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    ARTE OU INDSTRIA ?

    O mais antigo dos lugares comuns sobre o cinema corresponde, no entanto, a uma situao verdadeira.Esta sua dupla natureza coloca um dilema que na realidade falso. No OU, E. Arte e indstria. Emeconomia fundamental estabelecer prioridades, tudo ou. Na poltica, como na vida, as coisas podem terque ser ao mesmo tempo. E agora. Arte, cultura, so os filmes. Cinema so eles passando numa tela para opblico. Sem o qual o fenmeno no se d. O conjunto de atividades e servios que levam at o espectador ,como chamam os americanos, indstria. Uma cadeia econmica em que os elos da produo, distribuio,exibio e difuso nos meios eletrnicos se comportam sistemicamente, como vasos comunicantes. Ao longodo tempo, os cinemas nacionais puderam verificar que era bem mais fcil fazer filmes do que estabelecer umacinematografia. A assimetria caracterstica do mercado cinematogrfico e audiovisual mundial, dividido entreo cinema hegemnico e o resto, induz a considerar longnqua a meta da auto-sustentabilidade. A utopiapossvel, como diz o outro. A no s-lo, joga-se para todo o sempre a indstria e a arte cinematogrfica naintegral dependncia do estado. Cujos governos, como se sabe, mudam. O Brasil, carente de recursos queenfrentem o dficit social secular, estaria sendo negligente e irresponsvel ao no procurar retirar de seuprprio mercado aquela eventual parcela de retorno do investimento estatal. Continuar a sub-explorar osfilmes, tanto nas salas quanto nos mercados ancilares ( vdeo/DVD, televiso aberta e paga, exportao) lesa opas.

    Inegvel a importncia da produo de filmes, longos, curtos, documentrios, qualquer que seja oformato e a modalidade de registro, como forma de expresso individual ou da sociedade. Como o tambmque no s nos filmes autorais, de arte, que ela est presente. A indstria do entretenimento americana,com seus filmes de gnero e suas cantoras sexy parte integrante do ethos nacional e o Departamento deEstado sabe disto h setenta anos. De brinde, oferece o marketing mundial dos produtos e valores dasociedade americana. Valores e hbitos de consumo. No futuro, a garrafa de Coca-cola classic, com seudesign magistral, ser um cone do sculo XX. E por falar em bombonire, as pesquisas demonstram que noBrasil como em Paris, bero do cinema e da cinefilia, 93% das pessoas acorrem s salas, pasmem, para sedivertir. Como o povo no se engana, possvel que a primeira funo social do cinema seja a higiene mental

    da populao. Fornecer-lhe lazer diferenciado melhorar sua qualidade de vida.

    O Brasil possui grande vantagem comparativa sobre muitos outros pases que lutam por um cinemanacional: seu mercado interno. evidente que a perversa concentrao restringe o nmero de salas eespectadores. Tomados em conjunto, os brasileiros vo uma vez ao cinema a cada dois anos. Mas as pesquisasfeitas pelos exibidores confirmam que, na verdade, dez milhes de brasileiros freqentam as salas oito vezespor ano. Rplica cruel da concentrao de renda, a nica vantagem que h espao para crescer. Vriosprodutos de consumo seletivo encontram-se em situao parecida: se no sarem do topo da pirmide socialno criaro escala econmica que os viabilize. irnico imaginar que a redistribuio de renda, imposio de

    justia, ser ditada por uma necessidade mercadolgica do prprio consumo. Para podermos ser bemexplorados indispensvel uma sociedade mais justa e para o bom entendedor meia palavra basta. possvelvislumbrar uma situao de mercado interno que deselitize o consumo cinematogrfico. E enfrente seuprincipal problema que a expanso da base de espectadores, incorporando a classe mdia e as que lhe esto

    abaixo. Enfim, a incluso cinematogrfica, ampla, geral e irrestrita.

    Seguramente os resultados comerciais de um filme, alm de corresponderem a padres de consumo,podem indicar vitalidade social. O espectador comum tambm gente. Isto no significa, porm, que outrotipo de resultado no possa corresponder a outros tipos de filmes. At mesmo porque, grande ou pequeno,todo filme tem seu pblico, uma questo de ach-lo. Sucesso no se d s na contemporaneidade do espao,pode verificar-se ao longo do tempo. Permanncia seguramente a forma mais nobre dele, os gregos que odigam. Um filme pode viajar e encontrar novos pblicos ou um reconhecimento maior, diverso do que teveem sua origem. A qualidade de seu pblico em termos de formao de opinio, de prestgio intelectual eartstico, uma forma de resultado. A imagem que a prpria sociedade e o mundo tem de umacinematografia nacional importa tanto e to preciosa quanto sua insero no universo do consumomassificado. Vide o caso do cinema iraniano. A diversidade de um cinema nacional, sua capacidade deampliar e enriquecer a experincia de vida de quem o assiste so valores intangveis que nem por isso deixam

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    de constituir um bem material. No h como renunciar a um cinema de inveno ou qualidade, por conta darestrio de seu pblico. A circulao da obra entre a alta e a baixa cultura no um fenmeno cristalizado.Cartola ouvia Bach nas igrejas do Rio. Mas o cinema de arte, que pode ir at realizadores de sucesso

    mundial como Woody Allen ou Pedro Almodvar, limitado queles 7% que vo s salas especializadas paraverem filmes espertos. Sua repercusso que o padro de resultados.

    Logo cabem para o cinema brasileiro dois tipos de polticas pblicas, cultural uma, industrial a outra.H pases que as separam, como a Inglaterra. Outros que as juntam, como a Frana. Mas mesmo nela, farolmundial da interveno bem sucedida do estado no cinema, 80% dos recursos de fomento e estmulodestinados produo, exibio e distribuio do filme francs, passam por mecanismos que levam em contaos resultados de mercado. E no h cota de tela que proteja nas salas de exibio os filmes nacionais.

    Resultado de um ano de trabalho do Grupo Executivo de Desenvolvimento da IndstriaCinematogrfica, a proposta de criao da Agncia Nacional do Cinema levou em conta esta dupla realidade.Num desenho institucional triangularmente simtrico deixou a poltica cultural do cinema brasileiro com aSecretaria do Audiovisual, do Ministrio da Cultura e colocou a poltica industrial no Ministrio doDesenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior. Junto Casa Civil da Presidncia da Repblica criou oConselho Superior de Cinema, que rene carter interministerial e representao da sociedade, para aformulao das polticas a serem executadas. Surge agora a perspectiva veleitria de vincular a ANCINE aoMinistrio das Comunicaes, desconhecendo a natureza das atividades de uma e de outro. Este ministriotrata de radiodifuso e telecomunicaes, a includa a telefonia. Ele hardware e no software. J tem umaagncia reguladora, a ANATEL, com perfil definido, que ainda no coloca a questo do contedo nacional.Cuja presena na televiso paga ou na Internet objeto de encarniada disputa entre a principal televisobrasileira e os conglomerados de telecomunicaes internacionais. Trata-se de questo economicamentediversa daquela cinematogrfica. Ao contrrio do que acontece no cinema, a presena do contedo nacionalna televiso aberta muito forte. O problema outro e se situa no mbito do acesso da produoindependente grade de programao. Se o momento de encarar a questo da presena do filme nacional nateleviso paga ou aberta este, ela deve ser conduzida sem a ansiedade (ejaculao precoce) e a histeria(insatisfao permanente) que infelizmente caracterizam a atuao poltica do cinema brasileiro.

    espantoso como antes de conseguir implantar um modelo que tem praticamente meio ano detentativa de funcionamento, com as dificuldades da hora, j se o questiona e se prope um outro, confundindopapel do Estado com o do governo. A tenso na qual vive o cinema brasileiro desde o fim da ditadura militar(epa!) torna compreensvel o atabalhoamento com que ligeiramente so feitas as propostas. A cultura anossa fora e a indstria nossa fraqueza. Por isso a competio, ainda que rdua, com o produto hegemnicose d preferencialmente no campo do mercado e da auto-sustentabilidade. No o cinema brasileiro umarealidade industrial, sua concorrncia com o filme hollywoodiano e a portentosa fora de consumo danovela televisiva que o trazem para este campo. O embate e sua grandeza dado pelo tamanho dosadversrios. A articulao entre a ANCINE , o Ministrio da Cultura e a Presidncia da Repblica regendo ainterface com outras instncias federais como o prprio Ministrio das Comunicaes, o das RelaesExteriores, a Fazenda, entre outros, prope um desenho institucional original e coerente. A vinculao daANCINE ao Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior, insere o cinema e de certa formaa prpria cultura, nas polticas permanentes de competitividade, qualidade, produtividade, estmulo

    exportao, criao e penetrao da marca Brasil. Abre uma perspectiva duradoura, mais alm da fluidez doorganograma federal, que mudando a cada governo novo sinaliza a instabilidade institucional do aparelho deestado brasileiro. O modelo j instalado, desde que no sofra mudanas intempestivas, d a cada agente o seupapel. A Casa Civil faz a poltica, a ANCINE junto ao MDIC a executa e o Ministrio da Cultura desempenhaseu jogo de fomento criatividade, difuso do cinema brasileiro, formao de pblico, preservao esobretudo criao de sua imagem junto sociedade. Uma poltica nacional do cinema, de sua interfacecom o audiovisual, com gesto coerente dos recursos pblicos e potencializao da fora cultural do pas,pode e deve ser tentada. Mais do que nunca ele precisa e merece a contribuio que seu cinema lhe pode dar.

    ________________X_______________Gustavo Dahl cineasta e Diretor-Presidente da Agncia Nacional do Cinema

    Dezembro de 2002