Arte Contemporânea, mas o que é isso?

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Arte Contemporânea, mas o que é isso? "A arte, que exprime a vida, é tão misteriosa quanto ela" Élie Faure Se a arte tem algo que lhe é próprio é o fato de ser uma intensificação da vida, de trazer algo diretamente da fonte da vida, por isso ela é sempre produção de uma realidade, invenção de novos mundos, expressão dos fluxos que constituem o universo e das forças em confronto num campo social. O confronto da arte é sempre com o senso comum, com os clichês, é contra isso que ela se levanta. No mais, tudo é inconstância e variação contínua. Dessa maneira ao abordar uma obra de arte é importante reconstituir a realidade que ela traz, sem tentar convertê-la em outra linguagem, neste caso em escrita, mas buscar a partir da própria obra o que dela emana, qual sua potência, qual a vontade que passa por ela, o que quer suscitar, o que o artista através da obra quer produzir no espectador. Quando se pensa em Arte Contemporânea, uma questão logo se impõe: o que justifica a mudança de termos para designar a arte que tem sido produzida na história recente? Em que sentido ela deixou de ser moderna e passou a ser contemporânea? O que de fato mudou? Algo começa a se delinear quando se percebe como, de uma forma extrema, a arte contemporânea coloca o problema da impostura, em que uma arbitrariedade passa a fazer parte da própria obra. Daí a dificuldade de se pensar algo que não tem definição, que não segue nenhum modelo, que extrapola os limites, que está

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explorando um pouco questões da arte contemporânea por Cristina Pescuma

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Arte Contemporânea, mas o que é isso?

"A arte, que exprime a vida, é tão misteriosa quanto ela" Élie Faure

Se a arte tem algo que lhe é próprio é o fato de ser uma intensificação da vida, de trazer

algo diretamente da fonte da vida, por isso ela é sempre produção de uma realidade,

invenção de novos mundos, expressão dos fluxos que constituem o universo e das

forças em confronto num campo social. O confronto da arte é sempre com o senso

comum, com os clichês, é contra isso que ela se levanta. No mais, tudo é inconstância e

variação contínua. Dessa maneira ao abordar uma obra de arte é importante reconstituir

a realidade que ela traz, sem tentar convertê-la em outra linguagem, neste caso em

escrita, mas buscar a partir da própria obra o que dela emana, qual sua potência, qual a

vontade que passa por ela, o que quer suscitar, o que o artista através da obra quer

produzir no espectador.

Quando se pensa em Arte Contemporânea, uma questão logo se impõe: o que justifica a

mudança de termos para designar a arte que tem sido produzida na história recente? Em

que sentido ela deixou de ser moderna e passou a ser contemporânea? O que de fato

mudou? Algo começa a se delinear quando se percebe como, de uma forma extrema, a

arte contemporânea coloca o problema da impostura, em que uma arbitrariedade passa a

fazer parte da própria obra. Daí a dificuldade de se pensar algo que não tem definição,

que não segue nenhum modelo, que extrapola os limites, que está sempre forçando as

fronteiras, que não para de escapar, ainda mais que a arte moderna, de uma tradição

aceita e esperada, porque sempre em dissonância.

Nos anos 60 algo se rompeu no processo que estava se desenrolando há várias décadas,

fazendo com que uma outra maneira de produzir, de apresentar e de entender a arte

aparecesse, chegando ao ponto de estar excasseando atualmente a produção artística nos

termos do que foi a moderna. Algumas mudanças que, naquela década, começaram a se

propagar estão relacionadas a dois acontecimentos que deram novas direções ao fazer

artístico e que podem ser considerados como fatores fundamentais para o surgimento de

uma nova arte.

Um foi a prática que se difundiu rapidamente entre muitos artistas de utilizar novos

tipos materiais, considerados não nobres, e de apropriar imagens produzidas ao longo da

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história da arte ou tiradas dos meios de comunicação de massa, além de incorporar

objetos prontos tirados do cotidiano, coisa que hoje para nós já se tornou fato

extremamente comum, mas então teve um papel central nessas modificações que

estavam ocorrendo, a ponto de ser a principal responsável nessa passagem do moderno

ao contemporâneo. O outro acontecimento foi a ampliação das possibilidades de criação

que se deu com diversas experimentações em todos os campos, impulsionando a

invenção de novas linguagens, como a prática da Performance, de Intervenções urbanas

e de paisagem e de um novo modo de ocupar o espaço com Instalações, considerando

também o fato de a fotografia ter se tornado um meio artístico muito valorizado como

algo essencial nessas mudanças.

Isso tudo acabou por transformar o próprio conceito de arte. A partir disso, não há mais

uma separação necessária entre as linguagens, um artista nem sempre produz apenas

pintura ou escultura, mas objetos dúbios, andrógenos que tanto podem ser uma coisa

como outra, bem como pode não haver objeto algum como resultado de sua atividade, é

o que se chamou de desmaterialização da arte, a arte em si passando a ser a própria

ideia, ou ainda, o processo enquanto uma ação que se desenrola ao vivo ou que é

registrada em fotografia ou vídeo, que se torna então, o próprio trabalho. Há quem diga

atualmente que a arte tornou-se essencialmente conceitual.

Essa mistura de meios configurou o que foi chamado de "campo expandido". Esse

conceito nos possibilita ter um entendimento dos desdobramentos da arte nas últimas

décadas, quando ela se associou à ciência, à tecnologia, à filosofia, à indústria, ao

artesanato, colocando lado a lado num mesmo trabalho escrita, imagem, objetos, sons

em que a obra se torna um agregado de coisas e de imagens formando assemblagens e

instalações. Uma arte multissensorial. Nesse sentido fala-se em escultura expandida,

pintura expandida, cinema expandido, fotografia expandida... Num único trabalho uma

variedade de meios interatuando.

O artista tornou-se uma espécie de colecionador, aquele que sai à cata de objetos e

imagens, ou mesmo apenas ideias, para integrar a sua coleção particular, a partir da qual

irá compor sua obra, que pode ser ready-made ou handmade. Dessa forma, a destreza

manual e técnica deixa de ser atributo indispensável do artista que, ao se apropriar de

objetos, de imagens ou tratar apenas do planejamento da obra e deixar a execução a uma

equipe ou outros profissionais, funciona como um agenciador de diferentes ações. A

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poética contemporânea voltou-se fundamentalmente para os procedimentos, estes

passaram a fazer parte da obra em si que, muitas vezes perde o sentido quando não se

explicita o processo, o qual se dá de maneira rizomática, numa linha de errância que se

constitui à medida que é traçada, feita ao bocados, aberta a desvios e acasos, também

caracterizada algumas vezes por um inacabamento. É num mesmo gesto que o artista

conjuga elementos cotidianos na obra e a projeta no fluxo comum do dia-a-dia.

Incorpora o mundo e se expande no mundo.

Assim, muitas vezes o espaço expositivo passa a fazer também parte da obra ou ainda

esta extrapolando a moldura, a galeria, ganha a arquitetura, a cidade, a natureza, o

mundo e também o corpo. Qualquer coisa se torna espaço ou suporte para a arte. A

efemeridade também foi valorizada nessa ênfase dada ao processo, pois a obra, às

vezes, acontece e se dissipa no momento em que é produzida. Dessa maneira, espera-se

uma nova postura do público, convidado a ir além da apreciação contemplativa, a dar

um sentido diferente ao trabalho, interferindo, tornando-se peça constituinte da obra.

Vivemos num campo social que pôs em movimento uma alucinante máquina de

produção em massa de tudo e qualquer coisa. Mundo de artifícios. É com esta matéria

que o artista contemporâneo se confronta, é esta sua matéria-prima, apodera-se dela para

produzir um simulacro, subtraindo toda utilidade, revertendo as cópias e o original,

transvasa uma diferença na repetição, pondo à mostra as redes de poder das quais faz

parte, o desejo que as instâncias de poder incitam em nós, a direção inferior que deram à

vida, um modo de viver inteiramente mercantilizado, em que tudo se resume em

consumo, nos lançando num vazio. Enfim, a arte aponta a maneira como a sociedade

percebe o mundo, a precariedade dos hábitos, seus valores, seus medos.

Hoje nos vemos diante de uma incrível diversidade de trabalhos, o que é bem instigante,

uma abertura como nunca houve antes na história, possibilitando a produção da mais

variada gama de criações, mas também, corre-se um risco bem maior de cair em

repetições sem sentido, em impasses.

A arte em si é desterritorializante, sempre escapando, tornando-se outra coisa, qualquer

coisa, numa expansão descentrada e descentralizante. Não há limite do que pode vir a

ser uma obra de arte contemporânea, ela é, por excelência, pluralista e indefinida. Não

há, portanto, parâmetros os quais possibilitem fazer classificações à maneira cartesiana,

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só podemos traçar alguns mapas transitórios. Não é possível chegar a nenhum consenso,

ela é por excelência discrepante.