Artigo Feijo Compulsoes

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UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICO-HERMENÊUTICA DAS COMPULSÕES NA ATUALIDADE Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo H ; Carolina Freire Dhein Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil RESUMO A proposta desse estudo é trazer outro modo de pensar as compulsões além daquela que as interpreta como algo da ordem de uma subjetividade encapsulada. Esse outro modo consiste em trilhar um caminho que denominamos de fenomenológico- hermenêutico. Acreditamos, com isso, poder abrir a possibilidade de se romper com os modelos previamente legitimados no campo da psicologia. Para tanto, procederemos a uma análise das compulsões nos pressupostos metodológicos da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, partindo da ideia de que a existência humana se constrói na articulação copertinente com o mundo e viabilizando, assim, uma interpretação das compulsões no horizonte histórico da técnica. Palavras-chave: compulsões; fenomenologia; hermenêutica. A PHENOMENOLOGICAL-HERMENEUTICS COMPREHENSION OF COMPULSIONS TODAY ABSTRACT The proposal of this study is to think about another way of thinking the compulsions beyond that which interprets this phenomenon as something on the order of subjectivity. This other way is to follow at a new path that here called phenomenological-hermeneutics. It to begin the templates previously legitimized in the field of psychology. We will review the compulsions and its disorders, inspired by the methodological assumptions of hermeneutics phenomenology of Heidegger. Your idea is that human existence is building in conjunction with the world, thus, an interpretation of the compulsions outside the contours of historical horizon of the technique. Keywords: compulsions; phenomenology; hermeneutics. H Endereço para correspondência: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia. Rua São Francisco Xavier, 524 – Maracanã. 20550013 - Rio de Janeiro, RJ – Brasil. E-mail: [email protected], [email protected]

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  • Uma compreenso Fenomenolgico-HermenUtica das compUlses na atUalidade

    Ana Maria Lopez Calvo de FeijooH; Carolina Freire DheinUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    resUmo

    A proposta desse estudo trazer outro modo de pensar as compulses alm daquela que as interpreta como algo da ordem de uma subjetividade encapsulada. Esse outro modo consiste em trilhar um caminho que denominamos de fenomenolgico-hermenutico. Acreditamos, com isso, poder abrir a possibilidade de se romper com os modelos previamente legitimados no campo da psicologia. Para tanto, procederemos a uma anlise das compulses nos pressupostos metodolgicos da fenomenologia hermenutica de Heidegger, partindo da ideia de que a existncia humana se constri na articulao copertinente com o mundo e viabilizando, assim, uma interpretao das compulses no horizonte histrico da tcnica.

    Palavras-chave: compulses; fenomenologia; hermenutica.

    a pHenomenological-HermeneUtics compreHension oF compUlsions today

    abstract

    The proposal of this study is to think about another way of thinking the compulsions beyond that which interprets this phenomenon as something on the order of subjectivity. This other way is to follow at a new path that here called phenomenological-hermeneutics. It to begin the templates previously legitimized in the field of psychology. We will review the compulsions and its disorders, inspired by the methodological assumptions of hermeneutics phenomenology of Heidegger. Your idea is that human existence is building in conjunction with the world, thus, an interpretation of the compulsions outside the contours of historical horizon of the technique.

    Keywords: compulsions; phenomenology; hermeneutics.

    H Endereo para correspondncia: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia Clnica, Instituto de Psicologia. Rua So Francisco Xavier, 524 Maracan. 20550013 - Rio de Janeiro, RJ Brasil. E-mail: [email protected], [email protected]

  • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo; Carolina Freire Dhein

    As compulses vm sendo amplamente discutidas no terreno da psicologia, principalmente pela apropriao de um discurso tcnico-cientificista, que busca explic-las a partir de categorias diagnsticas desdobradas de forma cada vez mais especficas. Com isso, a psicologia, com suas teorias e tcnicas, pretende dar conta da complexidade desses fenmenos, agrupando, classificando e explicando a experincia da compulso como um desvio ou patologia, que se encontra em uma interioridade, privilegiando ora aspectos de ordem biolgica, ora da ordem do psquico, ou ainda explicaes de ordem exclusivamente social. No entanto, diferentes estudiosos da psicologia vm repensando, e at mesmo combatendo essa dicotomia interior e exterior, com as consequentes categorias identificat-rias, que acabam por responsabilizar nica e exclusivamente o indivduo pelas suas mazelas e apartando o mundo dessa dinmica.

    Assim, acreditando que possvel pensar o homem a partir de um referen-cial outro que no o da tradio dominante da psicologia, ns tentaremos apreen-d-lo em uma perspectiva fenomenolgica - hermenutica, como uma existncia em uma dinmica e fluxo incessantes. Essa compreenso torna-se relevante por nos convidar a suspender os caminhos j previamente estabelecidos, oferecendo--nos uma nova possibilidade de pensar o modo compulsivo como uma atmosfera de nosso tempo. Com isso, abre-se outra possibilidade de compreenso do fen-meno da compulso e suas expresses, alm daquela que concebe o fenmeno como um desvio patolgico em um referencial subjetivista e determinista.

    Com relao hegemonia do pensamento psicolgico com nfase no pri-vado e particular, alguns estudiosos do tema defendem a ideia de como o esprito do mecanicismo, originado no sculo XVII, revolucionou de forma definitiva e ampla a lgica do pensamento ocidental, no ficando restrito apenas ao campo das cincias naturais. Schultz, D. e Schultz, S. (1992[1969]) nos dizem que tudo, inclusive o homem, passa a ser objeto para a nascente cincia experimental, fi-cando o mundo reduzido a uma realidade objetiva e determinista da tcnica que calcula. Figueiredo (1994) refere-se a influncia do iluminismo sob a interpreta-o individualista da vida social e ainda defende que a subordinao do conhe-cimento cientfico utilidade, adaptao e ao controle, bem como a modelao da prtica cientfica pela ao instrumental alcanaram realce cada vez maior (FIGUEIREDO, 2012, p.12). Mancebo (2004, p. 40) afirma veemente que o con-ceito de indivduo uma construo da modernidade e que o iderio tecnocrti-co e disciplinar desenvolve-se como uma verso das ideias liberais, dando-lhes, no entanto, novos rumos, ao exigir-lhes maior interesse, eficincia e utilidade. Vemos, com isso que h mais de trs sculos, a sociedade ocidental iniciou, de forma radical, um modo de se relacionar com o mundo, pautado na crena do do-mnio do homem sobre a natureza, conduzindo-o ao domnio de todas as esferas de sua existncia. notvel como as ideias de controle, explorao, autonomia e liberdade, herdadas da noo de subjetividade moderna, tm se feito presentes como norteadoras do comportamento do homem moderno.

    Ainda sobre o homem moderno, Mancebo (2004) acrescenta que a herana do liberalismo, trazida pelas ideias do iluminismo e do romantismo, entregou ao homem a noo de indivduo autnomo, capaz de exercer sua condio de liber-

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    dade e interioridade, colocando o mundo em favor de suas necessidades. A autora afirma ainda que, em decorrncia de tais valores, a sociedade contempornea desembocou num individualismo exacerbado.

    Levado a encontrar o sentido do mundo a partir de si prprio, o indivduo volta-se para a elaborao cada vez mais refinada de sua prpria individualidade, fecha-se em sua particularidade, considerando a liberdade principalmente como a possibilidade de considerar seus interesses privados. (MANCEBO, 2004, p.46)

    Mancebo (2004) prossegue sua reflexo, colocando em cena tambm a herana do pensamento moderno na Psicologia, disciplina essa que fruto des-se mesmo horizonte histrico. Segundo a autora, muitas recentes discusses no campo da psicologia vm sendo travadas a respeito da dicotomia herdada do po-sitivismo entre indivduo/sociedade, desencadeando um saber amparado em uma categoria a priori e, portanto, no problematizada. A autora alerta que as noes de indivduo, bem como o conhecimento que travamos a seu respeito so cons-trues oriundas de contextos culturais e historicamente demarcados. Alerta-nos, assim, que os aspectos da subjetividade no podem ser compreendidos desligados da orientao social em que so constitudos.

    Bauman (1999, p. 48), um dos socilogos que exaustivamente se dedicam a pensar as consequncias do pensamento moderno na sociedade contempornea, contribui com as ideias antes expostas, afirmando que

    A cincia moderna nasceu da esmagadora ambio de conquistar a natureza e subordin-la s necessidades humanas. A louvada curiosidade cientfica que teria levado os cientistas aonde nenhum homem ousou ir ainda nunca foi isenta da estimulante viso de controle e administrao, de fazer as coisas melhores do que so (isto , mais flexveis, obedientes, desejosas de servir).

    Ao discorrer acerca da trajetria da Psicologia Social, especificamente, l-varo e Garrido (2006) oferecem uma reflexo crtica do percurso desse campo de saber, que traz em sua histria vises dicotomizadas a respeito dos vnculos entre indivduo e sociedade. A psicologia social, segundo esses autores ou prioriza o in-dividual, ou d um grande destaque ao social. lvaro e Garrido (2006) enfatizam que o estudo do comportamento humano s faz sentido com referncia ao contex-to social ao qual est circunscrito e, por isso, a psicologia social deve consistir na articulao dos nveis tanto psicolgicos quanto sociolgicos. No entanto, parece que esses autores ao referir-se aos dois nveis de articulao, ainda mantm uma dicotomia e a ideia de saber disciplinar.

    Na tentativa de encontrar uma posio crtica com relao dicotomia in-divduo e social, de modo a no mais referir-se a uma dualidade ou polarizao, que vamos tomar, para nossa discusso sobre as compulses na atualidade, a fenomenologia e a hermenutica. A escolha da fenomenologia se deve ao fato que

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    a sua premissa a de que devemos suspender todas as hipostasias, sejam as que priorizam o indivduo, seja as que priorizam o social (FEIJOO, 2011). Quanto eleio da hermenutica heideggeriana, isso se deve ao fato de que com a herme-nutica, Heidegger pretendia superar toda a dicotomia da relao sujeito objeto, referindo-se ao brotar da existncia sob o solo de sua historicidade (STEIN, 1983).

    Para pensar as compulses, na atualidade, em uma tentativa de no re-cair na dicotomizao social-individual, que tomaremos como caminho para esta investigao a fenomenologia-hermenutica, tal como desenvolvida por Heidegger, em suas obras filosficas, dentre elas Ser e tempo (1989[1927]). Stein (1983) indica a possibilidade desse mtodo investigao dos fenmenos existenciais, inclusive, afirmando que esse foi o caminho pelo qual Heidegger conduziu o seu pensamento. E, desse modo, em um carter especulativo e tota-lizador, por essa via podemos alcanar a superao do pensamento da subjetivi-dade e o desvelamento da histria do ser.

    Atentos a essas consideraes precedentes que nos aproximamos das con-tribuies do pensamento fenomenolgico-hermenutico. Acreditamos que esse mtodo oferece uma proposta de radical rompimento com o modo tradicional de compreenso do homem e do mundo. Assim como a fenomenologia assumida por Heidegger, com inspirao em Husserl (2007[1901]) - fundador formal da feno-menologia, expulsado os contedos da conscincia e definindo-a como uma rela-o intencional com o mundo radicaliza o conceito de intencionalidade e rompe com as principais dicotomias herdadas da tradio moderna, de interior e exterior, particular e universal. Assim, Heidegger postula que o modo de ser do homem abertura de sentido. Tal abertura consiste na ausncia de qualquer determinao a priori capaz de definir o homem, e condio para que a existncia humana se constitua em uma unidade ontolgica, chamada por ele de Dasein ou ser-a, indi-cando que homem e mundo so, portanto, cooriginrios e constituem uma totali-dade inseparvel. O homem homem no mundo e se define nessa relao mesma. E dessa forma que partiremos para uma anlise das compulses e suas diferentes expresses, inclusive daquilo que denominaremos de transtornos compulsivos.

    o mtodo: rompimento com a dicotomia sUjeito-objeto

    A filosofia moderna, ao proceder a uma ciso do real, estabelece diversas oposies. Trata-se das dicotomias metafsicas, nas quais um dos polos, o sujei-to, posiciona, condiciona e justifica o outro polo, o objeto. O sujeito tomado como previamente constitudo e, portanto, substantivado. Assim, a metafsica da subjetividade pressupe que desses dois polos que a relao se origina. Logo o que h de mais originrio o sujeito por um lado e o objeto por outro. E foi nesse paradigma que a psicologia quase que hegemonicamente se constituiu.

    Franz Brentano (1995[1903]), em A psicologia do ponto de vista emprico, na tentativa de elevar a psicologia ao nvel de uma cincia autnoma, desliga-se da psicologia com bases na fisiologia e vai buscar em Aristteles os argumentos dos quais necessitava para elaborar uma psicologia que sustentasse seu prprio objeto com total independncia dos fatos biolgicos ou sociais. Para Brentano

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    importa o ato psicolgico, a intencionalidade, propondo, assim, a indissociabili-dade entre pensamento e ao. Husserl (2007[1901]) d continuidade ao projeto de Brentano, defendendo a tese de que o mais originrio a prpria relao. E o sujeito e o objeto derivam dessa relao, que a prpria intencionalidade. Heide-gger (1989[1927]) em seus estudos sobre o ser-a radicaliza essa noo husserlia-na, porm introduz ao real outro elemento que a histria. Da, ele afirmar que seu mtodo consiste em uma fenomenologia-hermenutica.

    Em Heidegger (2006[1929]) comportamento e histria relacionam-se in-timamente. Todo e qualquer comportamento se d por condies prprias a um horizonte histrico. Da que interpretar as compulses em uma perspectiva inti-mista acaba por conduzir a equvocos. Por esse motivo, a proposta aqui consiste em investigar a cooriginalidade do modo compulsivo do homem contemporneo e as condies histricas que o circunscrevem. Como anteriormente apresentado, fundamental na perspectiva da existncia o rompimento com toda e qualquer dicotomia. Vamos ento explanar de que modo as filosofias da existncia, especi-ficamente Heidegger, desenvolveram a questo.

    a temtica existencial: rompimento com a dicotomia Universal e singUlar

    A tentativa de resolver as dicotomias presentes na epistemologia encon-tra-se na filosofia existencial, desde Kierkegaard (1813-1855). Esse filsofo po-siciona-se acerca desse tema, afirmando que onde est a multido encontramos o indivduo e que uma multido no se faz sem indivduos (KIERKEGAARD, 1988[1846]). Husserl (2007[1901]), em suas Investigaes lgicas, procede de forma a resolver a dicotomia individual e universal, intuindo, assim, o espao de constituio do eu, que ele mesmo denominar de intencionalidade. Jean-Paul Sartre (2002[1960]), filsofo existencialista, contribui de forma significativa para essa temtica em sua obra filosfica Questo de Mtodo. Inspirado de forma cr-tica pelo materialismo histrico-dialtico de Marx, Sartre ressalta que o homem, por projetar sua existncia no mundo, existe em um movimento dialtico entre o singular e o universal. Para Sartre, o homem uma apreenso sempre singular das condies de possibilidade demarcadas pelo horizonte histrico em que est situ-ado. E dessa forma, o pensador vai alm e afirma por ser dialtico, o homem faz e feito pela Histria. com o Heidegger (1989[1927]) tardio, no entanto, que a tentativa de resoluo dessa questo se radicaliza, de modo que a tematizao do sentido do ser, iniciada em Ser e tempo acerca do ser-a (Dasein), afasta-se do ser e mantm o a. A como espao onde h o total e radical entrelaamento do eu e do mundo. Existencial deve, ento, ser compreendido, tal como tomado pelos filsofos da existncia, como o espao de realizao do existir em sua con-dio de finitude, que diz respeito s possibilidades mais originais daquele que existe no seu encontro, tambm originrio, com o mundo. E nesse horizonte de sentido que iremos discutir as compulses na era da tcnica.

    Heidegger (1989[1927]), nos convida a compreender homem e mundo no como instncias separadas, mas sim como uma relao cooriginria, nem o ho-mem, nem o mundo podem ser analisados de forma privilegiada, ambos formam

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    uma totalidade. Buscando desconstruir uma perspectiva subjetivista e antropo-cntrica, Heidegger (1989[1927]) nos dir que o homem no possui qualquer carter de interioridade. Sua existncia se d na abertura de sentido articulada ao horizonte no qual est mergulhado. Dessa forma, o pensador nos ensina que a compreenso dos fenmenos humanos acontece de forma fenomenolgico-her-menutica, pois sendo homem e mundo uma totalidade, s podemos compreen-d-lo a partir de um horizonte prvio de sentido. Feijoo (2010, p. 156) acrescenta que o crculo hermenutico em Heidegger abarca a ideia de que no h possibi-lidade interpretativa existencial alguma que no se d em um horizonte ftico de sentido. Significa dizer que toda compreenso dos fenmenos humanos insere--se em uma compreenso histrica.

    compreenso Fenomenolgico - HermenUtica das compUlses

    So diversas as formas de expresso da compulso na era contempornea, seja na esfera afetiva, profissional, alimentar, mercadolgica, dentre outras. E tambm so suas diferentes formas de expresso desistncia, descompromisso, cio, tdio e temor. Tanto com relao ao fenmeno da insistncia por meio das compulses, como o da desistncia por meio do tdio, como o de controle por meio ao temor, Heidegger nos convida, antes de calcular para descobrir suas cau-sas e tratamentos, a refletir, meditar para alm de uma viso fragmentada entre in-divduo e mundo. E, ainda, ele nos aponta para a necessidade de um olhar atento para o horizonte de sentido que atualmente demarca as condies de possibilida-de para o surgimento de experincias compulsivas e suas diferentes expresses, circunscritas pelas determinaes histricas que nos cercam. Encontramo-nos em um mundo com orientaes que solicitam, a todo o momento, produtividade e ao. As referncias valorizao do individualismo aliada ao conhecimento tcnico cientfico moderno podem ter possibilitado ao homem se conceber como autnomo, em um mundo em que tudo passa a ser reduzido ao terreno da instru-mentalidade? No horizonte histrico, denominado por Heidegger (2002[1954]) de era da tcnica, o homem autnomo da modernidade passaria a homem aut-mato, j que no mais ocupa o centro da ateno, cabendo esse lugar tecnologia, que opera por meio da lgica da produtividade, funcionalidade, utilidade, explo-rao, estocagem e descartabilidade? Dessa forma, caberia pensar se o modo de ser compulsivo que se apresenta na atualidade, pode ser compreendido a partir desse horizonte histrico tcnico que se desvela ao modo dos excessos? Modo esse que requisita ao homem uma orientao de comportamento que atenda de modo autmato aos apelos de produtividade, serventia e descartabilidade. Na ten-tativa de responder a tais questionamentos, pretendemos investigar outros modos de como o fenmeno do transtorno compulsivo e suas diferentes expresses po-dem ser pensados. E, assim, no mais interpret-los apenas como um desvio que se encontra no interior de uma subjetividade, mas tambm como um modo de ser possvel inserido no horizonte tcnico contemporneo.

    Os fenmenos dos transtornos compulsivos e suas diferentes expresses pre-sentes em muitas das atividades humanas, sero pensados, neste trabalho, para alm dos moldes de uma psicologia clnica, com nfase no carter privativo da existn-

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    cia. Traremos discusso temas j estudado pelas filosofias, tais como o tdio e o temor, que muito podem contribuir com a elucidao das compulses, como marca do comportamento do homem em nosso tempo. Tanto o tdio como o temor, sem dvida, tonalidades afetivas fundamentais, marcadamente presentes na contempo-raneidade, muito se atrelam ao modo compulsivo das situaes mundanas. Tanto no que se refere ao seu agir quanto ao seu pensar, o homem se constitui por meio das aes compulsivas prprias do horizonte tcnico em que nos encontramos. Desta-camos, ento, a compulso como um trao do comportamento em geral.

    Heidegger: tcnica e compUlso

    No ensaio intitulado A questo da tcnica, Heidegger (2002[1954]) nos convida a refletir acerca das determinaes presentes no horizonte tcnico no qual se constitui o mundo moderno. Ele afirma que h um domnio do pensa-mento calculante, que ganha expresso, principalmente, a partir do advento da revoluo cientfica do sculo XVII. Esse modo dominante de pensar restringiu todas as outras possibilidades de pensar, inclusive, obscureceu a possibilidade de aparecimento do pensamento que medita (HEIDEGGER, 1959). Para esse pensa-dor, as maneiras de exercer a tcnica na modernidade, ou seja, atravs da fsica e da matemtica, no ficaram restritas apenas a um modo de pensar, caracterstico desses campos de saberes, mas tambm, ao nosso modo de ser e agir que nos ca-racteriza enquanto civilizao. Homem e mundo passam, ento, compreendidos a partir da lgica da instrumentalidade. O principal alerta do filsofo do Dasein ser sobre o modo como a sociedade moderna descortina o mundo. Esse desve-lar pela interveno tcnica, constitui-se exclusivamente como um instrumento, meio, para atingir fins, obscurecendo outras orientaes possveis.

    Para Heidegger (2002[1954]) o problema da tcnica consiste justamente em sua essncia compulsiva. A tcnica tem em si um trao compulsivo funda-mental que caracteriza o nosso tempo. No mundo da tcnica, a ao excessiva a lei, princpio de determinao de todas as coisas. As determinaes do mundo da tcnica apontam para uma incessante projeo para alm de todas as confi-guraes que a tcnica conquista. Dado o carter impessoal das configuraes tcnicas, ocorre um total descompromisso. A incessante projeo juntamente com o descompromisso com a produo e suas consequncias traz uma acelerao infinita, desaparecendo todo e qualquer limite. No h nenhuma trava que pos-sa funcionar como uma barreira para a acelerao e abundncia das produes oriundas da tcnica. O homem por seu carter de indeterminao, diz Heidegger (1989[1927]), tende no incio e na maioria das vezes a tomar as referncias do mundo em que ele se encontra. E, assim, absorvido por essa atmosfera, age inces-santemente em uma automatizao total do comportamento com relao ao su-jeito do comportamento. Heidegger, na contramo das interpretaes modernas, que pressupem que a compulsividade diz respeito a uma subjetividade fissurada, afirma que a questo da compulso tem uma relao direta com o nosso horizonte epocal onde reinam as referncias da tcnica. E o horizonte histrico da tcni-ca, em que nos encontramos, com a nfase na produtividade, compulsivo.

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    Para Casanova (2006), o tdio justamente esse efeito da tcnica em sua incessante movimentao, em que o homem sempre se encontra lanado para o momento a seguir, perdendo totalmente a articulao com o seu sentido, em uma atmosfera da compulso. No agir sem parar, desarticulado do sentido pelo qual se age, que se instaura o tdio. O tdio ento anuncia o total e radical desinteresse do homem por si mesmo, na medida em que ele mesmo se desvincula, esquece e obscurece outros sentidos possveis, tomando para si, de modo totalmente restri-to, o sentido imprimido pelo mundo da tcnica.

    Iniciaremos nossos questionamentos com a tonalidade afetiva fundamental do tdio para ento discutirmos as compulses, como um modo possvel de aba-far essa tonalidade que predomina na poca da tcnica.

    tcnica, tdio e compUlso

    Segundo Heidegger (2006[1929]), o tdio consiste na tonalidade afetiva fundamental do horizonte histrico em que nos encontramos. A tentativa de obs-curecer, aplacar o total desinteresse e esquecimento do ser, consiste no modo em que ns nos encontramos afinados na era da tcnica. Na era da tcnica acontece que as orientaes do mundo ocorrem de forma tal que ela, a tcnica, absorve o homem. E assim ele acaba por automatizar totalmente seus atos. O espao de temporalizao do existir do homem se estreita de modo que a sensao de as-fixia. O tempo, ao se afinar com o tempo do mundo, constitui-se por um modo acelerado, nunca para e nem diminui a velocidade. Sem necessrios, o homem da era da tcnica perde totalmente o interesse por si mesmo e se perde na poeira dos possveis. Para no se dar conta desse seu destino, ele tenta o quanto pode ter com que se distrair. Kierkegaard (2006[1843]) e Heidegger (2006[1929]) referem-se distrao de todos os tipos, seja pelo excesso de diverso, seja pelo excesso de tra-balho, constitui-se no modo de no permitir que o tdio venha e diga, afinal, o que est acontecendo. Assim, nos deparamos com homem compulsivo na atualidade.

    A ao, ao se tornar uma repetio incessante, passa a ser definida como compulsiva, j que o sujeito do comportamento no tem mais nenhum controle sobre si. E essa compulso se materializa em uma srie de transtornos, interpre-tados aqui, no como falhas de uma determinada subjetividade, mas que ousamos denominar de transtornos epocais. Queremos com isso dizer que o horizonte da compulso atravessa, hoje, os nossos modos de ser.

    os transtornos compUlsivos: controle, temor e tdio

    Tentaremos ento esclarecer a questo do transtorno em uma fenomenolo-gia hermenutica. Na psicologia tradicional a neurose diz respeito a uma subjeti-vidade encapsulada que carrega em sua interioridade o seu transtorno e, portanto, nela que repousa toda a responsabilidade pelo modo como conduz a sua vida. Com base em uma psicologia existencial, caminhamos no sentido de entender que o que est em jogo nos transtornos o choque que se apresenta frente ao indeterminado e a tentativa de controlar essa indeterminao. Como tal tentativa fracassa, podem ocorrer diferentes modos de lidar com a situao. Aqui iremos

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    apresentar quatro delas. A primeira a que denominamos de ao compulsiva que consiste em insistir bravamente, por meio de uma ao incessante. o que comumente denominamos de determinao. A segunda, na qual o homem fica transtornado frente ao ter que ter o controle a qualquer preo, ns chamaremos de transtorno obsessivo compulsivo. Frente aquilo que esse homem teme, ou seja, a sua vulnerabilidade, ele restringe a gama de possibilidades que se apresentam, e assim, tenta com todas as foras e, ainda, com maior determinao, retomar o controle por diferentes meios frente quilo que teme. Na terceira, trata-se do des-nimo frente exigncia que no cessa, pela qual, muitas vezes, o homem tomado por essa disposio recebe a denominao de ocioso, preguioso, improdutivo. E, por fim, este homem em transtorno frente insistncia em sua produtividade, no mais vendo possibilidades, desiste total e radicalmente, assim, abandona-se ao movimento do mundo e temos ento a tonalidade do tdio.

    Em Heidegger, os transtornos existenciais so comportamentos que promovem um estreitamento do horizonte existencial, de modo a encurtar as possibilidades existenciais. Em Ser e Tempo, Heidegger (1989[1927]) pensa o cotidiano em uma perspectiva do comportamento mediano, no qual permanece-mos com a impresso de que temos o controle e agimos de modo a que nada seja mais importante ao que tomar conta daquilo, que de algum modo acreditamos ameaar nossa existncia. E toda vez que temos o anncio do incontrolvel, dispomos de um esforo enorme para retomar o controle. Acontece que nada disso da ordem do racional. Como diria Sartre (2001[1943]), isso acontece na sntese do projeto, na ordem do pr-lgico, horizonte esse que no pode jamais ser controlado. Por isso podemos arriscar dizer que, na cotidianidade mediana o que mais acontece so modos de ser restritivos, controladores. Ocorre que, ao tentar controlar tudo, esse projeto fracassa, j que na vida nunca possvel ter controle total sobre tudo e todas as coisas. Aquele que vive o transtorno apresen-ta uma tentativa de controle total, porm em um espao reduzido. E ao reduzir o espao das possibilidades vulnerabilidade e s ameaas a sua existncia, o transtornado acaba por tomar como ameaadora uma e nica possibilidade. Esse espao restrito traz a iluso de um controle possvel, mas justo nessa reduo que h o transtorno. Na ao compulsiva, o homem insiste em manter tudo sobre controle, mas pode acontecer, ao contrrio, a desistncia, j que esse homem se d conta de sua impotncia frente ao controle pretendido. E, assim, temos o transtorno como elemento decisivo para o controle, determinao, compulso ou, ao contrrio, para a total e radical entrega, da a inao, a tristeza e o abando-no de toda e qualquer tentativa de criar projetos para a sua existncia.

    Sartre (2000[1938]) exemplifica essa intuio da indeterminao da exis-tncia e seu carter incontrolvel em seu romance A Nusea. Roquentin, principal personagem do romance, desvela pela experincia da Nusea o sentido absurdo da existncia. A epgrafe do livro j anuncia de quem se trata Roquentin: um rapaz sem importncia coletiva. apenas um indivduo (s/p), denotando um ho-mem comum, mergulhado no mundo, como todos os homens. Sendo um historia-dor, Roquentin reside temporariamente em uma pequena cidade de interior com

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  • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo; Carolina Freire Dhein

    o objetivo de escrever a biografia de um poltico. Nesse sentido, Sartre procura indicar que o personagem vive de incio uma atmosfera controlvel e previsvel, mergulhado na familiaridade do mundo.

    Silva (2004) atenta para o carter ordenado da Histria, que, ao ser retrata-da, s pode se desvelar no passado. Escrever uma biografia, por exemplo, contar com fatos que j se deram e lanar mo, portanto, de um encadeamento temporal linear. Da a ideia de controle e previsibilidade. A existncia, ao contrrio do encadeamento linear das histrias contadas nos livros, acontece na dinmica tem-poral do prprio existir. E na existncia mesma, no cotidiano, na relao con-creta com o mundo, que Roquentin, aos poucos, suspende a familiaridade com as coisas a sua volta, dando-se conta da injustificabilidade destas, e, consequente-mente, a prpria existncia. Nada necessrio. Existir estar presente simples-mente [...]. A contingncia no um falso semblante, uma aparncia que se possa dissipar; ela o absoluto e consequentemente a gratuidade perfeita (SARTRE, 2000[1938], p. 194). Pela nusea a realidade perde seu carter de determinao, ou, melhor dizendo, perde sua razo de ser, razo essa no sentido de causalidade.

    Vemos, dessa forma, que tanto a nusea como o tdio apontam para a co-pertena da existncia homem-mundo. Se ser ser-no-mundo, como nos diz Hei-degger (1989[1927]), no mundo, no espao do existir que se desvela como o repertrio de sentidos, que encontramos, de incio e na maior parte das vezes, uma familiaridade tal que, ao mesmo tempo em que nos situa, aprisiona. Na era da tcnica que calcula, o mundo nos diz que o sentido das aes conclama ao rigor, segurana. As aes convertem-se em finalidades justificadas em si mes-mas, por meio do controle que visa assegurar uma certeza.

    Todos esses modos de lida do homem com as determinaes do mundo da tcnica, Heidegger (2006[1929]) denomina como tonalidades afetivas, que consiste em um espao que no nem interior, nem exterior, que sustenta a si-tuao e onde as determinaes acontecem. A atmosfera que parece sustentar o transtorno do controle o temor. O temor relaciona-se com o medo. Heidegger (1989[1927]) diz que o medo torna a rede referencial mais presente e a circun-viso se acirra. Aquilo de que temos medo, torna-nos mais atentos quilo que previne o acontecimento que tememos. Aparece, assim, a atmosfera de temor.

    Pensar no horizonte histrico que determina as nossas aes por meio dos elementos da tcnica com a sua atmosfera prpria de controle, compulso, vio-lncia ou de entrega, inao e desistncia, parece trazer uma outra forma de inter-pretar os transtornos na atualidade.

    conclUso

    Com essas consideraes, abrimos a possibilidade de se pensar o homem como uma totalidade e no mais como a aparente insupervel viso subjetivista ou objetivista, presente no campo da psicologia. Faz-se possvel, ento, agora, refletirmos acerca do modo de ser compulsivo do homem a partir do horizonte histrico no qual ele se situa.

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  • Uma compreenso Fenomenolgico-Hermenutica das compulses na atualidade

    Com os apontamentos expostos anteriormente acerca da questo da tcni-ca, desenvolvidos por Heidegger (2002[1954]), percebemos um mundo dominado pelo modo tcnico-calculante, no qual tudo regido pelo vis da instrumentalida-de. Pensando a respeito dessa reflexo, S e Rodrigues (2008, p. 39) argumentam que somos cada vez mais convidados a desvelar a natureza como dis-ponibi-lidade (Bestand): tudo se encontra disponvel para ser extrado, transformado, estocado, utilizado, consumido. Tambm contribuindo para essa reflexo, Fei-joo (2008) nos diz que a herana da modernidade desemboca numa atualidade ps-moderna que se desvela de forma ambgua pelo excesso e pelo controle. O homem, ao mesmo tempo em que deve valorizar a ordem, o mtodo e o controle, tambm convidado a comportar-se de forma hedonista, marcado por noes de explorao, serventia e descartabilidade, contexto no qual o consumo pode ser considerado a mais evidente expresso dessa experincia na atualidade.

    Lipovetsky (2007) em sua obra A felicidade Paradoxal, tambm aborda as demandas paradoxais do que chamou de Hipermodernidade. Argumenta que ao mesmo tempo em que h o culto ao bem-estar, aos lazeres e sade, v-se o crescimento da indstria medicamentosa, como tambm uma impressionante expanso dos distrbios psquicos. A insegurana, a desconfiana, a ansiedade cotidiana crescem na proporo mesma de nosso poder de combater a fatalidade e alongar a durao da vida (LIPOVETSKY, 2007, p. 55). Para o autor, quanto mais explodem os apetites de aquisio manifestados principalmente pela prtica do consumo, mais se agravam os descontentamentos individuais.

    Na era da tcnica contempornea, o modo da instrumentalidade desvelada atravs do consumo, talvez seja a principal forma de relao do homem com o mundo, uma vez que o consumo na atualidade no se restringe apenas aquisio de mercadorias, mas se torna a lgica de toda e qualquer relao do homem com seu meio, com outros homens e consigo prprio. Com esse movimento, podemos refletir que o modo de ser compulsivo, tratado neste artigo, pode ser considerado uma marca da sociedade contempornea. Intimamente relacionado ao convite pelo consumo sem freios, vinculado ordem do desejo insacivel, s noes de explorao e descartabilidade, a compulsividade ilustra o comportamento do homem contemporneo nas mais diversas esferas de sua existncia. Esse homem come em excesso, trabalha em excesso, medica-se em excesso, compra em exces-so. Somos impulsionados a nos comportar compulsivamente na medida em que temos como horizonte uma sociedade que elege como valor a insatisfao cons-tante, estimulada pelas possibilidades de exploraes infinitas, ao mesmo tempo em que, a movimentao incessante, tentamos escapar ao tdio.

    Assim, tomando como base o pensamento fenomenolgico-hermenutico de Heidegger, apresentamos a possibilidade de interrogar as anlises tradicio-nais no campo da psicologia, principalmente no que tange compreenso do modo de ser compulsivo. A psicologia, de um modo geral, concebe a compulso em uma viso psicopatolgica, herdada do saber mdico-cientificista. No que-remos, com isso, anular a legitimidade dos conhecimentos trazidos pela cincia, nem mesmo desconsiderar que a experincia da compulso possa tomar formas verdadeiramente patolgicas. Inspirados nas palavras de Heidegger (1959, p.

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  • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo; Carolina Freire Dhein

    23) em seu potico texto Serenidade, seria insensato investir s cegas contra o mundo tcnico, porm, atravs de um pensamento que medita, ou seja, da refle-xo, podemos dizer sim s orientaes do mundo tcnico, ao mesmo tempo em que podemos dizer no, impedindo que nos absorvam totalmente, transforman-do-nos em autmatas. Com isso duas reflexes mostram-se pertinentes: embora a compulso possa se apresentar de formas muito especficas e singulares, pare-ce que hoje assistimos a um aumento significativo de suas expresses. E essa constatao que nos convida a pensar no carter mais original desse fenmeno. Com base nos estudos sobre as tonalidades afetivas, discutidas por Heidegger, que ousamos pensar que o que importa o horizonte histrico no qual as de-terminaes dos modos de ser do homem acontecem. Horizonte histrico que se descortina ele prprio ao modo compulsivo. Esse ponto nos conduz diretamente a uma segunda reflexo: a importncia de atentar para a estreiteza de olhares dicotomizados e apartados de uma compreenso total do homem, ainda muito presentes no campo da psicologia quando esta posiciona sua preocupao com leis instrumentalmente vlidas em termos universais ou com interpretaes sub-jetivistas inspiradas em uma ideia de interioridade.

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    Recebido em: 24 de abril de 2012Aceito em: 14 de agosto de 2013

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