ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
-
Upload
larissa-veloso-assuncao -
Category
Documents
-
view
47 -
download
2
Transcript of ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 1/9
LARISSA VELOSO
O menino e o mundo, o terceiro cinema e a morte dos
vagalumes
Artigo acadêmico realizado para ocurso de Cinema e Audiovisual daUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE),
para a disciplina de Teoria do Cinema 2,ministrada pela professora Nina Velasco.
RECIFE
2015
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 2/9
Resumo: Este artigo pretende traçar um olhar sobre o filme de animação brasileira O
menino e o mundo (2014), de Alê Abreu, relacionando-o com algumas das ideias econceitos desenvolvidos sobre o terceiro cinema, bem como com a morte dos
vagalumes desenvolvida por Pasolini. Além disso, mostrar o quanto a escolha de umanarrativa sem diálogos e de uma estética texturizada da imagem contribuem para umamaior difusão de sua mensagem crítica.
Palavras-chave: Animação. Olhar. Terceiro cinema. Imagem crítica.
Abstract: This article intends to cast a look over the brazilian animation film O menino
e o mundo (english: The boy and the world, 2014) from Alê Abreu, connecting it of theideas and concept developed about the third cinema as well as the death of fireflies developed by Pasolini. Besides that, show how much the choice of a dialogue-lessnarrative and of a textualized aesthetic of the image contribue to a greater diffusion ofits critical message.
Keywords: Animation. Outlook. Third cinema. Critical image.
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 3/9
Entre os anos 50 e 60, em plena Guerra Fria, o mundo ainda se encontrava
dividido entre as duas grandes potências econômicas dos Estados Unidos e da antiga
URSS (o Primeiro e o Segundo Mundo, respectivamente). Os demais países que não
faziam parte desses dois blocos, os “países pobres” e subdesenvolvidos, começaram
então a ser chamados de países do Terceiro Mundo. Essa denominação, de certo modo
eufemística e atenuante, servia para trazer uma ideia de “unidade” entre eles. Assim, os
países Latino-Americanos, bem como os países da África – cujas culturas são tão
distintas entre si – recebiam todos o título de países terceiro-mundistas. E no campo das
artes, consequentemente, isso não foi diferente. Em se tratando do campo
cinematográfico, os filmes que faziam parte do chamado Terceiro Cinema possuíam
conteúdos e estéticas diferentes daqueles originados de Hollywood. Os temas tratados
por esses filmes, em sua maioria, eram relacionados com a pobreza e as opressões
sociais, bem como a vida urbana nas grandes metrópoles, marcadas pela violência e
miséria. A partir dos anos 80, no entanto, começou-se a questionar a validade do termo
Terceiro Mundo. A própria queda do Muro de Berlim, por exemplo, que de certa forma
simboliza a dissolução das ideias de Primeiro e Segundo Mundo, proporcionou o
questionamento a respeito do uso desses termos. (PRYSTHON, 2006)
É a partir dessas discussões sobre as estéticas e os conteúdos tratados nos filmesdo chamado Terceiro Cinema que este artigo pretende fazer uma relação com o filme O
menino e o mundo (2014), animação brasileira dirigida por Alê Abreu. Embora
cronologicamente fora do período dos grandes debates sobre a utilização do termo
Terceiro Mundo, ainda é possível traçar um paralelo entre o filme em questão e as
características do que se designou como sendo o Terceiro Cinema, visto que “alguns
cineastas e teóricos ainda usam o termo [...] para se referir ao cinema dos países não
desenvolvidos ou ao cinema feito às margens da estética hollywoodiana” (PRYSTHON,
2006, p. 80) A narrativa do filme, então, trata da história de um menino, inicialmente
vivendo com seu pai e sua mãe numa pequena casinha no campo, que de repente se vê
diante das mais diversas realidades quando passa a conhecer o mundo longe de casa. O
pai, cuja necessidade de ir procurar emprego na cidade grande o faz ir embora, é a todo
o momento lembrado pelo garoto saudoso. E é a partir do encontro do menino com
essas realidades, estas antes desconhecidas por ele, que o filme irá construir sua
mensagem crítica aos diversos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea: o
contraste social entre patrões e trabalhadores, por exemplo, assim como a substituição
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 4/9
destes últimos pelas novas máquinas e a impossibilidade desses trabalhadores de
comprar o produto final do qual fizeram parte da confecção são algumas das
problemáticas abordadas pelo filme.
Dotado de uma linguagem simples, na qual a história é narrada somente através
das imagens e dos sons, O menino e o mundo dispensa diálogos. Em poucos trechos, no
entanto, há sons referentes às falas de alguns personagens, mas eles são totalmente
incompreensíveis. Além disso, as palavras dos anúncios e propagandas, bem como os
números que nos aparecem são todos deformados de alguma forma. Todos destituídos
da identidade de uma língua específica (o português) para, então, se tornarem símbolos
de uma linguagem universal (a dos grandes anúncios do mundo capitalista, por
exemplo). A letra da música que compõe a trilha sonora do filme, composta pelo rapperEmicida, é tocada ao contrário para que suas palavras também se tornem indecifráveis.
Essa escolha pela ausência dos diálogos e pelo uso de palavras incompreensíveis serve
para universalizar a mensagem crítica presente no filme.
Além disso, O menino e o mundo também possui uma textura da imagem
bastante interessante e diferenciada das que geralmente são utilizadas nas grandes
animações digitais hollywoodianas, marcadas por um caráter comercial. Dispensando
grandes aparatos tecnológicos, o filme aposta na simplicidade da animação em 2D,
utilizando algumas imagens feitas em computador ao mesmo tempo em que usa
desenhos feitos em giz de cera e colagens de jornais e revistas, por exemplo. É possível
perceber, em diversos momentos, esse caráter texturizado da imagem. As marcas do giz
nos saltam aos olhos, por exemplo, na cena em que o menino está sentado com seu pai
olhando o horizonte do crepúsculo. As colagens, em outro momento, nos aparecem
através dos produtos que são vendidos numa espécie de feira. Além disso, há uma cena
específica do filme, na qual é mostrado o desmatamento de imensas áreas florestais, em
que aparecem imagens de arquivo filmadas. E é dessa forma que as imagens do filme
são compostas, sendo caracterizadas pela união entre essas várias técnicas distintas. A
escolha por essa forma de animação, levando em conta o contexto da narrativa, é mais
um dos artifícios usados por Alê Abreu para se distanciar das estéticas comumente
utilizadas nesse tipo de filme. Ele aposta na materialidade da imagem, que de certa
forma aproxima o espectador da narrativa, para utilizá-la, também, como uma posição
crítica em relação à forma, visto que ele não busca o realismo digital das animaçõescontemporâneas.
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 5/9
Figura 1: Textura do giz de cera Figura 2: Colagens
O menino e o mundo, dessa forma, apresenta a personagem principal como umgaroto que, inicialmente numa condição de inocente perante a realidade do mundo, aos
poucos vai perdendo essa inocência ao ser confrontado com os diversos problemas que
afligem a sociedade para, por fim, entender as cruéis relações de poder que regem o
mundo contemporâneo. Em relação a essa inocência, o cineasta e escritor italiano
Pasolini se posiciona:
A inocência é um erro, a inocência é uma falta, compreendes? E osinocentes serão condenados, pois não têm mais o direito de sê-lo. [...]Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar feliz doinocente as injustiças e as guerras, os horrores e o sangue.(PASOLINI, 1967-1969 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 23)
É por isso, então, que o menino é apresentado ao mundo real, para perder essa
inocência imperdoável e tomar consciência da realidade. Se se prestar atenção o
suficiente, é possível perceber que o personagem que o guia pelos mais diversos lugares
é ninguém menos que ele próprio adulto. Como se, através do contato com seu próprio
ser já crescido, destituído dessa inocência, o menino fosse tirado de sua condição
alienada. Enquanto o garoto vive em sua aldeia, tudo lhe parece lindo e harmonioso: as
paisagens naturais e os animais, por exemplo, convivem em paz uns com os outros. No
entanto, quando ele se vê diante da vida nos grandes centros urbanos, nos quais a
agitação da vida moderna se faz presente, a realidade lhe aparece de forma brutal: as
jornadas desumanas de trabalho, as grandes máquinas substituindo os trabalhadores e
fazendo-os perder o emprego, o caos da cidade em meio ao trânsito, os ônibus e metrôs
lotados de pessoas com aparência triste e cansada, dentre outros.
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 6/9
Ora, Pasolini insiste em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidadecontemporânea, esta realidade política tão evidente que ninguém quervê-la pelo que ela é, mas que “os sentidos” do poeta - esse vidente,esse profeta - acolhem tão fortemente. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.38).
Ou seja, assim como o poeta, cujos olhos já não guardam mais essa inocência
perante o mundo, a criança protagonista do filme, ao despir seu olhar de certa alienação
e enxergar o mundo tal qual ele é, consegue perceber a crueldade “[d]esta [...] nossa
realidade contemporânea” que, nas palavras de Didi-Huberman, mais se assemelha a um
“pesadelo”. E para isso, o filme se utiliza das cores e dos sons para mostrar os
antagonismos entre a vida na grande metrópole e a vida no campo. Este último é sempre
representado com cores vivas e variadas, bem como com sons suaves e agradáveis,
enfatizando a harmonia presente nesse espaço. Já o ambiente urbano é marcado por
cores escuras e pesadas, além de sons agressivos. E o que traz vida ao cotidiano da
cidade é o grande povo, com suas cores e músicas, que deixa seu rastro vivaz ao passar.
Por fim, o contexto das guerras aflorou diversas discussões em torno da
realidade do mundo e das artes. Assim como na Guerra Fria os debates e discussões se
voltaram sobre o Terceiro Mundo e, por extensão, sobre o Terceiro Cinema; no ano de
1941, sob o horror da Segunda Guerra Mundial, Pasolini escreveu uma carta para um
amigo seu de adolescência, Franco Farolfi, onde declarou a morte dos vagalumes. Para
ele, estes seriam, no âmbito da guerra e do fascismo italiano, uma metáfora para todos
aqueles seres que resistem. No entanto, Pasolini acreditava que o pior tipo de fascismo
não era o fascismo histórico da Itália, comandado por Mussolini, e sim o novo
“fascismo” do consumo. E o problema, como afirmou o cineasta italiano, não está na
escuridão, visto que esta deixa ainda mais visível a lucciole dos pirilampos. O que os
faz desaparecerem é a luz (luce) ofuscante do “fascismo” presente nos estádios de
futebol e nas televisões, por exemplo. (DIDI-HUBERMAN, 2011) E nesse ponto,
podemos fazer uma relação entre o que foi dito por Pasolini e a animação O menino e o
mundo. Há uma cena do filme em que o “menino” já adulto chega cansado em casa,
depois de um dia exaustivo na cidade grande, acompanhado dele mesmo criança. Os
dois sentam-se ao sofá e a televisão está ligada. No entanto, nada do que se passa na TV
acrescenta algo à vida dos dois. Ela mostra, apenas, desenfreadamente, diversas
propagandas e anúncios, numa jorrada de “luzes” ofuscantes. Há também outra cena em
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 7/9
que os dois personagens estão passando por um estádio de futebol: todas as luzes
noturnas da cidade, somadas com a dos fogos de artifício saídos do estádio são como a
grande luce enunciada por Pasolini, luzes “fascistas” que ofuscam os dois garotos que
passam em sua bicicleta. É o resultado do que podemos chamar do “neofascismo
televisual” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 39)
Figura 3: Anúncios na televisão Figura 4: Luzes da cidade e do estádio
Em relação a essa experiência urbana das grandes cidades, o filósofo italiano Agamben
afirma:
[...] hoje sabemos que, para a destruição da experiência, umacatástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existênciacotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamentesuficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contémquase nada que seja ainda traduzível em experiência: [...] nem osminutos que passa preso ao volante, em um engarrafamento; nem aviagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestaçãoque de repente bloqueia a rua. [...] O homem moderno volta para casa,à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos - divertidos oumaçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes, entretanto
nenhum deles se tornou experiência. (AGAMBEN, 2008, p. 21-23apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 76)
Para exemplificar essa ausência de experiência, podemos tomar a imagem do pai
do menino quando retorna a sua casa. O trem para e o garoto espera ansiosamente a
saída dele da locomoção. No entanto, mal o menino se alegra ao vê-lo, os outros
passageiros que saem do veículo se mostram com o mesmo rosto e corpo do pai. São
todos iguais. Foram confundidos: já não há mais individualidade. O homem foi
“mecanizado” pelo surreal cotidiano na vida das grandes metrópoles.
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 8/9
Apesar de tudo isso, Didi-Huberman não acredita no total desaparecimento dos
vagalumes, como Pasolini afirma. Ele acredita que depende “apenas de nós não vê-los
desaparecerem” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.154)
Não se pode, portanto, dizer que a experiência, seja qual for omomento da história, tenha sido “destruída”. Ao contrário, faz-senecessário [...] afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo quese encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades desimples lampejos na noite. ( Ibidem p. 148)
E apesar de toda a crítica que o filme carrega em relação ao mundo contemporâneo, ele
próprio é uma espécie de lampejo na noite, fazendo com que os espectadores que o
assistem tomem ciência das luzes ofuscantes do novo fascismo televisual e, assim, não
se deixem desaparecer.
7/17/2019 ARTIGO (O menino e o mundo).pdf
http://slidepdf.com/reader/full/artigo-o-menino-e-o-mundopdf 9/9
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte. MinasGerais: Editora UFMG, 2011.
PRYSTHON, Â. F. Imagens periféricas: os Estudos Culturais e o Terceiro Cinema.E-Compós (Brasília), 2006.
Adoro Cinema. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202641/criticas-adorocinema> Acesso em 8 de fevereiro de 2015