Artigo a gea serve para construir a paz

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A GEOGRAFIA SERVE PARA CONSTRUIR A PAZ* Leandro Lopes – geógrafo do Unilasalle Os estudos geográficos têm suas raízes na Antiguidade. Cedo na história os homens já se preocupavam com os territórios, em captar as diferenças de lugares e descrevê-las. Diversos são os relatos feitos para subsidiar de informações as guerras que eram travadas entre os povos, e que demandavam acuradas descrições das regiões. Naquele tempo, os reis já sabiam a importância de conhecer bem os lugares para dominar. Porque descreviam os territórios muitas vezes sob um clima de guerra, os primeiros geógrafos são também os pioneiros do jornalismo. Milênios depois, Yves Lacoste, geógrafo francês, irá soltar a língua: a Geografia, desde que surgiu, tem sido usada principalmente para favorecer nas guerras. E ele tinha razão. Bastava pouca observação para verificar que, mesmo após milhares de anos, a produção de conhecimento geográfico ainda se achava comprometida de modo muito profundo com interesses oficiais. E que o produto de seus estudos servia também para encobrir uma diversidade de outros problemas humanos, considerados de menor importância, como a escravidão, por exemplo. Lacoste foi corajoso, contundente e extremamente preciso ao associar a arte de aparência tão ingênua e lúdica de fazer mapas com os episódios de assassinatos em massa. As duas guerras mundiais ocorreram na primeira metade do século XX e tiveram a “curta” duração de 10 anos e 4 meses. Em conjunto elas extinguiram aproximadamente 60 milhões de almas e causaram mais prejuízos materiais que qualquer outro episódio na história. Foram guerras estratégicas – naquele tempo os estadistas e militares estavam apenas começando a confiar mais no potencial das armas de destruição em massa (ADMs), e a bomba atômica só foi empregada no final. Nessas guerras, bem como nas de antigamente, a principal ferramenta era o mapa. O mapa estava sempre presente para instruir as forças armadas, quer para cercar, quer para bombardear, para defender ou para explodir, nas mãos de Eisenhower, Churchill ou Hitler: o velho mapa, cria geográfica mais nobre, fruto de penoso esforço técnico, mais importante até que as metralhadoras, tanques e aviões de guerra... A bomba atômica não acabou com as guerras: elas prosseguem aí, produzindo mortes e estragos. Ainda hoje os exércitos continuam a empregar mapas nas guerras. Mesmo assim, a Geografia nunca mais foi a mesma depois de Lacoste.

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A GEOGRAFIA SERVE PARA CONSTRUIR A PAZ*

Leandro Lopes – geógrafo do Unilasalle

Os estudos geográficos têm suas raízes na Antiguidade.

Cedo na história os homens já se preocupavam com os territórios, em captar as diferenças de lugares e descrevê-las.

Diversos são os relatos feitos para subsidiar de informações as guerras que eram travadas entre os povos, e que demandavam acuradas descrições das regiões.

Naquele tempo, os reis já sabiam a importância de conhecer bem os lugares para dominar.

Porque descreviam os territórios muitas vezes sob um clima de guerra, os primeiros geógrafos são também os pioneiros do jornalismo.

Milênios depois, Yves Lacoste, geógrafo francês, irá soltar a língua: a Geografia, desde que surgiu, tem sido usada principalmente para favorecer nas guerras.

E ele tinha razão.

Bastava pouca observação para verificar que, mesmo após milhares de anos, a produção de conhecimento geográfico ainda se achava comprometida de modo muito profundo com interesses oficiais.

E que o produto de seus estudos servia também para encobrir uma diversidade de outros problemas humanos, considerados de menor importância, como a escravidão, por exemplo.

Lacoste foi corajoso, contundente e extremamente preciso ao associar a arte de aparência tão ingênua e lúdica de fazer mapas com os episódios de assassinatos em massa.

As duas guerras mundiais ocorreram na primeira metade do século XX e tiveram a “curta” duração de 10 anos e 4 meses.

Em conjunto elas extinguiram aproximadamente 60 milhões de almas e causaram mais prejuízos materiais que qualquer outro episódio na história.

Foram guerras estratégicas – naquele tempo os estadistas e militares estavam apenas começando a confiar mais no potencial das armas de destruição em massa (ADMs), e a bomba atômica só foi empregada no final.

Nessas guerras, bem como nas de antigamente, a principal ferramenta era o mapa.

O mapa estava sempre presente para instruir as forças armadas, quer para cercar, quer para bombardear, para defender ou para explodir, nas mãos de Eisenhower, Churchill ou Hitler: o velho mapa, cria geográfica mais nobre, fruto de penoso esforço técnico, mais importante até que as metralhadoras, tanques e aviões de guerra...

A bomba atômica não acabou com as guerras: elas prosseguem aí, produzindo mortes e estragos.

Ainda hoje os exércitos continuam a empregar mapas nas guerras.

Mesmo assim, a Geografia nunca mais foi a mesma depois de Lacoste.

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O livro que Yves Lacoste escreveu é exuberantemente elucidativo já no título: “A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra”.

Esse título repercutiu até mais que o seu conteúdo, pois abriu caminho de reconciliação com a sociedade não apenas para a ciência geográfica, mas para as demais ciências e, por que não dizer, para a ciência toda, que de neutra nunca teve nada e que muitíssimas vezes demonstrou, em todos os seus ramos, estar, como a velha Geografia, a serviço das guerras e dos interesses dos poderes.

Pois a Matemática também vem trabalhando para a guerra. A Física também. A Biologia idem.

Não se pode negar o valor positivo para o avanço do pensamento humano das contribuições oferecidas pelas inúmeras descrições e estudos espaciais de antanho.

Por outro lado, tem se tornado comum nos tempos atuais escutar líderes de instituições ou estados pedirem perdão público por certas práticas ou convicções que, no passado, prejudicaram sociedades ou povos.

A Geografia também precisava se redimir.

É inegável que o livro de Lacoste foi a formulação de um pedido oficial de perdão à humanidade por toda a cumplicidade com o mal praticada historicamente, com maior ou menor acinte, pelos produtores de mapas, descrições espaciais ou teses geopolíticas.

Tendo-se purgado nas mãos desse mestre da ciência, de lá para cá a Geografia não parou de se renovar.

Pelo contrário, ela vem buscando aprofundar a sua purificação, despojar-se de elementos maliciosos e incorporar pontos de vista inteligentes de outros tantos campos do conhecimento, inclusive de alguns aparentemente distantes, para conseguir melhorar a sua explicação para esse objeto tão complexo que é o espaço.

Ela já não serve para, antes de mais nada, fazer a guerra, embora nada possa assegurar que a produção de certo conhecimento espacial não venha a ser apropriado e usado com essa intenção.

Porque a raiz dos conflitos não está no conhecimento em si, mas na ambição e inveja alojados no íntimo dos homens pecadores.

Portanto, quando se pergunta o que é a Geografia e o que faz um geógrafo, qualquer resposta mais específica deve começar assim: a Geografia, como o campo do conhecimento do espaço, é uma ciência madura, que sabe daonde vem e para onde vai.

A Geografia é uma ciência que se purificou dos seus erros e aprendeu que toda a informação e descoberta é produzida dentro de um contexto.

A Geografia descobriu que pode até mesmo desconstruir contextos pelo tipo de conhecimento que é capaz de gerar.

E os geógrafos são cientistas que aprenderam a odiar todo tipo de guerra, são verdadeiros paladinos da paz, e a Geografia de hoje serve, antes de mais nada, para produzir a paz!

No seio das disciplinas acadêmicas, não há exagero ao dizer que a Geografia é a que hoje mais coopera para a paz.

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Mais do que a Filosofia, responsável por tantas divisões.

Muito mais do que o Direito.

Quando o mundo conhecer melhor a Geografia, irá finalmente colocá-la no lugar de prestígio que ela merece.

E aqui se encontra o principal motivo disso: a Geografia ensina, através das diferentes disciplinas, humanas, físicas e técnicas, que não se pode obter a paz entre os homens sem um arranjo espacial eficiente, sem uma organização territorial satisfatória.

Eis alguns exemplos de problemas espaciais capazes de impedir a vida harmoniosa na sociedade:

Número 1. Concentrações de diversas espécies Número 2. Problemas ambientais Número 3. Incompreensão das diferenças culturais

Concentração:... é um problema de distribuição!

– Quando a renda é mal distribuída, temos um problema social com seriíssimas repercussões espaciais.

Formam-se bairros de ricos com verdadeiros latifúndios urbanos ao lado de milhares de pessoas pobres em favelas de casebres 4x3.

A Geografia Econômica ensina que não se consegue planejar bem o uso do espaço sem equacionar a má distribuição de renda e dos territórios.

Renda concentrada = territórios concentrados = exclusão = criminalidade = guerras sociais: a Geografia não pode aceitar isso.

Mesmo na natureza física, concentrações são problemáticas.

– Quando em apenas uma noite acumulam-se chuvas de 20 dias, as chances de ocorrer problemas são muito grandes, especialmente se o terreno for de grandes declividades, como a região serrana do RJ, local onde as médias pluviométricas no mês de janeiro são normalmente altas – 290 mm de chuva por mês.

Em janeiro de 2011, intensas precipitações conduziram a uma série de deslizamentos que atingiram severamente as cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, ceifando a vida de centenas de pessoas.

Uma verdadeira catástrofe climática.

A Geomorfologia ensina que a ocupação antrópica deve procurar driblar essas possíveis concentrações pluviométricas, não construindo nada em áreas que oferecem riscos desse tipo.

Nem ali, nem às margens de rios que podem transbordar – vide a tragédia em Santa Catarina, em 2008, e em Alagoas e Pernambuco, em 2010. (A enchente em Alagoas acabou com uma cidade inteira em apenas uma noite.)

No Brasil, porém, não se costuma dar valor para o conhecimento produzido pela ciência geográfica.

Ou para os seus alertas.

Infelizmente, o Brasil não aprendeu a valorizar sequer a própria experiência.

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Os que eram conscientes no ano de 1967 lembram-se de episódio bem mais trágico que o da região da serra fluminense.

Naquele ano, ali no mesmo Rio de Janeiro, morreram 1.400 pessoas vítimas de deslizamentos ocorridos na Serra das Araras, na maior tragédia climática do Brasil.

A imagem 1A abaixo, resgatada de arquivo fotográfico, demonstra os resultados dos desmoronamentos visíveis na paisagem.

As encostas que se veem estavam cheias de construções e de gente.

Quando comparada a imagem da época com outra do deslizamento atual (1B), em Nova Friburgo, fica-se com a impressão de que hoje existe ainda mais gente nos morros!

Imagem 1: Deslizamentos de encostas no RJ: Serra das Araras (1967) e Nova Friburgo (2011)

(A) (B)

Fontes: http://www.brazilia.jor.br/content/deslizamento-maior-tragedia-brasil-foi-serra-araras e INPE.

As tragédias atuais não se justificam sempre que se pensa que uma geração inteira de geógrafos denunciou esse perigo.

Por falta de dar-lhes ouvido, muita gente desapareceu sob montões de escombros.

Outro exemplo útil de concentração nociva:

– Quando a principal solução para a mobilidade humana dentro de uma cidade grande, como Porto Alegre e sua região metropolitana, vem a ser um metrô, percebe-se que a concentração humana atingiu seu clímax.

Os geógrafos sempre perguntam por que todo mundo deixa chegar ao ponto em que é preciso apelar para soluções tão caras?

Uma Geografia Urbana esclarecida irá demonstrar que o que está errado é a hiperconcentração urbana: as pessoas tomaram parte em processos que as levaram ao amontoamento, com todos os seus problemas.

Para conservar-se amontoadas, as pessoas aceitam empilhar a si e a seus carros, assim como passar boa parte do dia como tatus, enterradas vivas em metrôs.

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E os crimes, e o medo, e o stress permanente do ritmo das grandes cidades?

Para melhorar a condição da vida humana, a ciência geográfica ensina: tem que desconcentrar, distribuir melhor a população no espaço despolarizando a ocupação, descentralizar a administração, revalorizar o interior dos territórios, promover uma verdadeira debandada dos grandes centros.

Construir hospitais e faculdades nas cidades menores e liberar as metrópoles.

Quem está disposto a priorizar esse tipo de ação?

Não é mais fácil achar políticos interessados em grandes obras faraônicas?

Que dão IBOPE. Que dão votos. Que dão lucro. Que dão propina.

Outra causa de desarmonia social são os problemas ambientais: eles são graves e podem destruir a Terra, sim.

Jared Diamond, no livro Colapso, advertiu a humanidade com algo mais ou menos assim: a falta de seriedade nessa área e o sentimento de que está tudo sob controle, praticado pelos governantes, são tão falsos quanto a ideia que um fumante tem de que, se vier o câncer no pulmão, ele ainda conseguirá vencê-lo apenas parando de fumar.

Os geógrafos são ecologistas. São todos, por natureza, pela natureza.

Um candidato a governador ou presidente que se preze precisa trazer na maleta dois projetos fundamentais: um para a redistribuição populacional no território e outro para o meio ambiente.

Por fim, a incompreensão das diferenças culturais e a intolerância decididamente têm impedido sempre a felicidade na Terra.

A ideia de criar no planeta inteiro uma única cultura é, do ponto de vista da Geografia, tão impossível quanto transformar em um tipo só todas as superfícies e processos físico-climáticos da Terra.

Para a Geografia, as culturas são, antes de tudo, fruto da relação dos povos com os seus territórios.

Portanto, a harmonia no planeta e a ausência de guerras só pode passar pela aceitação e tolerância mútua.

A ciência geográfica está convencida de que o que nos impede de aceitar o outro é a incapacidade de reconhecermos os pontos fracos de nossa cultura, admitindo e confessando as suas imperfeições e limitações.

Portanto, os geógrafos apresentam-se como herdeiros duma muito árdua tarefa.

Atraída pela beleza do planeta, pelos elementos e processos da natureza, pelas diferenças dos territórios e pelo desejo de tomar parte na construção do espaço, a Geografia pretende auxiliar a explicar a geodinâmica e gerar planejadores capazes de agir como interventores bem-sucedidos na organização do território.

Atualmente existem ótimas técnicas para isso, principalmente as ferramentas usadas em SIG (sistemas de informações geográficas), como o geoprocessamento, o sensoriamento remoto e a aerofotogrametria.

O advento do arsenal de recursos da informática e das tecnologias de informações têm instrumentalizado os geógrafos a intervir satisfatoriamente e a fazer previsões de um modo como nunca antes foi possível.

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Temos tudo isso hoje ao nosso dispor.

Temos programas como o Google Earth, que já é amplamente utilizado para monitoramento e pesquisa.

Para ajudar ainda mais a compreensão do funcionamento espacial pela Geografia, anuncia-se o projeto para a criação do que virá a ser, quem sabe, o maior e mais complexo programa criado pela humanidade no campo das ciências da Terra: o Living Earth Simulator (ou Simulador da Terra Viva).

Trata-se de um empreendimento fantástico.

Pensa-se que ele será um acelerador de conhecimento, para fazer colidir diferentes ramos do conhecimento com o fim de revelar as leis e processos ocultos sob as sociedades.

Ele será uma megarrede de computadores mundiais, um sistema colossal, alimentado por dados

que cobrem toda espécie de atividades no planeta, dados do ar, da terra, do mar e do espaço.

Dados do Google Maps, da Wikipedia e de inúmeras outras fontes e sensores espalhados por toda

extensão possível do espaço conhecido. (Gareth Morgan – BBC – 29/12/2010)

Esses supercomputadores, que ainda estão para ser construídos, farão cálculos em escala monumental e serão capazes de criar modelos para prever a disseminação espacial de doenças infecciosas, descobrir formas de combater as mudanças climáticas, antecipar crises financeiras, catástrofes ambientais e outros tantos fenômenos, graças ao gigantesco poder de simulação da vida real obtido pela integração de milhões de fontes de dados atualizados de forma permanente, em tempo absolutamente real.

Com toda essa capacidade de processamento e intercruzamento de dados nunca vista antes na história, o desafio atual para a Geografia será construir teorias eficazes que gerem modelos com fortes poderes de previsão, algo que infelizmente ciências como a Economia, a Sociologia e a História, quem sabe até por alguma subestimação do conhecimento espacial – como colocou Soja no livro Geografias Pós-Modernas – não conseguiram alcançar até o dia de hoje.

De fato, esse momento da história é o da Geografia!

O mundo precisa enxergar-nos como quem tem muito a contribuir para melhorar a vida na Terra

* O presente artigo é fruto da adaptação de um discurso de formatura proferido pelo autor na Unilasalle de Canoas, em

fevereiro de 2011.