artigo - cobranca indevida

download artigo - cobranca indevida

of 21

description

artigo jurídico que elucida as implicações da cobrança indevida na seara do direito do consumidor

Transcript of artigo - cobranca indevida

  • A COBRANA INDEVIDA NO DIREITO DO CONSUMIDOR: ESTRUTURA

    DA RELAO JURDICA E EFETIVIDADE APLICATIVA DA NORMA

    Leonel Vinicius Jaeger Betti Junior

    RESUMO

    A massificao das relaes, caracterstica da sociedade de consumo, possibilita a

    ocorrncia de prticas abusivas como a cobrana indevida (que no deve ser confundida

    com aquela realizada por meios abusivos/vexatrios). Por sua frequncia, tais

    fenmenos adquirem especial relevncia social. Tendo em vista esta realidade, o Cdigo

    de Defesa do Consumidor dispe que aquele cobrado indevidamente tem direito

    repetio do indbito, em quantia igual ao dobro do que pagou em excesso (art. 42,

    pargrafo nico). Faz-se necessria uma interpretao/aplicao principiolgica do

    instrumento legal, considerando-se no apenas a relao intersubjetiva entre as partes

    (dano patrimonial e moral) mas, tambm, suas consequncias macrolgicas (reflexos na

    confiana do consumidor, ilegtimas vantagens concorrenciais etc.). Em outras palavras:

    deve-se focar a preveno de danos em vez da simples reparao. Assim, a

    decomposio lgica/estrutural da regra contida no art. 42 faz concluir que sua

    incidncia ocorre quando um fornecedor/prestador cobra do consumidor em quantia j

    paga ou sequer contratada (ou seja: sem dvida; sem nenhuma contraprestao). Sem

    embargo, o maior obstculo hermenutico efetivao do potencial preventivo do

    instrumento a impreciso do texto, que, em seu conseqente, refere apenas

    repetio em dobro do que se pagou em excesso, aparentemente desamparando o

    consumidor que se recusa a fazer o pagamento indevido. Portanto, conclui-se que, por

    interpretao sistemtica/teleolgica, nestes casos deve-se condenar o fornecedor a

    indenizar o consumidor em quantia equivalente que pretendeu receber indevidamente.

    PALAVRAS CHAVES: CONSUMIDOR; DVIDAS; PRTICA ABUSIVA;

    COBRANA INDEVIDA; REGRA JURDICA; REPARAO DE DANOS,

    RECUSA DE PAGAMENTO; EFICCIA APLICATIVA; INTERPRETAO

    SISTEMTICA; TELEOLGICA.

    Advogado, ps-graduado em Direito Empresarial e mestrando pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran PUCPR

    5066

  • RESUMEN

    La masificacin de las relaciones, caracterstica de la sociedad de consumo, hace

    posible la ocurrencia de los abusos, tales como la cobranza indebida (no se confunda

    con aquella hecha por medios abusivos/vejatorios). Por su frecuencia, eses fenmenos

    adquieren especial significacin social. Teniendo en cuenta eso, el Cdigo de Defensa

    del Consumidor y Usuarios dispone que aqul errneamente cobrado tiene derecho a la

    repeticin del cobro indebido, por el doble de la cantidad que haya pagado en exceso

    (prrafo nico del art. 42). Se hace necesaria una interpretacin/aplicacin

    principiolgica del precepto jurdico, teniendo en cuenta no slo la relacin

    intersubjetiva entre las partes (daos patrimoniales y morales), sino tambin sus

    consecuencias macrolgicas (que se reflejan en la confianza de los consumidores, ilegal

    ventajas competitivas). Es decir: debera concentrarse en la prevencin de los daos en

    lugar de la sencilla reparacin. Por lo tanto, la descomposicin lgica de la estructura

    de la regla contenida en el art. 42 hace concluir que esta incide cuando un proveedor

    hace el cobro de monto ya pagado o siquiera contratado (o sea: sin deuda; sin ninguna

    contraprestacin). Sin embargo, el mayor obstculo hermenutico para la efectivacin

    del carcter preventivo del precepto es la imprecisin de su texto, que, en su

    consecuente, se refiere solo a la "repeticin en el doble que si se haya pagado en

    exceso", aparentemente, a desamparar el consumidor que se recuse a hacer el pago

    cobro indebido. Por lo tanto, se concluye que, por interpretacin sistemtica/teleolgica

    en estos casos se debe condenar el proveedor a indemnizar el consumidor en cuanta

    equivalente a la que pretendi obtener indebidamente.

    PALAVRAS-CLAVE: CONSUMIDOR; DEUDAS; PRCTICAS ABUSIVAS;

    COBRO INDEBIDO; REGLA JURDICA; REPARACIN DE DAOS, RECUSA

    DEL PAGO; EFICACIA APLICATIVA; INTERPRETACIN SISTEMTICA;

    TELEOLGICA.

    INTRODUO

    O objeto deste estudo (cobrana indevida no direito do consumidor) se, por

    uma lado, extremamente pontual, por outro, apresenta alto grau de ocorrncia nas

    relaes de consumo, tendo conseqncias que afetam tanto o consumidor

    (individualmente considerado) quanto o prprio funcionamento do mercado.

    5067

  • A massificao das formas de contato entre fornecedores e consumidores,

    mormente no que atine aos modernos meios de concesso de crdito (cartes, boletos e

    dbitos automticos em conta corrente) proporcionam terreno propcio ao abuso

    praticado na forma de cobranas indevidas. Atento ao problema, o legislador

    infraconstitucional preocupou-se em coibir estas prticas, instituindo, no mbito da Lei

    n 8.078/90 (Cdigo de Defesa do Consumidor - CDC), uma Seo especfica, intitulada

    Da Cobrana de Dvidas. Por meio do art. 42 desta, a Lei contempla duas realidades

    distintas: a cobrana por meios abusivos/vexatrios e a cobrana de valores indevidos.

    Quanto segunda, dispe no pargrafo nico: O consumidor cobrado em quantia

    indevida tem direito repetio do indbito, em quantia igual ao dobro do que pagou

    em excesso, acrescido de correo monetria e juros legais, salvo hiptese de engano

    justificvel.

    Visando a explicitar premissas, definir-se- cobrana indevida a hiptese

    que se refere ao aspecto substancial quantum cobrado, deixando de se analisar a

    questo da cobrana abusiva (ligada forma/meios de cobrana vexatria etc.)

    A aparente clareza da regra no resiste a um exame mais atento. Neste

    sentido, como definir o qu seria o engano justificvel capaz de ensejar a excluso da

    sano? A incidncia da regra dar-se-ia em face de cobrana judicial ou apenas em face

    de procedimentos extrajudiciais? Qual seria a aplicao a ser dada norma em caso de

    mera cobrana (desacompanhada de pagamento)?

    A busca pelas respostas a estas questes constitui o escopo deste artigo,

    desenvolvendo-se em um contexto de interpretao sistemtico-teleolgica.

    Intentando abandonar a mera interpretao literal para dialogar com outras

    fontes regradoras (tais como o Cdigo Civil), procurou-se no perder de vista aplicao

    dos princpios correlatos, viabilizando uma (re)construo crtica da norma, capaz de

    colaborar para a realizao da efetividade aplicativa/preventiva do instrumento.

    1 O CONTEXTO DA ORDEM ECONMICA

    O problema da cobrana indevida (e o tratamento jurdico/normativo ele

    dispensado) deve ser compreendido em vista dos princpios da Ordem Econmica

    consagrados pela Constituio Federal de 1988 que, alm de corrigir as falhas

    intrnsecas do mercado, visam a garantir a prpria funcionalidade deste (condio sine

    qua non do desenvolvimento sustentvel).

    5068

  • O vetor mais relevante para qualquer compreenso normativa de contedo

    econmico o princpio da liberdade, que vem insculpido, ao mesmo tempo, como

    fundamento e objetivo da Repblica ((CF, art. 1, IV e art. 3, I) e como fundamento

    basilar da Ordem Econmica (CF, art 170, caput). Para este trabalho, o sentido de

    liberdade que interessa aquele que aponta para uma condio material - real - de

    ao1, ou seja: que se relaciona com a liberdade individual do consumidor e com a

    atuao de cada fornecedor em relao aos demais atores do mercado. Tais agentes

    devem poder exercer e desfrutar de sua liberdade sem sofrer restries injustas abusos

    - por parte de outros agentes.2. Esta prescrio realiza, em sntese, os valores sociais da

    livre iniciativa, nas formas insculpidas na Constituio Federal de 1988.

    Caracterizado tal cenrio, conclui-se que as disposies constitucionais

    tendentes a garantir a liberdade devem nortear, de forma indissocivel, a aplicao da

    legislao infraconstitucional. Para alm do plano individual, em vez de se limitar

    uma considerao casustica da norma colocada no Cdigo de Defesa do Consumidor

    - atrelada somente relao fornecedor/infrator X consumidor/vtima deve-se

    buscar uma anlise mais ampla, com a compreenso das repercusses macroeconmicas

    e sociais do problema em um contexto de desenvolvimento social atrelado ao bom

    funcionamento do mercado (voltando-se proteo de direitos e interesses coletivos e

    difusos). Assim, maximiza-se a eficcia aplicativa da norma (realizando sua finalidade

    inerente), potencializando seu carter preventivo de danos. Em relao esta realidade

    normativa, NUSDEO3 adverte que no campo da anlise e interpretao da lei, elas

    passam a ser cada vez menos semnticas, isto , literais, e sempre mais teleolgicas,

    quer dizer, voltadas s suas finalidades econmicas, em sentido amplo [...]. Por seu

    turno, RIZZATO NUNES4 arremata, peremptoriamente, que para se interpretar

    adequadamente o CDC, preciso ter em mente que as relaes jurdicas estabelecidas

    so atreladas ao sistema de produo massificado, o que faz com que se deva

    privilegiar o coletivo e o difuso [...]. Como o abuso ocorre em escala massificada, faz-

    se necessrio um diagnstico sob a tica dos fenmenos agregados, implicando na

    busca de solues macrolgicas.5

    1 NUNES, Luiz Antnio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. p. 06. 2 mas sofrendo restries normativas em medida suficiente para garantir o exerccio da liberdade dos demais. 3 NUSDEO, Fbio. Curso de Economia: introduo ao direito econmico. p. 208. 4 NUNES, Luiz Antnio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. p. 69. 5 FERRAZ, Roberto. A Macrolgica do Direito Econmico. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econmico e Financeiro, v. 142, passim.

    5069

  • Tal percepo impe uma mudana do paradigma de anlise das

    necessidades e finalidades atreladas s normas jurdicas pertencentes quele ramo que

    se pode denominar de Direito de danos. Pode-se afirmar que a codificao civil6, em

    princpio, preocupava-se to somente com a responsabilidade/sano, apenas visando a

    punir o infrator; em um segundo momento, o foco deslocou-se para a reparao do dano

    sofrido pelo prejudicado. Atualmente, em face da massificao das relaes e da

    complexidade conjuntural composta de direitos difusos e coletivos, o paradigma

    aplicativo/normativo desloca-se para antecipao e preveno de danos.7 A preveno,

    desta forma, supera a simplicidade do esquema sano-reparao e, sem olvidar

    destes, direciona-se para a anlise dos custos econmicos e sociais de longo prazo

    aplicados antecipao e preveno, visando a minimizar a necessidade de reparaes

    e, em relao a estas, apresentando saldo jurdico e econmico positivo.

    A antecipao/preveno colocada em um contexto de anlise econmica do

    Direito, apresenta vantagens em relao sano/reparao, na forma de menores

    custos sociais (representados pelo dano pessoal da vtima e daqueles que o cercam) e

    financeiros propriamente ditos, reduzindo a necessidade de movimentao do aparato

    judicirio (que, como cedio, demanda altos custos de manuteno). Deve-se atentar

    que falar de anlise econmica da norma no se trata de analisar apenas o campo da

    repercusso financeiro-oramentria que advir de sua aplicao. Trata-se, com maior

    propriedade, de analisar o custo social dos possveis sentidos atribudos quela,

    considerando uma projeo tambm social de suas conseqncias (em oposio s

    meramente individuais). Nas palavras de GHERSI,8 a idia resolver a complexidade,

    com um instrumento que rena mbitos: jurdicos (a engenharia pragmtica do

    direito); econmicos (recursos privados e pblicos em conveniente adequao);

    sociolgicos (pois sua finalidade implica diminuir riscos aos indivduos e assegurar a

    inexistncia de conflitos e a convivncia eficaz)

    Com efeito, so estas perspectivas que devem nortear a anlise do problema

    da cobrana indevida,,voltando ateno s conseqncias coletivas e difusas (macro)

    que podem decorrer das possveis solues a serem aplicadas em face do problema

    6 Em nosso ordenamento consubstanciada no Cdigo Civil de 1916. 7 cf. GHERSI. Carlos Alberto. Tercera via en derecho de daos: antecipacin, prevencin e reparacin. In Revista de Direito do Consumidor n 50. p. 225-238. 8 GHERSI. Carlos Alberto. Tercera via en derecho de daos: antecipacin, prevencin e reparacin. In Revista de Direito do Consumidor n 50. p. 231.

    5070

  • aparentemente individual (micro), sem, entretanto, esquecer da importncia

    axiolgica da tutela dos interesses individuais.9

    1.1. As diversas formas de dano

    A cobrana de valores indevidos constitui uma mcula dentro do mercado de

    consumo, ameaando a integridade e a segurana das relaes massificadas (e de seus

    participantes), sendo capaz de, em ltima anlise, comprometer o ideal funcionamento

    do mercado.10 A prtica ilcita gera danos de diferentes espcies e em diferentes nveis:

    a) o primeiro e mais facilmente perceptvel, o dano patrimonial suportado

    pelo sujeito que efetivamente desembolsa os valores indevidamente cobrados;

    b) em segundo lugar, o dano moral consubstanciado no constrangimento

    ilegal daquele que, sem haver consumido algum produto/servio ou, ainda, tendo sido

    destinatrio de produto ou servio defeituoso (viciado - imprprio ou inadequado ao

    consumo), alvo da cobrana ilegal;

    c) em terceiro lugar, constitui um dano livre concorrncia, na medida em

    que o fornecedor infrator aufere valores que no lhe so legitimamente devidos (sem

    contraprestao alguma), obtendo uma vantagem competitiva sobre seus concorrentes

    (causando dano coletivo) que se mantenham dentro dos padres corretos de atuao; e

    d) por fim, pode-se citar o dano difuso causado ao funcionamento do prprio

    mercado amplamente considerado (ou seja, em ltima instncia, prpria sociedade),

    na forma de uma crise de confiana incutida nos destinatrios/ consumidores,

    provocada pela desateno s suas legtimas expectativas.11

    9 vale consignar que a anlise efetuada insere-se no mbito das relaes de consumo, sendo esta pr-condio de existncia da cobrana indevida nos moldes aqui tratados. Sem pretenso de adentrar os meandros do conceito, basta dizer que tal relao qualifica-se por seus sujeitos e por seu objeto, na definio trazida pelos artigos 2 e 3 da Lei n 8.078/90. 10 Neste sentido, caracteriza uma prtica abusiva, apesar de no inserida no rol do art. 39 do CDC (pois este assume, expressamente, sua no taxatividade ao dispor: vedado [...] dentre outras prticas abusivas. 11 Explica-se: o eficiente funcionamento do mercado depende da estabilidade e segurana das contrataes entre seus agentes/atores. Estes fatores somente se consolidam, incentivando o consumo e o desenvolvimento, os agentes confiem que que no sofrero nenhum abuso (expectativa ungida de legitimidade, posto que, alm das proibies expressas s prticas abusivas, a clusula geral de boa-f impe o dever de as partes mutuamente zelarem pela integridade moral e patrimonial umas das outras). Por bvio, o indivduo alvo de uma cobrana indevida ficar, no mnimo, reticente em realizar nova forma de contratao semelhante quela que lhe causou o transtorno (alm disso, deve-se considerar o fator geometricamente progressivo da divulgao do descontentamento e seus efeitos sobre os diversos possveis consumidores que tomarem cincia das vicissitudes suportadas pela vtima).

    5071

  • 2 A MATRIA NO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

    2.1 A espcie normativa

    O Cdigo de Defesa do Consumidor apresenta, em termos de estrutura

    normativa, caractersticas predominantemente principiolgicas. Em outras palavras, a

    legislao desvincula-se da pretenso de regular toda e qualquer situao possvel12,

    preferindo, por outro turno, estabelecer princpios, verdadeiros nortes categricos

    capazes de guiar o aplicador do direito na soluo de novas controvrsias.

    Como se ver adiante, os princpios inseridos no CDC possuiro extremada

    relevncia na interpretao do disposto no art. 42. Este, contudo, de princpio no se

    trata. Analisando a estrutura lgica do pargrafo nico do art. 42, percebe-se, sem

    maiores dificuldades, que se trata de uma regra.

    Regras so instrumentos normativos que possuem alto grau de pretenso

    decisria, ou seja, determinam uma soluo legislativamente determinada e sopesada

    em face de um tipo de conflito preteritamente constatado. Ocorrido seu pressuposto,

    descrevem um comportamento especfico e de adoo obrigatria. As regras

    estabelecem uma relao artificial de imputao (se A , ento B deve ser) e

    possuem estrutura lgica formada por uma hiptese (pressuposto, antecedente) e um

    conseqente (mandamento).

    O pargrafo nico do art. 42 caracteriza-se como uma regra na medida em

    que contm a descrio hipottica de uma situao (a cobrana, por parte de um

    fornecedor, de valores indevidos em face de um consumidor) e prescreve que, uma vez

    ocorrida aquela, o infrator deve adotar determinado comportamento (restituir ao lesado

    o valor dele injustamente auferiu acrescido de uma penalidade pecuniria fixada em

    montante equivalente).13

    Identificada a espcie normativa tratada, resta analisar sua estrutura. Como

    ensina PAULO DE BARROS CARVALHO14, a integridade conceitual da hiptese e do

    12 Utilizando, como instrumento, a tcnica das clusulas abertas. Como expe FABIANO MENKE: o ordenamento jurdico brasileiro no ficou imune a essas influncias e acabou por adot-las, com a entrada em vigor do Cdigo de Defesa do Consumidor e mais recentemente com o Cdigo Civil de 2002, inspirado em uma concepo bastante distinta do Cdigo de Bevilaqua, principalmente por estar arrimado numa idia de sistema aberto e mvel e no mais numa noo de cdigo bastante em si, fechado e com pretenses de resolver todos os problemas a partir do contedo de seus artigos (in Revista de Direito do Consumidor n 50, p. 13/14). 13 Identifica-se a regra do art. 42 como sendo uma norma secundria ou perinorma pois, em face de violao de um dever jurdico (cobrana indevida), impe uma sano (restituio e penalidade no equivalente). 14 CARVALHO, Paulo de Barros, Teoria da Norma Tributria. 2 ed. p. 75.

    5072

  • conseqente no impedem que possamos promover a decomposio lgica dos

    conceitos, permitindo a identificao de dados fundamentais, que informaro o estudo

    sistemtico destas categorias jurdicas. Em outras palavras, o conceito contido na

    hiptese e no conseqente formado por diversos critrios que permitem ao intrprete

    identificar (reconhecer), com preciso suficiente, sua efetiva ocorrncia, bem como

    individualizar (em termos de objeto e sujeitos) a relao jurdica originada por fora do

    vnculo criado em razo do fenmeno da incidncia. Isto posto, passa-se anlise dos

    critrios da regra do art. 42, pargrafo nico.

    2.2 A hiptese de incidncia

    Hiptese de incidncia a representao mental de um fato ou

    circunstncia de fato, contida em uma proposio legislativa15ou, ainda, a descrio

    legislativa (necessariamente hipottica) de um fato cuja ocorrncia, in concretu, a lei

    atribui fora jurdica. A hiptese normativa composta de um ncleo (aspecto material)

    e outros aspectos adjetivos que lhe determinam a especificidade em maior ou menor

    grau.

    2.2.1 O Critrio material

    No plano lgico-abstrato, o critrio material a descrio hipottica de um

    evento (ao), abstrada de quaisquer outras coordenadas. No dizer de PAULO DE

    BARROS CARVALHO, esta abstrao emerge sempre do encontro de expresses

    genricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerrem um

    fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (estado) [...] Este ncleo, ao qual nos referimos,

    ser formado, invariavelmente, por um verbo seguido de seu complemento. Da porque

    aludirmos ao comportamento humano [...].16

    Com efeito, a regra do art. 42 preceitua que o consumidor cobrado em

    quantia indevida, tem direito a repetio do indbito [...]. Deste enunciado, extrai-se o

    critrio material da norma (verbo + complemento) que realizar cobrana de quantia

    indevida.

    2.2.2 O significado da expresso quantia indevida

    15 ATALIBA, Geraldo, Hiptese de Incidncia Tributria, p. 55 e 69. 16 CARVALHO, Paulo de Barros, Teoria da Norma Tributria. 2 ed. p. 76.

    5073

  • Quantia indevida , basicamente, aquela j paga ou no contratada. Por tal

    raciocnio, valor indevidamente cobrado pode ser aquele: a) que foi devido mas j pago;

    b) um plus irregularmente acrescido a um valor legitimamente devido; ou c)

    completamente descabido porque no contratado. Para efeito de preciso cientfica,

    correto afirmar que a quantia indevida, para o art. 42 do CDC, aquela prestao

    cobrada sem a devida contraprestao por parte do fornecedor.17 Neste sentido, a

    legitimidade da prestao intimamente ligada sua contratao por meio de idnea

    manifestao volitiva do consumidor. Mesmo que exista uma contraprestao realizada

    em funo da cobrana, se aquela no foi expressamente solicitada pelo destinatrio,

    no pode existir obrigao de pagamento.

    2.2.3 Cobrana judicial X cobrana extrajudicial

    Outro importante aspecto, que diz respeito descrio hipottica da regra,

    se esta engloba qualquer forma de cobrana ou apenas a cobrana extrajudicial. A

    discusso tem origem na provvel fonte de inspirao do pargrafo nico do art. 42 do

    CDC, qual seja: o art. 1531 do antigo Cdigo Civil de 1916 que, hoje atualizado na

    forma do art. 940 do Cdigo de 2002), dispe: Aquele que demandar por dvida j

    paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que

    for devido, ficar obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que

    houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver

    prescrio.

    Por utilizar o verbo demandar (ao passo que o CDC refere-se a cobrar),

    parte da doutrina (inclusive os autores do anteprojeto) entende que a regra do Cdigo

    Civil norma especial, destinada regulao das cobranas indevidas em juzo e o

    CDC seria norma posterior que veio regular uma situao antes no contemplada. Por

    outro lado, respeitveis doutrinadores, como RIZZATO NUNES, propugnam posio

    contrria. Este, por exemplo, afirma quedizer que a pena s possvel na cobrana

    extrajudicial, no tem qualquer sustentao. Em seguida coloca: seria pueril afirmar

    que, na cobrana abusiva, s por ser judicial, o credor no responde pelas penas do

    pargrafo nico do art. 42. Como que uma atitude abusiva se transmudaria em lcita

    17 Se existiu uma contratao e o pagamento j foi realizado, sua nova cobrana se d sem nenhuma nova contraprestao por parte do fornecedor; se existe uma contratao e, ao preo contratado acrescido algum outro valor no anudo, sua cobrana no corresponde qualquer contrapartida; e, por fim, se no existe contratao alguma, valores eventualmente cobrados no possuem qualquer pretenso de legitimidade.

    5074

  • apenas pelo fato do ajuizamento da medida? Se assim fosse, bastaria dar entrada em

    aes judiciais para, burlando a lei, praticar toda sorte de abusos. E arremata: e

    pior. A afirmao estranha: na cobrana extrajudicial incide a Lei n 8.078. A

    cobrana prossegue e transforma-se em judicial. Neste ponto incide o Cdigo Civil. A

    relao jurdica de consumo torna-se privada?

    Para elucidar este imbrlio, deve-se considerar o ciclo de desenvolvimento

    de uma cobrana indevida: existindo esta -extrajudicialmente o consumidor ter duas

    alternativas: a) pagar (caso em que encerrar a querela conceitual e, sem dvida,

    provocar a incidncia do art. 42); ou b) recusar-se a pagar. Na segunda situao, se o

    fornecedor/infrator insistir em receber os valores correspondentes, ajuizar uma ao de

    cobrana/execuo. Com isso, incidiria o art. 940/CC, fazendo surgir para o demandado

    o direito subjetivo receber o dobro do que pagou ou, se nada pagou, receber o

    equivalente. O problema estaria resolvido, com a concluso de que as normas seriam

    complementares e atuariam em momentos distintos da relao de cobrana, no fossem

    dois obstculos: a excludente do art. 941 do CC, que elide a penalidade se o autor

    desistir da ao antes de contestada a lide. Desta forma, subsistiria quele injustamente

    demandado/cobrado, o direito de haver indenizao por prejuzos que prove ter

    sofrido; e b) o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, em relao norma

    Civil, firmou a smula 159, no sentido que a cobrana indevida, se procedida de boa-f,

    no ocasiona a pena naquela prevista.

    Todavia, tanto a excludente de responsabilidade pela boa-f quanto a pela

    desistncia da ao no se coadunam com os princpios orientadores da Lei n 8.078/90.

    Tratando-se de relao de consumo, via de regra, a inteno do agente (boa ou m-f em

    sentido subjetivo) irrelevante para efeitos de incidncia normativa, razo pela qual

    prevalece o sistema de responsabilidade objetiva. No que toca a desistncia da ao, se

    admitida a inaplicabilidade do CDC cobrana judicial, restaria sem sano alguma a

    conduta abusiva do fornecedor/ infrator que, no se olvide, invadiu a esfera de liberdade

    do consumidor, cobrando um dbito inexistente por considervel perodo de tempo

    (primeiro extra e depois judicialmente) e movimentou injustificadamente o aparato

    judicial, com todas as notrias conseqncias negativas que tal proceder gera

    intimidade da pessoa e do corpo social.

    A soluo tecnicamente mais eficiente (do ponto de vista econmico e

    social), considerando os j expostos princpios garantidores do livre mercado

    (principalmente a tendncia preveno de danos), a da excluso mtua dos mbitos

    5075

  • normativizados. Explica-se: como ensina LIMA MARQUES18, o CDC Lei especial,

    aplicvel s relaes de consumo e o CC/2002 lei geral sobre direito civil. Neste

    sentido, apresentam pontos de convergncia e de divergncia, de toda sorte, convivendo

    no mesmo sistema. A hermenutica mais coerente assume o dilogo sistemtico entre as

    fontes, de forma que se aplica a lei especial s relaes de consumo e a lei geral s

    demais relaes intercivis e interempresariais. Seu campo de atuao prioritria

    distinto, imbricando-se apenas complementar e subsidiariamente na medida necessria

    integrao/reconstruo de seus sentidos. esclarecedor perceber que aqueles que

    consideram o art. 940/CC como regulador das cobranas indevidas judiciais o fazem

    porque o dispositivo remete ao verbo demandar. Ora, a questo coloca-se no plano da

    espcie de relao jurdica (civil/empresarial ou de consumo) e no no plano da etapa

    da cobrana. Ademais, a legislao especial (que de ordem pblica, diga-se de

    passagem), coloca a expresso cobrana, no limitando o conceito de forma alguma.

    Por isso, razovel assumir que regula qualquer mbito e forma de cobrana indevida

    direcionada ao consumidor, judicial ou extrajudicial, no podendo o intrprete colocar

    limitaes aonde a lei no o faz, o que seria contrrio ao esprito de efetividade e

    amplitude da proteo parte naturalmente vulnervel.

    2.3 A excludente

    Por expressa opo legislativa, ressalvou-se uma situao na qual, mesmo

    existindo a cobrana de valores indevidos no mbito de relaes de consumo, grosso

    modo, no se configura a hiptese da regra do art. 42. Colocando de forma mais

    tcnica, incide concomitantemente uma outra regra expressa no mesmo enunciado legal

    (cuja hiptese a excludente) que, com efeito, mutila parcialmente a definio de

    indevidamente cobrado, impedindo a incidncia da regra principal e,

    consequentemente, o surgimento do direito subjetivo (do consumidor) repetio em

    dobro. Tal regra mutiladora atua na presena da excludente engano justificvel.19

    O ponto fundamental da questo refere-se definio do conceito de engano

    justificvel, j que a prpria regra no o faz expressamente. Mais uma vez, a doutrina

    18 MARQUES, Cludia Lima. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor aspectos materiais. p. 542/544. 19 Por bvio: se j efetuado algum pagamento, a caracterizao de nova cobrana por engano justificvel no exclui a repetio do indbito, de forma que apenas a aplicao da sano (em dobro) elidida.

    5076

  • diverge. Para HERMAN BENJAMIM20, o engano justificvel quando no decorre de

    dolo ou de culpa (ou seja: se manifesta independentemente das cautelas adotadas pelo

    fornecedor). ANDRADE DA SILVEIRA21 afirma que tal figura seria aquela no

    decorrente de dolo ou culpa, citando como exemplo os erros decorrentes de equvocos

    de clculo (pois ningum est a salvo de ler nmeros defeituosamente). J ARRUDA

    ALVIM22 no define o que seria engano justificvel mas, como exemplo de tal

    modalidade, cita aquele advindo de falha no sistema de compensao bancria. Com o

    devido respeito, estas posies (que ligam o conceito de engano justificvel situao

    subjetiva do fornecedor - dolo ou culpa)- no se sustentam.

    Em um contexto coerente, observa-se que o CDC instituiu um sistema de

    responsabilizao objetiva dos fornecedores pelo fato do produto ou do servio,

    retirando o elemento culpa (em sentido amplo) dos requisitos necessrios

    configurao da responsabilidade civil nas relaes de consumo. A cobrana indevida ,

    na mesma medida em que o fato do produto/servio, uma fonte de dano ao consumidor,

    no fazendo sentido, em seu mbito, pretender-se discutir a culpa do agente (o que

    dificultaria a proteo dos interesses da parte lesada).

    A cobrana, como o fornecimento de produtos e servios, est compreendida

    nas atividades rotineiras do fornecedor, em relao s quais se exige domnio e percia

    em nvel profissional, a ponto de que o desenvolvimento normal do negcio no cause

    danos aos consumidores. A responsabilidade pela reparao destes est compreendida

    no risco do negcio (sendo internalizada nos custos de produo/desenvolvimento).

    Como peremptoriamente afirma LIMA MARQUES23, cobrana risco profissional do

    fornecedor, que deve realiz-la de forma adequada, clara e correta.

    Assim, a justificao do engano deve estar, por razes de integridade

    sistemtica, necessariamente atrelada mesmas causas excludentes de responsabilidade

    aplicveis aos casos de fato do produto/servio: aquelas que excluem o nexo de

    causalidade entre a conduta e dano. Entretanto, deve-se analisar com cautela as

    situaes imprevisveis (caso fortuito). Em se tratando de relaes de consumo, em

    razo dos deveres de cuidado e proteo impostos ao fornecedor, a interpretao do

    conceito de imprevisvel deve se dar sob ngulo bastante restrito, assumindo feies 20 BENJAMIM, Antnio Herman de Vasconcellos e. Cdigo brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. p. 324. 21 SILVEIRA, Reynaldo Andrade da. Prticas Mercantis no Direito do Consumidor. p. 219/220. 22 ALVIM. Arruda. Cdigo do Consumidor Comentado. p.101. 23 MARQUES, Cludia Lima. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor aspectos materiais. p. 541.

    5077

  • diferentes da legislao civil (geral). O que considerado imprevisvel para o ser

    humano mdio, no o pode ser para aquele que domina tcnicas especficas de

    determinado negcio e assume livremente o risco de atuar comercialmente no mercado.

    Neste sentido, esclarece LIMA MARQUES24: o fornecedor deve, como profissional,

    dominar todos os tipos de erros provveis em sua atividade, erros de clculo,

    impresso do valor errado por computador, troca de nome nas correspondncias

    etc.[...]. Em matria contratual, a noo de ausncia de culpa fica deslocada, pois o

    que h dever, obrigao de cumprir o que se vinculou.

    Como matria de defesa que , o nus probatrio relativo justificao do

    engano cabe ao fornecedor (quem o alega). E nem poderia ser diferente, posto que o

    carter do engano diz respeito atividade deste. Do contrrio, caso fosso exigido que o

    consumidor comprovasse a no justificabilidade do engano", a sano restaria incua,

    em vista da difcil para no dizer impossvel produo de tal prova. Ademais, o

    sistema processual civil autoriza esta compreenso, posto que atribui ao ru o nus

    probatrio em relao fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor

    (CPC, art. 333, II). Uma vez que o engano justificvel fato impeditivo do direito do

    consumidor/autor repetio em dobro, sua prova cabe ao fornecedor/ru.

    Definidos os critrios configuradores da hiptese normativa, resta expor os

    critrios de seu conseqente.

    2.4 O conseqente normativo

    O conseqente normativo, tambm chamado mandamento, determina as

    conseqncias jurdicas advindas da incidncia da regra sobre o fato descrito na

    hiptese. Estas conseqncias, em se tratando de uma relao jurdica de contedo

    patrimonial, ligaro dois sujeitos por um vnculo obrigacional relacionado algum

    crdito (valor pecunirio). De tal definio, depreende-se a necessidade de estabelecer

    critrios que permitam aferir quem deve pagar e quem tem direito receber, bem

    como quanto. Tais critrios so comumente denominados como critrio pessoal

    (passivo e ativo) e critrio quantitativo, respectivamente.

    2.4.1 O critrio pessoal

    24 MARQUES, Cludia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor. p. 635.

    5078

  • Se o critrio material (ncleo) da hiptese um verbo + complemento e se

    tal verbo exprime uma ao humana na presente anlise, uma a ser praticada no

    campo das relaes de consumo tal ao ter um autor e ser realizada em detrimento

    de algum. Enquanto estrutura esttica (ou seja: mera hiptese, antes da ocorrncia do

    fato), a regra indica possveis sujeitos da relao jurdica obrigacional futura. Assim,

    desde logo, percebe-se que, no caso em anlise, o plo ativo ser ocupado por um

    consumidor e o polo passivo pelo fornecedor/infrator.25 Um olhar criterioso, entretanto,

    revela que a definio concreta dos sujeitos ocorre apenas aps a realizao do evento

    abstratamente descrito na hiptese. Esta proporciona apenas o esquema de raciocnio

    que permitir a individualizao efetiva do sujeito que deve pagar e daquele que possui

    o direito subjetivo a receber. Por isso, o critrio pessoal pertence ao conseqente da

    norma.

    Procedida a prtica abusiva, ocorre a incidncia da regra, formando a relao

    jurdica entre as partes, cujo contedo um dever imputado ao sujeito passivo, que

    corresponde a um direito subjetivo de titularidade do sujeito ativo. Assim, o pargrafo

    nico do art. 42 do CDC produz uma inverso nos plos do que seria, ao menos

    aparentemente, a relao creditcia normal entre fornecedor/credor e

    consumidor/devedor, imputando ao - agora - sujeito passivo (fornecedor) o dever de

    entregar certa quantia pecuniria ao sujeito ativo (consumidor).

    O sujeito ativo (detentor do direito subjetivo ao crdito) o consumidor alvo

    da cobrana. J o sujeito passivo, ser o autor da mesma, de forma que ser

    identificado pela pertinncia lgica entre a situao e a pessoa, identificada na

    associao do fato com seu autor. Estes sujeitos encontrar-se-o ligados por um vnculo

    obrigacional, ou seja, pela obrigao de um entregar ao outro certa quantia

    economicamente aprecivel. Mas a quanto corresponderia tal contedo econmico?

    2.4.2 O critrio quantitativo

    O ltimo critrio do conseqente o quantitativo, que permite responder o

    questionamento lanado acima. Este critrio composto por todas as informaes que

    permitam ao intrprete dimensionar o quantum devido. No art. 42 do CDC, o legislador

    25 Assim, poder-se-ia pensar, em um primeiro momento, que o critrio pessoal compe a hiptese normativa. Entretanto, estes podem vir a ser qualquer consumidor ou qualquer fornecedor.

    5079

  • optou por indicar um elemento que, aps colhido da realidade ftica, permitisse

    identificar, objetivamente, o valor devido. Desta feita, o art. 42 coloca o direito

    repetio do indbito por valor igual ao dobro do que foi pago em excesso, com

    acrscimo de correo monetria e juros legais. Sem maiores problemas, o operador

    jurdico, constatando o montante indevidamente percebido pelo fornecedor, pode, com

    segurana, fixar o contedo do direito creditcio subjetivo do consumidor, por meio de

    uma simples operao de multiplicao procedida de atualizao monetria (por ndice

    oficial que assegure o valor da moeda) e acrscimo de juros legais (definidos pelos

    artigos 406 e 407 do Cdigo Civil) .

    Nesta seara, oportuno destacar a impreciso terminolgica do artigo: a lei

    remete repetio do indbito por valor igual ao dobro do que pagou em excesso.

    Ora: repetio do indbito , a rigor, correspondente ao que se pagou em excesso. O

    dobro, ao contrrio do que faz parecer o texto legal, no repetio; , em verdade,

    sano. Metade do valor a ser pago refere-se ao retorno ao status quo ante (sanando o

    enriquecimento sem causa e correlativo empobrecimento ilegtimo). A outra metade

    corresponde sano, fator inibidor de reiterao da prtica e de indenizao objetiva

    pela agrura suportada pela vtima. Esta sano (penalidade) impes que os

    procedimentos de cobrana sejam conduzidos com maior responsabilidade.

    Finalizando o tpico, cabe assentar que, independentemente da repetio do

    indbito e da sano, sua aplicao no exclui, de forma alguma, a reparao que assiste

    ao consumidor por demais prejuzos materiais e/ou morais oriundos da prtica abusiva

    contra ele direcionada.

    3 O PROBLEMA DA MERA COBRANA

    3.1 A contradio do texto

    Como j se pde perceber, a questo fundamental surgida no estudo do

    pargrafo nico do art. 42 o problema da mera cobrana.

    A primeira razo pela qual esta se coloca depreende-se da estrutura sinttica

    do texto legislativo que contm uma impreciso terminolgica que gera, a priori, uma

    contradio (ou, no mnimo, incompletude) dos conceitos postos no plano hipottico.

    Por um lado, a regra encontra-se inserida em uma seo denominada da

    cobrana indevida e sua redao inicia-se com o preceito o consumidor cobrado em

    quantia indevida [...]. Por outro, continua: tem direito repetio do indbito em

    valor igual ao dobro do que pagou em excesso.

    5080

  • Apesar de o sentido da palavra cobrar poder ser entendido como sinnimo

    de receber, o sentido comumente conferido aos dois verbos so diferentes. Cobrar, a

    rigor, significa exigir, pedir, reclamar determinado valor. Ocorre que quem

    cobrado, no necessariamente efetua o pagamento. A cobrana e o pagamento so

    situaes diferentes que no necessariamente decorrem uma da outra.

    Alis, o consumidor cobrado indevidamente, com toda a razo (e se tiver

    meios de identificar o no cabimento do que lhe exigido), pode legitimamente (e at

    deve, moralmente) recusar-se a entregar valor a quem no lhe faz jus. Este o problema

    sob o ponto de vista sinttico/gramatical, estritamente formal. A situao torna-se mais

    grave e, proporcionalmente, a busca por uma soluo torna-se mais relevante no plano

    material.

    3.2 A insuficincia do texto

    Como visto, caso entenda-se o efetivo pagamento como pressuposto da

    incidncia normativa, restaria sem penalidade o comportamento do fornecedor/infrator

    que no recebesse valor algum. Tambm restaria sem reparao objetiva o consumidor

    que legitimamente se recusasse a anuir com o comportamento excessivo que lhe afligiu.

    Diz-se reparao objetiva porque, de forma alguma, a linha exegtica adotada implica

    excluso da indenizao por eventuais outros danos patrimoniais e morais que decorram

    do mesmo fato ilcito. Entretanto, esta modalidade indenizatria insuficiente para

    coibir a prtica abusiva em tela, tendo em vista que, por vezes, a possibilidade de

    sano em montante incerto e dependente de fixao futura no estmulo suficiente

    para impedir a realizao do ilcito. Na consecuo de tal finalidade, muito mais

    eficiente que o possvel infrator tenha conhecimento prvio do quanto lhe ser

    imputado.26

    26 Como reparao, a fixao de danos morais, no caso de mera cobrana, acaba por ser um tanto quanto incua, uma vez que a magistratura, mormente a atuante perante os Juizados Especiais Cveis, acaba por considerar que, por exemplo, o simples recebimento de um (ou vrios) boletos bancrios, o lanamento de um excesso em dbito automtico ou fatura de carto de crdito, no caracterizam, per se, um atentado intimidade, honra e imagem suficiente gerar um dano moral. A prtica profissional demonstra que, neste tipo de situao, corriqueiro que o julgador considere existente o dano somente se atrelado uma inscrio em cadastro de inadimplentes. Em oposio aos princpios norteadores do sistema e necessidade de se proteger a esfera de liberdade dos agentes e o livre funcionamento do

    5081

  • A fixao de um parmetro objetivo para a imposio do quantum

    sancionatrio (ligado ao montante cobrado, como ocorreria se existisse o pagamento)

    resolve o problema. Se por um lado evitar-se-ia a no-penalizao, por outro, criar-se-ia

    um obstculo objetivo ao abuso excessivo na eventual definio deste valor.

    Em exerccio de abstrao, considere-se o clculo econmico de

    custo/benefcio que atine ao fornecedor. Em escala massificada, observada sob a tica

    da interpretao econmica do direito, deve-se atentar que um procedimento abusivo de

    cobrana no atinge apenas um consumidor. Dos prejudicados, muitos procedem o

    pagamento indevido e sequer percebem que o fizeram, proporcionando um considervel

    aporte de recursos ao infrator. Dos que percebem, vrios nada fariam a respeito (seja

    por desdia, seja porque as vias de reclamao - judicial ou extra - so de difcil acesso).

    Certos indivduos, por sua vez, pagariam e pleiteariam a devoluo. Neste caso, de

    qualquer maneira, os recursos ficaram, por um relevante perodo de tempo, disposio

    do infrator (que poder aplic-los etc.). Alguns, com efeito, recusar-se-iam a efetuar o

    pagamento (e, nestes casos, no haveria nenhuma sano objetivamente aplicvel). Sem

    grandes ilaes econmicas, depreende-se, com o perdo da expresso, que o crime

    compensaria. A quantia auferida superaria, consideravelmente, o montante

    eventualmente devolvido e eventuais restituies em dobro. Alm da simples

    dimenso pecuniria, as conseqncias negativas estendem-se ao plano coletivo, posto

    que a percepo de valores indevidos, em face dos quais no despendeu recurso algum

    (praticamente sem custo correlato), confere uma vantagem competitiva (sobre a

    concorrncia) ao infrator. No plano difuso, ponto digno de atrair a ateno do Direito

    o dano provocado sociedade em si, na forma da j citada crise de confiana nos

    instrumentos do mercado e, no se olvide, no dano social considerado em face da

    repercusso, nesta esfera, dos infortnios individuais causados cada consumidor. Com

    muita propriedade, estes encontram-se inseridos na exposio de motivos, traada pelo

    Congresso dos Estados Unidos, no citado Fair Debt Collection Practices Act, citada

    pelo prprio autor do anteprojeto que resultaria no dispositivo do art. 42:27prticas

    abusivas de cobrana de dvidas contribuem para o nmero de insolvncias civis, para

    mercado, o Poder Judicirio acaba preocupando-se mais com a questo pontual de um enriquecimento sem causa do que com a preveno do dano individual, coletivo e difuso. 27 BENJAMIM, Antnio Herman de Vasconcellos,. Cdigo brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. p. 324.

    5082

  • a instabilidade matrimonial, para a perda de emprego e para a invaso da privacidade

    individual.28

    Em face desta realidade, uma interpretao no restritiva da possibilidade de

    sano insere-se em um contexto extremamente salutar ao incentivo e manuteno de

    prticas comerciais eticamente responsveis, prevenindo o dano decorrente da cobrana

    indevida em todos seus aspectos (individual, coletivo e difuso).

    Tendo-se noo de que a norma jurdica no guarda necessria e exata

    correspondncia com o texto legal ou melhor, com o sentido gramatical deste, resta

    superado o impasse. Explica-se: a norma, como magistralmente discorre AVILA29, no

    so os textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construdos a partir da

    interpretao sistemtica dos textos legais. Assim, a constituio dos sentidos da

    norma no deve ser efetuada apenas com base em um nico enunciado legislativo,

    sendo imprescindvel a considerao sistemtica de todas os outros textos e normas

    integrantes do ordenamento. Este processo, decorre do que ALFREDO BECKER30

    denominou, com propriedade, de o cnone hermenutico da totalidade do sistema

    jurdico, esclarecendo, com base na doutrina de EZIO VANONI, que toda regra

    vlida apenas em relao necessria de influncias recprocas com um nmero ilimitado

    de outras normas, que a determinam mais expressamente, que a limitam, que a

    completam de modo mais ou menos imediato. Em relao ao especfico dispositivo em

    anlise, tanto a constituio do sentido do que deve ser considerado cobrana

    indevida, quanto ao alcance da penalidade/sano, devem ser pautados pela anlise das

    outras fontes legislativas pertinentes. No caso, os principais vetores do processo sero

    os princpios constitucionais que determinam a manuteno/proteo da funcionalidade

    do sistema (mercado), como colocado, garantindo que todos os agentes possam

    exercer e desfrutar de sua liberdade sem sofrer restries injustas em razo de abusos

    cometidos por outros agentes, bem como aqueles que protegem a inviolabilidade da

    esfera privada e da dignidade das pessoas. Como princpios, estas normas no

    28 No original: Abusive debt collection practices contribute to the number of personal bankruptcies, to marital instability, to the loss of jobs, and to invasions of individual privacy. 29 VILA, Humberto B. Teoria dos Princpios. p. 23. O complemento do raciocnio : como comprovam as modificaes de sentidos dos termos no tempo e no espao e as controvrsias doutrinrias a respeito de qual o sentido adequado que se deve atribuir a um texto legal. Por outro lado, a concepo que aproxima o significado da inteno do legislador pressupe a existncia de um autor determinado e de uma vontade unvoca fundadora do texto. Isso, no entanto, tambm no sucede, pois o processo legislativo qualifica-se justamente como um processo complexo que no se submeta a um autor individual, nem a uma vontade especfica. 30 BECKER, Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributrio, p. 115-116.

    5083

  • especificam o comportamento a ser adotado, apenas colocando a necessidade de se

    adotar, dentre os possveis, aquele que mais colabore para que a consecuo do estado

    de fato/finalidade ser alcanada.

    Em se tratando da cobrana indevida, tal comportamento a ser adotado ,

    justamente consoante sua finalidade intrnseca sancionar as hipteses de mera

    cobrana. Os parmetros de tal aplicao so fornecidos pelo j citado dilogo de

    fontes, - integrativo/reconstrutivo de sentidos - a ser travado com a referida regra de

    Direito Civil (art. 940/CC). Por esta, aquele que cobra o que j foi pago deve restituir o

    que pagou, mais o equivalente e aquele que cobra apenas o que no lhe devido fica

    obrigado a prestar ao sujeito ativo o equivalente do que dele exigiu. Transferindo

    analogicamente o segundo preceito relao de cobrana indevida consumerista,

    alcana-se uma soluo sistematicamente satisfatria, que extirpa toda e qualquer

    contradio e/ou lacuna que poderia subsistir se a operao se der de modo diverso

    (alm de realizar os referidos valores inerentes ao sistema e maximizar a preveno de

    danos futuros).

    CONSIDERAES FINAIS

    Desta feita, conclui-se, por meio de uma anlise jurdica

    sistemtica/teleolgica (e economicamente macrolgica), que a aplicao socialmente

    mais eficiente (mais justa) da regra contida no pargrafo nico do art. 42 da Lei n

    8.078/90, a seguinte:

    Em havendo a cobrana indevida (judicial ou extrajudicial,

    independentemente) seguida do efetivo desembolso do valor por parte do consumidor

    (pagamento), o fornecedor/infrator fica obrigado a restituir o valor pago acrescido de

    uma penalidade fixada em montante igual quele (sem prejuzo de com correo e

    juros).

    No caso de mera cobrana desacompanhada do pagamento, aquele que a

    procedeu deve ser obrigado a indenizar o consumidor (sujeito ativo desta relao) em

    valor equivalente ao exigido (com os acrscimos citados).

    REFERNCIAS

    ALVIM, Arruda. Cdigo do Consumidor Comentado e Legislao Comentada. So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. 327 p.

    5084

  • ATALIBA, Geraldo. Hiptese de incidncia tributria. 6. ed. So Paulo: Malheiros,

    2000. 209 p.

    VILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princpios: da definio aplicao dos

    princpios jurdicos. 4 ed. So Paulo: Malheiros, 2005.138 p.

    BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributrio. 3. ed. So Paulo:

    Lejus, 1998. 684 p.

    BRASIL. Constituio, 1988. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. So

    Paulo: Manole. 2004.

    BRASIL. Cdigo Civil. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

    BRASIL. Cdigo de Defesa do Consumidor. Lei n 8.078, de 11 de setembro de

    1990.

    CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributrio. 12. ed. So Paulo:

    Saraiva., 1999. 503 p.

    ___________________________; Teoria da Norma Tributria. 3. ed. So Paulo:

    Max Limonad, 1998. 200 p.

    EFING, Antnio Carlos. Fundamentos do direito das relaes de consumo. 2. ed.

    Curitiba: Juru, 2004. 319 p.

    FEDERAL TRADE COMISSION STAFF. Commentary on the Fair Debt Collection

    Practices Act. Disponvel em http://www.ftc.gov/os/statutes/fdcpa/commentary.htm.

    FERRAZ, Roberto. A Macrolgica do Direito Econmico. Revista de Direito

    Mercantil Industrial, Econmico e Financeiro, v. 142. 2007. p. 80-86.

    GHERSI, Carlos Alberto. Tercera va en derecho de daos: anticipacin,

    prevencin y reparacin. Revista de Direito do Consumidor, So Paulo , v. 50,

    abril/2004. p. 225-238.

    GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Cdigo brasileiro de defesa do consumidor:

    comentado pelos autores do anteprojeto. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 916 p.

    MARQUES, Cludia Lima. Contratos no cdigo de defesa do consumidor: o novo

    regime das relaes contratuais. 3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 668 p.

    MARQUES, Cludia Lima, et. al. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor

    art. 1 a 74 Aspectos Materiais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

    5085

  • NERY JR., Nelson; NERY, Rosamaria de Andrade. Cdigo de Processo Civil

    Comentado e Legislao Extravagante. 7. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

    1855 p.

    NUSDEO, Fbio. Curso de Economia: introduo ao Direito Econmico. 3 ed. So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 376 p.

    NUNES, Luiz Antnio Rizzato. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor

    Direito material (arts. 1 a 54). 3 ed. So Paulo: Saraiva, 2007. 870 p.

    NUNES, Luiz Antnio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. So Paulo: Saraiva.

    2004. 776 p.

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. So Paulo:

    Malheiros, 2001. 878 p.

    SILVEIRA, Reynaldo Andrade da. Prticas Mercantis no Direito do Consumidor.

    Curitiba: Juru, 1999. 285 p.

    UNITED STATES OF AMERICA. Fair Debt Collection Practices Act. As

    Amendment by the Public Law 104-208, 110 Stat. 3009. Washington DC . 30 de

    setembro de 1996.

    5086