ARTIGO 2 - Polifonia e Heterogeneidade - Beth Brait

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    Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 6 - n. 1 - p. 37-55 - jan./jun. 2010

    Quem disse o qu? Polifonia eheterogeneidade em coro dialgico

    Beth Brait

    Professor Associado, Programa de Estudos Ps-Gradu-ados em Lingustica Aplicada e Estudos da Linguagem/ LAEL da Universidade Catlica de So Paulo; Universi-dade de So Paulo; CNPq. E-mail: [email protected]

    Neste artigo, o objetivo sina-

    lizar a dimenso polifnica da lin-guagem, conforme projetada pelosestudos de Mikhail Bakhtin a res-peito do escritor Fiodr Dostoivski,indiciada em vrios textos e acolhi-da como importante contribuio leitura contempornea das relaeseu/outro e suas formas de presenanos textos. Os conceitos de polifo-nia, heterogeneidade, vozes, alte-ridade e relaes dialgicas podemser surpreendidos em Problemas da potica de Dostoivski(2. ed. 1963)e em textos anteriores, primeiraedio (1929), e guisa de comen-trio e Esboo de reformulaode PPD (dcada de 1960). Tanto ofuncionamento da polifonia quantoo da heterogeneidade, que neces-sariamente a constitui, sero ob-servados na cano Cinema novo , de Caetano Veloso. Se nem sempreas formas de mobilizao das vozesde outrem constituem polifonia, nosentido bakhtiniano, isso no sig-nifica que a heterogeneidade nopossa ser surpreendida, de maneiraclara, explcita, ou mesmo implcita,em diferentes tipos de texto.

    Resumo Palavras-chave: Polifonia. Hetero-geneidade. Discurso artstico e noartstico. Cano brasileira.

    A palavra usada entre aspas, isto , sentidae empregada como palavra do outro, e amesma palavra (como alguma palavra dooutro) sem aspas. As gradaes infinitasno grau de alteridade (ou assimilao) en-tre as palavras, as suas vrias posies deindependncia em relao ao falante. Aspalavras distribudas em diferentes planose em diferentes distncias em face do planoda palavra do autor.

    BakhtinTendo, por isso, notado quanto essas seme-lhanas me desgostavam, William tornava-as mais notadas, arremedando-me comprodigiosa habilidade. Copiava-me os gestose as palavras; imitava minha maneira devestir, meu andar, meus modos e, enfim,nem sequer minha voz lhe havia escapado,no obstante o seu defeito. No podia imitarmeu tom alto, mas o timbre e a entonaoeram idnticos.Quando eu falava baixo, sua

    voz dir-se-ia o eco da minha.William Wilson, Edgar Allan Poe

    Data de submisso: julho de 2010. Data de aceite: julho de 2010

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    Consideraes iniciais:Quem disse o qu?

    Compreender um texto significa, na

    perspectiva da anlise dialgica do dis-curso e de um pesquisador nela inserido,descrever, analisar e interpretar formasde produo e construo de sentidos,considerando a inerente vocao semi-tico-ideolgica das produes textuais,a includa a esfera em que se insere. Nocaso da cano Cinema novo, de Cae-tano Veloso, escolhida para a discusso

    de um conceito central no pensamentobakhiniano polifonia, assim como suaconstitutiva heterogeneidade, estamosdiante de um trabalho difcil de ser com-preendido, na medida em que foi tecidoa partir de citaes verbais e musicais,que dependem do conhecimento prviodo leitor ou de uma pesquisa minuciosa. o conjunto de citaes, harmoniosa ecriativamente organizadas do ponto devista da sintaxe e da semntica textuale discursiva, que constitui a narrativapotica coesa, muito bem estruturada,da qual muitas vozes participam paracompor e fazer desfilar, em ritmo desamba que tem um enredo, sem sersamba-enredo, um rico panorama est-tico, histrico e social brasileiro.

    Letra e msica oferecem-se comoduas vozes em harmoniosa tenso que,ao instaurar vozes, reconstituem umafatia da histria do pas, constroem eproduzem sentidos, efeitos de sentido,sugestes sobre a articulao estticae poltica, tnica do momento evocado.

    Assim sendo, seria possvel dizer queestamos diante de um texto polifnico, nosentido apresentado por Bakhtin na obra Problemas da potica de Dostoivski? Oua heterogeneidade incontestvel seriauma maneira inteligente, criativa, de ocompositor expor sua posio, reinandosoberano como aquele que instaura vozespara construir sua fala em resposta aenunciados que circulam sobre o temaabordado? As vozes so sujeitos dosdiscursos ou objetos da fala domaestronarrador ?

    Para responder a essas perguntas, necessrio aproximar-se da materialida-de verbo-musical da cano, observandosuas estratgias lingusticas, enuncia-tivas e discursivas, os discursos que acirculam e os sujeitos que a constituem epor ela so constitudos. Essa a tarefada parte final deste artigo. Entretanto,se o foco polifonia e heterogeneidade,dimensionamento do estatuto das vozesque arquitetam o conjunto, o pesquisadordeve esclarecer, de imediato, o lugar deonde ouvir a cano, entendendo queos conceitos de polifonia e heterogenei-dade tm merecido destaque em vriasteorias, possibilitando o enfrentamentoe a compreenso, na linguagem e pelalinguagem, da constituio mltipla dossujeitos e das inmeras formas assu-

    midas por meio da inalienvel relaoeu/outro. Pelas especificidades, nem ostermos podem ser considerados sinni-mos nem as teorias podem ser tomadasumas pelas outras. Assim, neste artigo,os dois conceitos-guia sero compreendi-

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    dos, conforme trabalhados em Problemasda potica de Dostoivski, de MikhailBakhtin.

    O primeiro passo, portanto, , escla-recendo a posio terico-metodolgicaassumida, sinalizar, mais uma vez,1 acompreenso dedimenso polifnica dalinguagem, conforme projetada pelosestudos de Mikhail Bakhtin a respeitodo escritor Fiodr Dostoivski. Esseempreendimento implica o acolhimentode textos que, anteriores ou posteriores,circulam ao redor de Problemas da po-tica de Dostoivski, edio publicada em1963. No Brasil, esses trabalhos podemser encontrados na coletnea Estticada criao verbal2 e na quarta ediobrasileira de Problemas da potica de Dostoivski3 ( PPD), assim designados:Reformulao do livro de Dostoivski/ Esboo de reformulao de PPD, PPD A guisa de um comentrio, Aponta-mentos de 1970-1971. a partir dessestextos tericos que o funcionamentodessas duas dimenses da linguagem heterogeneidade e polifonia (presenae/ou ausncia) ser observado na can-o Cinema novo, de Caetano Veloso,considerado mais especificamente sob adimenso lingustico-discursiva, embo-ra a dimenso musical, constitutiva dacano como um todo e sinalizada em

    alguns momentos, reitere as concluses arespeito de polifonia e heterogeneidade.

    Polifonia e heterogeneidadeem coro dialgico: Bakhtin

    e Dostoivski

    Polifonia um conceito forte e impor-tante para as teorias e anlises do textoe do discurso. Muitas delas o delinearamcom rigor, permitindo sua mobilizaona perspectiva lingustica, enunciativa ediscursiva. No pensamento bakhtiniano,polifonia assume caractersticas espec-ficas, apreendidas e definidas a partirdos estudos empreendidos por Mikhail

    Bakhtin em relao obra de FidorDostoivski (1821-1881). Elaboradanos anos 20 do sculo passado, quandoexposta em Problemas da obra de Dos-toivski(1 ed. 1929), e reorganizada nosanos 60 do mesmo sculo, quando doaparecimento de Problemas da poticade Dostoivski(2. ed. renomeada, 1963), apresenta-se como categoria produtiva,

    constantemente retomada, transforma-da, subvertida e/ou expandida, de acordocom a perspectiva terica e/ou metodo-lgica que a acolhe. Hoje, para o leitorinteressado em linguagem, em CinciasHumanas, PPD uma obra essencialpara o conhecimento da gnese do con-ceito de romance polifnico, alteridade,heterogeneidade, vozes, polifonia, gne-

    ro, diferenas entre dilogo e dialogismo. A histria da construodessa dimensoda linguagem est mapeada em vriostrabalhos.

    A primeira edio Problemy tvorches-tva Dostoevskogo /Problemas da obra de

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    Dostoivski4 data de 1929 e encontra-se,na ntegra, em Obras Reunidas.5 A se-gunda, Problmi Potiki Dostoivskovo/ Problemas da potica de Dostoivski, cor-rigida, ampliada e com novo ttulo, datade 1963.6 No que se refere segundaedio, nica conhecida no Ocidente, foiem 1961 que Bakhtin decidiu retomar olivro de 1929, realizando algumas notaspreparatrias a essa nova verso. Paraconhecimento desses apontamentos, oleitor brasileiro deve consultar Refor-mulao sobre o livro de Dostoivski.7

    Esse projeto da obra PPD alinha, aolongo de vinte pginas, objetivos decla-rados de reformular o captulo sobre oenredo em Dostoivski, destacando aparticipao especial da aventura, dastira menipeia, da concepo do espaoe da praa, da festa, do jogo, do conflito,assim como a concepo inovadora daposio do autor e do terceiro no dilogo.E por essa perspectiva que a questoda polifonia j se anuncia como centroda anlise. Bakhtin vai anotando/assi-nalando que a conscincia do outro nose insere na moldura da conscincia doautor, mas permite a ele entrar em rela-es dialgicas.8 importante observarque no so simplesmente as palavrasdo outro o que Bakhtin destaca, mas aconscincia do outroe o processo dial-

    gico estabelecido pelas formas de relao eu/outro .

    Considera, em funo desse diferen-cial, que Dostoivski destri o antigoplano de representao do mundo, subs-tituindo-o pelo carter dialgico do autor

    que interroga, provoca, responde, numapostura que jamais abafa a voz do outro.Muitos dos temas presentes nas narrati-vas dostoievskianas, os quais alimentamessa tese, vo sendo registrados parafuturo desenvolvimento. Esse o caso daideia de fronteira, de limiar de conscin-cias, do papel do capitalismo na criaoda conscincia solitria, da ampliao doconceito de conscincia e sua naturezadialgica, da questo da voz, da ideologiae do homem, da confisso, do eu-para-si e do eu-para-o-outro. Nesse percurso, aestrutura da obra que redundaria em PPD imaginada: nascimento de umanova forma de romance, incorporando oproblema da linguagem e do estilo, comdestaque para a anlise das obras e suasespecificidades na construo de umgnero especfico: oromance polifnico.

    A partir desse estudo, e de sua rea-lizao na edio de 1963, um aspecto,apontado logo no incio da obra, interessade perto a este trabalho, na medida emque se liga diretamente ao tema da po-lifonia. Na introduo de PPD, Bakhtinafirma:

    Consideramos Dostoivski um dos maioresinovadores no campo da forma artstica. Es-tamos convencidos de que ele criou um tipointeiramente novo de pensamento artstico,a que chamamos convencionalmente detipo polifnico[...]. Descobrir essa inovao

    fundamental de Dostoivski por meio daanlise terico literria o que constitui atarefa do trabalho que oferecemos ao leitor.9

    Existe nesse trecho introdutrio umainsistncia de que o trabalho tratar,especificamente, da forma artsticainovadora que caracteriza Dostoivski,

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    denominado pensamento artstico detipo polifnico, cuja importncia, se-gundo Bakhtin, ultrapassa os limitesda criao romanesca e abrange algunsprincpios bsicos da esttica europeia.10 , portanto, a questo da polifonia oelemento central de PPD que, segundoo autor, foi abordada de maneira insufi-ciente mesmo por crticos que souberamreconhecer as particularidades da poti-ca do autor de Crime e castigo.

    Por outro lado, e para confirmar adimenso polifnica como elemento cen-tral desse trabalho de Bakhtin, um saltopara o momento da recepo de PPD demonstraria essa tese. Dentre os vrioscrticos que na poca se pronunciaramsobre PPD, dois deles, Vasilievskaya eMyasnikov,11 insistiram na originalidadedo conceito de polifonia apresentado pelaobra, destacando o valioso ponto de vistapolifnico sobre o mundo, o qual permite,segundo eles, quemuitas ideias e diferen-tes ideologias sejam criadas lado a ladono interior de um nico texto.

    Depois da necessria introduo, oconceito de polifonia vai sendo paulati-namente construdo ao longo de cada umdos captulos. No primeiro, intitulado Oromance polifnico de Dostoivski e seuenfoque na crtica literria, Bakhtinexplicita a tese que ir defender para,

    de maneira enftica, diferenciar-se dafortuna crtica existente sobre Dostoi-vski. Para tanto, constri uma espciede contexto, com a finalidade de situar oleitor na discusso, preparando-o dialo-gicamente para a perspectiva que apre-

    sentar. Dentre as vrias observaes, possvel sublinhar algumas, ligadasdiretamente questo da polifonia. A primeira diz respeito ao fato de que

    a multiplicidade de vozes e conscinciasindependentes e imiscveis e a autntica polifonia de vozes plenivalentes constituem,de fato, a peculiaridade fundamental dos ro-mances de Dostoivski. No a multiplicida-de de caracteres e destinos que, em um mun-do objetivo uno, luz da conscincia una doautor se desenvolve nos seus romances; precisamente a multiplicidade de conscin-cias equipolentes e seus mundosque aqui secombinam numa unidade de acontecimento,mantendo a sua imiscibilidade. Dentro doplano artstico de Dostoivski, suas perso-nagens principais so, em realidade,noapenas objetos do discurso do autor mas os prprios sujeitos desse discurso diretamente significante12 (os itlicos so do autor).

    Essa tese implica a ideia de que Dos-toivski criou um novo tipo de romance,um gnero romanesco, denominado ro-mance polifnico, o qual no se subordi-na a nenhum esquema histrico-literrio

    existente: todos os elementos de suaestrutura so determinados pela tarefade construir um mundo polifnicoe umheri cuja voz se estrutura do mesmomodo como se estrutura a voz do autordo romance. A personagem no apenas objeto do discurso do autor, mas sujeitodesse discurso.

    Bakhtin destaca alguns crticos que

    ao menos sondaram essa peculiaridadeartstica de Dotoivski, vislumbrando onovo tipo de romance, reconhecendo apolifonia, a luta entre vozes ideolgicas,a inconclusibilidade. Considera-os lei-tores sensveis aos princpios bsicos de

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    uma cosmoviso em que o eu do outro afirmado no como objeto, mas comosujeito. o caso de Vyatcheslav Ivnov,Sergei Askldov, Leonid Grossman, OttoKraus, Vassili Komarvitch, Boris M.Engelgardt, A. V. Lunatcharsky, ValeriJa Kirptin, Victor Chklovski. Embo-ra reconhea o mrito desses crticos,Bakhtin conclui que nenhum explorouat as ltimas consequncias as pecu-liaridades de construo desse romancemultiplanar, despojado da costumeiraunidade monolgica.

    Os textos que constituem o panoramacrtico vo sendo costurados com elemen-tos que sinalizam a perspectiva bakhti-nana de linguagem, no somente seuinteresse por literatura e potica. Issofica patente em vrios momentos desseprimeiro captulo, mas especialmenteno trecho em que Bakhtin se refere srelaes dialgicas, fenmeno que, emoutro captulo, ser tratado como o ob- jeto da translingustica , ou do que hojese poderia chamar de anlise dialgicado discurso:

    De fato, o carter essencialmente dialgicoem Dostoivski no se esgota, em hiptesealguma, nos dilogos externos composicio-nalmente expressos, levados a cabo pelassuas personagens. O romance polifnico inteiramente dialgico. H relaes dial-gicas entre todos os elementos da estruturaromanesca, ou seja, eles esto em oposiocomo contraponto. As relaes dialgicas fenmeno bem mais amplo do que as re-laes entre as rplicas do dilogo expressocomposicionalmente so um fenmenoquase universal, que penetra toda a lingua-gem humana e todas as relaes e manifes-taes da vida humana, em suma, tudo o quetem sentido e importncia.13

    O segundo captulo, intitulado A personagem e seu enfoque pelo autorna obra de Dostoivski, trata da per-sonagem, ou do heri, como aparece emalgumas tradues,14 e tem por objetivodesenvolver trs aspectos relacionados tese de Bakhtin a respeito da pecu-liaridade de Dostovski: (i)a relativaliberdade e independncia da persona- gem e de sua voz no plano polifnico; (ii)a colocao especial das ideias no plano polifnico; (iii) os novos princpios deconexo que formam o todo do romance.

    O acompanhamento dessa reflexopermitir ao leitor conceber um impor-tante ngulo da polifonia bakhtiniana. Ao observar o texto literrio, Bakhtinsugere determinados aspectos que po-dem ser estendidos linguagemcomum.Esse o caso, por exemplo, do conceitode heri que, num primeiro momentopode parecer exclusivo do texto artstico.Entretanto, ao conceder ao heri certaautonomia em relao ao autor, encar-nando ooutro-sujeito, no ooutro-objeto,Bakhtin extrapola os limites da ficopara ganhar o mundo da linguagem esua constituinte dialogicidade tica.

    Considerando a personagem como ponto de vista especfico sobre o mundo e sobre si mesma, expondo suaconscincia e autoconscincia, Bakhtin integra ao

    conceito de personagem/heri a ideia deextraposio ou excedente de viso e,consequentemente, deinconclusibilida-de. Sendo o campo de viso determinadopela personagem, ele vai circunscrever,por exemplo, aangustiante autoconscin-

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    cia de um funcionrioe no o funcionrioem si, em sua imagem integral. Dessaperspectiva, a imagem integral torna-se impossvel. O mesmo vai acontecercom o mundo exterior que se transferedo campo de viso do autor para o dapersonagem. A autoconscinciacomodominante, como trao fundamental danarrativa polifnica, estende-se para otodo.

    Com esse forte pressuposto, Bakhtinvai percorrendo as narrativas dostoie-vskianas tomando a autoconscincia como dominante na construo daimagem da personagem, a qual, por simesma, decompe a unidade monolgicado mundo artstico. muito importantepara o leitor linguista, analista dediscurso, estudioso de literatura acom-panhar o raciocnio que desembocar noconceito de polifonia, a partir das obrasde Dostoivski que esto sendo anali-sadas. As anlises constituem janelasque vo se abrindo pouco a pouco, paraque o leitor possa espiar os contornos dapolifonia e alinhavar as paisagens quese descortinam. Portanto, esse conceitofundamental no est dado previamen-te, de forma a ser aplicado aos textosescolhidos. Ao contrrio, a obra deDostoivski que leva Bakhtin concep-o deromance polifnicoe s peas que

    formam sua arquitetura. Sem as leiturasdos textos de Dostoivski, entretanto,sem o contato direto com as narrativasque encaminham Bakhtin ao conceito deromance polifnicoe, em ltima anlise,de polifonia, o leitor de PPD se perder

    na construo terica aparentementeabstrata e sem fundamento concreto,mesmo quando Bakhtin junta e puxatodos os fios para a relao indissolvelentre vida e linguagem.

    A consequncia do tratamento dial-gico recebido pelo heri que a palavrado autor se constitui como palavra sobrealgum presente, que escuta e responde,participa como agente do discurso, nocomo simples objeto do mundo do autor. A palavra do autor dialogicamenteorientada para o heri, discurso sobreo discurso: ele no fala do heri, mas como heri. H, portanto, uma relativa au-tonomia dos heris no limite da ideia ar-tstica, na medida em que a conscinciado criador est presente de forma ativa,dialgica, participante do construto dasvozes, da polifonia.

    Com as caractersticas bsicas doheri e da nova posio do autor, o leitor,ao final do captulo, tem um primeirodesenho de polifonia enquanto mtodoartstico, diferenciada tanto do relati-vismo (s os heris teriam a palavra)como do dogmatismo (o autor seria donoda palavra do heri), que, por diferentescaminhos, excluem todo dilogo.

    At aqui, incluindo-se tambm oterceiro captulo, intitulado A ideia emDostoivski, o leitor de PPD se defronta

    com material suficientemente exploradopara construir o entendimento de poli- fonia, vozes, dilogo entre conscincias, gnero polifnico, heri, conceitos que,em certo sentido, valem tanto para asespecificidades da obra de Dostoivski

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    como para a natureza dialgica do dis-curso em geral. Esses aspectos, que ogrande escritor russo conseguiu captar erepresentar em suas obras e que Bakhtinpersegue com afinco, esto reiterados noquarto captulo, Peculiaridades do gne-ro, do enredo e da composio das obrasde Dostoivski, uma das importantesincluses feitas edio de 1963.

    Mais um trao marcadamente bakhti-niano pode ser detectado nessa etapade PPD: a construo, rastro-atrs, deuma tradio para as manifestaesde linguagem, mesmo as mais criativa-mente novas como o caso do romancepolifnico. Bakhtin faz importantesconsideraes sobre o gnero, vlidastanto para os gneros literrios, comopara qualquer outro, recupera as fon-tes do romance polifnico, situando-asno final da Antiguidade Clssica e noHelenismo, focalizando o cmico-srio,interligado ao folclore carnavalesco, cosmoviso carnavalesca, caracterizadopelo novo tratamento dado realidade, atualidade viva. A linha carnavalesca,onde se insere a variedade que conduz obra de Dostoivski, denominada va-riedade dialgica, sendo recuperada peladescrio minuciosa de dois gneros odilogo socrticoe a stira menipeia ,que, conjuntamente, preparam as condi-

    es para o aparecimento da polifonia epara seu apogeu em Dostoivski.Construda a tradio do gnero

    polifnico, Bakhtin passa a analisartextos que constituem microcosmos douniverso dostoieviskiano, obras-chave

    que comprovam o renovar de uma tra-dio: Bobok, Sonho de um homem rid-culo, Ela era doce, Memrias do subsolo,Uma anedota ordinria e os romancesCrime e castigo, O idiota, Os demnios,O adolescente, Os irmos Karamazov. A concluso desse captulo reafirma a ideiade que, por todas as razes apresentadas,Dostoivski est ligado a uma tradioque prepara a polifonia, desde odilogo socrticoe a stira menipeia, passandopor Shakespeare, Cervantes, Voltaire,Diderot, Balzac, Victor Hugo, cabendo-lhe assumir o auge desse processo,criando a autntica narrativa polifnica.

    Se nos quatro captulos anteriores aconstruo da ideia de polifonia, pluri-vocalidade, alteridade, eu/outro estevediretamente ligada ao romance polif-nico de Dostoivski e tradio que oabriga e possibilita, o quinto e ltimocaptulo, O discurso em Dostoivski,apresentar um significado especialpara os estudos do discurso em geral e,consequentemente, de polifonia, alte-ridade e heterogeneidade. Dividido emquatro itens _ Tipos de discurso emDostoivski, O discurso monolgico doheri e o discurso narrativo nas novelasde Dostoivski, O discurso do heri eo discurso do narrador nos romances deDostoivski, Dilogo em Dostoivski_

    esse captulo, que estava includo na edi-o de 1929, reitera o Bakhtin filsofo dalinguagem. Antes de detalhar especifici-dades do discurso de Dostoivski, comoanunciam os subttulos, o autor expe Algumas observaes metodolgicas

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    prvias, apresentando um aspecto quemerece destaque por ser fundamental compreenso do que se denominaalteri-dade constitutiva (quer do sujeito, querda linguagem).

    Partindo do pressuposto de que asrelaes dialgicasso o verdadeiro ob- jeto dos estudos da linguagem, Bakhtinrealiza um minuciosoexame do discursodo ponto de vista de suas relaes com odiscurso do outro. Com a finalidade deapresentar as formas de presena do ou-tro no discurso, considera, inicialmente,o discurso bivocal, o emprego ambguo dodiscurso do outro como o principal objetode sua preocupao. Dessa perspectiva,faz uma classificao detalhada dosdiversos tipos de bivocalidade: estiliza-o, pardia , skaz,15 dilogo, polmicavelada, discurso polmico interno, dia-logismo velado, polmica aberta, rplica.

    Ao definir odiscurso duplamenteorientado como sendo aquele em que oautor inclui o discurso do outro em seuplano, em seu projeto discursivo, recupe-ra essa marca no discurso artstico, masmostra que esse procedimento inerente fala, condio discursiva do homem,que, entre outros homens, dialoga demaneira contnua, avaliativa, tensa,transformadora:

    As palavras do outro, introduzidas na nos-

    sa fala, so revestidas inevitavelmente dealgo novo, da nossa compreenso e da nossaavaliao, isto , tornam-se bivocais [...]. A transmisso da afirmao do outro em formade pergunta j leva a um atrito entre duasinterpretaes numa s palavra, tendo emvista que no apenas perguntamos como pro-blematizamos a afirmao do outro. O nosso

    discurso da vida prtica est cheio de pala-vras de outros. Com algumas delas fundimosinteiramente a nossa voz, esquecendo-nos dequem so; com outras, reforamos as nossasprprias palavras, aceitando aquelas comoautorizadas para ns; por ltimo, revestimos

    terceiras das nossas prprias intenes, queso estranhas e hostis a elas. 16

    Nesse caminho, o autor articula essascaractersticas prosa, especialmenteao romance, destacando a concepo de palavra que rege seus estudos: sempreconsiderada em sua existncia viva,na passagem de boca em boca, de um con-texto para outro, de um grupo social para

    outro, de uma gerao para outra.17

    Esseconjunto de reflexes sobre o discursopermite a continuidade da anlise deDostoivski sob luzes inovadoras paraos estudos da linguagem em geral e paraa compreenso da prosa literria comoinstncia privilegiada para a captaoe representao do dialogismo, da poli-fonia, da tenso de vozes que, na fron-

    teira entre eu/outro, constituem sujeitoe linguagem num universo de valores.Isso significa que a anlise estilstico-dialgica dos fenmenos produzidospor palavras e acentos de outrem naconscincia e no discurso do heri, re-fratadas linguisticamente em ressalvas,repeties, palavras atenuantes, variadas partculas e interjeies, esto, segundo

    Bakhtin, necessariamente ligadas amundos sociais especficos e tm emcomum: [...] o cruzamento e a interse-o de duas conscincias, de dois pontosde vista, de duas avaliaes em cadaelemento da conscincia e do discurso,

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    em suma, a interferncia de vozes nointerior do tomo.18

    Problemas da potica de Dostoivski visa, portanto, caracterizao do dis-curso polifnico, da polifonia, das formasde presena daalteridade , dooutro comoconstitutivo do discurso. Nele, comoapontam vrios crticos,19 Bakhtin abor-dou, dentre muitos outros, aspectos liga-dos interao individual/social, autor/ heri, cultura/civilizao, possibilidades/ impossibilidades do dilogo, permitindodiferentes abordagens e interpretaes.O leitor de PPD, que para entender essaimportante obra dever ler cuidadosa-mente e com prazer as obras de Dostoi-vski, pode tomar como exemplar, para aconstruo da complexidade e amplitudedas particularidades do outro na pers-pectiva do pensador russo,O duplo ouO ssia, texto em que, segundo Bakhtin,

    cada palavra est dialogicamente decompos-ta, em cada palavra h uma interferncia de

    vozes[...].j existe o embrio do contraponto: este se esboa na prpria estrutura do dis-curso20 e a particularidade da conscinciae do discurso [...]atinge uma expresso extremamente marcante e ntida como emnenhuma das outras obras de Dostoivski21 [...]. Esse princpio de combinao de vozes mantido em toda a obra posterior de Dos-toivski, porm de forma de complexificadae aprofundada22.

    nas mincias estilstico-discursi-

    vas, no enunciado concreto, que Bakhtinvai buscar e sinalizar os aspectos quemarcam a presena/ausncia e a ento-nao de cada uma das vozes, ascons-cinciasem conflito, a tenso, os planosde diluio/demarcao de fronteiras. Se,

    num nvel especulativo ou psicanaltico,a explicao poderia vir da fragmentaopatolgica de uma identidade, de umaconscincia, do ponto de vista da cria-o artstica a costura da linguagem,a sutileza da trama dos fios que darconcretude ao heri e seus desacertosfatais. Que leitor, diante de um dramahumano to grande, to cruel como ode Golidkin, protagonista deO ssia,poder baixar os olhos e prestar atenos marcas grficas, ou seja, pontuao,s diferenas de fontes (itlico, normal) eoutros aspectos verbais aparentementesem importncia? Da perspectiva daanlise dialgica, entretanto, so justa-mente essas marcas, acopladas a outroselementos, que possibilitam, num mes-mo e fragmentado sujeito, a presena, aambiguidade, a tenso das vozes. Nessesmomentos, as reticncias presentes notexto, por exemplo, constituem um doselementos que expem asrplicas ante-cipveis do outro.

    Bakhtin alerta, portanto, para a ma-terialidade das fronteiras instveis, in-cluindo a as existentes entre a narraoe o discurso da personagem. O resultado uma construo bivocal dissonante,cujos fenmenos concomitantes contri-buem para tornar muito sutis e quaseimperceptveis as transformaes, as

    passagens. Para isso colaboram o usodas aspas, as rplicas desagregadas, quepassam do dilogo interior de Golidkinpara a narrao, a fuso dissonante derplicas, a ausncia de aspas em pala-vras que as exigiriam para a identifica-

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    o do falante, as reticncias separandonarrao e discurso interior, o contnuodilogo interior de trs vozes, as pausasmarcadas por reticncias.

    Mesmo com a declarao de Bakhtinde que as vozes s se tornam plenamenteautnomas nos romances, ou seja, que apolifonia ainda no encontrou sua formaplena emO ssia, a leitura dessa narrati-va e sua interpretao no captulo O dis-curso em Dostovski ajudam a entenderem que Bakhtin se diferencia de outrosexcelentes crticos e o que significaoutro e polifonia em suas reflexes. Ele exa-mina muito de perto a materialidade dalinguagem, suas sutilezas e a forma comoa relao eu/outro, a condio de alteri-dade da linguagem adere ao homem, sua situao existencial, histrica, social.E esse cuidado metodolgico pode servirtanto aos estudiosos do discurso artsticocomo aos que se dedicam a outros tiposde linguagem.

    Nunca demais lembrar que a leitu-ra de O ssia imprescindvel, com ousem as lentes bakhtinianas. Entretan-to, sem se furtar reflexo intelectuale s grandes emoes proporcionadaspor Dostoivski nesse texto, o leitor,estudioso da linguagem, deve se ater magnfica e dolorosa cena da ponte, mo-mento em que Golidkin defronta-se com

    seu outro. Sem dvida, essa metfora doconceito deoutro, polifonia, alteridade,dialogismo, heterogeneidade, traduz aessncia do pensamento bakhtiniano, viaDostoivski, sem se limitar a ele.

    Superoutro : escutar/ver/sero qu?

    Da consistente teoria bakhtiniana

    sobre polifonia, heterogeneidade, vozesem suas mltiplas formas de imbricarlinguagem e vida, expor valores, ide-ologias em confronto, conscincias emharmonia ou dissonncia, passamos tentativa de compreenso de um textoque se estrutura a partir da costura demltiplas e diferenciadas vozes: Cinemanovo, de Caetano Veloso, aqui apreciado

    como letra de cano.Para responder s questes coladasna introduo deste artigo necessrio,pelo vis bakhtinianao, ouvir e olhar acano de perto, com lupa, desfrutandosuas belezas, sua capacidade de instau-rar o mundo e, ao mesmo tempo, suacapacidade de criar astcias textuais ediscursivas.

    Cinema novo(Caetano Veloso/ Tropiclia 2, 1993)

    O filme quis dizer Eu sou o samba A voz do morro rasgou a tela do cinemae comearam a se configurarvises das coisas grandes e pequenasque nos formaram e esto a nos formarTodas e muitas: Deus e o diabo, vidas secas,os fuzisOs cafajestes, o padre e a moa, a grandefeira, o desafioOutras conversas,Outras conversas sobre os jeitos do BrasilOutras conversas sobre os jeitos do Brasil A bossa nova passou na provanos salvou na dimenso da eternidadeporm aqui embaixo A vida mera metadede nada

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    nem morria nem enfrentava o problemaPedia solues e explicaesE foi por isso que as imagens do pas dessecinemaEntraram nas palavras das canesEntraram nas palavras das canes

    Primeiro foram aquelas que explicavamE a msica parava pra pensarMas era to bonito que parasseQue a gente nem queria reclamarDepois foram as imagens que assombravamE outras palavras j queriam se cantarDe ordem e desordem de loucuraDe alma a meia-noite e de indstriaE a Terra entrou em transeE no serto de IpanemaEm transe eh, no mar de monte santoE a luz do nosso canto e as vozes do poemaNecessitaram transformar-se tantoQue o samba quis dizerO samba quis dizer: eu sou cinemaO samba quis dizer: eu sou cinema A o anjo nasceu, veio o bandido metero-rangoHitler terceiro mundo, sem essa aranha,fome de amorE o filme disse: Eu quero ser poemaOu mais: Quero ser filme e filme-filme Acossado no limite da garganta do diabo Voltar a Atlntida e ultrapassar o eclipseMatar o ovo e ver a vera cruzE o samba agora diz: Eu sou a luzDa lira do delrio, da alforria de XicaDe toda a nudez de ndiaDe flor de macabia, de asa brancaMeu nome Stelinha InocnciaMeu nome Orson Antonio Vieira conselhei-ro de pixoteSuperoutroQuero ser velho de novo eterno, quero sernovo de novoQuero ser Ganga bruta e clara gemaEu sou o samba viva o cinema Viva o Cinema Novo.

    Como comear a compreenso? Paraum leitor/ouvinte interessado unicamen-te em desfrutar a cano, o texto flui sem

    qualquer necessidade de explicar suasformas de construir o universo significa-tivo. Para o analista, entretanto, que secolocou questes sobre heterogeneidadee polifonia, a pesquisa se faz necessriadesde o ttulo, momento em que a canoindicia, por superposio, o movimentoesttico cinematogrfico denominadoCinema Novo. O analista pode recorrera vrias fontes para saber que CinemaNovo foi um movimento esttico devanguarda que buscou desenvolver te-mticas nacionais, mostrar o homem dopovo na tela e, segundo o diretor e crticoDavi Neves, pode ser definido como apoesia do real, da crueza, do drama, dapobreza, da infelicidade. Surgido na d-cada de 1960, tinha o objetivo de mudaro curso da histria, marca registrada deum momento em que cultura e polticase uniram. Com esse ideal, traduzido nafrase uma cmera na mo e uma ideiana cabea, atribuda a Glauber Rocha,o Cinema Novo produziu obras sobre asdisparidades brasileiras, por meio denarrativas ousadas e de uma estticarealista e inovadora.

    De posse desse conhecimento sinteti-zado na bivocalidade do ttulo, o leitor/ ouvinte vai enfrentar a maneira comoessa cano conta a histria do CinemaNovo, invocando essa forma especfica de

    fazer cinema, dandovozao filme,teste-munha ocular, e invocando outras vozescom as quais dialogou ou incorporou,caso de diferentes gneros de canes,a fim de configurar/vises das coisas grandes e pequenas/que nos formaram

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    e esto a nos formar/Todas e muitas. Enesse percurso/pesquisa, depara-se comos dois primeiros versos que afirmam: O filme quis dizer: Eu sou o samba/A voz do morro rasgou a tela do cinema.

    A cano inicia-se como narrativacomentada, na qual, de imediato, o nar-rador, no identificado explicitamente,mas que pode ser entendido como ocompositor, o cantor, o autor, introduzuma primeira voz. Com a afirmativa Ofilme quis dizer, a voz narrativa, coma finalidade de interpretar o projetodiscursivo dos filmes que constituram omovimento Cinema Novo, traz para den-tro da cano, em discurso direto, a vozdo filme que afirma: Eu sou o samba.

    Essa afirmao, que parece contra-ditria filme ou samba? , na ver-dade uma citao dentro da citao donarrador: a cano de Caetano, assimcomo o filme, incluem a voz de outracano. Trata-se de A voz do morro,do cantor e compositor carioca Z Keti(1921-1999), datada de 1955, cantadapor Jorge Goulart com arranjo do maes-tro Radams Gnatalli , cujo ltimo verso Essa melodia de um Brasil feliz. Almde grande sucesso na poca, A voz domorro foi includa na trilha sonora dofilme Rio 40 graus (1955), do cineastaNelson Pereira dos Santos, considerado

    a obra inspiradora do Cinema Novo.No primeiro verso, portanto, entabu-la-se o forte dilogo entre filme e cano,tema central desse samba-enredo, m-sica que canta e conta, incluindo vriasvozes que se entrecruzam, se espelham e

    se explicam: a da cano Cinema novo,que se prope a explicar o movimentoCinema Novo, sua relao com outrasartes, com um determinado momentobrasileiro; a do Cinema Novo , movimentocinematogrfico que se identifica com osamba, enquanto voz do morro, voz po-pular; a voz do morro, do povo, trazida apblico pelo samba e pelo cinema.

    No segundo verso, a voz narrativa,a cano Cinema novo, dando conti-nuidade histria, faz uma avaliaometafrica que define a relao entremorro, cano e cinema A voz do morro

    rasgou a tela do cinema e explicita aforte atuao desse cinema em relao cultura brasileira, sociedade, arti-culao arte e poltica. Esses elementosformadores de um dado momento dacultura brasileira, por sua vez, vo serdados a partir da enumerao de filmesproduzidos pelo Cinema Novo, numasintaxe perfeitamente integrada voz

    narrativa, mas que, ainda que em letrasminsculas, indicia filmes da dcada de1960: Deus e o diabo na terra do sol, deGlauber Rocha, 1964;Vidas secas, Nel-son Pereira dos Santos, 1963, baseadono romance homnimo de GracilianoRamos;Os fuzis, Ruy Guerra, 1964;Oscafajestes, Ruy Guerra, 1962;O padre ea moa, de Joaquim Pedro de Andrade,1965, baseado no poema homnimo deCarlos Drummond de Andrade; A grande feira, de Roberto Pires, produzido porGlauber Rocha, 1961, rodado na Feirade Meninos, de Salvador, que hoje noexiste mais, referncia ao ciclo baianodo Cinema Novo (1956-1962).

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    Essas vozes-filmes s so ouvidas/re-conhecidas se o ouvinte perceber a estra-tgia por conhecer os filmes ou por via deuma pesquisa. Do contrrio, soam comosimples enumerao, componentes de pe-rodos compreensveis, mas no tomadosem sua bivocalidade. Para torn-las real-mente vozes autnomas, expondo consci-ncias sociais e individuais, constituindooutros-sujeitos, necessrio ver e ouvir,no sentido bakhtiniano de polifonia, cadaum desses filmes. Na cano, eles foraminvocados e citados pela voz narrativa,num brilhante jogo nomes comuns/no-mes prprios, espcie de esconde/mostra,em funo dos propsitos da cano. Defato, amplificam a voz dominante (ada cano/do cancionista), que objetivamostrar, homenagear, fazer ver o papeldo Cinema Novo na cultura brasileira, noque diz respeito conscincia poltica eesttica do pas, especialmente nos anossessenta do sculo passado.

    Essa estratgia de invocao de vozesde maneira estratgica, do ponto de vis-ta lingustico, enunciativo e discursivo,centrada na bivocalida, ser a tnica dacano, qualificando e convocando osouvintes a reconhecer, pelas linguagensmobilizadas, a funo social e estticade duas formas de fazer cultura e quetiveram, e continuam tendo, grande

    importncia social: a msica e o cinema.Nessa etapa, a enumerao terminacom o desafio, que no parece (emborapossa ser) nome de filme. Aqui h umimportante fenmeno de misturas devozes (a narrativa e a de um possvel fil-me), numa espcie de simulado discurso

    indireto-livre que constitui concluso davoz narrativa sobre o conjunto apresen-tado e, ao mesmo tempo, coloca-se comoelemento de coeso, forma de introduziroutras vozes ligadas ao Cinema Novo.No mais a voz, como nos primeirosversos, mas a possibilidade de interaode vozes:conversa, forma de recuperaroutras conversas sobre os jeitos doBrasil, outros movimentos artsiticosrepresentativos da identidade brasileiradaquele momento. Tambm h a a im-plicao deconscinciasestticas e pol-ticas em relao a determinado momentoda vida brasileira. Esse aspecto amplia acondio de dilogo como espinha dorsaldessa criao, ao mesmo tempo em queexplicita a relao vida e arte, discurso emomentos histricos, assuno da prosa(conversa) pela poesia (cano).

    Para isso, a voz narrativa introduzoutro movimento importante da culturabrasileira, agora musical, que tem comouma das caractersticas aproximar acano da conversa: a Bossa Nova. Aodestacar sua universalidade, sua eterni-dade, seu reconhecimento internacional,tambm aponta para sua bivocalidadeconstitutiva. Fazendo uma espcie decrtica, articula o positivo a uma facenegativa no que se refere relao arte/ vida: A bossa nova passou na prova/nos

    salvou na dimenso da eternidade/po-rm aqui embaixo A vida mera metadede nada/nem morria nem enfrentava oproblema/Pedia solues e explicaes.O narrador assume a conversa, declarao valor esttico desse importante mo-vimento musical, mundialmente reco-

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    nhecido, mas acrescenta, pelos termos porm e aqui em baixo, uma espcie decrtica ausncia de dimenso social epoltica do movimento, muito prximo,temporalmente, do Cinema Novo, e, aomesmo tempo, distante da perspectivasocial assumida por ele.

    Em seguida, e em funo da conversacinema/cano e da situao brasileira,que Pedia solues e explicaes, dcontinuidade narrativa, fazendo aarticulao entre o cinema engajado e amsica: As imagens do pas desse cine-ma entraram nas palavras das canes.Nesse momento, atentando-se para amsica, no apenas para a letra, ouve-sea conjugao de dois gneros dentro doespao enunciativo da cano, a quem onarrador d voz, do ponto de vista mu-sical, e comenta, do ponto de vista daletra. De um lado, o ritmo de escola desamba, de samba enredo, de forma afazer ouvir a cano que assume a vozpopular, que entra na avenida expondouma histria, explorando a bivocalidadecarnavalesca. A esse som eufrico mistu-ra-se a provvel referncia s canes deprotesto: E a msica parava pra pensar/ Mas era to bonito que parasse/Quea gente nem queria reclamar. O jogolingustico musical articula novamentevrias vozes: ao mesmo tempo em que a

    escola desfilava abertamente na avenida(voz captada apenas na msica), a can-o de protesto se fazia s escondidas,refletindo sobre o aqui em baixo, merametade de nada, representado pelosanos difceis do final da dcada de 1960.

    Na sequncia, exatamente como numdesfile da escola de samba, mais umaala adentra a cano/avenida, condu-zida pela voz narrativa: Depois foramas imagens que assombravam/E outraspalavras j queriam se cantar/De ordeme desordem de loucura, em clara refe-rncia no a imagens das canes ou docinema, mas realidade em que ordem,desordem e loucura se misturam comometonmia de aes polticas e reaesdos brasileiros. pela voz do ttulo dosfilmes, enumerados a partir de umasintaxe que novamente joga com nomesprprios como se fossem comuns, mistu-rados a trechos de canes, refernciasliterrias e histricas, que o momento situado, quase em ritmo de transe, re-cuperado pela msica: De alma meianoite, e a terra entrou em transe/e noserto de Ipanema/em transe no marde monte santo.

    E a se reconhece Terra em transe,de Glauber Rocha, 1967, filme que fazreferncia direta situao brasileiraque levou ditadura militar, o qual seconfigura como parbola da histria doBrasil de 1960 a 1966; a sugesto doverso O serto vai virar mar e o mar vaivirar serto, da cano Perseguio Oserto vai virar mar, de Glauber Rochae Srgio Ricardo, popularizada na m-

    sica Sobradinho, de S e Guarabira, eque, por sua vez, refere-se profecia atri-buda a Antnio Conselheiro, aspecto queremete Guerra de Canudos, a MonteSanto, municpio bahiano ligado Guer-ra dos Canudos e obra Os sertes, de

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    Euclides da Cunha. So vozes que, semdvida, apontam para a heterogeneidadeda identidade nacional brasileira.

    Nesse ponto, luz e som entram em fu-so, apontando, como acontece ao longodo samba, para mais de uma significa-o: E a luz do nosso canto e as vozesdo poema/Necessitaram transformar-setanto/Que o samba quis dizer/O sambaquis dizer: eu sou cinema/ A o anjonasceu, veio o bandido meterorango;Hitler terceiro mundo, sem essa aranha,fome de amor. Novamente, a descriodas caractersticas desse dilogo entre

    as artes, especfico de um determinadomomento da histria do Brasil, acontecepor meio da citao, da invocao nototalmente explcita, mas que o leitoratento s estratgias de construo dasvozes percebe via filmes:O anjo nasceu,filme de 1969, dirigido por Jlio Bressa-ni, que ficou vrios anos censurado; Obandido meteorango provvel refernciaao filme de Rogrio Sganzerla,O ban-dido da luz vermelha, de 1968; Hitlerterceiro mundo, filme de Jos Agripinode Paula, comdia de 1986;Sem essaaranha , filme de Rogrio Sganzerla, de1970, que inspirou a msica Que coisa,de Caetano Veloso; Fome de amor, filmede Nelson Pereira dos Santos, de 1968.

    preciso notar ainda que nesse pontoa voz narrativa se apresenta, incluindo-

    se explicitamente no dilogo, por meioda expresso nosso canto, qualificando,sem modstia, o canto comoluz associa-da a poema.

    Nessa tentativa de as artes dosmomentos delineados conversarem ecompartilharem identidades estticas e

    sociais, linguagem e conscincia, maisuma vez a voz cinematogrfica se fazouvir: E o filme disse: Eu quero serpoema/Ou mais: Quero ser filme efilme-filme. Novamente a explicitaose d por meio da introduo de ttulosde filmes na sintaxe narrativa, permi-tindo ao ouvinte atento escutar as vozesevocadas: Acossado, filme de Jean-LucGodard, de 1960, roteiro de Jean Luc-Godard e Franois Truffaut; Limite, deMrio Peixoto, 1931;Garganta do diabo / Cold Creek Manor, filme de americanode 2003, dirigido por Mike Figgis. Sem

    dvida, a enumerao refere-se a clssi-cos do cinema nacional e estrangeiro detodos os tempos, os quais poderiam serdesignados como filmes-filmes, verdadei-ros poemas da arte cinematogrfica. Masesse gesto, que poderia ser separatista, elitista, remetendo unicamente ao filmecabea, aos frequentadores de cinema-teca, articulado a Voltar a Atlntidae ultrapassar o eclipse/Matar o ovo e vera vera cruz, pontuando um momento dereavaliao da tradio cinematogrficabrasileira, sem xenofobia, assumindo abrasilidade como ampla, marcada pelogenuinamente nacional, popular e peloestrangeiro sofisticado: Atlntida, Com-panhia Cinematogrfica que a partir de1941 lota os cinemas;O eclipse, filmede Michelangelo Antonioni, de 1962;

    Cinematogrfica Vera Cruz ao fim dadcada de 1940;O ovo da serpente, filmede Bergman de 1977.

    No jogo das vozes, a vez do sambase pronunciar, protagonista de o ala que, nesse momento, adentra a avenida/ cano, associando-se identidade do

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    filme: E o samba agora diz: Eu sou aluz. por meio da mesma estratgiade citao de nomes de filmes que onarrador caracteriza esse momento,simulando falar unicamente de vriasmulheres e diferenciadas, de nudez, decastigo, de inocncia. E o ouvinte atentoreconhece, na fluente e bivocal sintaxe,os filmes, incluindo os que tm sua fon-te na literatura: A lira do delrio, filmebrasileiro de 1978, do gnero drama,dirigido por Walter Lima Jnior, commsicas originais de Paulo Moura; Xicada Silva filme brasileiro, dirigido por

    Carlos Diegues em 1976, com Zez Mottae Walmor Chagas nos papis principais;Toda a nudez ser castigada, filme de1973, dirigido por Arnaldo Jabor, ba-seado na pea de teatro homnima deNelson Rodrigues (1965); ndia, a filhado sol, filme do diretor Fbio Barreto,1982, baseado no conto de Bernardo lis,com msica de Caetano Veloso. Dona flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto,de 1976, baseado na obra homnima deJorge Amado. Macabia, personagemda Hora da estrela, de Clarice Lispector(1977), e A hora da estrela, filme de 1985,de Suzana Amaral; Asa branca um so-nho brasileiro, filme de Djalma LimongiBatista, 1980; Stelinha, filme dirigidopor Miguel Faria Jr, roteiro de RubemFonseca, 1990; Inocncia, filme de 1983,

    dirigido por Walter Lima Jr. e baseadono livro de mesmo nome, de Viscondede Taunay.

    Concluindo essa narrativa, a voz dosamba, a cano, em fuso com a luz/ cinema, expe-se em sua face mltipla,sua heterogeneidade esteticamente

    constituda e declara sua identidade:Meu nome Orson Antonio Vieiraconselheiro de pixote/Superoutro/Queroser velho de novo eterno, quero ser novode novo/Quero ser Ganga bruta e claragema/Eu sou o samba viva ocinema/vivao cinema novo. moda de um retratode Picasso, a identidade se faz a partirde um clssico diretor de cinema, OrsonWell, do padre e drande escritor de ser-mes, Antonio Vieira, do protagonista daguerra de Canudos e da obra Os sertes,de Euclides da Cunha, de Pixote, a lei domais fraco, filme brasileiro de 1981, di-

    rigido por Hector Babenco. Esses traosque emolduram a face esto sintetizadosno magnfico termo Superoutro, refe-rncia antiga e prestigiada forma defazer cinema super oito e ao processoanatropofgico de relao eu/outro, corodas vozes invocadas na cano que falae deixa falar, descortinando vises dascoisas grandes e pequenas/que nos for-maram e esto a nos formar.

    Para que o ouvinte/espectador possacaptar o jogo de linguagens/conscinciasexposto na cano, permitindo que asvozes sejam inteiramente ouvidas, ascitaes devem ser compreendidas comometonmias de eventos estticos e sociaisque, de fato, fizeram-se e fazem-se ouvire ver. A prova dessa histrica resistn-cia esttica, hbrida, polifnica, est no

    desejo final do samba/luz, expresso emprimeira pessoa: Quero ser velho denovo eterno, quero ser novo de novo/ Quero ser Ganga bruta. Ganga brutae clara gema/ Eu sou o samba viva ocinema/viva o cinema novo. Aqui aindao ouvinte reconhece um filme de 1933,

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    Ganga bruta, que consagra o cineastabrasileiro Humberto Mauro, mas o quehouve, de fato, a voz da cano, em pri-meira pessoa, homenageando o cinema e,numa derradeira bivocalidade, evocandoo cinema novo, com minscula, ou seja,o cinema que se faz hoje.

    A cano Cinema novo estabeleceum dilogo entre o cinema e samba, bos-sa nova, samba-enredo, poema e prosaliterria, com a finalidade de contar/ cantar uma parte da histria do Bra-sil, tecida artisticamente, assim comoparticularidades das estticas que a

    eternizam. Constri-se basicamente pelacitao de ttulos de filmes, trechos decanes, personagens e referncias his-tricas e literrias, assumindo a formade uma narrativa com sintaxe no mnimobivocal, perfeita, com coeso e coerncia,aparentando, por vezes, a enumeraocatica. Est, sintagmaticamente, tecidapor um contador/cantador mltiplo que,ao mesmo tempo em que apresenta ahistria de um certo Brasil,compe a suaface heterognea, sua identidade arts-tica, histrica, tecida por discursos queo identificam com a imagem da culturapolifnica de seu pas.

    Who said what? Polyphony andheterogeneity in dialogical chorus

    AbstractThis paper aims at signaling the

    polyphonic dimension in language, asper Mikhail Bakhtins writings on theworks of Fiodr Dostoivski studiesfound in many texts and considered in-valuable contributions to contemporary

    readings of the I/other-relationship andthe means by which these appear inthe texts. Concepts of polyphony, hete-rogeneity, voices, otherness, dialogicalrelations may be found not only in thesecond edi t ion of Problems of Dostoivskis Poetics (1963), but also inprevious texts, as is the case of thefirst edition (1929) and For the sakeof commenting and Reformulationsketch for PDP (1960s). Both the car-rying out of polyphony, and that of he-terogeneity which is necessarily acomponent of the former will be ob- jects of investigation in a song writtenby Caetano Veloso: Cinema Novo. If the means by which the voices of others are mustered do not alwaysconstitute textual and discursivepolyphony in Bakhtinian sense, thisdoes not mean that heterogeneity maynot be clearly found whether in ex-plicit or implicit terms in differenttypes of texts.

    Key words: Polyphony. Heterogeneity. Artistic and non-artistic discourse. Bra-zilian song.

    Notas1 Na obra Bakhtin Dialogismo e polifonia (BRAIT [Org.],

    2009), dediquei um captulo ao estudo de problemasda potica de Dostoivski . Alguns aspectos, com mo-di caes, so aqui retomados, considerando-se quea constituio do conceito de polifonia, no sentidobakhtiniano, est constitudo especi camente nessaobra.

    2 BAKHTIN, M., 2003.3 BAKHTIN, M., 2008.4 BAKHTIN, 1929.5 BAKHTIN, 1996.6 Para maiores detalhes, sobre particularidades dos dois

    textos, consultar Brait, 2009, p. 45-72.7 BAKHTIN, 2003, p. 337-357; 2008, p. 318-338.8 Relaes dialgicas o conceito que aparece em PPD

    como objeto da metalingustica ou translingustica, dis-ciplina que deveria ser criada para estudo do discurso,segundo proposta de Bakhtin, e que, sem dvida, estdelineada, oferecendo-se como a gnese do que hojedenominamos Anlise dialgica do Discurso.

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    9 BAKHTIN, 2008, p. 1.10 BAKHTIN, 2008, p. 1.11 EMERSON, 2003.12 BAKHTIN, 2008, p. 4-5.13 BAKHTIN, 2008, p. 47.14 BAKHTIN, 1984, p. 47-78; Bajtn, 1986, p. 73-115.15 Em nota, o tradutor brasileiro, Paulo Bezerra, apre-

    senta a de nio de skaz : Tipo espec co de narrativaestruturado como narrao de uma pessoa distanciadado autor (pessoa concretamente nomeada ou subenten-dida), dotada de uma forma de discurso prpria e sui

    generis . (BAKHTIN, 2008, p. 211).16 BAKHTIN, 2008, p. 223.17 BAKHTIN, 2008, p. 232.18 BAKHTIN, 2008, p. 2242.19 Ver TIHANOV, 2000, 165-215.20 BAKHTIN, 2008, p. 222.21 BAKHTIN, 2008, p. 253.22 BAKHTIN, 2008, p. 242-263; p. 295. DOSTOIVSKI,

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