Artigo Ines Ladeira, Mata Atlantica e Os Guarani

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1 TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO NA MATA ATLNTICA REAS PROTEGIDAS? 1 MARIA INS LADEIRA * CTI - CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA Novembro de 2003 Ponto de Vista Abordar o panorama atual das UCs Unidades de Conservao, enquanto reas que devem ter protegida sua diversidade biolgica, com propostas para sua conservao, uma contribuio necessria. Por outro lado, destacar o modo de vida tradicional indgena como um dos principais fatores de presso e impactos em UCs num cenrio em que crimes ambientais impunes so praticados cotidianamente, demonstrando a inoperncia das nossas instituies, , no mnimo, constrangedor (e estranho). Ao nosso ver, quanto mais espaos nos meios de comunicao se concede a essa postura, nos termos em que se mantm, s retrocessos teremos em relao s polticas e aes de conservao ambiental e uma tica social e moral. Ao contrrio, debates e maior visibilidade deveria ser dada catica e no resolvida situao fundiria das UCs de uso indireto, tais como os altos valores exigidos nas aes de desapropriao, a sobreposio de ttulos privados, o no reconhecimento dos direitos dos seus antigos ocupantes, as crescentes ocupaes irregulares, enfim, questes graves e volumosas que impedem a implantao dessas unidades. Nossa inteno mudar as bases com que foi construda a verso ndios x parques e seus rumos pouco construtivos, com algumas das informaes advindas de pesquisas e aes realizadas em 25 anos de trabalhos do CTI (Centro de Trabalho Indigenista) voltados regularizao e conservao ambiental de Terras Guarani. As consideraes expostas neste artigo no pretendem dar conta da complexa realidade das sociedades indgenas e da Mata Atlntica no Pas. Restringem-se alguns aspectos da realidade da sociedade Guarani que hoje a maior populao indgena na rea de Domnio Mata Atlntica. Entretanto, refletem e projetam situaes vivenciadas em outras regies do continente sul americano.

1 Edio deste artigo foi publicada em Terras Indgenas e Unidades de Conservao da Natur za o desafio das sobreposies . ISA Instituto Socioambiental, novembro de 2004. * Antroploga, coordenadora do Programa Guarani / litoral do CTI, Mestre em Antrop ologia Social pela PUC de So Paulo e Doutora em Geografia Humana pela FFLCH USP.

2 A MATA ATLNTICA E A SOCIEDADE GUARANI: TERRITRIOS RETALHADOS3 As consideraes expostas neste artigo no pretendem dar conta da realidade complexa das sociedades indgenas e da Mata Atlntica no pas. Restringem-se a alguns aspectos da realidade da sociedade guarani, que hoje a maior populao indgena na rea de Domnio Mata Atlntica. Entretanto, refletem e projetam situaes vivenciadas em outras regies do continente sul-americano. O que dizem as fontes... Sobre a rea de Domnio Mata Atlntica: ... na poca do descobrimento do Brasil, uma cobertura florestal praticamente contnua, ainda que muito diversificada em sua constituio fitofisionmica e florstica, estendia-se ao longo da costa, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, com amplas extenses para o interior, cobrindo a quase totalidade dos estados do Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Paran, Santa Catarina, alm de partes de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul e de extenses na Argentina e no Paraguai. Essa imensa floresta heterognea, que ocupava uma superfcie superior a 1.000.000 de quilmetros quadrados, somente no Brasil (cerca de 12 % da superfcie do Pas)4, embora hoje muito reduzida e fragmentada, justifica uma denominao comum que a considere na sua totalidade (Ibsen de Gusmo Cmara, 1996:18). Constituindo a segunda maior formao de floresta tropical da Amrica do Sul, a Mata Atlntica desenvolvia-se em toda a costa nordeste, sudeste e sul do Brasil, cobrindo terrenos de formao muito antiga, com uma faixa de largura varivel, que em direo ao interior abrangia formaes florestais na Argentina e do Paraguai. Esta ampla distribuio geogrfica, sobre solos diferenciados, aliada a uma srie de formaes montanhosas litorneas, cria condies ambientais de diferentes temperatura, insolao, nichos especficos e adaptaes decorrentes de distintas eras geolgicas que fazem dela uma das florestas de maior diversidade biolgica de todo o planeta (Oliveira Costa, 1997:9).

Sobre o territrio Guarani: 3 Por ser minha rea especfica de conhecimento, as informaes sobre a sociedade guaran i so mais detalhadas do que as relativas Mata Atlntica. 4 A extenso precisa seria 1.350.000 km2 (Inpe e SOS Mata Atlntica, 2002).

3 Antes da chegada dos europeus, a grande famlia, ou a nao Tupi-Guarani ocupava uma vasta regio que, de maneira descontnua descia pelas costas do Oceano Atlntico desde a desembocadura do Amazonas at o esturio Platino, estendendose rumo ao interior at os contrafortes andinos, especialmente em volta dos rios (Ruben B. Saguier, 1980:IX ). Os guaranis ocupavam a poro do litoral compreendida entre So Paulo e o Rio Grande do Sul; a partir da, estendiam-se para o interior at os rios Paran, Uruguai e Paraguai. As aldeias indgenas distribuam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do Paran. Seu territrio era limitado ao norte pelo Rio Tiet, a oeste pelo Rio Paraguai (Hlne Clastres, 1978:8) 5. En los siglos XVI y XVII, los espaoles, a medida que avanzaban en sus viajes de exploracin y en sus expediciones de conquista y los misioneros en su conquista espiritual encontraron a los Guaran formando conjuntos territoriales ms o menos extensos, que llamaron provincias , reconocidas por sus nombres propios: Cario, Tobatin, Guarambar, Itatn, Mbaracay, gente del Guair, del Paran, del Uruguay, los del Tape... Estas provincias abarcaban un vasto territorio que iba de la costa atlntica al sur de So Vicente, en el Brasil, hasta la margen derecha del rio Paraguay, y desde el sur del ro Paranapanema y del Gran Pantanal, o lago de los Jarayes, hasta las Islas del Delta junto a Buenos Aires (Bartomeu Meli, 1991:15). Fontes que se referem rea de abrangncia da denominada Floresta Atlntica e ao domnio territorial dos grupos falantes da lngua Guarani (da famlia Tupi-Guarani, tronco lingstico Tupi) no sculo XVI so muitas (sobretudo em SC, PR, SP). Cabeza de Vaca refere-se a povoados de ndios guaranis onde parava com seus homens e guias indgenas durante expedio empreendida a partir de 1541 da Ilha de Santa Catarina at Asuncin. Essa nao dos guaranis fala uma linguagem que entendida por todas as outras castas da provncia ... Esses ndios so lavradores que semeiam o milho e a mandioca duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que ns na Espanha, possuem muitos papagaios, ocupam uma grande extenso de terra e falam uma s lngua (1999: 157). Sua expedio, assim como a de Ulrich Schmidel, alm de viajantes e missionrios (Gonneville, Aleixo Garcia etc.) sobreviveu graas generosi dade dos Guarani que os hospedavam, forneciam alimentos, guias e mo-de-obra. Durante o perodo de colonizao, para no se submeterem aos processos de domesticao dos novos povoadores, os ndios abandonaram aldeias situadas na costa atlntica (Ladeira, Darella e Ferrareze, 1996). No sculo XIX, os Guarani que escapa ram dos colonos e das misses jesuticas e conservaram sua autonomia estabeleceram-se nu m 5 Separado deste bloco pelo Chaco, vivia outro povo guarani, os chiriguanos, junt o s fronteiras do Imprio Inca (Clastres, 1978:8).

4 territrio que durante muito tempo permaneceu inacessvel, sendo denominados ou caingus - gente da floresta (Clastres, 1978:10). caaigus

A riqueza maior das fontes histricas vai alm da descrio do territrio guarani. Elas mostram como se processavam as formas diferentes e trgicas de contato entre brancos e ndios6, responsveis pela dizimao da quase totalidade da populao indgena encontrada. Estimativas apontam que a populao Guarani no incio do sculo XVI era, no mnimo, cerca de 1.500.000 (Clastres, 1978). Embora no se possa, poca da conquista, precisar as diferenas grupais, certo que os Guarani dominavam ampla regio geogrfica, como comprovado por pesquisas arqueolgicas (Noelli, 2003). Nos sculos XVIII e XIX a colonizao volta-se para o interior, de modo que os registros e os povos indgenas do litoral, considerados extintos ou integrados pop ulao regional, so esquecidos. No final do sculo XIX e incio do sculo XX,encontram-se alguns registros sobre a presena dos remanescentes guarani no litoral7. No litoral, a parte justamente a mais agreste e inculta, entre o Ribeira de Iguap e e a bacia fluvial do Rio Conceio, foi a zona por elles preferida. Ali esto elles verdadeiramente em sua casa ; toda essa regio inteiramente despovoada, ningum os encommoda, a no se algum caador que uma ou outra vez penetra nessas florestas. Dahi tambm lhe so fceis as suas viagens para os centros povoados, pois esto apenas a trs e quatro dias de Santos e So Paulo, e a dia e meio de Itanham, aonde vm vender o produto de suas industrias e fazer seus pequenos provimentos (Calixto, 1902). A partir do incio do sculo XX, os estudos etnogrficos de Nimuendaju, Schaden e Cadogan, alm de registrarem a presena guarani em reas indgenas no litoral e a persistncia de grupos guarani em se fixar na costa atlntica, permitiram maior conhecimento sobre suas especificidades lingsticas e culturais, definindo as bases para a classificao dos subgrupos guarani na atualidade. Embora esta classificao no corresponda completamente s suas prprias definies (que envolvem lugares de origem, laos sangneos e processos histricos de contato), ela aponta uma definio de diferena explcita e vivenciada pelos prprios Guarani, observada tambm na disposio dos lugares e regies que ocupam dentro de um mesmo e amplo espao geogrfico (Ladeira, 1992)8.

6 ndios e brancos so denominaes genricas empregadas por uns e outros como fator de diferenciao tnica. So expresses mencionadas, neste artigo, sem valor pejorativo. 7 Alm dos relatrios das Diretorias de ndios do Imprio, h registros que atestam aldeam entos indgenas no sculo XIX presentes nos arquivos pblicos dos estados (Azanha e Ladeira, 1988). 8 Na regio oriental do Paraguai, os Kaiova e os Nhandva/Xiripa so conhecidos respec tivamente por Pai Tavyter e Ava-Xiripa. Outros grupos Guarani Guajaki, Tapiete e os conheci dos por Guarayos, Chiriguano tambm so encontrados no Paraguai e na Bolvia.

5 O territrio atualmente ocupado pelos Mbya, Nhandva (Xiripa) e Kaiova, grupos Guarani que se encontram hoje no Brasil, compreende partes do Brasil, do Paragua i, da Argentina e do Uruguai. No litoral, as aldeias Guarani esto localizadas na faixa geogrfica que se estende do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo e so formadas por grupos familiares Mbya (atualmente predominantes) e Nhandva 9. por grupos familiares Mbya (atualmente predominantes) e Nhandva 10. No Brasil, calcula-se a populao Guarani em torno de 35 mil (8 mil Nhandva, 7 mil Mbya e 20mil Kaiov),e na Argentina (Misiones) 4.500. No Paraguai a populao Guarani cerca de 46 mil (13.430 Ava Guarani/Nhandva, 14.324 Mbya, 13.132 Pai Tavyter/Kaiov, 2.155 Guaraios, 1984 Tapiet, 1190 Ach)11. Contexto Atual Evidncias arqueolgicas datam a presena humana na Amrica do Sul h aproximadamente 13 mil anos, poca que coincidiria com a expanso da Mata Atlntica, quando esta definiu suas fronteiras histricas . As interaes dos diversos e sucessivos grupos humanos com a floresta, bem como o grau e a qualidade das intervenes praticamente impossvel precisar (Dean, 1997:37-39). Atualmente, na rea de Domnio Mata Atlntica vivem cerca de 108 milhes de habitantes, ou seja, 60% da populao do pas, de acordo com o IBGE (Censo de 2000), sendo a regio Sudeste a que concentra maior densidade demogrfica. No por acaso que a Mata Atlntica no Brasil hoje restringe-se a cerca de 7 a 8% de sua rea de domnio. Por suas caractersticas geogrficas e processos histricos, o Sudeste e o Sul do pas foram as regies mais visadas pela colonizao e pelos ciclos de explorao econmica (extrao predatria de madeiras, ouro, cana de acar, caf) e os processos de industrializao e urbanizao que provocaram, nessas regies, a concentrao das maiores metrpoles e cidades do pas, plos industriais e petrolferos. Nas ltimas dcadas as presses foram intensificadas12. Como medida preventiva de preservao do meio ambiente, a Constituio Federal de 1988, em seu artigo 225, 4, declara a Mata Atlntica e a Serra do Mar (e a Floresta Amaznica, o Pantanal Mato-Grossense a Zona Costeira) patrimnio nacional, 9 Em alguns locais, os Guarani classificados como Nhandva se autodenominam Tupi G uarani ou Tupi. 10 Em alguns locais, os Guarani classificados como Nhandva se autodenominam Tupi Guarani ou Tupi. 11 Direccin General de Estatisticas, Encuestas y Censos. Pueblos Indigenas del Pa raguay resultados finales: 2 Censo Nacional Indgena de Poblacin y Viviendas. Asuncin, 2002. 12 www.rma.org.br ; www.wwf.org.br ; www.ambiente.gov.br ; www.vivaterra.org.br; IBGE; Inpe; SOS Mata Atlntica. Nesses informes, os modelos de produo das comunidades tradiciona is e indgenas no so responsabilizados pela devastao que ainda ocorre.

6 condicionando sua utilizao na forma da Lei . Mas somente com o decreto federal n 750, de 1993, a definio legal de Mata Atlntica no Brasil consolidada com o objetivo de otimizar sua proteo13. Na dcada de 1980 1990, a quantidade de Parques e Reservas na Mata Atlntica da regio Sudeste dobrou (chegando a 205), fazendo com que a soma de suas reas aumentasse quase 5 vezes (para 48.307Km2). Mais do que resolver a difcil situao fundiria dessas Unidades, o que se pretendia era, pelo menos, restringir as ativi dades dos ocupantes legais e ilegais na Mata Atlntica, tendo contribudo para isso o Tombamento da Serra do Mar (Dean, 1997: 354). Hoje, a Mata Atlntica existente base fsica de uma ocupao humana desordenada e de categorias jurdicas e administrativas diversas, tais como: propriedades privadas, Unidades de Conservao14 e Terras Indgenas. At o momento, entre os Estados de RS, SC, PR, SP, RJ, e ES, foram criadas 66 Unidades de Conservao (entre Parques, Reservas, Estaes Ecolgicas, somando um total de 2.086.363 hectares, e, incluindo as reas de Proteo Ambiental, 2.527.087 ha), nem todas elas implantadas15. Nesses mesmos estados (do RS ao ES) encontram-se, atualmente, cerca de cem reas ocupadas pelos Guarani Mbya e Nhandva (alm de locais de estadia temporria durante suas viagens). Essas cem reas (interior e litoral) abrigam cerca de 7 mil Guarani. Na faixa litornea, entre os estados do RS e RJ, so 64 aldeias (com populao proporcional), a maioria com terras insuficientes devido crescente urbanizao e aos desmatamentos. Entre essas Terras Guarani demarcadas, com propostas de reviso de limites, em processo de identificao, ou sem procedimentos , at o momento, somente 16 reas foram homologadas pela Presidncia da Repblica, somando um total de apenas 19.075 hectares (CTI, 2003)16. No Mato Grosso do Sul, concentram-se cerca de 22 Terras Kaiova e Nhandva reconhecidas homologadas por decreto presidencial, alm de quase uma centena de rea s tradicionais reivindicadas pelas comunidades que delas foram expulsas, evidencia ndo uma crtica situao fundiria e tambm ambiental, a despeito de no haver nenhum Parque na rea de DMA no MS. Segundo Antonio Brand (Programa Kaiova/Guarani UCDB), o fenmeno dos suicdios entre os jovens Kaiova multicausal, mas tem sua raiz no confinamento territorial). 13 Nessa definio foram consideradas as delimitaes estabelecidas pelo Mapa de Vegetao o Brasil, IBGE, 1988, conforme art. 3 decreto 750. 14 No Vale do Ribeira (SP) foram criadas at o momento 24 UC que somam 1.560.261 h ectares, 51% da rea da regio (ISA/SOS Mata Atlntica,2002). Em conjunto com o Complexo Laguna r Estuarino (PR-SP), onde se encontra o maior nmero de comunidades tradicionais e a maior concentrao de reas de Mata Atlntica. 15 ES: 17; RJ: 13; SP: 19; PR: 12; SC: 10; RS: 12 (Consrcio Mata Atlntica, 1997). 16 No interior dos estados do Sul, as dez Terras Indgenas homologadas onde vivem n dios Guarani

so ocupadas predominantemente pelos ndios Kaingang (RS, SC, PR) e Xokleng (SC).

7 Apesar de pequenas, as comunidades guarani no detm o uso exclusivo das terras que ocupam. Somente no litoral foram movidas 16 aes judiciais reivindicando as reas ocupadas por essas comunidades, e uma srie de aes contestatrias das Identificaes (Decreto n 1775, que regulamenta os procedimentos demarcatrios de TI). Alm disso, por se constiturem em uma populao diferenciada etnicamente e minoritria nos diversos contextos regionais, as presses e as tentativas de controle de suas dinmi cas sociais e territoriais so constantes. Em razo do modelo de desenvolvimento, obras de saneamento e abastecimento de gua, sistemas de transmisso de energia eltrica, construo e duplicao de rodovias (Rio Santos, BR-101), barragens, usinas nucleares, Rodoanel, Gasoduto Bolvia-Bras il, entre outras, impactam os recursos naturais das terras indgenas e suas comunidade s. Alm do no reconhecimento das Terras Guarani, quando lhes so concedidas suas licenas e autorizaes pelos rgos de Meio Ambiente, esses projetos ignoram, entre outras normas de proteo, o Decreto no 1.141, que dispe sobre a proteo ambiental das Terras Indgenas e seu entorno. O fato, que se preferiu ignorar, que o reconhecimento dos direitos dos Guarani s terras que ocupam17 impediu maiores e piores desmatamentos para recentes projet os de desenvolvimento, alguns deles para atender ou se beneficiar do crescimento ur bano descontrolado e irregular em muitas regies. Entre esses projetos em SP, destacamse: Obras de aproveitamento do Rio Capivari Monos (Sabesp) para abastecimento de gua na regio sudoeste de So Paulo, o que implicaria na construo de barragens e na conseqente inundao de reas de Mata Atlntica e de caminhos que ligam as aldeias indgenas dos municpios de So Paulo e Itanham, alm de afetar a vazo do Rio Branco que atravessa a TI Rio Branco de Itanham; Sistema de Abastecimento de gua (Sabesp) para abastecimento de oito loteamentos de Boracia (municpio de Bertioga), resultando na passagem de uma adutora de gua no interior da Terra Indgena do Rio Silveira (opo da comunidade Guarani como contra-proposta de novos desmatamentos no entorno de sua Terra); Sistema de Esgotos Sanitrios de Mongagu ETE Bichor (Sabesp), no qual o lanamento de esgotos seria feito no Rio Aguape, divisor das TI Guarani Aguape e Itaoca; Sistema de Transmisso de Itaipu LT de 750 kV Itaber / Tijuco Preto III (Furnas Centrais Eltricas), cujo desmatamento no entorno das TI d a Barragem (Morro da Saudade) e Krukutu fez com que as comunidades Guarani solicitassem, como contrapartida, projetos de reflorestamento e nova Identificao d os limites de suas Terras (ento com 26,30ha e 25,88ha respectivamente); extrao de cascalho, seixos e areia do leito do Rio Branco de Itanham (mineradora Caobe) na divisa da TI, para duplicao da Estrada Pe. Manoel da Nbrega. Entre os vrios projetos que afetam as comunidades Guarani no Sul, as Obras de duplicao da BR-101 (Denit) nos trechos compreendidos entre os municpios de Garuva (SC) e Osrio (RS) levaram o s 17 Este direito estende-se a todas as Terras Indgenas, demarcadas ou no (Lei no 6.

001 e CF, art.231).

8 Guarani a reivindicarem medidas de proteo ambiental e Identificao de Terras Indgenas, pois sabem que esses projetos aceleram novas ocupaes e desmatamentos. O impedimento ou a minimizao desses impactos ocorreu atravs de aes conjugadas entre comunidades Indgenas, ONGS indigenistas (o CTI participou de todos esses processos), Ministrio Pblico Federal e Funai. Tambm se observa que a regularizao fundiria de Terras Guarani possibilitou a recuperao da vegetao nativa, como mostram imagens de satlite e fotografias areas em extenses ocupadas e reconhecidas para os ndios h mais de dez anos (Araponga, Parque Nacional da Bocaina/RJ, Rio Branco e Aguapeu, PESM/SP, entre outras). Embora esse cenrio se desenrole numa esfera de menor interesse poltico dentro da problemtica Terras Indgenas, Meio Ambiente, projetos de desenvolvimento e polticas pblicas que tem como foco principal a Amaznia, no reduto Mata Atlntica/povos indgenas das regies Sul e Sudeste que surgem os impasses mais crticos, os debates tericos mais antagnicos e os projetos de desenvolvimento econmico equacionados de forma mais injusta e lesiva aos povos indgenas (Ladeira, 2001). Pois, se as Terras Indgenas destinadas a cerca de 200 grupos compem perto d e 12,4% do territrio nacional, 40% da populao indgena do pas, presente nas regies Sul, Sudeste, Centroeste e Nordeste possui somente 1,3 % destas TIs reconhecidas pela Funai (Oliveira, 1996)18. As condies atuais do territrio e das Terras Guarani no cenrio administrativopoltico so complexas. Deve-se, todavia, considerar que as relaes entre o Estado e as comunidades Guarani, no que se refere ao reconhecimento dos seus direitos sobre as terras onde vivem, muito recente, remontando a cerca de 15 anos, apesar da histri a antiga e intensa de contato. Aos Guarani sempre se negara o direito terra, na medida em que eram considerados nmades , estrangeiros, aculturados, em vias de integrao. Foi preciso um intenso trabalho indigenista para que a dinmica social e territorial dos Guarani fosse reconhecida formalmente pelo Estado brasileiro. Somente em 1987 as primeiras ald eias exclusivas aos Guarani foram demarcadas e homologadas. Esse marco se deu no esta do de So Paulo, com o apoio decisivo do Governo Montoro, a partir de um projeto elab orado pelo CTI e concretizado atravs de um convnio realizado entre a Funai e a Sudelpa (Superintendncia do Desenvolvimento do Litoral Paulista, 20/12/1984). As reas demarcadas e homologadas em 1987, em sua maioria, esto sobrepostas ao Parque Estadual da Serra do Mar. Nenhuma polmica foi gerada, nenhum limite 18 Vale lembrar que os 12,42% do territrio nacional reconhecidos como TI no esto to talmente desocupados para o uso exclusivo dos ndios. A populao indgena, vivendo em Terras Indg enas, ainda corresponde a 0,2% da populao total do pas. O divulgado aumento demogrfico sig nifica,

antes, que o ndice de mortalidade entre os ndios, embora alto, diminuiu.

9 alterado e aos ndios no foram imputadas as explcitas e latentes presses que ainda ocorrem nessa UC de uso indireto. A Estao Ecolgica da Juria tem como um de seus limites a Terra Indgena Serra dos Itatins. Na ocasio da definio de limites da EEJI, no se considerou que a ocupao guarani adentrava a nova categoria, mesmo se sabendo da existncia de um cemitrio guarani em seu interior. Em Santa Catarina o Decreto do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro se efetivou sobre indcios claros da presena indgena descrita em relatrio realizado pela UFSC/Fatma (1976). Os fatos no se encerram aqui. Mas a partir dos anos 1990 que a presena Guarani passa a incomodar s administraes, primeiro do recm decretado Parque Nacional do Superagui (PR) e depois na Ilha do Cardoso. Comea ento a veiculao de que a presena guarani na Mata Atlntica era indita, artificial e extremamente ofensiva. Em algumas situaes procuram-se atestar a antecedncia dos Decretos de criao de Parques presena guarani nesses limites. Isso no faz o menor sentido para os Guarani, que tm suas prprias definies e categorias dos espaos habitados. Em cada caso o que se pretende a sada do grupo, no importa para qual Unidade se desloquem, inclusive para outros estados, como foi o caso de uma famlia, que aps a morte de uma liderana, e de muitas presses para sarem, mudou-se da Barra do Ararapira (PN do Superagi/PR) para a Ilha do Cardoso (PEIC/SP) e depois para a Se rra do Tabuleiro (PEST/SC). A histria do reconhecimento do territrio e das Terras Guarani, marcada pela omisso e pela lentido, segue em descompasso com as necessidades vitais do povo indgena agravadas pela dinmica capitalista de desenvolvimento. Aps sculos de omisso e devastao florestal, definir uma poltica de regularizao de terras para os Guarani garantirem seu modo de vida e autonomia, respeitando-se seu territrio, tarefa que impe diferentes estratgias e aes. A fragmentao da Mata Atlntica e dos territrios indgenas, provocada pelo crescimento demogrfico e pelo modelo de civilizao, se no os extinguiu, reduziu drasticamente seus antigos povoadores. Ainda assim, a Mata Atlntica considerada um dos mais ricos conjuntos de ecossistemas em termos de diversidade biolgica do Pla neta (RMA, 2003). Do mesmo modo, apesar da invaso e destruio da maior parte do territrio guarani, estes ndios conservam suas tradies, Lngua e conhecimentos milenares especficos sobre a floresta. Aspectos do Territrio Guarani-Mbya Antigamente os avs falavam sobre a terra onde passaram... E eles diziam que havia muitas aldeias espalhadas... No tinha estradas, antigamente, s picadas que os ndios abriam. No havia tantas dificuldades porque no tinha os brancos, nem colnias, s os ndios e eles sabiam para onde ir. Estou muito alegre por ver onde pisaram nossos avs. Nossos avs antigos sempre diziam que no mundo inteiro

10 haveria uma aldeia Mbya. E o que eles falaram verdade Aguapeu/SP, 1997). (liderana do

Antigamente nossos pais tiveram aldeias grandes com muitas famlias. E depois as famlias foram para outros lugares e alguns parentes ficaram longe. E os brancos, j no tempo dos antigos, eles falavam: por que vocs no param, por que vocs abandonam os lugares? Isso quer dizer que vocs no querem nada. Por que vocs abandonam as suas aldeias? porque querem outra terra para ficar? Por isso, no vamos deixar para vocs . Antigamente no era assim porque tinha as matas e os nossos grandes chefes tinham a terra porque, antigamente, ns sabemos que Deus deixou a terra e fez este mundo para ns, ento ns no dividia. Agora j os brancos, no. Eles tm seu prprio lugar, o lugar de cada um. Ento agora j tem chefes brancos que falam para ns: aquele de vocs; e vo vocs desses lugares... (liderana feminina, aldeia Boa Esperana/ES, 1997). Dentre os grupos Guarani da atualidade so os Mbya que possuem o maior nmero de aldeias no litoral. Os Mbya conservam um territrio que compreende partes do Brasil, do Uruguai, da Argentina e do Paraguai formado por incontveis pontos de passagem e por aldeias que se interagem atravs das redes de parentesco que implic am constante mobilidade19. A ocupao territorial guarani se realiza segundo um modo tradicional, atravs de dinmicas socioculturais prprias e seculares, assim como da manuteno da reciprocidade entre aldeias e famlias que habitam, permanentemente, o mesmo espao geogrfico (Ladeira, 1997). Em razo da necessidade de confinar as comunidades indgenas para promover sua prpria ocupao expansionista, a sociedade nacional sempre procurou criar categorias que legitimassem esse confinamento (Reservas, Colnias, reas Indgenas). Terra Indgena uma categoria jurdica administrativa definida pela Constituio Federal (artigo 231) e pelo Estatuto do ndio (Lei no 6001 de dezembro de 1973), cuja prot eo e demarcao compete ao Estado20. J o territrio indgena implica no espao fsico onde as sociedades desenvolvem relaes sociais, polticas e econmicas definidas por suas tradies, culturas e cosmologias. Nesse sentido, o conjunto de terras demarcadas para os Guarani no corresponde, nem qualitativamente nem quantitativamente, ao conjunto de reas 19 Da mesma forma, ns nos movimentamos sobre o territrio em funo de nossa dinmica, legitimamente, assim cremos, porque detemos o seu domnio, mesmo que de forma inju sta perante nossa prpria sociedade. 20 As delimitaes das Terras Indgenas, via de regra, no abrangem todas as suas reas de uso e tm como condicionante as ocupaes do entorno, definidas por um modelo de desenvolvim ento e de conservao ambiental alheio aos ndios e pr-estabelecidos por outros interesses e horizontes.

11 ocupadas e pleiteadas por eles e que condizem com sua noo de territrio (Ladeira, 1993). As Terras Guarani situam-se em diferentes regies, no so contnuas e esto entremeadas pelas mais variadas formas de ocupao humana. Portanto, quando dizemos que os Guarani mantm a configurao de um territrio tradicional significa que, para eles, o conceito de territrio supera os limites fsicos das aldeias e trilhas e est associado a uma noo de mundo que implica na redefinio constante das relaes multitnicas, no compartilhar e dividir espaos etc. O domnio sobre seu territrio, por sua vez, se afirma no fato de que suas relaes de reciprocidade alianas ou intervenes polticas e religiosas, nas questes fundirias e de subsistncia no se encerram exclusivamente nem em suas aldeias, nem em complexos geogrficos contnuos e prximos. Elas ocorrem no mbito do mundo onde configuram seu territrio, envolvendo aldeias situadas em regies prximas e distantes (Ladeira, 1997). Assim, o territrio Guarani, enquanto um espao de uso e construo, no fragmentado porque suas aldeias no sobrevivem isoladas umas da outras. Os Guarani ocupam e necessitam conservar, de modo tradicional, uma extenso territorial sobre a qual no detm o uso exclusivo. E, pelo prprio fato de no deterem o uso e a posse exclusiva de todo o territrio que ocupam, torna-se invivel, para ele s, manterem suas aldeias e seus usos e prticas em lugares fixos, alheios dinmica e ao modelo da ocupao envolvente que tambm no so estticos. Na ltima dcada, as demandas, por parte dos Guarani, para demarcao de reas redescobertas ou retomadas (antigas aldeias ou acampamentos) se acentuaram, refletindo o empenho em assegurar, diante das condies cada vez mais adversas, a base territorial de sustentao de sua sociedade (Ladeira,2001). O territrio em si, para mim no um conceito. Ele s se torna um conceito utilizvel para a anlise social quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente com aquele atores que dele se utilizam (Milton Santos, 2000) QUESTO DE NATUREZA Natureza o primordial, quer dizer, o no construdo, o no institudo; donde a idia de uma eternidade da Natureza (eterno retorno), de uma solidez. A Natureza enigmtica, um objeto que no inteiramente objeto; ela no est inteiramente diante de ns. Ela nosso solo, no aquilo que est diante, mas aquilo que nos carrega (Merleau-Ponty, [1956] 2001). Certo equvoco reside na idia de se estender a todas as sociedades o modelo idealizado no dualismo moderno que separa natureza e sociedade. Apesar de intere sses

12 tticos comuns, as relaes com a natureza por parte das minorias tnicas e dos movimentos ecologistas so totalmente distintas. A relao das sociedades dominantes com a natureza uma relao de tutela, e implica em reconhec-la como entidade que merece proteo e respeito por ter sido desrespeitada e maltratada, e ser passvel de continuar a ser. preciso pois estabelecer normas que definem deveres aos homens e direitos aos seres da natureza, estendendo-lhes os direitos definidos nos princpi os jurdicos que regem as pessoas. O prprio conceito de natureza que atribumos s sociedades indgenas pode ser questionado, pois no haveria lugar para a natureza em uma cosmologia que confere a animais e plantas atributos, comportamentos e cdigos morais da humanidade. O que aqui chamamos de natureza no um objeto que deve ser socializado, mas o sujeito de uma relao social (Descola, 1998 e 2000).

Para os Guarani o conceito de natureza tem como a traduo escolhida Ka agy ( Floresta , matas ka a = mato, erva; gy = sob). Assim, a floresta , em sua essncia, a entidade maior (se consideramos essa expresso como conceito) que rene todos os elementos naturais, em profunda simbiose, o que implica uma relao direta entre os seus povoadores. Se para ns, que vivemos adaptados a padres urbanos, o conceito de natureza nos remete a vrios elementos naturais fragmentados e inseridos num model o de civilizao que prope descontinuidades (oxignio, recursos hdricos, vegetao etc.), para os ndios, segundo uma lgica natural, um rio natureza junto com a vegetao que o envolve, com os minerais e fauna que abriga, com suas vazes e os solos que as suportam. Assim como os morros21 so natureza enquanto abrigo e sustento das plant as e dos animais, das cabeceiras dos rios, lugares dos donos (ja) que cuidam de cada um dos seres que ns dividimos em diferentes reas do conhecimento: flora e fauna, reino animal e vegetal. Se, de um modo geral, ns nos preocupamos em cuidar da natureza com medidas isoladas, separando o ar, a gua, o solo, o som, reservando-lhes lugar es ou deslocando-os e deformando-os em funo do nosso modelo de civilizao, o conceito de natureza, representado pelo termo Ka agy, revela-a como um conjunto indissociado de espcies em sua diversidade. Revela ainda que o ideal de natureza prevalece aos da s condies existentes. Todavia, o conceito de natureza no abstrato, pois ela um espao concreto e vital em sua integridade. Para os Guarani a natureza enquanto Ka agy um conjunto integrado, um espao fechado e coeso que abriga seres, relaes que se operam numa entidade representativa indissocivel. O que chamamos de Mata Atlntica, os Guarani chamam de nossa mata ou nossa natureza (nhande Ka agy). O termo Kagy, genrico, dependendo do uso, vem acompanhado de outras qualificaes. Entre elas, Kagy ete significa mata verdadeira, autntica, que concentra as espcies de uso; Kagy poru ey (kagy=mata/ p=mo ru=ter,trazer em si/ ey=negao) so reas de mata intocveis, onde se concentra os elementos originais guardados por entidades sagradas; Kagy rive (reas onde no h nada , imprestveis). 21 Por privilegiarem os morros como abrigo de animais e de locais sagrados e intocv eis (Kagy poruey), no aceitam as edificaes que nelas so feitas.

13 Nhanderu (Nosso Pai, o Criador), quando ele fez o mundo, ele deixou para ns os morros e os matos, onde o mel nunca vai faltar. E com os alimentos gerados do plantio e com os frutos gerados no cu (pindo, jaracaxia...) misturados com o mel, ns, seus filhos vamos nos alimentar. E para o brancos, Deus no deixou os matos para eles. Ele mostrou os campos, os planos, para eles usarem. Deus falou os brancos que vo usar os campos , e tambm deixou para eles as vacas, os porcos e os cavalos para eles. Deixou para os brancos o que era de valor (refere-se dinheiro). Para ns deixou quati, tatu, paca, queixada (trechos do discurso de lder espiritual mbya do litoral do Brasil, 1997). As condies ambientais que privilegiam para exercerem seu modo de ser (teko) implicam na existncia de reas contnuas de mata, de espcies e formaes florsticas manejadas que denotam indcios de antiga ocupao guarani, de pequenas fontes de gua banhadas pelo sol nascente, morros, reas adequadas aos seus cultivos tradicionais , plantas e animais silvestres originais (espcies deixadas pelo criador para os Mbya) , privacidade. Desse modo, o espao fsico das reas onde vivem ou procuram viver deve conter as formas e os recortes naturais, incluindo as matas e as nascentes dos r ios que as banham, sendo esta a configurao ideal na definio dos locais de uso, independentemente das demarcaes (Ladeira, 1993). Os Guarani Mbya possuem conceitos e categorias espaciais, tanto de uso corrente no mbito do cotidiano como relativos ao espao mtico (sagrado). Yvy o termo genrico para designar o mundo, a Terra e a terra (solo) e, com freqncia, tambm vem acompanhado de outras especificaes. Yvy vai, a terra imperfeita, o mundo terreno, o mundo onde vivemos; Yvy marey: a Terra da eternidade, onde nada tem fim, nada se acaba ou estraga, tudo se renova periodicamente (Ladeira, 1996, 1999, 2001). Viv endo ou no um tempo mtico, procuram criar condies de subsistncia nesta Terra. Observando como se opera a projeo de valores ambientais em comunidades tradicionais e lentido e), vimos que o modelo de conservao que se pretende impor po de ter um efeito contrrio, pois a economia de subsistncia e a utilizao equilibrada dos recursos naturais s acontece em sociedades que pensam a natureza como fonte inesgotvel de recursos, razo pela qual, por viverem e se reproduzirem junto dela, no precisam apropriar-se dela. Seguem o princpio de que a natureza uma herana natural . Assim que encontramos, nos primeiros contatos com comunidades tradicionais, florestas preservadas. O que pode causar danos a destruio da crena da eternidade das espcies naturais, que passa a acontecer quando as chamadas comunidades tradicionais vem seu projeto de continuidade de vida e uma natureza poderosa, mgic a e dominante serem violentados por outras vises: extrativismo e pesca predatrios, desmatamentos para implantao de projetos de desenvolvimento agropecurios e tursticos, ocupao desordenada, misria, proliferao em poucas mos de propriedades privadas , que legitimam seus crimes ambientais. Assim, aps a

14 perplexidade, sua prpria identidade posta em cheque, uma vez que a base de seus princpios ticos ambientais demolida. Novos modelos vo impor ento novos caminhos, rompendo-se a relao anterior. E elas passam a ser controladas, sancionadas, reeducadas, distanciadas para aprenderem a ver a natureza como escassa e insufic iente, frgil, proibitiva, e sem a seduo das novas necessidades que lhes so impostas e que dificilmente iro satisfazer. E o esprito de comunidade se desfaz... (Ladeira, 1990 ). Para se conservar e respeitar a natureza fundamental no se quebrar seus mitos, a crena no seu domnio e poder sobre o homem, sua fora (Ladeira, 1990). A natureza da Questo ... A os brancos dizem que no podem caar, ento eu digo: - vocs destruram, quem matou os animais foram vocs, ento esses bichinhos que esto vivos at agora em algumas aldeias, porque ns estamos vivos ainda, seno vocs teriam acabado com tudo. S agora os brancos pensam, depois de muito tempo, de muitos anos, que preciso preservar... Convnio Internacional de Biodiversidade ... ns ndios que sabemos conservar a biodiversidade . Por isso ns temos o direito de manter o nosso costume e de conservar. Os brancos, tudo o que vem pela frente, vo destruindo. S ns ndios temos como fundamento conservar. Ns vivemos conforme Tup nos ensinou (jovem liderana de Misiones Argentina, 1997). A explorao predatria das florestas nos primeiros sculos de colonizao, e a destruio intensiva a partir do sculo XIX, com o processo de industrializao e urbanizao e investimentos agropecurios nas regies de domnio da Mata Atlntica, promoveram a extino de espcies vegetais e animais e dizimou a maior parte das sociedades indgenas, sua cultura e conhecimento. Essa destruio intensiva e conjugad a de florestas e ndios nas regies sul e Sudeste (Centroeste e Nordeste) acarretou perdas irreversveis. Se antes da conquista a rea de Domnio Mata Atlntica era exclusiva das populaes indgenas, hoje seus remanescentes so dominados pelas instituies da sociedade nacional. Nesse contexto no mnimo compreensvel que as Terras Indgenas tambm contemplem reas de matas que compem as atuais Unidades de Conservao. O fato que a drstica diminuio da Mata Atlntica, acentuada nas ltimas dcadas no litoral, e a necessidade de polticas para sua proteo, tornaram visvel e incmoda, sociedade nacional, a presena Guarani e seu modo de ocupao territorial. A despeito da sua viso de mundo e de suas prprias categorias ambientais no serem as mesmas dos parmetros oficiais, observadas nas diretrizes de criao de Unidades de Conservao, o interesse dos Guarani na conservao das matas um interesse vital pois estas so ainda o nico espao para, enquanto sociedade, viverem seu modo de vida segundo sua cosmologia e onde, potencialmente, podem desenvolver relaes de autonomia diante da cultura ocidental crist que os envolve.

15 Na ltima dcada, entre tantos fatores de presso sobre a Mata Atlntica e as Unidades de Conservao, recebeu maior ateno da imprensa, e foi alvo de denncias e debates na internet, o fato de famlias Guarani formarem aldeias em reas em que for am decretados Parques. Este fato, criado no incio da dcada de 1990 a partir das administraes dos Parques (em fase de implantao) situados no complexo lagunar estuarino (SP-PR), tornou-se questo em vez de tema, e polmica pelas prprias bases com que foi construda. Evitando-se considerar a situao territorial e cultural guara ni em seu todo, buscar assessoria antropolgica e mesmo as informaes oficiais pblicas sobre a situao das Terras Guarani, preferiu-se considerar cada famlia ou comunidade como um caso novo, uma incmoda mancha nos Planos de Gesto. Preferiu-se tambm ignorar que outras aldeias foram formadas na mesma regio em reas tituladas ou no, e que a maioria das aldeias Guarani, mesmo as identificadas e homologadas, coincid iam com inmeras propriedades particulares, posses e reas de parques (PE da Serra do Mar, P N da Bocaina e PE Serra do Tabuleiro). Na dcada de 1980, discretos, mas visivelment e, os Guarani viviam nas ilhas do Paran. E a Serra do Tabuleiro abrigava a aldeia mais registrada em SC em razo da construo da BR-101 (1960) e da criao do PEST em 1975. E em muitas outras reas de Mata Atlntica, independentemente de suas categorias, e muitas outras situaes viveram eles, sem nosso conhecimento ou consentimento. Colocando-os na mira, como excees regra, como um distrbio ecolgico, como predadores e invasores estrangeiros de Parques, famlias guarani for am criminalizadas e difamadas em meios de comunicao sobre o qual no detm nenhum controle e poder. Uma srie de desgastes para todos os envolvidos, sobretudo, clar o, para os ndios. Um dos mtodos empregados, no caso, foi procurar descaracterizar-se o que h de mais tradicional nos Guarani: sua dinmica territorial e identidade. E quais argumentos prevaleceram para esse julgamento? O CTI pesquisou e elaborou, em 1990, relatrio antropolgico sobre a presena Guarani Mbya na regio estuarina do Paran, que foi encaminhado ao Ibama e Funai22. No houve nenhuma manifestao por parte do Ibama no sentido de discutir o relatrio. Em fevereiro de 1994 o CTI, a pedido da CPRN / SMA -SP elabora outro relatrio, desta vez sobre a presena Guarani na Ilha do Cardoso, tambm no considerado. Criaram-se impasses entre Funai e Ibama e Funai e SMA (Secretaria do Meio Ambiente/Instituto Florest al), intermediados pelo MPF. Impasses que no se resolveriam pela sua prpria natureza contraditria: querer definir lugares para os ndios em funo das nossas temporais categorias espaciais. Alm de aspectos metodolgicos, h ainda um componente ideolgico: nossas instncias de Poder no aceitam a autonomia de outros povos (sob nosso domnio), mesmo que sejam eles uma pequena minoria salva do extermnio. Assim, buscando-se inverter a lgica da histria, os ndios Guarani passaram a ser os invasor es dos nossos matos e parques (nossos para quais sociedades? e em que modelos?). 22 Este relatrio serviu de base para a Identificao da Terra Indgena Ilha da Cotinga, pela Funai.

16 Mas os casos , como no eram nicos, continuaram a acontecer, ento com maior visibilidade. E s para falar de UCs de uso indireto, assim como a Ilha do Cardoso (PEIC)23, a Juria (EEJI) e Sete Barras (PEI), cada qual com seus entraves, sua hi stria, e a no absoro das experincias vizinhas, cada administrao lidando a seu modo com a questo. No que diz respeito sobreposio de propriedades particulares em UCs de uso indireto, o quadro bem preocupante. Somente na Serra do Tabuleiro (SC), a rea identificada em 2001 para os Guarani, de apenas 1.900 ha, continha 102 proprieda des privadas em seu interior e, portanto, dentro do PEST h muito tempo, sem que tives sem sido desapropriadas pelo Estado. Mesmo assim, a TI sofreu, alm das contestaes de particulares, tambm a do rgo de Meio Ambiente, que parece preferir abrigar as 102 ocupaes privadas uma Terra Indgena. Outro exemplo a TI do Aguapeu (SP), onde 60 posses e ttulos de propriedade, antigos e novos, incidiam nos limites da rea reivindicada pela comunidade em 1993, a metade delas dentro dos limites do Parqu e Estadual da Serra do Mar. Em 2002 a Unio indenizou os ocupantes (restam 10 cujos depsitos foram feitos em juzo). Alm de definir mais claramente quais os objetivos dessa questo (ndios X parques), preciso deter-se na prpria natureza dos sujeitos em questo (o que contribuiria para deixar mais claros os objetivos). Se temos como base fsica a Ma ta Atlntica e territrios indgenas, sobre os quais esto as categorias criadas de UCs e TIs, temos, como sujeitos da questo e suas mltiplas relaes, os ecossistemas e os grupos indgenas. As organizaes ambientalistas defendem as espcies vegetais e animais segundo suas pesquisas, protegem-nas criando normas de direito, falam em seu lugar. Os grupos indgenas, como os Guarani, so solicitados, e cada vez mais, a man ter relaes de dependncia com o mundo dos brancos. As entidades indigenistas podem apoi-los em seus projetos, em defesa de suas terras e territrios, assessor-los na compreenso e no dilogo com a complexa sociedade dos brancos (normas, sistemas e modo de vida). Mas nem os indigenistas nem antroplogos representam esses sujeitos e quanto mais intenso o contato, mais se pensam legtimas as negociaes baseadas nos princpios e regras da sociedade dominante, entre brancos e ndios. Por serem humano s (o processo de domesticao teria sido extinto, ao menos com esse nome), as intervenes se processam sem conhecimento sobre as diferenas lingsticas, os padres culturais, a condio de minoria, os processos sociais internos cada comunidade. E assim as instituies dispensam, nos contatos interculturais e na fase de elaborao dos programas implantados pelos governos, a participao de antroplogos e especialistas... (porque de construes entendem os engenheiros e arquitetos, de sade 23 Em 1999, depois de seis anos de intolerncia, foi criado por intermdio do MPF e assumido pela nova direo do PEIC o Grupo de Trabalho Interinstitucional, formado pela Funai, CTI , IF, PEIC e a comunidade Guarani.

17 os mdicos, de biologia e meio ambiente os bilogos, mas de cultura todos pensam entender)24. E novos e maiores problemas surgem, inclusive ambientais. Ao meu ver essa questo, por sua natureza assim construda, colocando as prprias vtimas (ndios e florestas) da devastao em confronto, tira o foco de questes de fato preocupantes em relao ao futuro da Mata Atlntica. O que preciso no se acomodar inoperncia das instituies de governo que no reconhecem nem mesmo as figuras jurdicas e leis que criam, sobrepondo cada vez mais categorias e legislaes incuas, sendo preciso muitas batalhas e gestes da sociedade civil para est as serem cumpridas, e dificilmente o so, sobretudo nos casos mais graves. Duas concepes correntes sobre a relao dos ndios com a natureza se contrapem. Uma delas se funda na idia inspiradora de harmonia entre ndios e a natureza e a outra de que as prticas tradicionais de subsistncia indgena so destrutivas e desequilibradoras25. Essas concepes dificultam a compreenso sobre a relao das sociedades indgenas e o seu ambiente e a busca de alternativas concretas de conservao ambiental. Organismos internacionais, como a WWF (World Wild Foundation), UICN (Unio Internacional pela Conservao da Natureza) e a ONU (Organizao das Naes Unidas), reconhecem os direitos dos povos indgenas terra e o seu papel fundamental na conservao das florestas. Todavia, as contradies inerentes s dicotomias existentes nos discursos e posturas conservacionistas e desenvolvimentistas (natureza x cul tura; preservao x desenvolvimento) mostram que ambos trouxeram drsticas conseqncias e injustias aos povos autctones. Este fato pode ser constatado tanto pela destruio da maior parte de seus territrios em nome de um modelo de desenvolvimento econmico , quanto pela criao de reas protegidas em florestas conservadas das quais algumas polticas pretendem exclu-los (Birraux-Ziegler, 1997). As prticas de gesto e ordenamento territorial definidas pelas polticas pblicas, envolvendo pores de terras e de matas ocupadas por grupos tnicos ou comunidades minoritrias, implicam, de um modo geral, na submisso de concepes espaciais, normas de organizao, ocupao e sociabilidade prprias desses grupos s convenes e aos padres polticos e econmicos dominantes (responsveis pela reproduo de um sistema

24 Esta questo tambm foi abordada pela antroploga Nadia Farage, professora da Unica mp, em reunio do GT de Educao Indgena. VII Congresso Estadual Paulista sobre Formao de Educadores. UNESP, 2003. 25 Como exemplo, a natureza amaznica poderia ser considerada o produto cultural d e uma manipulao muito antiga da fauna e da flora, observada na abundncia dos solos antropo gnicos e sua associao com florestas de palmeiras ou de rvores frutferas silvestres que suge rem que a distribuio dos tipos de florestas e de vegetao na regio resulta, em parte, de vrios milnios de ocupao por populaes cuja presena recorrente nos mesmos stios transformou profundamente a paisagem vegetal... sobretudo no que diz respeito taxa de biodiv ersidade, mais elevada nas pores de florestas antropognicas do que nas pores de florestas no modific das

pelo homem (Descola, 2000:150).

18 nitidamente injusto e autoritrio). Via de regra, impe-se s populaes tradicionais se adequarem aos nossos parmetros e modelos de conservao. Assim, as dificuldades de implantao de planos de gesto em reas que se transformaram em Unidades de Conservao, apesar de alguns esforos para se reverter o quadro, decorrem, provavelmente, de razes polticas e metodolgicas: o seu planejamento no considera as formas de manejo j existentes como referncia inicial para a realizao do zoneamento em seu todo. Dificilmente se poder suprir a falta de reconhecimento da presena de outras vivncias e saberes, por meio do fomento de reunies participativas . Como as presses maiores nas reas protegidas advm do modo de ocupao envolvente e, mais fortemente do modelo de desenvolvimento e consumo da sociedad e dominante, estas presses acabam influindo no ambiente como um todo, no interior e no entorno destas reas, promovendo a intensificao e/ou a diversificao dos tipos de usos, de forma concentrada numa mesma rea ou regio. Assim, preciso considerar tambm as condicionantes derivadas do modelo da ocupao existente fora da Unidade para confeccionar seu plano de manejo. Ao mesmo tempo, a reorganizao dos espaos externos deveria tambm se referenciar nas formas de uso das comunidades tradicion ais e indgenas e nas caractersticas ambientais, evitando-se maiores danos ao ambiente e a essas comunidades (Ladeira, 2001). A IMPRENSA EM FOCO Ns somos uma nica famlia original - o corpo e o jeito o mesmo, a lngua e a palavra a mesma... por isso que ns estamos fazendo fora para ter um s pensamento, no Paraguai, no Brasil ... Todos ns queremos ter sade, a mesma alegria, a mesma fora ( A terra onde pisamos vdeo, CTI, 1998). Embora em algumas reportagens locais aspectos da relao entre ndios e meio ambiente sejam mostrados (com ambigidade), o foco da imprensa tem sido a tese de que os ndios Guarani so invasores de Parques, com se v j nos ttulos e manchetes: Entidades ajudaram ndios a invadir parques estaduais (OESP 19/11/2001); Invaso de reservas por ndios vai Justia (OESP, 18/11/2001); ndios guaranis invadem rea de mata atlntica em So Paulo (OESP, 9/8/2000). Estes e outros artigos, veiculados tambm em revistas (poca 2000; Galileu, 2002, alm de revistas universitrias e revista de interesses difusos ), se ocupam em informar a srie de invases de ndios argentinos nos Parques e Reservas ecolgicas a partir da dcada de 1990, como dizem. Esse enfoque, apresentado reiteradas vezes, induz o leitor desavisado a crer que os ndios so invasores, forasteiros (estrangeiros), extrativistas predadores, trafican tes. Participantes de uma poderosa rede de trfico de pssaros e aves silvestres e colocados nas UCs para que ONGS e movimentos organizados possam se capitalizar e implantar tambm uma indstria turstica. Notcias montadas em verses que no contemplam a realidade dos Guarani, veiculando ainda que teriam sido trazidos

19 clandestinamente da Argentina , ou simplesmente que so ndios argentinos (e no ndios Guarani)26, porque alguns de seus membros nasceram na Argentina, no Rio Grande d o Sul ou na fronteira com o Paraguai (e outros em SC, SP e PR, ES, MS). Dos antroplogos , a imprensa insiste que falem da terra sem mal , excluindo informaes sobre a situao histrica, atual e real das TIs, e reduzindo o significado do mito a uma verso bana l, convencional e folclrica. A reiterao dessas verdades parece visar a criao de uma conscincia antindios, ou melhor, anti-sociedades indgenas (nada contra o bom selvagem ou o bom ndio morto ). Mas pode tambm funcionar diferentemente, quando acusaes ostensivas e ofensivas se auto-denunciam e causam reaes de solidariedade aos ndios, e entre el es prprios. Contudo, o efeito dessa disseminao deformada dos fatos pode ter um efeito de fato imprevisvel quando, como reao, generaliza-se o direito indgena ao uso do espao fsico, vinculando o direito histrico (virtual) ao direito atual, real. Os ndios no tm o domnio dos meios de comunicao. Sua comunicao se opera oralmente nas aldeias, nas visitas sociais e de intercmbios. Por seu lado, em seu s discursos internos, referem-se destruio causada pelos brancos que pem em risco a condio da terra. Antigamente ns tnhamos um rio limpo, no precisava poo, os brancos tiraram nosso rio e no brancos que eles devolvam o que nos tiraram, as terras, os matos, pelo menos que eles devolvam um pouco do que nos levaram, eles podiam devolver. Se eles devolverem alguma coisa do que nos levaram, xe rami (o av) podia construir sua casinha, sua casa de reza (opy) e todos vo ter liberdade para plantar. Ns que somos Guarani, ns que somos iguais, ns nascemos para viver no mato, semprevamos vi ver para usar o que nosso. por causa disso que ns todos estamos fazendo fora, para ter de volta o que ns perdemos. E o que ns estamos pedindo para o governo, foi o prprio governo que nos tirou, tirou toda a nossa terra e os nossos rios... (Misiones, vdeo CTI, 1998). Enquanto isso, a imprensa tambm divulga em Alerta Ambiental (FSP, 27/06/03) que o desmatamento na Amaznia cresceu 40% no binio 2001-2002 em relao ao perodo anterior, segundo estimativa do Inpe. Nos ltimos anos a Amaznia j perdeu quase 244.000Km2 de cobertura vegetal. Ser preciso vermos tambm a quase total devastao da Amaznia para, num futuro prximo, os ndios serem criminalizados e terem sua prticas de subsistncia na floresta interditadas?27 26 Como diz Meli (1987), o Guarani est no Brasil, est na Argentina e est no Paraguai , o fato que ele Guarani e suas fronteiras so outras. 27 A Revista Veja (28 de janeiro de 2004) publicou a pequena mas oportuna matria F iscal, espcie rara na qual divulga que imagens de satlite, na Amaznia, mostram como reas indgenas representam barreiras contra o desmatamento .

20 EM BUSCA DE UM CAMINHO SEM MALES Neste mundo, nesta terra, os brancos querem matar os ndios, por causa da terra. Mas os brancos no vo ter coragem de nos matar, no todos os brancos . (Liderana espiritual do Brasil, no Paraguai. CTI, 1997) Se, aos olhos dos brancos atuais, os Guarani atuais no se assemelham aos Guarani histricos descritos pelos cronistas, tambm os Juru ( boca com cabelo - denominao dada pelos Guarani aos barbudos europeus conquistadores e empregada ainda hoje p ara se referirem aos no-ndios) no se assemelham aos brancos histricos do sc. XVI. Embora os 500 anos de contato tenham se passado, e as roupagens sejam outras, prevalecem nas relaes atuais entre brancos e ndios, traos da poca da conquista e da colonizao. No mnimo queremos determinar seus espaos de ocupao e ditar regras de uso do nosso espao. Afinal no seramos ainda os dominadores? Os Guarani vivem o grande paradoxo de sofrerem presses para adotarem os sistemas da sociedade nacional, no que se refere educao, sade, trabalho, moradia etc., ao mesmo tempo que, para terem seus direitos assegurados, devem manter-se tnica e culturalmente diferenciados, vivendo conforme seus costumes, lnguas, crenas e tradies . So criticados ou menosprezados quando, aparentemente adotando os modelos vigentes na sociedade envolvente, assemelham-se populao carente da nossa sociedade, da mesma forma que o so quando no se submetem s presses para abandonarem seu modo de vida suas prprias prticas de higiene e sade, de educao, suas tcnicas construtivas e agrcolas etc. (Ladeira, 2002). Alianas so feitas com os diversos setores da sociedade nacional, incluindo os responsveis pela degradao ambiental (empresas, proprietrios, governos). Ser mais difcil aceitar a diversidade tnica e cultural de sociedades autnomas que possuem outros modelos de uso e sustentao do ambiente? Parece que sim, mas preciso. Ao seu modo, os ndios no ouvidos falam de seu descontentamento sobre como so realizadas visitaes e pesquisas em reas preservadas. Essas presenas, assim como os barulhos e cheiros e atritos no cho assustam os animais. Se as regras fossem o utras, estas seriam as recomendaes dos Guarani aos visitantes e pesquisadores com relao fauna: no usar desodorantes ou perfumes, no comer alimentos industrializados (e si m os naturais para manter o cheiro), no falar quando caminham, ensinar as crianas a s andarem descalas na mata para aprenderem a pisar e a caminhar com cuidado, sem rudos etc. Outras medidas gerais seriam sazonalizar todas atividades de subsistnci a (econmicas), praticar resguardos e dietas, para no comprometer a reproduo dos ciclos e espcies. Se as UCs e as TIs no forem de fato protegidas e no se recuperar reas significativas de vegetao nativa (sem a primazia do direito de propriedade individ ual sobre os direitos coletivos), os mapas de vegetao continuaro pessimistas. Nesse

21 sentido, alm da conservao do que sobrou, so necessrias novas medidas para recuperao de reas degradadas, ampliando-se a porcentagem de florestas. Isto se pensamos em futuro, se aprendemos no presente com os desatinos do passado de genocdio e degradao ambiental28. No que se refere s Terras Indgenas, o cumprimento da legislao vigente (CF e Decreto no 1.141), evitaria danos ambientais no interior e no seu entorno. Para tanto, seria preciso que as prprias polticas pblicas relativas aos povos indgenas se adequassem ao princpio e condio de que as Terras Indgenas so reas protegidas de acordo com a Constituio Federal (artigo 231). So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens . Parg.1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural segundo seus usos, costumes e tradies . A proteo ambiental prevista na CF fundamental para que os recursos ambientais das Terras Indgenas sejam conservados e os ndios possam exercer suas formas de manejo adequadamente e sem conflitos com a populao envolvente. O que tem acontecido que as aldeias, cujas reas passam pelo processo de reconhecimento formal, tornam-se alvo de programas governamentais de sade, saneamento, educao, moradia, econmicos etc., realizados quase sempre sem subsdios tcnicos e tericos que levem em conta as especificidades culturais e as circunstncia s e caractersticas de cada comunidade, nem as condies ambientais de suas reas. A proteo ambiental prevista na CF impe a manuteno dos usos, costumes e tradies indgenas como prerrogativa de direito e definidora da categoria de Terra Indgena. Desse modo, os programas assistenciais que se consolidam por meio de edificaes e estruturas (sade, saneamento, educao etc.) deveriam se ater no essencial e estritamente necessrio, respeitando-se o modo de vida do grupo indgena e suas reais necessidades, bem como a organizao espacial de cada aldeia (casas, roas, quintais, matas, espaos de rituais etc.) que no fixa, pois social. E, sobretudo, o s aspectos relativos localizao dessas obras e os critrios tcnicos deveriam ser definidos em conjunto com os rgos de Meio Ambiente competentes, bem como, dependendo do caso, se proceder elaborao de Rima (Relatrio de Impacto Ambiental).

28 Um sopro de destruio, de Jos A Pdua (2002), revela o discurso crtico e visionrio j existente no pas entre 1786 e 1888 sobre a destruio ambiental.

22 No o que est ocorrendo, porm, nos ltimos anos, em algumas aldeias que esto sendo reconhecidas. Uma srie de edificaes de tendncias e estilos variados (escolas, moradias, centros de visitao etc.), e vias de acesso de veculos a essas edificaes, sanitrios precrios e sem manuteno sistemtica, so feitas sem se considerar a questo ambiental da Terra Indgena e cultural da sua comunidade. Penso ser de extrema urgncia que esta situao seja revista e revertida pelas instituies responsveis (Funai, Funasa, SE, Sema, MPF etc.). No se trata de negar assistncia s comunidades indgenas mas sim de realiz-la com eficincia e sem impactos ambientais e culturais. Em reunies com comunidades indgenas e empresas de desenvolvimento (entre elas: Barragem, Krukutu Furnas; Morro dos Cavalos Denit) os representantes guara ni revelaram que a expectativa maior das comunidades referia-se demarcao e reposio de vegetao para que as famlias pudessem assegurar os espaos de mata e desenvolver sua agricultura, vivendo com maior liberdade seus usos, costumes e tradies. O repovoamento de reas degradadas com espcies nativas que fazem parte do acervo cultural guarani contribui no s conservao do ambiente e da paisagem das Terras Indgenas, mas tambm ao bem estar, dieta alimentar e melhoria das condies de sade da comunidade. Para tanto, preciso uma terra cuja proteo ambiental seja exercida com rigor, sem o que, em breve, ser insuficiente. Entretanto parece que as prioridades dos Guarani so as mais difceis de atender 29. E as medidas compensatrias das empresas acabam priorizando edificaes e bens de consumo. Enquanto reas protegidas, deveriam estar sendo cumpridas as diretrizes para implantao das UCs e definidas novas estratgias para a sua regularizao fundiria. Do mesmo modo, as TIs e seu entorno deveriam estar recebendo a proteo ambiental de acordo com o artigo 231 da CF, sendo estendida s comunidades indgenas a possibilid ade de realizarem seus zoneamentos ou seus prprios planos de gesto (quando necessrio), sem maiores entraves ao reconhecimento e conservao de seus direitos originrios. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS AZANHA, Gilberto e LADEIRA, Maria Ins. Os ndios da Serra do Mar - A presena Mbya Guarani em So Paulo. So Paulo, Centro de Trabalho Indigenista, Nova Stella, 1988. BIRRAUX-ZIEGLER, P. Culture, nature, nationalisme et internationalisme: l exemple peuples du bassin amazonien . In: Civilisations, v. XLIV, n 1-2. Bruxelles, 1997. 29 Ciente da situao ambiental atual, que demanda aes integradas com comunidades indge nas, o CTI tem trabalhado com aes diretas de reposio de espcies nativas e de apoio ao modelo da agricultura tradicional, em aldeias Guarani do litoral.

23 CABEZA DE VACA, Alvar Nez. Naufrgios & comentrios. So Paulo, L&PM Editores, 1999. CADOGAN, Leon. La encarnacin y la concepcin; la muerte y la resurreccin en la de los Jeguakva-Temond Por-Gu (Mbya-Guarani) del

poesia sagrada esotrica

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