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  • Cadernos de Formao RBCE, p. 9-24, set. 2009 9

    ENTRE O NO MAIS E O AINDA NO: PENSANDO SADAS DO NO-LUGAR DA EF ESCOLAR I*1

    Ms. FERNANDO JAIME GONZLEZMestre em Cincias do Movimento Humano pela UFSM

    Doutorando em Educao Fsica UFRGSProfessor do Departamento de Pedagogia Uniju

    Dr. PAULO EVALDO FENSTERSEIFERDoutor em Educao pela Unicamp

    Professor do Departamento de Pedagogia Uniju

    Resumo | O presente texto desenvolve-se a partir da considerao de que a Educao Fsica (EF) escolar brasileira passa por um processo de transfor-mao que nos coloca, por um lado, diante do abandono de um discurso legitimador centrado no exercitar-se para... e, de outro, nas difi culdades encontradas na construo e efetivao de um novo modo de legitimao no espao escolar. Apontamos como perspectiva para enfrentamento deste desafi o a possibilidade de a EF produzir respostas que levem em conta a especifi cidade da instituio em que se encontra, identifi cando o campo de conhecimento que lhe particular e o modo como os conhecimentos so tratados. Por fi m, reconhece que tal tarefa, como a repblica, em uma socie-dade democrtica, tarefa de todos os implicados. Neste texto, procuramos dar conta de um primeiro movimento, que consiste em uma explicao do carter republicano da escola.

    Palavras-chave | Educao Fsica escolar; educao republicana; legitimao pedaggica.

    *. A segunda parte deste texto ser publicada em um prximo caderno e tratar, mais especifi camente, da Educao Fsica escolar de forma articulada com as posies que aqui explicitamos.

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    [...] somos seres do no mais e do ainda no. Ns no suportamos, de certo modo, o vazio. A pergunta : como ns podemos sustentar esta situao de estar entre o no mais e o ainda no? Ou o no mais continua,

    [...] ou ento este no mais j realmente no mais e ento se iniciou o ainda no. Que ainda no este? Que novo tempo este? Que caractersticas dar a isto? Como

    pensarmos este novo tempo? (STEIN, 1991, p. 25, grifos nossos).

    INTRODUO

    A Educao Fsica (EF) como disciplina escolar passa por um

    processo de transformao do qual todos somos, seno protagonistas,

    espectadores. Alguns h mais tempo, outros menos, convivemos com

    um processo de transformao que consideramos sem precedentes na

    histria desta atividade pedaggica. Processo ao qual, entendemos, no

    se tem prestado a sufi ciente ateno.

    Parece possvel afi rmar que, em linhas gerais, o sculo XX presen-

    ciou, nas sociedades ocidentais, a consolidao da EF na escola sustentada

    no conhecimento mdico-biolgico e orientada pela ideia de que sua

    funo principal era a promoo da sade, articulada discursivamente

    como uma ideia genrica de educao integral do homem no sentido do

    desenvolvimento de todas as suas potencialidades (BRACHT; GONZLEZ,

    2005). Nesse caminho, e de forma mais intensa a partir da metade do

    sculo passado, a EF estabeleceu uma relao simbintica com o esporte,

    por meio da qual esse fenmeno, em sua forma institucionalizada, aca-

    bou sendo praticamente hegemnico nas aulas de EF. A tal ponto de, no

    senso comum, ser plenamente possvel confundir EF escolar com prtica

    esportiva, como fi cou constatado, por exemplo, numa pesquisa recente

    entre gestores escolares das redes de educao pblica do municpio de

    Iju (Gonzlez; FENSTERSEIFER; LEMOS, 2007).

    Esse processo, que fi cou conhecido como a esportivizao da

    EF escolar e que foi hegemnico durante vrias dcadas, passou a ser

    questionado no transcurso dos anos de 1980 a partir daquilo que fi cou

    conhecido como movimento renovador da EF brasileira. Movimento este

    que impulsionou mudanas em diversas dimenses de nossa rea.

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    Particularmente no que respeita ao campo educacional, questionou-

    se o paradigma de aptido fsica e esportiva que sustentava de forma

    extensiva as prticas pedaggicas da EF nos ptios escolares. Sem poder

    neste texto alongar essa descrio, podemos apontar que, entre outras ini-

    ciativas, o movimento renovador entendeu que uma das aes necessrias

    para transformar a EF seria elev-la condio de disciplina escolar,

    tirando-a da categoria de mera atividade (BRACHT; GONZLEZ, 2005).

    Em outras palavras, da mo do movimento renovador que se co-

    loca, talvez, pela primeira vez1 , um conjunto de questes que no faziam

    parte das preocupaes da tradio desta rea, e que balizam as teorias

    pedaggicas quando buscam legitimar um componente curricular num

    projeto educacional.

    Questes como:

    Por que esta disciplina deve compor o currculo da escola?

    Quais so seus objetivos?

    Quais so seus contedos?

    Como so sistematizados os contedos ao longo dos diferentes

    nveis de ensino?

    Como esses contedos devem ser ensinados?

    Como avaliar seu ensino?

    Nesse contexto, parece lgico perguntar o que signifi cou a incor-

    porao desses questionamentos terico-pedaggicos para o campo das

    preocupaes e do fazer da EF. Segundo nossa percepo, a incluso dessas

    preocupaes na rea imprimiu uma mudana de tal magnitude que pos-

    svel comparar esse fenmeno a um ponto de infl exo na qual a trajetria

    da EF faz uma quebra defi nitiva com sua tradio legitimadora. dizer que

    aquilo que nos sustentava como rea no plano da legitimidade autoatribu-

    da ruiu, e no temos como voltar atrs, como esquecer essa infl exo.

    1. Referir-se primeira vez, neste contexto, tem o sentido de chamar a ateno para o modo como esta demanda se colocou, ou seja, como inerentemente vinculada aos propsitos da instituio escolar.

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    Assim, essa ruptura com a tradio, do que podemos denominar de

    o exercitar para2, colocou EF ( bom lembrar: a seus protagonistas) a

    necessidade de reinventar o seu espao na escola, agora com o carter de

    uma disciplina escolar. EF na forma de um componente curricular, res-

    ponsvel por um conhecimento especfi co (inclusive conceitual), subor-

    dinado a funes sociais de uma escola republicana, comprometida com

    a necessidade que as novas geraes tm de conhecimentos capazes de

    potencializ-los para enfrentar os desafi os do mundo contemporneo.

    No entanto, bom ter clareza de que esse novo projeto no existe en-

    quanto prtica hegemnica, o que signifi ca que essa nova responsabilidade

    autoatribuda deva passar pela inveno de novas prticas pedaggicas.

    Assim, na nossa compreenso, a EF se encontra entre o no mais e o

    ainda no3 , ou seja, entre uma prtica docente na qual no se acredita

    mais, e outra que ainda se tem difi culdades de pensar e desenvolver.

    Nesse contexto, entendemos que a ausncia de projetos curriculares

    de EF na maioria das escolas e, particularmente, a falta que sente deles uma

    poro importante dos professores um claro sinal dessa transio4.

    Pensar a EF como um espao pedaggico comprometido com os

    propsitos da escola passa a ser ento nosso principal desafi o. Parte cons-

    titutiva desse desafi o, algo como um pr-requisito, pensarmos qual o

    propsito dessa instituio republicana denominada escola.

    2. Exercitar-se para melhorar a sade, exercitar-se para formar o carter, exercitar-se para o desenvolvimento do homem integral, exercitar-se para.

    3. Referimo-nos aqui formulao de Stein (1991) utilizada na epgrafe deste texto, porm se no caso desse autor o que est em jogo o confl ito modernidade/ps-modernidade, no nosso caso a referncia a passagem da EF de uma condio de atividade para a de componente curricular.

    4. Falta que tambm interpretada como um problema por intelectuais de nossa rea, ainda sendo representantes de correntes pedaggicas muito diferentes, como o caso dos professores Kunz (1994), Freire e Scaglia (2004) e Oliveira (2002). Essa transio tambm capturada em pesquisas recentes das quais, apenas para dar uma ideia, mencionamos duas. A primeira, uma dissertao de mestrado de Nascimento (2006), cujo ttulo j diz quase tudo: Uni-Duni-T: professores selecionando contedos escolares em uma crise da educao fsica. A segunda, uma pesquisa que constata as difi culdades de docentes de ensino superior de universidades paulistas em pensar a sistematizao dos contedos especfi cos para a EF escolar (IMPOLCETTO et al., 2007).

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    ESCOLA, QUE LUGAR ESSE...

    Para compreender a especifi cidade da EF escolar, acreditamos ser

    necessrio defi nir a especifi cidade do estabelecimento qual ela se vin-

    cula: a escola. Qual o carter dessa instituio? O que a legitima perante

    a sociedade?

    Cabe lembrar que as instituies nos ultrapassam como indiv-

    duos isolados. Elas so produto de uma espcie de contrato social que

    nos antecede (da a noo de licenciado que tem licena para atuar em

    nome de uma instituio assumindo uma responsabilidade social).

    Logo, pensar a responsabilidade social da EF, que pedagogicamente ela

    deve responder, no pode ser algo desvinculado do carter desta ins-

    tituio, relativamente nova na histria da humanidade, denominada

    escola e que tem uma contribuio especfi ca nesta tarefa mais ampla

    que denominamos educao5.

    Como instituio6 republicana7, a razo de ser da escola est fora

    de si, e ela s se justifi ca quando essa mxima reconhecida. O melhor

    que podemos fazer no seu interior no independente do seu exterior,

    logo, no pode ser analisada fora do seu contexto.

    Tomando cultura no sentido weberiano, como prope Geertz

    (1989), em forma de teia de signifi cados na qual ns nos inserimos

    tecendo-a, podemos afi rmar que a educao, em sentido amplo, nos

    insere na cultura, potencializando-nos para tec-la. Pr-requisito para

    5. fundamental compreender que a educao no se restringe ao espao escolar, pois dessa constatao que emerge de forma mais clara a pergunta pela especifi cidade da educao escolar.

    6. Podemos pensar que as instituies so o esqueleto da sociedade e constituidoras do esqueleto dos indivduos. So uma espcie de repertrio de possibilidades/necessidades de o indivduo ser em uma determinada sociedade. Elas confi guram aquilo que chamamos mundo humano, o qual ultrapassa (no necessariamente negando) a vida no plano da natureza, que nos iguala ao universo animal. Neste no existe um plano valorativo capaz de sugerir uma normatividade, esta s se d no mundo da cultura, portanto humano.

    7. Repblica entendida como organismo poltico de um Estado com vistas ao interesse pblico (comum).

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    isso tratar os contedos veiculados pelas diferentes disciplinas como

    construes histricas, o que signifi ca passvel de alteraes pelos sujeitos

    que a produziro. Isso vale para o conjunto dos contedos abordados

    pela EF (jogo, ginstica, esportes, dana, lutas...).

    O fenmeno da natalidade demanda sempre o esforo educativo, o

    qual consiste basicamente em tornar acessvel s novas geraes um conhe-

    cimento que as possibilite sentir-se em casa no mundo, e esta parece ser a

    tarefa sociopoltica mais relevante da educao escolar. Conhecer , enfi m,

    constituir o que chamamos nosso mundo (o que nos autoriza a intervir),

    processo que se realiza no infi nito compartilhar de sentidos gerados pelos

    seres humanos. Esses sentidos so produzidos intersubjetivamente e veicu-

    lados no espao educacional com, sobre e para as novas geraes.

    A pergunta que nos move nesta refl exo qual a responsabilidade

    especfi ca da educao escolar neste processo, pois ao assumir responsa-

    bilidades que extrapolam sua competncia, a escola promete o que no

    pode cumprir e, com isso, desempenha um papel ideolgico (no sentido

    marxiano de encobrimento da realidade).

    Em contrapartida, ela corrompe-se quando abandona o princpio

    que a gerou. Neste sentido, Montesquieu permite-nos fazer uma refl exo.

    Ele afi rma que a corrupo de um governo comea quando se corrompe

    o seu princpio: a honra na Monarquia; o medo no despotismo; a virtude

    na Repblica. De forma anloga, a corrupo (deteriorao) de uma

    instituio comea quando se corrompe o seu princpio: a f na Igreja; a

    coragem nas Foras Armadas; o conhecimento nos estabelecimentos de

    ensino. Quando isso acontece, nos desnorteamos, perdemos o critrio

    que nos orienta, o fi ltro, a norma (que pode ou no ter um carter

    metafsico8).

    preciso assumir que nosso trabalho profi ssional, como lembra

    Carvalho (1996, p. 39, nota 3):

    8. Sabemos que historicamente a normatividade das prticas pedaggicas assumiu uma fundamentao metafsica; o desafi o hoje posto produzir uma normatividade no-metafsica, algo que se aproxime ao carter das regras de um jogo (ver a respeito BERTICELLI, I. A. A origem normativa da prtica educacional na linguagem. Iju: Ed. da Uniju, 2004).

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    A atividade educacional profi ssional e institucionalizada na escola pressupe o ensino, ou seja, a transmisso de um contedo especfico e dentro de um contexto hierarquizado pela posse de determinados conhecimentos e mesmo de um papel social muito diferenciado entre o professor (educador profi ssional e no eventual) e seus alunos (que eventualmente ensinam a ele ou a qualquer outro algo que sabem)9.

    sempre importante no esquecermos que o que funda uma

    relao pedaggica no uma determinao divina, nem natural, nem

    do poder da fora, mas uma determinao que tem por base o poder

    argumentativo que certos conhecimentos propiciam, e que, por no es-

    tarem disponveis igualitariamente entre alunos e professores, justifi cam

    essa relao.

    Nessa relao desigual que reside a diferena fundamental entre

    relaes pedaggicas e polticas em uma sociedade democrtica, pois,

    nesta ltima, o pressuposto justamente uma situao de igualdade fun-

    dante, ao passo que na primeira o objetivo a paulatina reduo de uma

    desigualdade fundante. Ambas caracterizam relaes de poder. Vejamos

    o que escreve a esse respeito Savater (2000, p. 127-128):

    um disparate aplicar rigorosamente, desde a pr-escola, o princpio de-mocrtico de que tudo deve ser decidido entre iguais, pois as crianas no so iguais a seus professores no que se refere aos contedos educacionais. Elas so educadas justamente para que mais tarde cheguem a ser iguais em conhecimen-tos e autonomia [...] uma fraude transform-las em uma minoria oprimida pelo autoritarismo docente dos adultos, pois nesse momento de sua vida no o so, mas a melhor forma de fazer com que mais tarde o sejam libert-las fora de hora em vez de colaborar para sua formao (grifo do autor).

    Mas no a presena de relaes de poder (que so inerentes con-

    dio humana) que determina o assumir ou no a condio de sujeitos

    perante o mundo. O exerccio desse poder como coero deliberada

    que nos constitui como humanos. a prpria educao, entendida como

    cunhagem efetiva do humano onde ele s existe como possibilidade

    (SAVATER, 2000, p. 38).

    9. Concordar com essa afi rmao no signifi ca ignorar que ensinado diferente de aprendido.

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    Segundo Arendt (apud SAVATER, 2000):

    As crianas no podem rechaar a autoridade dos educadores como se fos-sem oprimidas por uma maioria composta de adultos, embora os mtodos mo-dernos de educao tenham tentado, de fato, pr em prtica o absurdo de tratar as crianas como uma minoria oprimida que tem necessidade de se libertar. A autoridade foi abolida pelos adultos, e isso s pode signifi car uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo em que puseram seus fi lhos (p. 128).

    Antes de a criana ser educada, no h nela nenhuma personalidade prpria que o ensino oprima, mas apenas uma srie de disposies genricas, fruto do acaso biolgico: atravs do aprendizado (no apenas submetendo-se a ele mas tambm rebelando-se contra ele e inovando a partir dele) ir forjar-se sua iden-tidade pessoal irrepetvel (p. 38).

    Mas, para que isso se coloque como possibilidade, deve-se tomar

    o sujeito como efeito de processos de subjetivao10 e a realidade como

    construo histrica. Esta historicidade dos sujeitos e do mundo o

    espao possvel da educao e do exerccio da cidadania, e a conscincia

    desta plasticidade dos sujeitos e do mundo possibilita-nos pensar uma

    educao emancipatria.

    A instituio escolar (como qualquer outra) preserva esse lugar de

    sujeito ao reconhecer que carrega em si o grmen de sua prpria trans-

    formao, ou seja, embora uma instituio se funda e encarne um desejo

    de segurana, certeza, estabilidade, possui em seu interior elementos de

    subverso, o que, ainda que paradoxal, no contraditrio, dado que re-

    produzir o humano reproduzir a capacidade humana de se recriar11.

    No se chega, porm, a essa percepo se o professor permitir aos

    alunos acreditarem que suas opinies a respeito dos contedos a serem

    tratados esto no mesmo nvel daqueles que durante boa parte de suas

    vidas se debruaram na produo de resultados cientfi cos. Ao aceitar

    10. No se trata de ir do sujeito vida animal, mas, ao contrrio, a vida como causa e o sujeito como efeito.

    11. O carter subversivo do educador, como mestre da suspeita, que, porm, no se coloca na vanguarda, apenas lembra sutilmente que o respeito tradio no pode ser confundido com conformismo, com subservincia ad infi nitum, cabendo sempre a pergunta: o que h na tradio?

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    esse relativismo, desqualifi camos a instituio que veicula esse saber e

    os profi ssionais especializados responsveis pelo seu ensino.

    Escreve Savater (2000, p. 159):

    No h educao se no h verdade a ser transmitida, se tudo mais ou me-nos verdade, se cada um tem sua verdade igualmente respeitvel e no se pode decidir racionalmente entre tanta diversidade. No se pode ensinar nada se nem o professor acredita na verdade do que est ensinando e que verdadeiramente importante sab-lo. [...] as verdades no so absolutas, mas se parecem muito co-nosco: so frgeis, revisveis, sujeitas controvrsia e, afi nal, perecveis. Nem por isso, no entanto, deixam de ser verdades, isto , mais slidas, justifi cadas e teis do que outras crenas que se opem a elas. Tambm so mais dignas de estudo, embora o professor que as explica no deva esconder a possibilidade da dvida crtica que as acompanha...

    Interessa aqui lembrar que uma Repblica demanda instituies

    fortes, elas possuem um carter democratizador, uma vez que protegem o

    mundo das tiranias. Acreditamos que uma das funes das instituies

    a conteno do infl acionamento do eu, protegendo o mundo dos sujeitos

    (e projetos) egocntricos. a percepo de algo que nos ultrapassa12 , em-

    bora, e isso tambm fundamental em uma Repblica democrtica, no

    seja intangvel, o que garante a autonomia de uma sociedade republicana,

    lio que a plis grega nos legou. Ou seja, as instituies republicanas, por

    mais fundamentais que sejam, so instituies seculares, ns as institumos

    (embora poucas vezes na histria humana assumamos essa autoria).

    Falando da escola como instituio, podemos concluir com Arendt

    (2002) que ela fundamentalmente reprodutora (vale lembrar que o Es-

    tado que a exige) e, podemos acrescentar, no h instituio que no o seja,

    uma vez que uma instituio cumpre um papel formador e s formamos

    porque temos uma forma que, real ou virtualmente, est preconcebida.

    Paremos um pouco para nos perguntar: se a reproduo da socie-

    dade humana no depende exclusivamente da escola, para que ela existe?

    Afi nal:

    12. A liberdade do aluno e do professor no exerccio pedaggico est constrangida pela lei. A liberdade do cidado (professor ou aluno) no seu exerccio poltico tambm se pauta pela lei, mas pode ter como objetivo a reviso dessa lei.

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    No teramos vida sem escola?

    No teramos sociedade sem escola?

    No teramos cultura sem escola?

    No teramos educao sem escola?

    No teramos cidadania sem escola?

    No teramos trabalho/profi sses sem escola?

    No teramos limites sem escola?

    No teramos socializao sem escola?

    No teramos valores sem escola?

    No teramos conhecimento sem escola?

    Se reconhecemos que todos esses elementos no esperaram o ad-

    vento da escola para existirem, fi ca ento a pergunta: o que signifi ca a

    existncia da escola para cada um desses temas?

    Sabemos que o prprio mundo educa. Para qu? Para sua repro-

    duo (melhorada). A educao escolar pode tornar esclarecida essa

    reproduo ao tematizar a tradio (desnaturalizando-a). Algo prximo

    afi rmao de Edward Said de que cabe educao conduzir o aluno

    perda de identidade para que, em um segundo momento, este a recupere,

    no mais como destino, mas como escolha.

    Seguindo esse esforo de delimitar a especifi cidade da educao

    escolar, trazemos a contribuio de Carvalho (1996), segundo o qual cabe

    escola primeiramente conservar e transmitir os contedos culturais

    de uma civilizao ou nao. Preparar a passagem do privado (famlia)

    para o pblico (poltica/cidadania), viabilizando sua insero e sua ao

    no mundo, por meio da qualifi cao da capacidade de interlocuo,

    colocando-se altura dos problemas de seu tempo13. Enfi m, cabe escola

    colocar-se como ponte entre o passado e o futuro das geraes humanas,

    13. Segundo Casassus (1995, p. 109), a noo bsica de democracia aparece como a apropriao por parte dos cidados da capacidade de analisar e propor aes acerca de assuntos de interesse comum, num espao pblico.

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    que o presente dos adultos, e pelo qual estes so responsveis. Em poucas

    palavras: formar o esprito republicano.

    No compreender este lugar, que o do ensino sistemtico dessas

    tradies e contedos escolares que elegemos como representativos de

    nossa herana cultural (CARVALHO, 1996, p. 39), leva-nos, segundo o

    autor, a equvocos do tipo:

    enfatizar o papel econmico da educao escolar para a vida do indivduo, como se a escola fosse uma instituio a servio do espao privado (o que torna compreensvel a centralidade do vestibular)14;

    enfatizar interesses polticos ou morais de uma parcela da sociedade, retiran-do seu carter pblico, o qual garantido pela nfase naquilo que comum aos grupos divergentes e mesmo antagnicos de uma sociedade (pblico deve ser compatvel com uma sociedade pluralista)15.

    A pretenso de instrumentalizar a educao e os educandos para

    uma cidadania vinculada a projetos de transformao social, postura

    largamente difundida nas propostas pedaggicas, encontra forte crtica

    nas formulaes de Arendt (2002, p. 225-226) a respeito da educao.

    Escreve ela:

    [...] s crianas que se quer educar para que sejam cidados de um amanh ut-pico negado de fato, seu prprio papel futuro no organismo poltico, pois, do ponto de vista dos mais novos, o que quer que o mundo adulto possa propor de novo necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence prpria natureza da condio humana o fato de que cada gerao se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova gerao para um mundo novo s pode signifi car o desejo de arrancar das mos dos recm-chegados sua prpria oportunidade face ao novo.

    Concordarmos com essa posio no signifi ca ignorarmos a dimen-

    so poltica da educao escolar, a qual se evidencia em questes como:

    escolarizar ou no determinados segmentos da sociedade;

    14. E acrescentamos, desgraam (ou no?) as reas/contedos que no constam das provas do vestibular, tais como: Educao Fsica, Artes, Filosofi a (esta em alguns casos se faz presente no vestibular).

    15. Sempre bom no esquecer que a escola uma instituio republicana e no de parcela da sociedade.

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    excluso ou incluso de determinadas tradies constituintes da sociedade no contedo consagrado como escolar.

    Em qualquer caso que se possa falar de um vnculo entre educao e cidadania, no se pode transferir responsabilidades, que so nossas, para as futuras geraes. Devemos sim nos ocupar do mundo ao qual perten-cemos e pelo qual somos responsveis, assim como pela introduo dos jovens neste mundo, o qual, por estar em constante mudana, apresentar sempre novos desafi os s novas geraes. Quanto a isso, enfatiza Arendt (2002, p. 239): Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabili-dade coletiva pelo mundo no deveria ter crianas e preciso proibi-la de tomar parte em sua educao.

    A escola, para alm de socializar suscitando o princpio de realidade, condio para a disciplina, pr-requisito para o esforo do aprendizado crtico e intelectual, diferente da socializao hipntica e acrtica, por exemplo, da televiso, na qual as emoes se sobrepem razo , dever ainda, e isso quem sabe hoje sua razo de ser, organizar criticamente a informao recebida e oferecer aos alunos ferramentas cognitivas para torn-la proveitosa ou, pelo menos, no nociva. Tudo isso sem que ele prprio se torne um novo sugestionador, e sem pedir outra adeso que no a de inteligncias em via de formao responsvel rumo sua autonomia. Empreitada titnica [...] (SAVATER, 2000, p. 89).

    Precisamos reconhecer que, como profi ssionais da educao, a coisa mais importante para ns deve ser o conhecimento. ele, segundo Arendt (2002, p. 231), a fonte mais legtima da autoridade do professor. Cabe a ns nos perguntarmos: em que medida temos buscado nele nossa realizao? Em que medida ele tem sido a falta que move nosso desejo?

    Assumir essa centralidade abre um horizonte para as questes ante-riores, uma vez que o conhecimento com o qual lidamos tem um carter de universalidade que garante escola (e universidade) um diferencial

    em relao a outras instituies16 . Lembra Savater (2000, p. 54): O fato

    16. Se concordarmos que os fi lhos no so propriedade dos pais, devemos reconhecer a responsabilidade da escola de pr as crianas e adolescentes em contato com o saber de sua poca, e no para ver confi rmadas as opinies de sua famlia (SAVATER, 2000, p. 89).

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    de qualquer um ser capaz de ensinar alguma coisa (inclusive de inevita-

    velmente ensinar algo a algum em sua vida) no quer dizer que qualquer

    um seja capaz de ensinar qualquer coisa (grifos nossos).

    Por fi m, reside nessa centralidade do conhecimento uma questo

    estreitamente vinculada nossa responsabilidade profi ssional, pois acre-

    ditamos que a escola um lugar em que possvel defender e construir

    formas de olhar e sentir o mundo diferente daquelas que permitem

    outras instituies sociais. E que sua especifi cidade est precisamente

    nisso, em sua condio republicana. dizer que, a priori, tudo pos-

    svel de ser visto sem os estreitamentos prprios de outros espaos

    institucionais (famlia, igreja, partido...). Nessa linha, acompanhamos o

    pensamento de Gimeno-Sacristn e Prez-Gmez (1998, p. 22) quando

    asseveram que pode esta instituio oferecer espaos adequados de

    relativa autonomia para a construo sempre complexa e condicionada

    do indivduo adulto. Reconhecemos tambm que entre os principais

    objetivos da escola est a formao de sujeitos capazes de produzir a

    democratizao da sociedade, que consiste na conquista, pelo conjunto

    da populao, das condies materiais, sociais, polticas e culturais por

    meio das quais se possibilite a ativa participao de todos na direo

    da sociedade (LIBNEO, 1992).

    Alm disso, a escola tem entre suas funes a de introduzir os alu-

    nos no mundo sociocultural que a humanidade tem construdo, com o

    objetivo de que eles possam incluir-se no projeto, sempre renovado, da

    reconstruo desse mundo. Eles precisam aprender que nesse processo

    de construo a humanidade tem criado formas de representar o mundo,

    provisoriamente, mais defensveis (dado sua universalidade) que outras,

    e que por isso so privilegiadas no processo de conservao cultural.

    Tambm que a humanidade tem promovido formas de convvio social

    que so mais defensveis por permitir, entre outras coisas, que as pessoas

    possam participar/infl uenciar no processo de tomada de deciso poltica

    sobre questes que dizem respeito a todos e, portanto, so mais dignas

    de serem estimuladas e compreendidas. Finalmente, que a humanidade

    tem construdo maneiras de validar essas formas de conhecer e conviver

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    e, portanto, que precisam ser entendidas para continuar perguntando-

    se sobre o seu valor. Algo como compreender as regras do jogo para

    podermos interrogar sua pertinncia.

    Deixemos em aberto neste momento qual o projeto de EF para

    este tipo de escola, tema que ser desenvolvido na continuidade deste

    texto e que ser publicado no prximo nmero destes Cadernos. Cabe

    porm destacar que consideramos fundamental compreender esta funo

    da escola, como instituio republicana em uma sociedade democrtica,

    para ensaiarmos qualquer forma de resposta.

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    Recebido: 5 maio 2009Aprovado: 25 maio 2009

    Endereo para correspondnciaPaulo Evaldo Fensterseifer

    Rua das Chcaras, 632Iju-RS

    CEP [email protected]

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