Artigo Maria Cristina Cadernos 7

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LITERATURA E PÓS-MODERNIDADE: OLHANDO PARA TRÁS SEM VIRAR ESTÁTUA DE SAL Maria Cristina Ribas UERJ/PUC-Rio RESUMO: O presente trabalho entende literatura como discurso e pretende compreendê-la à luz de uma revisão conceitual de Modernidade, com base nas concepções de Marshall Berman e Wander de Mello Miranda e de Pós-modernidade, assentadas em Umberto Eco, com foco na questão da temporalidade, sobretudo no diálogo com o passado proposto por Beatriz Sarlo e Hannah Arendt. Neste “olhar para trás”, conforme apontado por Blanchot, sem virar estátua de sal, como Ló, e sem se perder dentro da perda, como Orfeu, outro ponto de vista é proposto como desenho para as citadas e (im) precisas categorias, visando ao mais amplo entendimento, tanto das teorias circunscritas ao tema, quanto da produção literária que incide e ao mesmo tempo desliza por tais enquadres. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Pós-modernidade. Tempo passado. Olhar. Literatura. Introdução: da experiência moderna Tinha saído o sol sob a terra, quando Ló entrou em Zoar./ Então o Senhor, da sua parte, fez chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. / E subverteu aquelas cidades e toda planície, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra./ Mas a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida em estátua de sal (Genesis, 19: 17-26). Escrever começa com o olhar de Orfeu (BLANCHOT, 1999, p.225). Parafraseando Marshall Berman, existe um tipo de experiência vital – de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhado por homens e mulheres em todo o mundo (1986, p.15). A este conjunto de experiências ele designa como “modernidade”, no movimento constante de um ambiente que promete aventura, poder, (auto) transformação, com a mesma intensidade e simultaneidade com que ameaça destruir todas as posses, as garantias, os suportes e os paradigmas constituídos. Fala ainda que a citada experiência da modernidade dissolve todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, religião e ideologia e que neste sentido “une” a espécie humana, ainda que uma unidade da desunidade. Berman enfatiza o contexto paradoxal da aventura moderna, trabalhando com o pensamento dialético herdado à Ideologia alemã e inspirado pelo Manifesto Comunista de

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  • LITERATURA E PS-MODERNIDADE: OLHANDO PARA TRS SEM VIRAR ESTTUA DE SAL

    Maria Cristina Ribas UERJ/PUC-Rio

    RESUMO: O presente trabalho entende literatura como discurso e pretende compreend-la luz de uma reviso conceitual de Modernidade, com base nas concepes de Marshall Berman e Wander de Mello Miranda e de Ps-modernidade, assentadas em Umberto Eco, com foco na questo da temporalidade, sobretudo no dilogo com o passado proposto por Beatriz Sarlo e Hannah Arendt. Neste olhar para trs, conforme apontado por Blanchot, sem virar esttua de sal, como L, e sem se perder dentro da perda, como Orfeu, outro ponto de vista proposto como desenho para as citadas e (im) precisas categorias, visando ao mais amplo entendimento, tanto das teorias circunscritas ao tema, quanto da produo literria que incide e ao mesmo tempo desliza por tais enquadres.

    PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Ps-modernidade. Tempo passado. Olhar. Literatura.

    Introduo: da experincia moderna

    Tinha sado o sol sob a terra, quando L entrou em Zoar./ Ento o Senhor, da sua parte, fez chover do cu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. / E subverteu aquelas cidades e toda plancie, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra./ Mas a mulher de L olhou para trs e ficou convertida em esttua de sal (Genesis, 19: 17-26).

    Escrever comea com o olhar de Orfeu (BLANCHOT, 1999, p.225).

    Parafraseando Marshall Berman, existe um tipo de experincia vital de tempo e espao, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida que compartilhado por homens e mulheres em todo o mundo (1986, p.15). A este conjunto de experincias ele designa como modernidade, no movimento constante de um ambiente que promete aventura, poder, (auto) transformao, com a mesma intensidade e simultaneidade com que ameaa destruir todas as posses, as garantias, os suportes e os paradigmas constitudos. Fala ainda que a citada experincia da modernidade dissolve todas as fronteiras geogrficas e raciais, de classe e nacionalidade, religio e ideologia e que neste sentido une a espcie humana, ainda que uma unidade da desunidade.

    Berman enfatiza o contexto paradoxal da aventura moderna, trabalhando com o pensamento dialtico herdado Ideologia alem e inspirado pelo Manifesto Comunista de

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    Marx, claramente referendado no ttulo do seu livro: Em nossos dias, tudo parece estar impregnado de seu contrrio. E mais adiante: todas as relaes fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e venerveis preconceitos e opinies foram banidas; todas as novas relaes se tornam antiquadas antes que cheguem a ossificar. Tudo que slido desmancha no ar... (MOORE, 1888, p.475-6, apud BERMAN, 1986).

    A conhecida metfora de Marx alude crise dos referenciais, imploso das certezas, ao desvanecimento dos parmetros de crena e sustentao do indivduo e da sociedade. Reao em cadeia, o modelo econmico medieval, a razo iluminista, os paradigmas estticos, filosficos, religiosos no do mais conta da sociedade e do homem do sculo XIX.

    O slido se desmancha metafrica e literalmente. Os padres morais e as categorias polticas que constituam a continuidade histrica da tradio ocidental tornaram-se inadequadas para fornecerem as regras para a ao problema clssico colocado por Plato (...) mas tambm para inserirem as perguntas relevantes no quadro de referncia da perplexidade contempornea (LAFER, 2007, p.10). Segundo Hanna Arendt (2007), a crise profunda do mundo contemporneo que se traduz no campo intelectual vem da lacuna entre o passado e o futuro, pelo esfacelamento da tradio.

    Quando se pensava nos rumos imprecisos da Modernidade na segunda metade dos oitocentos, nos desdobramentos da sociedade ps-revoluo industrial, com as drsticas mudanas no modo de produo, as transformaes no cenrio das cidades, a metamorfose dos valores, a partir desse quadro de rupturas parecia fcil deduzir as provveis tendncias dos sculos seguintes.

    Com as devidas modalizaes, a dificuldade de ordem conceitual persiste. Cada vez menos fcil delinear as tendncias mltiplas e imprecisas da sociedade moderno-contempornea. Definir implica em categorizar e pressupe uma mnima uniformidade que corresponda noo proposta. Nessa conjuntura, o desafio instigante para o analista: como redefinir o que em princpio indefinvel, como mapear a regularidade do irregular sem congel-lo e, por outro lado, sem cair nos extremos de dispers-lo completamente ou ainda apegar-se ao niilismo como sada para o impasse conceitual.

    1. Em torno do moderno: um coral de vozes

    O que nos perturba na leitura dos clssicos no tanto o fato de os antigos serem capazes de identificar de uma forma essencial algo que verdadeiro e terrvel, mas

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    que ns, mais de 2000 anos depois, continuemos a errar nos nossos caminhos sem termos assimilado a lio daqueles (ou depois de a termos assimilado demasiado bem). A modernidade dos clssicos devida ao fato de eles serem tragicamente obsoletos (ECO, 2004).

    Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski at o nosso prprio tempo, tem sido impossvel agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominao e luta das realidades mais palpveis (Berman, 1986, p.14)

    Falar de modernidade, sobretudo em sua relao com o passado cuja aceitao ou recusa tem diferenciado moderno e ps-moderno , significa trazer ao proscnio, ainda que de forma resumida, a desconstruo dos paradigmas que (re) configuram as narrativas modernas, estudar o tempo como categoria ficcional e entender as suas variantes significativas. O tempo, para alm de sua dimenso cronolgica, uma questo premente no discurso do homem. Neste sentido, a literatura uma grande aliada do analista por constituir um produto hbrido: material e humano, documental e sensvel, histrico e ficcional.

    O tempo cronolgico um cdigo institucionalizado, uma espcie de contrato bilateral que permite o desenvolvimento da comunicao em uma sociedade e, no caso especfico da literatura, com o prprio leitor, constituindo referenciais, oferecendo-lhe pistas e/ou armadilhas. Em princpio, parece mais produtivo entend-lo como noo subjetivamente construda e vivenciada nos diversos contextos culturais e individuais; mas o tempo cronolgico no o tempo das sensaes nem das paixes. A cronologia um cdigo social, talvez seja a marcao discursiva possvel de uma instncia imensurvel. Na literatura, a dupla dimenso do tempo cronolgico e psicolgico, tempo referencial e tempo da narrativa uma instncia j bastante conhecida pelos leitores habituados, mas a reflexo sobre o tempo em muito ultrapassa estes enquadres.

    Em suas mais variadas manifestaes, o tempo ultrapassa categorizaes precisas, finitas e matematicamente constitudas, embora as considere. Ao se pensar no tempo em seu esquema clssico passado/presente/futuro sucedendo-se um aps o outro , estamos falando de olhares, construes conceituais de base ideolgica, subjetivas, que presidem essa concepo linear ou qualquer outra sobre o espao tempo.

    O carter ideolgico religioso moldava a noo de tempo na Antiguidade, com os esquemas circulares clssicos mimetizando a perfeio divina dos ciclos da natureza. J na sociedade ps-revoluo industrial, em pleno sculo XIX, a utopia da modernidade, do

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    novo, era um caminho em linha reta e para frente, em direo ao futuro, este identificado com o progresso e o lucro, conforme os interesses da classe burguesa.

    Focado na sociedade moderna ps-revoluo industrial, no mbito da Literatura, Foucault explica:

    A historicidade que aparece no sculo XIX, no domnio da literatura, uma historicidade de um tipo especial, que no se pode em nenhum sentido assimilar quela que assegurou a continuidade ou a descontinuidade da literatura at o sculo XVIII. (...) A partir do sculo XIX, todo ato literrio se apresenta e toma conscincia de si como transgresso da essncia pura e inacessvel da literatura (...) em outro sentido, cada palavra um sinal que indica algo a que chamamos literatura (FOUCAULT, 2005, p. 142).

    Ainda no sculo XIX temos que, a partir de Marx, o trabalho entendido como atividade central de produo a fonte do valor que, assim, deixa de ser um signo como na economia clssica (Machado, Roberto, 2005, p.89). Se naquela, valer significava a possibilidade de substituio pelo processo de troca, na modernidade o trabalho o conceito capaz de explicar a produo, a troca, o lucro, at mesmo o ato de composio artstico-literria. Ressaltamos que o novo paradigma formula tambm duas noes fundamentais ligadas diretamente ao moderno: a ideia de progresso o novo melhor que o antigo, ou seja, o presente supera o passado e a valorizao do indivduo a subjetividade como lugar da certeza e da verdade em oposio tradio, negao do passado.

    Reao em cadeia, tais noes ricocheteiam sobre o conceito de tempo na medida em que pretendem ignorar o passado como fora operante seja no presente, seja no futuro; tal desconhecimento sugere que a modernidade, ao recusar o passado, teme a possibilidade de desconstruo da linearidade temporal pretendida.

    Wander Mello Miranda, hoje, inclui na discusso um ponto crucial: a defasagem entre modernidade e modernizao e, logo a seguir, pergunta se em cada uma das experincias tardias do moderno existiriam programas alternativos de modernidade e se seria possvel, a partir desses programas, refazer conceitualmente a discusso sobre modernidade, ps-modernidade e tradio (MELLO, 1999, p. 270). A indagao traz consigo um pressuposto: o analista, ao se propor tais questionamentos, j opera com um olhar para os tempos mltiplos, trabalha com uma configurao no linear de histria e, pensamento em cadeia, revira pelo avesso a continuidade temporal, ao mesmo tempo em que vislumbra outro desenho para a narrativa.

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    2. Em torno da (ps) modernidade tempo e narrativa:

    (...) chega a um momento em que a vanguarda (o moderno) no pode ir mais alm, porque j produziu uma metalinguagem que fala de seus textos impossveis (a arte conceptual). A resposta ps-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, j que no pode ser destrudo porque sua destruio leva ao silncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira no inocente (ECO, 1985, p.56-7).

    Umberto Eco (1985), h algumas dcadas atrs, vai nos dizer que o passado no pode ser eliminado porque isso levaria ao silncio; e que, por outro lado, falar do passado no implicaria na suspenso do presente.

    Na contemporaneidade, a tendncia complexidade, estimulada pela fragmentao estrutural, efemeridade e fuso de tempos mltiplos, constitui-se diversamente tanto do esquema circular clssico, quanto ao linear em direo ao futuro, proposto na modernidade. Nas ltimas 6 (seis) dcadas, o sujeito tem que lidar com as fendas e falhas da chamada condio ps-moderna, na expresso de Lyotard (1979). Queremos dizer, ento, que a histria dos conceitos circunscritos ao tempo constituda pari passu histria do pensamento ocidental, crises e revolues sociais.

    No universo literrio, especificamente, a noo temporal transita num cruzamento de fronteiras quase sempre tnues que vo desde consideraes tericas suficientemente demonstradas a preconceitos e estigmas do senso comum e, como tal, dialoga com e em mltiplas reas, o que torna, infelizmente, sua abordagem mais suscetvel a equvocos e repeties. Na literatura, o tempo, ao estender seus tentculos grandeza espacial, mais se torna fluido, perceptvel, porm nem sempre apreensvel; e existente, porm nem sempre mensurvel.

    Nosso interesse sobre a concepo de ps-moderno cresceu por conta proposta por Umberto Eco (1985) a propsito do romance O nome da Rosa, sobretudo quando explicita a nica forma possvel de o passado continuar existindo atravs de sua constante revisitao.

    Justamente nesse ponto vale fazer importante ressalva: para marcar o ps-moderno como um movimento que olha para trs, a reflexo de Eco o contrape concepo de moderno que recusa o passado; e a, retomando a modernidade para esclarecer a citada contraposio, entramos com Marx para completar a reflexo: a recusa (moderna) ao passado existe em detrimento de um caminhar sempre para frente, linear, de preferncia a passos

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    largos, em direo ao futuro e este, por sua vez, identificado ao progresso. Trata-se de o olhar ou a cegueira da burguesia em seu af capitalista. Ainda Marx, quando fala em modernismo, focaliza os movimentos estticos, as revolues artstico-literrias, a ordem do pensamento. Ao mencionar modernizao, diz respeito esfera das inovaes comunicacionais e tecnolgicas do sculo XIX.

    Voltando ao ps, de acordo com Terry Eagleton (1998, p. 7), j a palavra ps-modernismo refere-se em geral a uma das formas de cultura contempornea, enquanto o termo ps-modernidade alude a um perodo histrico especfico. Seguindo a trilha de Eagleton, ps-modernidade seria, portanto, uma orientao na contramo do iluminismo e voltada para rever as noes clssicas de verdade, razo, identidade e objetividade, a idia de progresso ou emancipao universal, os sistemas nicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicao (EAGLETON, 1998, p.7).

    O conceito assim entendido falaria de uma mudana histrica no Ocidente pari passu mudana de modelo econmico, ou seja, a constituio e estabelecimento do modo de produo capitalista; alm disso, seria um fenmeno to hbrido que ficaria quase impossvel qualquer categorizao definitiva, una e aplicvel a vrias situaes. Neste contexto hbrido, efmero e consumista, a cultura se constituiria, dentre outras manifestaes, em uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatria, ecltica e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura elitista e a popular (EAGLETON, 1998, p.7).

    Diversamente do que procuramos fazer, Terry Eagleton, aps tal diferenciao, assume o termo ps-modernismo em sua dimenso trivial, como sinnimo de ambas as expresses citadas. O emprego genrico tambm assumido por Jair F. dos Santos (2004), embora este procure datar o ps-modernismo aos anos 50-80 do sculo XX.

    Podemos dizer que o chamado ps-moderno veio colocar abaixo o reino tecnolgico e o sonho futurista da modernidade; sonho que, identificado com o progresso, por princpio negava o passado, ao que o sujeito moderno recusava-se a olhar para trs como se o antes fosse uma priso, um freio; viso bem burguesa o passado como um impedimento a caminhar para frente, para o futuro.

    Ctico ante as formulaes autointituladas ps-modernas, Eco afirma no se interessar pelas rotulaes: quem ps-moderno e quem no . Interessa-lhe os pressupostos de tais categorizaes, ou seja, os modos de relao estabelecidos com o passado e os efeitos deste procedimento para a literatura e o leitor na contemporaneidade. Prope: O romance

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    ps-moderno ideal deveria superar as diatribes entre realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo, literatura pura e literatura engajada, narrativa de elite e narrativa de massa... (ECO, 1985, p.59).

    Um caminho para o entendimento da narrativa na modernidade tardia ou no chamado ps-moderno encontra tima ilustrao na conhecida metfora de Silviano Santiago (1982, p. 28): ao andar para frente num carro que avana, blindado e calhambeque, por estrada asfaltada, os olhos do romancista e da classe mdia se concentram no espelho retrovisor. O artefato reflete frente o que est atrs, sem que o motorista precise dirigir de costas, ou preso, angustiado e temeroso como L e Orfeu viso do que j passou e no pode mais reter, sequer ver.

    Desfazendo a analogia, ressalta-se aqui a impossibilidade tanto de guiar para frente olhando para o vidro traseiro, quanto de dirigir sem saber o que se passa entorno; ou seja, como andar para qualquer direo sem o conhecimento do passado? Mas como no ver o passado como nico e irreversvel ponto de origem? A questo no se reduz a uma ordem diacrnica ou mesmo sincrnica, tampouco se localiza pontualmente na memria, mas envolve a constituio de pontos de vista pelo sujeito em determinado contexto scio-histrico. Para o analista, o foco no deve ficar somente na coisa olhada, mas na genealogia deste olhar plural.

    O olhar contemporneo no consiste somente na mera transmisso da informao nem a competncia significativa no se resume a ter boa memria de dados; a vantagem cabe quele que sabe e pode obter um suplemento da informao. Por sua vez, esse suplemento no magicamente adquirido, mas resulta, no jogo, de um novo arranjo de dados, os quais so obtidos mediante a conexo de sries de dados tidos at ento como independentes. Lembro que mais uma vez a postura elogiada a capacidade de articular em conjunto o que antes estava isolado implica em revisitao no ingnua do precedente, ato de conscincia necessrio para qualquer transformao.

    Nosso entendimento de ps-moderno, portanto, inclui a virada, a mudana de posio preciso olhar para trs, nem que seja para encontrar um vazio, at mesmo repetir a perda.

    Esboando concluses: o olhar para trs e a narrativa moderna

    O olhar de Orfeu um olhar para uma Eurdice perdida, reencontrada e novamente perdida. Um instante se fixa, o admirvel tremular do instante, quando a plenitude

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    ir esvanescer-se em fumaa, uma presena calada em ausncia (BRUNEL, 2003, p.48).

    Na bela epgrafe de Maurice Blanchot, escrever comea com o olhar de Orfeu. Esse olhar, que nos convida a virar para trs, tambm o olhar que dirigimos ao prprio Orfeu, ao mito, ao sentido de origem como fonte geradora, como princpio. Desfazendo o teor determinstico do nexo causal, uma srie de questes ricocheteiam entre si, inclusive aquelas de ordem conceitual que envolvem o nosso prprio olhar.

    Olhar para trs um desafio: o passado sempre conflituoso (SARLO, 2007, p. 9). No dilogo memria/histria, por diversas vezes uma depe contra a outra e at mesmo a simples evocao do passado nem sempre reconfortante ou configura um momento libertador alm do que, de maneira paradoxal, o retorno pode tambm representar a captura do presente. Umberto Eco, h algumas dcadas atrs, vai nos dizer que o passado no pode ser eliminado porque isso levaria ao silncio; e que, por outro lado, falar do passado no implicaria na suspenso do presente.

    Conforme entendemos, pela saudvel brecha que opera com retorno, recuo, revisitao, esboamos em nossa pesquisa o olhar para trs: olhar que no pretende interromper o fluxo da vida, seja ele qual for, que no deseja virar esttua, nem fixar-se, ad aeternum, no lugar da esterilidade. L e Orfeu porque se prendem rigidamente ao que passou so exemplos significativos na contra mo do movimento. A partir do momento em que olham para trs amargando as perdas cultuando um saudosismo atroz e ao mesmo tempo desobedecem a Deus e aos deuses quase vergando ao peso da culpa pela desobedincia ordem divina , perdem sua vida pregressa, seus amores e tambm a si mesmos. Experimentam, em seu olhar temeroso, em sua aventura heroica, imagem e sentimento de tragdia irresgatvel.

    Orfeu, descido aos infernos para buscar Eurdice, toca as cordas de sua lira. Com seu canto, emociona Pluto e Prosrpina, os seres incorpreos e a prpria noite. Consegue que lhe seja devolvido aquela que a morte lhe tirara, sob a condio de no se voltar para ela antes de t-la trazido para a luz do dia. Ele a precede, portanto, no estreito caminho envolvido em espesso nevoeiro mas, uma vez beira do caminho, cede impacincia de rever seu rosto. Eurdice imediatamente sugada pelo abismo, onde se desfaz como fumaa (BRICOUT, 2003, p.13).

    O mito um complexo de relaes, um jogo de luz e sombra, constante convite revisitao. Mas, se ao voltar a v-lo, ns o aprisionarmos nas malhas da rede conceitual, na viso determinstica que envolve causas e efeitos, nas armadilhas das categorizaes

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    absolutas, tambm ele se esvanecer como fumaa, na mesma medida em que nos transformaremos em esttuas de sal. Assim erigida, desconectada do presente e do prprio passado que diz elogiar, a slida viso do analista resta desmanchada e estril.

    Mas olhar para trs precisa ser de fato manobra inconcilivel com o presente? Como constituir esse passado to presente e ao mesmo tempo clandestino? Parafraseando Detienne (1981), onde encontrar um local provisrio, uma praa aberta, um territrio nmade?

    O culto perda, a iluso saudosista de um tempo que era muito melhor e no volta mais no uma virada para transformar-se, mas para virar esttua. Com tal carga dramtica, o gesto de olhar para trs recusado, mascarado ou sofre bloqueio, ao que promove tragdia ainda maior. H que se refazer o olhar para justamente no perder o passado, para perceber at mesmo quando e por que ele celebrado e/ou esquecido.

    Neste vis, Adauto Novaes (1988, p.9) conta que os antigos nos ensinam que mortos so aqueles que perderam a memria, e no foi por acaso que os gregos escolheram um dos sentidos para descrever a retomada da lembrana: beber a gua fresca do lago de Mnemsine.

    Na relao sujeito/tempo, entretanto, no se mobiliza passado ou presente pelo exerccio isolado da deciso ou inteligncia, tampouco por um simples ato da vontade. O retorno do passado nem sempre um momento libertador da lembrana, mas um advento, uma captura do presente (SARLO, 2007, p. 9). Os embates pelo tempo so tambm, em ltima anlise, chamados de combates pela identidade. A partir dessa premissa, a experincia do sujeito, em sua crise identitria, paradoxalmente se dissolve e/ou se conserva no relato no somente no discurso da histria como tambm no da literatura.

    Novas perspectivas de reflexo sobre a modernidade revitalizam como lembrana o exlio, a desterritorializao, a polissemia e a multiculturalidade tendncias que na sociedade moderno-contempornea encontram-se em estado hiper.

    A lgica suplementar que preside esse movimento reflexivo promove um excedente interpretativo que resulta no deslocamento dos valores institudos e sua insero numa outra ordem de avaliao. Dar novo valor ao moderno ao se acrescentar a ele o qualificativo tardio, por exemplo estabelecer outro tempo para narr-lo e, efetivamente, um espao de significao descentrada, aberto a modalidades distintas de atuao narrativa (MIRANDA, p. 270).

    Segundo Beatriz Sarlo (2007), os relatos de memria produto literrio do olhar para trs estabelecem uma modalidade de teatro de memria pr-desenhado, onde fundam um

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    espao que no depende s de reivindicaes ideolgicas, polticas ou identitrias, como mencionamos anteriormente, mas tambm de uma cultura de poca que influi tanto nas histrias acadmicas como nas que circulam no mercado (SARLO, 2007, p.16).

    As mltiplas margens se tornam mais presentes no romance moderno, o qual deixa de ser eminentemente mimtico ao recusar a funo de reproduzir ou copiar a realidade histrica, sensvel, entendida em sua temporalidade sequencial. O novo ponto de vista, a perspectiva reconhecida como moderna passa a ser um recurso que projeta o mundo a partir de uma conscincia individual e os projetos ideolgicos nem sempre assumidos como tal, por sua vez, emprestam ao espao da criao artstica, conforme Rosenfeld (1969), uma garantia ilusoriamente absoluta.

    A reangulao do ponto de vista do sujeito que molda o espao circundante pela prpria conscincia e at mesmo, completamos, pela sua inconscincia, por projees emocionais corresponde reorganizao do velho tempo cronolgico. O romance moderno, e no Brasil citamos, aqui, a prosa machadiana realista, nasceu no momento em que, dentre outros, Marcel Proust, James Joyce, Andre Gide e William Faulkner comeam a desfazer a ordem cronolgica, fundindo presente, passado e futuro em funo dos nexos operados pela memria individual de algum personagem.

    Assim, a fico moderna constitui um modelo paradoxal: majoritariamente nega o compromisso com o mundo emprico das aparncias; em outras palavras, recusa noes norteadoras da prpria modernidade, dentre elas a fidelidade ao tempo linear como referencial absoluto, o que se estende noo de origem e causalidade como base do enredo. Pode-se dizer que uma nova cadeia de causas e efeitos que inclui o retorno, o vai e vem com nexo no determinstico vai se desenhando. Roberto Corra dos Santos fala em trans-moderno:

    Do hemisfrio (trans)moderno, procurar-se- pr, como na frase de Caetano Veloso, a mais avanada das mais avanadas das tecnologias em solidariedade com o retorno das foras nobres (qual prope Nietzsche), em novas e ativas maquinarias: o retorno do aurtico, a apario extasiante, a grandeza, o volume, a soberania, o solene, a ampla gargalhada alegre e trgica. Nesse outro processo de fazer e compreender, eis o acento para o retorno uma espcie de sacralizao no mais originria, no mais paradisaca ou mtica, mas formal, esttica. Mltipla e exterior (SANTOS, 2002, p.51).

    A noo de retorno implica repensar a temporalidade como categoria terica na nossa rea de atuao a literatura. E falar sobre o tempo na literatura, portanto, se nos configura um desafio instigante; num sentido mais especfico, no poderamos deixar de mencionar o

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    narrador, voz cuja pretenso no ser benevolente, mas na (nova) tradio moderna, constituir uma relao ambgua expressa no famoso verso de Baudelaire: Lecteur, mon sembable, mon frre (1985) com o leitor, j presente em Tristan Shandy, de Lawrence Sterne. E ainda mais longe, encontrar-se- uma interlocuo irnica com o leitor j no Dom Quixote de Cervantes.

    Na reflexo de Benjamin sobre o narrador (1994), encontra-se um estudo sobre o desaparecimento das narrativas pari passu evoluo das foras produtivas. A narrativa, que para Benjamin uma forma artesanal de comunicao (BENJAMIN, 1994, p. 205), tem o seu vertiginoso declnio em etapas muito visveis. O primeiro indcio da evoluo que vai culminar na morte da narrativa o surgimento do romance moderno em livro difuso possvel pela inveno da imprensa. O segundo, por sua vez, como os fatos hoje andam acompanhados de explicaes. Benjamin afirma: o que acontece hoje est no a servio da narrativa, mas da informao. E metade da arte narrativa, ao contrrio, est em evitar explicaes.

    Ao repensarmos o conceito de moderno, ps-moderno e suas reverberaes na arte literria, ao compreendermos os olhares na sociedade moderno-contempornea, no pretendemos produzir um ensaio sobre o vazio, sobre a perda, nem submergir em algum saudosismo nostlgico que certamente levaria a maldizer o presente e cultuar um tempo que j se foi. Dizemos: para reencontrar o passado preciso pensarmos nele novamente.

    Nas palavras de Wander Mello (1999, p. 265), (...) algo novo se anuncia nessas telas em que o sentimento de perda transforma-se em maior liberdade para o artista, que segue indo para frente quando parece estar andando para trs.

    Trazendo novamente Marshall Berman, Marx, Nietzsche e seus contemporneos sentiram a experincia da Modernidade como um todo, justo no momento em que apenas uma pequena parte do mundo era verdadeiramente moderna (BERMAN, 1986, p. 35). A advertncia bastante propcia, uma vez que este um frequente risco de generalizao conceitual a que ns, leigos e analistas incorremos, geralmente promovido pelo procedimento de dirigir o olhar para os grandes centros urbanos e sociais. A Modernidade do sculo XIX era Londres, Paris, Nova Iorque, So Petersburgo... Na contemporaneidade, urgente trocar e transitar tambm na periferia, nas margens, ampliar o foco, olhar a si e ao entorno, historicizar os conceitos, colocar a reflexo sob o crivo do autoexame e da circunstncia, do tempo-espao em que est inserido. Vale lembrar que as margens e a periferia no esto somente

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    fora dos grandes centros. As cidades modelares esto, elas mesmas, eivadas de marginalidade, da mesma forma que as obras cannicas, em matriz inversa, copiam a matria humana e a expresso da periferia.

    Por tudo isso, olhar para os lados, para cima, para baixo e para trs apropriar-se das modernidades de ontem pode representar o suplemento necessrio vitalidade das narrativas presentes.

    Referncias bibliogrficas:

    APPADURAI, Arjun. Modernity at large. Minneapolis: University of Minessota Press, 1996.

    ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2007.

    BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nicolai Leskov. In: - - -. Obras escolhidas I: magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    - - - - -. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

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    Literature and Postmodernity: looking back without turning into a statue of salt Maria Cristina Ribas

    Abstract: This essay conceptualizes literature as a speech and aims at understanding literature in light in a conceptual review of Modernity and Postmodernity, focusing on the issue of time frames, mainly the dialogue with the past. By means of this looking back without turning into a statue of salt, like L, and without losing oneself within the loss, like Orpheus another point of view is presented as a framework for the aforementioned imprecise categories, aiming at a broader understanding of the theories regarding the theme, as well as the literary texts which belong to, and at the same time escape from, these frames.

    Key words: Modernity. Postmodernity. Past time. Gaze. Literature.