ArtCultura 12 Favaro

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Uma relação muito difícil: os corpos femininos e a Medicina Cleci Eulália Fávaro Doutora em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora do Centro de Ciências Humanas e do Programa de Pós- graduação em História da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos). Autora, entre outros livros, de Imagens femininas: contradições, ambivalências, violências. Porto Alegre: Ed. PUC-RS, 2002. [email protected]

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visões do feminino na medicina

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    Cleci Eullia FvaroDoutora em Histria do Brasil pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande doSul (PUC-RS). Professora do Centro de Cincias Humanas e do Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos). Autora, entreoutros livros, de Imagens femininas: contradies, ambivalncias, violncias. PortoAlegre: Ed. PUC-RS, 2002. [email protected]

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    Uma relao muito difcil: os corpos femininos e a MedicinaCleci Eulalia Favaro

    MARTINS, Ana Paula Vosne Martins. Vises do feminino: a medicina damulher nos sculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, 288p. (Coleo Histria e Sade).

    Diante de um processo de intensa exaltao do corpo feminino, pa-ralelamente a uma tambm intensa banalizao, efetuada pela mdia edecuplicada pelas academias, pelas dietas, pela alimentao natural, pelossuplementos alimentares, pelos cosmticos, e mais do que nunca, pelamoda, destinada a vestir (despir?) corpos femininos jovens, em busca deuma esttica corporal que valoriza a perfeio da forma, em detrimentodo fundo, mltiplos e variados so os dividendos auferidos pela econo-mia mundial dita globalizada. Em nome da beleza e da juventude, os cor-pos femininos so torturados (por iniciativa e consentimento das prpriasvtimas) por aes invasivas (e no necessariamente bem sucedidas) decirurgies plsticos, nutricionistas, personal trainers (e uma parafernlia deequipamentos), esteticistas, cabeleireiros, cosmetlogos e designers de moda. a indstria da beleza que define os padres (econmicos) do que beloe digno de ser admirado e, evidentemente, cobiado. Neste sentido, ocorpo feminino, uma vez mais, objeto.

    Este, no entanto, no o tema desenvolvido na obra de Ana PaulaVosne Martins produto de sua tese de doutorado em Histria ,intitulada Vises do feminino: a medicina da mulher nos sculos XIX e XX.Mas a leitura um texto gil e atraente leva a pensar nos processos decondicionamento a que o corpo feminino vem sendo submetido ao longode sculos, sob o peso dos mais diferentes interesses (polticos, sociais,econmicos, religiosos ou cientficos).

    Para compreender os mecanismos, ferramentas e processos de queum dado segmento social se vale para impor seus pontos de vista e seusobjetivos sobre o restante da sociedade em uma determinada poca, olivro de Martins nos conduz atravs dos meandros de uma destas verten-tes, quando trata das relaes cada vez mais estreitadas entre o sabermdico, questes polticas e o corpo feminino.

    Logo emerge uma pergunta: mas existe alguma relao entre fato-res aparentemente to dspares? a prpria autora quem responde: nasegunda metade do sculo XIX, a questo sexual era um problema queperseguia muitos homens da cincia, particularmente os mdicos, essesespecialistas em olhar e examinar os corpos e estabelecer verdades sobre aNatureza e a identidade dos indivduos [submetidos] aos detalhes muitontimos e internos (p. 23 e 24). Mais ainda, quando se tratava do corpofeminino e de sua fisiologia.

    Metodologicamente, ao longo de toda a obra, a autora estabeleceum fecundo dilogo entre as fontes documentais que utiliza para a cons-truo do texto, provenientes da pesquisa em arquivos ou na literatura jproduzida, com vistas a comprovar o argumento-base, qual seja, de que a

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    ainstituio do corpo feminino como objeto do discurso mdico-cientfico esua transformao em lugar de prtica de interveno de seus agentesgeraram um processo de gerenciamento dos corpos femininos sem pre-cedentes at meados do sculo XIX (p. 15).

    O discurso perpassa diferentes nveis e instncias de discusso so-bre como se efetuou tal gerenciamento e quais os resultados (prticos,tericos, cientficos, sociais, culturais e, principalmente, polticos) no sen-tido de conter e conformar os corpos femininos e sua sexualidade (quepodia resultar na dinmica familiar, e por extenso, na formao do Esta-do) dentro de normas, regras e preceitos nosolgicos (naturalmente, for-mulados por homens, neste caso, os mdicos). Conflitos de interesses,confrontos de idias e um discurso no das mulheres sobre si prprias,mas dos homens sobre a natureza feminina mostram as trajetrias deuma sociedade (a Ocidental, e nela, o Brasil dos sculos XIX e XX) emprocesso de mudana profunda no rumo da modernidade.

    Vises do feminino: a medicina da mulher nos sculos XIX e XX apre-senta-se organizado em seis captulos, cada um deles, por sua vez, articu-lado em outros tantos segmentos destinados a compor o quadro propostopelo ttulo.

    O primeiro captulo Gnero, cincia e cultura trata de verifi-car como anatomistas, fisiologistas e mdicos passaram a questionar osconhecimentos sustentados na tradio aristotlico-galnica a respeito dasdiferenas entre homens e mulheres, no sentido de compreender, tanto ossignificados do extenso inventrio sobre as diferenas sexuais empreendi-do durante os sculos XVIII e XIX, quanto o fato significativo de que adiferena foi localizada no corpo feminino (p. 23).

    Ainda no mesmo captulo, a autora investe no campo da produodiscursiva sobre a alteridade feminina, argumentando a necessidade defaz-lo diante da constatao de que, se as diferenas entre os sexos eramto irredutveis e foram minuciosamente descritas e classificadas, cabeento questionar as conseqncias deste tipo de conhecimento para a vidadas mulheres, na medida em que estabeleceram os fundamentos cientfi-cos da natureza e identidade feminina (p. 23).

    Tais discursos, no entanto, no se estabeleceram como regra aceitaem sua totalidade, diante de posturas diferenciadas: se para os intelectu-ais que defendiam a causa das mulheres, as desigualdades se originavamna prpria sociedade, na falta de oportunidades iguais para ambos ossexos (p. 30), para os defensores que justificavam uma ordem social fun-dada nas desigualdades de gnero,

    a questo no se colocava na sociedade, mas nas leis inexorveis da Natureza:as mulheres eram inferiores aos homens porque eram menores, mais frgeis,mais sensveis e mais sujeitas aos imperativos da sua natureza sexual. Homense mulheres eram, segundo esta interpretao, radicalmente diferentes em suaconstituio fsica e intelectual, e esta diferena era irredutvel estava inscri-ta nos corpos, ou seja, nos corpos sexuados de homens e mulheres (p. 31).

    O segundo captulo A cincia obsttrica visa a desfazer al-guns ns da polmica questo gerada em torno do desenvolvimento deum dos ramos da Medicina em processo de especializao. A prpria au-tora destaca que a histria feminista do parto e da maternidade retirou

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    de cena a oposio ideolgica entre saber e superstio, para coloc-la nocampo das disputas profissionais e da constituio de novos saberes sobreo corpo feminino que tiveram lugar a partir do sculo XVIII. No entanto,a entrada dos mdicos na cena do parto foi muito mais resultado de umarelao de foras do que simplesmente a superao do obscurantismo peloprogresso do conhecimento mdico. Trata-se, a partir da afirmao, deum relao conflituosa e no harmnica, merecedora de uma ateno maisdetida (p. 70 e 71).

    O captulo seguinte A cincia da mulher incursiona sobre aliteratura mdica a respeito da organizao do corpo feminino. No sculoXIX, obstetras, ginecologistas e mdicos legistas valeram-se de resultadosde experincias anatomo-fisiolgicas para fundamentar suas teorias sobrea organizao nervosa do corpo feminino em sistema de rede, ligandoovrios e tero atravs de gnglios e nervos ao eixo crebro-espinhal.

    O problema, destaca Martins, reside nas interpretaes ideolgicasque foram dadas a tal organizao, dado que resultaram em afirmaescategricas de que na mulher esse sistema era instvel, marcado pelodesequilbrio e que, portanto, qualquer excitao perifrica sempre deorigem sexual poderia perturbar um to frgil equilbrio, a ponto decausar problemas psquicos de variadas intensidades, oscilando entre umasimples dor de cabea e estados melanclicos, manifestaes histricas edelrios, passveis de provocar infanticdio ou suicdio (p. 111).

    Do ponto de vista da autora, os textos produzidos pelos mdicosdurante o sculo XIX a respeito da definio sexual da mulher revelamsuas ansiedades diante das incertezas geradas pelo mais completo desco-nhecimento em relao sexualidade feminina. Se, de um lado, a aproxi-mao entre mdicos e mulheres (clientes) favorecia as condies necess-rias para o conhecimento da fisiologia feminina, de outro, aumentava omal-estar masculino em relao sua sexualidade, quase sempreequacionada ao excesso ou ausncia (p. 112). A especificidade da natu-reza feminina est, portanto, na origem da constituio desta nova especi-alidade mdica que se consolidou nas faculdades de medicina, em associ-aes mdicas e na clnica: a ginecologia (p. 118).

    A partir de ento, um verdadeiro vu de segredo passou a recobriros livros de ginecologia e obstetrcia, contribuindo para a construo, noimaginrio coletivo, da figura do mdico como um guardio dos segre-dos da feminilidade, o homem da cincia que podia explicar a mulherporque a conhecia no seu prprio territrio, j mapeado pela topografiaginecolgica, capaz de proteg-la de si mesma, dado que ele havia desco-berto sua verdade: a mulher era o seu corpo e sobre este se dirigiam osolhares e as prticas (p. 125).

    No quarto captulo, intitulado A obstetrcia e a ginecologia no Bra-sil, a autora comea a tratar da questo de como a Medicina vai depositarseu olhar (e suas prticas teraputicas) sobre o corpo feminino, nos cam-pos da obstetrcia e da ginecologia, sob inspirao e orientao europia.

    Apesar de o ensino e a prtica da obstetrcia e da ginecologia teremsido muito precrios at a dcada de 1870, as duas especialidades tiveramseus defensores na figura de alguns dos mais famosos mdicos de Salva-dor e do Rio de Janeiro, responsveis pela organizao destas especialida-des e pela produo de um conhecimento que atendesse s necessidadesimpostas pelas condies culturais e materiais em que exerciam a medici-

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    ana. (p. 141). Aps vencer barreiras culturais que dificultavam o acesso dosmdicos aos corpos femininos, foi significativo o nmero de teses mdicassobre a mulher produzidas ainda no sculo XIX, particularmente aps aimplantao do ensino clnico e no apenas terico da obstetrcia e daginecologia, contribuindo para as discusses ento em voga sobre o tema.

    A autora destaca que um dos temas que mais preocupou os mdi-cos foi a menstruao e seus efeitos sobre a fisiologia e o estado emocionaldas mulheres. No Brasil, as antigas concepes que relacionavam a purga-o do sangue menstrual impureza e incapacidade tiveram e aindahoje tm incrvel vitalidade e aceitao, tanto nos textos mdicos quantona cultura popular. Mesmo com os estudos fisiolgicos sobre a ovulaonos mamferos, em curso desde meados do sculo XIX, a fora das repre-sentaes sobre a mulher que sangra se impunha nos discursos mdi-cos, ao mesmo tempo em que era operacional na manuteno e no reforodas relaes assimtricas de gnero, associando a diferena debilitantedas mulheres incapacidade de atuar nos mesmos espaos que os ho-mens (p. 166).

    O captulo seguinte O mdico de senhoras e a clnica de mulhe-res amplia as reflexes sobre a situao, no Brasil, das prticas mdi-cas sobre o corpo feminino, quando trata, conforme o ttulo, de verificar opapel social do mdico de senhoras e a clnica de mulheres.

    Paralelamente instalao de hospitais em todo o territrio nacio-nal, era disseminada uma intensa discusso em torno da gravidez e doparto, integrando uma nova viso a respeito da mulher, cujo corpo deviaser frtil e saudvel a fim de cumprir a funo materna, revestida de umnovo simbolismo poltico. Para Martins, o que os mdicos do sculo XIXpretendiam inculcar nos corpos e mentes das mulheres era que sua natu-reza no estava somente disposio de interesses egostas ouparticularistas, como a transmisso do sangue e do nome da famlia, masde valores muito mais importantes e coletivos, como a raa, o vigor de umpovo, o sangue de uma nao. Assim, mdicos e outros intelectuais dofinal do sculo XIX procuraram transformar a maternidade em uma fun-o poltica de extrema importncia para ser abandonada s mos de lei-gos (p. 177), situao que movimentava os crculos intelectuais e polticosnacionais em torno de numerosas polmicas, o que tambm fornece infor-maes valiosas sobre o grau de interveno nos corpos femininos e suatransformao em casos, em peas passveis de observao, descrio,anlise e comparao, origem e destino do saber mdico (p. 180).

    No processo, construa-se um discurso ideolgico sobre o papel so-cial da maternidade, produzindo o que poderamos chamar de uma pas-toral moderna, consolidada na Cincia, mas com o aval da religio. Estaideologia transformou a maternidade em um dever no s para com afamlia, mas para com o Estado e com a Ptria. Os mdicos acenavam compromessas de felicidade, de realizao pessoal na criao dos filhos e deelevao moral da mulher, algo que tanto o romantismo quanto opositivismo sancionaram ao idealizar a maternidade e entronizar a me noaltar do lar (p. 188).

    Segundo Martins, a criao progressiva de instituies mdico-hos-pitalares forneceu as condies necessrias para o exerccio da clnica e dacirurgia, para o ensino prtico e, posteriormente, para o desenvolvimentode pesquisas cientficas. A intensa campanha movida em favor da assis-

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    tncia social maternidade e a construo de espaos hospitalares espec-ficos para o atendimento obsttrico e ginecolgico acabaram por tornardefinitivo o processo de medicalizao do corpo feminino no Brasil (p.196).

    No captulo sexto, que tem por ttulo A mulher no discurso mdicoe intelectual brasileiro, a autora encaminha as discusses finais, quandorefere que, ao iniciar-se o sculo XX, a crena na misso civilizadora dosmdicos levou-os a formular um projeto de reorganizao da sociedade,visando a produzir indivduos saudveis no corpo e no esprito, capazesde efetuar transformaes no apenas em suas vidas particulares, mas nodestino do pas. De seu ponto de vista, muitos eram os responsveispelas vicissitudes nacionais, a comear pela famlia, mas alcanando asescolas, hospitais, quartis, prises, mercados, cemitrios, enfim, milha-res de espaos pblicos e privados que deviam seguir as normas de refor-ma higienista (p. 217 e 218).

    A amamentao transformou-se em tema recorrente no discursomdico, dado que nutrir as crianas assumia contornos de alta responsabi-lidade materna e demonstrao de afeto. O mito do amor materno eraerigido como definidor do sentido de ser mulher. Aquela que no amavaseus filhos (ou emitia sinais de no amar) era uma aberrao, uma criaturadesnaturada, ou seja, negadora de sua natureza (p. 232 e 233).

    Nem todos os intelectuais brasileiros eram seguidores dos postula-dos emitidos pelo saber mdico, mas, segundo a autora, outras correntesde pensamento procuraram ver outros papis sociais importantes para asmulheres brasileiras, embora quase sempre submetendo-as ainda a ocu-par lugares e espaos secundrios, diante da massiva hegemonia masculi-na na direo dos destinos nacionais.

    Concluindo, mas deixando significativas entradas para refletir sobreum tema sempre atual, Martins afirma que

    no h como negar que os conhecimentos e as tcnicas da obstetrcia e da gine-cologia tenham contribudo para a melhoria das condies fsicas das mulheres,ou seja, no defendemos uma atitude a priori anticientfica em nossa critica cincia sexual e especialmente medicina da mulher. Certamente que o uso deanestsicos nos partos, o desenvolvimento de tcnicas cirrgicas mais seguras,entre outras inovaes, foram benficas e bem-vindas. Contudo, a questo nopode ser vista somente a partir do desenvolvimento ou do progresso da cinciae da medicina, mas a partir da natureza das relaes que se estabelecem entreaqueles que produzem o saber e aquelas que so alvo ou objeto de tal conheci-mento (p. 266).

    Resenha recebida em fevereiro de 2006. Aprovada em abril de 2006.