Artaud

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Artaud, Deus ou Demónio? Luísa Lopes 1º Semestre- 1º Ano _ Mestrado ESAD- CR Fevereiro de 2011 - Prof Armando Nascimento Rosa

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sobre a vida e obra de Artaud

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Artaud, Deus ou Demónio?

Luísa Lopes

– 1º Semestre- 1º Ano _ Mestrado ESAD- CR – Fevereiro de 2011 -

Prof Armando Nascimento Rosa

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Introdução à Investigação das Artes Cénicas

Luísa Lopes – 1º Semestre- 1º Ano _ Mestrado ESAD- CR – Fevereiro de 2011 - Prof Armando Nascimento Rosa

A importância de uma Biografia

Il y a dans tout dément un génie incompris dont l’idée qui luisait dans sa tête fit peur, et qui n’a pu trouver que dans le délire une

issue aux étranglements que lui avait préparés la vie.

- Extrait de "Van Gogh ou Le Suicidé de la Société" (1947) - Antonin Artaud

Nem sempre a biografia de um autor ou pensador tem importância para o desenvolvimento das suas próprias ideias e pensamentes. Do meu ponto de vista, no caso de Artaud, a sua Biografia, pensamento e obra são absolutamente indissolúveis e tal como ele próprio refere

“Eu não concebo o teatro separado da existência!”

Analisando o seu percurso poderemos reconhecer a estrutura do seu próprio pensamento pois toda a sua história de vida se constrói como um duplo da própria existência teatral, ou como Virmaux afirma, Artaud é “o homem-teatro”. Se por um lado viveu a própria prática teatral como actor, foi também um pensador sobre a cena teatral no meio das suas obsessões, transes e crueldades provocadas pela própria sociedade a quem Artaud atribui parte da loucura causada por uma incompreensão do mundo para com o artista. Artaud assume-se como “idiota e pretensioso, tolo e filosófico como um cretino”, “um fantasma que cospe no seu próprio espírito” mas que profetiza: “ A vida fede, senhores. Olhai um instante para as vossas faces, considerai as vossas produções. Através do crivo dos vossos diplomas passa uma juventude extenuada e perdida”(...) “no

corpo da juventude francesa germina uma epidemia do espírito”. “As coisas chegaram a um ponto que se pode dizer que, como em outras épocas, a juventude corria atrás do amor, tinha sonhos de ambição, de progresso material, de glória, hoje ela tem um sonho de vida; e é atrás da vida que ela corre, a juventude quer saber porque é que a vida está doente, o que foi que

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apodreceu a ideia de vida”. Relativamente à postura social do artista Artaud considera que “há dez mil maneiras de se ocupar com a vida e de pertencer à sua época. Os intelectuais não devem entregar-se à especulação pura. Os intelectuais devem entrar na sua época mas só o podem fazer fazendo a guerra. A guerra para alcançar a paz”.

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BIOGRAFIA DE ARTAUD

“Não quero que ninguém ignore os meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”

Antonin Marie-Joseph Artaud, nasceu na cidade de Marselha, em França, a 4 de Setembro de 1896. Sendo o mais velho de nove filhos de Antoine Roi Artaud e Euprhasia Nalpas, desde cedo se deparou com a morte, perdendo quase todos os seus irmãos. A dor física permanece uma constante ao longo da sua vida, e vai influenciar directamente as suas ideias. Aos 5 anos, sofre de meningite, o que lhe provoca um distúrbio nervoso que o acompanhará por toda a vida. Entre 1914 -1917, prestou o serviço militar e passou as primeiras estadias em sanatórios, onde começou a alimentar o ódio por psiquiatras. Afirma algo que pode abrir precedentes: “Não existe um psiquiatra, na verdade, que não seja um erotómano. E não creio que a regra da erotomania inveterada dos psiquiatras possa sofrer alguma excepção.” Entre 1918 e 1919, foi internado na clínica Le Chanet, na Suíça, onde aos cuidados do Doutor Dardel, começa ser tratado pelo uso de drogas. Em 1920, mudou-se para Paris, à guarda do Dr. Edouard Toulose. O período compreendido entre esta data, e o ano de 1937, foi de intensa produção artística para Artaud, curto espaço de tempo em que ele pôde ausentar-se dos manicómios. Assim que chegou a Paris, Artaud foi bem recebido pelos homens de teatro da época. Bem sucedido numa prova com Gérmier, este logo o recomendou a Dullin. Assim, entre 1922 e 1923, Artaud trabalhou no Atelier de Dullin, e entre 1923 e 1924, com Pitoëff, na Comédie des Champs-Elysées. Em 1924, perdeu o pai, abandonou a carreira de actor de teatro, e aderiu ao surrealismo, movimento artístico que enfatizava a importância do inconsciente na actividade criativa tendo englobando a música, a poesia, a pintura, a fotografia, o cinema, a escultura e o intervencionismo. Em 1925, por divergências com o movimento surrealista no programa socialista, Artaud deixa o grupo, mas uma característica surrealista acompanha-o, o facto de não conceber nenhuma obra separada da vida. Ainda entre 1922-1933, participa em diversos filmes mudos e falados, dos quais O Martírio de Joana D’Arc, de 1928, pode ser considerado o mais famoso. Mas Artaud não se contentou em actuar em filmes, também escreveu diversos roteiros para cinema, muito embora apenas A Concha e o Clérico, de 1927, tenha sido filmado, sob a direção de Germaine Dulac. No cinema Artaud consegue notoriedade no começo da carreira em papéis como Marat, de Napoleão, de Gance (1925-1927), e do frade Massieu, em O Martírio de Joana D’Arc (1928), sob direcção de Dreyer, mas depois de um período de bonança, em que trabalhou com nomes importantes, como Raymond Bernard e G.W.Pabst , vai conseguindo papéis cada vez mais pequenos, até se desencantar com o cinema em 1932, aceitando apenas papéis para viver. Fez a sua última aparição num filme em 1935, Koeningsmark, de Maurice Tourneur, no qual interpreta o bibliotecário Cyrus Beck.

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Artaud refere-se ao cinema do seguinte modo : "J'aime le cinéma. J'aime n'importe quel genre de films. Mais tous les genres de films sont encore à créer. Je crois que le cinéma ne peut admettre qu'un certain genre de films : celui seul où tous les moyens d'action sensuelle du cinéma auront été utilisés." Em 1931, descobre o Teatro de Bali, e fica impressionado com “esse espectáculo que nos surpreende com uma superabundância de impressões cada uma mais rica que a outra”. Do teatro de Bali, Artaud retira algumas influências pela ideia do uso de efeitos metodicamente calculados e que eliminam qualquer recurso à improvisação espontânea, ideia esta que ele passa então a defender e a perseguir como um dos objectivos do teatro que idealiza. Em 1937 Artaud é internado no sanatório Le Havre-Rodez, onde passa os 9 anos seguintes e escreve, em 1946, as Cartas de Rodez, endereçadas ao Dr. Ferrière, pioneiro na terapia com eletrochoques. Nestas cartas, Artaud pedia ao médico que parasse de lhe aplicar eletrochoques, ou mesmo que lhe deixasse tomar banho. O mesmo médico que o encorajou a escrever e pintar também lhe aplicou eletrochoques ao ponto de numa das sessões do “tratamento”, lhe causar uma lesão nas vértebras. Foi em Rodez que Artaud escreveu os textos que vieram, em 1945, a compor o livro “Viagem ao País dos Tarahumaras”. Artaud escrevia cartas a conhecidos e desconhecidos, pessoas importantes ou não, falando de maneira poética, profunda, como pretexto para revelar a tragédia humana que se manifesta na dor de viver, dor esta que Artaud experimentou na carne ao longo da sua existência, e que pretende levar para a encenação teatral. Em 1947, já livre do sanatório de Rodez, escreveu os seus últimos textos, entre eles, Van Gogh, O suicidado da Sociedade, onde expressa a sua grande estima pelo pintor, a revolta contra os psiquiatras, e onde, de certa forma, podemos estabelecer uma comparação entre o artista francês do século XIX e o próprio Artaud: “E isto que me toca mais em Van Gogh, o maior pintor de todos os pintores (...) conseguiu apaixonar a natureza e os objectos de tal forma que qualquer conto fabuloso de Edgard Poe, Hermam Melville, Nathanaël Hawthorne, Gérard de Nerval, Achim d’Arnim ou Hoffman não supera, no plano psicológico e dramático, as suas telas de quatro cêntimos (...)”. A aproximação de Artaud à pintura é clara. Ele mesmo, além de poeta, dramaturgo e actor, era também desenhista, e demonstrou, em outros escritos, grande apreço também pela arte de El Greco, Jerónimo Bosch, Lucas de Leyde e Goya. No fim da vida, Artaud volta a desenhar com mais frequência, sendo um dos seus mais conhecidos desenhos, o seu auto-retrato. Alain Virmaux lembra-nos, em Artaud e o Teatro, que, para Artaud, o teatro continuará sempre a ser inseparável da pintura. Ainda em 1947, Artaud realiza uma conferência no Vieux-Colombier. Em 1948, a peça radiofónica, Para Acabar com o Julgamento de Deus, acabou por ser proibida. Em Fevereiro deste mesmo ano, declara a intenção de se dedicar, a partir de então, exclusivamente ao teatro, mas a 4 de Março deste mesmo ano, o jardineiro encontra-o morto, aos pés da sua cama, numa clínica de Irvy. Um facto a assinalar: morreu a segurar um sapato.

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Quem foi Artaud?

«Si je suis poète ou acteur ce n'est pas pour écrire ou pour déclamer des poésies, mais pour les vivre [...] Je veux que les poèmes de François Villon, de Charles Baudelaire, d'Edgar Poe ou de Gérard de Nerval deviennent vrais et que la

vie sorte des livres»

Lettre du 6 octobre 1945 Antonin Artaud

Artaud foi uma figura marcante em variadíssimos

aspectos. Desenvolveu em inúmeros textos poéticos as

suas concepções sobre o renascimento do espectáculo,

condição essencial, segundo ele, para a salvação do

homem. As suas teorias metafísicas e visionárias acerca

da arte dramática, abundantes, profundas e por vezes

confusas, encontram-se em Le Théatre et son Double

(1938) e influenciaram o teatro contemporâneo mais do

que qualquer outro texto.

Artaud rejeitou violentamente a dramaturgia ocidental

da época, que considerava “um teatro de idiota, de

merceeiro, de anti poeta” e defendeu que o teatro tem

uma espécie de magia, “que desorganiza todas as nossas

representações, nos povoa com um magnetismo ardente de imagens e actua sobre nós como

uma terapêutica de alma.” Teatro é, para Artaud, algo que é soberano, onde reina a voz , o

gesto, o movimento e a estética.

Em 1932 Artaud publicou o seu manifesto sobre o Teatro da Crueldade . Para ele “tudo o que

actua é uma crueldade e é baseado nesta ideia de acção exasperada e extrema que o teatro

tem que se renovar. O teatro da crueldade fundamenta-se na tentação de abolir os obstáculos

entre o vivido e o representado, mas em proveito de uma “desobstrução do ser”, de uma

comunhão entre o público e o actor. E ao contrário de Brecht, é uma tentativa para devolver

ao espectáculo a sua componente sagrada inicial, sensualizando a linguagem e incitando o

espírito a identificar-se com a magia das palavras. Talvez seja este o resultado da sua busca

incessante pelas origens do teatro que o fez viver em 1936 com uma tribo mexicana.

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O teatro, segundo Artaud, deve agir fisicamente sobre o espectador até ao enfeitiçamento

através do gesto, da voz, do ritmo musical, da iluminação. Para ele, “o palco é um lugar físico e

concreto que exige que o preencham e que o façam falar.” A linguagem destinada aos sentidos

e independente da palavra, deve satisfazer antes de mais os sentidos; existe uma poesia para

os sentidos tal como existe uma poesia para a linguagem e essa linguagem física e concreta só

é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que exprime escapam à

linguagem articulada. Daí a proposta de substituir a poesia da linguagem por uma poesia no

espaço dada pela música, o gesto, a dança, a mímica, a iluminação e os cenários.

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Quoi de neuf pour le théâtre ? O teatro e o seu duplo

Antonin Artaud lutou contra o formato e o conteúdo do teatro do seu tempo. Procurou instaurar uma nova linguagem para o teatro, reformulando o que existia construindo uma nova proposta. Alain Virmaux apresenta na sua obra Artaud e o teatro a estrutura das ideias de Artaud: “Antonin Artaud disse tudo em O teatro e seu duplo, da maneira mais clara possível” O TEATRO E A CULTURA Na primeira parte do livro, Artaud faz algumas considerações a respeito da relação dos seres humanos com a cultura, considerando-a “um meio apurado de compreender e exercer a vida” . Para ele, o teatro deve ser uma linguagem artística que rompa com todas as limitações e que represente a vida como uma eterna magia, constituindo uma arte de elementos vivos. Virmaux conclui que essa relação do teatro com a vida se torna muito significativa quando Artaud fala do teatro como se falasse da própria vida e questiona se o teatro seria o duplo da vida para Artaud, pois “de facto, no final da trajectória, teatro e vida coexistem numa fusão completa” . Artaud procura a magia para o teatro, pois define o teatro como um verdadeiro passe de mágica, isto é, “é preciso acreditar num sentido de vida renovado para o teatro onde o homem impavidamente se torna o senhor daquilo que não existe e o faz nascer” O TEATRO E A PESTE Artaud imagina o teatro como uma revelação, uma exteriorização da crueldade presente num indivíduo. Dessa maneira ele compara a revelação que se dá, através do teatro, com a peste no sentido de ver explodir em cena todas as forças profundas e ocultas que estão em potência no interior do actor. “Como a peste, o teatro é, portanto, uma formidável convocação de forças que conduz o espírito, pelo exemplo, à origem dos seus conflitos” . O teatro, assim como a peste, leva o homem a ver-se exactamente como ele é, sem máscara, exteriorizando todos os sentimentos por piores que sejam: “O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação. Desenrola conflitos, liberta forças, acciona possibilidades, e se essas possibilidades e essas forças são regras, a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida”. Sobre a definição da peste em Artaud, Alain Virmaux diz que ela “não é a imagem do teatro, ela é o teatro. Dessa forma, o teatro teria em si mesmo os meios de florescimento de ideias da apresentação de um mundo superior, uma forma verdadeira de vida renovada.

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A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA Neste capítulo, o que mais me chama a atenção é a descrição que Artaud faz daquilo a que chama “linguagem concreta” e de como essa teoria pode ser vista sob a óptica da metafísica. Para ele, a cena é um lugar concreto e físico que deve ser construída através de uma linguagem independente da palavra, que satisfaça os sentidos onde os pensamentos expressos escapam à linguagem articulada. Artaud diz que essa linguagem concreta, antes de se direccionar para o espírito deve, primeiramente, comunicar-se aos sentidos do espectador e, possivelmente, num segundo momento, ser entregue à análise racional e intelectual. Essa poesia idealizada por ele deve resultar numa combinação de todos os meios de expressão (música, dança, artes visuais, pantomima, mímica, gesticulação, entoações, arquitectura, iluminação e cenário). O formato dessa linguagem proposta pertence à linguagem dos signos, ou seja, “esta linguagem que evoca no espírito imagens de uma poesia natural (ou espiritual) dá bem a ideia do que poderia ser no teatro uma poesia no espaço, independente da linguagem articulada” . Tal poesia seria a descoberta de uma linguagem activa, que é também anárquica, onde foram abandonados os limites comuns entre os sentimentos e a palavra. O carácter metafísico dessa poesia daria real valor ao ser. Ao encontrar-se com o tempo e o movimento a poesia torna-se teatral sob um ponto de vista metafísico. Nesse sentido, o teatro resgataria o seu conteúdo religioso e místico que se perdeu e essa nova linguagem, proposta por Artaud, seria estruturada sob a forma de encantamento, ou seja, “fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva para expressar tudo aquilo que rotineiramente não expressa: é usá-la de um novo modo, excepcional e incomum” . O TEATRO ALQUÍMICO Para Artaud o teatro é metafísico da mesma maneira que seria alquímico, ou seja, ele quer tornar-se sensível à multiplicidade da vida, fazer um teatro de ambivalência onde “a ilusão é verdadeira, a destruição construtiva e a desordem ordenada” . Artaud aproxima o teatro da alquimia dado o carácter do movimento que o teatro tem entre forças antagónicas. Segundo ele, a operação teatral é rica na relação conflituosa que é provocada, pois “tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim dizer virtuais e que carregam em si tanto a sua finalidade como a sua realidade” . SOBRE O TEATRO DE BALI Artaud apropria-se do teatro de Bali para exemplificar e teorizar os seus conceitos teatrais. Num primeiro momento, as aparições espectrais das personagens do teatro de Bali, antes de evoluírem para a linguagem simbólica, são para Artaud, a essência do teatro puro que ele procura. A sua concepção e execução só valerão quando atingirem certo grau de objectivação da cena. A eliminação das palavras, a opção pelos temas abstratos, a complexidade dos artifícios cénicos resultariam na aplicação da metafísica extraída de uma nova utilização da voz e dos gestos: “No seu novo emprego, a palavra vai então servir para desintegrar as funções habituais da palavra” . A tradução dessas imagens numa linguagem nova e discursiva, seria algo de inútil face ao sentido preciso e intuitivo que os signos espirituais do teatro de Bali propõem. O efeito que

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essas imagens provocariam no público é uma intensa sensação de fantasia e riqueza transfiguradoras. A subtileza dos gestos, as variações de voz e os movimentos precisos seriam como um despertar mágico que acontece directamente no espírito humano. A linguagem do teatro de Bali seria como uma fala anterior às palavras, “um estado anterior à linguagem e que pode escolher a sua linguagem em música, gestos, movimentos e palavras” . Virmaux resume a visão que Artaud tem do teatro de Bali dizendo que “o que o entusiasma particularmente no espectáculo dos balineses é que, ao contrário de todo o teatro ocidental, ele encena uma lição de espiritualidade” . TEATRO ORIENTAL E TEATRO OCIDENTAL Artaud privilegia o teatro oriental ao ocidental. Ele dá como exemplo e inspiração o teatro de Bali que, segundo ele, nos fornece uma ideia física e não verbal, independente do texto, que no teatro ocidental é visto como literatura, como elo psicológico da cena, como supremacia da palavra no teatro. O que Artaud pretende é encontrar uma linguagem teatral pura. O espírito deverá absorver essa nova linguagem teatral, que atinja os mesmos objectivos interiores das palavras através das formas, sons, gestos e que coloque o seu sentido no mesmo nível que a linguagem articulada. Ligar o teatro à possibilidade de expressão pelas formas, e de tudo o que houver em matéria de gestos, ruídos, cores, plasticidades, etc, é devolvê-lo à sua forma primitiva, é colocá-lo no seu aspecto religioso e metafísico, é reconciliá-lo com o universo” . A real intenção de Artaud é saber se o espírito poderá ser capaz de absorver a linguagem icónica e visual no espaço, da mesma maneira que consegue captar a linguagem articulada e o seu conteúdo psicológico. Para ele, o domínio do teatro não é psicológico, mas plástico. Com isso, ele não tenta eliminar a palavra do teatro, mas torná-la apenas um meio de conduzir a expressão humana juntamente com os outros signos teatrais. Essa metafísica formal fará surgir a ideia de uma poesia que se confundirá com a bruxaria. Essa tendência metafísica do teatro oriental, que se opõe à psicologia do ocidental domina, segundo Artaud, ao mesmo tempo, todos os planos do espírito. Extrair dos gestos, palavras, sons, músicas e da combinação deles a objectividade necessária é utilizar uma linguagem mágica que constituirá a encenação como uma bruxaria. É PRECISO ACABAR COM AS OBRAS PRIMAS Ao dizer que as obras primas são qualidades do passado e que não servem para o tempo actual, Artaud propõe uma linguagem inovadora, recheada de riscos, na qual as imagens físicas e violentas instiguem a sensibilidade do público que se vê preso por forças superiores. Propõe a quebra dos antigos padrões em prol do movimento, da inquietação, da reflexão através de caminhos que não são confortáveis para nós. Ao abandonar as fórmulas psicológicas, vamos compreender que através da arte, mais empiricamente através do teatro, nos libertaremos do que é comum e banal.

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O TEATRO DA CRUELDADE Artaud refere que tudo o que actua é uma crueldade, portanto propõe um teatro que transforme o público presente. O teatro da crueldade propõe ultrapassar os interesses das massas através de um espectáculo em movimento que perturbe todos os espectadores, ou seja, um “espectáculo total” que explore a sensibilidade nervosa do público, “nesse espectáculo de tentação onde a vida tem tudo a perder e o espírito tudo a ganhar” Alain Virmaux refere que Artaud “preconiza para o teatro da crueldade um espectáculo giratório e que propõe colocar o espectador no meio da acção para que seja envolvido e marcado por ela” . O TEATRO DA CRUELDADE (Primeiro Manifesto)

Nesse primeiro manifesto, Artaud fortalece a ideia de que um teatro como ele imagina só será possível através da ligação mágica que privilegie o perigo e a atrocidade. Nesse sentido, o teatro deverá ter fundamentos orgânicos. Artaud utiliza termos como o exorcismo, as tentações, os encantamentos, etc. A linguagem pretendida será alcançada via linguagem do pensamento e do gesto. A crueldade é a base para que tudo se estabeleça. A busca é feita pelo que pode ser expresso além da aplicação comum e quotidiana das palavras, dos sons, dos gestos e de toda a expressão intelectual e sensível que fuja da significação meramente psicológica. Uma metafísica da linguagem. O que importa para Artaud é que “através dos meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objectivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo” . A técnica utilizada será a via para fornecer ao público uma visão de sonho, imagens sensitivas,

uma absorção que o público obterá interiormente através desses estímulos. Os temas serão como chaves que funcionarão como elo de ligação entre as imagens e as projecções apresentadas com o entendimento sensorial e intelectual. O espectáculo deverá conter elementos físicos, objectivos e comuns a todos. A encenação será a mola propulsora para o processo criativo. A linguagem deverá propiciar uma leitura onírica da realidade. Os signos teatrais como a música, a luz e o figurino deverão fugir das concepções usuais e temporais, ou seja, deverão propiciar novas leituras estéticas e reflexivas. No lugar do cenário estarão signos plásticos que remetem para outros lugares que não os comuns aos espectadores. O local, ou sala de espectáculo, não deverá separar a cena do público, ou, noutro sentido, o público deverá estar no meio ou arredores da acção propiciando

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uma comunicação directa entre espectadores e espectáculo. Quanto ao espaço cénico, Virmaux afirma que Artaud “sempre desejou para o teatro um lugar novo e fundamentalmente diferente das salas tradicionais” . O actor é um elemento de extrema importância e a sua eficaz interpretação desencadeará o sucesso do espectáculo. A interpretação será formatada como uma linguagem codificada em movimentos e ritmos. A verdade e a naturalidade das entoações deverão ser aplicadas pelos actores como um exagero da interpretação e, dessa forma, “será preciso encontrar um tom de uma naturalidade pouco utilizada, escondida e como que esquecida, verosímil e real” . Em relação ao espectador, Virmaux observa que “a condição essencial de uma acção física sobre o organismo do espectro reside na presença directa do actor” . CARTAS SOBRE A CRUELDADE Nas três cartas publicadas, Artaud tenta esclarecer o que é o princípio da crueldade. O termo é usado para qualificar não uma situação de sadismo ou terrorismo e sangue, mas para qualificar o rompimento com o sentido usual da linguagem. As origens etimológicas da língua através dos conceitos abstratos resultarão numa linguagem concreta. A crueldade “é uma espécie de direcção rígida, submissão à necessidade” . Esse sentido de aplicação do termo crueldade está inteiramente ligado ao desejo de vigor e relação entre as forças opostas. Está ligado ao carácter vivo da lembrança, ao apetite e à força para transformar a cena num constante movimento viril. A crueldade é a força, sem resistência, capaz de alcançar qualquer objectivo. É um impulso racional que move os desejos e necessidades mais básicas do ser humano. Alain Virmaux sintetiza o objectivo do teatro da crueldade dizendo que ele “pretende fazer da representação algo tão localizado e tão preciso quanto a circulação do sangue nas artérias” . CARTAS SOBRE A LINGUAGEM A encenação para Artaud é a parte verdadeiramente teatral do espectáculo. A cena é um espaço a ser ocupado e onde as coisas acontecem e, dessa forma, a linguagem das palavras deve dar lugar à dos signos, linguagem essa que atinja nossos sentidos de modo mais imediato: “Trata-se de conferir à representação teatral o aspecto de um espaço devorador, (...) que no domínio psicológico ou cósmico, se identifique com a crueldade” . Artaud procura mudar o ponto de partida da criação teatral, substituindo a linguagem comum por uma diferente, “cujas possibilidades expressivas equivalerão à linguagem das palavras, mas cuja ordem será encontrada num ponto mais profundo e mais recuado do pensamento” . As indicações dessa nova linguagem ainda deverão ser encontradas, voltando ao gesto de maneira espontânea através de “gritos, onomatopéias, signos, atitudes, abundantes e apaixonadas modulações nervosas. Artaud tenta tornar mágica a velha linguagem articulada através dos signos e trabalha novas possibilidades, proporcionando um “desencadeamento dialético da expressão”. Relativamente ao princípio do teatro, Artaud diz que ele é metafísico e, dessa forma, o seu objectivo seria criar mitos, “traduzir a vida sob um aspecto universal, imenso e extrair dessa vida imagens nas quais gostaríamos de nos reconhecer” . A linguagem articulada das palavras deverá, segundo ele, ser substituída por gestos, jogos e repetições que sugeririam um maior número de imagens no cérebro do espectador. O regresso

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do teatro às origens ritualísticas seria necessário para que o teatro se pudesse afirmar como linguagem. O TEATRO DA CRUELDADE (Segundo manifesto) Com o teatro da crueldade, Artaud procura estabelecer um teatro construído sobre as ideias de rigor violento, condensação dos elementos cénicos, agitações e inquietudes características da época actual. O teatro deverá produzir mitos do ser humano e da vida moderna. Artaud pretende mostrar o homem total, ou seja, os objectivos de estudo não serão apenas as características simbólicas do homem nem o seu contexto será puramente social. Esse teatro será dirigido pela submissão às leis e preceitos. O retorno aos mitos primitivos fará com que a encenação actualize os conflitos mais antigos do ser humano através de uma linguagem de movimentos e gestos que será sentida directamente pelo espírito sem as deformações da linguagem articulada em palavras. O espectáculo será estruturado sobre todos os planos possíveis através de um grande número de imagens físicas e signos ligados aos momentos. Essa linguagem física só terá a sua real eficácia através da magia de uma atmosfera hipnótica em que o espírito seja atingido pela explanação dos sentidos. Artaud sugere que as dissonâncias estejam presentes na criação do espectáculo que ocupará toda a extensão da sala de espectáculo. Dessa forma, o teatro será apresentado como uma continuidade da vida através dessa linguagem simbólica e icónica. UM ATLETISMO AFECTIVO Com relação ao trabalho do actor, Artaud reafirma a proposta de localizar fisicamente os sentimentos numa espécie de musculatura afectiva. “O actor é como um atleta do coração. O corpo do actor é apoiado pela respiração, uma questão primordial para Artaud, e cada movimento corresponde a uma nova respiração. Para ele, o actor deve pensar com o coração e deve procurar materializar as suas paixões, ou seja, “a crença numa materialidade fluídica da alma é indisponível à profissão do actor”. O conhecimento da respiração dá sentido às relações que o actor faz com o ambiente e com a sua preparação física, assim, através da respiração, o actor “cava a sua personalidade”. Através de um conhecimento físico, qualquer actor pode aumentar a intensidade e o volume dos seus sentimentos. No desenvolvimento desse teatro, a relação da poesia com a ciência deve ser desenvolvida segundo a noção de que toda a emoção tem bases orgânicas e deve ser “Uma ciência tão exacta quanto possível e relativa aos recursos do corpo, aos efeitos da luz e do som sobre os corpos” .

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Artaud e a revolução através do Teatro - O Teatro Político de Antonin Artaud

Para que serve a cultura se as pessoas passam fome ? É possível falar num teatro político em Artaud? Teatro metafísico, teatro alquímico, teatro da crueldade, são definições que o próprio autor propõe, na tentativa de definir e fazer entender as suas propostas. Mas, teatro político? Como disse Heidegger, a arte não é um utensílio, a arte não “serve” para nada. E a Artaud também não interessa para que serve, o que ele procura é encontrar o sentido da Arte verdadeira. Para ele a cultura nunca coincidiu com a vida– o importante é extrair da cultura aquilo que se assemelha à fome – a busca de Artaud é sempre a de uma arte visceral, viva, vital, mágica – como a ideia de lançar-se no abismo de Nietzsche... essa arte atinge quem nela participa de forma física, e causa uma transformação (alquimia) – ora na verdade poderíamos pensar que se a arte manifesta o mundo, isso já é uma transformação radical, isso já é uma noçaõ política. Artaud defende uma cultura em acção, oposta a esse sistema inerte que se chama cultura. “um civilizado culto é um homem bem informado sobre os sistemas em formas, em signos, em representações”. Recusa a cultura inerte, que é a cultura “construída” sobre o terreno sólido do fundamento, da representação assim como abomina o teatro que encontrou segurança na palavra, no texto. Para Artaud isso é uma ideia de falsa segurança que é a própria modernidade estabelecida sobre conceitos científicos, onde o que não é passível de representação não existe ou é excepção. Artaud quer uma revolução, quer mudanças sociais radicais. O teatro para Artaud é um meio para que estas mudanças aconteçam. As suas teorias e propostas são muitas vezes incompreendidas e desligadas da sua visão social e política. Artaud não tem em vista fins sociológicos imediatistas, nem propostas político-partidárias. Aliás, este foi um dos principais motivos de seu rompimento com os surrealistas mas não deixa de ter uma atitude política. Artaud “tem consciência dos problemas suscitados por uma situação de exploração reproduzida, dia após dia, pela máquina capitalista. Tem consciência dos problemas sociais-políticos e económicos de seu tempo”. Analisando o capitalismo, reconhece que este não é apenas um modo de produção material, “mas um modo de produzir a vida” . Por outro lado, posiciona-se também contra o comunismo e critica-o por que acredita que este se ocupa das mesmas questões que o capitalismo, propondo apenas a transferência do poder da burguesia para o proletariado. A produção material tem em vista melhorias das condições materiais da vida, atingindo assim “apenas as aparências superficiais” .

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Luísa Lopes – 1º Semestre- 1º Ano _ Mestrado ESAD- CR – Fevereiro de 2011 - Prof Armando Nascimento Rosa

Artaud quer revolucionar os fundamentos do mundo moderno, subverter pela raiz os hábitos de pensamento actuais e, “descentrar o fundamento actual das coisas” . Ao constatar a decadência da sociedade ocidental, nas ideias, costumes e valores, propõe uma “revolução inútil”, que não atinge o imediato, mas que trabalha no âmbito virtual, questionando e minando os valores reinantes. Se o teatro é o meio escolhido por Artaud, é por que ele crê ser o único meio que age directamente sobre a consciência das pessoas, portanto o teatro é um instrumento activo e enérgico, capaz de revolucionar a ordem social existente. O Teatro da Crueldade só pode crer numa revolução que atinja destrutivamente a ordem e a hierarquia dos valores tradicionalmente aceites como absolutos” e isto é uma atitude política.

A subversão destes valores é fundamental para Artaud. Artaud reconhece que a confusão e a ruptura fragmentam o indivíduo e a sociedade. Por isto acredita que a revolução só poderá ser feita “pela cultura, na cultura”. No prefácio de O teatro e seu duplo, reflecte sobre a cultura contrapondo duas formas diferentes de a compreender. Uma, dominante na sociedade ocidental, coloca a cultura como algo separado da vida, como um sistema de conhecimentos, informações, instrução. Esta visão de cultura transporta consigo uma noção elitista e dualista – o culto e o inculto – a ideia da “aquisição” de cultura que remete para uma desconexão. “Como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio de compreender e exercer a vida” . Em oposição a esta “idolatria da cultura”, apresenta a ideia da “cultura em acção”, uma espécie de segundo espírito e que rege as acções mais subtis, o espírito presente nas coisas. Artaud acredita na existência de forças latentes capazes de se manifestarem pelo totemismo que o Ocidente não considera. Esta cultura é a autêntica, segundo ele . A cultura funde-se com a vida e a vida com a cultura, promovendo a integração do ser humano. Assim, a dicotomia corpo e espírito do ocidente, presente na primeira definição de cultura, não encontra espaço porque não distingue as forças da natureza, das divindades e do ímpeto humano que dá sentido à vida. “A verdadeira cultura pressupõe uma modificação integral, mágica, do ser no homem, numa união entre corpo e espírito, em que este último é cultivado no corpo que, por sua vez, trabalha o espírito” A revolução de Artaud passa por uma transformação na forma como a sociedade compreende a vida. O idealismo artaudiano pretende transformações nas estruturas mais profundas, na forma da sociedade viver as suas relações, não como indivíduos isolados, mas como um ser integrado no social. Neste sentido quer uma recuperação das raízes pré-modernas e deseja recuperar o sentido da vida quando esta não podia ser compreendida separada da religião. Não há para Artaud separação da arte e da vida, pois estas estão envolvidas pela mesma força metafísica. A arte é algo que se aprecia, algo que deve ser vivido. “No ponto de desgaste a que chegou a nossa sensibilidade, precisamos antes de mais nada, de um teatro que nos desperte: nervos e coração.” Através do teatro, Artaud pretende abalar sensorial e espiritualmente o espectador, desenvolver a sua sensibilidade, colocá-lo num estado de percepção mais apurado para transformar a consciência. Os nervos e o coração não estão dissociados, mas são veículo um para o outro. “Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência” . Artaud aponta várias formas objectivas para que o teatro atinja os nervos do público, mas sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral fixa, esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no

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impedimento do movimento da cultura, do espírito. O espaço é uma exigência do teatro, não apenas por que reúne todas as linguagens, mas por ser um factor que age sobre a sensibilidade nervosa. Artaud não o compreende apenas fisicamente mas pretende utilizar os seus “subterrâneos” . O espaço é que permite o encontro e o acordo entre os homens. É nele que a cultura, na forma como Artaud a compreende ocorre, sendo um impulsionador dos movimentos culturais. A linguagem espacial assume a função idêntica de transgredir o mundo já estabelecido – também por isso o espaço teatral assume uma composição diferente dos espaços teatrais convencionais. O teatro de Artaud pretende criar poesia no espaço através de imagens materiais, simbólicas. Embora pareçam utópicas as pretensões de Artaud de transformar a sociedade, as suas obras, palavras e atitudes tiveram grande influência no trabalho e experimentações de inúmeros grupos e encenadores, muitos com desejos semelhantes de revolução social, outros mais preocupados com experimentações estéticas e formais. É impossível pensar o teatro de Artaud sem ter em conta a cultura e a organização da sociedade e dos seus valores. Contrariamente a muitos encenadores e reformadores do teatro no início do século XX, que tiveram interesses mais estéticos ou ambicionavam interferências políticas mais directas, Artaud pretendia realizar uma revolução considerando para a qual propõe uma nova ordem, ou apenas retomar uma antiga ordem mítica, ontológica.

Por outro lado a verdadeira cultura actua fora do sistema, fora do tempo e espaço lineares: “Pode-se queimar a Biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: podem tirar-nos por um tempo a faculdade de reencontrar essas forças, não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento; assim a cultura sem espaço nem tempo, e que nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá com redobrada energia ” e essa verdadeira cultura opõe-se à essa arte de museu, “”os deuses que dormem nos museus” O actor deve ousar trazer os símbolos, as forças que fazem parte da memória universal do Homem, dando-lhes vida além da forma.

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As obessões e o drama da palavra As Sombras ou o Duplo

“Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua a ser a de nomear e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas, destrói as falsas sombras

preparando o caminho para o nascimento de sombras à volta das quais de agrega o verdadeiro espectáculo da vida.” As sombras no teatro são para Artaud como a clareira/ floresta de Heidegger , o teatro é a forma mais explícita da Obra em movimento ou do movimento da Obra – o teatro não se fixa na forma, nem perdura no tempo/espaço, criando outras relações tempo/espaço, as falsas sombras seriam o que obscurece a visão, possibilitando assim o desvelar e o dar-se da própria obra, que é a manifestação da própria vida, manifestação de mundo. O actor é parte dessa manifestação/obra. Abandona-se a si próprio para ser obra de arte viva. Essa noção do actor integrante e integrado na obra foi o que impressionou Antonin Artaud no contacto com o Teatro de Bali ( um teatro

onde existia toda uma técnica artesanal, técnica e disciplina dos actores, que se colocavam como parte integrante de uma obra, como cores e traços numa pintura, mas ao mesmo tempo manifestantes dessa própria obra, por ser cada um criador de seu próprio movimento nela). Artaud passa a partir daí a pregar a busca de um actor símbolo, movido por essa força da manifestação da obra, oposto ao teatro corrente da época que ele chamou “teatro de vizinhas”, que seria um teatro menor, proveniente da observação e tentativa de imitação da vida, onde o espectador fica reduzido a um voyeur que observa a vida alheia, onde o mágico inexiste e as dimensões são quotidianas. A sombra para Artaud é também aquilo a que ele chama o duplo: “Toda a verdadeira efígie tem a sua sombra que a duplica; e a arte instala-se a partir do momento em que o escultor que modela acredita libertar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará o seu repouso ”, ou seja junto com aquilo que se revela (a escultura), surge aquilo que se oculta (sombra), e a tensão entre uma e outra é a origem desse movimento, ou seja, a verdadeira arte. O duplo é a própria máscara invisível do actor, independente da maquilhagem, dos figurinos de cena, é o que o torna uma figura mágica, um totem moderno. Artaud diz que o teatro é a única arte cujas sombras “romperam com as suas limitações”. Por que no teatro o material com o qual se modela a obra é vivo – o actor – mexe-se. “O verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos vivos, continua a agitar sombras. O actor que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, sem dúvida brutaliza as formas, e através da sua destruição, alcança aquilo que sobrevive às formas e produz a continuação delas.” O trabalho do actor deve encontrar o que produz, essa

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continuação da forma, o que reside além do visível a partir do corpóreo, uma vez que o corpo é o instrumento que ele possui. O corpo do actor é também linguagem – linguagem própria do teatro – da arte viva – porque além de ser viva como arte é viva por que respira, porque nasce predestinada à morte, como o próprio homem. Segundo Artaud, o actor que gesticula demasiadamente, sem precisão na sua linguagem, brutaliza a forma, ou seja, consolida um estereótipo que o impede de alcançar o que está para além dele próprio. O actor é um atleta afetivo que através do rigor com que trabalha o seu corpo, transmite ao espectador o invisível. Artaud compara o teatro à peste, e ao mesmo tempo, aponta o mesmo teatro como a única cura possível para o Homem. A peste para Artaud não é uma doença que possa ser compreendida isolando-se os seus vírus em laboratório, mas é como uma entidade, com vontade própria, arbitrária, que deixa o homem à mercê de sua vontade, ou do acaso – ou seja tira dele a segurança e atira-o para o abismo do “tudo é possível”, que é também o espaço da Arte. Mas o actor, o homem, tem esse medo do desconhecido, procura sempre a segurança, um estado de alerta, mas ao mesmo tempo não encara o verdadeiro perigo – no seu estado de alerta procura reafirmar a solidez do seu fundamento, ou seja, a representação. Artaud conidera que não vendo o perigo, não agimos de facto mas somos levados pela inércia da segurança. “Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é duro acordar e olhar para as coisas como num sonho, com olhos que não sabem para que servem e cujo olhar está voltado para dentro. É assim que aparece a ideia estranha de uma acção desinteressada, mas é a acção mais violenta por ladear a tentação do repouso.” O teatro/ arte é visto por Artaud como aquilo que desperta o homem para esse olhar que se faz com os olhos. Uma clareza que o mundo sistematizado causal não permite. Artaud compara a acção desinteressada às acções realizadas no sonho, onde tudo o que nos rodeia é mutável, e por isso ameaçador, mas nem por isso deixamos de agir, na verdade, agimos sem ponderar, sem passado e sem expectativas, apenas a acção, que desencadeia outra acção e assim por diante. Segundo Artaud “é preciso acreditar num sentido de vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente se torna o senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer (...) Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos factos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam”. Talvez a arte seja capaz de nos aproximar mais da espiritualidade do que a filosofia. Afinal de contas, ela pode prescindir da palavra para expressar as suas verdades e apresentar significados. A grande arte é aquela que cria uma sincronicidade entre a pessoa e o seu eu. A arte é capaz de acordar, por caminhos subtis e surpreendentes o que temos de mais valioso dentro de nós mesmos, passando por cima de dificuldades que parecem intransponíveis, revelando possibilidades não imaginadas e abrindo o caminho para um universo repleto de poesia, cores e música. Quando voltada para a meditação, a arte pode levar-nos ainda mais directamente à exploração dos nossos espaços subjetivos. Artaud empreendeu uma severa autocrítica da cultura ocidental e apontou caminhos e questões que levaram a repensar a cena moderna e os processos de comunicação. Para isso, ele mergulhou num profundo processo de investigação de um Teatro Ritual Sagrado, que resgatasse o sentido das artes cénicas e aproximasse o actor da espiritualidade.

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As ideias de Artaud sobre o Teatro podem afinal sintetizar-se numa citação de Roland Barthes: “o teatro é uma espécie de máquina cibernética. Em repouso, esta máquina esconde-se por detrás de um reposteiro mas assim que fica a descoberto começa a enviar-nos mensagens. Estas mensagens têm de característico o facto de serem simultâneas e todavia, terem diferentes ritmos.; em determinada altura do espectáculo recebemos ao mesmo tempo seis ou sete informações (provenientes do cenário, da indumentária, da iluminação, da colocação dos actores, dos seus gestos, némicas, falas), mas algumas permanecem (como acontece com o cenário) enquanto outras se vão modificando (as palavras e os gestos); estamos, portanto, perante uma verdadeira polifonia informativa e é isto que constitui a teatralidade: uma densidade de signos”

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O teatro Ritual e mágico

“O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado numa religião, crenças efectivas, e cuja eficácia se traduz em gestos e está ligada

directamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e expressão de uma necessidade mágica espiritual.”

Antonin Artaud

Esta ideia de uma unidade inicial, da busca da unidade, ou seja o Filho Pródigo e o seu retorno ao lar, poderá ser encontrada em Artaud. Para ele o teatro é uma forma da decadência do ritual e que, atingindo o auge desta decadência, percorreria o árduo caminho do retorno ao lar. Ritual aqui pode ser entendido por originário, o que está antes e além desse momento que vivemos onde tudo foi linearizado, representado, racionalizado. Na origem do mundo e da própria arte existe uma compreensão através do mito, uma comunhão com as forças da natureza. O homem pertence originariamente a esse movimento do cosmos, esse movimento que é também caos, perigo e integridade. Para Artaud o teatro tem a função de renovação do próprio ser e tem também algo de mágico e de ritual. Fazer a cena funcionar é quase uma questão religiosa. A cena produz uma série de sensações em quem a executa e no próprio espectador. Na verdade a cena cria o próprio mundo, levando actor e espectador a essa dimensão extra-quotidiana, de um mundo não sistematizado, onde tempo e espaço agem de forma não linear. Agora, o que faz com que um actor absorva o espectador de forma quase hipnótica e o fascine? O que faz com que o espectador veja num actor tudo o que o teatro lhe quiser transmitir? É uma questão de fé? Uma questão de sensações ritualizadas? Uma questão de energia? Existem estudos dos processos pré-expressivos, que compõem uma tentativa pragmática de compreender como se formam os fenómenos, como se produz a energia “transpessoal, uma linguagem que é própria ao teatro, e à Arte. Artaud no texto “O teatro e a metafísica” refere que o teatro deveria ser como o quadro “As filhas de Lot” se ele “soubesse falar a linguagem que lhe pertence”. O que o quadro diz está nele próprio, ninguém o explica , escuta-se o quadro. O teatro deveria ser isso mesmo. Escutar a cena faria do teatro qualquer coisa de mágico. É isso que Artaud pretende e procura? Será isso agir até ao enfeitiçamento do espectador? Será este o processo para atingir a espiritualidade no teatro? No Teatro da Crueldade Artaud defende dois aspectos: um físico, exterior (gesto, imagens, sons), que é direccionado ao impacto pela sensibilidade do público e outro religioso ou filosófico, interior, constituído pelas ideias metafísicas.

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Artaud pensa no actor como veículo e sacerdote da Obra no teatro, mas como ele próprio refere, ao mesmo tempo que desejamos a magia, tememo-la. O Teatro terá para Artaud o sentido verdadeiro de uma religião? Necessitará verdadeiramente de um ritual de iniciação?

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Referências bibliográficas:

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Lisboa: Minotauro, s.d. (São Paulo: Max Limonad, 1884) VIRMAUX, Alain. Artaud e o Teatro. Trad. Carlos Eugénio Marcondes de Moura (1 ed. Paris, 1970). São Paulo: Perspectiva, 1978. ESSLIN, Martin – Artaud- editora Cultrix, S. Paulo, 1976