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PATRIMÔNIO, UMA NOÇÃO COMPLEXA, IDENTITÁRIA E CULTURAL I. Uma noção de patrimônio cultural - Nossos antepassados tinham uma história viva, que é testemunhada pela herança deixada através de documentos, objetos, sítios, conjuntos urbanos e referências imateriais às suas formas de viver, criar e fazer. Dessa forma, o patrimônio cultural tem uma carga identitária como testemunho da formação de um povo ou de um país, ou seja, de sua existência coletiva, pois, como lembra Fernando Ainsa 1 , “cada época histórica tende a criar sua própria singularidade, seu modo de viver e pensar, seu sistema fechado de referências, sua clausula protetora diante das mudanças”. As declarações, convenções e pactos internacionais sobre direitos humanos consagram a diversidade cultural como uma questão fundamental, vinculada à pessoa humana, na medida em que reconhecem os direitos culturais como universalmente válidos, como ocorre, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948); na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), no Protocolo de San Salvador sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), entre outros. Por isso, falar de patrimônio cultural é falar de valores. “A conservação ou a degradação do patrimônio, sua sacralização ou sua destruição são significativas da atitude das sociedades em relação à sua própria história e aos seus próprios valores culturais”, 1 AINSA,Fernando, El destino de la utopia latinoamericana como interculturalidad y mestizaje, in Hacia una Mundialización Humanista, Paris, Ed. Unesco, 2003, p. 184. 1

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PATRIMÔNIO, UMA NOÇÃO COMPLEXA, IDENTITÁRIA E CULTURAL

I. Uma noção de patrimônio cultural -

Nossos antepassados tinham uma história viva, que é testemunhada pela herança deixada através de documentos, objetos, sítios, conjuntos urbanos e referências imateriais às suas formas de viver, criar e fazer.

Dessa forma, o patrimônio cultural tem uma carga identitária como testemunho da formação de um povo ou de um país, ou seja, de sua existência coletiva, pois, como lembra Fernando Ainsa1, “cada época histórica tende a criar sua própria singularidade, seu modo de viver e pensar, seu sistema fechado de referências, sua clausula protetora diante das mudanças”.

As declarações, convenções e pactos internacionais sobre direitos humanos consagram a diversidade cultural como uma questão fundamental, vinculada à pessoa humana, na medida em que reconhecem os direitos culturais como universalmente válidos, como ocorre, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948); na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), no Protocolo de San Salvador sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), entre outros.

Por isso, falar de patrimônio cultural é falar de valores. “A conservação ou a degradação do patrimônio, sua sacralização ou sua destruição são significativas da atitude das sociedades em relação à sua própria história e aos seus próprios valores culturais”, conforme observa Jean-Jacques Aillagon2. A fragilidade da memória está intimamente ligada à problemática da identidade.

A proteção dos bens culturais, aponta Edwin R. Harvey3, “remonta a tratados e convenções, destinados a preservar, em tempo de paz e de guerra, os bens que testemunham a identidade cultural das nações, dentro do marco de diversidade cultural próprio da internacionalização da vida moderna”.

O que hoje conhecemos como patrimônio não é o mesmo que era há vinte ou cinquenta anos atrás e, provavelmente, não será o mesmo daqui a vinte anos. Conforme Bachoud, Jacob e Toulier4, a noção de patrimônio cultural sofreu uma grande

1 AINSA,Fernando, El destino de la utopia latinoamericana como interculturalidad y mestizaje, in Hacia una Mundialización Humanista, Paris, Ed. Unesco, 2003, p. 184. 2 AILLAGON, Jean-Jacques, Patrimoine et passions identitaires, Paris, Librairie Arthème Fayard, 1998, p. 299.3 HARVEY, Edwin R., Hacia un instrumento jurídico normativo internacional de la diversidad cultural, in Hacia una mundialización humanista, Paris, Ed. Unesco, 2003, p. 122.4 BACHOUD, Louis, JACOB, Philippe e TOULIER, Bernard, Patrimoine culturel bâti et paysager – classement, conservation, valorisation, 1er édition, Paris, Delmas, 2002, p. 11.

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expansão em menos de um século. Não só as obras monumentais, mas também os sítios e centros históricos e, finalmente, a própria natureza passaram a integrá-lo.

Como acumulação contínua de bens diversificados, que pertencem ao passado de uma comunidade, o patrimônio cultural engloba desde obras de arte, até bens de natureza imaterial, que sejam portadores de referência à identidade, à ação e à memória de um povo, incluindo os sítios urbanos e de valor histórico, os bens integrantes do patrimônio paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico5. Ou seja, são trabalhos e produtos de todos os conhecimentos e modos de vida dos homens, como diz Françoise Choay6, como expressão de sua memória viva.

Bens que não são, propriamente, culturais, como por exemplo, uma paisagem, podem ser considerados importantes para a representação e para a memória de uma sociedade e, assim, passarem a integrar a grande família do patrimônio cultural. Isto é, um patrimônio não cultural pode vir a sê-lo, através da intervenção voluntária de uma pessoa ou de uma comunidade.

II. Instrumentos internacionais de proteção - patrimônio mundial cultural e natural –

A Conferência das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, reunida em Paris, de 17 de outubro a 21 de novembro de 1972, adotou a Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, à qual o Brasil aderiu em 1977, através do Decreto nº 80.978, que simboliza essa expansão ecumênica da noção de patrimônio, de que falamos. Trata-se do mais geral e do mais importante instrumento internacional sobre a matéria. Primeiro, porque reúne, num mesmo instrumento, as noções de cultura (art. 1º) e natureza (art. 2º) e, segundo, porque introduz o conceito de patrimônio mundial.

Outras convenções da Unesco também, cuidam da preservação de bens culturais, como a convenção sobre a proteção de bens culturais em caso de conflitos armados – a chamada Convenção de Haia - de 1954; a Convenção que visa reprimir o tráfico ilícito de bens culturais, estabelecida em 1970, em Paris; a Convenção sobre o patrimônio cultural subaquático, de 2001, e a recente convenção para proteção do patrimônio imaterial, de 2003. Vale lembrar, ainda, a existência de outros instrumentos, como a Recomendação sobre a salvaguarda da cultural tradicional e popular, de 1989, a Convenção UNIDROIT, de 1995, sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados, etc.

Diz o preâmbulo da Convenção de 1972, que os bens integrantes do Patrimônio Mundial são “únicos e insubstituíveis”, dotados de “interesse excepcional”, o que determina sua preservação como patrimônio de toda a humanidade.

Conforme Manuela Galhardo 7, trata-se do reconhecimento de que o Patrimônio Mundial, cultural e natural, “é constituído por bens de interesse excepcional, de 5 Constituição Federal, art. 216.6 CHOAY, Françoise, L´allégorie du patrimoine, Paris, Seuil, 1992, p. 9.

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valor universal, por vezes testemunhos únicos, respeitando critérios de autenticidade e de integridade, e que devem ser considerados pertença não apenas do Estado em que se encontram, mas de toda a humanidade, pretendendo-se que toda a humanidade se envolva na sua defesa e salvaguarda, de modo a assegurar sua transmissão às gerações futuras”. As responsabilidades são comuns, embora diferenciadas, a exemplo daquelas que estão, também, consagradas em todas as convenções internacionais sobre meio ambiente, firmadas após 1980.

III. Patrimônio cultural e patrimônio natural -

A Convenção da Unesco, de 1972, distingue, para fins de proteção, as noções de cultura e natureza.

1. Patrimônio cultural -

Segundo o artigo 1º da Convenção, são considerados patrimônio cultural: a) os monumentos – obras de arquitetura, de escultura ou de pintura monumentais; elementos ou estruturas de caráter arqueológico; inscrições, grutas e grupos de elementos, que têm um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) os conjuntos – grupos de construções isoladas ou reunidas, que, em razão de sua arquitetura, de sua unidade, ou de sua integração na paisagem, têm um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) os sítios – obras do ser humano, ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como zonas, incluindo os sítios arqueológicos, que têm um valor universal excepcional do ponto de vista estético, etnográfico ou antropológico.

As paisagens culturais são a forma mais visível de interação entre o meio ambiente e o patrimônio cultural. Trata-se de conceito que inclui uma grande variante de bens culturais, dividida, essencialmente, em três subgrupos8:

a) a paisagem claramente definida, que foi concebida intencionalmente pelo ser humano, tal como os jardins e os parques de grande valor estético, muitas vezes associados a construções ou conjuntos religiosos;

b) a paisagem essencialmente evolutiva, viva ou evidenciando características fósseis, que apresente provas de sua evolução através dos tempos e continue a ter um papel socialmente ativo;

c) a paisagem associativa, justificada pela associação de fenômenos religiosos, muitas vezes simbólicos, aos bens naturais.

7 GALHARDO, Manuela, As convenções da UNESCO no domínio do patrimônio cultural, in Direito do Patrimônio Cultural, Lisboa, INA – Instituto Nacional de Administração, 1996, p. 97.8 GALHARDO, op. cit., p. 102.

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As paisagens culturais são, portanto, obras que revelam uma combinação da ação do homem com a natureza, “cobrindo uma grande variedade de manifestações de influência recíproca do ser humano e do seu meio natural. Ilustram a evolução da sociedade e dos povoamentos humanos ao longo dos tempos, sob a influência de condicionamentos e características do meio natural, das forças sociais, econômicas e culturais”.9 São, entretanto, variantes dos bens culturais, como demonstra a inscrição do Parque Nacional de Serra da Capivara, como bem cultural, e não natural ou misto, em virtude da existência, em sua área, de pinturas rupestres, “testemunhas excepcionais de uma das mais antigas comunidades humanas da América do Sul”.

Um exemplo brasileiro - o caso da Igreja de São Pedro –

Por solicitação do Procurador da República Paulo Vasconcellos Jacobina e visando instruir inquérito civil em andamento, analistas periciais da 4 ª CCR (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural) e da 6a CCR (Índios e Minorias) elaboraram estudo, visando a recuperação da Igreja de São Pedro, localizada na Ilha do mesmo nome, no Estado de Sergipe. Eis o conteúdo da Nota Técnica Conjunta10:

A Igreja de São Pedro situa-se na parte mais central e elevada da Ilha de São Pedro, à margem direita do Rio São Francisco na Terra Indígena Caiçara, no Estado de Sergipe.

A vegetação do entorno é típica de caatinga, arbustiva, rala, composta de plantas adaptadas às estiagens prolongadas. Há ocorrência importante de cactáceas,  com predominância de palmas e mandacarus.   

O clima é semi-árido, característico do sertão, prolongando-se o período de seca por sete a oito meses.

Segundo documentos históricos, a Igreja foi erguida, no século XVII, pelos missionários Capuchinhos da missão francesa, nas terras que receberam do morgado da região de Porto da Folha, como recompensa por expulsarem os holandeses que ocupavam a área do baixo São Francisco. Essa recompensa foi oficializada em 1700, quando o rei ordenou fosse doada a cada aldeia uma légua de terra em quadro para os índios Aramurus e os missionários. Paralelamente, a ação missionária dos Capuchinhos fazia-se presente na aldeia de Pacatuba, em Sergipe, onde habitavam os índios isolados Ceocoses ou Xocó. Essas aldeias eram catequizadas e administradas pelos missionários capuchinhos ali residentes.

No século XIIII, os índios Aramurus foram expulsos da légua de terra a eles doada e incorporados à aldeia Pacatuba. Na primeira década do século XIX, a missão dos Capuchinhos ficou submetida à transferências de índios de outras aldeias para São 9 GALHARDO, op. cit., p. 101.10 Nota Técnica Conjunta n. 1, de abril de 2003, firmada por Angela Maria Baptista – Antropóloga/6ª CCR/MPF; Cláudia Márcia Freire Lage – Arquiteta/PR/MG/MPF e Luciana Sampaio – Arquiteta/4ª CCR/MPF.

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Pedro e vice-versa, de acordo com as ordens e interesses dos senhores brancos. Por essa ocasião, deu-se a saída dos missionários da área e os índios ficaram submetidos às ordens dos morgados.

Em 1845-1878, verificou-se o retorno da missão à área. Entretanto, por volta de 1897, através de aforamentos, João Porfírio de Brito, conhecido como Coronel, assenhoreou-se das terras dos índios e, com o uso da violência, expulsou os Xocó da área, que foram obrigados a ir para Alagoas, onde foram acolhidos pelos Kariri. Consta que algumas famílias persistiram e permaneceram na Ilha, trabalhando como escravos de João de Brito. Durante um período de cerca de cem anos, os índios foram impedidos de freqüentar a Igreja e fazer suas orações, de receberem padres e bispos para celebrar missas ou recebê-los em suas casas. As famílias indígenas foram aumentando e, com a ajuda de todos os que foram para Alagoas, se organizaram e, em 1978, resolveram reconquistar a terra da Ilha de São Pedro, na antiga missão de Porto da Folha. Sofreram perseguições e ameaças dos jagunços de fazendeiros. Consta, ainda, que, quando retomaram à Ilha, os índios não tinham casa e viviam debaixo dos pés de pau. Enquanto alguns dormiam, outros vigiavam para não serem mortos pelos fazendeiros. Os fatos e a situação vivenciada pelos Xocó foram ganhando espaço nos meios de comunicação e sensibilizando o governo de Sergipe. Assim, em dezembro de 1979, a Ilha foi desapropriada e doada, em 1980, pelo Governo de Sergipe à União, para uso da Funai. O Decreto de nº 401/91 homologou a demarcação e uniu a Terra Indígena Caiçara à Ilha de São Pedro, com uma área de 4.17 ha. Atualmente, lá estão aproximadamente 300 índios, que já não falam a língua original, mas o português regional.

O núcleo de habitações principal forma-se em função do conjunto setecentista constituído pela Igreja de São Pedro e ruínas do antigo Hospício11 e remete ao partido clássico do “quadrado” das missões jesuíticas. É composto por edificações dispostas ordenadamente em forma de quadra, delimitando a grande praça central. A Igreja situa-se em um dos vértices, em posição de destaque, ao lado das ruínas do antigo Hospício, e as residências perfazem a disposição ortogonal. Há, ainda, o cemitério, que, ao que tudo indica, faz parte do conjunto original da Igreja, estando localizado aos fundos e guardando uma certa distância do monumento.

Os Xocó edificaram suas casas, recuperando suas terras, légua por légua, em quadro em torno da Igreja, fazendo, ao que parece, proveito dos alicerces e ruínas das construções erguidas no século XVII, para uso dos índios e dos missionários capuchinhos. Assim, a disposição espacial das habitações possui formação semelhante à existente àquele tempo: uma ao lado da outra, em formato de ferradura, com a parte fechada voltada em direção à Igreja, de forma a incluí-la no cerco das moradias. Na abertura da “ferradura”, em frente à Igreja, encontrava-se a Casa do Império, que, dizem, teria hospedado Dom Pedro II.

As residências assemelham-se em volume, apresentam o mesmo nível de cota de soleira e há uniformidade na altura. As edificações estão dispostas linearmente, sem recuo frontal, desprovidas de marquises ou varandas, não havendo espaço intermediário entre o ambiente interno, privado, e o externo, público. O espaço íntimo abre-se diretamente para a praça central.

11 Ruínas da edificação que abrigava a hospedaria e residência dos jesuítas.

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A praça central consiste em grande área coberta, cujo solo arenoso não favorece o cultivo de forrações vegetais. Ainda assim, notam-se gramíneas esparsas em determinadas áreas do solo. Algumas árvores, como as tamarineiras, plantadas pelos antepassados, estão dispostas, pontualmente na praça, distanciadas alguns metros das edificações. No centro da praça, eqüidistante das edificações, situa-se a caixa d'água, cilíndrica, estruturada em concreto.

Em 1982, os Xocó colocaram, em frente ao cruzeiro da Igreja, a estátua de um índio primitivo, pintado de marrom, usando tanga e cocar de penas, em posição corporal de lançar flecha. Entre os seus pés, existe uma cobra de boca aberta. A cobra pode ter vários significados: a resistência dos Xocó, firmando sua presença na Ilha de São Pedro e seu direito à terra; a relação que mantêm com a Igreja de São Pedro, após a proibição, imposta pelos brancos que permaneceram na Ilha, de rezar e mostrar a sua devoção pelo santo padroeiro. Esse simbolismo é constatado no trecho de uma carta do vice-cacique Xocó da Ilha de São Pedro, João Apolônio12:

“(...) no ano de 1979, a 8 de setembro quando chegamos na ilha só encontramos a igreja, o cemitério e as ruínas do convento que foi deteriorada pela família Britto. Não tinha nenhuma casa, ficamos nos pés de pau. Tomando sol e chuva, isso foi quase um ano. (...) Apesar desse sofrimento todos nós não desanimamos, só tinha um sentido, era de conquistar a” ilha “. Aí foi quando os Britto colocaram pistoleiros e não foi tomada nenhuma providência por parte da justiça. Ficamos firmes na luta. Veio 7 de setembro de 1979 quando o governo do Estado de Sergipe desapropriou a” Ilha “, pagando aos Britto a quantia de dois milhões e quatrocentos mil cruzeiros. Ficamos sendo intimados pelo juiz de Porto da Folha. Essas intimações eram porque o gado dos Britto entrou na nossa área e estragou nossa lavoura. Nós demos parte e não foi tomada nenhuma providência. Ai resolvemos tomar as providências. Tínhamos uma cobrinha que estamos criando com muito carinho e resolvemos soltá-la para matar o gado dos brancos que estava entrando nas nossas roças, e não deu outra coisa e não ser gado morto. (grifos nossos) Ai a pressão aumentou. Nós sentimos que a justiça estava perdendo para o lado dos Britto, nós tomamos uma outra decisão, de deixar a terra caiçara.”

A Igreja não tem significado apenas físico para os Xocó. Seu espaço é utilizado, à noite, para os ofícios religiosos, quando a presença feminina é mais marcante. Uma vez por mês, a missa é celebrada por um padre. Celebram as festas do padroeiro, no dia 29 de junho, a Semana Santa e o dia 9 de setembro, data da retomada das terras.

A grande maioria dos povos latinoamericanos estão enraizados em culturas ligadas a uma área geográfica particular, a uma história, a valores e a crenças próprias. Por isso, “cada cultura é um valioso tesouro para a humanidade” e “o direito de cada grupo humano de eleger e assumir sua própria cultura é um compromisso que deve ser respeitado em escala planetária”, conforme as palavras de Edgard Montiel13.

A cultura está em permanente construção. Ela é também criatividade e os membros do corpo social participam dessa criação coletiva.Por isso, o patrimônio cultural é um elemento de aproximação nas sociedades heterogêneas. As sociedades ocidentais atuais se tornam, cada vez mais, pluriculturais e pluriétnicas.

12 Carta datada de 9 de dezembro de 1984, publicada no ACONTECEU – Povos Indígenas no Brasil, 1984, CEDI, p. 17913 MONTIEL, Edgard, La diversidad cultural en la era de la globalización, in Hacia una Mundalización Humanista, Paris, Ed. Unesco, 2003, p. 18/19.

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2. Patrimônio natural –

Os chamados bens naturais, segundo o art. 2º da Convenção, abrangem as seguintes categorias de classificação: a) os monumentos naturais; b) as formações geológicas e fisiográficas e c) os sítios naturais. Para justificar o valor universal excepcional, devem ser bens que representem o estado evolutivo da terra; correspondam a processos ecológicos e biológicos; contenham habitats naturais, importantes para a conservação da diversidade biológica, ou, simplesmente, representem fenômenos naturais ou áreas de grande beleza natural e importância estética. Para a inscrição dos bens naturais, não se cogita da influência do ser humano sobre o meio.

É possível que determinados bens sejam simultaneamente passíveis de inscrição como bens culturais e bens naturais, por se inserirem nos dois critérios, como é o caso das ruínas de Machu Picchu no Peru. São os chamados bens mistos. Existem, hoje, pouco mais de 20 bens inscritos como tal, dentre os bens integrantes do patrimônio mundial material, que já somam mais de 500.

IV. Princípios contidos na Convenção da Unesco de 1972 –

1. A solidariedade planetária em relação à preservação e à transmissão às gerações futuras de nosso patrimônio cultural comum -

Ainda que seja difícil, em muitos casos, identificar o que seja valor excepcional, já que se trata de um critério fluido14, o importante é que a Convenção da UNESCO de 1972 introduziu a noção de solidariedade planetária em relação à preservação e à transmissão às gerações futuras de nosso patrimônio cultural comum, afirmando que natureza e cultura são complementárias e que a identidade cultural está profundamente ligada ao meio ambiente natural no qual ela se desenvolve.

O preâmbulo da Convenção alerta para o fato de que o patrimônio cultural e o patrimônio natural estão cada vez mais ameaçados de destruição, não só pelas causas tradicionais de degradação mas principalmente pela evolução da vida social e econômica, que agrava essas causas através de fenômenos de alteração ou de destruição.

Também a Declaração de Estocolmo, que decorreu da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente, realizada no mesmo ano de 1972, consagrou o dever solene do ser humano de proteger e preservar o meio ambiente para as gerações futuras, afirmando seu direito a um ambiente cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar.

14 CHOAY, op. cit., p. 160.

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O preâmbulo da Declaração de Estocolmo parte da constatação de que o homem é ao mesmo tempo criatura e criador de seu meio ambiente e de que tanto os elementos naturais quanto aqueles que envolvem a participação humana são indispensáveis ao bem-estar e ao pleno exercício dos seus direitos fundamentais. Citando as palavras de Michel Prieur15, “no plano dos grandes princípios jurídicos internacionais, se a Declaração de Estocolmo permanece como um ato de orientação e um programa de ação (e não um texto obrigatório), ela enuncia, entretanto, princípios em matéria de cooperação internacional que, se não são verdadeiramente novos, merecem todavia ser valorizados.

O reconhecimento do direito das gerações futuras está presente, também, na Declaração da Conferência das Nações Unidas do Rio de Janeiro, de 1992. Alexandre Kiss entende que esse conceito coloca algumas dificuldades, que precisam ser enfrentadas. Diz ele: “Em primeiro lugar, os termos `gerações futuras´ não são definidos: inexistem gerações distintas, a humanidade deve ser comparada não a uma escada, cujos degraus serão necessariamente separados, mas a um rio que corre permanentemente, sem que se possa distinguir as diferentes gotas que o compõem. Para a ciência jurídica, melhor seria falar de `direitos da humanidade presente e futura´, o que implica no reconhecimento de direitos à humanidade, sujeito de direito.”16

Para Kiss o conceito de direitos da humanidade futura necessita de sua transposição para a ordem jurídica, levando à criação de procedimentos e instituições próprias, que garantam o seu respeito. As necessidades das gerações futuras não serão obrigatoriamente as nossas e não é possível saber se elas aceitarão que uma parte do mundo seja transformada em “um imenso museu, cheio de um número sempre crescente de monumentos, sítios históricos ou mesmo de zonas naturais protegidas”17, a menos que lhes seja assegurada a mesma possibilidade de escolha, que presume a existência de recursos naturais suficientes, como hoje nós possuímos.

Merece destaque a reflexão feita sobre o tema por Cançado Trindade18, quando diz que “parece estar ocorrendo ultimamente uma evolução da noção de patrimônio comum da humanidade (....) à de interesse comum da humanidade”. Isso muda “a ênfase da partilha de benefícios resultantes da exploração de riquezas ambientais a uma partilha justa ou equitativa das responsabilidades na proteção ambiental, e a necessárias ações concertadas neste propósito com uma dimensão social e temporal. (.....) Assim como o direito, ou a própria norma jurídica, não opera em um vácuo, a humanidade (mankind, human kind) não é uma abstração social nem jurídica: compõe-se de coletividades humanas, de todos os seres humanos de carne e osso, vivendo em sociedades humanas.”

15 PRIEUR, Michel, Droit de l´environnement, 4ª ed., Dalloz, Paris, p. 40/41.16 KISS, Alexandre e BEURIER, Jean-Pierre, Droit Internacional de l´Environnement, 2ª ed., Ed. Pedone, Paris, 2000, p. 134.17 KISS e BEURIER, op. cit., p. 134.18 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, Direitos Humanos e Meio Ambiente – paralelo dos sistemas de proteção internacional, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993, p. 47/48.

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No mesmo sentido, Lyndel Prott19 observa que, “quando se busca proteger a relação entre os povos tradicionais e seu patrimônio biológico, botânico ou mitológico, através de um discurso de direitos, não se faz justiça a essas sociedades, porque não teríamos como regrar, realmente, a questão, isolando este ou aquele aspecto dos demais.” Os imperativos ambientais nos permitem compreender que uma ética impõe o dever de sermos guardiães da terra para deixarmos às gerações futuras um planeta viável e há muitas maneiras de proteger os aspectos ameaçados de uma cultura que a humanidade deseja preservar.

2. Responsabilidade dos Estados em relação aos bens que integram seu patrimônio cultural e proteção além dos limites da jurisdição nacional -

O artigo 4º da Convenção da UNESCO, de 1972, estabelece que, na tutela do patrimônio cultural, cabe aos Estados a responsabilidade sobre os bens que integram seu próprio patrimônio. Os Estados têm o dever de identificar, proteger e valorizar o patrimônio cultural e natural situado em seu território.

Também a convenção de Haia, sobre proteção de bens culturais em

caso de conflitos armados, no seu art. 3º, diz que as partes contratantes se comprometem a preparar, desde os tempos de paz, a salvaguarda dos bens culturais situados em seu território contra os efeitos previsíveis de um conflito armado, adotando as medidas que julgarem convenientes para tanto.

Por outro lado, o Estado parte é a única entidade que está legitimada a apresentar o dossier de candidatura dos bens que julga passíveis de integrar a Lista do Patrimônio Mundial. De igual forma, cabe a ele preservar as características que motivaram a inscrição do bem, uma vez que a inscrição não é eterna e, se em virtude de excessiva deterioração, houver a perda das características que a motivaram, é possível a exclusão da Lista.

Lembra Paulo Affonso Leme Machado20 que, “como não se internacionaliza o bem classificado na “lista do patrimônio mundial” ou “lista do patrimônio mundial em perigo”, também não pode o país onde esteja situado esse bem transferir suas responsabilidades administrativas e financeiras de conservação para a UNESCO.” Classificar como patrimônio mundial é diferente de classificar como patrimônio internacional.

A Convenção de Haia, sobre a proteção da propriedade cultural em caso de conflito armado, estabelecida em 1954, e a Convenção de Paris, sobre as medidas destinadas a proibir e impedir a importação, exportação e transferência ilícitas da propriedade cultural, estabelecida em 1970, também criaram instrumentos normativos internacionais de proteção do patrimônio cultural, além dos limites da jurisdição nacional.19 PROTT, Lyndell, S´entendre sur les droits culturels, in Pour ou contre les droits culturels?, Paris, Ed. Unesco, 2000, p. 280.20 LEME MACHADO, Paulo Affonso, Direito Ambiental Brasileiro, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 924.

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Segundo o art. 4º da Convenção de Haia, os Estados se comprometem a respeitar os bens culturais situados no território dos outros convenentes, proibindo a utilização de tais bens, seus dispositivos de proteção e seus entornos em atividades que possam expô-los à destruição ou à deterioração, em caso de conflito armado.

Por sua vez, o art. 2o da Convenção de Paris, de 1970, diz que os Estados reconhecem que a importação, a exportação e a transferência de propriedade ilícitas dos bens culturais são uma das causas principais do empobrecimento cultural do país de origem destes bens e que a colaboração internacional constitui um dos meios mais eficazes de proteger os bens culturais contra todos os perigos que daí derivam.

3. Cooperação internacional –

Diz o art. 6.1 da Convenção da Unesco de 1972, que os Estados partes reconhecem a existência de um patrimônio universal, para cuja proteção toda a comunidade internacional tem o dever de cooperar.

O art. 7 fala de um sistema de cooperação e de assistência internacional, visando secundar os Estados partes nos esforços para preservação e identificação do patrimônio cultural e natural.

Um fundo, alimentado pelos Estados-partes e por doadores, o chamado “Fundo do Patrimônio Mundial”, contribui para a política de salvaguarda e de conservação dos bens culturais. Seus recursos são oriundos de contribuições obrigatórias e voluntárias dos Estados partes e de doações de outras entidades, públicas ou particulares. São aplicados, basicamente, em cinco formas de assistência, sendo a mais conhecida a Lista do Patrimônio Mundial em Perigo. O Fundo pode servir para a) elaboração de dossiers preparatórios, b) cooperação técnica, visando a conservação e a gestão dos bens inscritos; c) formação de pessoal especializado em todos os níveis, para identificar, proteger, conservar, valorizar e reabilitar o patrimônio cultural e natural, d) prestação de assistência de urgência, em caso de catástrofes naturais ou outras causas, visando salvaguardar um bem já inscrito; e) assistência a atividades de educação, informação e promoção, relativamente ao patrimônio cultural e natural.

Como exemplo de caso, onde a assistência de urgência, em caso de calamidade natural, se tornou necessária, lembro o da cidade de Goiás, que após ter sido inscrita na lista dos bens integrantes do Patrimônio Mundial, em 2002, foi atingida por uma forte enchente, que danificou cerca de oitenta casas, duas pontes, parte das margens do Rio Vermelho, a Cruz de Anhangüera e o Largo do Mercado21. Nessa ocasião, foram alocados recursos internos e internacionais para a realização das obras emergenciais e a elaboração de projetos de recuperação integral do sítio histórico.

21 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Relatório de Atividades 2001-2002.

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A Convenção para a proteção do patrimônio imaterial, estabelecida

em Paris, em outubro de 2003, em seu art. 19, igualmente, prevê a cooperação e a assistência internacionais, através da troca de informações, de experiências e de iniciativas comuns.

A cooperação, como nota José Rubens Morato Leite22, não é um monopólio do Estado, pois “trata-se (...) de um princípio que tem como fundamento um consenso com os diversos grupos sociais, impondo-se uma adequação dos diversos interesses relevantes.” Deve ser entendida como política solidária, que pressupõe ajuda, acordo, troca de informações e transigência quanto a um objetivo macro de toda a coletividade.

4. Informação e participação na formação das decisões administrativas –

A informação ao público e a participação nas decisões administrativas, que envolvem o patrimônio cultural, também foram contemplados.

O art. 27 da Convenção de Paris de 1972 atribui aos Estados partes o dever de informar claramente o público sobre as ameaças que pesam sobre o seu patrimônio e sobre as atividades empreendidas na aplicação dos dispositivos por ela previstos.

Também determina que os Estados partes empreendam todos os esforços, através de todos os meios apropriados, notadamente por programas de educação e de informação, para reforçar o respeito e a sensibilização de seus povos para o patrimônio cultural e natural. A informação, portanto, não tem apenas o objetivo de formar a opinião pública, mas também de sensibilizá-la para a preservação e a valorização dos bens integrantes do seu patrimônio cultural.

Bachoud, Jacob e Toulier23 entendem que os princípios contidos na Convenção de Paris de 1972, que vieram, inclusive, a ser consagrados em outras Convenções sobre patrimônio cultural, já se encontravam enunciados antes mesmo da consolidação dos princípios de direito ambiental, que lhes são correlatos.

V. Significado da inclusão de bens na Lista do Patrimônio Mundial -

Conforme aponta, com propriedade, Sandrine Maljean-Dubois24, “o direito internacional enfrenta um dilema. A necessidade de uma hierarquia e de uma imposição – para negociar, cooperar, definir os instrumentos de regulação e aplicá-los –

22 MORATO LEITE, José Rubens, Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 54/55.23 Op. Cit., p. 158.24 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine, La mise em oeuvre du droit international de l´environnement, Les Notes de l´Iddri nº 4, 2003, p. 24.

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nunca foi tão clara. Mas a sociedade internacional atual continua uma sociedade de justaposição de entidades soberanas não hierarquizadas, ainda marcada pelo primado do consentimento. Uma das características da ordem jurídica internacional, onde os Estados são os principais atores, é que estes últimos estão na origem na formação do direito – ao menos quanto às fontes clássicas – e estão encarregados da sua execução. Os Estados são livres para aderir ou não: aceitando as normas externas, eles se autolimitam. Salvo raríssimas exceções, numa lógica intersubjetiva, a concordância do Estado permanece apenas na origem das obrigações que assume. O voluntarismo impede o desenvolvimento de um direito comum.”

Não restam dúvidas de que a inclusão de bens, integrantes do patrimônio cultural ou natural, na Lista do Patrimônio Mundial não configura o tombamento desses bens, pois não há transferência de competências internas para a UNESCO, que é um organismo internacional. Os Estados continuam soberanos para decidir quais os bens que desejam preservar e valorizar. O próprio dossier de candidatura para inscrição de um bem na Lista do Patrimônio Mundial é de responsabilidade do país onde está localizado este bem.

As vantagens da inclusão na Lista são enumeradas por Paulo Affonso Leme Machado25 como sendo, basicamente, a obtenção de recursos financeiros, na promoção do bem como interesse turístico e a proteção do bem frente às pressões para sua deterioração.

Os países interessados, cujos bens tenham sido incluídos na Lista, podem solicitar assistência do Comitê Intergovernamental de Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, através do Fundo do Patrimônio Mundial.

Além disso, a inclusão de um bem na Lista do Patrimônio Mundial Cultural ou Natural representa uma promoção para o desenvolvimento do turismo na região onde se situa.

Bachoud, Jacob e Toulier consideram determinante da

expansão do patrimônio cultural, a atração turística, que se desenvolveu a partir dos anos trinta do século passado, quando mais e mais pessoas passaram a viajar através do mundo e, dessa forma, a conhecer outras paisagens e outras culturas.Ele é uma fonte de recursos pela atração que exerce. Hoje em dia, hotéis, restaurantes e o comércio de produtos culturais dependem do interesse suscitado pelos monumentos naturais ou construídos.

Por fim, “não é desprezível a força da opinião pública mundial, reforçada após a Convenção de 1972, que pode agir em favor da conservação ou da valorização dos bens classificados”, conforme Paulo Affonso Leme Machado26, impedindo, assim, que concessões prejudiciais aos bens integrantes da Lista sejam feitas pelos países nos quais se localizam.

25 Op. cit., p. 924/5.26 Op. cit., p. 925.

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No Brasil, nos anos de 2001 e 2002, os espaços culturais, segundo dados do IPHAN27, receberam uma média de 1.500.000 visitantes, sem contar os visitantes das áreas externas, assim considerados os jardins e parques. É uma cifra bastante modesta. O Museu do Louvre, segundo seu diretor, apenas entre os visitantes gratuitos (menores de 18 anos, deficientes físicos e desempregados), receberá este ano 1.800.000 pessoas.

VI. A constitucionalização dos princípios de proteção do patrimônio cultural -

Segundo Jorge Miranda28, “é apenas o Estado social que introduz de pleno os direitos culturais no contexto constitucional; é ele que, a par dos direitos econômicos como pretensões de realização pessoal e de bem-estar através do trabalho e de direitos sociais como pretensões de segurança na necessidade, introduz direitos culturais como exigências de acesso à educação e à cultura (...)”.

Na cultura, em sentido estrito, se insere o patrimônio cultural. Isto porque ela envolve “tudo quanto tem significado espiritual e, simultaneamente, adquire relevância coletiva; tudo que se reporta a bens não econômicos; tudo que tem que ver com obras de criação humana, em contraposição à natureza.”29

O art. 215 da Constituição Federal de 1988, dispõe que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”

O seu parágrafo primeiro assegura a proteção das “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”

Por sua vez, o parágrafo primeiro do art. 216 atribui ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, a tarefa de promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro.

Portanto, a Constituição brasileira atual atribui ao Estado a tarefa fundamental de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura; prescreve o dever fundamental de proteger as manifestações das culturas populares e o patrimônio cultural brasileiro; assegura a colaboração da comunidade na atividade de promoção e proteção dos bens culturais e dispõe sobre o estabelecimento, por lei, de incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

27 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Relatório de atividades 2001/2002, p. 11/12.28 MIRANDA, Jorge, O patrimônio cultural e a Constituição – tópicos, in Direito do Patrimônio Cultural, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1996, p. 255.29 Idem, p. 253.

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Estabelece, ainda, de forma expressa, no caput do art.216, a conexão entre patrimônio cultural e identidade cultural.

Do dever fundamental de preservar, defender e valorizar o patrimônio cultural, como aponta Jorge Miranda30, “decorrem ou podem decorrer consequências várias, desde o dever de conservação de bens culturais de que se seja proprietário até sanções adequadas no âmbito da responsabilidade civil, (....) ou mesmo de responsabilidade criminal.”

É importante observar que a Constituição Federal, a princípio, não faz qualquer tipo de restrição a este ou a aquele bem.

No caput do art. 216, a Carta de 1988 elenca, como integrantes do patrimônio cultural brasileiro, as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

É preciso, entretanto, que tais bens tenham relação com a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e, parece-me que, para tanto, não seja possível prescindir da intervenção humana31. Paisagens, parques, espaços verdes, que não revelem, de alguma forma, a combinação da ação do ser humano com a natureza, são bens naturais, que como tal podem ser protegidos, mas não são bens culturais.

VII. Meio ambiente cultural -

Meio ambiente, como observa Celso Antonio Pacheco Fiorillo 32, “relaciona-se a tudo aquilo que nos circunda”. Meio ambiente é o conjunto de condições naturais e de influências que atuam sobre os organismos vivos e os seres humanos33. Portanto, segundo os aspectos que o compõem, podemos falar em meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial, meio ambiente do trabalho.

Edis Milaré, também, considera que, “numa concepção ampla, que vai além dos limites estreitos fixados pela Ecologia, o meio ambiente abrange toda a natureza original (natural) e artificial, bem como os bens culturais correlatos.”34

30 Op. cit., p. 275.31 Em contrário a essa tese, FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 222.32 FIORILLO, op. cit., p. 19. 33 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,.34 MILARÉ, Edis, Ação Civil Pública em defesa do ambiente, in Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 – reminiscências e reflexões após dez anos de sua aplicação, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 202.

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Esse é, igualmente, o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli35, segundo o qual “a expressão patrimônio cultural tem sido utilizada em doutrina para referir-se ao conjunto de bens e interesses que exprimem a integração do homem com o meio ambiente (tanto o natural como o artificial)”, razão pela qual é correto falar-se em meio ambiente cultural.

Lembre-se, ainda, que a natureza integra o patrimônio cultural, como é o caso dos jardins e dos sítios de valor arqueológico e paisagístico, somente para exemplificar.

Do ponto de vista das atividades de preservação dos bens culturais, a responsabilidade é tanto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN quanto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, segundo suas áreas de atribuições. Monumentos, edificações, museus, bens móveis, acervos bibliográficos e arquivísticos estão afetos ao IPHAN, enquanto parques nacionais estão ligados à ação do IBAMA. Muitas vezes, o trabalho de preservação pode ser desenvolvido conjuntamente.

VIII. Natureza dos interesses protegidos e instrumentos de defesa -

Conforme acentua Jorge Miranda36, não se pode dizer que quem quer que seja possua um único, genérico e indeterminado direito à proteção do patrimônio cultural. São interesses dispersos por toda a comunidade e, portanto, não são meros interesses públicos ou puros interesses individuais, ainda que se possa identificar a existência de direitos fundamentais conexos, no campo econômico, social e cultural.

Poderíamos dizer, como Mauro Cappelletti 37, que “são interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam a constituir interesse público”.

São os chamados interesses transindividuais ou metaindividuais. Estes se dividem em interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. São os primeiros que nos interessam

O objeto dos interesses difusos é indivisível. Por vezes, são tão

abrangentes, que chegam a coincidir com o interesse público38: “são como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos.”

35 MAZZILLI, Hugo Nigro, A defesa dos interesses difusos em juízo, 15ª ed., Saraiva, São Paulo, 2002, p. 150.36 Op. cit., 270/1.37 CAPPELLETTI, Mauro, Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti allá giustizia civile, in Rivista di Diritto Processuale, 30:367, 1975, cf. MAZZILLI, op. cit., p. 43.38 MAZZILLI, op. cit., p. 46.

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Como acentua Fiorillo, “procurando conferir efetividade à tutela de direitos transindividuais, permitiu-se o uso de todas as ações e providências necessárias que sejam capazes de propiciar a efetiva tutela dos direitos protegidos”39. Dessa forma, a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo são algumas das ações judiciais hábeis à sua defesa.

O Ministério Público, através do art. 129, III, da Constituição Federal, tem consagradas, entre suas funções institucionais, a de para promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Na defesa desses interesses, pode, ainda, expedir recomendações, firmar compromissos de ajustamento de conduta, expedir notificações, requisitar informações, perícias e documentos, promover inspeções e diligências investigatórias.

Legitimados para propor a ação civil pública são, também, a União, os Estados e os Municípios, suas autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista, assim como as associações, desde que estejam constituídas há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil, e incluam, entre suas finalidades, a proteção do meio ambiente, do consumidor e do patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, conforme dispõe o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública).

Importante ressaltar que, ao contrário do que ocorre com o meio ambiente, que muitas vezes se regenera naturalmente, o dano causado a um bem integrante do patrimônio cultural é, quase sempre, irreversível. Um caso, dentre muitos, ilustra esta afirmação: em inquérito civil40, instaurado para apurar extração irregular de areia, em município do interior do Estado de Santa Catarina, restou apurado que a empresa infratora destruiu um sítio arqueológico, conhecido como Sambaqui do Salto, que originalmente possuía 3.000 m2 e, após a intervenção, ficou reduzido a 300 m2. Evidentemente, não existe qualquer tipo de restauração possível. Entretanto, isso não impede que seja ajuizada ação civil pública visando a adoção de medidas compensatórias, que poderão reverter para a preservação do patrimônio cultural como um todo.

IX. Conclusão –

Procurou-se demonstrar que a proteção do patrimônio cultural envolve uma forte carga identitária, como testemunho da formação de um povo, e, portanto, de sua existência coletiva.

39 Op. cit., p. 314.40 Procedimento Administrativo nº 08122.000332/95-63.

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A noção de patrimônio está intimamente ligada à identidade cultural e engloba trabalhos e produtos de todos os conhecimentos e modos de vida dos seres humanos.

Embora seja dinâmica e vasta, envolvendo, desde obras de arte, até bens de natureza imaterial, incluindo os sítios urbanos e de valor histórico, os bens integrantes do patrimônio paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico, é necessário que tais bens tenham relação com a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e, para tanto, não é possível prescindir da intervenção humana.

Os interesses protegidos estão dispersos por toda a sociedade e, portanto, não são meros interesses públicos ou puros interesses individuais. São interesses metaindividuais ou transindividuais e, como tal, beneficiam-se de todas as ações e providências necessárias, que sejam capazes de propiciar a sua efetiva tutela. O Ministério Público tem, entre as funções institucionais constitucionalmente asseguradas, a de promover o inquérito civil e a ação civil pública em defesa do patrimônio cultural.

O meio ambiente, como o conjunto de condições naturais e de influências que atuam sobre os organismos vivos e os seres humanos, ou como conceito que deriva do homem e com ele está relacionado, inclui o meio ambiente cultural.

Do ponto de vista das convenções internacionais, que estabelecem normas e princípios em defesa do patrimônio cultural, a sua efetivação, no plano interno, continua encontrando dificuldades, porque a sociedade internacional atual permanece sendo uma sociedade de justaposição de entidades soberanas não hierarquizadas, marcada pelo primado do consentimento, onde o voluntarismo impede o desenvolvimento de um direito comum.”

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