Artigo OESP IGoldfajn 05mai14

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Piketty, Summers e a nova matriz Lembro-me bem do dia em que anunciaram sua contratação no departamento. Tratava-se de um economista francês. Fiquei impressionado como ele era jovem: eu ainda cursava doutorado no MIT. Com 22 anos ele seria professor de um dos mais respeitados departamentos de economia do mundo. Não falava muito bem inglês, mas dominava como poucos a teoria e o economês. Acabou voltando para a França três anos depois. Passados 20 anos, o livro de Thomas Piketty “O Capital no século XXI” –, traduzido do francês, é a sensação do momento. Chegou a ser o mais vendido na Amazon, incluindo os livros de ficção. O interesse pelos problemas da economia mundial, incluindo a desigual distribuição de renda e riqueza no mundo, estão no auge. A falta de crescimento assusta tanto no exterior quanto no Brasil. Assusta porque interrompe o sonho do progresso e da melhoria de vida. O risco é o de se adotar políticas que, ao invés de aliviarem os problemas, os tornem mais agudos. No Brasil, a adoção do que se denominou a “nova matriz” de política econômica possivelmente magnificou os problemas estruturais. Nos últimos tempos, têm surgido teorias muito interessantes sobre a economia mundial. Vários preveem o pior. A teoria do ex-secretário do Tesouro norte-americano Larry Summers vislumbra uma estagnação secular; a de Piketty projeta uma possível concentração crescente de renda e riqueza com consequências nefastas para o capitalismo moderno. Pode bem ser o caso, mas pode também ser o reflexo da atual conjuntura, extrapolada para o futuro. Não será a primeira vez que economistas teorizam as mazelas dos seus tempos e extrapolam as consequências para o futuro. Os grandes clássicos da economia são um bom exemplo. Thomas Malthus temia as consequências do crescimento populacional e a falta de alimentos para todos. David Ricardo, em 1817, vislumbrava a escassez (e a explosão do preço) das terras. Karl Marx previa o fim do capitalismo com a acumulação excessiva de capital que levasse à natural queda dos lucros ou, alternativamente, à revolta do proletariado. A miséria do começo da revolução industrial teve um papel relevante em sua obra. O crescimento da produtividade (inclusive da terra) e o progresso tecnológico mudaram o quadro. O livro de Piketty oferece extensas séries de dados sobre distribuição de renda e riqueza no mundo. Revela, por exemplo, que os 1% mais ricos nos EUA detinham quase 50% da renda da economia em 2010, de menos de 35% entre 1940 e1980, voltando a níveis do começo do século passado. E que boa parte da concentração advém da diferença salarial entre os altos cargos de executivos e o resto dos trabalhadores. Outra revelação mostra que a riqueza (acúmulo de ativos financeiros, imóveis etc.) correspondia na Europa a quase sete anos de renda nacional no final do século XIX, caindo para entre dois e três anos entre 1914 e 1945, pela destruição das guerras, e voltando a subir para quatro a seis anos recentemente. Alega que a riqueza de hoje deve-se, em boa parte, às riquezas passadas seja por heranças (uma curiosidade: na França as heranças representam 15% do PIB, de “apenas” 5% do PIB em 1950) ou pelo fato de o retorno ao capital exceder a taxa de crescimento da economia (quando a economia cresce, indivíduos sem herança ou capital podem acumular renda e gerar uma distribuição mais equitativa).

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  • Piketty, Summers e a nova matriz

    Lembro-me bem do dia em que anunciaram sua contratao no departamento. Tratava-se de um

    economista francs. Fiquei impressionado como ele era jovem: eu ainda cursava doutorado no

    MIT. Com 22 anos ele seria professor de um dos mais respeitados departamentos de economia

    do mundo. No falava muito bem ingls, mas dominava como poucos a teoria e o economs.

    Acabou voltando para a Frana trs anos depois. Passados 20 anos, o livro de Thomas Piketty O Capital no sculo XXI , traduzido do francs, a sensao do momento. Chegou a ser o mais vendido na Amazon, incluindo os livros de fico.

    O interesse pelos problemas da economia mundial, incluindo a desigual distribuio de renda e

    riqueza no mundo, esto no auge. A falta de crescimento assusta tanto no exterior quanto no

    Brasil. Assusta porque interrompe o sonho do progresso e da melhoria de vida. O risco o de se

    adotar polticas que, ao invs de aliviarem os problemas, os tornem mais agudos. No Brasil, a

    adoo do que se denominou a nova matriz de poltica econmica possivelmente magnificou os problemas estruturais.

    Nos ltimos tempos, tm surgido teorias muito interessantes sobre a economia mundial. Vrios

    preveem o pior. A teoria do ex-secretrio do Tesouro norte-americano Larry Summers vislumbra

    uma estagnao secular; a de Piketty projeta uma possvel concentrao crescente de renda e

    riqueza com consequncias nefastas para o capitalismo moderno. Pode bem ser o caso, mas pode

    tambm ser o reflexo da atual conjuntura, extrapolada para o futuro.

    No ser a primeira vez que economistas teorizam as mazelas dos seus tempos e extrapolam as

    consequncias para o futuro. Os grandes clssicos da economia so um bom exemplo. Thomas

    Malthus temia as consequncias do crescimento populacional e a falta de alimentos para todos.

    David Ricardo, em 1817, vislumbrava a escassez (e a exploso do preo) das terras. Karl Marx

    previa o fim do capitalismo com a acumulao excessiva de capital que levasse natural queda

    dos lucros ou, alternativamente, revolta do proletariado. A misria do comeo da revoluo

    industrial teve um papel relevante em sua obra. O crescimento da produtividade (inclusive da

    terra) e o progresso tecnolgico mudaram o quadro.

    O livro de Piketty oferece extensas sries de dados sobre distribuio de renda e riqueza no

    mundo. Revela, por exemplo, que os 1% mais ricos nos EUA detinham quase 50% da renda da

    economia em 2010, de menos de 35% entre 1940 e1980, voltando a nveis do comeo do sculo

    passado. E que boa parte da concentrao advm da diferena salarial entre os altos cargos de

    executivos e o resto dos trabalhadores. Outra revelao mostra que a riqueza (acmulo de ativos

    financeiros, imveis etc.) correspondia na Europa a quase sete anos de renda nacional no final do

    sculo XIX, caindo para entre dois e trs anos entre 1914 e 1945, pela destruio das guerras, e

    voltando a subir para quatro a seis anos recentemente. Alega que a riqueza de hoje deve-se, em

    boa parte, s riquezas passadas seja por heranas (uma curiosidade: na Frana as heranas

    representam 15% do PIB, de apenas 5% do PIB em 1950) ou pelo fato de o retorno ao capital exceder a taxa de crescimento da economia (quando a economia cresce, indivduos sem herana

    ou capital podem acumular renda e gerar uma distribuio mais equitativa).

  • Piketty prev que haja foras naturais na economia para mais concentrao de riqueza na mo de

    poucos. Argumenta que a taxa de retorno do capital deve se manter alta e que a perspectiva de

    pouco crescimento no mundo torna o futuro ainda mais preocupante.

    O crescimento nos ltimos anos de fato no animador. O crescimento do PIB mundial, que j

    chegou a atingir 4,6% entre 2004 e 2008, recuou para 2,9% nos ltimos quatro anos. E a

    perspectiva de uma recuperao apenas moderada, para 3,3% nos prximos anos. Mas h

    dvidas mesmo quanto a essa recuperao moderada.

    Larry Summers tambm est preocupado com o crescimento baixo no mundo. O seu receio

    principal de que a recente desacelerao seja um fenmeno mais estrutural, e no apenas

    conjuntural. Teme que a economia mundial esteja entrando num perodo longo de baixo

    crescimento uma estagnao secular.

    Argumenta que, mesmo com juros baixos, a economia mundial no consegue se recuperar de

    forma vigorosa. H ainda muitas pessoas desocupadas. O problema pode ser que a economia

    mundial esteja precisando de juros reais ainda mais baixos para poder crescer. Mas o piso de

    zero para os juros nominais torna essa tarefa mais difcil, requerendo polticas monetrias no

    convencionais de eficcia limitada.

    A razo pela qual a economia mundial precisa de juros baixos o excesso de poupana, o

    fenmeno denominado de saving glut. H uma busca por ativos e projetos que comprime a taxa de juros no mundo.

    interessante que a teoria da estagnao secular se baseie no excesso de poupana que

    comprime o retorno do capital, enquanto a de Piketty teme o oposto: que a taxa de retorno no

    seja comprimida medida que o capital for acumulado. Parece que pelo menos de um dos males

    no padeceremos.

    No vejo como inexorvel um crescimento baixo nem a concentrao crescente de renda e

    riqueza. Sou daqueles que acreditam que a distribuio de conhecimento no mundo (por

    exemplo, a China adotando tecnologias ocidentais) e o crescimento da produtividade podem nos

    afastar novamente das previses mais sombrias. O risco adotar polticas que exacerbam os

    problemas. A implementao de polticas expansionistas no convencionais por um longo

    perodo de tempo, para lidar com a estagnao secular, pode gerar risco de bolhas. Assim como a

    adoo de impostos muito altos ao capital, para atingir melhor distribuio, pode desestimular o

    investimento e afetar o crescimento. preciso cautela ao se desenhar a nova matriz de polticas no mundo.

    Ilan Goldfajn economista-chefe e scio do Ita Unibanco.