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©GV executivo 33 Oportunidades na baixa renda concentração de renda no Brasil permanece como uma das mais elevadas do mundo. A conseqüência é a existência de uma enorme massa de indivíduos com baixo poder aquisi- tivo. Entretanto, essa população representa um grande mercado con- sumidor deixado às margens por nossas empresas. Este artigo, com base em pesquisa realizada no setor varejista, analisa as principais ca- racterísticas do consumidor de classe baixa e indica caminhos para que as empresas se posicionem diante desse desafio. A por Juracy Parente e Edgard Barki FGV-EAESP (GVcev) MARKETING Mesmo se considerarmos que significativa parcela da po- pulação mundial pertence à classe de baixa renda, relati- vamente pouco se tem pesquisado sobre esse segmento de mercado. Em geral, as pesquisas e publicações sobre estu- dos de mercado e de comportamento do consumidor ten- dem a focar nos segmentos de classes média e alta. Nessa mesma direção, as políticas de marketing de grandes em- presas costumam privilegiar a população com melhor po- der aquisitivo. Enquanto isso, uma população inteira de consumi- dores potenciais é relegada a segundo plano, isso quando não é completamente ignorada. Trata-se, entretanto, de IMAGEM: YARA MITSUISHI

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  • GV executivo 33

    MARKETING: OPORTUNIDADES NA BAIXA RENDA

    Oportunidadesna baixa renda

    concentrao de renda no Brasil permanece como uma dasmais elevadas do mundo. A conseqncia a existncia deuma enorme massa de indivduos com baixo poder aquisi-

    tivo. Entretanto, essa populao representa um grande mercado con-sumidor deixado s margens por nossas empresas. Este artigo, combase em pesquisa realizada no setor varejista, analisa as principais ca-ractersticas do consumidor de classe baixa e indica caminhos paraque as empresas se posicionem diante desse desafio.

    A

    por Juracy Parente e Edgard Barki FGV-EAESP (GVcev)

    MARKETING

    Mesmo se considerarmos que significativa parcela da po-

    pulao mundial pertence classe de baixa renda, relati-

    vamente pouco se tem pesquisado sobre esse segmento de

    mercado. Em geral, as pesquisas e publicaes sobre estu-

    dos de mercado e de comportamento do consumidor ten-

    dem a focar nos segmentos de classes mdia e alta. Nessa

    mesma direo, as polticas de marketing de grandes em-

    presas costumam privilegiar a populao com melhor po-

    der aquisitivo.

    Enquanto isso, uma populao inteira de consumi-

    dores potenciais relegada a segundo plano, isso quando

    no completamente ignorada. Trata-se, entretanto, deIMAGE

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    MARKETING: OPORTUNIDADES NA BAIXA RENDA

    um segmento cada vez mais numeroso e influente, espe-

    cialmente em pases como o Brasil. Referimo-nos ao mer-

    cado de baixa renda, que at o momento tem sido consi-

    derado um nicho ocupado por empresas secundrias, de

    pouco prestgio.

    O objetivo deste artigo estimular o debate, o inte-

    resse e as pesquisas sobre o mercado de baixa renda no

    Brasil. Neste contexto, ele abordar a viso das empresas

    em relao a esse mercado, as caractersticas do compor-

    tamento de compra desse segmento e alguns resultados

    obtidos em pesquisa recente sobre esse tema no Brasil.

    Base da pirmide. Qualquer que seja a metodologiaadotada, o Brasil est entre os pases mais desiguais do

    mundo. Segundo o IBGE, em pesquisa realizada em 2003,

    59% da populao brasileira tem renda familiar mensal

    abaixo dos R$ 1.200,00, valor que equivale a uma renda

    mdia diria inferior a 4 dlares por indivduo.

    Entretanto, apesar do baixo rendimento, essa mesma

    populao chega a absorver cerca de 20% do mercado de

    bens de consumo do pas. Esse percentual ainda mais

    expressivo dependendo do tipo de bem consumido. Por

    exemplo, tal segmento responsvel por 47% do consu-

    mo de gs de cozinha no pas, 33% dos alimentos e 30%

    dos remdios e dos eletrodomsticos.

    Em geral, as empresas no percebem o potencial des-

    se mercado e, quando o fazem, no entendem adequada-

    mente as necessidades desse segmento e as caractersticas

    peculiares desse consumidor. No setor varejista, merecem

    destaque os novos formatos de lojas desenvolvidos no pas.

    Entretanto, apesar do mrito de tais esforos e do sucesso

    de alguns desses novos formatos, o fato que muitas des-

    sas novas propostas ainda no conseguem oferecer uma

    proposta de valor compatvel com as expectativas desse

    mercado. Vejamos alguns dos motivos disso a seguir.

    Cultura de elite. Um grande obstculo para a identi-ficao das necessidades de consumo da populao de bai-

    xa renda est dentro das prprias organizaes: trata-se

    dos padres culturais que norteiam suas estratgias de

    relacionamento com o mercado.

    Empresas multinacionais, quase todas sediadas em

    pases onde a renda mdia da populao muito maior

    que a nossa, desenvolvem seus produtos e marcas globais

    orientadas para os consumidores de seus pases de ori-

    gem, com distinta formao sociocultural. A conseqn-

    cia disso que a proposta das marcas globais se mostra

    menos adequada para atender as necessidades e priorida-

    des de grande parte dos consumidores dos pases emer-

    gentes, como o Brasil.

    A despeito de notrias excees, a postu-

    ra das empresas nacionais no muito dife-

    rente das multinacionais, e o fator cultural

    um dos principais responsveis. Grande par-

    te de nossos empresrios e dirigentes perten-

    ce classe alta, manifestando em seus negci-

    os um vis da cultura caracterizado por fortes

    preconceitos sociais.

    Adicionalmente, nossa formao histri-

    ca, aliada intensa disparidade de renda no

    pas, ajuda a alimentar uma espcie de com-

    plexo de aristocracia, que leva nossos executivos a con-

    centrarem seus interesses em produtos e servios direcio-

    nados classe alta. O pressuposto, talvez at inconscien-

    te, o de que haveria uma perda de identidade e status

    caso eles viessem a atender as classes mais baixas.

    Identidade prpria. O primeiro passo para venceressa barreira, imposta pela cultura dominante nas organi-

    zaes, identificar as caractersticas prprias do com-

    portamento do consumidor de baixa renda. Em outras

    palavras, preciso reconhecer a identidade prpria desse

    pblico para ento desenvolver produtos e servios com

    uma proposta de valor apropriada. Com base em resulta-

    A formao histrica do Brasil, aliada

    disparidade de renda no pas, leva

    os executivos a concentrarem seus

    interesses em produtos e servios

    direcionados s classes mdia e alta.

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    MARKETING: OPORTUNIDADES NA BAIXA RENDA

    dos de pesquisas divulgados por Haroldo Torres, da Data

    Popular, e por Fernando Fernandes, da Booz Allen &

    Hamilton, apresentamos, a seguir, algumas caractersti-

    cas desse segmento:

    O consumidor de baixa renda possui valores e com-

    portamento mais conservadores do que os do consumi-

    dor das classes mdia e alta. Ele (ou ela) fiel s marcas e

    raramente se arrisca a mudar de produto, dado que seu

    oramento restrito e incompatvel com experincias as-

    sociadas a novos produtos.

    Esse segmento da populao gosta de fartura, o que se

    reflete na preferncia por lojas com espao amplo, com pro-

    dutos vista e com grande volume e quantidade de itens.

    Simbolicamente, isso est associado percepo de um es-

    tabelecimento comercial generoso e com preos baixos.

    Esse pblico possui uma baixa auto-estima, um senti-

    mento de inferioridade relacionado sua renda. Por essa

    razo, so sensveis imagem de cidados de segunda

    classe, situao agravada pelo preconceito de que so

    muitas vezes vtimas. Em compensao, essa uma popu-

    lao que exibe uma grande preocupao em manter sua

    dignidade e em no ser considerada desonesta. Nesse senti-

    do, o consumidor de baixa renda reage muito mal s pr-

    ticas rotineiras de segurana adotadas pelo

    comrcio, como funcionrios muito prximos,

    bolsas lacradas, exigncia de comprovante de

    renda e de residncia.

    A preferncia por lojas prximas de sua re-

    sidncia outra caracterstica fundamental

    desse consumidor. No caso do varejo alimen-

    tar, por exemplo, esse um critrio funda-

    mental de escolha. Por essa razo, o pequeno

    varejo ainda capaz de se diferenciar e trazer

    uma proposta de valor mais atraente , pois

    est mais prximo e porque seu sortimento

    mais adequado, tanto na seleo das marcas

    como tambm no tamanho das embalagens e

    no preo praticado.

    A flexibilidade de crdito um fator funda-

    mental que atrai tambm muitos consumido-

    res de baixa renda, que, por no participarem

    do mercado formal de trabalho, no tm regu-

    laridade de ganhos. O intenso relacionamento

    entre o pequeno varejo e o cliente possibilita um crdito

    mais flexvel e ajustado a essas flutuaes de rendimento.

    Uma outra caracterstica desse consumidor a dinmi-

    ca entre exclusivo e inclusivo que marca seu relaciona-

    mento com os produtos. Enquanto a classe alta aspira a

    produtos feitos sob medida e que ofeream uma imagem

    de exclusividade, a aspirao do consumidor de classe

    baixa relaciona-se incluso social. Assim, ele buscar

    produtos que despertem um sentimento de pertencimen-

    to. O consumo, nesse caso, uma forma de faz-lo se sen-

    tir parte da sociedade. por essa razo que ele valoriza

    muito mais o relacionamento face a face e atitudes que

    sinalizem respeito e considerao.

    Pesquisa de campo. Uma pesquisa realizada pelo Cen-tro de Excelncia e Varejo (GV-cev) da FGV-EAESP procu-

    rou investigar a imagem e o comportamento do consumi-

    dor em relao a trs varejistas de alimentos (ver Qua-

    dro), trazendo resultados interessantes e contra-intuitivos

    que ajudam a esclarecer o modo como se comporta o con-

    sumidor de baixa renda.

    O modelo de supermercado de desconto adotado

    pela Loja A, por exemplo, de aspecto despojado e sim-

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    Para atender adequadamente os segmentos

    de baixa renda, preciso romper com as

    perspectivas usuais e rever as abordagens

    e prticas de marketing.

    ples, em vez de proporcionar uma viso de baixo preo e

    de maior valor, levou o consumidor a se sentir pouco va-

    lorizado e at mesmo humilhado. Esse consumidor sim-

    plesmente no entende que uma empresa varejista tenha

    diferentes formatos para diferente segmentos e no per-

    doa se a empresa escolher um formato mais despojado

    (e, portanto, inferior) para sua regio.

    A tcnica projetiva aplicada sugere que, apesar de os

    entrevistados perceberem, racionalmente, que a Loja A

    maior e possui uma grande variedade de produtos, do

    ponto de vista emocional ou simblico essa percepo

    prejudicada por emoes pouco favorveis. Podemos re-

    presentar o modo como tais consumidores percebem sim-

    bolicamente essa loja usando a metfora do empresrio

    srio, que tem o corao gelado, estrangeiro, tem po-

    der, no se mistura e s quer obter vantagens.

    J a Loja C, que possua os menores preos, uma peque-

    na variedade de produtos, instalaes despojadas e um aten-

    dimento descuidado, foi capaz de gerar uma imagem negati-

    va entre os consumidores. As tcnicas projetivas permitiram

    revelar com mais acuidade os sentimentos dos clientes dessa

    loja, que a personalizam como sendo um adolescente

    desleixado, caracterizado como algum mal arrumado, que

    no toma banho e deixa as roupas jogadas pela casa, dando a

    impresso de que pouco se importa com as coisas.

    O que mais chamou nossa ateno foi que a Loja B,

    apesar de praticar preos 7% a 8% mais altos que seus con-

    correntes, apresenta, na percepo dos consumidores, uma

    proposta de valor mais adequada, sendo at mesmo perce-

    bida como a loja com os melhores preos da regio. Dife-

    rentemente das outras duas lojas, que foram especificamente

    planejadas para atender a classe de baixa renda, a Loja B

    teve origem no bairro e foi crescendo gradualmente, ajus-

    tando-se de forma orgnica s demandas da regio.

    Os clientes avaliam positivamente a variedade e a

    qualidade de produtos, alm do bom atendimento que

    a loja oferece, destacando como positiva a presena de

    funcionrios atenciosos na rea de venda e operadores

    de caixas gentis, aspectos que reforam o sentimento

    de bem-estar e valorizam a experincia de compra dos

    consumidores. Quanto ao resultado da tcnica projeti-

    va neste caso, observa-se que a boa

    imagem da Loja B fortemente in-

    fluenciada por emoes positivas

    que simbolicamente retratam essa

    loja como uma boa sogra, ou seja,

    que tem tudo, sabe de tudo, tem

    corao de me, amorosa, gil,

    econmica, experiente, uma pessoa

    simples, do povo.

    Na verdade, a Loja B apresenta uma ambientao mui-

    to agradvel, fruto de um esmerado trabalho de visual

    merchandising que insinua fartura de produtos, preos

    baixos, ofertas e promoo, organizao e limpeza. A

    pesquisa revela que o visual merchandising, apesar de

    no ter sido explicitado pelos consumidores, exerce uma

    grande influncia na formao da resposta emocional

    dos clientes em relao loja.

    Oportunidades. Esses resultados de pesquisa sugeremque a compreenso das necessidades e desejos dos consu-

    midores no um processo trivial, mas exige tcnicas qua-

    litativas mais sofisticadas que consigam desvendar os sen-

    timentos e as motivaes mais profundas dos consumido-

    res de baixa renda. O entendimento das necessidades dos

    clientes, aliado a um formato organizacional focado na

    manuteno de um bom clima de atendimento e de en-

    volvimento na situao de venda, dever favorecer o es-

    treitamento do relacionamento com esses consumidores e

    o conseqente incremento do volume de negcios. Mos-

    tra, ainda, que h uma lacuna a ser ocupada nesse merca-

    do e que o primeiro passo nessa direo consiste em uma

    reviso de velhos preconceitos e imagens distorcidas so-

    bre as caractersticas de tal pblico.

    As empresas no devem usar as mesmas estratgias

    de lanamento e de distribuio de produtos que usam

    quando tm a classe mdia-alta como referncia. Entre-

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    MARKETING: OPORTUNIDADES NA BAIXA RENDA

    tanto, devem tambm reconhecer que o segmento de bai-

    xa renda possui um elevado nvel de exigncia e expecta-

    tivas, e que sua percepo de valor engloba uma extensa

    gama de atributos que no se restringe ao baixo preo.

    Para alcanar sucesso nesses segmentos, as empresas de-

    vero desenvolver estratgias de mercado que reconhe-

    am as necessidades aspiracionais desses consumidores,

    despertando neles o sentimento de estarem sendo inclu-

    dos em estratos sociais mais elevados.

    A Loja B conseguiu integrar com competncia as di-

    versas variveis do composto varejista, reforando a auto-

    estima do consumidor, facilitando e valorizando a sua ex-

    perincia de compra. Fazer com que o consumidor se sin-

    ta respeitado torna-se um requisito fundamental de su-

    cesso nesse segmento. Por ser o elo com o consumidor, o

    varejo encontra-se em posio privilegiada para buscar en-

    tender todas as idiossincrasias de seu mercado e conse-

    guir criar um sentimento de identidade comum, desen-

    volvendo assim uma relao ganha-ganha. J os consumi-

    dores tero acesso a novos produtos, sentir-se-o mais res-

    peitados e tero reforada sua auto-estima com maior sen-

    sao de pertencimento e incluso social.

    Juracy ParenteProf. do Departamento de Marketing da FGV-EAESP e coordena-dor do GVcev Centro de Excelncia e VarejoE-mail: [email protected]

    Edgard BarkiMestrando em Administrao na FGV-EAESP e pesquisador doGVcev Centro de Excelncia e VarejoE-mail: [email protected]

    Raio X da pesquisaEsta pesquisa, patrocinada pelo Ncleo de Produo e Pesquisa da FGV-EAESP, foi realizada em um dos bairros mais pobres dacidade de So Paulo. Escolheu-se uma regio onde, em um raio de 500 metros, esto localizados trs diferentes modelos desupermercados, incluindo dois novos formatos de lojas desenvolvidos para a classe de baixa renda. A metodologia de coleta dedados baseou-se em entrevistas em profundidade e discusses em grupo com consumidoras desses estabelecimentos, classifica-das com rendas mensais entre R$ 600,00 e R$ 1.200,00. Para captao de contedos no-verbais, ou seja, para acessar ncleosmais profundos da personalidade desses indivduos, foram empregadas tcnicas convencionais de projeo psicolgica. Por fim,foram tambm realizadas pesquisas comparando os preos das trs lojas analisadas e observaes in loco pelos pesquisadores,bem como por consultores especialistas em varejo e em visual merchandising. A tabela a seguir mostra as principais caracters-ticas das lojas aqui investigadas, omitindo-se seus nomes reais.

    Portendice de Nvel de PreoVariedade de ProdutosPadro das Instalaes e Equipamento das LojasQualidade do Visual MerchandisingNvel de Servios

    Formato de Loja

    Movimento de ClientesTempo de OperaoOrigem do Capital

    CARACTERSTICASGrande

    100Grande

    DespojadoMdiaMdio

    Supermercadode desconto

    Mdio3 anos

    Estrangeiro

    LOJA AMdio107

    MdiaMdiotimaAlto

    Supermercadoconvencional

    AltoMais de 20 anos

    Local

    LOJA BPequeno

    99Pequena

    DespojadoMuito Fraca

    Baixo

    Supermercadode desconto

    Baixo3 anos

    Estrangeiro

    LOJA C

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