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Revista Portuguesa de Psicossomática Sociedade Portuguesa de Psicossomática [email protected] ISSN (Versión impresa): 0874-4696 PORTUGAL 2005 Françoise Debelle dos Santos AUTISMO E PSICOLOGIA CLÍNICA DE ABORDAGEM DINÂMICA NUMA SALA TEACCH: REFLEXÕES E PARTILHA DUMA PRÁTICA Revista Portuguesa de Psicossomática, janeiro-dezembro, año/vol. 7, número 1-2 Sociedade Portuguesa de Psicossomática Porto, Portugal pp. 207-217 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx

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Revista Portuguesa de PsicossomáticaSociedade Portuguesa de Psicossomá[email protected] ISSN (Versión impresa): 0874-4696PORTUGAL

2005

Françoise Debelle dos Santos AUTISMO E PSICOLOGIA CLÍNICA DE ABORDAGEM DINÂMICA NUMA SALA TEACCH:

REFLEXÕES E PARTILHA DUMA PRÁTICA Revista Portuguesa de Psicossomática, janeiro-dezembro, año/vol. 7, número 1-2

Sociedade Portuguesa de Psicossomática Porto, Portugal

pp. 207-217

Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal

Universidad Autónoma del Estado de México

http://redalyc.uaemex.mx

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AUTISMO E PSICOLOGIA CLÍNICA DEABORDAGEM DINÂMICA NUMA SALATEACCH:REFLEXÕES E PARTILHA DUMA PRÁTICA

Françoise Debelle dos Santos*

ResumoO presente artigo tem por objectivo

apresentar uma prática de psicologiaclínica de inspiração psicodinâmica comcrianças autistas numa Sala Teacchcujas bases teóricas são de orientaçãocomportamentalista e cognitivista. Ten-tamos indicar as divergências e propo-mos alguns argumentos em favor dacomplementaridade entre as duas abor-dagens no seio duma equipa multidis-ciplinar. A questão da inclusão é breve-mente evocada. Tentamos mostrar o pa-pel específico do psicólogo clínico ao ladonão só das crianças mas também dasfamílias das crianças autistas.

Palavras-chave: Autismo; Psicolo-gia clínica; Educação especial; Síndro-me autístico; Sala Teacch; Abordagemdinâmica e Sala Teacch; Inclusão; Per-turbação global de desenvolvimento;Alentejo.

INTRODUÇÃO:Para recordar as condições de im-plantação do programa Teacch

No fim dos anos 60 nos Estados Uni-dos, Eric Schopler insurgiu-se contra a tesede Bettelheim que tornava os pais respon-sáveis pelo autismo das suas crianças recu-sando-se a qualquer colaboração com eles.Em ruptura com esta orientação, que seapresentava como psicanalítica, Schoplerpõe então, como postulado, que o autismoseria um distúrbio de origem orgânica pas-sando a incluir activamente os pais no pro-cesso terapêutico, dando-lhes um estatuto“de co-terapeutas”. Em 1972 é criada naCaroline do Norte a Divisão Teacch(“Treatment and education of autistic andrelated Comunication in handicapedchildren”), constituindo assim um progra-ma educativo e de saúde que tem a seucargo não só criar serviços e formar técni-cos, mas também fazer investigação.

O programa Teacch tem uma orienta-ção cognitiva e comportamental. A forçadeste programa vem da sua coerência, doesforço desenvolvido em proporcionar osinstrumentos necessários e da estratégiaclara com que tenta responder às necessi-dades específicas de cada criança.

* Psicóloga Clínica. Os meus agradecimentos sin-ceros a todas pessoas que me ajudaram naredacção deste artigo e mais especificamenteà Dr.ª Carlota T. Ribeiro Ferreira que fez umaleitura minuciosa do conteúdo e da traduçãodo texto. (E-mail: [email protected]).

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Actualmente, numerosos países adop-taram o programa teacch2. Em Portugal, aprimeira sala foi aberta em 1996, impulsi-onada pela Equipa de Tratamento doAutismo do Prof. Luís Borges, no HospitalPediátrico de Coimbra. Seguidamente ou-tras salas foram sendo criadas no país, en-tre as quais a Escola Integrada de VilaBoim, criada há dois anos, que iremosapresentar mais adiante.

1. ABORDAGEM PSICODINÂMICAE ORIENTAÇÃO COMPORTA-MENTALISTA: O DEBATE

A orientação organicista de Schoplerteve consequências importantes nos Esta-dos Unidos não só para a definição doautismo, mas também para a orientação daintervenção terapêutica, dado que a tónicavai passar a ser colocada no comportamen-to. Assim, o tratamento do autismo passa aser encarado, essencialmente, como umtema relevante da educação especializadae não um tema da psiquiatria. Teve aindaoutra consequência importante que foi arejeição radical da teoria psicanalítica queinspirara Bettelheim3. Sabe-se hoje que acriação da Escola Ortogénica porBettelheim se relaciona mais com a expe-riência traumática que ele viveu nos cam-pos de concentração em 1938 do que coma teoria psicanalítica4. Contudo, aindahoje em dia, os adeptos do método Teacchdenegam e ocultam a abordagem psica-nalítica não só nos E.U.A., mas tambémem Portugal. Recorde-se as reacções viru-lentas na imprensa, de especialistas doautismo, no momento em que foi tradu-zido em português o livro «Vers la parole»da psicanalista Marie-Christine Laznik

(Ver o jornal Público, 13 de Novembro de1999). Da mesma maneira, aquando do7º Congresso Internacional de Autisme –Europe, organizado em Novembro de2003 em Lisboa pela APPDA; a aborda-gem psicanalítica brilhou pela sua ausên-cia, embora tivessem sido apresentadasvárias intervenções e investigações sobrea questão da emoção e do afecto nas cri-anças autistas. Por conseguinte ter-se-acompreendido que a prática clínica de in-fluência psicanalítica não é actualmente aabordagem dominante em Portugal. Ape-sar de tudo, vamos tentar demonstrarcomo um psicólogo clínico de orientaçãodinâmica, pode trabalhar com toda a legi-timidade no âmbito das salas Teacch, ape-sar das divergências entre as duas aborda-gens. Veremos seguidamente como estasduas abordagens não são irremediavel-mente incompatíveis. Por último, descre-veremos a nossa prática clínica na EscolaIntegrada de Vila Boim e apresentaremosalguns argumentos a favor da introduçãodo psicólogo clínico de abordagem dinâ-mica nas escolas portuguesas onde as sa-las Teacch são implantadas.

2 No caso de desejar mais informações acercado método Teacch, consulte o site no Internetem português www.amams.hpg.ig.com.br eo site em inglês www.teacch.com.

3 Havia, na mesma altura a psicanalistaMargaret Mahler que trabalhava nos E.U. comas crianças autistas, incluindo as mães noprocesso terapêutico.

4 Pollak Richard (1997) Bettelheim ou la fabri-cation d’un mythe. Paris, les Empêcheurs detourner en rond, 2003.

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Uma outra diferença deve notar-se noque diz respeito à questão dos problemasde comunicação das crianças autistas. Asduas abordagens não se focalizam nosmesmos apoios para desenvolver as suasintervenções.

Com efeito, a hipótese de insuficiênciade tratamento da informação conduz a in-tervenção comportamental a ter em contade maneira prioritária a insuficiência da re-lação entre os canais perceptivos. Conside-ra que existe uma fraqueza cognitiva intra--individual que está na origem dos proble-mas relacionais da criança com o meio quea rodeia. A constatação da fragilidade dasrelações intersensoriais levou a uma inter-venção que privilegia a percepção visual,minimizando a importância de outros estí-mulos ambientais que a criança tambémnão integra satisfatoriamente.

Face à paragem precoce de desenvolvi-mento da criança autista e do défice gravede comunicação, a abordagem dinâmicaprivilegia a relação interpessoal na interven-ção. O suporte teórico é a modelação daconstituição precoce do Ego [ver os autores

1.1 Análise das divergências e even-tuais compatibilidades entre asduas abordagens

Dum ponto de vista teórico, vamostentar, agora, analisar o que diferencia es-tas duas abordagens. O programa Teacchparte do princípio que a criança autistatem um défice cognitivo de tratamento dainformação. A intervenção terá por objec-tivo como diz Teo Peeters “estruturar aoextremo o mundo externo da criança parafazer face à ausência de estruturação in-terna da criança autista”5 (Constant J.,1996). Essa estruturação vai ter comobase a organização do espaço/contexto dacriança e a filtragem dos inputs externospara que a criança possa ir construindouma percepção do mundo e de si commais coerência o que tornará possível odesenvolvimento. Esta abordagem ba-seia-se na teoria da aprendizagem e apoia--se em estratégias da teoria do comporta-mento.

Para a abordagem psicanalítica, oautismo é uma paragem de desenvolvi-mento muito precoce como o recordaGeneviève Haag com “as clivagens possí-veis e de hiperdesenvolvimento de umsector ou hipodesenvolvimento de ou-tros”6 (Haag G., 1991). Constata-se umisolamento social e afectivo e a interven-ção visa uma reactivação dos processospsíquicos da criança através da relação te-rapêutica. Jacques Constant constata que"a hipótese psicodinâmica, intervém aonível da génese simbólica entre o agido eo representado enquanto que nos méto-dos comportamentais, é a função de re-paração directa (actual) que é privilegia-da“7 (Constant J., 1996).

5 Constant Jacques (1996) Réflexion critiquesur la méthode Teacch à partir de cinq ansd’expérience en Hôpital de jour public..In:Handicap et inadaptation, les cahiers duCTNETRHI, nº69-70.

6 Haag Geneviève. (1991) Les points de vueéducatifs et psychothérapeutique concernantl’autisme infantile éléments d’espoir pour leurrencontre et leur meilleure coordination. In:Cahiers de l’Education. Pédagogies- informa-tique, nº7, Janvier-Mars 1991, pp.10-14.

7 Constant Jacques (1996). Ibid.

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seguintes: Geneviève Haag8 (1991), DidierHouzel9 (1985), Donald Meltzer10 (1975),Frances Tustin11 (1990)]. O terapeuta pro-curará, dentro dum quadro terapêuticoestruturado, a comunicação e a relaçãocom a criança. A observação fina doscomportamentos, a análise da contra-transferência, o recurso à atenção flutu-ante, para usar a noção de Freud, serãoalguns instrumentos que permitirão aoterapeuta restituir à criança o que elecompreende dos seus estados psíquicos nodecorrer das sessões.

Dito duma outra forma, o modelo edu-cacional preocupar-se-á, na sua interven-ção, em promover uma melhor autonomiapessoal e em desenvolver na criança umacomunicação funcional no dia-a-dia (SPCou Makaton), enquanto o psicoterapeutadinâmico visará a comunicação relacional eafectiva com o outro com o objectivo de re-organizar os processos psíquicos.

Geneviève Haag analisa esta divergên-cia entre as duas abordagens pelo facto dehipóteses de base radicalmente inversas:“Para os adeptos da teoria cognitivista, osdistúrbios da cognição (percepção, aten-ção, memória, julgamento, pensamento),instaurados precocemente, fazem obstá-culo à empatia, à identificação e ao reco-nhecimento das emoções de outrem. Ospsicanalistas na esteira de M.Klein, vêemas coisas completamente no outro senti-do: por exemplo para D. Meltzer e W.Bion, “a atenção”, função primordial de-senvolvida nas primeiríssimas relações,mas talvez tendo também qualidades debases inatas diferentes, organiza a percep-ção por uma sorte de função agrupadoraque teria no autismo, a propriedade de se“afrouxar”, permitindo o mecanismo dedesmantelamento do aparelho percepti-

vo, considerado por D. Meltzer como osistema defensivo fundamental doautismo. Para este mesmo autor, "o pen-samento se constrói sobre a experiênciaemocional ...” 12 (Haag G., 1990).

Apesar de tudo, eleger o tipo de co-municação em que se vai apoiar a inter-venção ou escolher “alvos” preferenciaispara intervir junto da criança não signifi-cam, em caso algum, que uma abordagemexclua a outra, pois sabemos que ao níveldo desenvolvimento, a relação consigopróprio e a relação com o mundo se en-trelaçam não se podendo pensar em afec-to e em cognição como factores autóno-mos e independentes.

Refiro-me novamente a GenevièveHaag13 (1990) que traduz perfeitamente oque a prática me ensinou, trabalhando comos docentes e as crianças autistas: " …Os psi-canalistas nem sempre se preocupam emencontrar – ou nem sempre encontram –um meio psicopedagógico que esteja elemesmo em busca e adaptado ao momentode desbloqueio de algumas capacidades in-telectuais, desbloqueio bem identificável

8 Haag G. (1991). “Nature de quelques identi-fications dans l’image du corps”. In: Journalde la psychanalyse de l’enfant, 10, 73-92.

9 Houzel D. (1985). “Le monde tourbillonnairede l’autisme”. In: Lieux de l’enfance, 3, 1985.

10 Meltzer D. (1975) Exploration dans le mondede l’autisme. Paris, Payot, 1980.

11 Tustin F. (1990) Autisme et protection. Paris,Seuil, 1992.

12 Haag G. (1990). “Abordagem psicanalítica doautismo e da psicose da criança”. In: Autismoe psicose da criança , Porto Alegre, ArtesMédicas, pp.128-139.

13 Haag G. (1990), ibid.

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no interior dos tratamentos psicanalíticos.Isto suporia um diálogo, uma pesquisa co-mum entre os psicanalistas – psicoterapeu-tas, os educadores e os pedagogos. (...). Demaneira inversa, é realmente lamentávelque alguns cognitivistas, parecendo aplicarsuas descobertas com tacto e numa atmos-fera calorosa, privem-se dos tratamentospsicanalíticos, numa aliança que seria semdúvida preciosa, uma vez que estes méto-dos pedagógicos se destacam de um condi-cionamento operante rígido e mecanizan-te, cuja aplicação, por sua vez, seria semdúvida incompatível com uma abordagempsicanalítica paralela”14 (Haag G., 1990).

2. APRESENTAÇÃO DA SALA TEACCHDE VILA BOIM

Feitas estas observações, podemosapresentar a sala de Vila Boim e a nossaprática de psicóloga clínica no seio dumaEquipa educativa que utiliza o programaTeacch. A sala da Escola Integrada de VilaBoim no Alentejo (Portugal) recebe 5 cri-anças. Três delas foram diagnosticadascomo autistas pela Equipa de Autismo doHospital Pediátrico de Coimbra, outraapresenta uma Trissomia 21 com traçosautísticos; a quinta é uma criança comepilepsia associada a uma hidrocefalia.Esta última é a única que usa a fala, em-bora esporadicamente e com ecolalia. Oscinco alunos apresentam um grave atrasomental. Além do ensino na sala, orienta-

do por uma Professora e uma Educadora,todas as crianças têm sessões semanais demusicoterapia, actividades equestres epsicomotricidade na água; duas delas têmum acompanhamento psicológico indivi-dual.

A criação da Sala Teacch em Vila Boimresultou em grande parte da determina-ção da coordenadora dos apoios educati-vos de Elvas da altura e das professoras deapoio que trabalhavam com várias crian-ças autistas nas turmas do ensino regulardo concelho de Elvas. Confrontadas naprática com dificuldades em atingir os ob-jectivos educativos de crianças comautismo grave, optaram com entusiasmopor um projecto de sala Teacch. Nesta al-tura, a signatária destas linhas recebia empsicoterapia, na Associação Portuguesa deParalisia Cerebral de Évora, uma meninaautista de Elvas e reunia regularmentecom a sua professora de apoio, envolvidano projecto da criação da Sala.

3. O PAPEL DO PSICÓLOGO CLÍNI-CO DE ABORDAGEM DINÂMICANUMA SALA TEACCH

O papel do psicólogo numa sala Teacché múltiplo e o tipo de intervenção quepode desenvolver é tributário da sua for-mação inicial (educacional, clínica deabordagem comportamental ou dinâmi-ca, etc.).

Apresentarei, no que segue, de manei-ra sucinta a minha prática de clínica dinâ-mica. É obvio que a vertente de avaliaçãoé necessária no âmbito da sala. Todavia, asolicitação expressa pelos responsáveis co-locava a prioridade na intervenção juntodos pais das crianças autistas. De facto,

14 Acrescentamos que manter um condiciona-mento operante rígido com as crianças au-tistas arrisca-se a aumentar as perturbaçõesemocionais e cognitivas no período crítico daadolescência.

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embora as professoras assegurassem umapresença atenta aos pais, depressa se aper-ceberam que as dificuldades emocionaisdos últimos ultrapassavam as suas com-petências educativas e pedagógicas.

3.1. Avaliar com instrumentos adap-tados

Uma das áreas da intervenção psicoló-gica refere-se à avaliação. De facto, para de-finir a intervenção educativa, as professo-ras têm necessidade de conhecer as capaci-dades das crianças. A equipa de Schoplerdesenvolveu instrumentos psicométricosespecíficos para as crianças autistas quepermitem, por exemplo, avaliar os níveisde desenvolvimento das crianças ou dosadolescentes para domínios dados (a imi-tação, a percepção, a motricidade fina eglobal, a coordenação oculo-manual, a ver-balização, a autonomia, a socialização). Emfunção dos resultados obtidos pela criançaem cada domínio, a equipa de Schopler pro-pôs uma série de actividades educativasadaptadas ao nível do desenvolvimento dacriança. O psicólogo pode, ainda, sentir ne-cessidade de utilizar outros testes, não es-pecíficos ao autismo, para obter uma com-preensão mais ampla do funcionamentoda criança.

3. 2. Os pais

3.2.1 Apoio individualizadoUma outra vertente da nossa interven-

ção psicológica é o apoio emocional aospais para fazerem face às dificuldades queestes encontram. Procuramos, desde oinício, ter a presença do pai e da mãe, em-bora saibamos que a tendência para a mãevir sozinha é frequente. Os pais que acei-

taram vir com a esposa tiveram a possibi-lidade de exprimir na presença da mulhera sua ferida, proporcionando aos dois umamelhor compreensão do sentir do outro.

Consoante as necessidades das famí-lias, instaura-se um apoio psicopedagógi-co, ou uma psicoterapia quando esta é pe-dida ou sentida como necessária para oequilíbrio do casal e da família. Nesteapoio psicológico é abordada a questão doequilíbrio familiar com os irmãos e/ou ir-mãs da criança autista, que podem, espe-cialmente, quando chega o período daadolescência, mostrar grandes dificulda-des relacionais e emocionais, aumentan-do do lado parental o sentimento de nãoserem “bons pais...”. O psicólogo clínicotem aqui um papel de suporte a diversosníveis. A escuta clínica permite acolher araiva, o desespero, a incompreensão, anegação, sem julgar. O psicólogo ajuda,em articulação com a equipa, na procurade soluções para o dia a dia, mas tambémapoia no sentido de diminuir sentimentosde culpa dos pais que, às vezes, deixamnão só de sair com a criança – tanto oolhar social é insuportável – mas tambémdeixam de conviver como casal fora dacasa, pois a ideia da criança ficar com aama ou com os avós é, muitas vezes, im-pensável...

3.2.2. Grupos de paisTambém instituímos com as professo-

ras um grupo de pais que se reúne men-salmente. A iniciativa tem a vantagem dereforçar as relações entre a escola e a fa-mília, de permitir uma partilha do dia-a--dia entre pessoas com necessidades e pre-ocupações semelhantes, de facultar umatroca indispensável sobre a evolução dacriança, os seus progressos ou as suas re-

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gressões eventuais. Uma das riquezas des-tes encontros é que permitem uma trans-missão de vivência entre os pais. Porexemplo, o impacto do testemunho deuma mãe foi insubstituível para fazercompreender a outra a importância queteve a utilização das imagens SPC (cartõesde comunicação alternativa) para comu-nicar com a criança no dia-a-dia. As dis-cussões às vezes são vivas e permitemuma troca intensa ao nível emocional.Este tempo reservado aos pais faz emergirperguntas, dúvidas, revoltas, mas tambémesperanças.

O grupo quebra o isolamento de al-guns e permite encontrar soluções práti-cas como, por exemplo, preparar as fériasescolares de verão – terrivelmente longaspara estas crianças.

Este espaço de diálogo permitiu-nos,igualmente, introduzir a questão da se-xualidade, que “coloca problemas” namedida em que as crianças autistas têm,muitas vezes, gestos ou comportamentossexuais que são socialmente inadaptados.Se esta questão da sexualidade pode serevocada durante os encontros de casal,discuti-la em grupo é construtivo para ospais que, em comum, reflectem e discu-tem o problema e apontam estratégias.

3.3. Psicoterapia para as crianças au-tistas

Uma outra competência que o psicólo-go clínico de abordagem dinâmica podepôr ao serviço das crianças autistas é o tra-balho psicoterapêutico. É de recordar queo psicólogo clínico de abordagem dinâmi-ca pode fazer uso do modelo freudiano dofuncionamento psíquico do ser humanosem, no entanto, ser psicanalista. No en-

tanto, o recurso a um profissional expe-riente e/ou a um psicanalista é-lhe útilpara um trabalho reflexivo e de supervi-são sobre a sua prática terapêutica juntodas crianças.

Privilegiando a relação no âmbito tera-pêutico, as sessões como diz J. Hochmann,“visam abrir a criança à relação com os ou-tros e consigo mesma, para, progressiva-mente, ir criando capacidade de represen-tação e tornar-se capaz de reinvestir o seuaparelho psíquico”15 (Hochmann J, 1997).Quais são os instrumentos do terapeuta?Como já o assinalei, principalmente a ob-servação da criança e a análise da contra-transferência perante a “ausência” da cri-ança. Note-se que, mesmo que estas crian-ças a maior parte do tempo não falem, elastêm, em maior ou menor grau, acesso àcompreensão da língua e, por conseguin-te, às palavras do terapeuta. É a partir danossa compreensão do funcionamento psí-quico precoce que o trabalho terapêuticovai realizar-se e que o terapeuta tentará tra-duzir os comportamentos observados (an-gústia, “autosensorialidade”, penetraçãodo olhar ou, o inverso, fuga do olhar,medo, apreensão, etc.)16 (Haag G, 1991).

A análise da contratransferência é es-sencial para poder traduzir em palavras osmovimentos, os olhares, os picos de an-gústia, para tentar conter as angústias ar-caicas destas crianças e para trabalhar osprocessos de diferenciação dentro/fora,ou ainda bom/mau. É evidente que a in-tervenção é difícil, delicada e fastidiosaporque visa “um emparelhamento psíqui-

15 Hochmann Jacques (1997) Pour soignerl’enfant autiste. Paris, Odile Jacob.

16 Haag Geneviève (1991) Ibid.

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co” com a criança, que esta procurará des-truir sistematicamente17 (Debelle dos San-tos F., 1999). Retorno às numerosas pu-blicações da Dr.ª Geneviève Haag, psi-quiatra e psicanalista, que me foram es-senciais para tentar abordar o funciona-mento psíquico destas crianças e poderiniciar terapias com eles. Sem podermosentrar nos pormenores sublinharemosque a especificidade da psicoterapia deabordagem dinâmica é de propor à crian-ça “uma mente para poder pensar” reto-mando a formulação de W. Bion.

Enfim, pensamos que seria mais ade-quado realizar uma intervenção psicote-rapêutica fora do quadro escolar e educa-tivo. Mas não existem, ao que parece, emPortugal, ao contrário do que acontecenoutros país da Europa, infra-estruturaspúblicas de Saúde que proponham estaorientação terapêutica.

4. DISCUSSÃO

4.1. Criar uma sala Teacch prejudicaà inclusão da criança autista?

Uma das principais reticências comque se deparava o projecto da sala Teacchrelacionava-se com a questão da inclusãodas crianças. E sabemos que a Declaraçãode Salamanca em 1994 estipula que “to-dos os alunos aprendam juntos sempreque possível, independentemente das di-ficuldades que apresentam”.

Na prática, contudo, muitos professo-res de apoio que encontrávamos na APPCconcordavam em reconhecer grandes di-ficuldades para estabelecer uma rotina eum programa fortemente estruturado nomeio duma turma do regular, com uma

criança portadora duma deficiência pro-funda (o que é verdade quer se trate deuma criança autista, psicótica ou atingidapor uma paralisia cerebral severa).

Nestas condições, era difícil insistir – eàs vezes mal percepcionado também por-que em contradição com as ideias estabe-lecidas – no facto que a inclusão destascrianças não devia significar necessaria-mente a sua presença física e a tempo in-teiro numa turma do ensino regular. Comefeito, incluir as crianças com autismo se-vero não acarreta que se deva levá-las aviver na fusão e na indiferenciação numasala do ensino regular, por receio da dis-criminação. A inclusão será, pois, constru-tiva se houver uma capacidade dos docen-tes para identificar as diferenças e as ne-cessidades de cada aluno e para poder dar--lhes uma resposta adaptada. Nos casosem que o “handicap” é profundo e seve-ro, pode revelar-se indispensável criar es-paços específicos para responder às suasnecessidades próprias. A criação de umasala Teacch só faz sentido quando pensa-da deste modo.

Tendo em conta as dificuldades de so-cialização e de interacção que caracteri-zam o autismo, é óbvio que elas exigemadaptações, tanto técnicas como organi-zacionais, que envolvem o conjunto doestabelecimento e dos actores. Será porexemplo, necessário criar um espaço quelhes seja reservado, na cantina para o al-moço ou então durante os recreios, susci-

17 Foi o que me motivou para orientar a minhatese de Mestrado: Debelle dos SantosFrançoise. (1999) Si ça le touche: à larecherche d’une assise sensorielle chezl’enfant autiste, DEA de Philosophie, OptionEtudes psychanalytiques, Université PaulValéry, Montpellier.

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tar os encontros e as interacções entre to-dos alunos da escola, aceitar as idas e vin-das dos alunos entre a sala Teacch e as sa-las do regular. Considerando as caracte-rísticas do autismo, é obvio que tanto “alogística” como o funcionamento globalda escola têm que dar provas de flexibili-dade e de criatividade para permitir queas crianças autistas possam estabeleceruma interacção com o meio que seja es-truturante e não fonte de angústia suple-mentar.

Se todas estas adaptações forem imple-mentadas no seio da escola, por que razãodeveria a criança autista integrada numasala Teacch sofrer de exclusão? Na práti-ca, se o sucesso da inclusão depende emparte dos meios mobilizados pelas insti-tuições educativas, temos de constatarque depende também da capacidade paradefrontar questões mais abrangentes, quesão de ordem filosófica e ética, tanto aonível dos indivíduos como ao nível colec-tivo.

4.2. “Uma estranheza inquietante”

O que é que, em definitivo, a criançaautista vem pôr em questão, com a suadiferença? Por que razões tenderá a suapresença a suscitar mal-estar? De facto oportador de autismo activa uma zona desombra, uma parte de nós próprios quepermanece alheia ao controlo e enigmáti-ca, região psíquica que temos dificuldadeem pensar, em simbolizar e é, portanto,difícil de reconhecer e aceitar enquantotal. O autismo suscita, para utilizar a ex-pressão de Freud, “uma estranheza inqui-etante” 18 (Freud, 1919), que cada um denós tenta gerir em função da sua históriae da sua vivência pessoal.

Em suma, é o olhar que dirigimos paraa criança autista que determinará, no fi-nal de contas, que uma inclusão seja ounão bem sucedida Para poder olhar semmal-estar sem indiferença, sem piedade,temos de aceitar em nós a “estranheza in-quietante” que estas crianças gerem. É sócom esta aceitação que poderá emergirum sentimento de respeito em face daparticularidade e do enigma dos compor-tamentos autisticos; (a etimologia latinade respeitar significa “a acção de olharpara trás”)19 (Kristeva J., 1985). A criaçãode espaços sociais susceptíveis de instau-rar relações fundadas no respeito supõe,por conseguinte um trabalho reflexivo decada um de nós, mas também um traba-lho colectivo, o que permite avaliar a pro-fundidade das mudanças de mentalidadesque exigem estas perspectivas, e tambémo tempo necessário para atingir tais objec-tivos.

CONCLUSÃO

O psicólogo clínico de abordagem di-nâmica tem competência para intervirjunto das famílias e das crianças autistas.Contribui, na abordagem educativa daEquipa, avaliando as crianças com instru-mentos adaptados e propondo sugestõesde actividades de acordo com o modelode Schopler.

18 Freud Sigmund (1919). “L’inquiétante étran-geté et autres essais”. Paris: Gallimard, 1985,p.215.

19 O livro de Julia Kristeva “Etrangers à nous--mêmes », Paris Fayard, 1988 é uma referên-cia importante para pensar a diferença, qual-quer que seja.

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A especificidade do psicólogo clínico deabordagem dinâmica reside, pela sua for-mação, nomeadamente, na capacidade deescuta clínica, centrada no sofrimento psí-quico tanto da criança autista como dosseus familiares.

É porque se privilegia a relação e a pro-cura da emergência de processos psíqui-cos precoces que a psicoterapia de orien-tação dinâmica permite, tanto a médiocomo a longo prazo, reforçar e melhoraras aquisições escolares e a aprendizagemnuma sala Teacch.

Enfim, fazer dos pais os “co-terapeutas”como o propunha Schopler apenas serápossível, do nosso ponto de vista, quandoos pais puderem ser acompanhados no so-frimento que vai do trauma do diagnósticoa uma transformação psíquica que lhes vaipermitir fazer o luto da criança com a qualsonharam, e conseguir afrontar uma reali-dade difícil. Só depois desse caminho pode-rão preencher o papel que lhes é reservadono programa Teacch e só então, esse papelfará realmente sentido. Pedir ao educador eà professora que acompanhem este doloro-so percurso emocional dos pais excede assuas competências, apesar da forte empatiae do grande investimento que põem ao ser-viço das crianças e das famílias.

O breve resumo da nossa prática clíni-ca na Sala Teacch mostra que, talvez maisainda que em outras equipas, a diversida-de de abordagem torna imperativa quecada técnico defina claramente as suasáreas de competências, conhecendo tam-bém os seus limites.

O reconhecimento de erros passados,o desejo de numerosos psicanalistas emrealizar investigação de maneira multidis-ciplinar e com profissionais de abordagensdiferentes (Investigação do Inserm em

França, por exemplo), os avanços destesúltimos vinte anos na prática psicanalíticacom crianças autistas que muito contri-buíram para uma melhor compreensãodo funcionamento psíquico do ser huma-no e para uma melhor resposta terapêuti-ca, são factores que solicitam uma recon-sideração das posições radicais dos profis-sionais adeptos duma abordagem cogniti-vista. Da mesma maneira, os defensoresduma abordagem psicodinâmica não po-dem ignorar as investigações actuais naárea das neurociências.

Por último, no estado actual dos conhe-cimentos e face à ausência de investigaçãocomparativa fiável que permita uma avali-ação da eficácia respectiva das diferentesorientações terapêuticas para o tratamen-to do autismo – quer estas sejam farma-cêuticas, neurosensoriais, comportamen-talistas ou psicanalíticas20 (Aussilloux C.,Baghdadli A., 2000), parece-nos que obom-senso será trabalhar com todas asmetodologias de intervenção ao dispor dopsicólogo, reconhecendo e aceitando osparadoxos que podem emergir da diversi-dade das abordagens e das formações.

20 Aussilloux Charles. Baghdadli A. Les autismes,présentation, informations récentes. Comu-nicação Reseau autime France Flandres Lys,26 Septembre 2000.

Page 12: Artigo françoise debelle

REV I STA PORTUGU ESA DE PS ICOSSOMÁT IC A

217AUTISMO E PSICOLOGIA CLÍNICA DE ABORDAGEM DINÂMICA NUMA SALA TEACCH

AbstractThis articles aims to present a

practice of clinical psychologist ofpsychoanalytical inspiration, nearautistic children in a Teacch room,whose theoretical bases are behavioristorientation. We try to release thedivergences between the behaviorapproach and psychoanalytical and wetry to explain the complementaritybetween these two types of approachwithin a multidisciplinary team. Werefer then what makes the specificity ofour approach and in what it optimizesthe educational objectives to reach withthe autistic children in a Teacch room.

Key-words: Autistic syndrome;Teacch; Clinical psychologist; Specialeducation; Autism; Inclusion.