ARTAUD Cartógrafo do Abismo

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ANTONIN ARTAUD: CARTÓGRAFO DO ABISMO Alexsandro Galeno A . Dantas * “(...) Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons.” O Idiota. Dostoiévski. Um imenso abismo desejante toma conta da geografia interior de Artaud. “Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia e esta é uma coisa material.” 1 Uma geografia cênica. Um espaço onde há conexões de fluxos e delírios comunicativos, rejuntando arte, vida, poesia e realidade. É neste sentido que Artaud se referiu ao mundo como “um abismo da alma”. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari 2 , os indivíduos ou grupos são atravessados por verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. Nossa existência é uma espécie de geografia. Somos corpos cartográficos. Assim como os mapas geográficos delimitam e registram territórios políticos, econômicos e culturais, os indivíduos também são registrados e cruzados por linhas. Algumas * Doutorando em Ciências Sociais/PUC-SP. 1 ARTAUD, Antonin. Surrealismo e revolução. In: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Coleção Rebeldes & Malditos - v. 5. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 93. 2 Em algumas das obras de Deleuze e Guattari, são recorrentes referências às noções sugeridas por Antonin Artaud. Poderemos destacar as idéias de CsO ( Corpo sem órgãos), Glossolalias e a crítica artaudiana a linguagem de ‘superfície’ na poética de Lewis Caroll como destaques fundamentais na obra desses autores.

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ANTONIN ARTAUD: CARTÓGRAFO DO ABISMO

Alexsandro Galeno A . Dantas*

“(...) Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons.”

O Idiota. Dostoiévski.

Um imenso abismo desejante toma conta da geografia interior de

Artaud. “Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior

tem sua geografia e esta é uma coisa material.”1

Uma geografia cênica. Um espaço onde há conexões de fluxos e

delírios comunicativos, rejuntando arte, vida, poesia e realidade. É neste sentido

que Artaud se referiu ao mundo como “um abismo da alma”.

Para Gilles Deleuze e Félix Guattari2, os indivíduos ou grupos são

atravessados por verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. Nossa

existência é uma espécie de geografia. Somos corpos cartográficos. Assim como

os mapas geográficos delimitam e registram territórios políticos, econômicos e

culturais, os indivíduos também são registrados e cruzados por linhas. Algumas

* Doutorando em Ciências Sociais/PUC-SP. 1 ARTAUD, Antonin. Surrealismo e revolução. In: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Coleção

Rebeldes & Malditos - v. 5. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 93.

2 Em algumas das obras de Deleuze e Guattari, são recorrentes referências às noções sugeridas por Antonin Artaud. Poderemos destacar as idéias de CsO ( Corpo sem órgãos), Glossolalias e a crítica artaudiana a linguagem de ‘superfície’ na poética de Lewis Caroll como destaques fundamentais na obra desses autores.

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dessas linhas são postas do exterior para eles e não se cruzam, ao contrário,

separam-se e demarcam os seus próprios territórios. Outras são produtos do

acaso, mas há outras que devemos inventá-las, traçá-las, efetivamente, na vida.

Devemos inventar nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para alguns

indivíduos ou grupos nunca seja possível construí-las. Outros já as perderam. As

linhas de fuga são “uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como

compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na

outra. Rizoma.”3

Essas linhas significam possibilidades de territorialidades,

desterritirialidades e reterritorialidades. Elas estão sujeitas ao perigo, à errância e

ao abismo. Não significam que se cruzem ou se componham facilmente. Certas

vezes, sequer, entrecruzam-se, dirá se tornarem compatíveis. Certamente elas

exigirão, como queria Antonin Artaud, uma geografia experimentada, onde

simultaneamente, tenhamos, como sentiu seu contemporâneo, companheiro de

delírios e internações – Gérard de Nerval - que buscar respostas através dos

“desejos de claridades” para as “desesperadas reivindicações da alma” e para as

nossas “insistentes trevas”.

Esses desejos de claridades ou os desejos de uma “tentação cênica”, talvez

represente a busca, para Artaud, de traçar suas próprias linhas de fuga.

Desordenadas cartografias desenhadas por desesperadas e desejantes linhas de

errâncias inscritas, segundo Deleuze e Guattari, em um CsO - Corpo sem

Órgãos, onde tudo se traça e foge ao mesmo tempo.

É desta forma, que Antonin Artaud nos incita a excursionarmos por

seus territórios. Não poderíamos partir adiante sem atentar para sua tamanha

3 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (tradução de Aurélio Guerra Neto et alii). Mil platôs: capitalismo e

esquizofrenia, v. 3. Rio de Janeiro: ed.34, 1996. Pp. 75-6.

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advertência àqueles que pretendem conhecê-lo ou perguntarem: quem é Antonin

Artaud? Ele responderá:

Quem sou?

De onde venho?

Eu sou o Antonin Artaud

E basta dizê-lo,

Como sei dizê-lo,

Imediatamente

Vereis o meu corpo atuar

Voar em estilhaços

E em dois mil aspectos notórios

Refazer

Um novo corpo

Onde nunca mais

Podereis

Esquecer-me.4

A idéia de um corpo em estilhaços que se multiplica e se refaz num

novo corpo, configura-se ao nosso ver, na idéia imagética que Artaud se

inscreve e se representa como linhas de fuga, onde há momentos possíveis de

4 ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. op. cit. p.111.

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traçá-las e em outros, tornam-se fugidias. Ousamos afirmar que a imagem de

Antonin Artaud configura uma “cartografia imaginal” na medida em que se

apresenta como desconstrução daquilo que parece ordenado, cortado, separado

ou esquadrinhado. Um cartógrafo do abismo e do desespero que declara guerra

contra a tentativa de transformá-lo em registros esquadrinhados e em puro

organismo.

Artaud é o próprio corpo sem órgãos, na acepção de Deleuze e

Guattari. Para tais autores, o CsO “é não desejo, mas também desejo. Não é uma

noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo

sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é

um limite. Diz-se: que é isto - 0 CsO - mas já se está sobre ele - arrastando-se

como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante

e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e

somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas

felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos

penetrados, que amamos.”5

Quando Deleuze e Guattari tematizam a idéia de CsO, fazem com a

intenção de abrir fogo aos ditames da psicanálise. Para eles não é possível

conformar-se com a mesmice da tríade Pai-Mãe-Filho, pois este mimetismo

triangular conduz ao “incurável familiarismo”, esquarteja a produção desejante e

registrará a todos num harmonioso organismo. Poderíamos afirmar que esses

registros arbitrários, especialmente feitos pela psicanálise e pela psiquiatria,

constituem-se em verdadeiros corpos com órgãos. Explico. Esquadrinham o

corpo, determinando aos órgãos suas funções, territórios e higienizações. É

contrário a esses registros mutiladores e disciplinares que se inscrevem as linhas

de fuga da cartografia do CsO de Antonin Artaud. A produção desejante

artaudiana configurará o Corpo sem Órgãos, na medida em que, para Deleuze e 5 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op.cit.9-10.

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Guattari, ele signifique o campo de imanência do desejo ou o plano de

consistência do desejo, ou seja, será nesse campo ou plano onde o desejo se

definirá como processo de produção, independente de instâncias exteriores que

indiquem alguma falta a ser suprida, como advoga a psicanálise.

No livro O anti-édipo6 , Deleuze e Guattari, são crus e impiedosos

com o “Papá-Mamã”. Apontam suas armas, tentando desconstruir as muralhas

dos “impérios” no Complexo de Édipo. Para eles, a psicanálise ao tentar explicar

os indivíduos, lança olhares de uma luneta codificadora, separadora e mutiladora

para registrá-los. Trata os delírios, as imagens disformes como distúrbios

mentais e recalques primordiais.

O CsO é o próprio anti-édipo, assim como Artaud o incorpora ao

declarar guerra aos órgãos:

(...)

se quiserem, podem meter-me numa camisa de força

mas não existe coisa mais inútil que um órgão.

quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos

então o terão libertado dos seus automatismos

e devolvido sua verdadeira liberdade.7

Artaud configuraria, portanto, uma “máquina de guerra” fundamental

de combate aos registros castradores da violência cognitiva da razão.

6 DELEUZE. Gilles & Guattari, Félix. O Anti- édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Portugal: Assírio & Alvim, 1966. 7 ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER, Cláudio. op. cit. p. 161.

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Denominamos de violência cognitiva, sobretudo, àquela advinda do pensamento

cartesiano que não pára de ordenar aos seus inspetores para que vigiem com

suas lunetas os desregramentos, as linhas de fuga e as transgressões. É um tipo

de violência, onde cada vez mais, especializam-se os conhecimentos,

contribuindo como nos diz Artaud, para a “trituração dos corpos”. São

verdadeiros estiletes cognitivos, fatiando os saberes e impossibilitando o diálogo

com uma razão mais aberta e não fragmentada. Neste aspecto, doença, saúde e

loucura, mercantilizam-se, fazendo parte da própria esfera de circulação de

capitais. O corpo se esquarteja ou se estilhaça em infinitos pedaços para

alimentar o desejo sádico e instrumental das especialidades. A loucura é tratada

como intervenção clínica e como confinamento compulsório do tratamento

psiquiátrico.

Artaud vivenciou tais mutilações. Entende-se assim os motivos de sua

fúria com essas práticas:

Passei nove anos num asilo de alienados.

Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.

(...)

Se não tivesse havido médicos

nunca teria havidos doentes,

nem esqueletos de mortos

doentes para escortaçar e esfolar,

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porque foi com médicos e não com doentes que a sociedade

começou.8

É desta maneira que concebemos Artaud como uma cartografia

imaginal e como este CsO capaz de se insurgir contra as violências cognitivas

do saber racionalizante. Artaud, assim como o CsO exibe uma ética da

transgressão e vivencia ao limite suas zonas de intensidades. Ou, ainda,

advogam Deleuze e Guattari, Artaud seria um rizoma9 que desloca sentidos e

inaugura aquilo que Michel Foucault denominou em As palavras e as coisas

de um pensamento como um ato-perigoso: “Antes mesmo de prescrever, de

esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer, antes mesmo de exortar ou

somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma

mais matinal, é, em si mesmo, uma ação- um ato perigoso. Sade, Nietzsche,

Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar; mas é

certo também que Hegel, Marx e Freud o sabiam”10.

Como andarilho pelo mundo dos ‘gênios híbridos’(Deleuze), Artaud,

cartografa regiões formadas por imensos continentes imaginais e habitadas pelas

famílias dos que pensam e experimentam perigosamente a vida e as idéias.

Conforme, Deleuze e Guattari destacam em ‘O que é a filosofia?’11, Artaud

conjuntamente com Hölderlin, Rimbaud, Marllarmé, Kafka, Fernando Pessoa e

outros se inscreve no imaginário dos leitores como ‘personagem conceitual’ ou

um autor malabarista que produz ‘obras com pés desequilibrados’. Ele ao se

movientar diante do mundo como os ‘acrobatas esquartejados num malabarismo

8 ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. Op.cit. P. 76 e 79.

9 Rizoma é um dos conceitos utilizados por DELEUZE e GUATTARI em Mil Platôs (v. I, 1995:32-33). É um termo originariamente da botânica, que o define como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Os autores se apropriam, resignificando-lhe como uma rede conectiva de vários sentidos. 10 FOUCAULT. Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p453. 11 DELEUZE , Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.

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perpétuo’12, exercita aquilo que Nietzsche denominou para filosofia como

modos de existência ou possibilidades de vida. Um ser que cunhou

definitivamente sua revolta contra as noções cartesianas que separam e

fragmentam cultura e vida: “protesto contra a idéia separada que se faz da

cultura, como se de um lado estivesse a cultura e, do outro, a vida; e como se a

verdadeira cultura não fosse um meio apurado de compreender e de exercer a

vida”.13

12 DELEUZE , Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Op.cit. p. 90. 13 ARTAUD, Antonin. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1985. P. 18.