ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO …© du Quebec en Outaouais. Ao Professor Ph.D Thibault...
Transcript of ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO …© du Quebec en Outaouais. Ao Professor Ph.D Thibault...
1
UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP
KAROLINNE SOTOMAYOR AZAMBUJA CANAZILLES
ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO DO SUL, BRASIL
CAMPO GRANDE – MS 2016
2
KAROLINNE SOTOMAYOR AZAMBUJA CANAZILLES
Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional da
Universidade Anhanguera-Uniderp, como
parte dos requisitos para a obtenção do
título de Doutor em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional.
Comitê de Orientação:
Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves
Profa. Dra. Rosemary Matias
CAMPO GRANDE – MS 2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Anhanguera-Uniderp
Canazilles, Karolinne Sotomayor Azambuja.
Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil / Karolinne
Sotomayor Azambuja Canazilles. -- Campo Grande, 2016.
81f. : il. color.
Tese (doutorado) – Universidade Anhanguera-Uniderp, 2016.
“Orientação: Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves. ”
1. Artesanato indígena – Mato Grosso do Sul. 2. Artes gráficas. 3.
Ceramistas Kinikinau. 4. Inovação tecnológica. 5. Políticas públicas.
Título.
CDD 21.ed. 745.5098171
760
C221a
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, que me fortalece todos os dias.
Agradeço também ao Igor, meu companheiro amado, e à nossa filha Nickole,
que é o principal motivo de todas as nossas conquistas. Aos meus pais, à
minha tia Stella, à minha avó Eva, às minhas irmãs, Jackelinne e Katiuscia, e
aos meus familiares pelo incentivo afetuoso.
Ao meu querido Professor e orientador Dr. Gilberto Luiz Alves, grande
amigo, que me passou conhecimentos valorosos nesses cinco anos e meio,
entre mestrado e doutorado. À minha coorientadora e amiga Professora Dra.
Rosemary Matias, pelo encorajamento, pelo carinho e pela orientação zelosa.
Ao Prof. Dr. Sandino Hoff, à Profa. Dra. Silvia Helena Andrade de Brito, ao
Prof. Dr. José Francisco Ferrari, à Profa. Dra. Samira Saad Pulchério Lancillotti
e à Profa. Dra. Lucia Elvira Alicia Raffo de Mascaró por todas as consideráveis
contribuições dadas a este trabalho durante a qualificação e a defesa.
À Professora Ph.D Charmain Levy, pelas orientações relevantes durante
o período de estágio sanduíche no Canadá e pelo recebimento acolhedor na
Université du Quebec en Outaouais. Ao Professor Ph.D Thibault Martin pelas
contribuições significativas dadas à tese durante o congresso realizado na
Université du Québec à Rimouski. Aos Professores e colegas que também
colaboraram indiretamente com este trabalho durante o congresso ocorrido na
Carleton University, em Ottawa. À artista indígena Mohawak, Natasha Smoke
Santiago e toda a sua família, por nos receberam com tanto apreço em sua
residência em Fort Covington, NY. Aos indígenas norte-americanos
entrevistados nos centros culturais que visitei. Aos amigos que fiz no decorrer
dessa trajetória.
À Universidade Anhanguera Uniderp, aos Professores Doutores, aos
colegas e aos funcionários do Programa de Pós-graduação. À Capes pela
concessão da Bolsa de estudos no Brasil e no exterior. À Funarte pelo
incentivo na realização do projeto Moté Ypoti Kinikinau: por um fortalecimento
étnico aprovado em 2013. À Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural
do Minc pelo Prêmio Pontos de Cultura Indígena em 2015. Ao Rodrigo Gomes
dos Santos, coordenador da Funai de Bonito-MS, e a toda a equipe da
FUNASA. À grande artista e amiga Agueda Roberto e toda a sua família, pela
hospitalidade, pelo imenso carinho e pela troca de informações preciosas.
5
SUMÁRIO 1. Resumo Geral................................................................................................6
2. General Summary..........................................................................................7
3. Introdução Geral............................................................................................8
4. Revisão de Literatura..................................................................................12
5. Referências Bibliográficas.........................................................................18
6. Artigos Artigo I..............................................................................................................24
O artesanato como instrumento de identidade étnica: o caso dos Kinikinau de Mato Grosso do Sul, Brasil......................................................24 Resumo............................................................................................................24 Abstract............................................................................................................25 Introdução................................................................................................. .......25
Procedimentos Metodológicos......................................................................27
Resultados e Discussão.................................................................................29
Conclusão........................................................................................................45
Referências Bibliográficas.............................................................................46
Artigo II.............................................................................................................50 Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil.............................50 Resumo............................................................................................................50 Abstract............................................................................................................50 Introdução........................................................................................................51
Procedimentos Metodológicos......................................................................54
Resultados e Discussão.................................................................................56
Conclusão....................................................................................................... .73
Referências Bibliográficas.............................................................................75
7. Conclusão Geral..........................................................................................80
6
1. Resumo Geral
Os Kinikinau foram considerados “extintos” e sofreram um período de
invisibilidade por quase um século. Sua resistência influenciou na busca por
tradições esquecidas que resultou na “reinvenção” do artesanato. Este, na
condição de mercadoria, tornou-se instrumento de identidade étnica e na
atualidade vem apresentando valorosas expressões estéticas. Assim, este
trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul. Integra a linha de pesquisa Sociedade, Ambiente e Desenvolvimento Regional
Sustentável. O objetivo geral deste estudo é discutir a relação da cerâmica
Kinikinau produzida na atualidade com o caráter de objeto artístico, envolvendo
também seus aspectos sociais, econômicos e políticos. Para isso, o primeiro
objetivo específico procura explicar como e por que o artesanato Kinikinau
contribui para a afirmação da identidade do grupo e qual sua relação com o
mercado, bem como sua relação com projetos de inovação instaurados pelo
Estado por meio de políticas públicas. O segundo objetivo específico é analisar
a relação da cerâmica Kinikinau com o elemento formal que a configura como
objeto de arte. As fontes empíricas utilizadas foram levantamentos a campo,
observação sistemática, registros fotográficos, entrevistas semiestruturadas,
além de fontes documentais e fontes historiográficas. Conclui-se que o
mercado é determinante na luta pela afirmação da identidade étnica Kinikinau
porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade capitalista. Porém, as
condições para o escoamento desse artesanato revelam, contraditoriamente,
um grande número de limitações à sua comercialização e apesar de existirem
alguns esforços pontuais, as políticas públicas voltadas a projetos de melhoria
referentes ao processo de produção e comercialização da cultura material
Kinikinau ainda são inexistentes. Também verificou-se que a arte indígena
Kinikinau se manifesta em três diferentes momentos. Quando comunidade
primitiva, no momento do ostracismo e hoje, na perspectiva do mercado. É
nesta última que o artesanato Kinikinau ganha status de arte, e, devido a
ascendência de um valor tipicamente burguês, a individualidade do artista
indígena começa a ser reconhecida.
Palavras-chave: Artesanato indígena, Artes gráficas, Inovação tecnológica,
Políticas públicas.
7
2. General Summary
The Kinikinau were considered "extinguished" and suffered a period of
invisibility for almost a century. Its strength influenced the search for forgotten
traditions that resulted in the "reinvention" of the handicraft. This, like
merchandise, became ethnic identity tool and today is showing valuable
aesthetic expressions. This work is engaged in the Kinikinau indigenous art in
Mato Grosso do Sul. It involves researches of Society, Environment and
Sustainable Regional Development. The aim of this study is to discuss the
relationship of Kinikinau ceramics produced today with their artistic character,
involving their social, economic and political aspects. For this, the first specific
objective seeks to explain how and why the Kinikinau handicrafts contributes to
the group's identity statement and what is its relationship with the market and its
relationship with innovation projects performed by the State through public
policies. The second specific objective is to analyze the relationship of Kinikinau
ceramic with the formal element that sets up it as an object of art. Empirical
sources like surveying the field, systematic observation, photographic records,
semi-structured interviews, and documentary sources and historiographical
sources were used. It concludes that the market is decisive in the struggle for
the affirmation of ethnic identity Kinikinau because it gives visibility to the group
in the capitalist society. However, the conditions for the marketing of this
handicraft , contradictorily, show a large number of restrictions on their
marketing and although there are some specific efforts, public policies aimed at
improvement projects for the production process and marketing of Kinikinau
material culture are still inexistent. Also it has been found that indigenous art
Kinikinau manifests itself in three different moments. When primitive community
at the time of ostracism and today, in the market prospect. In this last, Kinikinau
handicrafts wins art status, and because of the ascendancy of a typically
bourgeois value, the individuality of the indigenous artist begins to be
recognized.
Keywords: Indian handicrafts, Graphics arts, Tecnologic innovation, Public
policy.
8
3. Introdução Geral
O artesanato indígena ou ancestral (ALVES, 2014) está representado no
estado pelas produções das etnias Kadiwéu (GRAZIATO, 2008; KOMIYAMA,
2014), Kinikinau1 (SANTOS, 2011; CANAZILLES, 2013), Terena (CHAVES,
2015), Guarani (MOTA, 2011; MARQUES, 2016) e Guató (BORTOLOTTO e
GUARIM NETO, 2005). Este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau
em Mato Grosso do Sul.
Os Kinikinau foram considerados “extintos” (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO,
1986) por quase um século e, durante todo esse tempo de invisibilidade, foram
obrigados a se registrar como Terena (SILVA, 2007; SOUZA, 2008),
silenciando sua própria identidade. Na atualidade, vivendo em território alheio,
buscam reconhecimento oficial e lutam pela reconquista de seus territórios
tradicionais.
O artesanato Kinikinau, principalmente a cerâmica, torna-se uma
ferramenta importante para auxiliar na busca pelo fortalecimento étnico. Por
meio desse instrumento, os Kinikinau podem ganhar visibilidade no processo
de reemergência desse grupo no atual cenário étnico sul-mato-grossense.
Apesar da cerâmica Kinikinau dar continuidade a uma antiga tradição
cultural Guaná, suas ornamentações produzidas na atualidade não são
inerentes às expressões dos elementos culturais dos antepassados Kinikinau,
mas são uma “reinvenção” das mulheres e homens dessa etnia, devido ao que
Giovani José da Silva e José Luiz de Souza denominam como “vontade de
diferença” (SILVA e SOUZA, 2008).
Dentre os artesãos Kinikinau que se destacam, está Agueda Roberto. A
artesã indígena detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o
processo de produção da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas
peças manifestações de ordem estética que estão ligadas à “vontade de
beleza” (RIBEIRO, 1980). Ela dedica muitas horas às suas ornamentações. O
1 Durante o Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência”, realizado na cidade de Bonito – MS, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004, foi redigida a Carta de Bonito, que estabelece que o etnônimo do grupo passa a ser Kinikinau, com base em documentação histórica.
9
artesanato de Agueda Roberto, por seu valor artístico, tem grande potencial de
consumo no mercado.
Com base nestas informações e com intuito de dar continuidade aos
estudos já desenvolvidos com a cultura material Kinikinau, o objetivo geral
desta pesquisa é analisar a relação da cerâmica Kinikinau produzida na
atualidade com o caráter de objeto artístico que se define, segundo BOAS
(1947), pela presença de um elemento formal que se manifesta, nas artes
gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da acentuação
da forma. Isso implica analisar também seus aspectos sociais, econômicos e
políticos, que a definem como instrumento de identidade étnica do grupo
(CANAZILLES, 2015).
Para isso, o primeiro objetivo específico é analisar o artesanato Kinikinau
em Mato Grosso do Sul dentro de um contexto sócioeconômico. Procura
explicar como e porque ele contribui para a afirmação da identidade do grupo
indígena e qual o papel do escoamento desse artesanato no mercado, bem
como sua relação com projetos de inovação e melhoria referentes ao processo
de produção e comercialização da cultura material indígena instaurados pela
instância provedora de políticas públicas, o Estado.
O segundo objetivo específico se propõe a analisar a cerâmica
confeccionada por uma das artesãs da aldeia, Agueda Roberto, por meio do
estudo de suas modelagens e ornamentações. Essa pesquisa possibilita
identificar o elemento formal intrínseco das artes gráficas e plásticas que a
qualifica como objeto de arte. Permite também averiguar características
singulares como originalidade, exigência do campo artístico e manifestações de
ordem estéticas ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que
proporcionam um significado único e diferente para cada peça.
Análises de obras relevantes que conceituam e exploram as categorias
centrais da pesquisa, como identidade étnica (BARTH, 1995), mercado
(ALVES, 2015), artesanato (ALVES, 2014) e arte (BOAS, 1947; RIBEIRO,
1980; RIBEIRO, 1989; VIDAL, 1992; OCVIRK et al., 2014), asseguraram
suporte teórico para discutir o objeto de estudo. Obras de outros autores
(OLIVEIRA, 1976; PEIXOTO e SCHMITZ, 1998; SILVA e SOUZA, 2008;
ALBUQUERQUE SOUZA, 2009; SOUZA, 2009; SANTOS, 2011; CANAZILLES,
10
2013) também foram importantes para contextualizar e levantar informações
sobre o objeto.
Dentre essas fontes teóricas, nortearam a análise os estudos
antropológicos de BARTH (1995), sobre a natureza das fronteiras existentes
entre os diferentes grupos étnicos, os estudos de ALVES (2015), que
possibilitaram uma compreensão do mercado do artesanato indígena em Mato
Grosso do Sul, e a obra de BOAS (1947), que permitiu identificar no artesanato
Kinikinau o elemento formal existente nas artes gráficas e plásticas.
Os estudos teóricos de SILVA e SOUZA (2008) sobre o movimento
político dos Kinikinau em direção à sua reemergência contribuíram para obter
informações relevantes sobre o objeto e para a sua contextualização, bem
como as fontes secundárias que tratam da produção e comercialização do
artesanato indígena Kinikinau na região (CANAZILLES et al., 2015).
Quanto ao levantamento de fontes primárias, os dados empíricos
englobaram observações sistemáticas, registros fotográficos e entrevistas
semiestruturadas com comerciantes e artesãos, por meio de visitas a diferentes
postos de troca da cidade de Bonito, bem como levantamentos a campo na
Reserva indígena Kadiwéu, aldeia São João, em Porto Murtinho. As Entrevistas semiestruturadas realizadas na aldeia deram-se com a
Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa, Agueda
Roberto. Os questionamentos principais das entrevistas levaram em
consideração os aspectos relacionados ao escoamento da produção das
artesãs para o mercado e as características do processo de modelagem,
ornamentação e acabamento da cerâmica Kinikinau.
Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve
análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade
Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se
tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este
trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer
Consubstanciado nº 780.523. Todos os entrevistados receberam o TCLE -
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com os objetivos da pesquisa
expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.
11
É relevante elucidar que os estudos e projetos voltados à população
indígena Kinikinau são ainda incipientes. Eles abordam a história, a educação
escolar, os aspectos etnolingüísticos, a resistência desse grupo quando da
suposta “extinção” e a produção e comercialização de seu artesanato (SILVA e
SOUZA, 2003; VILHALVA, 2004; COUTO, 2006; SOUZA, 2008;
ALBUQUERQUE SOUZA, 2009; SANTOS, 2011; CASTRO, 2011;
CANAZILLES, 2013).
O assunto a ser discutido neste estudo se diferencia por tratar o
artesanato Kinikinau na sua dupla condição de mercadoria, bem como de
instrumento de identidade étnica. O seu valor de troca, associado na atualidade
também à sua condição de objeto artístico, é determinante para entender a sua
presença no mercado da sociedade capitalista. O seu significado, determinado
pelo próprio grupo, como um instrumento de identidade étnica, passa a auxiliar
na afirmação da etnia. Esses elementos, em conjunto com uma reflexão da
atuação do Estado, são relevantes para favorecer o fortalecimento da produção
e comercialização do artesanato Kinikinau.
É importante informar que, devido a um estágio de pesquisa realizado
entre os anos de 2014-2015 no Programa de Doutorado em Ciências Sociais
Aplicadas da Université du Quebéc en Outaouais, houve modificações no
projeto original. Ao discutirmos o artesanato Kinikinau como instrumento de
afirmação da identidade étnica do grupo, foi acrescentada à tese uma análise
teórica da obra clássica de BARTH (1995), desenvolvida no Canadá sob a co-
orientação da Professora Ph.D. Charmain Levy. No entanto, foram também
suprimidos alguns componentes que, por sua relevância, serão desenvolvidos
posteriormente como parte integrante de um projeto de inovação tecnológica
ao artesanato indígena do estado. Esses componentes englobam análises
laboratoriais da composição química dos pigmentos vegetais utilizados no
processo de ornamentação, identificação fitoquímica e fisico-química das
estruturas envolvidas na produção da cerâmica e a caracterização desta
envolvendo fichas catalográficas e registros fotográficos.
O projeto denominado “Artesanato indígena, mudanças e inovações
tecnológicas em Mato Grosso do Sul” será desenvolvido em conjunto pelas
Universidades Anhanguera-Uniderp, Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul e Universidade de Manitoba, Canadá. Contarão com o apoio da Fundect –
12
Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do
Estado de Mato Grosso do Sul, da FCMS - Fundação de Cultura de Mato
Grosso do Sul, da Secretaria de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e
Inovação de Mato Grosso do Sul e do Canadian Consortium for Performance
and Politics, Canadá.
4. Revisão de Literatura Primeiramente, para introduzir este trabalho, foi fundamental relatar uma
breve trajetória histórica da etnia Kinikinau. Para isso o artigo de CANAZILLES
et al. (2013), intitulado “Os Kinikinau: trajetória histórica e a reinvenção do
artesanato”, esclareceu aspectos da origem da etnia, seu desaldeamento, a
suposta “extinção” étnica, o reagrupamento de seus membros na Reserva
Indígena Kadiwéu e os aspectos da mobilização política associados à
reivindicação de etnicidade própria.
Analisou-se também a dissertação de Mestrado do biólogo e indígena
Kinikinau Rosaldo de Albuquerque Souza, “Sustentabilidade e Processos de
Reconstrução Identitária entre o Povo Indígena Kinikinau (Koinukunôen) em
Mato Grosso do Sul” (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012), a qual está
fundamentada na memória de anciãos Kinikinau, que abordam a trajetória
histórica ocorrida entre as décadas de 1920 a 1940, e de outros entrevistados
que descrevem também as manifestações culturais da etnia incorporadas na
atualidade, como a dança, a produção do artesanato e a extração do mel.
Para José da Silva e Souza, “a força da identidade étnica Kinikinau está
expressa e impressa na produção de cerâmicas. [...] há entre os Kinikinau toda
a força identitária da diferenciação, uma verdadeira ‘vontade de diferença’”
(SILVA e SOUZA, 2008, p.30). Acentue-se que a “reinvenção” do artesanato
Kinikinau, na atualidade, é uma evidência da necessidade de autoafirmação
desse grupo étnico, que, ao mesmo tempo, supera a confusão que os
identificou, no passado, com a etnia Terena.
Estudos e conceitos teóricos que envolvem categorias como identidade
étnica, mercado, artesanato e arte asseguraram suporte para discutir a arte
indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul. A obra denominada “Les groupes
ethniques et leurs frontières” (BARTH, 1995) sobre o processo de constituição
dos grupos étnicos e a natureza das fronteiras existentes entre eles foi
13
extremamente relevante porque discute a manutenção das fronteiras sociais
para a preservação da identidade étnica de um grupo.
Segundo o autor as fronteiras sociais estabelecem, por meio da
existência de critérios de avaliação e de julgamento, se uma pessoa pertence a
um determinado grupo étnico ou não. Elas implicam, também, uma
organização do comportamento e das relações sociais. BARTH (1995), afirma
que “as diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnico e da
interdependência entre etnias”, devido a existência dessas fronteiras.
Seus estudos podem explicar porque diferentes etnias preservaram suas
identidades mesmo passando por processos de aculturação. O foco de análise
da obra de Fredrik Barth evidenciou a afirmação da etnia Kinikinau por meio do
artesanato e esclareceu a razão pela qual o grupo manteve sua identidade
étnica, apesar do grande período de invisibilidade quando foram identificados
como Terena.
Os estudos de ALVES (2015), igualmente relevantes, possibilitaram uma
análise mais aprofundada do papel do escoamento do artesanato Kinikinau no
mercado. Para o autor a afirmação da identidade étnica por meio do artesanato
é essencial ao movimento político organizado pela etnia, porém ela está
subordinada ao mercado, elemento definidor da sociedade capitalista.
ALVES (2015) afirma categoricamente que o mercado foi determinante
para a sobrevivência da cerâmica das diferentes etnias de Mato Grosso do Sul,
inclusive do emergente artesanato Kinikinau que já nasceu sob o signo da
mercadoria. “Sob essa forma, se igualam. Só na condição de mercadorias
puderam superar a crise de meados do século XX e só nessa condição sua
reprodução tornou-se viável” (ALVES, 2015, p.18).
Segundo o autor, a partir da década de 1970 houve uma intensificação
no consumo dos artefatos indígenas, no Estado, por determinação do mercado
turístico, de pesca, inicialmente, e do ecoturismo, em seguida. O autor também
discute as mudanças ocorridas no artesanato indígena produzido em Mato
Grosso do Sul, como decorrência de demandas também geradas pelo
mercado.
No trabalho “O artesanato em Mato Grosso do Sul: análise centrada na
organização técnica do trabalho” ALVES (2014), conceitua e esclarece o
significado de artesanato. Para ele, o artesão tem o domínio teórico-prático de
14
todas as operações técnicas necessárias à produção do objeto artesanal e se
configura como um trabalhador qualificado. Logo, o artesanato se contrapõe à
manufatura, que introduz a divisão do trabalho, expropriando o trabalhador de
muitas das habilidades do processo de trabalho como um todo. O trabalhador
deixa de ser qualificado para se transformar em especialista. Ainda observa
que muitas atividades “artesanais”, na atualidade, incorporaram a organização
técnica manufatureira e não podem se configurar mais como artesanato. Essa
organização técnica manifestada entre os “artesãos” está relacionada ao que
ele denomina como a ideologia do empreendedorismo, disseminada por muitas
instituições sociais. A visão empreendedora passa a considerar o artesanato
como um negócio. A manufatura foi a maneira encontrada por essas
instituições de ajustar o “artesanato” às exigências do mercado.
O autor também constrói uma visão geral das diferentes modalidades de
artesanato no Estado, classificando-as em artesanato ancestral, espontâneo e
induzido. O artesanato indígena está compreendido na modalidade ancestral
porque é um artesanato “de caráter coletivo. As atividades artesanais
correspondentes tendem a reiterar, no geral, os procedimentos, as técnicas, a
utilização de recursos naturais e a divisão sexual do trabalho praticados por
gerações anteriores” (ALVES, 2014, p.5-6). Essa condição não elimina a
possibilidade de que se torne objeto de arte.
Para compreender o elemento formal existente nas artes gráficas e
plásticas a obra de Franz Boas “El Arte Primitivo” (BOAS, 1947) foi de extrema
importância. Considerada um clássico na análise das características
fundamentais da arte primitiva, determina as circunstâncias dinâmicas em que
surgem os estilos de arte. Ela examina o valor estético de uma obra de arte e
relaciona sua perfeição formal ao grau de excelência proporcionado pelo
tratamento técnico em conjunto com o sentimento de beleza. Franz Boas
também verifica que os ornamentos de muitas etnias, que nos parecem
puramente formais, estão associados a inúmeros significados. Esse
simbolismo, segundo o autor, é encontrado por STEINEN (1886) nos padrões
geométricos dos índios do Brasil, padrões que representam a flora e diferentes
animais da fauna brasileira. Nessa obra também são elucidados os princípios
com os quais podem ser descritos os estilos de arte distintos, além de tratar de
15
produções artísticas que envolvem literatura, música e dança de povos
primitivos que possuem pouca ou nenhuma cultura material.
Também foram muito importantes as obras do antropólogo Darcy
Ribeiro, a exemplo de “Kadiwéu – ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e
a beleza” (RIBEIRO, 1980) para efeito comparativo, já que na cerâmica
Kinikinau percebe-se influência da ornamentação Kadiwéu, principalmente
pelos motivos utilizados, como espirais, curvas, contra-curvas, losangos,
triângulos e degraus intercalados. Além disso, como a Kinikinau, a cerâmica
Kadiwéu também é considerada frágil. O autor aponta essa fragilidade em
relação à cerâmica Terena, principalmente quanto à técnica de fabricação e
questiona a utilização pelos Kadiwéu de uma técnica oleira tão pobre se
contrapondo com uma arte ornamental tão complexa. Segundo ele, essas duas
técnicas não teriam se desenvolvido em um mesmo espaço temporal.
Darcy Ribeiro define o sentimento estético presente na arte indígena
Kadiwéu como “vontade de beleza”. A arte extremamente elaborada da
cerâmica, provavelmente foi transposta da ornamentação corporal dos
cavaleiros guerreiros e é uma técnica muito mais antiga do que a da fabricação
oleira. A incorporação da ornamentação na cerâmica provém do ingresso de
prisioneiros de guerra entre o grupo étnico e da introdução do trabalho servil
que possibilitou que as mulheres de casta superior gozassem de tempo
disponível para desenvolvê-la e praticá-la (RIBEIRO, 1980).
Muitos estudiosos supõem que os Kadiwéu (Mbayá-guaicuru)
aprenderam o ofício da técnica oleira com os ancestrais dos Kinikinau e Terena
(Guaná). Essa conclusão decorre do fato de que, durante a fase nômade dos
‘Cadiguegodi’ (Kadiwéu), não se tem registro da produção de cerâmica. “A
cerâmica, [...] está intimamente associada à domesticação das plantas e à vida
sedentária” (RIBEIRO, 1989, p. 46).
As pesquisas da etnóloga SUSNIK (1978) também evidenciam que os
Kadiwéu assimilaram a arte da cerâmica com os Guaná, ancestrais dos atuais
Kinikinau, Terena e Layana, pela proximidade entre as aldeias, gerando uma
convivência intercambial.
“[...] as aldeias dos ‘Cadiguegodi’ [Kadiwéu] não tinham
locação separada das aldeias Guaná; a plantação, [...] e o
16
lote apto para o pastoreio de cavalos [...] se uniam; no
habitat ‘Cadiguegodi’ se intercambiavam as ‘dimi’ (casa
grande de esteiras) com as ‘peti’ (casas comunais) Guaná.
Esta estreita convivência local contribuiu para uma maior
‘guana-ização’ dos elementos culturais dos ‘Cadiguegodi’
que se transformaram posteriormente em excelentes
ceramistas e bons tecedores” (SUSNIK, 1978, p.11-12).
Acredita-se que os artefatos cerâmicos só começaram a ser produzidos
quando os Mbayá-guaicuru ou ‘Cadiguegodis’ se fixaram em aldeias, conforme
registros do padre jesuíta SANCHEZ LABRADOR (1911), que conviveu com
essa população no século XVIII no período de 1766 a 1767. Portanto, a técnica
oleira Kadiwéu é mais recente e menos habilidosa que a técnica ornamental.
Na obra da etnóloga Branislava Susnik, “Etnografia Paraguaya”
(SUSNIK, 1978), como já visto, é evidenciada essa origem da produção da
cerâmica Kadiwéu influenciada pelo intercâmbio cultural existente no passado
entre as diversas etnias indígenas. Intercâmbio perceptível, ainda hoje, na
produção do artesanato indígena de Mato Grosso do Sul, inclusive da cerâmica
Kinikinau.
Esse intercâmbio artístico entre as etnias interferiu também na produção
atual das cerâmicas Terena e Kadiwéu, que cada vez mais modificam a forma
(zoomorfismo, cinzeiros, porta-lápis) e incorporam materiais novos em seu
artesanato. Esse emprego de novos materiais na produção de cerâmica
demonstra que “apesar de todos estes percalços e em virtude deles, a antiga
tradição Kadiwéu sobrevive pelo único modo possível, que é alterando-se
continuamente” (RIBEIRO, 1980, p.8). Essa alteridade cultural contínua não
vale apenas para os Kadiwéu, mas para todas as etnias indígenas.
A obra de RIBEIRO (1989) denominada “Arte indígena, linguagem
visual” verifica a importância da arte em todas as esferas da vida do indígena
brasileiro.
“A casa, a disposição espacial da aldeia, os utensílios de
provimento da subsistência, os meios de transporte, os
objetos de uso cotidiano e, principalmente, os de cunho
ritual estão embebidos de uma vontade de beleza e de
17
expressão simbólica. Estas características transparecem
quando se observa que o índio emprega mais esforço e
mais tempo na produção de seus artefatos que o
necessário aos fins utilitários a que se destinam; e quando
passa horas a fio ocupado na ornamentação e
simbolização do próprio corpo. Neste sentido, a arte
indígena reflete um desejo de fruição estética e de
comunicação de uma linguagem visual” (RIBEIRO, 1989,
p.13).
VIDAL (1992), em um estudo voltado à antropologia estética: “Grafismo
Indígena: estudos de antropologia estética” afirma que,
“O homem ocidental tende a julgar as artes dos povos
indígenas como se pertencessem à ordem estática de um
Éden perdido. Dessa forma, deixa de captar, usufruir e
incluir no contexto das artes contemporâneas, em pé de
igualdade, manifestações estéticas de grande beleza e
profundo significado humano. [...] decididos a continuar
como índios, [eles] ainda criam e sempre recriam
importantes obras de arte dotadas de notável
especificidade histórica e cultural” (VIDAL, 1992, p.13).
De acordo com Darcy Ribeiro e Franz Boas, nem todo artesanato
indígena pode ser considerado arte. Para os autores as produções indígenas
que podem ser cogitadas como objetos artísticos são “aquelas entre todas que
alcançam tão alto grau de rigor formal e de beleza que se destacam das
demais como objetos dotados de valor estético” (RIBEIRO, 1987, p.29) e que
apresentam um elemento formal que se manifesta, nas artes gráficas e
plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da acentuação da forma
(BOAS, 1947). Logo evidencia-se que apenas certos tipos de artesanato
indígena, ou melhor, somente algumas peças podem ser elevadas à condição
de obra de arte. Segundo ALVES (2014), objetos artísticos apresentam
características singulares em sua concepção como originalidade, vontade de
18
beleza e busca de apuramento técnico, portanto, cada exemplar é único
tornando-se impossível de ser dissociado de seu criador.
5. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. O Povo Kinikinau e sua trajetória ao ensino
superior. In: SEMINÁRIO POVOS INDÍGENAS E SUSTENTABILIDADE:
SABERES LOCAIS, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA, 3, 2009, Campo Grande.
Resumos... Campo Grande: UCDB, 2009. p. 90, ref. 3.
ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. Sustentabilidade e processos de reconstrução identitária entre o povo indígena Kinikinau (Koinukunôen) em Mato Grosso do Sul. 2012. 61f. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Sustentável) - Centro de Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília, Brasília.
ALVES, G. L. Arte, artesanato e desenvolvimento regional: temas sul-mato-grossenses. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2014. 104p.
ALVES, G. L. Utensílio, objeto de arte e mercadoria: trânsitos do artesanato cerâmico indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil. Relatorio de
pesquisa. Campo Grande: Universidade Anhanguera – Uniderp, 2015. 22p.
BARTH, F. Les groupes ethniques et leurs frontières. In: POUTIGNAT, P.;
STREIFF-FENART, J. Théories de l’ethnicité. Paris: PUF, 1995. 270p.
.
BOAS, F. El Arte Primitivo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1947.
367p.
BORTOLOTTO, I. M.; GUARIM NETO, G. O uso do camalote, Eichhornia
crassipes (Mart.) Solms, Pontederiaceae, para confecção de artesanato no
Distrito de Albuquerque, Corumbá, MS, Brasil. Acta Botanica Brasilica, Feira
de Santana, v. 19, n. 2, p. 331-337, 2005.
19
CANAZILLES, K. S. A. A produção e a comercialização do artesanato Kinikinau em Mato Grosso do Sul. 2013. 98f. Dissertação (Mestrado em Meio
ambiente e Desenvolvimento Regional) - Universidade Anhanguera Uniderp,
Campo Grande.
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Os Kinikinau: trajetória
histórica e a reinvenção do artesanato. Albuquerque Revista de História da UFMS, Campo Grande, v. 5, n. 10, p. 99-120, 2013.
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Comercialização do
artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul,
Brasil. Pasos - Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, Santa Cruz de
Tenerife, v. 13, n. 5, p. 1171-1182, 2015.
CANAZILLES, K. S. A. L’artisanat comme instrument de l’identité ethnique: le
cas de Kinikinau au Mato Grosso do Sul, Brésil. In: CONGRÈS DE L’ACFAS:
DÉCONSTRUCTION DE LA DOMINATION TEXTUELLE DES
AUTOCHTONES, 83, 2015, Rimouski. Resumos... Rimouski: ACFAS, 2015,
p.9. Disponível em: < http://www.acfas.ca/evenements/congres/programme /83
/300/319/C>. Acesso em: 18 jun 2015.
CASTRO, I. Q de. De Chané-Guaná a Kinikinau: da construção da etnia ao embate ente o desaparecimento e a persistência. 2011. 347f. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
CHAVES, F. A. A produção da cerâmica Terena da aldeia Cachoeirinha em Miranda, MS. 2015. 95f. Dissertação (Mestrado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional) – Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Regional, Universidade Anhanguera-Uniderp, Campo
Grande.
20
COUTO, V. G. de C. A língua kinikinau: estudo do vocabulário e conceitos gramaticais. 2006. 206f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas.
GRAZIATO. V. P. P. Cerâmica Kadiwéu processos, transformações, traduções: uma leitura do percurso da cerâmica Kadiwéu do século XIX ao XXI. 2008. 113 f. Dissertação (Mestrado em Poéticas Visuais) - Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
KOMIYAMA, C. B. P. A comercialização de cerâmica Kadiwéu em Campo Grande (MS). 2014. 51f. Dissertação (Mestrado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional) – Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Regional, Universidade Anhanguera-Uniderp, Campo
Grande.
MARQUES, L. R. R. A produção e comercialização do artesanato Guarani no município de Dourados-MS. 2016. 89f. Dissertação (Mestrado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento Regional) – Programa de Pós-graduação em
Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, Universidade Anhanguera-
Uniderp, Campo Grande.
MATO GROSSO DO SUL. Projeto de lei nº 195/14, de dezembro de 2014.
Institui o Plano Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul de 2014. Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 16
dez. 2014.
MOTA, J. G. B. Territórios e territorialidades Guarani e Kaiowa: da territorialização precária na reserva indígena de dourados à multiterritorialidade. 2011. 406f. Dissertação (Mestrado em geografia) –
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande
Dourados, Dourados.
21
OCVIRK, O. T.; STINSON, R. E.; WIGG, P. R.; BONE, R. O.; CAYTON, D. L.
Fundamentos de arte: teoria e prática. New York: AMGH Editora Ltda, 2014.
328p.
OLIVEIRA, R. C. de. Do índio ao bugre. São Paulo: Francisco Alves, 1976.
149p.
PEIXOTO, J. L. S.; SCHMITZ, P. I. A Missão Nossa Senhora do Bom
Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul. Revista Pesquisas História, São
Leopoldo, n.30, p.133-155, 1998.
RIBEIRO, B. G. Artesanato Indígena: para quê, para quêm? In: RIBEIRO, B.
(Org.). O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1984. 253p.
RIBEIRO, B. G. Suma Etnológica Brasileira III: arte índia. Petrópolis: Vozes,
1987. 300p.
RIBEIRO, B. G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1989. 186p.
RIBEIRO, D. Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza. Petrópolis: Vozes, 1980. 318p.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Petrópolis: Vozes Ltda, 1986. 510p.
SANCHEZ LABRADOR, J. El Paraguay católico. Journal de la Société des Américanistes, Buenos Aires, v. 8, n. 1, p. 339-340, 2011.
SANTOS, L. G. dos. Cerâmica Kinikinau: a arte de um povo tido como extinto. 2011. 124f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Grande Dourados, Dourados.
22
SILVA, G. J. da. Ressurgidos, emergentes, resistentes: reflexões sobre as
presenças indígenas Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In:
SEMANA DE HISTÓRIA, 5, 2007, Três Lagoas. Anais... Três Lagoas: UFMS,
2007. 426p.
SILVA, G.; SOUZA, J. L. de. O despertar da fênix: a educação escolar como
espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do Sul.
Revista Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 149-156, 2003.
SILVA, G.; SOUZA, J. L. de. História, etnicidade e cultura em fronteiras: os
Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In: ROCHA, L. M.; BAINES, S. G. Fronteiras e espaços interculturais. Goiânia: UCG, 2008, 120p.
SOUZA, I de. Koenukunoe Emo'u: a língua dos índios Kinikinau. 2008.
196f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
SOUZA, I de. Kinikinau: uma língua à beira da extinção. Revista Guavira, Três
Lagoas, v. 1, n. 8, p. 149-165, 2009. Disponível em: < http://www.pgletras.ufms
.br/revistaguavira/downloads/revguavira008.pdf>. Acesso em: 24 set 2013. STEINEN, K.V.D. Durch Central-Brasilien. Leipzig: F.A. Brockhaus, 1886. 372p.
SUSNIK, B. Etnografia Paraguaya. Parte 1ª. Clasificacion de lãs poblaciones
indígenas del area Chaqueña. Manuales del Museo Etnográfico “Andres
Barbero” II. 9. ed. Asunción: Museo Etnográfico “Andres Barbero”, 1978. 284p.
VIDAL, L. B. Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. São
Paulo: Studio Nobel: USP: FAPESP, 1992. 296p.
VILHALVA, S. Kinikinau: Valorizando a História e a Pedagogia de um Povo. In
SEMINÁRIO POVO KINIKINAU: PERSISTINDO A RESISTÊNCIA, 1, 2004,
Bonito. Anais eletrônicos... Bonito: Arara Azul, 2004. Disponível em: <
23
http://editora-arara-azul.com.br/novoeaa/revista/?p=57 >. Acesso em: 18 mar
2012.
24
6. Artigos
Artigo I O artesanato como instrumento de identidade étnica: o caso dos Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles Resumo Este estudo procura explicar como e porquê o artesanato contribui para a
afirmação da identidade de um grupo indígena e qual o papel do escoamento
desse artesanato no mercado. Verifica, ainda, a relação desse artesanato com
projetos de inovação referentes ao processo de produção e comercialização da
cultura material indígena instaurados pela instância provedora de políticas
públicas, o Estado. O caso da etnia Kinikinau é singular porque foi declarada
“extinta” por pesquisadores e órgãos oficiais, sofreu um período de
invisibilidade, deixando de constar nos documentos pertinentes e foi confundida
com os Terena por quase um século. A resistência Kinikinau e a sua “vontade
de diferença” influenciaram na busca por tradições esquecidas, que ocasionou
na “reinvenção” do artesanato. Na passagem do século XX para o século XXI,
a etnia utiliza esse artesanato, aliado ao mercado, como instrumento de
visibilidade e reconhecimento. O argumento demonstra como um grupo étnico
usa a produção e a venda do artesanato para afirmar sua própria identidade, se
diferenciando dos outros grupos indígenas. Procura também explorar os limites
do mercado capitalista na venda do artesanato para dar visibilidade a esse
grupo étnico, bem como a relação da produção e comercialização desse
artesanato com as políticas públicas do Estado. O Levantamento de dados
empíricos foi realizado por meio de visitas a postos de troca da cidade de
Bonito e à aldeia São João, Reserva indígena Kadiwéu, em Porto Murtinho,
Mato Grosso do Sul, Brasil, bem como pela coleta de registros fotográficos e
entrevistas semiestruturadas com comerciantes e artesãos. Assim, este estudo
pretende avançar no conhecimento da reconstrução da identidade indígena
Kinikinau e o papel que ela e o mercado desempenham no fortalecimento
étnico.
Palavras-chave: Cultura material, Arte indígena, Ceramistas Kinikinau,
Fortalecimento étnico.
25
Abstract
This study seeks to explain how and why the handicraft contributes to the
affirmation of the identity of an indigenous group and what is the role of this
handicrafts in the market. Checks also the relationship of this handicrafts with
public policy innovation projects for the production process and marketing of
indigenous material culture by the state. The case of Kinikinau ethnicity is
unique because it was declared "extinct" by researchers and government
agencies, suffered a period of invisibility, no longer appear in the relevant
documents and has been confused with the Terena for nearly a century. The
Kinikinau resistance and their "will to difference" influenced the search for
forgotten traditions, which resulted in the "reinvention" of the handicraft. In the
passage from the XX to the XXI century, the ethnicity uses this handicraft,
coupled with the market, as tool of visibility and recognition. The case
demonstrates how an ethnic group uses the production and sale of handicrafts
to assert their own identity, differentiating from other indigenous groups. It also
seeks to explore the limits of the capitalist market in the sale of handicrafts to
give visibility to this ethnic group, as well as the relationship of production and
marketing of handicrafts with state public policy. The survey of empirical data
was accomplished through visits to handicrafts stores in Bonito and in the
village São João, Indian Reservation Kadiwéu in Porto Murtinho, Mato Grosso
do Sul, Brazil, as well as the collection of photographic records and semi-
structured interviews with traders and craftsmen. Thus, this study aims to
advance the knowledge of the reconstruction of indigenous identity Kinikinau
and the role it and the market have in strengthening ethnic.
Keywords: Identidad ethnic, indigenous art, Market, Strengthening Ethnic.
Introdução Os Kinikinau2 foram considerados “extintos” (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO,
1986) por quase um século e, durante todo esse tempo de invisibilidade, foram
“convencidos” a se registrar como outro grupo étnico de Mato Grosso do Sul,
2 Obedecendo a Convenção para grafia de nomes indígenas assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953, no Rio de Janeiro, os nomes tribais quer usados como substantivos, quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados.
26
os Terena, silenciando sua própria identidade (SILVA, 2007; SOUZA, 2008). Na
atualidade, vivendo em território alheio, buscam reconhecimento oficial e lutam
pela reconquista de seus territórios tradicionais3.
O artesanato Kinikinau, principalmente a cerâmica, tornou-se uma
ferramenta importante para auxiliar na afirmação da identidade do grupo. Por
meio desse instrumento a etnia ganha visibilidade no processo de
reemergência no atual cenário étnico sul-mato-grossense e brasileiro.
Apesar da cerâmica Kinikinau dar continuidade a uma antiga tradição
cultural Guaná, principalmente por meio da técnica do acordelado
(CANAZILLES, 2013), as ornamentações produzidas na atualidade não são
inerentes às expressões dos elementos culturais de seus antepassados
Kinikinau4, mas uma “reinvenção” das mulheres e homens5 dessa etnia.
O depoimento dado a Carlito em entrevista, no ano de 2002, pelo
indígena João Moreira Anastácio vem reforçar isso. “A gente não sabe mais as
tatuagens, as pinturas, as cerâmicas, [...]. A etnia já foi considerada extinta e a
maioria foi massacrada, é bem difícil mas a gente vai tentar, mesmo que seja
de outra forma mas nós temos que criar uma da gente mesmo” (CARLITO,
2002). Esta declaração constata que há treze anos atrás houve uma
mobilização do grupo para desenvolver um estilo ornamental próprio. Estilo que
na atualidade tomou forma, graças a um aperfeiçoamento contínuo, revelando
inclusive expressões artísticas de grande valor, como verificado no trabalho de
Agueda Roberto6.
3 Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada ‘Povo Kinikinau fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver’. 4 Importante enfatizar a semelhança que a cerâmica “reinventada” tem com a encontrada nos sítios arqueológicos da grande aldeia dos Kinikinau que existiu durante o século XIX. Os pesquisadores PEIXOTO e SCHMITZ (1998), por meio do artigo denominado: A Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul, afirmam que tais sítios apresentaram cerâmica pintada com presença de decoração plástica, existindo uma preponderância na pintura vermelha com motivos geométricos impressos por corda. Acentua-se que a impressão por corda sempre foi uma técnica associada aos Kadiwéu. Portanto, somente uma pesquisa histórica mais aprofundada revelará se em algum período os Kinikinau também utilizaram essa mesma técnica ornamental.
5 Frise-se que na atualidade a cerâmica Kinikinau também deixou de ser uma atividade exclusivamente feminina.
6 Ver o artigo denominado “Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil”
27
É importante acentuar que a cerâmica Kinikinau, no contexto em que se
encontra hoje, não vem imbuída somente de preocupações estéticas que
revelam uma “vontade de beleza”. Vem enraizada, desde sua origem, de um
significado profundo que envolve um sentimento de reafirmação de identidade.
SILVA e SOUZA (2008) definiram esse sentimento como “vontade de
diferença”. Desta maneira, este estudo procura analisar como e por que o
artesanato contribui para a afirmação da identidade Kinikinau e qual o papel do
escoamento desse artesanato no mercado, enfatizando a importante função do
Estado, como provedor de políticas públicas.
Procedimentos Metodológicos A pesquisa envolve a comunidade Kinikinau, localizada na Aldeia São
João, ao sudeste da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu, no município de Porto
Murtinho (Figura 1). A aldeia São João está situada a 70 km de distância da
cidade ecoturística de Bonito e a 462 km da capital, Campo Grande, em Mato
Grosso do Sul, Brasil. Os Kinikinau contam com uma população de
aproximadamente 250 indivíduos (SILVA e SOUZA, 2005).
Legenda: Mato Grosso do Sul Porto Murtinho Reserva Indígena Kadiwéu Figura 1. Localização da Reserva Indígena Kadiwéu. Fonte: CANAZILLES
(2013).
Para atender o objetivo geral, foram utilizadas fontes primárias e
secundárias. Sobre as fontes teóricas, nortearam a análise os estudos
antropológicos de BARTH (1995) sobre o processo de constituição dos grupos
étnicos e a natureza das fronteiras existentes entre eles, onde o foco de
28
investigação se voltou para as fronteiras sociais e a manutenção da identidade
étnica de um grupo.
Os estudos de ALVES (2015) foram de igual relevância porque
possibilitaram uma compreensão do mercado do artesanato indígena do
Estado e sua relação com a afirmação étnica dos Kinikinau. Sua análise de
RIBEIRO (1980), RIBEIRO (1984) e OLIVEIRA (1968), evidenciou também a
crise do artesanato cerâmico indígena em meados do século XX e clareou o
incremento da atividade oleira indígena, a partir da década de 1970, sob o
influxo do turismo de pesca, inicialmente, e do ecoturismo, em seguida.
Os estudos teóricos de SILVA e SOUZA (2008) sobre o movimento
político dos Kinikinau em direção à sua reemergência também foram essenciais
para contextualizar o objeto, bem como as fontes secundárias que tratam da
produção e comercialização do artesanato indígena Kinikinau na região
(CANAZILLES et al., 2015).
Quanto ao levantamento de fontes primárias, os dados empíricos
englobaram observação sistemática, registros fotográficos e entrevistas
semiestruturadas com comerciantes e artesãos, por meio de visitas a diferentes
postos de troca da cidade de Bonito, bem como levantamentos a campo na
Reserva indígena Kadiwéu, mais precisamente na aldeia São João, em Porto
Murtinho. As Entrevistas semiestruturadas realizadas na aldeia deram-se com a
Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa7, Agueda
Roberto. Os questionamentos principais das entrevistas levaram em
consideração os aspectos relacionados ao escoamento da produção das
artesãs para o mercado.
Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve
análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade
Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se
tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este
trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer 7 Razão social da associação fundada na década de 80 e formalizada em 2003 por indígenas e
artesãos da etnia Kinikinau.
29
Consubstanciado nº 780.523. Todos os entrevistados receberam o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com os objetivos da pesquisa
expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.
Resultados e Discussão
O conceito antropológico de cultura é designado por GODELIER (2007),
como representações, princípios e valores que ordenam os diversos aspectos
da vida em sociedade, bem como as formas de agir e de pensar. Segundo o
antropólogo essas representações são elementos do campo ideal e compõem
a cultura. Esta somente passa a existir e ter significado quando esses
elementos são associados às práticas materiais e sociais.
A antropóloga Berta Ribeiro enfatiza que o hábito de observar e
desenhar padrões convencionais faz com que os indivíduos de cada grupo
étnico se familiarizem desde cedo com os símbolos peculiares à sua etnia,
construindo a sua personalidade cultural. Esses símbolos passam a ser uma
forma de manifestação do seu modo de ser. “Neste sentido, a arte, tal como a
língua, as crenças, as narrativas míticas e outros elementos da cultura vem a
ser um mecanismo ideológico que reforça a etnicidade e, em consequência, a
resistência à dissolução da etnia” (RIBEIRO, 1989, p.32-33).
O mecanismo ideológico apontado por RIBEIRO (1989) foi definido por
BARTH (1995) como os sinais e signos manifestos e também como as
orientações valorativas básicas, duas ordens que compõem o conteúdo cultural
das dicotomias étnicas. Os sinais e signos manifestos, tais como vestimenta,
língua, etc, “constituem as características diacríticas, que as pessoas buscam e
exibem para demonstrar sua identidade” (BARTH, 1995, p.211). Já, as
orientações valorativas básicas implicam os “padrões de moralidade”, ou seja,
as regras relativas aos costumes, tradições e crenças que orientam o
comportamento do grupo. BARTH (1995) salienta, ainda, que são os próprios
atores que irão definir as características que deverão ser levadas em conta
para reconhecer a sua identidade e diferenciá-los dos demais grupos étnicos.
Sendo assim, na passagem do século XX para o século XXI, um grupo
indígena brasileiro denominado Kinikinau escolheu justamente o artesanato
como uma dessas características diacríticas de reconhecimento étnico. Nosso
argumento demonstra como esse grupo étnico usa a produção e a venda
30
desse artesanato para afirmar sua própria identidade, se diferenciando dos
outros grupos indígenas. Procura também explorar os limites do mercado
capitalista em sua comercialização8 para dar visibilidade ao grupo, além de
evidenciar as deficiências encontradas nas políticas públicas praticadas pelo
Estado.
BARTH (1995) define os grupos étnicos como categorias atributivas e
identificadoras determinadas pelos próprios atores. Se um grupo étnico se
autodenomina “A, em contraste com outra categoria B da mesma ordem, [seus
membros] desejam ser tratados e ter seu comportamento interpretado e julgado
como próprio de A e não de B” (BARTH, 1995, p.212). Cabe aqui exemplificar
com pronunciamento de um indígena Kinikinau: “Houve tempo que ninguém
mais falava em nossa existência, mas entre nós sempre soubemos de nossa
origem” (SILVA e SOUZA, 2005).
Para SILVA e SOUZA (2008, p.30), “a força da identidade étnica
Kinikinau está expressa e impressa na produção de cerâmicas. [...] há entre os
Kinikinau toda a força identitária da diferenciação, uma verdadeira ‘vontade de
diferença’”. Trata-se, porém, de um artesanato “reinventado”, ou poderíamos
dizer, atualizado, porque apesar da produção de cerâmica fazer parte da
cultura tradicional de seus ancestrais9, ou seja, das populações Guaná, para os
Kinikinau os ensinamentos dessa produção que são passados de geração para
geração foram esquecidos, ou melhor, ficaram guardados apenas nas
memórias dos mais velhos.
Isso ocorreu devido à sua própria trajetória histórica, que tomou um
rumo de invisibilidade por muito tempo ao serem considerados “extintos”
(OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO, 1986) por quase um século. Por causa dessa
“exterminação” dos Kinikinau e por terem “ficado ocultos em meio ao grupo
majoritário Terena, [...], foram pouco mencionados em livros e documentos [...].
Tornou-se natural referir-se a eles como um sub-grupo Terena, [...]” (SILVA e
SOUZA, 2003, p.150-151).
8 Ver “Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil” (CANAZILLES et al., 2015).
9 Ver “A Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul” (PEIXOTO e SCHMITZ, 1998)
31
Órgãos indigenistas, como o Serviço de Proteção aos Índios (SPI),
extinto em 1967 para dar origem à Funai (Fundação Nacional do Índio),
deixaram de registrar nascimentos de crianças dessa etnia e os Kinikinau
foram “convencidos” a se registrar como Terena (SILVA, 2007; SOUZA, 2008).
Para SOUZA (2008, p.30-31), “muitos Kinikinau passaram a se identificar como
Terena, para garantir um lugar para fixar residência”, justamente porque após a
Guerra do Paraguai não conseguiram assegurar o direito às suas terras
tradicionais. Segundo RIBEIRO (1986), as populações indígenas entraram em
competição com os pecuaristas que começavam a ocupar a região.
Conforme ALBUQUERQUE SOUZA (2009), os Kinikinau “ressurgiram”
em 1997, quando a Prefeitura de Porto Murtinho, através da Secretaria
Municipal de Educação, Cultura e Esportes, iniciou um trabalho de Educação
Escolar na Reserva Indígena Kadiwéu, território em que os Kinikinau coabitam
com as etnias Kadiwéu e Terena. Com a perspectiva da implantação de uma
escola que atendesse às necessidades do grupo, começaram timidamente a
revelar suas particularidades e a expressar uma identidade étnica diferente dos
demais.
SILVA (2007, p. 86) afirma que “no final de 1990 os Kinikinawa iniciaram
uma intensa mobilização política, ainda em curso, reivindicando uma etnicidade
própria e distinta dos indígenas Terena”. Em 2003, ocorreram dois eventos
onde foi manifestada a existência dos Kinikinau: O ‘I Encontro Nacional dos
Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial’, realizado
em Olinda-PE entre os dias 15 e 19 de maio, e o ‘Seminário dos Povos
Resistentes: A presença indígena em Mato Grosso do Sul’, realizado em
Corumbá-MS entre os dias 10 e 12 de dezembro.
Em 2004, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul,
organizou o ‘Seminário Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência’ na cidade de
Bonito, entre os dias 16 e 18 de junho. Compareceram cerca de quarenta
indígenas Kinikinau que “puderam debater sobre a situação atual em que vivem
e elaboraram um documento, a Carta de Bonito, em que exigem, dentre outras
reivindicações, reconhecimento oficial da existência da etnia por parte do
Estado Brasileiro” (SILVA e SOUZA, 2005).
Finalmente, entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no
município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia
32
Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada “Povo Kinikinau
fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver”. Inácio Roberto, professor
Kinikinau acredita que essa 1ª Assembleia “significa o fortalecimento deste
povo que nunca deixou de existir, mas que agora reassume a sua grandeza
histórica” (REMPEL, 2014).
Em 2005 estimou-se 250 indivíduos Kinikinau (SILVA e SOUZA, 2005).
A maior parte vive na Aldeia São João, dentro da Reserva Indígena (RI)
Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul, Brasil. “Há
notícias de membros desse grupo residindo também em aldeias dos Terena,
nos municípios de Miranda (Cachoeirinha e Lalima) e Nioaque (Brejão)” (SILVA
e SOUZA, 2003, p.152).
O artesanato Kinikinau como instrumento de identidade étnica
O pesquisador Gilberto Luiz Alves evidencia na atualidade a relevância
do artesanato Kinikinau como instrumento de identidade étnica no movimento
político organizado pela etnia no final do século XX. “[...] A cerâmica, que voltou
a ser produzida a partir de 1984, vem tendo importância decisiva nesse
movimento que procura assegurar visibilidade à etnia” (ALVES, 2010, p.15).
Considerando que as tradições culturais de um grupo étnico só
sobrevivem alterando-se continuamente (RIBEIRO, 1980, p.8), a “reinvenção”
do artesanato Kinikinau não retira o mérito de sua importância cultural.
Segundo BARTH (1995, p.203), a cultura de qualquer “unidade étnica” é
suscetível a mudanças e “nada mais é do que uma maneira de descrever o
comportamento humano”.
O aspecto evidente da “reinvenção” ou atualização do artesanato
Kinikinau é a inserção de grafismos ornamentais orgânicos que receberam
influência dos motivos geométricos da célebre cerâmica Kadiwéu. Importante
frisar o afastamento das características da cerâmica Terena devido a
necessidade desse grupo em se diferenciar dessa etnia, com a qual foram
confundidos durante tanto tempo. Os inéditos e contemporâneos traçados
impressos na cerâmica Kinikinau decorrem da “vontade de diferença” (SILVA e
SOUZA, 2008), revelando o papel político desse artesanato, em sintonia com a
“vontade de beleza”, expressão estética que vai ao encontro do termo que
RIBEIRO (1980) criou como sinônimo de arte.
33
É importante enfatizar que em suas produções atuais os Kinikinau ainda
utilizam a mesma técnica tradicional empregada na cerâmica há séculos por
seus ancestrais, ou seja, a técnica do acordelado. Esta consiste na
sobreposição de roletes de argila para dar forma ao artefato (CANAZILLES,
2013). Segundo HOBSBAWM (1997), a dificuldade que um grupo social tem
em romper com um passado histórico é característica das “tradições
inventadas”. Quando há um confrontamento com as constantes mudanças e
inovações do mundo moderno o grupo social tenta estruturar de forma imutável
ao menos alguns aspectos da vida em comunidade,
“Por tradição inventada entende-se um conjunto de
práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer
continuidade com um passado histórico apropriado”
(HOBSBAWM, 1997, p.9).
Neste sentido, é importante se compreender que a “inovação [presente
em uma tradição inventada] não se torna menos nova por ser capaz de
revestir-se facilmente de um caráter de antiguidade” (HOBSBAWM, 1997,
p.13). No caso dos Kinikinau, apesar de utilizarem técnicas ancestrais na
produção da cerâmica, além de utilizarem recursos naturais do ambiente como
matéria-prima, consequentemente instaurando uma ligação com o passado, a
inovação mostra-se evidente no artesanato que se atualiza de maneira
constante por influência do mercado turístico.
VIDAL (1992, p.13), em um estudo voltado à antropologia estética,
afirma que o homem da sociedade ocidental acredita que as artes dos grupos
indígenas são imutáveis, ou seja, pertencem a uma “ordem estática”. Dessa
maneira, elas tendem a não se incorporar ao cenário das artes
contemporâneas e deixamos de desfrutar e captar obras dotadas de notável
especificidade histórica e cultural. Deixamos de fruir, portanto, “manifestações
34
estéticas de grande beleza e profundo significado humano” que são criadas e
recriadas por índios decididos a continuar como índios.
A razão pela qual os Kinikinau se mantiveram Kinikinau, apesar do
grande período de invisibilidade quando foram identificados como Terena,
reafirma o juízo de BARTH (1995) de que um grupo étnico mantém sua
identidade apesar do contato e interação com outros diferentes grupos, porque
é a fronteira étnica que define o grupo e não o conteúdo cultural delimitado por
ela. O conteúdo cultural é importante, mas deve ser visto como “consequência
ou resultado e não como um aspecto primário ou definidor da organização dos
grupos étnicos” (BARTH,1995, p.207).
A fronteira étnica, à qual Barth se refere, são fronteiras sociais que
determinam, por meio da existência de critérios de avaliação e de julgamento,
se uma pessoa pertence a um determinado grupo étnico ou não. Ela implica,
também, uma organização do comportamento e das relações sociais. Há entre
as pessoas de um mesmo grupo étnico “um potencial para diversificação e
expansão de suas relações sociais, de modo a eventualmente cobrir todos os
diferentes setores e domínios de atividade” (BARTH, 1995, p.213). As suas
partes devem estar “jogando o mesmo jogo”.
No entanto, quando existe contato entre diferentes grupos étnicos, a
estrutura de interação se modifica em determinadas situações sociais,
permitindo articulações em setores de atividades específicos e interdições em
outros setores. Essas interdições evitam interações interétnicas e acabam
protegendo partes das culturas da modificação por meio da confrontação.
Isso não significa que a cultura de uma etnia torna-se invariável.
Inegavelmente, os elementos culturais de um grupo se modificarão no decorrer
do tempo, por diferentes fatores, porque possuem caráter histórico. A
manutenção da fronteira étnica apenas demonstra que diferenças culturais
entre determinados grupos tendem a persistir porque percebe-se, nas relações
sociais, um reconhecimento da existência de “limitações [entre membros de
diferentes grupos étnicos] quanto às formas de compreensão compartilhadas”
(BARTH, 1995, p.213).
Se seguirmos a linha de raciocínio de BARTH (1995), chegaremos à
conclusão de que foi justamente a fronteira étnica, com suas interdições em
setores específicos, que possibilitou aos Kinikinau a manutenção, mesmo que
35
precária, de uma parte de seus elementos culturais durante o processo de
invisibilidade. São exemplos a língua nativa, a tecelagem, a técnica do
acordelado, dentre outros.
Segundo SOUZA (2008), a língua Kinikinau encontra-se seriamente
ameaçada de extinção por falta da “memória de uso”. A sua utilização se
restringe a poucos falantes nativos. Quanto à tecelagem, não foram
encontrados estudos específicos sobre a sua atual fabricação, mas existem
evidências de anciãos que ainda a produzem, como Dona Zeferina. Ela tece as
fibras do algodão plantado em volta de sua casa, bem como a lã de carneiro.
Conforme SOUZA (2007), a artesã fabrica redes, toalhas e baixeiros, todavia
sua venda é bastante limitada, portanto, “não tem motivação para se dedicar a
uma produção continuada. Ela se dedica mais à tecelagem da lã de carneiro,
pois dá melhor retorno financeiro. Produz baixeiros, que são vendidos para os
peões da aldeia e da região” (SOUZA, 2007, p.121). Já a técnica do
acordelado, considerada também um conhecimento ancestral, ficou muito
tempo “adormecida”, guardada na memória dos anciãos. Hoje, ressurge na
fabricação da cerâmica Kinikinau contemporânea.
Podemos nos perguntar, porque não foi a língua, e sim, o artesanato, o
principal instrumento determinado pelo grupo para afirmar sua identidade
étnica frente à sociedade capitalista. Se analisarmos o setor de atividade
relacionado ao emprego da língua Kinikinau, diríamos que este setor é muito
específico e não permite interações interétnicas devido às próprias barreiras
linguísticas.
No entanto, a língua pode ser encarada como um elemento de
fortalecimento étnico entre os integrantes do próprio grupo e de diferenciação
entre os grupos étnicos que coabitam com a etnia. Mas, o que vem tendo
importante papel de dar ampla visibilidade étnica aos Kinikinau, de maneira a
reafirmar sua identidade diante dos não-índios é justamente o artesanato,
porque a produção artesanal atual está aliada a outro importante setor de
atividade, o comércio de produtos indígenas, o qual está subordinado ao
mercado. Portanto, o mercado passa a ser determinante na afirmação da
identidade étnica Kinikinau.
O mercado do artesanato Kinikinau e suas limitações
36
O mercado, elemento estruturante no capitalismo, possibilita que as
fronteiras étnicas dos diferentes grupos sejam ultrapassadas, ou seja, permite
interações interétnicas. A sociedade capitalista possui um conjunto de normas
estabelecidas que organiza as relações entre diferentes etnias por meio do
mercado. Essas relações baseadas, exclusivamente, na troca de bens, inibem
confrontações culturais porque independem das “crenças” das etnias
envolvidas. “A concordância das pessoas quanto a códigos e valores não
precisa estender-se para além daquilo que é relevante para aquelas situações
sociais nas quais elas interagem” (BARTH,1995, p.214), neste caso, situações
que envolvem interações de consumo.
De acordo com ALVES (2015), o mercado foi decisivo para a
sobrevivência da cerâmica das diferentes etnias de Mato Grosso do Sul,
inclusive do emergente artesanato Kinikinau que, “adormecido” por quase um
século, reinventou-se e voltou a ser produzido na década de 80.
“Em Mato Grosso do Sul, no presente, o artesanato
cerâmico indígena é produzido tendo por destino,
exclusivamente, o mercado. Se não fosse o incremento da
comercialização de artefatos cerâmicos, motivado pela
expansão do turismo desde a década de 1970, por certo o
artesanato oleiro indígena já estaria experimentando seus
últimos estertores na região. Essa era a tendência, comum
tanto ao artesanato cerâmico Kadiwéu quanto ao Terena,
segundo os estudos antropológicos levados a cabo entre
as décadas de 1940 e 1960” (ALVES, 2015, p.17).
Cada vez mais os povos indígenas, em contato crescente com a
população das cidades, se integram ao modo de produção capitalista,
mantendo relacionamento direto com o mercado e participando ativamente do
sistema econômico. No caso dos Kinikinau, o escoamento do artesanato no
mercado garante ao grupo a visibilidade desejada para se assumirem
etnicamente perante toda a sociedade, se diferenciando dos outros grupos
indígenas.
37
Importante evidenciar que além de possuir o papel político como
instrumento de afirmação de uma identidade étnica, o artesanato Kinikinau, ao
ser produzido na sociedade capitalista, passa a assumir também outra função,
a de mercadoria. Abrem-se, portando, condições para que ocorram
interferências do mercado em sua produção.
O fato é que os artefatos indígenas, de um modo geral, sofreram
profunda transformação cultural ao perderem seus valores de uso originais
para se tornarem, nos dias atuais, valores de troca. O contato com a sociedade
capitalista realizou a instauração de transformações profundas nas funções dos
produtos artesanais indígenas, criados originariamente para atender
necessidades básicas dessa população (AlVES, 2003). Esses novos artigos
passaram a assumir uma função decorativa, visando a atender aos anseios dos
turistas.
Por força de sua progressiva associação ao mercado do turismo, o
artesanato sofreu, na mesma intensidade, mudanças formais nos grafismos e
nas tonalidades da ornamentação. Foi incrementada, também, a tendência de
miniaturização das peças cerâmicas zoomorfas e antropomorfas. Pratos
decorativos, cinzeiros, cofres (com modelos de animais), são bastante
encontrados. Essas peças substituem as travessas, vasos e panelas utilitárias
produzidas no passado. São inovações formais que intentam ampliar o
mercado desses produtos cerâmicos.
A transformação do artesanato indígena em Mato Grosso do Sul tem
sido sistemática. Do mercado produzido pelo turismo advém o estímulo às
inovações formais nos artefatos. Isso demonstra claramente que a reinvenção
do artesanato não é uma característica isolada dos Kinikinau. As outras etnias
do estado, por força do mercado capitalista, também estão atualizando
constantemente suas produções materiais.
O fator mais problemático dessas transformações do artesanato
indígena não são elas próprias, as transformações. É a visão simplista que
ainda persiste, citada anteriormente por VIDAL (1992), de que a arte indígena
pertence a uma “ordem estática”. Para a autora essa visão nos impede de
valorizar as manifestações estéticas atuais dos indígenas brasileiros,
decorrentes de mudanças que com o decorrer do tempo serão inevitáveis, por
conta de um estereótipo. Evidentemente essa visão deve ser repensada,
38
porque o indígena de hoje não pode mais ser visto como aquele do passado
que andava nu, caçava, pescava e plantava para sobreviver. As circunstâncias
em que vive hoje não lhe asseguram mais as condições materiais propícias
para sustentar tais atividades.
Em uma discussão, RIBEIRO (1984), no estudo “Artesanato Indígena:
para quê, para quêm?”, descreve de maneira idealizada as consequências do
contato das etnias indígenas com a sociedade capitalista. Segundo a autora,
“[...] a produção artesanal para o mercado proporciona ao
índio a oportunidade de exercer uma atividade a que está
habituado e que faz parte do seu patrimônio cultural; inibe
sua saída da comunidade para alugar sua força de trabalho
como trabalhador braçal, [...]; proporciona a
confraternização dos homens e das mulheres nas horas de
trabalho artesanal coletivo; e lhes garante uma renda que
julgamos deva ser superior à que aufeririam como
empregados de ínfima categoria nos empreendimentos
regionais” (RIBEIRO, 1984, p.14).
Essa discussão, manifestada na década de 80, revela mais um anseio
da autora do que a realidade dos indígenas brasileiros daquele período. Na
atualidade essa situação ainda não se modificou. Muitos artesãos que
produzem para o mercado continuam vendendo sua força de trabalho em
“empreendimentos regionais”. Exemplifica-se aqui a família de Agueda
Roberto. Ela e seu marido, José Hugo Albuquerque, hoje aposentados,
trabalharam como empregados durante muito tempo nas fazendas da região.
Dois de seus filhos e nora se mudaram para a cidade, um iniciou a faculdade
de zootecnia em Aquidauana/MS, o outro, trabalha como motorista em
Bonito/MS, já sua esposa, trabalha em uma lanchonete. Ambos são artesãos
indígenas e conhecem as limitações do mercado do artesanato indígena,
principalmente as concernentes à geração de renda, as quais não impediu que
eles deixassem sua comunidade. Demonstra-se aí uma necessidade de
reflexão das políticas públicas praticadas.
39
O mercado do artesanato indígena da cidade ecoturística de Bonito,
Mato Grosso do Sul, é determinante na luta pela afirmação étnica Kinikinau
porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade, afirmando sua identidade,
porém, as condições para o escoamento desse artesanato revelam,
contraditoriamente, um grande número de limitações à sua comercialização.
CANAZILLES et al. (2015), em uma análise sobre a comercialização do
artesanato produzido pelos Kinikinau apontou os diversos obstáculos
encontrados durante o seu escoamento para o mercado. São eles a localização
geográfica das aldeias, o número limitado de artesãos, a pequena
produtividade, as esporádicas e inexperientes negociações com os
comerciantes, os baixos preços praticados durante essas negociações, a
fragilidade do artesanato e a falta de apoio de políticas públicas.
São muitas limitações. Elas impedem que o artesanato Kinikinau se
consolide no mercado de uma maneira satisfatória, para atender às
expectativas do grupo em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas
necessidades concernentes à geração de renda. Por isso é preciso a
interferência do Estado para melhor prover o escoamento do artesanato
indígena no mercado e estimular a sua produção.
Políticas públicas voltadas para a produção e comercialização da cultura material Kinikinau em Mato Grosso do Sul
A Reserva Indígena (RI) Kadiwéu em que os Kinikinau residem, mais
precisamente a aldeia São João, situa-se próxima a um importante entreposto
comercial com elevada capacidade turística e onde há um número expressivo
de postos de comercialização de diferentes tipos de artesanato, a cidade de
Bonito, Mato Grosso do Sul, porém, é importante enfatizar a preocupação de
BOGGIANI (2012) ao constatar a profusão de “artesanato asiático” nesses
estabelecimentos comerciais. De acordo com o autor, a atual implementação
do Geopark Bodoquena-Pantanal na cidade ecoturística deveria proporcionar
ao visitante o contato com o “espírito do lugar”. O “artesanato asiático” não
atende essa proposta.
Essa discussão levanta o questionamento feito por Alves (2015), sobre o
que de fato é artesanato e o que não é. Segundo o autor existem três
diferentes tipos de modalidades de artesanato no Estado, o artesanato
40
ancestral, o espontâneo e o induzido. O artesanato indígena está
compreendido na modalidade ancestral porque é um artesanato “de caráter
coletivo. As atividades artesanais correspondentes tendem a reiterar, no geral,
os procedimentos, as técnicas, a utilização de recursos naturais e a divisão
sexual do trabalho praticados por gerações anteriores” (ALVES, 2014, p.5-6).
O artesanato espontâneo é aquele produzido por artesãos que
respondem a uma necessidade interior de bel prazer e que “pela perfeição de
seus produtos, pelo apuro técnico, pela sistemática busca de beleza e pela
criatividade, são guindados à condição de artistas” (ALVES, 2014, p.48).
Nesses dois tipos de modalidade o artesão tem o domínio teórico-prático de
todas as operações técnicas necessárias à produção do objeto artesanal.
O artesanato induzido é aquele que ajusta-se às exigências do
mercado. É visto como negócio e está relacionado ao que ALVES (2015)
denomina como “ideologia do empreendedorismo”. De fato, esse artesanato, já
não pode mais ser entendido como tal porque incorpora, em seu processo de
produção, a divisão do trabalho. Neste sentido, grande parte do “artesanato
asiático”, citado por BOGGIANI (2012), é fruto da produção fabril que está
invadindo o mercado de souvenirs em Bonito. Contraditoriamente, o artesanato
ancestral, manifestação cultural da região, não consegue se inserir nesse
mercado porque os estímulos quanto à sua comercialização são mínimos.
Enfatiza-se que o artesanato indígena pode ser peça fundamental no
fortalecimento da proposta do Geopark, ligada ao turismo cultural.
Em Bonito existe um grande número de estabelecimentos privados que
comercializam artesanato induzido, mas não há um centro de comercialização
de artefatos indígenas promovido ou incentivado por órgãos governamentais.
Sendo assim, os artesãos das etnias Kadiwéu, Kinikinau e Terena, dependem
desses estabelecimentos privados para vender seus artefatos. Outra opção é a
venda ambulante, praticada principalmente nos dias em que ocorrem festivais
culturais na cidade.
O maior problema encontrado na venda do artesanato indígena em
estabelecimentos privados é a existência de uma tensão sensível nas relações
entre o artesão indígena e o comerciante, quando se trata de discutir o valor
das peças artesanais. Este tende a frequentemente ser remetido para baixo.
Por outro lado, o valor de revenda do artesanato, quando já se encontra no
41
estabelecimento, tende a sofrer um acréscimo que às vezes supera o valor de
compra em 100%, gerando uma desproporcionalidade na distribuição do lucro
(CANAZILLES et al., 2015).
A comercialização do artesanato Kinikinau está restrita a apenas dois
desses postos comerciais da cidade e os artesãos não se beneficiam de
nenhum tipo de incentivo financeiro para a produção ou escoamento desse
artesanato no mercado (CANAZILLES et al., 2015). A iniciativa parte deles
próprios. Ambrósio Góes, indígena Kinikinau que há vinte anos se transferiu
para Bonito, enfatizou a importância de um lugar apropriado para a venda do
artesanato indígena. “O turista não está procurando comprar nas lojas, está
procurando [...] comprar direto da gente. Aqui na frente de casa estou fazendo
essa choupana para expor o artesanato” (Góis apud CARLITO, 2002, s/p).
Sonho interrompido em 2012, após o seu falecimento, aos 62 anos de idade.
Dentre os estabelecimentos incentivados por órgãos governamentais
que comercializam o artesanato indígena de Mato Grosso do Sul, temos em
Campo Grande, capital do estado, o “Memorial da Cultura Indígena”,
subordinado à Prefeitura Municipal, onde é comercializado,
predominantemente, o artesanato de três etnias: Kadiwéu, Terena e Guarani. É
um local de referência do artesanato indígena do estado. Está localizado na
Aldeia Urbana Marçal de Souza, ponto turístico da capital.
A cidade de Campo Grande dispõe, também, da “Casa do Artesão”,
estabelecimento onde é comercializado o artesanato regional. Localizada no
centro da cidade, é intensamente visitada pela população da capital e por
turistas. Subordina-se à Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul – FCMS.
No que se refere ao artesanato indígena, predominam as cerâmicas das etnias
Kadiwéu e Terena. Não há peças da etnia Kinikinau. Em entrevista, a
atendente do centro não soube responder o porquê, supondo, inclusive, que o
grupo parou de produzir artesanato.
Destaca-se que todos os anos a Casa do Artesão promove uma mostra
de artesanato indígena, evento que celebra o dia do Índio, envolvendo uma
parceria entre a FCMS e a Funai. Importante enfatizar que, em 2011, o
artesanato Kinikinau foi citado no material de divulgação da mostra como parte
do acervo da exposição, realizada entre os dias 21 de abril e 18 de maio,
porém, durante o evento, os únicos artesanatos indígenas expostos eram das
42
etnias Kadiwéu e Terena. De acordo com a Gerência de Desenvolvimento de
Atividades Artesanais da FCMS, os índios Kinikinau seriam os responsáveis
em dispor seus produtos para o evento. O descaso do Estado mostra-se
evidente, segundo Agueda Roberto, os artesãos Kinikinau nem sequer ficaram
cientes do evento.
Existem, ainda, dois centros de comercialização do artesanato indígena
em Mato Grosso do Sul. Em Miranda foi implantado o “Centro Referencial da
Cultura Terena”, subordinado à Prefeitura Municipal, onde são comercializados
apenas artefatos dessa etnia, e, na cidade de Bodoquena, o “Memorial Serra
da Bodoquena”, também subordinado à Prefeitura Municipal, destinado à
comercialização do artesanato Kadiwéu. Quanto ao artesanato Kinikinau, não
encontramos evidência de sua comercialização em nenhum desses centros,
além disso, foi possível observar certo descuido em relação aos artefatos
mantidos nesses espaços, seja a má disposição dos objetos expostos, a não
identificação de sua autoria e a falta de manutenção do próprio acervo como,
por exemplo, o acúmulo de poeira.
De qualquer maneira, a inserção desses postos de comercialização nos
municípios e nas proximidades onde a cultura material indígena é produzida
torna-se uma ação válida, porém, pode não ser a principal solução para o
escoamento desse artesanato. Confinados em aldeias, os artesãos às vezes
possuem certas dificuldades em distribuir essas mercadorias, já que a iniciativa
de levar os artefatos aos centros comerciais deve ser dos próprios indígenas. A
distância da aldeia; o meio de transporte e a topografia de difícil acesso pode
dificultar esse escoamento que, em conjunto com a fragilidade das peças
(CANAZILLES et al., 2015), facilitam a quebra e resultam em prejuízo ao
artesão.
As políticas públicas voltadas para a cultura material das populações
indígenas de Mato Grosso do Sul são gerenciadas pelo Plano Estadual de
Cultura - PEC-MS (MATO GROSSO DO SUL, 2014), elaborado em 2014 na
gestão do governador André Puccinelli. Este mesmo Plano coordena toda a
produção cultural do estado. O PEC-MS tem como principal articulador o
Sistema Estadual de Cultura - SIEC-MS, que tem a missão de estabelecer
mecanismos de gestão compartilhada entre Estado, Municípios e a sociedade
43
civil. Uma de suas estratégias e ações discriminadas na seção única do
capítulo I é:
“1.6.2 Garantir aos povos e às comunidades tradicionais
direitos sobre o uso comercial sustentável de seus
conhecimentos e expressões culturais; estimular e
assegurar sua participação na elaboração de instrumentos
legais que assegurem a repartição equitativa dos
benefícios resultantes desse mercado” (MATO GROSSO
DO SUL, 2014, p.13).
No capítulo III uma outra estratégia e ação do PEC-MS é:
“3.1.17. Estimular a criação de centros de referência e
comunitários voltados às culturas populares, ao artesanato,
à gastronomia, às técnicas e aos saberes tradicionais com
a finalidade de registro e transmissão da memória,
desenvolvimento de pesquisas, valorização das tradições
locais e comercialização” (MATO GROSSO DO SUL, 2014,
p. 20).
No entanto as políticas que englobam a cultura material indígena se
limitam aos quatro centros de comercialização citados anteriormente; ao
mapeamento e difusão de acervos históricos; à preservação do patrimônio
tradicional por meio de processos de salvaguarda e registro realizados pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan; e alguns esforços
pontuais executados por meio dos editais elaborados pela Fundação de Cultura
(FCMS) para apoiar projetos culturais de iniciativa de pessoas físicas ou
jurídicas por meio do Fundo de Investimentos Culturais (FIC-MS).
Frise-se a presença de alguns esforços de pesquisadores em parceria
com a comunidade no desenvolvimento de projetos culturais. O projeto “Moté
Ypoti Kinikinau: por um fortalecimento étnico” foi uma dessas iniciativas.
Aprovado em 2013 pela Funarte (Fundação Nacional das Artes) no “Programa
Mais Cultura: Microprojetos do Pantanal”, teve como proponente principal
Agueda Roberto. Idealizado por Canazilles e realizado em 2014, disponibilizou
44
oficinas de artesanato Kinikinau aos jovens da etnia e contou com o apoio do
Instituto Cultural Gilberto Luiz Alves. Em dezembro de 2015 este mesmo
projeto foi selecionado ao Prêmio Pontos de Cultura Indígena gerenciado pela
Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Minc - Ministério da
Cultura –, em parceria com a Secretaria do Audiovisual do Minc e com a
Fundação Nacional do Índio - Funai.
Em 2015, na gestão do atual governador Reinaldo Azambuja, criou-se a
Subsecretaria de Políticas Indígenas, tendo uma liderança indígena como um
de seus representantes. A subsecretária, Silvana Dias de Souza Albuquerque,
é indígena Terena. Subordinada à Secretaria de Estado de Direitos Humanos,
Assistência Social e Trabalho – Sedhast, o intuito da subsecretaria é de auxiliar
na elaboração de um Plano Estadual de Políticas Públicas para a População
Indígena. Suas ações pretendem se voltar para a agricultura familiar, a cultura,
a educação, o esporte, o lazer e a segurança nas aldeias.
Ainda são inexistentes projetos de melhoria referentes ao processo de
produção e comercialização da cultura material Kinikinau, de iniciativa do
Estado. Encontra-se em fase de concepção, porém, um projeto pioneiro de
inovação tecnológica que poderá colaborar para dar um outro direcionamento à
cultura material indígena de Mato Grosso do Sul, incentivando a criação de
políticas públicas. A Universidade Anhanguera-Uniderp conta com a parceria
das Universidades de Manitoba, Canadá e Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul - UFMS. O projeto denominado “Artesanato indígena, mudanças
e inovações tecnológicas em Mato Grosso do Sul” tem por objetivo instaurar
discussão sobre a produção e a comercialização de peças cerâmicas das três
etnias oleiras de Mato Grosso do Sul, ou seja, dos Kadiwéu, Terena e
Kinikinau, de forma a explicitar limitações imanentes, subsidiar propostas
políticas de melhoria dos produtos e animar projetos de pesquisa sobre a
temática. É apoiado pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul - FCMS,
pela Secretaria de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação de Mato
Grosso do Sul e pelo Canadian Consortium for Performance and Politics,
Canadá.
Neste sentido, a elaboração de políticas públicas que incentivem
projetos de desenvolvimento tecnológico e econômico do artesanato Kinikinau,
que elevem o padrão de qualidade, melhorem as técnicas produtivas e
45
viabilizem a expansão de seu mercado, ampliando seus limites, estarão
auxiliando, de fato, no fortalecimento dessa etnia. A criação de centros de
comercialização nas proximidades da aldeia São João, tanto em Porto Murtinho
quanto em Bonito, além de outros projetos que valorizem esses elementos
culturais, poderão contribuir para a autoestima da etnia e para geração de
renda capaz de lhe garantir uma qualidade de vida melhor.
Conclusão A cerâmica Kinikinau, no contexto em que se encontra hoje, vem
enraizada de um significado profundo que envolve um sentimento de
reafirmação de identidade étnica por um grupo considerado “extinto” por quase
um século. Apesar do grande período de invisibilidade identificado como
Terena, esse grupo se manteve Kinikinau.
A resistência à dissolução da etnia possibilitou a manutenção de uma
parte de seus elementos culturais, como por exemplo, a técnica do acordelado,
utilizada atualmente na produção artesanal. Neste sentido, o artesanato, hoje
“reinventado”, vem tendo relevante papel ao dar ampla visibilidade étnica ao
grupo. Isso porque a produção atual está aliada a um importante setor de
atividade, o comércio de produtos indígenas, subordinado ao mercado do
turismo.
Portanto, o mercado é determinante na luta pela afirmação da identidade
étnica Kinikinau porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade
capitalista. Porém, as condições para o escoamento desse artesanato revelam,
contraditoriamente, um grande número de limitações à sua comercialização.
Além disso, apesar de existirem alguns esforços pontuais, as políticas públicas
voltadas a projetos de melhoria referentes ao processo de produção e
comercialização da cultura material Kinikinau ainda são inexistentes.
Esses fatores impedem que o artesanato Kinikinau se consolide no
mercado de uma maneira satisfatória, para atender às expectativas do grupo
em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas necessidades concernentes à
geração de renda, elemento determinante para a valorização cultural. Por isso
é necessário a interferência do Estado com ações governamentais repensando,
junto com os artesãos Kinikinau, as práticas vigentes e instaurando novas
estratégias por meio de políticas públicas, no sentido de incentivar e inovar a
46
produção, bem como melhor prover o escoamento do artesanato indígena no
mercado.
Agradecimentos A autora agradece a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES); a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,
Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (FUNDECT), a Universidade
Anhanguera – Uniderp e a Université du Quebéc en Outaouais, Canadá.
Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. O Povo Kinikinau e sua trajetória ao ensino
superior. In: SEMINÁRIO POVOS INDÍGENAS E SUSTENTABILIDADE:
SABERES LOCAIS, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA, 3, 2009, Campo Grande.
Resumos... Campo Grande: UCDB, 2009. p. 90, ref. 3.
ALVES, G. L. Mato Grosso do Sul: o universal e o singular. Campo Grande,
MS: Editora UNIDERP, 2003. 100p.
ALVES, G. L. Ambrósio Góes: observações de campo. Bonito, MS: Projeto
Artesanato em Mato Grosso do Sul/Universidade Anhanguera-Uniderp, 2010.
ALVES, G. L. Arte, artesanato e desenvolvimento regional: temas sul-mato-grossenses. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2014. 104p.
ALVES, G. L. Utensílio, objeto de arte e mercadoria: trânsitos do artesanato
cerâmico indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil. Relatorio de pesquisa.
Campo Grande: Universidade Anhanguera – Uniderp, 2015. 22p.
BARTH, F. Les groupes ethniques et leurs frontières. In: POUTIGNAT, P.;
STREIFF-FENART, J. Théories de l’ethnicité. Paris: PUF, 1995. 270p.
BOGGIANI, P. C. O novo conceito de geopark e sua aplicação para o Pantanal.
In: ALVES, G. L; MERCANTE, M. A.; FAVERO, S. (Orgs.). Pantanal Sul-Mato-
47
Grossense ameaças e propostas. São Paulo: Autores Associados; São
Paulo: Universidade Anhanguera-Uniderp, 2012.
CANAZILLES, K. S. A. A produção e a comercialização do artesanato Kinikinau em Mato Grosso do Sul. 2013. 98f. Dissertação (Mestrado em Meio
ambiente e Desenvolvimento Regional) - Universidade Anhanguera Uniderp,
Campo Grande.
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Os Kinikinau: trajetória
histórica e a reinvenção do artesanato. Albuquerque Revista de História,
Campo Grande: UFMS, v. 5, n. 10, p. 99-120, 2013.
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Comercialização do
artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul,
Brasil. Pasos - Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, Santa Cruz de
Tenerife, v. 13, n. 5, p. 1171-1182, 2015.
CARLITO, M. P. Transcrição de trechos do diário de bordo da 2ª Expedição Guaicuru ao Sudoeste de MS: Entrevista concedida na aldeia São
João. Porto Murtinho, MS. 2002. Disponível em: <http:// www.overmundo.
com.br/overblog/entrevista-com-os-ex-extintos-kinikinawa-parte-1>. Acesso em:
10 nov 2011.
GODELIER, M. Au fondement des sociétes humaines: ce que nous apprend
l’anthropologie. Paris: Éditions Albin Michel, 2007. 304p.
HOBSBAWN, E. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWN, E;
RANGER, T. (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
Terra, 1997. 400p.
MATO GROSSO DO SUL. Projeto de lei nº 195/14, de dezembro de 2014.
Institui o Plano Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul de 2014.
48
Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 16
dez. 2014.
OLIVEIRA, R. C. de. Urbanização e tribalismo: a integração dos índios
Terêna numa sociedade de classes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
237p.
OLIVEIRA, R. C. de. Do índio ao bugre. São Paulo: Francisco Alves, 1976.
149p.
PEIXOTO, J. L. S.; SCHMITZ, P. I. A Missão Nossa Senhora do Bom
Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul. Revista Pesquisas História, São
Leopoldo, n.30, p.133-155, 1998.
REMPEL, M. Após um século de descaminhos, povo Kinikinau realiza sua
primeira assembleia fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver. Conselho
Indigenista Missionário. 2014. Disponível em: < http://www.cimi. org.br/site/pt-
br/?system=news&action=read&id=7836# >. Acesso em: 03 fev 2015.
RIBEIRO, D. Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza.
Petrópolis: Vozes, 1980. 318p.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas
no Brasil moderno. Petrópolis: Vozes Ltda, 1986. 510p.
RIBEIRO, B. G. Artesanato Indígena: para quê, para quêm? In:Ribeiro B.
(Org.). O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1984. 253p.
RIBEIRO, B. G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP. 1989. 186p.
SILVA, G. J. da. Ressurgidos, emergentes, resistentes: reflexões sobre as
presenças indígenas Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In:
49
SEMANA DE HISTÓRIA, 5, 2007, Três Lagoas. Anais... Três Lagoas: UFMS,
2007. 426p.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. O despertar da fênix: a educação escolar
como espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do
Sul. Revista Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 149-156, 2003.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. Povos Indígenas no Brasil. Instituto
Socioambiental. Kinikinau. 2005. Disponível em: <http://pib.socioambiental.
org/pt /povo/ kinikinau /print>. Acesso em: 24 set 2012.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. História, etnicidade e cultura em fronteiras:
os Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In: Rocha, L. M.; Baines, S. G. Fronteiras e espaços interculturais. Goiânia: UCG, 2008. 120p.
SOUZA. I de. Índios Kinikinau: aspectos etnolingüísticos. Revista Tellus,
Campo Grande, v. 7, n. 13, p. 103-133, 2007.
SOUZA, I de. Koenukunoe Emo'u: a língua dos índios Kinikinau. 2008. 196f.
Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
VIDAL, L. B. Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo:
Studio Nobel: USP: FAPESP, 1992. 296p.
50
Artigo II Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles Resumo
Este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul,
produzida por um grupo considerado “extinto” e confundido com outra etnia
durante muito tempo. A resistência desse grupo evidenciou uma “vontade de
diferença” que influenciou na busca por tradições esquecidas. Isso ocasionou a
“reinvenção” do artesanato, o qual se tornou instrumento de identidade étnica.
Mais tarde, esse mesmo artesanato começou a apresentar preocupações
estéticas. Frise-se aqui o trabalho singular de Agueda Roberto, artesã indígena
que detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de
produção da cerâmica Kinikinau que evidencia em suas peças manifestações
de ordem estética ligadas a “vontade de beleza”. Portanto, o objetivo geral
deste estudo foi discutir a relação da cerâmica Kinikinau produzida na
atualidade com o caráter de objeto artístico. Este trabalho procura explicar
como e porquê a cerâmica Kinikinau pode ser caracterizada como arte. O
argumento demonstra os principais elementos estéticos que qualificam esse
artesanato. Os instrumentos empíricos para atender ao objetivo foram
entrevistas com roteiro semiestruturado e observação sistemática do processo
de modelagem, ornamentação e acabamento da cerâmica de Agueda Roberto
coletadas por meio de visitas à aldeia São João, Reserva indígena Kadiwéu,
em Porto Murtinho. Utilizou-se também fontes documentais e fontes
historiográficas. Constatou-se que o artesanato Kinikinau deve ser considerado
objeto de caráter artístico porque evidencia, além de um domínio técnico, todos
os “elementos determinantes da arte ornamental” como a simetria, o ritmo e a
acentuação da forma.
Palavras-chave: Cerâmica indígena, Arte ornamental, Domínio técnico.
Abstract This work is engaged in the indigenous art Kinikinau in Mato Grosso do Sul,
produced by a group considered "extinct" and confused with another group for
a long time. The strength of this group showed a "will to difference" that
51
influenced the search for forgotten traditions. This led to the "reinvention" of the
handicraft, which became ethnic identity tool. Later, this same handicraft began
to present aesthetic concerns. It should be stressed here the singular work of
Agueda Roberto, indigenous craftswoman which has the theoretical and
practical control, besides the domain of Kinikinau ceramic production process
evident in her manifestations linked to "beauty will." Therefore, the aim of this
study was to discuss the relationship of Kinikinau ceramics produced today with
the character of the art object. This paper seeks to explain how and why
Kinikinau ceramic can be characterized as art. The argument shows the main
aesthetic elements that qualify this handicraft. The empirical instruments were
semi-structured interviews and systematic observation of the modeling process,
ornamentation and finishing of Agueda Roberto ceramic collected through by
visits to the São João village, Indian Reservation Kadiwéu in Porto Murtinho. It
also used documentary sources and historiographical sources. It was found that
the Kinikinau handicraft should be considered artistic object because it
highlights, in addition to a technical field, all the "elements determinants of the
ornamental art" as symmetry, rhythm and accentuation of the form.
Keywords: Indian pottery, ornamental Art, Technical field.
Introdução
A etnia indígena Kinikinau10 em Mato Grosso do Sul, passou por um
período de invisibilidade que perdurou quase um século. Joaquim Alves
Ferreira, representante da Diretoria Geral dos Índios11 declarou o
desaparecimento do grupo logo após a Guerra do Paraguai. Em 1872
apresentou um relatório ao ex-ministro do Império, José Pedro Dias de
Carvalho, divulgando notícias sobre as diversas etnias da Província de Mato
10 Durante o Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência”, realizado na cidade de Bonito – MS, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004, foi redigida a Carta de Bonito, que estabelece que o etnônimo do grupo passa a ser Kinikinau, com base em documentação histórica. Obedecendo a Convenção para grafia de nomes indígenas assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953, no Rio de Janeiro, os nomes tribais quer usados como substantivos, quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados. 11 A Diretoria Geral dos Índios foi estabelecida pelo decreto n. 426 de 24 de julho de 1845, para desempenhar ações exigidas pelo regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios.
52
Grosso. Conforme BUENO (1880, p.96), o diretor geral dos índios afirmou que
durante a batalha os Kinikinau “foram conduzidos pelos paraguaios para
Assunção e lá morreram todos”.
Essa “extinção” também foi decretada por órgãos indigenistas como o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) criado em 1910 e substituído em 1967
pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Segundo SILVA (2007), esses órgãos
deixaram de registrar nascimentos de crianças da etnia Kinikinau e o grupo foi
“convencido” a se autodenominar Terena12, outra etnia existente em Mato
Grosso do Sul, originária do mesmo tronco linguístico. A partir da segunda
metade do século XX a hipótese da “extinção” do grupo foi aceita por muitos
pesquisadores (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO, 1986), porém, estes ainda
chegaram a afirmar a existência de alguns remanescentes que se dispersaram
no pós-guerra.
Para SOUZA (2007), muitos Kinikinau assumiram a identidade Terena
como estratégia para garantir um território onde pudessem se instalar com
suas famílias, justamente porque após a Guerra do Paraguai, ocorrida entre
1864 e 1870, não conseguiram assegurar o direito às suas terras tradicionais.
Os grupos indígenas “entraram em competição com os criadores de gado que,
nesse período, começavam a ocupar a região. A maior parte dos grupos Guaná
perdeu suas terras, sendo compelidos a trabalhar para os que delas se
apossaram, ou a se dispersar” (RIBEIRO, 1986, p.84).
ALBUQUERQUE SOUZA (2003), esclarece que os Kinikinau
conseguiram se instalar definitivamente em 1940, após inúmeras expulsões
territoriais e perseguições por parte de fazendeiros, posseiros e invasores. O
SPI indicou ao grupo a Aldeia São João, onde a etnia reside atualmente
coabitando com os Terena e com os proprietários da área, os Kadiwéu13. Essa
aldeia faz parte da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu, no município de Porto
Murtinho, em Mato Grosso do Sul, Brasil. “Há notícias de membros desse
grupo residindo também em aldeias dos Terena, nos municípios de Miranda
12 Os Terena e os Kinikinau têm proximidade linguística porque são descendentes dos Txané-Guaná ou Guaná, como afirmam alguns pesquisadores, e pertencem ao tronco lingüístico Aruak, assim como as etnias Exoaladi (também conhecida como Guaná) e Layana. Conforme Oliveira (1976), esses quatro grupos migraram para o Brasil em meados do século XVIII e se instalaram no sul de Mato Grosso. 13 Grupo indígena originário da família linguística Mbayá -Guaicurú.
53
(Cachoeirinha e Lalima) e Nioaque (Brejão)” (SILVA e SOUZA, 2003, p.152).
Em 2005 estimou-se o total de 250 indivíduos (SILVA e SOUZA, 2005).
Os Kinikinau “ressurgiram” em 1997, quando a Prefeitura de Porto
Murtinho, através da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes,
iniciou um trabalho de Educação Escolar na Reserva Indígena Kadiwéu. Com a
perspectiva da implantação de uma escola que atendesse às necessidades do
grupo, começaram a revelar suas particularidades e a expressar uma
identidade étnica diferente dos demais14 (ALBUQUERQUE SOUZA, 2009).
Iniciaram a partir daí” uma intensa mobilização política15, ainda em curso,
reivindicando uma etnicidade própria e distinta dos indígenas Terena” (SILVA,
2007, p. 86).
“Extintos”, confundidos com outra etnia durante muito tempo e pouco
mencionados em livros e documentos oficiais (SILVA, 2007), a resistência
Kinikinau influenciou na busca por tradições esquecidas que ocasionou a
“reinvenção” do artesanato. Apesar da produção desse artesanato dar
continuidade a uma antiga tradição cultural Guaná, muitos de seus produtos,
concebidos por mulheres e homens da etnia, apresentam atributos inéditos,
pois não são inerentes às expressões culturais de seu passado, mas criações
atuais motivadas pelo que SILVA e SOUZA (2008, p.30) denominaram de
“vontade de diferença”. O artesanato emerge, então, estabelecendo um
contraponto de auto-afirmação do grupo. Ele se torna um elemento veemente
de fortalecimento da etnia.
Além dessa “vontade de diferença”, o artesanato Kinikinau começou a
expressar cada vez mais uma preocupação estética que vai ao encontro do
termo que RIBEIRO (1980) criou como sinônimo de arte, a “vontade de beleza”.
Portanto, este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato
14 Ver Histórias de admirar: os Kinikinau, por Giovani José da Silva (SILVA, 2014).
15 Em 2003, ocorreram dois eventos onde foi manifestada a existência dos Kinikinau: O ‘I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial’, realizado em Olinda-PE entre os dias 15 e 19 de maio, e o ‘Seminário dos Povos Resistentes: A presença indígena em Mato Grosso do Sul’, realizado em Corumbá-MS entre os dias 10 e 12 de dezembro. Em 2004, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul, organizou o ‘Seminário Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência’ na cidade de Bonito, entre os dias 16 e 18 de junho. Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada ‘Povo Kinikinau fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver’.
54
Grosso do Sul. O objetivo geral deste estudo foi discutir a relação da cerâmica
Kinikinau produzida na atualidade com o caráter de objeto artístico que se
define, segundo BOAS (1947), pela presença de um elemento formal que se
manifesta, nas artes gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição
rítmica e da acentuação da forma. Este trabalho procura explicar como e
porquê o artesanato Kinikinau pode ser caracterizado como objeto artístico. O
argumento demonstra os principais elementos estéticos que qualificam esse
artesanato como arte.
Para isso, foi preciso caracterizar a cerâmica confeccionada por uma
das artesãs da aldeia, Agueda Roberto, por meio do estudo de suas
modelagens e ornamentações. Esse estudo possibilitou identificar o elemento
formal intrínseco das artes gráficas e plásticas que a qualifica como objeto de
arte. Permitiu também averiguar características singulares como originalidade,
exigência do campo artístico e manifestações de ordem estética ligadas à
“vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que proporcionam um significado único e
diferente para cada peça.
Procedimentos Metodológicos
A pesquisa envolve a produção de cerâmica de uma artesã Kinikinau,
Agueda Roberto, Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas
Kinikinawa16 e moradora da Aldeia São João. A aldeia se localiza ao sudeste
da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu (Figura 1), no município de Porto Murtinho,
a 70 km de distância da cidade ecoturística de Bonito, em Mato Grosso do Sul,
Brasil.
Segundo PEREIRA et al. (2009), a Reserva Indígena Kadiwéu é
considerada uma área de Proteção Legal e possui uma extensão de 5.413,41
km², equivalentes a 30,62% de Porto Murtinho. O município de Porto Murtinho
localiza-se na região oeste do Estado do Mato Grosso do Sul (56,40° e 58,05°
de longitude oeste e 20,15° e 22,10° de latitude sul), correspondendo a uma
superfície de aproximadamente 17.680 km.
16 Razão social da Associação fundada na década de 80 e formalizada em 2003 por indígenas
e artesãos Kinikinau.
55
Figura 1. Localização da Reserva Indígena Kadiwéu: aldeia São João
e demais aldeias em Mato Grosso do Sul, Brasil. Fonte: CANAZILLES
et al. (2015).
Para atender ao objetivo geral foram utilizadas fontes documentais e
fontes historiográficas. Os instrumentos empíricos, englobando entrevistas com
roteiro semiestruturado e observações sistemáticas do processo de
modelagem, ornamentação e acabamento da cerâmica, foram coletados por
meio de levantamentos a campo, na Reserva indígena Kadiwéu, mais
precisamente na aldeia São João, em Porto Murtinho, localizada a 462 km da
capital, Campo Grande.
Essas observações em conjunto com as entrevistas serviram para
descrever as características do processo de produção ou técnicas de
confecção e conferir as razões da singularidade estética de Agueda Roberto,
que envolvem a natureza do objeto. Segundo THOMPSON (1992), a análise
das memórias captadas pelo pesquisador por meio de entrevistas pode revelar
relações sociais e fatos ocultos que às vezes não são evidenciados na
literatura. “Sem a evidência oral, o historiador pode, de fato descobrir muito
56
pouca coisa, quer sobre os contatos comuns da família com os vizinhos e
parentes, quer sobre suas relações internas” (THOMPSON, 1992, p.27).
Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve
análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade
Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se
tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este
trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer
Consubstanciado nº 780.523. A artesã entrevistada recebeu o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com os objetivos da pesquisa
expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.
Resultados e Discussão
Em “A arte primitiva” BOAS (1947) enfatiza que todos os povos que
conhecemos não conseguem investir todo o seu tempo apenas na obtenção do
próprio sustento. Necessitamos do dolce far niente17 para produzir obras que
proporcionem prazer estético. “A mera existência do canto, dança, pintura ou
escultura nas tribos que conhecemos é uma prova da ânsia de produzir
aquelas coisas que causam satisfação por sua forma e da aptidão do homem
para gozar delas” (BOAS, 1947, p.15).
ALVES (2016), em uma análise da obra de Mário de Andrade, contrapõe
a visão de BOAS (1947) e argumenta que as manifestações artísticas das
comunidades do passado podem não ter decorrido, necessariamente, da
aspiração pelo prazer estético,
“Não se pode afirmar, segundo Andrade (1963), que a
beleza tenha sido a motivação mobilizadora dos artistas
primitivos, clássicos e medievais. A beleza só emerge
como elemento vital da arte com o Renascimento. Está
indissoluvelmente ligada à emergência do indivíduo e do
individualismo. A arte deixa de celebrar os mortos e os
deuses para celebrar o próprio homem. Para o artista a 17 Expressão italiana que significa "o ócio que é bom".
57
arte, sendo reconhecida, representa sua própria glória
pessoal” (ALVES, 2016, p.2-3).
A visão, um tanto generalizada, de BOAS (1947) impede que se tenha
clareza das diferenças existentes entre a arte das comunidades primitivas e a
arte da nossa sociedade. Ele deixa de considerar um fator importante de
diferenciação. No caso da comunidade primitiva, a arte indígena e sua autoria
são manifestas coletivamente, além de ser indissociável da vida cotidiana.
Todo o grupo se envolve simultaneamente no trabalho para subsistência e na
criação artística. Segundo RIBEIRO (1989, p.13), a expressão simbólica e a
vontade de beleza fazem parte tanto da disposição espacial da aldeia, quanto
dos utensílios para prover subsistência, como também dos meios de transporte
e dos objetos de uso cotidiano ou ritual. Isso “reflete um desejo de fruição
estética e de comunicação de uma linguagem visual”.
Ao mesmo tempo, não há garantia de que todas as produções indígenas
possam ser consideradas objeto artístico. Para terem esse caráter BOAS
(1947) enfatiza que deve existir, nas artes gráficas e plásticas dessas
comunidades, um elemento formal que se revela por meio da simetria, da
repetição rítmica e da acentuação da forma.
Na sociedade capitalista, diferente das comunidades primitivas, a arte se
dissocia das atividades voltadas à subsistência porém, paralelamente, se torna
mercadoria. Normalmente encontra-se ligada às atividades de lazer e emerge
apenas em certos indivíduos da sociedade. Aqueles que têm aptidão para
desenvolver e se dedicar para a sua criação artística individual.
No entanto, BOAS (1947) esclarece que a disponibilização de tempo
para se concretizar e aprimorar uma obra artística é imprescindível. Isso vale
tanto nas comunidades primitivas,quanto nas comunidades indígenas de hoje,
bem como nas sociedades de classe. Neste sentido, podemos exemplificar a
própria cerâmica Kadiwéu, que alcançou a sua mais alta expressão artística no
momento em que houve uma especialização no trabalho das artesãs
ocasionada pelo tempo disponível. A cerâmica Kinikinau de Agueda Roberto
também vem alcançando um patamar artístico ao considerar que a
aposentadoria da artesã lhe possibilitou dedicar-se com mais afinco ao seu
artesanato.
58
O trabalho individual de Agueda Roberto também levanta outra
discussão, a da “impersonalidade coletiva” (ALVES, 2016) existente na arte das
comunidades primitivas, e que ainda se faz presente na arte indígena
manifestada na atualidade. Ela evidencia que a arte de um único autor
representa a arte de toda a comunidade. Berta Ribeiro declara existir poucos
estudos sobre a individualidade do artista indígena.
“Poucos estudiosos procuraram enfatizar a individualidade
do artista, sua criatividade pessoal, que caracteriza arte na
nossa sociedade. Isto se explica pelo fato de que, nas
sociedades mais simples, qualquer indivíduo é capaz de ter
todos os comportamentos culturalmente prescritos,
inclusive os artísticos, constituindo limitações as derivadas
apenas da condição de sexo e idade” (RIBEIRO, 1989,
p.29-30).
Nas sociedades de classe as principais características da arte, como
originalidade e singularidade, estão associadas à capacidade artística
individual. O artista é reconhecido individualmente pela sua arte. Algo que
ainda não ocorre nas manifestações artísticas do índio brasileiro. O porquê
pode estar relacionado a discussão de Darcy Ribeiro,
“O artista índio não se sabe artista, nem a comunidade
para a qual ele cria sabe o que significa isto que nós
consideramos objeto artístico. O criador indígena é tão
somente um homem igual aos outros, obrigado, como
todos, às tarefas de subsistência da família, de participação
nas durezas e nas alegrias da vida e de desempenho dos
papéis sociais prescritos de membro da comunidade.”
(RIBEIRO, 1987, p.30).
Para ALVES (2016), esse cenário está começando a se modificar. Falta
pouco para que a individualidade do artista indígena seja reconhecida, de
modo que ele possa assinar as suas obras. Isso decorre da emergência do
59
indivíduo despertada por um valor tipicamente burguês. O reconhecimento
artístico, portanto, é criado pelo mercado. Utilizando expressões de ANDRADE
(1963, p.24), o pesquisador acentua que “está em curso, na produção do
artesanato indígena, a transição da ‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva
para o ‘personalismo da arte contemporânea” (ALVES, 2016, p.3). Se referindo
ao artesanato indígena de Mato Grosso do Sul o autor evidencia já haver
reconhecimento, pela sociedade, das habilidades artísticas de algumas
artesãs,
“Algumas ceramistas já são reconhecidas [no mercado] por
suas habilidades especiais e suas peças são mais
procuradas. Entre as Terena são exemplos Rosenir e sua
filha Rosilene, ambas da aldeia Cachoeirinha. Em Campo
Grande é bastante conhecido o trabalho de Élida. Quanto
às artesãs Kadiwéu, as peças de Creuza Vergílio
dominaram uma expressiva fatia do mercado em Campo
Grande. Entre os Kinikinau, Agueda Roberto é considerada
a principal artesã” (ALVES, 2016, p.3).
Portanto, procurou-se destacar neste trabalho um grupo que na
atualidade vem afirmando sua identidade por meio da arte. Considerado
“extinto” e confundido com outra etnia, esse grupo indígena decidiu utilizar o
artesanato como instrumento de identidade étnica18, tendo como fator
determinante, o mercado.
A produção desse artesanato na atualidade, mais precisamente a
cerâmica, permitiu que a etnia aflorasse expressões artísticas de grande valor,
outrora reprimidas durante o longo período de invisibilidade. Vale destacar o
trabalho singular de Agueda Roberto, objeto deste estudo. A artesã indígena
detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de produção
18 CANAZILLES (2015), comprova tal proposição em um trabalho denominado “L’artisanat comme instrument de l'identité ethnique: le cas de Kinikinau au Mato Grosso do Sul, Brésil”, apresentado no “83e Congrès de L’association francophone pour le savoir” ocorrido no Canadá entre os dias 25 e 29 de maio de 2015.
60
da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas peças manifestações de
ordem estética que estão ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980).
Domínio Técnico A habilidade técnica alcançada por Agueda Roberto não ocorreu de uma
hora para a outra. O amadurecimento de sua arte se deu mediante a prática
constante que perdura há mais de uma década. A artesã afirma ter aprendido a
fazer cerâmica com sua avó, Dona Francisca Pereira, aos 10 anos de idade,
mais precisamente em 1964. Frisa-se que a tradição oral se manteve. Esse
ensinamento ficou guardado em sua memória durante toda a juventude,
quando precisou trabalhar como empregada doméstica nas fazendas da
região. A prática, portanto, ficou adormecida. “Eu, com 10 anos eu já comecei
fazer. Modelei o meu primeiro pote. Eu aprendi a fazer cerâmica com minha vó,
ela gostava de fazer cerâmica, eu ia lá na casa dela, daí eu via ela fazendo”
(CANAZILLES, 2014, p.1).
A retomada da produção aconteceu no ano de 1984 (ALVES, 2015), e
se ampliou com a criação da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa,
fundada na década de 1980 (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012) e formalizada
em 2003. Agueda Roberto, já aposentada, começou a dispor de tempo
suficiente para aperfeiçoar seu artesanato, além de passar seus
conhecimentos para as novas gerações. O esmero encontrado hoje no trabalho
da artesã indígena provém de muitas horas de dedicação e empenho. Natasha
Smoke Santiago, ceramista Mohawk do território de Akwesasne, Nova York,
EUA, acentua em entrevista concedida a CANAZILLES (2015a), que uma
década é suficiente para que se tenha um aperfeiçoamento técnico satisfatório
do trabalho em cerâmica: “I have been working with traditional Mohawk pottery
for over a decade, and am becoming pretty good at it”.
Em 2009 a pesquisadora Lucicleide Gomes dos Santos acompanhou a
produção do artesanato de Agueda Roberto na Aldeia São João. “Percebemos
que a cerâmica Kinikinau passa por um processo de estruturação, pois a cada
visita notam-se elementos novos tanto na técnica quanto na forma, o que de
forma alguma desmerece a cerâmica produzida” (SANTOS, 2011, p.110). Ao
compararmos os registros fotográficos realizados em 2009 e 2012 (Figuras 2 e
3), percebemos que o domínio dos procedimentos técnicos relacionados a
61
forma se manteve. Segundo BOAS (1947, p.27), “Uma vasilha de forma bem
arredondada é igualmente o produto do completo domínio de uma técnica. As
tribos primitivas fazem sua cerâmica sem ajuda do torno de oleiro. O
virtuosismo e a regularidade da superfície e da forma mantêm uma íntima
relação”. Nota-se porém que houve uma evolução nos padrões iconográficos e
na composição ornamental da cerâmica Kinikinau.
Figura 2. Vaso Kinikinau. 2009 Figura 3. Vaso Kinikinau. 2012
Artesã Agueda Roberto Artesã Agueda Roberto
Fonte: SANTOS (2011, p.107) Coleção Gilberto Luiz Alves.
Com o passar dos anos a artesã se apoderou de um domínio técnico
cada vez mais habilidoso. O “estilo de um artista muda a medida que sua obra
se desenvolve e cresce” (OCVIRK et al., 2014, p.4). A aplicação bem
equilibrada de motivos geométricos como espirais, curvas, contra-curvas,
losangos, triângulos e degraus intercalados denotam uma aproximação com a
célebre cerâmica Kadiwéu. Apesar das semelhanças, ALVES (2015), afirma
que a cerâmica Kinikinau tem sua própria singularidade e se distingue
nitidamente da Kadiwéu. Além da ausência dos baixos-relevos, impressos por
meio de cordões tecidos com fibras de caraguatá [e recobertos com o caulim],
as formas geométricas são pintadas com contornos mais espessos,
decorrentes da utilização de “graveto como pincel”. Com isso, se distanciam
62
dos delicados filetados Kadiwéu além de incorporarem “uma característica mais
orgânica que expressa maior movimento e dinamismo em sua composição”
(CANAZILLES, 2013, p.44-46).
Porém, há pesquisadores que afirmam que esses grafismos parecem
ser uma imitação, a exemplo de SOUZA (2008). Ela declara que “algumas
práticas atuais, principalmente as referentes ao artesanato, à pintura corporal,
aos adornos, parecem imitações, busca obstinada por uma identidade indígena
que a história perversa das políticas indigenistas tratou de apagar” (SOUZA,
2008, p.17). Outros pesquisadores declaram que os desenhos geométricos
inseridos na cerâmica Kinikinau contemporânea tratam-se de apropriações de
técnicas oleiras Kadiwéu (BOLZAN, 2013).
Analisando a trajetória histórica das duas etnias, em que relações
conflituosas sempre estiveram presentes, os termos imitação e apropriação
devem ser utilizados com cautela. Isso porque podem denotar um sentido
negativo na acepção da sociedade e da própria população que está sendo
pesquisada, além de acentuar relações de tensão entre os artesãos. Este
ponto de vista pode conferir também certa “inautenticidade” ao artesanato
Kinikinau, retirando grande parte do mérito de seus criadores. Um exemplo
disso são os questionamentos desconcertantes dirigidos ao indígena Kinikinau
e pesquisador da etnia, Albuquerque Souza, em uma entrevista realizada em
2014,
“Combate – Sobre as relações dos Kinikinau com os
Kadiwéu, sei que não vêm sendo muito tranquilas, havendo
até mesmo uma disputa pelos trabalhos em cerâmica
desenvolvidos pelas mulheres. Você quer falar a respeito?
Rosaldo – Sim, eu me sinto à vontade para falar, [...]. [...],
não há uma disputa, mas algumas pessoas pensam que as
ceramistas Kinikinau copiaram seus desenhos, o que é um
equívoco” (PACHECO, 2014).
Em sua dissertação o pesquisador complementa, “O grafismo Kinikinau
tem alguns traços parecidos com as pinturas e desenhos Kadiwéu, porém,
segundo as ceramistas, não são cópias nem imitação. São frutos da arte
63
própria dos Kinikinau, representam os rios, as florestas, os animais e tudo o
que se observa na natureza” (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012, p.33).
Fato que pode dar um outro enfoque à essa discussão são os resultados
de uma pesquisa histórica e arqueológica empreendida no ano de 1994, em um
aldeamento missionário do século XIX, localizado na região do Pantanal sul
mato grossense. O artigo denominado: A Missão Nossa Senhora do Bom
Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul, foi parte integrante do Projeto
Corumbá do Programa Arqueológico do Mato Grosso do Sul19.
Os pesquisadores PEIXOTO e SCHMITZ (1998) identificaram dois sítios
arqueológicos da antiga missão Nossa Senhora do Bom Conselho, grande
aldeia dos Kinikinau que existiu durante o século XIX. Foi dirigida por Frei
Mariano de Bagnaia entre os anos de 1850 e 185620 e por Frei Ângelo de
Caramânico a partir de 1857 até 1863.
Conforme PEIXOTO e SCHMITZ (1998), os dois sítios apresentaram
cerâmica pintada com presença de decoração plástica, existindo uma
preponderância na pintura vermelha com motivos geométricos e na impressão
de corda (Figura 4), técnica normalmente associada aos Kadiwéu.
Além disso, a partir da reconstrução gráfica determinaram-se seis
formas de vasilhame (Figura 5). Foi possível também saber a técnica de
produção utilizada, ou seja, a técnica do acordelado, que faz parte da tradição
ancestral dos Kinikinau.
Enfim, caso haja comprovação de que o material cerâmico identificado
nos sítios é de autoria da etnia Kinikinau, este poderá auxiliar na revitalização
da cultura material produzida atualmente, libertando o grupo de julgamentos
precipitados que envolvem termos como imitação e apropriação. Vale destacar
aqui as pesquisas da etnóloga SUSNIK (1978), evidenciando que a origem da
produção da cerâmica Kadiwéu foi influenciada por um intercâmbio cultural
existente no passado com os grupos Guaná, ancestrais dos Kinikinau, Terena
e Layana. Portanto, é “muito difícil referir-se às práticas culturais tradicionais,
sejam Kinikinau ou Kadiwéu, como exclusivas desses grupos, quando se
19 O Projeto Corumbá, executado entre os anos de 1990 e 1999, com financiamento do Instituto Anchietano de Pesquisas, da Universidade do Vale do Rio Sinos, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul. 20 Ver Canazilles et al. (2013).
64
percebe uma intensa circularidade de elementos culturais, própria de situações
de fronteiras étnicas, [...]” (SILVA e SOUZA, 2008, p.32).
Figura 4. Vestígios Arqueológicos: possível cerâmica Kinikinau
Fonte: PEIXOTO e SCHMITZ (1998, p.151).
65
Figura 5. Formas e tratamento da superfície dos vasilhames identificados. Fonte: PEIXOTO e SCHMITZ (1998, p.152-153).
O que se observa hoje é que está em curso um processo constante de
aperfeiçoamento da cerâmica Kinikinau. Restituir aos proprietários um
patrimônio que lhes pertence há mais de um século é dar um novo significado
para a sua cultura material, permitindo devolver ao grupo parte de sua história
e de suas tradições esquecidas. Evidentemente a decisão de utilizar ou não
essa herança cultural21 na produção contemporânea caberá unicamente ao
grupo. Esse assunto deverá merecer aprofundamentos, logo, será alvo de
estudos posteriores.
Arte indígena na perspectiva de Franz Boas Antes de discutir a relação da cerâmica Kinikinau com o caráter de
objeto artístico sob a perspectiva da “arte primitiva” de BOAS (1947) é preciso
esclarecer que a cerâmica produzida na atualidade nasceu ou “renasceu” no 21 Importante exemplificar aqui o trabalho da artesã indígena Natasha Smoke Santiago de Nova York, EUA. Com o intuito de restaurar o que foi perdido há mais de dois séculos, uma parte de seu trabalho cerâmico se inspirou nos vestígios arqueológicos da cerâmica tradicional Mohwak.
66
interior da sociedade capitalista. Portanto, sua reprodução tornou-se viável
somente sob a condição de mercadoria (ALVES, 2015). No entanto, esta
possui evidentes traços ancestrais tanto em sua técnica de produção, quanto
na matéria-prima empregada. Os próprios vestígios arqueológicos encontrados,
caso se comprovem Kinikinau, acentuam a presença de grafismos geométricos
nas ornamentações do passado, incorporações também evidenciadas hoje.
Deste modo, para evitar disparidades de ordem teórica, achamos fundamental
examinar o valor estético da cerâmica Kinikinau sob essa ótica, já que as
manifestações atuais, apesar de apresentarem atributos inéditos, remetem às
expressões tradicionais.
Além disso, se considerarmos a visão de Walter Benjamim, não existe
diferença entre obra de arte e mercadoria, no sistema capitalista. No passado a
atividade humana estética era apenas uma conduta cultural. “Assim que a arte
[burguesa] se constitui, no sentido próprio que hoje lhe damos, ela é
inseparável da forma de mercadoria” (BOLZ, 1992, p.92).
O elemento formal
O primeiro ponto a ser considerado na produção de cerâmica artística é
a execução de seu aspecto formal. A paciência e a destreza durante todo o
processo, principalmente o de modelagem, devem revelar o domínio de uma
técnica. BOAS (1947), acredita que existe uma íntima relação entre a
habilidade empregada pelo artesão e a atividade artística. A forma da cerâmica
tem que ser harmoniosa e deve haver uniformidade em seu tratamento externo.
Isso porque se converterão na base da decoração. “Toda falta de controle
automático produz irregularidades no desenho da superfície” (BOAS,1947,
p.26).
Durante a observação sistemática da produção da cerâmica Kinikinau
realizada a campo pudemos constatar a maestria de Agueda Roberto. No
processo de modelagem (Figura 6), ela sobrepõe os cordões em espiral
empregando uma pressão constante no “barro”. O alisamento une o conjunto
de cordões deixando a superfície uniforme e perfeitamente arredondada. Além
disso, o domínio técnico de que a artesã dispõe possibilita lhe conferir
agilidade. “[...], o virtuosismo, o domínio completo dos procedimentos técnicos,
significa uma regularidade automática de movimento” (BOAS, 1947, p.26).
67
Figura 6. Processo de modelagem da cerâmica Kinikinau. Artesã
Agueda Roberto.
68
A habilidade de Agueda Roberto permite também fazê-la ousar em suas
criações. Além de vasos tradicionais, modelagens zoomorfas são
confeccionadas representando a natureza (Figura 7). Manifesta-se na forma,
além de um estilo tradicional, também um “estilo figurativo” (RIBEIRO, 1980,
p.264).
Figura 7. Modelagem zoomorfa. Cerâmica Kinikinau.
Artesã Agueda Roberto.
Com o aspecto formal bem resolvido, outro elemento a ser considerado
é a existência de simetria nos padrões ornamentais, a qual “podemos observar
na arte de todos os tempos e de todos os povos. [...] até nas formas mais
sensíveis de arte decorativa se encontram formas simétricas” (BOAS, 1947,
p.37). Na própria fabricação da cerâmica acordelada “a simetria é o resultado
do procedimento empregado para fazê-la. Girando a vasilha [...] regularmente
obtém-se uma forma circular” (BOAS, 1947, p.40).
Seu uso tão frequente pode estar relacionado a uma razão fisiológica. A
sensação dos movimentos de direita e esquerda do corpo humano produzem
69
esse sentimento simétrico horizontal. Por outro lado, é menos comum
detectarmos na arte decorativa a aplicação de simetria vertical porque os
movimentos verticais do corpo humano são naturalmente assimétricos (BOAS,
1947).
Além da simetria bilateral, em que os dois lados de um único eixo são
exatamente iguais, temos a simetria invertida (Figura 8), que nada mais é que
“uma inversão das metades simétricas” (BOAS, 1947, p.42). Ou seja, há uma
rotação do desenho decorativo em um dos lados. Nas formas circulares
podemos ter também a simetria radial (Figura 9), em que “as zonas simétricas
estão desenhadas em forma radial, podendo existir [...] repetições” (BOAS,
1947, p.42). Neste caso, o objeto tende a apresentar vários eixos de simetria.
Eixo Eixos
Figura 8. Análise da simetria invertida
usada na cerâmica Kinikinau com
base em BOAS (1947).
Figura 9. Análise da simetria radial
usada na cerâmica Kinikinau com
base em BOAS (1947).
No trabalho de Agueda Roberto os três tipos de simetria apontados
acima se fazem presente. Percebe-se também o esforço em produzir padrões
simétricos pelas novas gerações. “Uma imagem simétrica representa a forma
mais elementar de equilíbrio artístico. Esse atributo imponente pode prender
nossa atenção, mas sua influência é breve, pois a composição é estática”
(OCVIRK et al., 2014, p.68). Essa composição estática está relacionada ao que
chamamos de simetria pura, em que um lado é exatamente igual ao outro. A
70
encontrada na obra de Agueda Roberto não é pura, denomina-se simetria
aproximada, porque os lados divididos pelo eixo central apesar de
semelhantes, não são idênticos. Isso decorre do caráter orgânico de suas
ornamentações. “Em geral, as composições com simetria aproximada são
muito mais interessantes do que as com simetria pura – as diferenças criam
maior interesse e, portanto, prendem a atenção do observador (OCVIRK et al.,
2014, p.68).
É preciso considerar que nestes últimos anos, Agueda Roberto vem
apresentando inovações em seus padrões ornamentais. A assimetria é uma
delas (Figuras 10 e 11). “O estilo expressivo de um artista realmente se
desenvolve por meio do tempo e da prática repetida” (OCVIRK et al., 2014,
p.6).
Figura 10. Composição assimétrica. Cerâmica Kinikinau.
Artesã Agueda Roberto. Coleção Gilberto Luiz Alves.
71
Figura 11. Composição assimétrica. Cerâmica
Kinikinau. Artesã Agueda Roberto.
Somente o senso de proporção compositivo permite que se alcance
equilíbrio em uma composição assimétrica, de maneira a harmonizar as
diferentes forças visuais. Agueda está se apropriando dessa técnica e tem
revelado obras auspiciosas. “Não há regras para se conseguir o equilíbrio
assimétrico”, mas o artista precisa tratar as “forças opostas e suas tensões
para que pareçam equilibrar umas às outras dentro da totalidade de uma obra,
[...]” (OCVIRK et al., 2014, p.72). Destaca-se neste trabalho a assimetria como,
também, elemento formal de valor artístico, confrontando um dos critérios
definidos por BOAS (1947). Neste sentido presume-se que é o equilíbrio o
elemento fundamental em uma obra de arte, tanto simétrica quanto
assimétrica.
Outro ponto fundamental é a existência de repetição rítmica, ou seja, a
repetição regular de um padrão ou motivo. Geralmente os elementos se
repetem horizontalmente realçando as divisões do campo decorativo. “As
atividades técnicas [como a do acordelado] em que empregam movimentos
72
repetidos regularmente conduzem a repetição rítimica na direção seguida pelos
movimentos” (BOAS, 1947, p.47).
Essa foi outra característica encontrada na cerâmica de Agueda
Roberto, revelada com propriedade. A mesma série de formas repetidas
normalmente em faixas horizontais produz uma sensação de movimento à sua
obra. “Um dos atributos da repetição é a capacidade de produzir ritmo. [...]
Dependendo de como são utilizados, a repetição e o ritmo podem despertar o
interesse em uma obra de arte e lhe conferir harmonia” (OCVIRK et al., 2014,
p.47).
Finalmente, outra característica encontrada na arte decorativa em todas
as partes do mundo é a aplicação de padrões marginais, ou seja, bordas que
destacam o artefato. “[...] não podemos referir essa tendência mundial a
nenhuma outra causa senão a um sentimento da forma, ou, em outras
palavras, a um impulso estético que move o homem a acentuar a forma do
objeto que sai de suas mãos” (SCHELTEMA apud BOAS, 1947, p.65).
Agueda Roberto normalmente divide o campo decorativo de um vaso em
três partes. O pescoço se destaca do corpo pela aplicação de um coroamento
que faz o arremate da borda superior. Já o campo inferior é dividido em duas
metades compostas por faixas ornamentais distintas (Figura 12).
Figura 12. Divisão do campo decorativo e repetição rítmica
Repetição rítmica
Divisão do campo decorativo
Parte I
Parte II
Parte III
73
Na cerâmica “não só a forma geral é acentuada e limitada, bem como
suas divisões naturais são também determinantes na aplicação dos padrões
decorativos e fazem com que a decoração se distribua em campos bem
distintos” (BOAS, 1947, p.66).
De acordo com essas considerações podemos concluir que está
presente na cerâmica de Agueda Roberto o elemento formal que se manifesta,
nas artes gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da
acentuação da forma. (BOAS, 1947). Portanto o artesanato de Agueda Roberto
deve ser considerado objeto de caráter artístico.
Podemos também configurar o trabalho de Agueda como fruto de um
“trabalho qualificado” porque contrapõe-se ao “trabalho especializado” imposto
pela manufatura, ou divisão do trabalho (ALVES, 2014). A artesã tem revelado
domínio técnico. Ela conhece bem todas as operações necessárias para a
produção do objeto artesanal. Destaca-se que esse artesanato tem grande potencial de consumo no
mercado. Pudemos constatar em dois momentos, no Festival de Inverno de
Bonito em 2014 e 2015, que suas obras despertaram nos consumidores grande
fascínio.
Conclusão
A arte indígena Kinikinau é manifestada em três diferentes momentos.
Quando comunidade primitiva, no momento do ostracismo e hoje, na
perspectiva do mercado.
Na comunidade primitiva, os Kinikinau manifestaram uma arte ceramista
representada com motivos geométricos e impressão de corda, técnica
normalmente associada aos Kadiwéu. Porém, é evidente o intercâmbio artístico
entre diferentes etnias, tanto no passado, quanto ainda no presente. Enfatiza-
se aqui a importância em não se considerar os elementos culturais exclusivos
de apenas um grupo étnico. Frise-se que a necessidade de comprovação da
autoria da cerâmica ancestral encontrada não anula o fato de haver existido no
passado uma cerâmica Kinikinau.
Durante o período do ostracismo, observa-se que o artesanato Kinikinau
se manteve “adormecido” esperando o momento exato para emergir. A técnica
74
do acordelado, guardada na memória dos mais velhos e manifestada na
atualidade, evidencia o desejo em dar continuidade em aspectos do passado
histórico da etnia.
Hoje, na condição de mercadoria, o artesanato Kinikinau se “reinventa”
e passa a aflorar expressões artísticas de grande valor outrora reprimidas
durante o longo período de invisibilidade. O trabalho singular de Agueda
Roberto é um exemplo disso. A artesã indígena detém o controle teórico-
prático e o domínio de todo o processo de produção da cerâmica Kinikinau,
além de evidenciar em suas peças características singulares como
originalidade, exigência do campo artístico e manifestações de ordem estéticas
ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que proporcionam um
significado único e diferente para cada peça.
É também na perspectiva do mercado que a individualidade do artista
indígena começa a ser reconhecida. Isso decorre da emergência do indivíduo
despertada por um valor tipicamente burguês. ALVES (2016, p.3) acentua que
“está em curso, na produção do artesanato indígena, a transição da
‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva para o ‘personalismo da arte
contemporânea”.
O artesanato de Agueda Roberto possui todos os “elementos
determinantes da arte ornamental” (BOAS, 1947, p.69), os quais englobam a
execução de um aspecto formal bem executado, a existência de simetria nos
padrões ornamentais, a repetição rítmica e a aplicação de padrões marginais.
Conclui-se, portanto, que este pode ser considerado objeto de caráter artístico.
Destaca-se também que a cerâmica Kinikinau tem grande potencial de
consumo no mercado, despertando nos consumidores grande fascínio. Talvez
aí esteja a sua maior semelhança com a cerâmica Kadiwéu. Agradecimentos
A autora agradece a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES); a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,
Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (FUNDECT), a Universidade
Anhanguera – Uniderp e a Université du Quebéc en Outaouais, Canadá.
75
Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. Leôncio Anastácio e a Chegada dos Kinikinawa à aldeia São João em Porto Murtinho: Entrevista concedida na
aldeia São João. Porto Murtinho, MS. 2003
ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. O Povo Kinikinau e sua trajetória ao ensino
superior. In: SEMINÁRIO POVOS INDÍGENAS E SUSTENTABILIDADE:
SABERES LOCAIS, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA, 3, 2009, Campo Grande.
Resumos... Campo Grande: UCDB, 2009. p.90, ref. 3.
ALBUQUERQUE SOUZA, R. de. Sustentabilidade e processos de reconstrução identitária entre o povo indígena Kinikinau (Koinukunôen) em Mato Grosso do Sul. 2012. 61f. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Sustentável) - Centro de Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília, Brasília.
ALVES, G. L. Arte, artesanato e desenvolvimento regional: temas sul-mato-grossenses. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2014. 104p.
ALVES, G. L. Utensílio, objeto de arte e mercadoria: trânsitos do artesanato cerâmico indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil. Relatorio de
pesquisa. Campo Grande: Universidade Anhanguera – Uniderp, 2015. 22p.
ALVES, G. L. Arte e artesanato para Mário de Andrade. Relatorio de
pesquisa. Campo Grande: Universidade Anhanguera – Uniderp, 2016. 3p.
ANDRADE, M. O baile das quatro artes. São Paulo: Livr. Martins Fontes,
1963.
BOAS, F. El Arte Primitivo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1947.
367p.
BOLZAN, A. V. Os Kinikinau de Mato Grosso do Sul: a existência de um
povo indígena que resiste. 2013. 143 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
76
Sociais) – Programa de Pós-graduação em ciências sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
BOLZ, N. W.; FONTAINE, M.de la. Onde encontrar a diferença entre uma obra
de arte e uma mercadoria? Revista USP, São Paulo, n. 15, p. 90-101, 1992.
BUENO, F. A. P. Provincia de Matto Grosso. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1880. 208p.
CANAZILLES, K. S. A. A produção e a comercialização do artesanato Kinikinau em Mato Grosso do Sul. 2013. 98f. Dissertação (Mestrado em Meio
ambiente e Desenvolvimento Regional) - Universidade Anhanguera Uniderp,
Campo Grande.
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Os Kinikinau: trajetória
histórica e a reinvenção do artesanato. Albuquerque Revista de História,
Campo Grande: UFMS, v. 5, n. 10, p. 99-120, 2013.
CANAZILLES, K. S. A. Diário de Bordo do artesanato Kinikinau II: entrevistas concedidas na aldeia São João em Porto Murtinho e na cidade de
Bonito. Porto Murtinho. Bonito, MS. 2014.
CANAZILLES, K. S. A. L’artisanat comme instrument de l’identité ethnique: le
cas de Kinikinau au Mato Grosso do Sul, Brésil. In: CONGRÈS DE L’ACFAS:
DÉCONSTRUCTION DE LA DOMINATION TEXTUELLE DES
AUTOCHTONES, 83, 2015, Rimouski. Resumos... Rimouski: ACFAS, 2015,
p.9. Disponível em: < http://www.acfas.ca/evenements/congres/programme /83
/300/319/C>. Acesso em: 18 jun 2015.
CANAZILLES, K. S. A. Diário de Bordo do artesanato Mohawk: entrevistas
concedidas no Centro de interpretação do sítio arqueológico Tsiionhiakwatha,
Quebéc, Canadá e no Território Akwesasne, Nova York, EUA. 2015a.
77
CANAZILLES, K. S. A.; ALVES, G. L.; MATIAS, R. Comercialização do
artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul,
Brasil. Pasos - Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, Santa Cruz de
Tenerife, v. 13, n. 5, p. 1171-1182, 2015.
OCVIRK, O. T.; STINSON, R. E.; WIGG, P. R.; BONE, R. O.; CAYTON, D. L.
Fundamentos de arte: teoria e prática. New York: AMGH Editora Ltda, 2014.
328p.
OLIVEIRA, R. C. de. Do índio ao bugre. São Paulo: Francisco Alves, 1976.
149p.
PACHECO, T. Entrevista com indígena Kinikinau Rosaldo Albuquerque Souza em novembro de 2014 para a Revista Combate. 2014. Disponível em
: < http://www.cedefes.org.br/?p=indigenas_detalhe&id_afro=12803>. Acesso
em: 10 nov 2015.
PEIXOTO, J. L. S.; SCHMITZ, P. I. A Missão Nossa Senhora do Bom
Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul. Revista Pesquisas História, São
Leopoldo, n. 30, p. 133-155, 1998.
PEREIRA, N. R.; ZARONI, M. J.; BHERING, S. B.; AMARAL, F. C. S.;
CHAGAS, C. da S.; CARVALHO JUNIOR, W. de; GONÇALVES, A. O.; SILVA,
E. F. Zoneamento agroecológico do município de Porto Murtinho, MS.
Boletim de Pesquisa e Desenvolvimento. Dados eletrônicos. Rio de Janeiro:
Embrapa Solos, 2009. 65p.
RIBEIRO, D. Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza.
Petrópolis: Vozes, 1980. 318p.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas
no Brasil moderno. Petrópolis: Vozes Ltda, 1986. 510p.
78
RIBEIRO, B. G. Suma Etnológica Brasileira III: arte índia. Petrópolis: Vozes,
1987. 300p.
RIBEIRO, B. G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP. 1989. 186p.
SANTOS, L. G. dos. Cerâmica Kinikinau: a arte de um povo tido como extinto.
2011. 124f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da
Grande Dourados, Dourados.
SILVA, G. J. da. Ressurgidos, emergentes, resistentes: reflexões sobre as
presenças indígenas Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In:
SEMANA DE HISTÓRIA, 5, 2007, Três Lagoas. Anais... Três Lagoas: UFMS,
2007. 426 p.
SILVA, G. J. da. Histórias de admirar: os Kinikinau, por Giovani José da Silva. 2014. Disponível em: http://racismoambiental.net.br/?p=165029. Acesso
em: 10 ago 2016.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. O despertar da fênix: a educação escolar
como espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do
Sul. Revista Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 149-156, 2003.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. Povos Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental. Kinikinau. 2005. Disponível em: <http://pib.socioambiental.
org/pt /povo/ kinikinau /print>. Acesso em: 24 set 2012.
SILVA, G. J. da; SOUZA, J. L. de. História, etnicidade e cultura em fronteiras:
os Kinikinau em Mato Grosso do Sul. In: Rocha, L. M.; Baines, S. G. Fronteiras e espaços interculturais. Goiânia: UCG, 2008. 120p.
SOUZA, I de. Koenukunoe Emo'u: a língua dos índios Kinikinau. 2008. 196f.
Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
79
SOUZA, J. L. de. Da desterritorialização ao território simbólico: o caminho de
uma sociedade indígena rumo ao seu território tradicional. Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 8, n. 23, p. 73-80, 2007.
SUSNIK, B. Etnografia Paraguaya. Parte 1ª. Clasificacion de lãs poblaciones
indígenas del area Chaqueña. Manuales del Museo Etnográfico “Andres
Barbero” II. 9. ed. Asunción: Museo Etnográfico “Andres Barbero”, 1978. 284p.
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992. 385p.
80
7. Conclusão Geral
O artesanato Kinikinau “reinventado” foi determinado pela etnia na
atualidade como instrumento de identidade étnica porque a sua produção vem
enraizada de um significado profundo que envolve um sentimento de
reafirmação do grupo. SILVA e SOUZA (2008) definiram esse sentimento como
“vontade de diferença”.
É importante acentuar que a cerâmica Kinikinau, no contexto em que se
encontra hoje, vem imbuída também de preocupações estéticas que revelam
outro sentimento, a “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980). Este permitiu ao
grupo aflorar expressões artísticas de grande valor outrora reprimidas durante
o longo período de invisibilidade.
O mercado do artesanato indígena da cidade ecoturística de Bonito,
Mato Grosso do Sul, é o fator determinante na luta pela afirmação da
identidade étnica Kinikinau porque dá visibilidade ao grupo frente à sociedade
capitalista. Destaca-se ainda que a cerâmica Kinikinau, especialmente a da
artesã Agueda Roberto, tem grande potencial de consumo no mercado porque
desperta nos consumidores um grande fascínio.
É também na perspectiva do mercado que a individualidade do artista
indígena começa a ser reconhecida. Isso decorre da emergência do indivíduo
despertada por um valor tipicamente burguês. ALVES (2016, p.3) acentua que
“está em curso, na produção do artesanato indígena, a transição da
‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva para o ‘personalismo da arte
contemporânea”.
O trabalho singular de Agueda Roberto é um exemplo disso. É
reconhecida como a principal artesã da etnia na cidade de Bonito. Agueda
Roberto expressa em seu trabalho originalidade e busca por apuramento
técnico. Cada exemplar da artista é único tornando-se impossível dissociar sua
autoria. Ela detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de
produção da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas peças
manifestações de ordem estética que estão ligadas à “vontade de beleza”. O
artesanato de Agueda Roberto pode ser considerado objeto de caráter artístico
porque possui todos os “elementos determinantes da arte ornamental” (BOAS,
1947, p.69).
81
Importante acentuar que as condições para o escoamento do artesanato
Kinikinau no mercado revelam, contraditoriamente, um grande número de
limitações. Além disso, as políticas públicas voltadas a projetos de melhoria
referentes ao processo de produção e comercialização da cultura material
Kinikinau ainda são inexistentes.
Esses fatores impedem que o artesanato Kinikinau se consolide no
mercado de uma maneira satisfatória, para atender às expectativas do grupo
em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas necessidades concernentes à
geração de renda. Por isso é necessário a interferência do Estado com ações
governamentais repensando as práticas vigentes e instaurando novas
estratégias por meio de políticas públicas no sentido de incentivar e inovar a
produção, bem como melhor prover o escoamento do artesanato indígena no
mercado. Dessa maneira será possível proporcionar atalhos para a afirmação
da identidade, além da melhoria do bem estar social nesses grupos por meio
da geração de renda, elemento determinante para a valorização cultural.