o pensar lgico.

Steiner (1985) afirma que com o ato cognitivo revelando-se como participao autoconsciente da realidade, o indivduo pensante aprende a intuir, ao longo da vida, quais so os elementos ordenadores subjacentes realidade externa, superando assim as desconexes das impresses sensrias. O desafio que vem dessa multiplicidade de dados desconexos desenvolve a capacidade intuitiva, na medida em que exige um esforo de captao de ideias e conceitos que expliquem a realidade circundante. O homem que assumir esse desafio cresce em sua capacidade cognitiva.

A partir desse crescimento cognitivo, a liberdade surge, na viso steineriana, sob a forma de uma autonomia que o sujeito pensante adquire praticando os passos de desenvolvimento do conhecimento aqui proposto. A ao humana, visando realizao do que ainda est em potncia, modifica aquilo que dado pela realidade circundante atravs da percepo. Essa ao verte do agente para o mundo a partir de impulsos nascidos em seu interior. Mas o que o impulsiona? De onde nasce essa ao? O homem livre em seu agir? O que ele quer com suas aes? Qual sua meta? A estas questes Steiner responde:

(...) consequncia importante, para as normas do nosso agir e para os nossos ideais morais, o fato de estes tampouco poderem ser considerados como a imagem de algo exterior a ns, mas como algo existente somente dentro de ns. Com isto igualmente negada a existncia de uma potncia cujos mandamentos deveriam ser as nossas leis morais. Desconhecemos um imperativo categrico como que uma voz do alm a nos prescrever o que deveramos ou no fazer. Os nossos ideais morais so livremente produzidos por ns prprios. S devemos executar o que ns mesmos nos impomos como norma para nossa atuao. A viso da verdade como sendo um ato de liberdade fundamenta, pois, tambm uma tica cuja base a personalidade totalmente livre. (STEINER, 1985, p. 10)

Para Steiner isso s se aplica quela parte do atuar humano cujas leis so compreendidas pelo agente em seu contedo ideal, isto , em sua essncia, atravs de um conhecimento perfeito. Enquanto essas leis so aceitas apenas como motivos naturais ou conceitualmente confusos, h margem para que algum, tido como espiritualmente superior, reconhea a necessidade da aplicao de tais leis sobre esse agente individual. Este ento tem a sensao de que alguma coisa agiu de fora sobre ele, coagindo-o. Se, ao contrrio, o homem consegue penetrar o motivo de sua ao, reconhecendo-o claramente, realiza uma conquista no campo da liberdade.

Steiner (1988) acredita na existncia de uma linha tnue que diferencia o indivduo que atua sob a represso de seus instintos e aquele que deixe de faz-lo por uma moralidade intrnseca ao seu entendimento. O ser realmente tico livre, pois est agindo a partir de impulsos determinados de instncias autoconscientes. Somente um impulso produzido pelo prprio indivduo produz um desenvolvimento processual capaz de torna-lo livre de coaes. Isso ocorre atravs do caminho cognitivo proposto nA Filosofia da Liberdade que, segundo Steiner, ocorre pela intuio consciente. Esta a intuio que nasce da ordenao das percepes desconexas captadas pelos sentidos. Por ser uma produo autenticamente individual, deve, por isso, ser conquistada no contexto existencial de cada um. A existncia humana admitida como um caminho de conquista da prpria individualidade. Segundo Veiga:

O individualismo baseado na intuio tico porque se baseia num princpio segundo o qual o indivduo coincide com o elemento universal ordenador que se manifesta no pensar sob forma autoconsciente. O homem que segue suas intuies conscientes segue os impulsos e as metas que so prprias da ordem do Universo. Ele segue a vontade de Deus; como dizem as Escrituras, contudo no retornando ao estado inicial, mas incorporando ao Universo um elemento novo: o homem livre! (VEIGA, 1994, p. 13)

Em breves linhas gerais se resume o que Rudolf Steiner expressa quanto ao individualismo tico e a prpria formao da tica na conscincia individual. No que tange cincia da informao, e particularmente cincia e sua popularizao, possvel pensar em como a tica pessoal, ou a postura de individualismo tico podem contribuir na medida em que o sujeito atuante como pesquisador e divulgador tem que ter uma fundamentao slida como sua base formativa/cognitiva.

Se for verdade que s o indivduo tico pode exercer a tica, ento entender este processo torna-se fundamental. Conforme Schneider (2013, p. 62), um vislumbre da dimenso epistemolgica da tica cujo produto consiste na fundamentao racional do problema do bem e da poltica pois foi colocado o problema do conhecimento racional de como atingir ou produzir este bem, compreende-se aqui que est apresentada uma gnese da tica humana, que pode ser aprofundada pela leitura dos autores utilizados.Espera-se que com isso se contribua para o debate da tica na interface com a poltica e a epistemologia e consequentemente para a atuao no campo da cincia, da cincia da informao e da divulgao cientifica em geral.REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

DURAND, Gilbert. Science de lhomme et tradition le nouvel esprit antrhopologique. Paris: Berg Internacional diteurs, 1979.MORIN, Edgar. O Mtodo 6: tica. Traduo Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. 2 edio. SCHNEIDER, Marco Andr Feldman. tica, Poltica e Epistemologia: interfaces da informao. In ALBAGLI, Sarita (org.). Fronteiras da cincia da informao. Braslia, DF: IBICT, 2013. ____________. Cincia com Conscincia. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.STEINER, Rudolf. A Filosofia da Liberdade. So Paulo: Ed. Antroposfica, 1988, 2 edio.

_____________. Verdade e Cincia. So Paulo: Ed. Antroposfica, 1985.

VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. SP, Ed. Antroposfica, 1994. Trabalho apresentado no GT6 tica, poltica e epistemologia da informao.

Prof. Dr. Rosely A. Romanelli, Adjunta nvel CIII na Universidade do Estado de Mato Grosso no Departamento de Jornalismo no campus de Alto Araguaia MT. HYPERLINK "mailto:[email protected]" [email protected]

Rudolf Steiner, filsofo austraco que viveu de 1861 a 1825 e que criou a Antroposofia, um sistema de ideias que liga a cincia e a vida espiritual e afetiva do ser humano como forma de entendimento e compreenso da vida.

Marcelo da Veiga, filsofo e pensador teuto-brasileiro que se dedica divulgao do pensamento de Rudolf Steiner.

As ideias apresentadas sobre Rudolf Steiner e Antroposofia fazem parte da pesquisa da autora em nvel de mestrado e doutorado.

Gilbert Durand um pensador francs que elaborou a Antropologia do Imaginrio, cujos estudos permitem o entendimento do homem como um ser alm do seu aspecto fsico, e por isso auxilia a compreenso da filosofia steineriana, juntamente com Morin e Veiga, entre outros. O ponto em comum entre eles a possibilidade de compreender o conhecimento para alm do aspecto intelectual.

Termo utilizado por Morin.