Artigo de valéria silva na rba 2010

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1 COLETIVOS JUVENIS, CIDADE E IDENTIDADES: etnografia do estranhamento. 1 Valéria Silva- UFPI RESUMO: Pesquisa desenvolvida junto a jovens do Clube de BMX do Piauí-CBMXPI, através do NUPEC-UFPI. Destaca as interlocuções produzidas em percurso do grupo do bairro Dirceu Arcoverde, em Teresina-PI, para a cidade contígua, Timon-MA. Etnografamos os ‘movimentos rituais’ antecedentes ao deslocamento e o próprio percurso, mapeando relações intersubjetivas do grupo e deste com motoristas, comerciantes e transeuntes, interpretando os sentidos construídos pelos jovens e pela sociedade acerca dos mesmos e do esporte que praticam. Destaco aqui as identidades atribuídas e/ou experienciadas pelos sujeitos, entendendo-as como abertas, expostas às contingências e possibilidades das relações estabelecidas. A partir da observação, entrevista, abordagem, descrição, registro fotográfico percebo que a presença coletiva juvenil no espaço urbano suscita no outro sentidos diferenciados daqueles que os sujeitos constroem nos seus territórios. Para a cidade o grupo é realidade estranha, que desperta, admiração, receio e intolerância. O deslocamento é lazer, esporte, mas também desocupação, incompreensão. Para os jovens, o grupo é ancoragem, partilha. O deslocamento é apropriação de territórios negados, superação momentânea do limite material e simbólico que a vida ‘periférica’ os impõe, também alargamento dos sujeitos em outros espaços. A interação jovensXcidade é locus conflituoso e incerto de (re)construção identitária inscrita no devir. PALAVRAS-CHAVE: Coletivos juvenis. Cidade. Identidades. INTRODUÇÃO Ao trabalhar com as identidades constituídas no âmbito dos grupos juvenis parto do entendimento de que no contexto das sociedades complexas, onde as referências sócio-culturais mudam de lugar constante e rapidamente, os coletivos de jovens têm adquirido um papel de destaque nas sociabilidades, no processo de formação de um modo geral. A partida, material e/ou simbólica, do ambiente familiar, por razões 1 Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1 e 4 de agosto de 2010, em Belém, Pará, Brasil. Pesquisa apoiada pelo CNPq e FAPEPI.

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COLETIVOS JUVENIS, CIDADE E IDENTIDADES: etnografia do

estranhamento.1

Valéria Silva- UFPI

RESUMO:

Pesquisa desenvolvida junto a jovens do Clube de BMX do Piauí-CBMXPI, através do

NUPEC-UFPI. Destaca as interlocuções produzidas em percurso do grupo do bairro

Dirceu Arcoverde, em Teresina-PI, para a cidade contígua, Timon-MA. Etnografamos

os ‘movimentos rituais’ antecedentes ao deslocamento e o próprio percurso, mapeando

relações intersubjetivas do grupo e deste com motoristas, comerciantes e transeuntes,

interpretando os sentidos construídos pelos jovens e pela sociedade acerca dos mesmos

e do esporte que praticam. Destaco aqui as identidades atribuídas e/ou experienciadas

pelos sujeitos, entendendo-as como abertas, expostas às contingências e possibilidades

das relações estabelecidas. A partir da observação, entrevista, abordagem, descrição,

registro fotográfico percebo que a presença coletiva juvenil no espaço urbano suscita no

outro sentidos diferenciados daqueles que os sujeitos constroem nos seus territórios.

Para a cidade o grupo é realidade estranha, que desperta, admiração, receio e

intolerância. O deslocamento é lazer, esporte, mas também desocupação,

incompreensão. Para os jovens, o grupo é ancoragem, partilha. O deslocamento é

apropriação de territórios negados, superação momentânea do limite material e

simbólico que a vida ‘periférica’ os impõe, também alargamento dos sujeitos em outros

espaços. A interação jovensXcidade é locus conflituoso e incerto de (re)construção

identitária inscrita no devir.

PALAVRAS-CHAVE: Coletivos juvenis. Cidade. Identidades.

INTRODUÇÃO

Ao trabalhar com as identidades constituídas no âmbito dos grupos juvenis

parto do entendimento de que no contexto das sociedades complexas, onde as

referências sócio-culturais mudam de lugar constante e rapidamente, os coletivos de

jovens têm adquirido um papel de destaque nas sociabilidades, no processo de formação

de um modo geral. A partida, material e/ou simbólica, do ambiente familiar, por razões

1 Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1 e 4 de agosto de 2010, em Belém, Pará, Brasil. Pesquisa apoiada pelo CNPq e FAPEPI.

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várias, marcam o momento de individuação juvenil, da separação de meninos e meninas

de um coletivo primário, impondo-os a busca de suas próprias respostas aos desafios

novos que a vida lhes traz. Nesse momento os grupos constituem-se em ambientes de

novas sociabilidades que gerarão os sentidos buscados por cada um e algumas respostas

à necessidade de inserção e trânsito dos jovens nas esferas várias do mundo vida a fora2.

É, especialmente, a partir da ótica dos grupos que os jovens experimentam as

questões que lhes são colocadas pela realidade, vivenciam as relações sociais e

conformam uma dada intervenção juvenil no mundo; dialogando com o ‘exterior’, e,

desse modo, experimentando, por assim dizer, alguns ritos de passagem para a vida

adulta, a despeito das mudanças hoje colocadas que impõem às juventudes certa

condição nômade. Nesse novo modo de estar no mundo, no grupo, com seus iguais, os

jovens encontram o conforto da partilha, da receptividade em relação ao que pensam,

sentem e desejam. Vivem a identificação com os gostos, princípios, interesses, visões de

mundo, frustrações, medos e inseguranças, como também a construção das formas e

alternativas de vivência desses e outros aspectos da experiência humana,

potencializados em contextos de amadurecimento, embora cada vez mais não

obrigatoriamente vinculado à pressuposição de assunção de uma vida adulta como até

então entendida.

A partir dessa perspectiva compreendo que os coletivos juvenis podem se

afigurar como um importante veículo de intervenção no mundo e de forte atuação dos

jovens; lugar de produção de sociabilidades, de geração profícua de sentidos, de

experimentação subjetiva, de constituição identitária. Lugares atravessados que são pela

imprecisão e complexidade do mundo, as possibilidades identitárias ali gestadas

submetem-se ao movimento do real que não mais se dobra a uma só enunciação, mas ao

discurso polissêmico orientado pela diversidade das posições que a realidade permite

elaborar pelo outro a partir da pluralidade de experiências e olhares disponíveis.

Como esse entendimento teórico se revela nas vivências de grupos juvenis? É o

que passo a expor, referenciando-me num grupo de BMX de Teresina-PI.

2 Embora não desconheça o fenômeno do alargamento da adolescência e da juventude, representado – grosso modo - pela permanência na casa materna, pela dependência material e até simbólica, pela continuação de sociabilidades tidas como juvenis por um período de tempo consideravelmente mais elástico, os estudos no campo das juventudes – também aqueles que faço – evidenciam que esses fenômenos vão surgindo entrelaçados a práticas que, no passado, evidenciavam a passagem para a vida adulta, como o agrupamento com pares fora do ambiente familiar. Contemporaneamente essas realidades são simultâneas, retirando a precisão da idéia de marcadores da vida adulta com que lidávamos.

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1. O Clube de BMX do Piauí –CBMXPI

O BMX (Bicycle Moto Cross ou Bicicleta de Modalidade Extrema) é um

esporte praticado numa bicicleta pequena, de aro 20” e implica na execução de corridas,

saltos e manobras em rampas ou no solo; mais especificamente em half-pipes, rampas,

nas ruas ou circuitos fechados. Possui estilos variados, sendo os dois principais o

Racing (corrida) e o Freestyle (estilo livre). O estilo livre, por sua vez, se apresenta sob

cinco modalidades de prática: o Street, Vertical, Mini Ramp, Dirt Jumping e Flatland,

sendo diferenciados pelo local e pela forma que são praticados. O primeiro é praticado

nas ruas ou em pistas que simulem os obstáculos encontrados ao ar livre, como degraus,

corrimãos, rampas, declives etc, combinando manobras de estilos diversos, a partir da

criatividade do piloto. O Vertical implica em manobras aéreas a partir de pistas de

concreto, os halfs, de tamanho superior. O Mini Ramp, apesar de praticado nos halfs,

limita-se às manobras com apoio de borda, normalmente de halfs de tamanhos e alturas

menores. O Dirt Jumping tem lugar nas pistas de terra, onde os pilotos realizam

manobras aéreas a partir de uma única rampa ou de uma sequência delas, o que se

denomina de trail. No geral, as manobras são conhecidas como back flip e 360º

backflip, back fli, tail, whip entre outras. Por fim, o Flatland, executa manobras no

solo, sem investidas aéreas, explorando a capacidade de equilíbrio e a criatividade

pessoal do esportista. Pode ser praticado com bicicleta de aro 20 ou em bicicletas

maiores. (http://www.clanbmx.blogspot.com; http://www.abbmx.com.br/bmxo%

20que%20e.htm e Diário de Campo).

Organizados em várias equipes os jovens estão presentes em diversos bairros,

especialmente na Zona Sudeste da cidade, nos bairros Dirceu Arcoverde e Renascença -,

Zona Sul – Saci, Parque Piauí, Monte Castelo -, Zona Leste – Satélite, Santa Bárbara –

e Zona Norte, mais fortemente no bairro Santa Maria da Codipe. O trabalho de campo

apontou, entretanto, que foi no bairro Dirceu que surgiram os primeiros praticantes,

como veremos a seguir Durante a pesquisa partilhamos de treinos e fizemos abordagens

às equipes: Atitude BMX, Cangaço BMX, Do Inferno BMX, Atentado BMX, Pajé

Bike, ADR BMX e Pro-Art BMX que praticam estilos variados. Acompanhamos de

perto e de modo prioritário o estilo Dirt Jump, junto às equipes que treinavam juntas na

rampa do bairro Renascença, em torno do CBMXPI.

Os praticantes de Teresina possuem uma faixa etária bastante elástica, variando

de 10 a 45 anos, muito embora haja importante diferença no tipo de inserção que as

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pessoas têm nas práticas em função da idade que possuem. No trabalho de campo

pudemos observar que os mais novos estão inseridos na condição de aprendizes,

iniciantes. Os mais velhos, dispondo de menos condições físicas – condição sine qua

non à prática do esporte - nele permanecem porque gostam do BMX e do grupo. Os

jovens que se envolvem de modo mais regular nas atividades grupais, colocando-se

como esportistas participantes de competições, situam-se entre 20 e 26 anos. Na sua

expressiva maioria, os praticantes adotam o BMX pela afinidade com o tipo de

atividade que o esporte possibilita, mas especialmente como experiência lúdica, de

convivência com os amigos.

Dos jovens entrevistados, o maior nível de instrução é o ensino médio

completo, quando a metade dos entrevistados não concluiu o ensino fundamental, tendo

abandonado os estudos. Todos pertencem aos segmentos populares de renda, exercem

atividades de trabalho como metalúrgico, motorista, mecânico, ajudante de pedreiro etc.

Um deles trabalha com design de serigrafia. Provêm de famílias onde o pai e a mãe

exercem profissões de similar inserção, como pintor, costureira, borracheiro, pedreiro,

eletricista, vendedora autônoma etc. Esse perfil implica em maiores dificuldades a

enfrentar em relação à escolha do BMX:

...é, o cara quer andar, [de bicicleta] sem trabalhar não dá, né, porque as peças são caras... que, no mínimo, pra montar uma bicicleta gasta um mil, dois mil reais. E tem que trabalhar e estudar e, no caso, se eu tivesse mais tempo de andar, no caso, se eu não trabalhasse, eu acredito que eu era melhor. Eu acredito que eu era melhor assim, eu desenvolvia mais manobra, mas como eu trabalho durante a semana, só posso andar no domingo e no sábado pela tarde. (Piloto 3).

As entrevistas recuperaram que o BMX surgiu em Teresina com Arnaldo

Tremilique, no bairro Dirceu Arcoverde, na década de 1990, possivelmente entre 1994-

96, não havendo registro de uma data precisa. Arnaldo foi o responsável pela construção

da primeira rampa, ainda de madeira, na Praça Cultural do Dirceu Arcoverde, e com

essa iniciativa outros jovens manifestaram interesse pelo esporte, aumentando sua

presença na cidade em número de participantes do grupo e no grau de dificuldade das

manobras executadas. Foi nesse período que John, que atualmente ocupa o cargo de

vice-presidente do Clube, começou a treinar, juntamente com outros membros do grupo,

como Joelson, Tarso e Espanto.

Os encontros regulares entre os jovens, o conhecimento de outras experiências

do BMX, as discussões que empreendiam e a limitação das rampas improvisadas

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desencadearam no grupo a idéia acerca da construção de rampas de barro, apropriadas

aos treinos, em terrenos baldios da cidade, delineando uma característica importante que

viria a fazer parte das novas práticas juvenis consolidadas no interior do grupo: “...

depois da [rampa] de madeira, a gente foi assistindo fita, fita de vídeo... começamo

pegar e fazer rampa de barro. Chegava nos terreno baldio e fazia rampa de barro...”

(Piloto 2). Mas as dificuldades eram muitas, porque os proprietários, ao descobrir o uso

dos terrenos, não aceitavam as presenças juvenis, obrigando a busca de outro local.

Em certa oportunidade os jovens localizaram uma faixa de terreno abandonado,

localizado entre o CAIC Renascença a Delegacia de Polícia daquele bairro, no Grande

Dirceu. Imediatamente decidiram construir novas rampas ali. Até então o espaço era

utilizado pela população como depósito de lixo: “... nós fizemo rampa aqui onde é a

nossa sede3, que era só lixo. Nós fizemo a rampa“ (Piloto 2). O novo espaço imprimiu

certa regularidade nos treinos, chamando a atenção de outros jovens e assim se juntaram

ao grupo inicial o Morto, Pajé, Spanto, Braz e Kelson, mobilizados especialmente pela

curiosidade, pela mídia e pelo prazer das práticas:

A adrenalina e a curiosidade. A gente cai, levanta... aí o pessoal olha assim pra gente e vê aquelas marmotas em cima: um com o cabelozão grande, um de calça apertada, assim meio esquisito. É, tudo chama a atenção das pessoas que passam. Vê as manobras difícil e diz: “Eita, aquele ali é louco, mas vou tentar também!”. Fica curioso! E a adrenalina que dá? É bom demais, menino! (Piloto1).

... eu via muito na TV muitos caras fazendo altas manobras radicais, foi que eu fiquei interessado em praticar aquele esporte. Aí foi quando eu conheci os meninos lá de perto de casa, agente começou a andar junto, pegava altas quedas em calçadas, caia era muito mesmo! Aí foi quando eu conheci a rapaziada mesmo do Dirceu, aí agente começou a treinar junto, fazer as rampas e tal... (Piloto 5).

A permanência dos treinos chamou a atenção de um funcionário do CAIC,

Jussiê Ramos e da Associação Comunitária do bairro. Jussiê, a partir dos contatos

iniciais, passou a freqüentar os treinos4, a ajudar cuidar das rampas, consolidando uma

relação de proximidade com os jovens do grupo:

...ele se mobilizou porque a gente treinava aqui no terreno, aqui no lixo, a gente ajeitava a rampa de manhã, quando era horário de meio-dia a população do bairro jogava lixo... Quando a gente vinha à tarde pra treinar, tava as rampas quebrada e cheia de lixo. Aí, ele era vigia do CAIC, aqui da escola, aí ele se mobilizou, ficou assim meio com

3 Ao referir-se à sede o jovem toma o símbolo pela materialidade: no local não existe casa, arquibancadas, tendas ou qualquer suporte físico, além das próprias rampas. 4 Atualmente os treinos acontecem as terças e quintas-feiras, além do sábado e domingo à tarde.

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pena da gente, porque a gente tinha tanto trabalho no sol quente pra chegar o pessoal e bagunçar? Aí, ele começou a proibir jogar lixo, aí com isso ele foi tomando gosto e foi ajeitando... (Piloto 2).

No convívio mais estreito e reconhecendo o potencial de alguns jovens, Jussiê

manifestou o interesse em colaborar com o grupo, também no sentido de potencializá-lo

enquanto grupo formal de esporte radical:

...[ele] procurou a gente e disse que queria fazer uma associação, se a gente queria. Aí, a gente acreditou nele e até hoje tamo aí, coma Associação registrada, tem o terreno agora nosso, tamo ajeitando o campeonato, [...] tá rolando campeonato estadual e vai acontecer o campeonato teresinense também... aí, eu fui junto com o Jussiê, caí na idéia dele. Aí nós começamo a organizar. (Piloto 2).

...ele foi a única pessoa que falou assim: “Eu vou fazer um campeonato.”. Todos chegavam aqui e diziam que queriam fazer um campeonato, aí ele pegou e fez o campeonato. Conseguiu registrar a Associação, conseguiu o dinheiro pra gente registrar a Associação e até hoje ele tá com a gente... (Piloto 1).

Quanto a Associação Comunitária, o grupo experimentou muitas dificuldades,

em face da disputa que se estabeleceu pela posse do terreno. Após algum tempo, vários

desafios – até enfrentamento de tratores -, alguns desentendimentos e a firme decisão de

permanecer no local, os jovens – com a ajuda de Jussiê – buscaram conhecer a situação

real de propriedade do terreno junto à Empresa de Gestão de Recursos do Piauí-

EMGERPI. Constatada a propriedade pública, reivindicaram-na para a construção da

quadra para BMX e outras estruturas poliesportivas, o que acreditam ter conseguido.

Segundo os jovens, na atualidade a EMGERPI já regularizou a propriedade em nome do

Clube, solucionando a disputa que havia com a Associação de Moradores, e se

comprometeu em construir um espaço para esportes radicais, ausente na cidade. Este se

constitui no atual e maior investimento dos jovens envolvidos com a organização formal

do grupo, visto que as condições do local onde treinam são inadequadas, não havendo

infra-estrutura mínima para a prática, seja quanto a rampas adequadas, proteção contra o

sol, arquibancadas, seja a disponibilidade de água para o consumo de todos. A água

utilizada durante os treinos advêm de uma torneira instalada na Delegacia de Polícia

situada ao lado do terreno. Mas as dificuldades se estendem a outros itens: os atletas

também não dispõem de kits de primeiros socorros, extremamente necessários, tendo

em vista o risco de quedas e machucaduras em decorrência das manobras realizadas, de

alto risco. Fica claro que a precariedade do que experimentam influencia diretamente

nas possibilidades do esporte, a despeito da qualidade dos atletas:

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...um local, uma pista adequada pra gente treinar, porque é chato a gente chegar em outros estados - como nos já tamo com cinco anos viajando pra Fortaleza, agora vamos pra Natal no próximo mês - é chegar lá e ter rampas diferentes e muitos da gente não andar por causa da estrutura deles. A gente não vai se adaptar a rampa deles, porque a nossa aqui é diferente, porque a gente não tem estrutura... (Piloto 2).

É também em relação a esse aspecto que reiteram a importância de Jussiê no

grupo. Os depoimentos dos jovens apontam que sua presença desencadeou a

preocupação com a organização formal do grupo, a criação de uma associação de

pilotos que, posteriormente, recebeu nova denominação como CBMXPI, sendo

devidamente registrado. Para participar dos campeonatos os atletas precisam estar

inseridos em rankings em nível local, regional, nacional e mundial e o registro no

ranking só se torna válido se efetivado por uma organização legal, como se tornou o

CBMXPI. A existência formal, portanto, viabilizou a organização dos campeonatos que

se seguiram na cidade e a participação dos atletas nos rankings estaduais e nacional,

oferecendo visibilidade maior ao esporte, abrindo possibilidades de apoios da iniciativa

privada – embora incipiente – e das instituições públicas.

Dentro desse novo contexto foi que o grupo, que se mostrava consolidado e

conservando a sua dimensão lúdica e descompromissada para todos que dele

participavam, incorporou uma nova dimensão e os jovens que desejavam conquistar

uma possível profissionalização no BMX passaram a encontrar espaço para projetos

mais ambiciosos. O grupo diversificou-se, abrindo espaço para interesses diferenciados:

...tem os dois públicos: aquele que acompanha a gente porque acha massa e tem aquele que quer evoluir junto com a gente, que fica tentando. Vê a gente tentando a manobra e [...] quer fazer também, então eles permanecem com a gente. Porque a gente não desiste, aí se inspira: “Porra, o cara caiu, se cortou, ponteou e nunca desistiu! Então eu vou continuar também. Se ele vai conseguir, também posso conseguir!”. Aí, a gente vai estimular ele. E tem aqueles que anda de bike só porque acha bonito as manobras, tudim. (Piloto 2).

O espaço dos treinos reúne esses dois públicos juvenis, além dos expectadores,

em quantidade considerável a cada fim-de-semana. Para aqueles que tomaram os

encontros enquanto treinos esportivos com vista a competições, os desdobramentos são

considerados satisfatórios. Há cinco anos participam de um campeonato que acontece

em Fortaleza (CE), o Kamikase, conseguindo bons resultados em premiação. Neste ano

participaram do Natal Games (Natal-RN), conseguindo o primeiro e segundo lugares da

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categoria iniciante. Em âmbito local, organizam vários campeonatos – municipal,

estadual – e outros de iniciativa dos jovens, como o que batizaram de Piratinha.

Não obstante a performance do esporte em Teresina e do desempenho dos

pilotos dentro e fora da cidade, os jovens reclamam da falta de apoio. A insatisfação

com o descaso público que vige com o esporte que escolheram é constante no grupo:

...Eu acho que o prefeito de Teresina devia olhar mais pro esporte radical do que pro futebol, porque hoje em dia o Brasil só pensa em futebol, só é futebol, só é futebol... hoje em dia pra você construir um campo de futebol só passa o trator e bota uns pau e pronto! Gasta pouco... (Piloto 1).

Que a gente também tem outros esportes! [...] Aí, as pessoas sai pra criminalidade, anda na rua, anda brigando, vai pra cachaça porque não tem outra coisa, não tem incentivo, só tem o futebol... Mostrar aí pra esse povo aí, político aí, que eu odeio de coração, é que a gente precisa de um local adequado pra treinar, porque se não tiver, nós vamos andar na rua, nós vamos pular banco, nós vamos deslizar banco, nós vamos meter BMX. (Piloto 2).

A reclamação dos jovens é potencializada pelo fato de já assumirem todo o

custo da prática e ainda vivenciarem o esporte sob condições extremamente precárias,

inclusive quanto ao que o poder público poderia apoiá-los como o faz com outros

esportes, no caso as estruturas para os treinos. Para custear bicicletas, viagens,

equipamentos etc. a maioria do investimento ainda é pessoal e familiar. Para os jovens

essa realidade é um empecilho que traz desdobramentos irreparáveis ao BMX: “...se não

tiver incentivo nós vamos ficar véi e ninguém vai conhecer o BMX do Piauí [...] onde

tem um bocado de piloto bom que [...]traz troféu de Fortaleza...” (Piloto 2).

A ausência de apoio interfere diretamente também na disponibilidade de tempo

para o treinamento, visto que a grande maioria dos jovens que participa do grupo tem de

conciliar o esporte com trabalho e estudo. Interfere também nas possibilidades de

aquisição de equipamentos adequados, na construção de rampas apropriadas e na

manutenção daquelas que já mantêm às suas expensas. Especialmente no inverno, as

rampas, a céu aberto, requerem reparo cotidiano, feito unicamente pelo grupo.

Embora enfrentando dificuldades variadas, os projetos grupais para o futuro

parecem não se limitar ao restrito universo de possibilidades desenhado no presente. Os

jovens têm por expectativa não apenas potencializar o que já fazem na atualidade, mas

criar condições para a permanência do BMX para as novas gerações:

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Agente quer provar que aqui [no Piauí] tem piloto bom e é o que nós estamos provando! Estamos chegando lá e tamo trazendo tudo, tamo ganhando segundo, terceiro. [...] ...é só continuar incentivando porque é... muita gente parou, voltou, parou de novo. Então, a ação, enquanto não sai essas pistas, é o incentivo. Vamo... vamo andar, vamo incentivar, vamo assistir vídeo, vamo brincar, vamo falar com o pessoal de fora e tal pra ficar sempre ligado enquanto a pista não sai. (Piloto 2).

... Tem uns vizinhos meus que vê, quer andar mais não tem local! Aí eu penso assim: se um dia, como eu vou ficar velho, eu quero ver pelo menos, muitas pistas construídas pra que o esporte não pare, sempre crescendo, mais evolução. (Piloto 3).

Animados pelo prazer do esporte, das amizades, das partilhas e dos desafios a

enfrentar os jovens do CBMXPI seguem se encontrando com regularidade na rampa do

Renascença. Os pilotos ali mesmo trocam o vestuário, colocam equipamentos de

segurança, arrumam suas bikes, trocam experiências, medos e estímulos e,

especialmente, se arriscam nos treinos enquanto pilotos experientes que já são. Para

tantos outros jovens, o lugar anima os sonhos de se transformarem num esportista ou

viabiliza a alegria de estarem entre as bikes e os amigos, aplaudindo e estimulando

manobras cada vez mais ousadas.

Na atualidade os jovens têm diversificado esses momentos de encontro

povoando também a quadra de skate da Praça Ocílio Lago, a rampa de Dirt e quadra de

esportes radicais da cidade vizinha de Timon-MA. Os trajetos para esses outros lugares

são algo que, por si, merecem destaque, conforme descreverei a seguir.

2. IDENTIDADES CAMBIANTES: do Piauí pro Maranhão.

Peguei o trem em Teresina Pra São Luís do Maranhão

Atravessei o Parnaíba Ai, ai... que dor no coração!

Desde o século passado Luiz Gonzaga já cantava a movimentação das pessoas

entre esses dois estados do Nordeste Brasileiro. O tempo passou e muito mudou,

inclusive quanto às formas de deslocamentos disponíveis nessas terras. O trem, figura

rara no cenário das duas cidades, já não leva pessoas, mas apenas óleo diesel e petróleo.

As pessoas transitam entre o Piauí e o Maranhão e, especialmente, atravessam as

fronteiras entre Timon e Teresina, de ônibus, de carro, de motocicleta e de bicicleta.

Dentre essas últimas, existe uma especial: a de modelo BMX, pilotada por jovens que

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praticam esportes radicais. O trajeto é algo especial que mobiliza as equipes e também

mobiliza a atenção das pessoas comuns, construindo-o como evento particular numa

tarde de domingo das cidades. É do que me ocupo a seguir.

2.1 O ponto de encontro

Os termômetros passavam dos 35º. Esse fato e o atraso posto aumentaram a

minha incredulidade acerca da possibilidade de realização de um deslocamento de 10

km sob o sol escaldante que se abatia sobre o mini ramp do Bairro Dirceu Arcoverde,

situado no Ginásio Poliesportivo Edimilson Jorge. Este foi o ponto combinado para

partida, visto grande parte dos pilotos do CBMXPI morar no entorno. Articulado via

Orkut e celulares, o trajeto foi marcado para as 13 horas. A música alta, vinda de bares e

carros de som, preenchia todo o ambiente da espera.

Para os jovens deslocar-se na BMX não é incomum. No cotidiano cruzam o

próprio bairro e ‘pedalam’ para locais outros de maior e menor distância. Mas fazer o

trajeto numa bicicleta de aro vinte – pequena - exigirá preparo aeróbico irretocável,

força muscular e disposição para enfrentar o desafio do trânsito, da distância, do sol...

Enquanto esperava, abordei algumas pessoas no local. O dono de um bar bem

próximo manifestou-se indiferente: “Eu só vejo é eles aí, mas não sei o que é, não. O

que é que eles faz?”. O desconhecimento, no caso, não provocou repulsa ou medo, mas

curiosidade, interesse. Um taxista de um ponto vizinho ao mini ramp opinou: “Aqueles

que andam ali? [aponta para o mini ramp]. Não vejo nada de desvantagem, não. Pode

ser bom, né? Fazer exercício, assim, esporte é bom, né? Menino assim tem muita

energia, é bom gastar, né. Eu acho é muito difícil e perigoso, se cair. Mas não cai, não.

Nunca vi.”. Impressão similar tinha uma dona de casa que morava perto dali:

...esses aí que anda aqui tão melhor do que outros que eu vejo fazendo coisa errada. Nesse bairro tem muita gente nova errada e ninguém toma de conta! É melhor tá aqui, né? Aqui a gente vê eles e não vê coisa errada, porque eles ficam pulando de bicicleta, andando por aí. Tem gente que não gosta e coisa... mas eu mesmo acho bom. Não vejo nada de ruim, não.

Nas impressões que os moradores formularam a imagem dos jovens se lhes

aparecia como desportistas habilidosos que faziam algo difícil e arriscado, sendo suas

imagens – bem como a da própria juventude em geral - associadas à correteza, energia,

a vivência compatíveis com as regras sociais. O território mais específico que partilham

também aparecia avaliado como algo desejável. Na forma como falaram, olharam e

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apontaram o mini ramp mostraram identificá-lo como local de prática desportiva, como

ponto de encontro legítimo de vivências juvenis desejáveis, positivas.

Opiniões similares encontrei dentre os espectadores nas rampas de Dirt do

Bairro Renascença. Lá, entrevistados contatados no local das práticas se empenharam

em discorrer sobre a coragem dos jovens, sobre a dificuldade das manobras, a beleza

dos movimentos e a tranqüilidade que era ter os jovens praticando esporte:

Todo pai e toda mãe devia conhecer isso aqui. Aqui não tem bagunça como muita gente pensa, né? Porque o pessoal grita, ri e tudo, mas é brincadeira. [...] Aqui é coragem, é não ter medo! Precisa é de apoio de quem puder ajudar, isso sim. Aqui é grudado na Delegacia de Polícia e não tem problema. Não é melhor os menino tarem aqui andando de bike do que dentro da Delegacia, virando bandido? Duvido se até o soldado, o delegado não vai concordar com isso. Duvido. Mas ninguém ajuda... (Senhora 1)

...eles brincam aqui... Eu considero tipo um esporte, um treino que eles fazem aqui sábado e domingo e eu acho uma coisa muito conveniente, porque é... pelo menos, em vez de tá fazendo outras coisas, de tá dando trabalho à sociedade, a gente vê que eles despertou a tá praticando um tipo de esporte que, de certa forma, é saúde [...] e até a gente pode ver eles aqui treinando e se adaptam muito bem. Eu pelo menos não teria essa coragem, mas eu admiro muito. Todo fim-de-semana a gente tá aqui tirando umas fotos... (Senhor 2)

Na relação que mantêm como o cotidiano dos treinos e as vivências juvenis os

espectadores do BMX constroem a possibilidade de ver os jovens pilotos de outra

maneira. Os construtos identitários que se sobressaem definem outros lugares para os

jovens: corajosos, audazes, alegres, brincalhões... Talvez esses adjetivos desenhem

exatamente um retrato do que costumamos pensar sobre juventude: vida, força, alegria,

comunidade. Outro aspecto presente é a sintonia dos espectadores com as demandas

juvenis: “Precisa é de apoio de quem puder ajudar...”. Sem conseguir localizar a figura

do Estado como responsável pela implantação de políticas públicas de esporte e lazer,

lança no vazio uma demanda que é do CBMXPI: a construção de um complexo de lazer

no Bairro Renascença. Na relação estabelecida as pessoas da comunidade se colocam

como apoiadoras, admiradoras do esporte escolhido pelos jovens, dos atributos

identitários que ele permite construir.

Outro aspecto que chama a atenção é a oposição estabelecida entre o esporte e

as drogas/violência que encontrei em momentos diversos das falas, tanto dos pilotos,

como dos espectadores. Esporte e drogas, nas falas, são incompatíveis. Assim

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sentenciam mesmo aqueles que colocam em dúvida a condição de pilotos dos jovens,

como veremos. Mas retornemos ao ponto de encontro.

Começaram a chegar. Piloto 2 comentou sobre sua ex-namorada e dos

desacertos na tentativa de co-habitação que fizeram. Falou do seu trabalho, relatando

quão intensa tem sido a rotina: “tô trabalhando de manhã, de tarde e, quando chego,

trabalho de noite na minha casa, fazendo meus lance...”. Mostrou-me, no celular,

orgulhosamente, as fotos das artes que tem produzido para silkscreen e do grafite que

fez na parede de sua casa. Comentou que seus colegas de trabalho ficam admirados com

sua capacidade de criação. “E é porque nunca fiz nenhum curso! Não nasci para estudo,

não. Não tenho paciência. Fiz lá a escola só pra dizer que tenho o ensino médio, mas

não sei de nada. Não vou mentir! Meu negócio é trabalhar”.

Chegaram outros jovens e, juntos, as brincadeiras e conversas grupais se

instalaram, nublando a minha presença. Contaram das festas que foram no sábado, dos

carros que andaram, da música, da dança. Dos encontros que tiveram, dos ficas, dos

sucessos e fracassos das conquistas. Fizeram gozações com um e outro sobre as recusas

das meninas, das frustrações e alegrias noturnas. Os casados presentes se abstiveram da

conversa e apenas participaram das gargalhadas. Outros participavam, mas andando de

bike. Saltavam o meio fio, andavam no asfalto, subiam na calçada, saltavam contra um

muro próximo... enquanto isso, chegaram mais dois jovens. Um a um iam conformando

o grupo de sete jovens do Dirceu que seguiria no passeio, membros das equipes ADR e

Cangaço BMX. No local, não beberam, nem comeram, não obstante o desgaste físico

que enfrentariam em seguida. Após um “vamos” repetido daqui e dali, o grupo decidiu

fazer um trajeto mais cuidadoso quanto à mão e contramão das vias, visto que eu teria

de acompanhá-los de carro. Era hora de partir.

2.2 O trajeto

Desceram pela Av. Joaquim Nelson, uma das principais vias do bairro e do seu

centro comercial, com a velocidade aumentando à medida que se afastavam. A bicicleta

exige perícia especial para uso, uma vez que não tem freios. Dividiam a rua com carros

e motos, porém o tráfego era razoavelmente tranqüilo, visto ser domingo, à tarde.

Seguiam falando uns com os outros, sorrindo, saltando aqui e ali um meio-fio, calçada,

um ou outro obstáculo. Um pequeno tombo do Piloto 6, nada demais. Andavam mais

juntos, mas também se afastavam uns dos outros, fazendo duplas ou trios até atingirem

a rotatória que permite tomar a próxima avenida, saindo do Dirceu Arcoverde.

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Cortaram a rotatória diminuindo distâncias e seguiam pela próxima via com

algum tráfego, raras construções ou transeuntes. Esperei atingir um próximo núcleo

mais afastado do bairro de origem para fazer novas abordagens. O Piloto 6 tombou

novamente e se levantou mancando. Subiu na bicicleta e seguiu caminho.

Num certo posto de gasolina passaram quase todos juntos, dando certo impacto

visual às suas presenças. Um transeunte jovem próximo me disse que: “tipo assim, a

gente tem medo [do grupo]. É um esporte deles, assim... mas a gente tem medo. Já

tomaram uma bicicleta minha, mas acho que porque era igual à deles.”. Um misto de

conhecimento e suposição sobre os ciclistas caracteriza a opinião deste jovem que

observava o grupo passar. Objetivamente, não os conhecia, mas generalizava um evento

ocorrido como ação possível aos pilotos que passavam. Nessa apreciação, o esporte

ensejou a atribuição de atributos identitários negativos aos jovens, muito embora a

prática ainda figurasse na fala do frentista na condição de esporte.

Através da Av. dos Expedicionários alcançaram o Bairro Recanto das

Palmeiras, por volta de cinco km de distância do ponto de partida. Abandonando-a em

seguida, iniciaram a entrada no Bairro São João. Uma senhora sentada à porta da sua

casa expressa com veemência: “Não vou mentir, não. A gente pensa que é trombadinha.

Ainda mais um grupo assim?! A gente fica é com medo.”. A fala supera a anterior

dubiedade de interpretação do jovem transeunte sobre as identidades que se deslocam

sobre as rodas: são trombadinhas. Aqui morrem os desportistas, os corajosos, os alegres,

os brincalhões; nascem os trombadinhas. Por estarem em grupo, são temidos,

certamente por oferecerem o perigo encerrado na nova identidade ganha.

Calçadas, rampas de acessibilidade, declives e aclives vários iam sendo

superados pelas rodas que avançavam no trajeto, ‘fazendo’ uma estrada imaginária,

paralela à via oficial e desenhada pela mente do jovem que pilota uma BMX obediente à

força das suas pedaladas e manobras. O espaço era menos confortável nas ruas e a

disputa com os carros passou a ser mais importante. O sol castigava muito, também o

calor que subia do asfalto. O suor molhava as camisas, mas os jovens mantinham o

ritmo sem aparentar cansaço. Mantinham sistemática: hora em grupo e a maior parte do

tempo em trios, em duplas ou sozinhos.

Cruzaram o Bairro São João e na entrada da Av. João XXIII, já no Bairro São

Cristóvão, um motorista abordado, que baixa o vidro do seu carro para falar comigo,

desabafa: “É um bando de desocupados. É muito atrevimento também. Um deles ali ia

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sendo atropelado e era bem-feito”. Para os pilotos, “os motoristas pensa que a rua é só

pra eles; não respeitam ciclistas, não. Um bando de ignorante aí!”. (Piloto 6).

A que se deveria o atrevimento? O sinal abriu e eu fiquei sem a resposta, mas

poderíamos pensar que andar nas ruas de Teresina em grupos de bikes, dificultando a

passagem de carros pode ser visto como um atrevimento, de fato. Aqui não temos

ciclovias que viabilizem o tráfego com tranqüilidade, embora seja uma cidade de

topografia plana. Não obstante, a bicicleta é ostensivamente usada, mas especialmente

por trabalhadores de inserção sócio-econômica vulnerável. São pedreiros, pintores,

jardineiros, carpinteiros, serralheiros etc que as utilizam no deslocamento para o

trabalho. Assim, está eminentemente associada a essas categorias profissionais e seus

pilotos invisíveis enquanto sujeitos com direito de trafegar na via pública em segurança.

O uso de carros é algo crescente na cidade5 e seu novo perfil impõe ao contexto urbano

a vigência de uma lógica que privilegia os automóveis, tornando-os os atores principais

das ruas e avenidas. Nada estranho que um motorista considere, portanto, um

atrevimento que jovens de aparência pobre e, além disso, suja (em função das roupas do

Dirt que vestem) utilizem as ruas livre e massivamente com suas bicicletas.

Estranhos, atrevidos ou não, adentraram a Av. João XXIII. O trânsito

permanece razoavelmente calmo, facilitando o tráfego dos ciclistas. Mesmo assim,

tomaram a pista auxiliar e por ela seguiram até desembocarem na Ponte Juscelino

Kubitschek, sobre o Rio Poty, ali trafegando pela via dos ciclistas.

Seguiram pela citada ponte objetivando alcançar a Av. Frei Serafim, do outro

lado do rio. É a principal via, que leva ao centro da cidade e a divide em Norte e Sul.

Passaram à frente do 2° Batalhão de Engenharia de Construção-BEC, do Exército

Brasileiro e o soldado que guarda a entrada opinou: “Eu sei... já fiz esse esporte. Mas ali

tem uns que tá ali pelo esporte e muitos são por vandalismo.”. Com essa interpretação o

grupo retorna à condição de hibridismo identitário. Possivelmente, a dúvida instalada na

fala tenha surgido mais para salvaguardar o próprio soldado, implicado que se colocou –

pois, segundo disse, praticou o esporte - do que para identificar o grupo. Uns e muitos.

5 Ratificando esta realidade, Teresina, em 2008, já possuía uma frota de 239.302 veículos, conforme

estatísticas do DETRAN (http://180graus.brasilportais.com.br/geral/teresina-ganha-frota-de-29-mil-veiculos-novos-no-1osemestre-242622.html). Mantendo o seu mercado em expansão, na atualidade é a terceira capital do Nordeste que mais vende carro zero quilômetro5, embora seja a sexta em tamanho de população (CENSO, 2001) e detenha o quarto maior índice de incidência de pobreza na região, perdendo apenas para Maceió, São Luís e João Pessoa, nessa ordem (http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?).

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Nessa configuração, certamente, muitos são quem, na verdade, dão o tom do grupo, que

é de vândalos.

Parada para descanso. Dirigiram-se a um posto de gasolina. “A gente sempre

pára aqui neste posto. Foram os outros que disseram pra gente e aqui eles deixam a

gente beber, descansar. São chatos, não. São gente boa.” (Piloto 1). O frentista partilha

da postura empática: “Pra eles é bom, né? É um esporte e eles gostam. É por prazer, né?

Gostam tanto que vêm mesmo com esse solzão todo. E é só no domingo, que tem

menos trânsito. É um lazer, né? É muito bom. E sempre eles bebem aqui. Tem outros

também”. Bikes ao chão, sentados nos quadros das mesmas, os pilotos descansavam à

sombra, no regaço da água gelada do bebedouro e no bálsamo gerado pela manifestação

do frentista. Uma trégua merecida para realimentarem forças físicas e a auto-estima: ali

voltaram a ouvir que são esportistas cuidadosos, que pedalam por prazer. Ofereci-lhes

um refrigerante, tomado com parcimônia para “não encher a barriga, porque pesa”.

O momento era de descontração, relaxamento, conversa, manifestação de

potência e de alguma lamentação ante o cansaço. “Eu fui dormir foi cinco horas, doido!

Olha o olho roxo aqui! Mas tô andando!”; (Piloto 3). “Eu já tô velho, tia. Não agüento

mais isso, não!” (Piloto 2). Hora de partir mais uma vez. Agora, rumo à Praça do 25º

Batalhão de Caçadores-BC, ao norte-centro da cidade, onde esperavam outras equipes

de BMX. Ali encontraram a Infer Bike e a Caveira BMX, compostas por sete jovens no

total. A partir dali 14 pilotos de BMX passariam a fazer o trajeto.

Muitos abraços, sorrisos, tapinhas... cumprimentos diversos que sinalizavam a

alegria do encontro. As conversas seguiram tratando das bikes. Quadros novos

adquiridos, raios repostos, reparos “feras” feitos, marcas boas e ruins, melhorias X e

Y... Refeitos, mais uma vez retomaram o deslocamento. Recomendaram-me não mais

segui-los, pois serpenteariam por ruas pequenas e outras mais, sem observância estrita

dos sentidos do trânsito, a fim de encurtar distâncias. Marcamos no “pé da ponte”, a

mais ou menos três quilômetros dali. Uma vez lá, iniciaram a passagem da Ponte

Metálica, por sobre o Rio Parnaíba, repetindo o mesmo caminho do trem – do Piauí pro

Maranhão.

Deixando a ponte para trás, cruzaram pelas primeiras residências maranhenses,

quase ribeirinhas. Na primeira padaria que encontraram, pararam novamente para beber.

Sentados às suas portas, um senhor e uma moça manifestaram-se sobre o grupo que

viram passar: “Olha, eu acho muito bom ter como esporte esse daí, é melhor do que

fazer coisa errada. Querer drogas, essas coisas... É importante jovem fazer esporte”;

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“Pra mim, eles deviam procurar outra coisa pra fazer. Ficar andando pra lá e pra cá não

tem nenhum futuro, não. Deviam arranjar outra coisa, trabalhar que dá mais resultado.

Isso aí, eu não concordo, não.”. De algum modo, o híbrido voltava a qualificar o grupo,

pontuando dois limites de interpretação e introduzindo um aspecto instrumentalista na

análise da jovem: trabalhar dá mais resultado. A idéia de vagabundagem inscrita na fala

não faz eco com a realidade. Como referido antes, a grande maioria dos jovens trabalha

para se manter e para manter o esporte que pratica. Ademais, parte dos meninos é

campeã nos torneios dos quais participam. Este BMX dá resultado (embora não dê

dinheiro). Porém, essa realidade aparece apartada da imagem do grupo capturada em

algumas oportunidades. No desconhecimento, a prática grupal encontra dificuldade de

coadunar-se com a idéia de criação, prazer, lazer, esporte, trabalho. No

desconhecimento, a pré-noção instalada socialmente endossa a opinião costurada no

olhar sobre o rastro que os pneus deixam pelas ruas: jovens em grupo, mal-vestidos,

com aparência pobre assemelham-se a desocupação, a perigo, a vandalismo.

Novamente em percurso, entraram na Avenida Pres. Médici, já se aproximando

do destino final. Nessa via seguem por volta de um quilômetro e, numa rua próxima

transversal, chegaram ao Centro Educacional Esportivo e Cultural da Juventude Mauro

Bezerra, em Timon-MA. Ali estão instalados um ginásio poliesportivo, uma quadra de

skate/BMX e rampas de Dirt Jumping, além de outros espaços. A primeira busca foi por

água. Depois, seguiram as conversas, as brincadeiras, o relaxamento e a algazarra alegre

da chegada. Esperaram o sol “baixar” e, refeitos, iniciaram as manobras na quadra de

Vertical. Por algumas horas habitariam Pasárgada.

A presença do grupo chamou a atenção de uns poucos traseuntes que

passavam. Um deles se aproximou e perguntou: “como é que faz para se matricular para

aprender um pouco desse esporte? É que meu irmão aqui quer aprender.”. O discurso os

recolocava na condição de esportistas. Explicações, combinações, instruções, corridas,

manobras, erros, acertos, sorrisos, gritos, comemorações pelos feitos... alegria...

A noite dava os primeiros anúncios. Hora do retorno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Territórios fluidos, equipamentos móveis, relações em trânsito, alteridades

híbridas, identidades cambiantes. Essa é a moldura geral que contorna o trajeto dos

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pilotos de BMX pelas ruas piauienses e maranhenses. A meu ver, as distâncias e

proximidades entre os jovens e seus interlocutores - provocadas pelo

conhecimento/desconhecimento do esporte, maior/menor aceitação do diferente,

filiação/distanciamento dos estereótipos etc - vão marcando as possibilidades

identitárias disponíveis e acionadas por um ou outro na relação instantânea estabelecida

com o grupo.

Parece correto dizer que quadras, rampas e ramps ancoram impressões mais

próximas das realidades do grupo de BMX. Foi possível observar que à medida que os

jovens se distanciam da rampa, do mini ramp de origem, despedem-se de algumas

identidades consolidadas a partir do que constitui também o BMX, inscritas na inter-

relação com os circunstantes próximos ou transeuntes que conhecem o esporte de algum

modo, ou são atraídos pela sua beleza e dificuldade. Piloto, corajoso, maluco, doido6,

alguém em quem se ‘bota fé’ é aquele que, sobre uma bicicleta, voa aos ares em

cambalhotas de efeito visual impressionante. Os jovens, naqueles espaços, lidam com os

atributos identitários da coragem, da perícia, do talento, da persistência, da

masculinidade, da força, da alegria, da brincadeira, da visibilidade positiva os quais vão

se esmaecendo na medida da distância com que se afastam dos seus territórios até se

transmutarem em outros atributos, trançados no estranhamento que experimentam com

outras identidades circulantes pelas vias públicas. Ladrão, atrevido, perigoso, vândalo,

vagabundo... são os atributos que surgem nos novos cenários, nos novos territórios,

marcando as novas identidades que serão, novamente, diluídas na próxima rampa: “É

que meu irmão aqui quer aprender”. Certamente, os jovens também quererão ensinar.

BIBLIOGRAFIA

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estudo de ações do poder público em cidades de regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo: Global; Ação Educativa; FAPESP, 2007. p. 199-230.

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