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ANTROPOS Revista de Antropologia Volume 2, Ano 1, Maio de 2008 ISSN 1982-1050

OBSERVAO PARTICIPANTE

Wander de Lara Proena Artigo

Revista Antropos Volume 2, Ano 1, Maio de 2008 ISSN 1982-1050

Contribuies do Mtodo da Observao Participante para pesquisas no campo religioso brasileiro Introduo Um equvoco religioso e missiolgico! Isso pode ser dito em relao atitude dos primeiros missionrios cristos que tentaram evangelizar os povos indgenas no Brasil colonial. Ao se estabelecerem no pas, a partir do sculo XVI, aqueles religiosos procuraram empregar determinadas estratgias que possibilitassem algum tipo de identificao entre a mensagem que traziam e o universo representacional que circunscrevia as crenas amerndias, ou seja, localizar alguma entidade religiosa indgena que pudesse ter algum tipo de aproximao ou ressonncia com o Deus cristo, a fim de facilitar a catequese e a conquista do Novo Mundo para a f catlica. Neste af, acabaram por vezes fazendo interpretaes equivocadas, como a que se pode observar nas palavras do padre jesuta Manuel da Nbrega, ao afirmar: Essa gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhece Deus, somente aos troves chamam de Tupane; que como quem diz coisa divina. E assim ns no temos outro vocbulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane (Laraia, 2005: 11). Mas o que houve ali, na verdade, foi uma grande confuso acerca da cosmogonia tupi-guarani, pois se constatou, posteriormente, que Tup no imaginrio dos nativos estaria mais prximo a um demnio, temido por controlar o raio e o trovo e, por conseguinte, a morte e a destruio, razo

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pela qual os sentimentos indgenas para com essa entidade sagrada seriam mais de medo do que venerao. Diante daquele contexto, os missionrios poderiam ter obtido melhor xito se tivessem estabelecido como ponto de contato a divindade Mairemonan, que o heri mtico dos tupinambs, o qual lhes ensinou a plantar, utilizar o fogo, fabricar instrumentos, alm de fornecerlhes as normas de seu comportamento social, sendo considerado como o grande antepassado dos tupis. O fato que, uma anlise superficial dos elementos do campo religioso indgena, ocasionou o emprego da palavra Tup com outro sentido, o que se constituiu em mais uma dificuldade para as misses jesuticas se aproximarem daqueles povos. A falta de uma maior insero naquele universo de crenas fez com que houvesse divinizao de uma entidade considerada demonaca. No tm sido diferentes as interpretaes referentes a movimentos religiosos mais contemporneos no contexto brasileiro. As trs ltimas dcadas tm sido marcadas por profundas e significativas transformaes neste respectivo campo. Na vertente evanglica, por exemplo, houve o surgimento de inmeras denominaes, que passaram a desafiar os pesquisadores da religio no apenas quanto s filiaes tipolgicas convencionalmente estabelecidas, como tambm no sentido de se entender os elementos mais profundos que sustentam prticas que permanentemente se recriam. E a falta de parmetros e critrios metodolgicos teoricamente mais consistentes pode dificultar ainda mais essa anlise, levando o pesquisador a incorrer em interpretaes precipitadas, superficiais ou generalizantes. 1 Armadilhas da superficialidade e da generalizao Destacaremos, neste item, duas das armadilhas que podem se colocar no caminho daqueles que empreendem pesquisas no campo religioso. Primeiro, analisar o campo religioso dependendo demasiadamente de opinies

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emitidas por reportagens jornalsticas ou veiculadas nos grandes veculos miditicos, que nem sempre esto comprometidas com critrios de investigao mais profundos sobre tais assuntos. Assim, ao se referir a movimentos evanglicos de grande projeo no atual cenrio religioso brasileiro, por exemplo, a mdia escrita e televisiva quase sempre tem empregado um tom de estigmatizao, acusando-os de charlatanismo ou mercantilizao da f, curandeirismo, ou uma forma maquiavlica de explorar financeiramente a boa f de pessoas humildes e indefesas: Su rgem em meio a es ta qu es to , fals os l deres qu e u sam ess as tcnic as de p rega o em ben ef cio do p rp ri o bolso . Exatamente po r ess a razo so raras as c api tais brasi lei ras ond e p elo men os u m p as to r no es tej a s end o alv o d e u m p roc ess o c ri min al po r charlatan ismo , en ri qu eci men to i lci to e atentado ec on omi a p opu lar ( Veja, 1990: 40 ) . Em outra matria jornalstica, com manchete de capa intitulada A nao evanglica: o maior pas catlico do mundo est se tornando cada vez mais evanglico, pode-se ler: ( ...) o dinh ei ro , n a fo rma d e d zimo , ao se trans feri r p ara a mo d e p as to res qu e vem a reli gi o c omo negci o , tem gerado tan to o c res cimen to d e mu itas d en omin aes qu anto maracu taias , den nci as , in vesti ga es . ( ...) Um d os ramos evan gli cos c riou at u m d zi mo su perfatu rad o: o fi el d ev e dar an tecip ad amen te 10 % do v alo r qu e p retend e alc an ar co mo u ma gra a d o Senho r, e no d aqu i lo qu e efetiv amen te rec ebe ( ...) ( Vej a, 2 002 : 93) . Um segundo procedimento que pode representar armadilha ao pesquisador consiste no estabelecimento de uma interpretao das expresses religiosas to somente por tipologias generalizantes, tomadas sem o devido cuidado com as especificidades e as mutaes. Nesse aspecto, preciso 10

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ponderar que no somente as fronteiras denominacionais esto cada vez mais movedias no atual campo religioso brasileiro, como tambm as prprias categorias conceituais at ento utilizadas para a sua classificao e anlise. Classicamente os segmentos estabelecidos no campo religioso tm sido identificados em duplicidades: de um lado estaria a religio institucional, oficialmente reconhecida e, por outro, as religiosidades, praticadas pelo povo, sem o crivo ou o controle institucional; de um lado a f erudita ou elitizada e, por outro, as crenas ou crendices populares; de um lado os sacerdotes, oficialmente credenciados para o exerccio de sua funo, e, por outro, os magos ou profetas, sem a devida legitimao institucional ou o preparo formal para o desempenho de servios religiosos. Entretanto, quando se recorta, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), como estudo de caso, logo se constata que este segmento foge s clivagens conceituais anteriormente apresentadas, requerendo por isso novas abordagens para a compreenso de um novo tipo de experincia envolvendo o sagrado no atual cenrio religioso brasileiro. Um poder de alquimia faz com que sejam vivenciadas no mbito do grupo iurdiano aparentes contradies ou paradoxos, mas que emblematicamente ganham sentido e coerncia a partir de regras que o campo religioso capaz de promover: denominando-se igreja, este segmento possui prticas que classicamente seriam notabilizadas por magia ou profetismo; as representaes messinicas ali configuradas ocorrem no mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos com tais perfis fazendo com que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que rural e urbano sejam rompidas, tornando assim a cidade, teoricamente definida como lugar de desencantamento, em local de magificao do sagrado; ao mesmo tempo em que combate as crenas afro-brasileiras, o movimento iurdiano diretamente delas depende para a constituio de suas prticas,

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reeditando-as, inclusive, com outros nomes; os lderes, denominados pastores ou bispos, assumem para os fiis diferentes representaes, como as de mago, messias ou profetas o que caracteriza um movimento que tendo surgido com proposta proftica, passa a se aproximar de uma instituio, sem permitir, contudo, que suas prticas se institucionalizem; ao mesmo tempo em que se denomina evanglica, mantendo determinados vnculos doutrinais com o protestantismo histrico ou com o pentecostalismo clssico, na verdade, reinventa-os, configurando uma nova tipologia, a qual provocativamente desafia os pesquisadores quanto sua definio pelas novas figuras de sagrado apresentadas; se, por um lado, acena com as benesses de consumo da sociedade capitalista, por outro, sua mensagem acaba se colocando como uma espcie de resistncia a tal sistema quando prope caminhos intra-histricos para a superao das mazelas geradas por esse mesmo modelo de sociedade; a veiculao de sua mensagem capaz de combinar eficazmente o uso dos mais sofisticados meios de comunicao com antigas prticas de leitura, as quais se reportam a modelos caracterizados nos sculos XVI e XVII, numa conjugao perfeita do ultra-moderno com elementos de longa durao, fazendo com que em tempos de novos e agressivos recursos de comunicao e expresso, a leitura continue desempenhando o papel de promover a seduo do sagrado e a retraduo de um fertilssimo passado cultural no mundo contemporneo. Exemplos como estes mostram que uma atual anlise do campo religioso brasileiro requer a superao de clivagens conceituais normalmente estabelecidas, e mais: que sejam empregadas metodologias que permitam maior insero e proximidade em relao ao que vivenciado no mbito do prprio grupo em pesquisa. Aprofundando um pouco mais esta necessidade, vejamos o caso da distino normalmente feita entre religio de elite e f popular, ou ainda, entre cultura popular e cultura erudita. Neste sentido, cabe considerar as observaes feitas pelo historiador francs Roger Chartier, em

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suas pesquisas sobre a leitura na Frana, quando argumenta que esse postulado, que distingue o popular do erudito, assim como o que oficial e o que liminar, precisa ser questionado, pois onde se acreditava descobrir correspondncias estritas entre clivagens culturais e oposio sociais, existem antes circulaes fluidas, prticas compartilhadas, diferenas indistintas: T od as as fo rmas e p rtic as n as qu ais os his to ri ado res ju lgaram detec tar a cu ltu ra do p ov o , n a su a rad ic al o ri gin alid ad e, ap arec em c omo li gand o elemen tos di versos , co mp si tos , mis tu rad os . o qu e oc o rre co m a reli gi o p opu lar . Po r u m lado , bem c laro qu e a cu ltu ra fo lc l ric a qu e lhe s erve de bas e foi p ro fu ndamente trabalh ad a p ela i ns ti tu io ec lesi s tic a, qu e n o ap en as regu lamen tou , d epu rou , c ensu rou , mas tambm ten tou i mp o r s oci ed ad e i ntei ra a manei ra co mo o s c lri gos p ens av am e vi vi am a f co mu m. A reli gi o d a maio ri a foi , p o rtan to , mo ldada p o r ess e in tenso es fo ro p ed ag gic o vis an do fazer c ad a u m in teri o ri zar as d efini es e as n o rmas p rodu zi das p ela ins ti tu i o ecles istic a ( Ch arti er, 2 003: 8 ,9) . Assim, superficial pressupor uma cultura do povo, na sua radical originalidade. preciso perceber as prticas que ligam elementos diversos misturados, pois a religio popular lembra Chartier - , ao mesmo tempo, aculturada e aculturante: ela no nem radicalmente distinta da religio dos clrigos nem totalmente modelada por ela, por isso, uma compreenso da circulao dos objetos e dos modelos culturais no se reduz a uma simples difuso, geralmente pensada como descendo de cima para baixo no corpo social (Chartier, 2003: 9,17). Essa mesma travessia dos horizontes sociais tambm pode ser exemplificada nas palavras do antroplogo Victor Turner: As pessoas da floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos processos como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados (1974: 6). 13

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Nesse sentido, tambm vale citar, como exemplo, o estudo feito pelo historiador italiano Carlo Ginzburg (Ginzburg, 1987) sobre um personagem do sculo XVI, chamado Menchio, da regio de Friuli, na Itlia. Sendo um simples trabalhador de moinhos, sabia ler e tinha acesso a textos religiosos que estavam sob controle da Igreja, indisponibilizados aos leigos. Ao l-los, Menchio filtrava o significado da leitura a partir de um capital simblico e de um conjunto de representaes j depositados em seu imaginrio, realizando assim um dinmico processo de circulao cultural. Do confronto entre as idias desse personagem com a posio escolstica da Inquisio, emerge o enredo transformando em anlise pelo referido autor sobre a cultura popular e a cultura erudita daquele perodo, rompendo as fronteiras que convencionalmente so estabelecidas entre esses dois nveis cuturais: Men chio no es tav a simples men te relendo men sagen s tran smi ti d as d e ci ma p ara bai xo na o rd em s oci al. E le li a agressi v amen te, trans fo rmand o o c on te do material su a d ispo si o nu ma c onc ep o radi calmen te noc ris t d o mu ndo ( DARNTON, 1990: 147) . Algo semelhante ocorre com as novas expresses evanglicas em projeo no Brasil contemporneo: imbricam-se em suas prticas e representaes diferentes formas culturais, num jogo sutil de apropriao, reempregos, desvios, cruzamentos e resignificaes. Em uma mesma denominao evanglica, por exemplo, convivem e interagem eficazmente elementos ultramodernos com o que se pode chamar de experincias mais primitivas do humano com o sagrado. Assim, concorridas programaes mesclam recriativamente elementos do protestantismo, do pentecostalismo clssico e o que h de mais elaborado no neopentecostalismo, como: rituais de exorcismo, campanhas de libertao e prosperidade, eventos musicais, mega-

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congressos, apresentaes de danas, peas teatrais e uso de sofisticados recursos de comunicao etc. Para melhor se perceber como estas fronteiras se movem nas manifestaes religiosas, Roger Chartier destaca de maneira bastante elucidativa as contribuies da Antropologia: A an tro po lo gi a tem mu i to a oferec er ao his to ri ado r: u ma abord agem ( ganhar a en trad a em ou tra cu ltu ra a p arti r d e u m ri to , texto ou ato , aparen temen te inc omp reens v el ou op ac o); u m p ro grama ( ten tar ver as c ois as a parti r do p on to d e v is ta do n ativ o , en ten der o qu e ele qu er d izer e bu scar dimens es s oci ais do s igni fi c ado; e u m c onc ei to d e cu ltu ra co mo mu ndo si mb li co no qu al s mbo los co mp arti lhados s erv em ao p en samen to e a o, mo ldam c lass ific a o e ju lgamen to , e fo rn ec em aviso s e acu sa es . En tend er u ma cu ltu ra, en to , aci ma d e tu do redesco b ri r as si gn ific a es in ves tidas n as fo rmas si mblic as das qu ais a cu ltu ra s e u ti liza ( CHA RT IER, 1992 :7) . E, nesse propsito, um dos legados eficientes no campo da pesquisa, outorgados principalmente pelos antroplogos s demais reas do conhecimento, tem sido o emprego do mtodo denominado observao participante, o qual se apresenta como um caminho metodolgico frtil ao pesquisador de segmentos religiosos no Brasil contemporneo, por permitir maior insero no imaginrio da crena, revelando mais profundamente os mecanismos e as lgicas que regem seu funcionamento, atenuando desta forma a margem de interpretaes precipitadas ou superficiais no trabalho investigativo. 2 Contribuies e aplicabilidade da observao participante A observao participante pode ser conceituada como:

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O p ro cesso n o qu al u m inv es ti gad o r es tabelece u m relacion amen to mu lti lateral e d e p razo relativ amen te lon go co m u ma asso ci ao hu mana n a su a si tu a o n atu ral co m o p ro ps ito d e d es en vo lv er u m en ten di men to ci en t fic o d aqu ele gru po ( MAY , 200 1: 177) . Esse procedimento metodolgico representa, assim, um excelente recurso para uma insero mais densa nas prticas e representaes vivenciadas pelos lderes e fiis das expresses religiosas, pois permite ao pesquisador uma anlise mais delimitada e especfica, devido a incurses mais constantes que se pode fazer no dia-a-dia das experincias com o sagrado. As afirmaes referentes s crenas religiosas de um povo devem ter sempre o devido cuidado de apreenso das concepes, imagens mentais e palavras, vlidas e coerentes para o respectivo grupo, com conhecimento amplo do sistema de idias de que tais crenas participam ou pertencem (EvansPritchard, 1978: 18). Havendo maior proximidade do contexto ou ambiente do grupo a ser investigado, o pesquisador poder ento efetuar interpretaes sobre o seu objeto de estudo com maior correspondncia ao modo como os prprios integrantes vivenciam sua crena. Diferentemente da entrevista, na observao participante o pesquisador vivencia pessoalmente o evento de sua anlise para melhor entend-lo, percebendo e agindo diligentemente de acordo com as suas interpretaes daquele mundo; participa nas relaes sociais e procura entender as aes no contexto da situao observada. As pessoas agem e do sentido ao seu mundo se apropriando de significados a partir do seu prprio ambiente. Assim, na observao participante o pesquisador deve se tornar parte de tal universo para melhor entender as aes daqueles que ocupam e produzem culturas, apreender seus aspectos simblicos, que incluem costumes e linguagem. Em relao relevncia e aplicabilidade desse mtodo, destacaremos, a seguir, trs principais fatores. 16

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Em primeiro lugar, esse mtodo est ancorado nos aspectos de tempo, lugar e circunstncias. Em relao ao tempo, nota-se que quanto maior for o perodo de contato do observador com o grupo em anlise, maiores adequaes e possibilidades de interpretao sero alcanadas. Quanto mais familiarizado estiver com a linguagem empregada na respectiva situao social vivenciada, mais prxima da realidade podero ser as suas interpretaes. Alm do que, o tempo pode gerar uma relao de maior intimidade e confiabilidade entre os envolvidos nesse processo. Um maior envolvimento pessoal permitir que o pesquisador seja capaz de no apenas entender melhor os significados e as aes que o grupo realiza, como tambm de prover acesso a um mundo mais privado ou de bastidores. Em relao ao lugar, o pesquisador deve considerar tambm que h influncia das condies fsicas sobre as aes. Por isso cabe registrar no apenas as interaes observadas, mas tambm o ambiente fsico no qual elas acontecem, fato esse que tambm lhe possibilitar maior aproximao dos elementos culturais do grupo em estudo. Nesse aspecto, o onde deve ser bastante considerado no processo de crena e comportamento vivenciado por esses segmentos religiosos. O historiador Robert Darnton (1992: 203), quando analisa a histria das prticas da leitura, afirma que o onde pode exercer influncia sobre o leitor por coloc-lo num ambiente que lhe propicia sugestes sobre a natureza da sua experincia. Partindo desse pressuposto, constata-se que nos templos costuma haver, por exemplo, exposio de fotos, quadros ou objetos que testificam os milagres que teriam sido alcanados pelos fiis, havendo sempre ao lado de tais cenrios a citao de versculos bblicos que procuram fomentar a compreenso sobre o significado do que est exposto. Em uma observao participante, realizada num dos templos

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evanglicos, de Londrina,1 constatamos que h visivelmente exposto entrada do templo um grande mural com fotos, atestados mdicos comprovando curas recebidas; fotocpia da carteira de trabalho, provando o emprego alcanado; escrituras e certido de registro de imveis, atestando a aquisio de bens materiais obtidos a partir das campanhas ou correntes de orao feitas na respectiva igreja. Assim, inserindo-se nas diferentes atividades vivenciadas pelo grupo em pesquisa, o pesquisador ter maior domnio da linguagem no seu sentido mais amplo, com as expresses faciais e corporais em geral, incluindo-se no apenas as palavras e os significados que elas transmitem, mas tambm as comunicaes imagticas, no-verbais. Em relao s circunstncias da pesquisa, vale dizer que, segundo o antroplogo Clifford Geertz, a cultura consiste num sistema entrelaado de signos interpretveis, que podem ser descritos de forma inteligvel, isto , descritos com densidade (Geertz, 1998: 24). Esse autor apresenta, ento, importantes procedimentos para a observao participante ou trabalho etnogrfico, como recursos de acesso ao universo cultural do grupo investigado, ressaltando que, inicialmente, durante a coleta de dados, a multiplicidade das estruturas de significao pode parecer muito complexa, estranha, irregular e inexplcita ao pesquisador, mas, medida que ocorrem as entrevistas, observao de rituais, deduo de termos especficos e escrita do dirio de campo, naturalmente que tal universo se torna mais acessvel interpretao. Buscando decodificar o sistema de signos, alguns passos prticos so apontados por Geertz. Primeiro, o pesquisador precisa se situar dentro do universo imaginativo em que os atos do grupo em pesquisa so marcos determinados. Situar-nos, eis no que consiste a pesquisa etnogrfica como experincia pessoal ressalta este autor (1998: 23). Segundo, no deve o pesquisador procurar tornar-se um nativo ou copi-lo. O que deve fazer 1 Templo da Igreja Internacional da Graa de Deus, situado Rua Maranho, 449 centro. Observao participante realizada em 16/05/2006, no culto das 15 horas.

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conversar com eles, o que algo muito mais difcil. Visto desta maneira, a pesquisa etnogrfica apresenta como um dos seus objetivos o alargamento do universo do discurso humano (1998: 24). Terceiro, para compreender a cultura de um dado grupo, o etngrafo deve desenvolver formulaes e interpretao dos sistemas simblicos dos atos apresentados pelo respectivo grupo. Assim, quanto se segue o que fazem e como se comportam os membros de tal coletividade, mais lgicos e singulares eles se parecero. Quarto, a lgica no pode ser o principal teste de validade de uma construo cultural. Os sistemas culturais tm de ter um mnimo de coerncia, do contrrio no seriam chamados de sistemas, mas a fora das interpretaes no pode repousar na rigidez ou segurana com que so argumentadas (1998: 27, 28). Outro aspecto importante a compreenso de que a vida social no fixa, mas dinmica e mutvel. Assim, tal mtodo possibilitar meios para que o pesquisador se insira mais profundamente nas atividades do dia-a-dia das pessoas que busca entender, tornando-se parte do seu universo, registrando as experincias e seus efeitos sobre o comportamento do respectivo grupo social. medida que o pesquisador familiariza-se com esse aspecto do contexto social, aprende a linguagem da cultura e registra as suas impresses e quaisquer mudanas no seu prprio comportamento. Nesse ponto, o observador dever ser capaz de indicar como os significados so empregados na cultura e compartilhados entre as pessoas, ou seja, sob que condies e situaes so transmitidos. Em segundo lugar, esse mtodo permite a observao das imagens e a esttica dos rituais desenvolvidos nos cultos. Isto significa descrever o rito na prpria consumao do rito (Bourdieu, 2005: 131). Victor Turner emprega as expresses exegese nativa dos smbolos, ou perspectiva de dentro, para se referir compreenso dos smbolos rituais, na busca por se entender como os prprios membros do grupo explicam e interpretam-nos, destacando que no

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h incongruncia com a realidade para os membros do grupo e que cada elemento simblico relaciona-se com algum elemento emprico de experincia; os referentes so tirados de muitos campos da experincia social - ressalta (1974: 60). Tambm para esse autor, para se conhecer mais profundamente um ritual preciso vencer qualquer tipo de preconceito e investig-lo, destacando ainda a importncia da insero no grupo em estudo: Uma coisa observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canes enigmticas que fazem parte da prtica dos rituais, outra coisa tentar alcanar a adequada compreenso do que os movimentos e a palavras significam para elas (1974: 20). Considerando mais especificamente o caso de novas expresses evanglicas no Brasil contemporneo, nos cultos e nos ritos destes segmentos denota-se uma riqueza de cdigos emissores e receptores de comunicao. H, neles, um universo mtico que se d a representar. Os ritos, ali, to rnam-s e u m revelad o r maio r das c li v agens , tens es e rep res enta es qu e atravess am u ma s oci ed ad e. ( ...) o lu gar d e u m con fli to em qu e se c on fron tam, ao v iv o , l gic as cu ltu rais c on tradi t ri as; po r is so , au to rizam u ma ap reens o d as cu ltu ras p opu lar e eru d i ta n os s eu s c ru zamen tos . ( ...) Os ri tos so u ma d as fo rmas s oci ais em qu e p oss v el o bserv ar tan to a resis tnc ia p opu lar s inju n es n o rmati vas qu an to a remo delagem s egu ndo os mod elos cu ltu rais d omin an tes d os co mp o rtamen tos d a maio ri a ( CHA RT IER, 2003 : 22 ) . Tais prticas ritualsticas fincam razes em existncias particulares, reunindo em si os diferentes traos que desqualificam as prticas lcitas, contrria crena verdadeira (Chartier, 2003: 27). Na magia dos ritos e na riqueza simblica, adotados por essas igrejas, percebe-se a apropriao de um substrato cultural legado das crenas afro e da religiosidade popular catlica, o qual sincrtica ou pluralmente resignificado a partir de elementos da 20

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tradio evanglica. A observao e a interpretao participantes, neste caso, podem contribuir diretamente para uma maior proximidade dessas prticas. Em terceiro lugar, esse mtodo de pesquisa possibilita maior proximidade do habitus de grupo, que orienta o comportamento de lderes e fiis na maneira com vem o mundo e organizam suas aes em sociedade. O habitus, segundo o socilogo francs Pierre Bourdieu, pode ser conceituado nos seguintes termos: P o r su a p r p ri a eti mo lo gi a ha bi tus o qu e foi ad qu iri do , do v erbo habe o - , d evi a s i gni fic ar mu i to c onc retamen te qu e o p rin cpi o d as a es ou das rep res en ta es e d as op era es d a c ons tru o d a realid ad e s oc ial, p ressu pos tas po r elas , n o u m su jei to trans cend en tal ( ...) o hab i tus , co mo estru tu ra es trutu rad a e es tru tu ran te, qu e en gaj a, n as p rtic as e nas i di as , es qu emas p rtic os de c ons tru o o riu ndos d a in co rp o ra o d e es tru turas soc iais o riu ndas , elas p rp ri as , do trabalh o his t ric o d e gera es su c essi vas ( ...) (B ou rd ieu , 1996: 158 ) . a partir deste elemento que Bourdieu identifica os esquemas geradores das prticas, que podem ser chamados de cultura, competncia cultural, ou seja, habitus - um sistema de estruturas interiorizadas e condio de toda objetivao (1999: XLVII). Dentro de tal perspectiva, o habitus constitui matriz a partir da qual os cdigos de comportamento e as estruturas sociais so internalizadas pelos indivduos. Nesse sentido, vale destacar que, em um artigo intitulado O morto se apodera do vivo, Bourdieu (1989: 75106) prope certas categorias para se pensar o material histrico em termos do que seria uma histria incorporada pelos indivduos, que se apresenta com suas prticas, suas aes, seus testemunhos, sua histria oral, ao lado de uma histria objetivada ou reificada ou institucionalizada, que aparece em

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arquivos, em esttuas com construes, na arquitetura e numa srie de coisas (Chartier, 2002: 157). A anlise das prticas engendradas pelo habitus do grupo, permite melhor entendimento, por exemplo, do desempenho e da performance do carisma ostentado pelo lder perante o pblico ao qual dirige sua atuao, especialmente porque nessas novas expresses evanglicas presentes no contexto brasileiro: Na d ramatu rgi a, alm do cenrio e dos o bjetos , fu n damen tal a atu a o do ato r qu e co m p res en a, vo z, ges to s e d ramatici dad e p rov oc a ati tu des , rea es e mu d an as no co mp o rtamen to d a p lati a. ( ...) O p as to r- ato r, po r mei o de su as p alav ras e ges to s , p ro cu ra in tegrar to do s os p res en tes no p roc es so de exteri o ri za o in teri o ri za o c o leti v a d a f ( Campos , 1997: 94) . Um exemplo da orquestrao do habitus, no mbito desses grupos, ocorre no ritualismo que denomimam guerra espiritual contra o demnio. Concebida como grande responsvel por todos os males, essa figura do mal torna imprescindvel a atuao do lder taumaturgo, capaz de sobrepujar-lhe as aes, cujo carisma estrategicamente demonstrado nos ritos de cura e de exorcismo. Nesses momentos, o templo se transforma em palco da luta do bem contra o mal e o lder pode, ento, demonstrar ao pblico, extasiado, sua autoridade e legitimidade, numa representao de algo que lhe teria sido divinamente concedido. 3 Limites e possibilidades prticas da observao participante A utilizao da observao participante como recurso metodolgico no obstante seus aspectos positivos, por propiciar uma aproximao maior do cotidiano de lderes e fiis pode tambm criar certas dificuldades e limites para o trabalho de campo quando isto envolve, por exemplo, igrejas que no se 22

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mostram favorveis presena de pesquisadores em seu meio. Esse o caso da Igreja Universal do Reino de Deus. Nessa igreja, alm do receio que os fiis tm para conceder entrevistas ou emitir opinies acerca da sua f a terceiros, h certa fiscalizao ou cerceamento2 em relao a quem visita os templos munido de mquinas fotogrficas, gravadores, filmadoras e at mesmo de bloco de anotaes, pois a IURD v com bastante desconfiana a presena de intrusos pesquisadores em seus cultos e reunies, fato esse que exige maior habilidade daquele que deseja fazer observaes participantes em tal ambiente. Neste caso, o pesquisador precisar manter, inevitavelmente, discrio e anonimato. Outro agravante que no haver como fazer compensao por meio entrevistas, devido a quase impossibilidade de acesso cpula iurdiana, por exemplo, para coleta de depoimentos, o que bem pode ser descrito nas palavras de um influente pastor dessa igreja, quando procurado por um pesquisador para tal intento: Sin to mu ito po r n o p od er fazer nada qu anto ao s eu pedid o d e en trev is tas n a Igrej a U niv ers al. Es tamos p roi bid os de d ar entrevi stas ou in fo rma es so b re o no sso trabalh o . Ess a p roi bi o v em d e cima. O bi spo Maced o p roibiu terminantemente qu ai squ er entrevis tas e ele tem o s seu s mo tiv os . Temo s recebid o mu itas p esso as c om s o lici ta es id n tic as; to dos vm c om a mesma c onv ers a , p rometend o qu e v ai s er u m trabalho n eu tro , hon es to , po rm, v oc e to dos s abem, no exi ste n eu tralid ad e. Po r exemp lo , u ma v ez rec ebi em c as a u ma rep rter d a F o lha d e S. Pau lo ; gas tei h o ras co nv ers ando c om ela, e tu do o qu e s aiu pu blic ad o n o c ondi zi a co m a realid ad e. Ns , n a U niv ers al, es tamos c ans ad os d ess e ti po d e tratamen to . Po r is so , in feli zmen te, n o p od eremos d ar ou au to ri zar en trevis tas . H oj e, at a pres en a de2 Outros pesquisadores tm mencionado certas hostilidades, fiscalizao e constrangimentos sofridos em trabalho de campo realizado no mbito da IURD. o caso, por exemplo, de Mnica do Nascimento Barros, como descrito em sua dissertao de Mestrado em Sociologia.

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p es qu isad o res em nos sos temp los , o s ten siv amente ano tand o , gravand o ou fo to grafan do , p od er se en carad a c omo p rov oc a o , e no s ero bem recebi dos p elos o b rei ros . No pos so garan ti r co mo p esso as n ess as ci rcu nstnc ias s ero tratad as . 3 Tal desconfiana para com os pesquisadores se acirrou principalmente quando houve o episdio conhecido como chute na santa.4 A partir dos desdobramentos desse fato, envolvendo uma srie de denncias feitas pela TV Globo em relao s prticas da IURD, a igreja adotou uma postura de no permitir filmagens dos seus cultos, sendo os pastores tambm proibidos de conceder qualquer informao sobre a igreja. Evidentemente, essa prpria recusa dos lderes em se deixar conhecer aos pesquisadores j consiste em elemento a ser metodologicamente considerado no processo investigativo. Alm das dificuldades, anteriormente apresentadas, o mtodo da observao participante tambm tem recebido crticas quanto sua eficincia. Um desses questionamentos reside na afirmao de que quem o utiliza supe j saber o que importante a ser anotado ou observado, como se o pesquisador buscasse to somente a testagem ou comprovao de idias ou aspectos tericos previamente elaborados. Outra dvida suscitada refere-se ao risco de envolvimento demasiado do pesquisador com o seu objeto, o que comprometeria um olhar mais crtico ou um posicionamento mais imparcial que a pesquisa requer, pois o contato direto do pesquisador com o fenmeno observado deve ocorrer sem que haja um demasiado envolvimento daquele (MINAYO, 1999).3 Jos Vasconcelos Cabral diretor-presidente da Grfica Universal, com sede na cidade do Rio de Janeiro - em entrevista concedida a Leonildo Silveira Campos, em julho de 2002 (material disponvel no Centro de Documentao e Pesquisa em Histria Faculdade Teolgica Sul Americana, em Londrina PR.). 4 Srgio Von Helde, bispo da IURD, em 12 de outubro de 1995, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em um programa levado ao ar pela TV Record, sob a alegao de ser esta objeto de idolatria.

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Como contraponto s objees anteriormente assinaladas, pode-se apresentar o fato de que, independentemente do tipo de fonte utilizada para a pesquisa, sempre haver um grau de subjetividade e um direcionamento intencional na investigao a ser feita, pois as prprias fontes escritas ou documentais, tambm esto marcadas pela subjetividade, como afirma com propriedade o historiador Jacques Le Goff: No exis te u m d ocu men to objeti vo , in cu o, p ri mri o . ( ...) O d ocu men to n o qu alqu er co isa qu e fi ca p o r c on ta d o pass ado ; u m p rodu to da s oci ed ad e qu e o fabric ou s egu ndo as rela es d e fo ras qu e deti nham o p od er. S a an lis e do d ocu men to en qu an to monu men to p ermi te mem ri a c o letiv a recu p er- lo e ao his to ri ado r u s-lo ci en ti fic amen te, is to , co m p len o c onhecimen to de c au sa ( Apu d NE T O, 2 00 4: 30) . E, quanto aos direcionamentos ou intencionalidades pelo pesquisador em sua abordagem, preciso ponderar que todo procedimento de pesquisa historiogrfica envolve escolhas: Mas tod a his t ri a esc o lha. -o , at d ev ido ao ac as o qu e aqu i d es tru iu e ali s alv ou o s v es t gi os d o p ass ad o . -o , devid o ao h omem: qu and o os d ocu men tos abu nd am, ele resu me, s impli fic a, p e em d es taqu e is to , ap aga aqu ilo . - o, s obretu do , p o rqu e o his to ri ado r c ri a o s seu s materi ais , ou , s e qu iser, rec ri a- os: o his to ri ado r qu e n o v agu ei a ao acaso p elo p ass ado , co mo u m trap ei ro p rocu ra d e achad os , mas p arte c om u ma in ten o p reci sa, u m p roblema a res olv er, u ma hip tes e de trabalh o a v eri fic ar (Ap ud NE TO, 200 4: 2 8) . Tendo tal conscincia, o trabalho de campo deve ocorrer, pois, na tenso entre uma descrio densa do fenmeno e o cuidado com o necessrio distanciamento do objeto, de modo a garantir maior plausibilidade

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em termos de parmetros epistemolgicos que envolvem a investigao do tema. Vale considerar ainda que a pesquisa atravs da observao participante insere o pesquisador num tempo e num ambiente correspondente sua prpria temporalidade de existncia. No caso historiogrfico, por exemplo, tal procedimento pode ser classificado como histria do tempo presente, considerando que os acontecimentos que a envolvem se do no calor da hora. Isto significa que as fontes e recursos de anlise se produzem simultaneamente ao trabalho do pesquisador, o que poderia, em tese, criar maior instabilidade e impreviso quanto aos resultados da pesquisa. Nesse sentido, investigar movimentos evanglicos contemporneos significa para o pesquisador se inscrever dentro de um perodo de grandes mutaes sociais, culturais e econmicas, com profundas repercusses no campo religioso. Naturalmente, viver em perodos histricos de seu objeto pode representar para o pesquisador vantagens e desvantagens. O principal aspecto positivo est em poder realizar com mais facilidade o que Pierre Bourdieu denomina uma converso do olhar ou uma ruptura epistemolgica (1989: 39). Segundo esse autor, as rpidas mudanas scio-culturais estimulam alguns atores a adquirirem uma viso perspicaz e crtica da prpria sociedade em processo de ebulio, sendo isso um elemento fundamental aos que se dedicam compreenso desse contexto em que esto inseridos: As rupturas epistemolgicas so muitas vezes rupturas sociais, rupturas com as crenas do corpo de profissionais, com o campo de certezas partilhadas que fundamenta a comnunis doctorum opinio - afirma (1989: 39). Em outras palavras, a convivncia com as tenses do campo religioso pode permitir no somente uma melhor proximidade do objeto, mas principalmente a possibilidade de se compreender o fenmeno a partir de novos conceitos que reformulam

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postulados tericos que j no mais conseguem responder s mutaes geradas pelo processo histrico. Sobre essa possibilidade de reempregos ou reformulaes conceituais, na medida em que o objeto requer outros parmetros de anlise, o historiador Eduardo Albuquerque (2003: 66, 67) afirma que o estudioso acadmico da religio sabe que em vrios momentos de sua pesquisa surgem questes que requerem elementos de anlise que rompem fronteiras epistemolgicas, sendo importante, nesse caso, escolher perspectivas de abordagem conforme exigir o objeto e, mesmo assim, em um momento ou segmento da pesquisa. Destaca ainda Albuquerque, que o historiador que toma o fenmeno religioso por objeto pode aumentar a sua compreenso devido a dois pontos centrais: a temporalidade e as variedades do fenmeno religioso no tempo e no espao, e argumenta: Su a c arac ters tic a bsic a qu e o co ntexto his t ric o n o qu al s e ins ere a reli gio es senci al p ara c o mp reen d- la. Da a n ec essi dad e d e c ons tru - lo ou reco ns tru -lo fo rmando u m c onju nto qu e abran ge a ps ico lo gi a s oc ial, a his t ri a s oci al, po l tic a, ec on mi ca etc . (2 003: 65) . E ainda sobre a insero do pesquisador na mesma temporalidade de seu objeto em pesquisa, Albuquerque - em texto no qual procura analisar a distino no campo das disciplinas da histria que tratam da religio, e estabelecer relaes do saber histrico e da religio na constituio do objeto e nas suas relaes metodolgicas - ressalta que, ao tomar a religio por objeto, fundamental que o pesquisador tenha como um de seus objetivos preocupar-se com a insero social da mesma em certo tempo, independentemente do seu recorte cronolgico: Mas s e h algo qu e dis ti n gu e o s aber h is t rico d os ou tros saberes qu e su a pos tu ra d e an co rar27

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s e n o temp o c o mo fu nd amen to d e ond e partem to das as su as anlis es . Sem o temp o n o h his to ri ado r. B rev e ou cu rto e lon go ou mu ito lo n go , s emp re o temp o a bas e n a qu al tod o his to ri ado r s e finc a p ara reali zar suas an lis es (A lbu qu erqu e, 200 3: 57) . Mas a plausibilidade de uma investigao no tempo presente pode ser ainda mais evidenciada, ou fundamentada, nas consideraes feitas pelo historiador Eric Hobsbawm quando apresenta a sua prpria experincia na ateno que dedicou em seus escritos a essa temporalidade historiogrfica: O breve sculo XX quase coincide com meu tempo de vida (...) Falo como algum que atualmente tenta escrever sobre a histria de seu prprio tempo (...) - e acrescenta: toda histria histria contempornea disfarada (Hobsbawm, 1998: 243). Consideraes finais Finalizando, a partir da fundamentao terica e dos apontamentos prticos, anteriormente analisados, possvel apresentar uma sntese quanto s contribuies e aplicabilidade do mtodo da observao participante para pesquisas no campo religioso brasileiro. Primeiro, deve o pesquisador estabelecer cuidadosamente a delimitao ou o recorte do objeto a ser pesquisado, de acordo com a disponibilidade de tempo em que a pesquisa ocorrer, bem como a possibilidade de acesso que ter ao grupo ou movimento a ser estudado, de modo que possa realizar o maior nmero possvel de participao nas atividades que l ocorrem e assim vivenciar mais intensamente o dia-a-dia de seus integrantes. Segundo, mesmo estando aberto para o inesperado, deve o pesquisador elaborar um roteiro de observao com perguntas a serem respondidas ou questes a serem verificadas sobre o seu objeto em estudo. A observao deve

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ser realizada com uma preparao minuciosa, como consulta prvia a arquivos, a livros j publicados sobre o referido assunto etc. Terceiro, inserir-se no mbito do grupo, para que possa vivenciar as representaes que l ocorrem em plena densidade. Participar, o quanto possvel, dos ritos e das prticas que se desenvolvem no interior do movimento, semelhana dos demais adeptos. O antroplogo francs Roger Bastide, por exemplo, que realizou importante estudo sobre as crenas afrobrasileiras, chegou at mesmo a tornar-se adepto de grupos que estudou, na Bahia, para que pudesse com isso se inserir mais profundamente naquele universo cultural-religioso (Bastide, 2006). Quarto, realizar as devidas observaes e fazer imediatamente o relatrio de campo com o registro de todos os dados coletados, transformando-os em documentos escritos, que sero posteriormente catalogados para as devidas consultas e anlises. Cada observao participante supe a abertura de um dossi de documentao (Amado, 2000: 236). Quinto, ao contrrio do trabalho jornalstico, que tem como maior preocupao colher depoimentos e transmiti-los, as pesquisas de cunho acadmico devem problematizar os dados coletados, fazendo-se o devido cruzamento com outros documentos ou conjunto de fontes disponveis sobre o objeto em estudo. Sexto, no pensar a teoria de forma separada da pesquisa emprica. Os conceitos empregados no devem ser construdos para depois serem testados na prtica, como se a teoria precedesse a prtica de uma forma mecnica. Os conceitos devem ser construdos na medida em que a anlise emprica vai criando a necessidade destes. Pierre Bourdieu, por exemplo, investiu contra a diviso artificial entre teoria e pesquisa emprica, mediante a qual alguns pesquisadores cultivam a teoria por si mesma, sem manter uma relao com

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objetos empricos precisos, enquanto outros, inversamente, desenvolvem uma pesquisa emprica sem referncia a questes tericas (Cf. Martins, 2002:165). Stimo, conhecer e inserir-se, o quanto possvel, no habitus do grupo em estudo, para obter maiores incurses no universo que configura o imaginrio de seus respectivos participantes. Dominar, pela vivncia, a linguagem e os cdigos que orientam o comportamento coletivo e atribuem sentido e plausibilidade s experincias que l so observadas. Oitavo, ter conscincia de que o campo religioso lugar de conflitos e tenses promovidas por seus agentes, que nele disputam um capital simblico, fazendo com que se criem para isso estratgias e mecanismos de defesa, no apenas em relao aos demais grupos concorrentes, como tambm queles que desejam pesquis-los, indisponibilizando, para isto, informaes ou resistindo idia de dar-se a conhecer. Em nono lugar, conhecer profundamente a configurao tipolgica do campo religioso, assim como as regras prprias nele existentes e, particularmente, as que regem o grupo a ser pesquisado, com suas respectivas especificidades e caracterizaes. Nesse sentido, pesquisas acadmicas e conhecimentos preliminares a respeito do objeto em estudo podem contribuir com a observao participante a ser realizada. E, por fim, saber que o campo religioso tem como uma de suas regras a manuteno de uma permanente mobilidade decorrente de um processo de apropriao e resignificao, fato este que promove constantes mutaes nos diferentes grupos religiosos nele estabelecidos. Desta forma, utilizar a observao participante como recurso metodolgico para estudo de grupos religiosos significa estar preparado para o novo e para o inusitado, sobretudo por se tratar de um objeto que est vivo no palco de uma histria regida pela temporalidade do presente, que tende, por essa razo, estar suscetvel a um

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processo de maior movimento e impreviso, uma vez que a histria dos deuses segue as flutuaes histricas de seus seguidores (Bourdieu, 1999: 91).

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