Art i Go Paulo Ventura

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Educação & Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.36-41, jan./jun. 2002 a r t i g o Por uma pedagogia de projetos: uma síntese introdutória Paulo Cezar Santos Ventura 1 1 Professor de Física e do Curso de Mestrado do CEFET-MG. Integrante do LACTEA/Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia e Arte. Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação na França/2001. [email protected] Esse artigo faz uma introdução ao tema de pedagogia de projetos abordando a possibilidade de uma explosão do conhecimento baseada em três revoluções recentes: da interatividade, da cognição e da gestão de redes. Essas revoluções facilitariam o desenvolvimento de uma cultura do aprender alicerçada em uma pedagogia de projetos. A partir de quatro conceitos fundamentais (representação, identidade, negociação e redes), o artigo inicia a discussão de uma metodologia de projetos de pesquisa nas escolas. PALAVRAS-CHAVE: PEDAGOGIA DE PROJETOS; CULTURA DO APRENDER; INTERATIVIDADE; COGNIÇÃO; GESTÃO; REPRESENTAÇÃO; IDENTIDADE; NEGOCIAÇÃO; REDES; METODOLOGIA. 1 INTRODUÇÃO No ano de 1995 eu lecionava a disciplina de Físi- ca para o primeiro ano do então chamado ensino técni- co no Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET- MG. Trabalhávamos com uma turma do curso de Mecâ- nica, considerada disciplinarmente “difícil” pela maio- ria de seus professores, e não raro era necessária uma intervenção rigorosa de resolução de conflitos no inte- rior da turma. Mas naquele ano houve uma mostra de trabalhos técnicos desenvolvidos pelos alunos e profes- sores da escola. Em geral eram os alunos de segundo e terceiro ano que preparavam trabalhos para a Mostra Especial de Trabalhos e Aplicações – META, onde expu- nham suas habilidades na construção de artefatos técni- cos voltados para aplicações industriais. Algumas modi- ficações na organização e na avaliação da Mostra foram introduzidas naquele ano de 1995 (WANDERLEY, Eliane C., 1998), abrindo possibilidades de apresentação de trabalhos e projetos em quatro modalidades diferentes: didáticos, construtivos, investigativos e de produção de software. Tendo em vista essas quatro modalidades in- centivamos nossos alunos de primeiro ano a desenvol- verem projetos de aplicações da Física, dentro da mo- dalidade de trabalhos didáticos ou construtivos. Para nossa surpresa, todos os quarenta alunos da turma apre- sentaram propostas de projetos, dividindo-se em gru- pos de quatro alunos conforme suas afinidades, sendo que quatro entre os dez projetos receberam menções e premiações, segundo as modalidades de avaliação tam- bém introduzidas naquele ano. Ao final do ano letivo, fui procurados pelo pai de um dos alunos dessa turma que testemunhou, agradecido, a mudança de interesse de seu filho pelos estudos e pela escola. Segundo ele, seu filho havia manifestado interesse em mudar de es- cola durante as férias de julho, principalmente por pro- blemas de relacionamento com colegas. Mas em função da possibilidade de apresentar o projeto do grupo na mostra ele teria adiado essa decisão para o final do ano. Havendo seu projeto obtido sucesso e recebido uma premiação esse aluno teria decidido continuar na es- cola pois gostaria de apresentar outros projetos em outras mostras futuras. A partir dessa experiência, resolvi participar da criação, no CEFET-MG, do Laboratório Aberto de Ciên- cia, Tecnologia e Arte – LACTEA. O LACTEA vem, desde então, atuando de acordo com seu objetivo primordial de contribuir para uma capacitação tanto técnica quanto

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Educ. Tecnol., Belo Horizonte, v.7, n.1, p.36-41, jan./jun. 2002

a r t i g o

Por uma pedagogia de projetos: uma síntese

introdutória

Paulo Cezar Santos Ventura1

1 Professor de Física e do Curso de Mestrado do CEFET-MG. Integrante do LACTEA/Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia e Arte. Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação

na França/2001. [email protected]

Esse artigo faz uma introdução ao tema de pedagogia de projetos abordando a possibilidade de uma explosão doconhecimento baseada em três revoluções recentes: da interatividade, da cognição e da gestão de redes. Essas

revoluções facilitariam o desenvolvimento de uma cultura do aprender alicerçada em uma pedagogia de projetos.A partir de quatro conceitos fundamentais (representação, identidade, negociação e redes), o artigo inicia adiscussão de uma metodologia de projetos de pesquisa nas escolas.

PALAVRAS-CHAVE: PEDAGOGIA DE PROJETOS; CULTURA DO APRENDER; INTERATIVIDADE; COGNIÇÃO; GESTÃO; REPRESENTAÇÃO; IDENTIDADE; NEGOCIAÇÃO; REDES; METODOLOGIA.

1 INTRODUÇÃO

No ano de 1995 eu lecionava a disciplina de Físi-ca para o primeiro ano do então chamado ensino técni-co no Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET-MG. Trabalhávamos com uma turma do curso de Mecâ-nica, considerada disciplinarmente “difícil” pela maio-ria de seus professores, e não raro era necessária umaintervenção rigorosa de resolução de conflitos no inte-rior da turma. Mas naquele ano houve uma mostra detrabalhos técnicos desenvolvidos pelos alunos e profes-sores da escola. Em geral eram os alunos de segundo eterceiro ano que preparavam trabalhos para a MostraEspecial de Trabalhos e Aplicações – META, onde expu-nham suas habilidades na construção de artefatos técni-cos voltados para aplicações industriais. Algumas modi-ficações na organização e na avaliação da Mostra foramintroduzidas naquele ano de 1995 (WANDERLEY, ElianeC., 1998), abrindo possibilidades de apresentação detrabalhos e projetos em quatro modalidades diferentes:didáticos, construtivos, investigativos e de produção desoftware. Tendo em vista essas quatro modalidades in-centivamos nossos alunos de primeiro ano a desenvol-

verem projetos de aplicações da Física, dentro da mo-dalidade de trabalhos didáticos ou construtivos. Paranossa surpresa, todos os quarenta alunos da turma apre-sentaram propostas de projetos, dividindo-se em gru-pos de quatro alunos conforme suas afinidades, sendoque quatro entre os dez projetos receberam menções epremiações, segundo as modalidades de avaliação tam-bém introduzidas naquele ano. Ao final do ano letivo,fui procurados pelo pai de um dos alunos dessa turmaque testemunhou, agradecido, a mudança de interessede seu filho pelos estudos e pela escola. Segundo ele,seu filho havia manifestado interesse em mudar de es-cola durante as férias de julho, principalmente por pro-blemas de relacionamento com colegas. Mas em funçãoda possibilidade de apresentar o projeto do grupo namostra ele teria adiado essa decisão para o final do ano.Havendo seu projeto obtido sucesso e recebido umapremiação esse aluno teria decidido continuar na es-cola pois gostaria de apresentar outros projetos emoutras mostras futuras.

A partir dessa experiência, resolvi participar dacriação, no CEFET-MG, do Laboratório Aberto de Ciên-cia, Tecnologia e Arte – LACTEA. O LACTEA vem, desdeentão, atuando de acordo com seu objetivo primordialde contribuir para uma capacitação tanto técnica quanto

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humanística dos alunos da instituição, através do estí-mulo ao desenvolvimento de projetos científicos etecnológicos voltados à apresentação de objetos técni-cos e produtos. Com efeito, os profissionais e alunosenvolvidos com o LACTEA têm realizado contínuos es-forços tendentes à sedimentação de uma cultura de va-lorização de abordagens pedagógicas voltadas para odesenvolvimento integral do estudante, por meio de umaação mais livre e independente. Entre essas abordagenspedagógicas, a realização de projetos tem papel de des-taque, particularmente no CEFET-MG, onde a orienta-ção para a educação tecnológica e a existência de even-tos como a META cria um ambiente propício aoenvolvimento do aluno com atividades em que os con-teúdos técnico-científicos ganham sentido na percepçãode sua utilidade e sua utilização na solução de proble-mas apresentados pela realidade do mundo social etecnológico. O LACTEA, desse modo, transforma a práti-ca dessa abordagem pedagógica em parte de uma neces-sária base de teorização, buscando compreensão cadavez mais aprofundada de suas aplicações, perspectivas elimites. Também no plano da pesquisa acadêmica, oLACTEA oferece um espaço dedicado à transformaçãodos projetos pedagógicos em objetos de estudo, contri-buindo para o estabelecimento de um ciclo virtuoso entreprática e reflexão teórica nesse campo da ação educacio-nal.

2 POR UMA CULTURA DO “APRENDER”

Os avanços tecnológicos, aos quais assistimos nofinal do século anterior, nos permitem antever uma ou-tra explosão no princípio deste século: uma explosãodo conhecimento. Precisamos, hoje em dia, conhecermais sobre a estrutura do núcleo dos átomos, as idéiaschaves da mecânica quântica, um pouco sobre o códigogenético e as descobertas do Projeto Genoma, as inves-tigações no continente antártico sobre o clima da terra,além de outras questões antes consideradas partes deuma cultura sofisticada ou esnobe. Mas o cidadão co-mum se vê cotidianamente em confronto com proble-mas diversos, sobre os quais ele deve emitir um julga-mento fundamentado ou tomar decisões razoáveis emmatéria de desenvolvimento sustentável, de meio ambi-ente, de bioética (por exemplo, as questões sobreclonagem de seres humanos), de saúde, de aprendiza-gem, de vida em sociedade, de atividades profissionaisetc. Estamos preparados para esta explosão do conheci-mento? Dispomos de ferramentas e de novas práticassuficientes para compreender as regras de funcionamentoda mente e revolucionar as práticas de aprendizagem?

Como trabalhar os espaços educativos e redistribui-losentre os locais especializados formais, como as escolas,ou não formais, como os museus e centros de cultura ede ciências, e outros locais, como os lares, os locais detrabalho e os locais de lazer? Como encorajar a dimen-são essencial do homem, essa “máquina de aprender”, edistribuir os tempos educativos às diversas idades da vidado homem? Estamos assistindo à emergência de uma nova“cultura de aprender” (DELACÔTE Goéry, 1996) da qualdeveríamos apreender os fundamentos e disseminá-losou correr o risco de ver surgir novas formas de exclusãosocial: dos “sem-acesso” às novas ferramentas de comu-nicação e novas tecnologias e saberes e “sem-acesso”,portanto, a essa nova cultura. Segundo DELACÔTE (1996)três revoluções permitem a possibilidade desta explo-são: a revolução da interatividade, a revolução cognitivae a revolução da gestão das redes educativas. Difícilsepará-las: uma delas sozinha não teria um impacto deci-sivo na transformação da educação.

A primeira revolução é a da interatividade: elapermite o surgimento de novas redes eletrônicas, emparticular a rede Internet. A rede pode ser vista comouma arquitetura de interconexão possível de se apresen-tar sob a forma de um gráfico em que se precisam os nós,os arcos, as árvores, as malhas, bem como a orientação ea circulação de fluxos (CURIEN Nicolas, 2000). O uso doparadigma de redes é vantajoso em vários domínios: re-ferimos-nos às redes de comunicação, de transporte, deenergia e de serviços, mas podemos nos referir tambémàs redes de divulgação de uma cultura científica e técni-ca, como escolas em rede (rede estadual, municipal e asredes privadas), museus em rede, todos ligados a umprovedor de serviços por internet (VENTURA, Paulo C.S.,2001). Mas a tecnologia das redes de comunicação nasescolas não assegura necessariamente as inovaçõescognitivas. Computadores, trancados em laboratórios deinformática e usados para distribuir instruções e coletarexercícios de avaliação dos alunos, não são geradoresde transformação das práticas de aprender, mas conser-vam velhos esquemas e aumentam a rigidez dos siste-mas. Então, para novas tecnologias, novas pedagogias,por exemplo, a pedagogia de projetos de pesquisa, bus-cando o acesso à informação para resolver problemas,colocar questões, procurar uma explicação, e acessarnovos dados. São algumas das possibilidades que ainteratividade nos permite.

A segunda revolução é a cognitiva. Ainda que es-tejamos longe de tudo conhecer sobre o funcionamen-to de nosso pensamento, de discernir sobre as maneirasideais de aprender e ensinar e de organizar nossas esco-las em função deste conhecimento, é possível insistirsobre uma prioridade: dar ao aluno ou ao aprendiz ca-pacidades cognitivas de ordem superior (BRUER John,1993). Essas capacidades cognitivas de ordem superiorse reagrupam, segundo BRUER (muito embora tenha-mos dificuldades em concordar com todas suas afirma-

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ções), em três grandes categorias:a) o conhecimento aprofundado de um domínio

do saber como, as leis da mecânica, as técnicasde leitura e de redação, refere-se ao fato de queo ensino deve ter um conteúdo;

b) a compreensão das condições de utilização destesaber permite sua utilização em novas situaçõese sua transposição para a solução de novos pro-blemas, em domínios ainda não explorados enão conhecidos;

c) a faculdade de controle e pilotagem meta-cognitiva assegura o controle consciente e vo-luntário, pelo indivíduo, de seu próprio pro-cesso cognitivo, de seu raciocínio, da maneiracomo ele aprende, do funcionamento de suamemória e de como ele pode modificar o fun-cionamento para melhorar o resultado de suaaprendizagem.

A terceira revolução é a da gestão das redes e dasnormas educativas. Esta revolução está em curso em pra-ticamente todo o mundo, inclusive no Brasil, através danova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e dos novos PlanosCurriculares Nacionais (PCN) que apregoam um currí-culo voltado para a competência, para a autonomiado cidadão e para a interdisciplinaridade etransdisciplinaridade. Dos Parâmetros Curriculares Na-cionais podemos extrair o trecho:

“O Ensino médio..., terá como finalidade:...A preparação básica para o trabalho e acidadania do educando, para continuaraprendendo, de modo a ser capaz de seadaptar com flexibilidade a novas condiçõesde ocupação ou aper feiçoamentoposteriores.” (MEC, 1999).

A nova gestão das redes educativas, a terceira revolução,como apresentada nos documentos oficiais brasileiros(LDB e PCN), permite plenamente as duas outras revo-luções citadas: a da interatividade e a cognitiva.

3 APRENDER POR PROJETOS: UMA SÍNTESE

A palavra “projeto” aparece em campos diferentescomo expressões múltiplas bem características de nossaépoca: projeto de pesquisa, projeto de vida, projeto dainstituição, projeto pedagógico da escola, projeto deinstalação profissional etc. Antes de entrarmos numdetalhamento daquilo que entendemos por pedagogiade projetos de pesquisa dos alunos, desenvolveremosum pouco mais a gênese do conceito e seus fundamen-tos teóricos, além daquilo que já descrevemos sobre acultura do aprender. Segundo Michel HUBER (1999), apedagogia de projetos dos alunos começa a se delinearna obra de Jean-Jacques Rousseau, quando ele deseja

que seu personagem Emile aprenda não através dos li-vros, mas através das coisas, tudo aquilo que é precisosaber, sugerindo que uma hora de trabalho valha maisque um dia de explicações. Ainda segundo HUBER, aestruturação do conceito de projeto passa também porKarl Marx e a importância da praxis sublinhada por esteautor, pelos mentores da escola ativa alemã, comoKerchensteiner, pelo filósofo e psicólogo americano JohnDewey, pelo educador francês Celestin Freinet, pelospesquisadores Henri Wallon e Jean Piaget, até chegar aoeducador brasileiro Paulo Freire que deu uma dimen-são de emancipação social ao aprendizado.

3.1 Fundamentos teóricos

O primeiro conceito teórico importante para umasíntese da pedagogia de projetos é o de “representação”pelo fato de sempre precisarmos saber quais nossos pon-tos de ancoragem no mundo que nos envolve (HUBERMichel, 1999). Precisamos nos ajustar e saber nos con-duzir neste mundo, além de identificar e resolver, físicae intelectualmente, os problemas que ele nos colocaquotidianamente e que os alunos, na condução dos pro-jetos, tentam transformar este mundo. Por isto,construimos as “representações” que nos guiam na for-ma de nomear, definir os diferentes aspectos de nossarealidade e interpretá-los. Nossos mundos são plenosde objetos, de pessoas, de fatos e idéias, e nós os dividi-mos com aqueles outros sobre os quais nos apoiamos, àsvezes de forma convergente, às vezes de formaconflitante, mas com a finalidade de compreender,gerenciar, afrontar e, quem sabe, transformar. Por isto asrepresentações têm uma dimensão social fundamental:elas são, ao mesmo tempo, o produto e o processo deuma atividade mental pela qual o indivíduo (ou o gru-po) constitui a realidade e a ela atribui uma significaçãoespecífica.

O segundo conceito importante é o de “identida-de”, um conceito que ressurge tanto nas ciências sociaisquanto na linguagem comum, devido às crises que vive-mos hoje em dia. Segundo o sociólogo francês ClaudeDUBAR (1991) a “identidade” seria o resultado, ao mes-mo tempo estável e provisório, individual e coletivo,subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diver-sos processos de socialização que, conjuntamente cons-troem os indivíduos. Essa definição, das ciências sociais,que não cobre o amplo uso social do termo, parece-nosincontornável para qualificar e compreender os efeitosde uma pedagogia de projetos. A identidade humana seconstrói e se reconstrói ao longo da vida, como produ-to de socializações sucessivas a partir de dois processos:

a) o processo biográfico, em que os indivíduosconstroem suas atividades sociais e profissio-nais ao longo do tempo, em suas relações

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institucionais (família, escola, empresas, etc.);b) o processo relacional, em que os indivíduos

exprimem suas identidades associadas aos co-nhecimentos, competências e imagens de simesmo, em busca do reconhecimento, numdado momento e num determinado local.

Por isso, entendemos que a pedagogia de proje-tos pode oferecer uma estratégia de construção de iden-tidades, uma vez que o aluno perceba que o projetoserá uma ocasião de conquistar um maior reconhecimentosocial, o que afeta positivamente sua identidade.

O terceiro conceito e o de “negociação”, uma vezque negociar é criar consenso, é dar sentido às transfor-mações da sociedade, é também acreditar que soluçõesnovas são possíveis. Negociar é criar relações e vínculossociais, é “dar um tempo” para não nos afundarmos naurgência em que a sociedade moderna pode nos lançar(VENTURA Paulo C. S., 2001). Quando um grupo de ato-res (de alunos, por exemplo) se reúne para desenvolverum projeto, ele parte de um conjunto de informações ede conhecimentos, convergentes ou conflitantes, parauma interação, para uma relação de troca, e toda relaçãode troca é uma negociação informal. A negociação é umprocedimento necessário por causa da complexidade denossas sociedades: todos os membros de uma organiza-ção, ou de uma equipe, devem interagir uns com osoutros à procura de informações. E negociar é reunir osmeios para agir, partindo dessas informações, reunidaspelos atores, para encontrar soluções complementares,a fim de criar uma obra nova, ou um produto novo eirreversível. O que caracteriza uma negociação é o pro-cesso interativo de convergência de diferentes partes, eportanto a negociação se torna um conceito importanteno trabalho de uma equipe de projeto.

Um quarto conceito importante é o conceito de“rede”, sobre o qual iniciamos uma formalização no se-gundo item, ou seja, a cultura do aprender. A questãoprincipal do paradigma de rede (em substituição aoparadigma de sistema) é: quais são as condições a partirdas quais os atores de uma situação de projeto podemse encontrar em convergência, em torno de uma possi-bilidade de mudança ou de inovação? O conceito derede torna-se uma espécie de meta-organização que re-úne homens e objetos em intermediação uns com osoutros, individualmente ou coletivamente, definidos porseus papéis dentro da ação, por suas identidades, porseus programas. As redes são formadas pelas malhasde relações pessoais e profissionais, em que entrampessoas e inst ituições comunicando-se entre si,interativamente. E aí o conceito de negociação toma umaimportância particular. Pois a rede implica uma trama denegociações que assegure sua operacionalidade, uma vezque as instâncias presentes são de naturezas diversas:indivíduos ou mesmo objetos que manifestam suapertinência pelos dos acontecimentos. A inovação den-tro das redes permite-nos criar uma metodologia de con-dução de projetos (LATOUR Bruno, 1993):

a) a problematização – etapa do questionamentopara explicitar as relações entre os membros daequipe, é neste momento que se formulam asquestões susceptíveis de fazer convergirem asidéias da equipe;

b) a instalação da rede – ou instalação dos dispo-sitivos materiais. Objetos e atores são mobiliza-dos em um processo coletivo de negociaçãovisando à solução do problema e à procura dainovação;

c) a difusão das informações – ou a publicação detextos, a organização dos encontros, a produ-ção do conhecimento, a construção de umportifólio, esta é a etapa de solidificação da rede;

d) o engajamento dos atores – é a etapa demobilização. Engajar é dar aos membros daequipe de projeto um papel preciso, uma obri-gação que os torne essenciais;

e) o alongamento da rede – ou a implicação deoutros parceiros. Alongar a rede é multiplicaras entidades que a compõem, é chegar a resul-tados que levem a outros problemas e a outrosprojetos.

Todos esses quatro conceitos - representação, iden-tidade, negociação e rede – permitem a construção cole-tiva de um saber ou de um conhecimento novo, atravésda desestabilização das representações iniciais dos mem-bros da equipe e da construção de um novo equilíbrioem um nível superior. E nesta ação de construção deuma nova obra ou produto, a confrontação e a negocia-ção de representações entre os atores de uma rede deconhecimento, reforçam e complexificam as novas aqui-sições. Assim chegamos a uma definição de projeto.

Chamamos de “projeto” a uma ação negociada en-tre os membros de uma equipe, e entre a equipe e arede de construção de conhecimento da qual ela fazparte, ação esta que se concretiza na realização de umaobra ou na fabricação de um produto inovador. Ao mes-mo tempo em que esta ação transforma o meio, ela trans-forma também as representações e as identidades dosmembros da rede produzindo neles novas competênci-as, através da resolução dos problemas encontrados. Claro,a rede de construção de conhecimentos a que nos refe-rimos acima inclui os alunos, os professores, a escola, asinstituições de educação não-formal, como museus, re-vistas de divulgação, emissões educativas da televisão,teatros de ciências etc., além das redes interativas decomunicação, tais como a Internet, os CD’s, etc. Portan-to, para que um projeto atinja os objetivos de transfor-mação das representações e das identidades de seus au-tores, é necessário que todos os membros da rede este-jam engajados na negociação e no desenvolvimento doprojeto.

3.2 Condução dos projetos

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Existem inúmeras práticas de desenvolvimento deprojetos pelos alunos, em situações de classe, em esco-las de programas e projetos pedagógicos os mais diver-sos. Mas quais projetos? Projetos de professores, com osalunos como meros executores? Qual a margem de auto-nomia dos alunos? Qual o espaço de decisão? Qual arelação com o conhecimento, com os programas e comos currículos? Qual a prática interdisciplinar atingida?HUBER (1999) cita alguns procedimentos na conduçãodos projetos que facilitariam o sucesso final, baseadoem uma pesquisa realizada na França:

a) o projeto poderia terminar em objetos e artefa-tos concretos classificados em três categorias pos-síveis, tais como produtos a serem colocadosno mercado, produtos mediáticos (filmes, fo-tografias, CD’s, peças de teatro, exposições etc.);e ações voltadas ao desenvolvimento do gru-po, favorecendo um contato com o exterior(viagens, jogos, etc.). A produção de um obje-to concreto coloca em movimento as represen-tações dos alunos, confrontando-os com a rea-lidade e forçando-os a negociar novas repre-sentações com a rede de construção de conhe-cimento;

b) o projeto teria por objetivo uma tomada depoder sobre a realidade permitindo atingir umverdadeiro reconhecimento social. Se o proje-to tiver um certo impacto sobre o ambiente es-colar ele será uma prova tangível da aquisiçãode saberes, valorizá e dará confiança ao aluno,persuadindo-o de sua capacidade de aquisiçãode competências ainda mais difíceis;

c) o projeto se acompanharia de uma mudança deestatuto dos alunos, que passariam a co-gestoresjunto com os professores. Esta co-gestão pode-ria gerar um “portifólio” ou “caderno de bordo”,apresentado e discutido regularmente com osprofessores para que se verifiquem as etapas eas dificuldades surgidas e para que se criem no-vas relações sociais entre alunos e professores;

d) a prática do projeto se acompanharia de umatomada de consciência da cidadania dos alu-nos, permitindo-os prolongar as responsabili-dades adquiridas com o projeto, participando,por exemplo, dos conselhos da escola;

e) um saber “aprendido” através dos projetos seriamais importante que o saber ensinado tradicio-nalmente. Esta é uma mudança de enfoque im-portante: uma vez que a cognição acompanha-ria a ação, a construção do saber se efetuaria,principalmente, pela ação dos alunos;

f) a prática de projetos favoreceria uma outra con-cepção da avaliação: - se os objetivos do proje-to foram atingidos pelos participantes, se o pro-jeto criou uma situação de re-investimento cri-ativo. A pedagogia de projetos favorece umaprojeção para o futuro, logo a avaliação não

pode se contentar com o registro das aquisi-ções mas deve ser prospectiva;

g) um nível de dificuldade mínimo deveria seratingido. O projeto deve ser como um desafio,difícil de cumprir, mas que mobilize as energi-as dos participantes e lhes provoque um certoorgulho pela realização. O projeto deveria per-mitir a conscientização de que somos capazesde fazer coisas diferentes e difíceis;

h) o projeto deveria ter uma dimensão coletiva,reforçando a socialização dos alunos e consti-tuindo-se em um bom trampolim para a reali-zação de projetos individuais.

3.3 Papel dos professores na condução dos projetos

Em primeiro lugar consideramos que os projetosdevem ter uma dimensão interdisciplinar: um professornão precisaria reunir todas as competências necessáriaspara a realização dos projetos, mas competência parauma boa orientação. E quanto mais professores em con-dição de orientação, mais facilitados seriam os trabalhose melhores os resultados. Para a realização de um proje-to, uma vez definida a situação-problema e os objetivos,os participantes precisam ter acesso a determinados co-nhecimentos teóricos, precisam fazer leituras das refe-rências bibliográficas listadas, talvez construir ferramen-tas, construir protótipos etc. Estas seriam ótimas oportu-nidades para uma orientação coletiva: as práticas de lei-tura e interpretação de textos com os professores de Lín-guas, a aprendizagem de consulta a bibliotecas, a bancode dados, a portais de buscas pela Internet, com instru-tores adequados, a prática de redação técnica; a apren-dizagem do uso de ferramentas em oficinas, com profes-sores de técnicas e tecnologias diversas etc. Muitas sãoas possibilidades de uma aprendizagem interdisciplinar.

Durante a realização do projeto, o papel dos pro-fessores é, principalmente, o de tutor. Se tudo se passatranqüilamente, eles observam, encorajam e anotam emportifólio próprio o desenrolar das ações. Se problemassurgem, eles passam a uma relação de ajuda sem, noentanto, resolver o problema para os alunos. Ajudar sig-nifica criar condições para que o problema seja resolvi-do pelos próprios alunos. Cabe, então, aos professores:

a) criar, junto com os alunos, as situações-proble-ma a serem resolvidas. Uma situação-problemaé uma situação de aprendizagem na qual o enig-ma proposto ao aluno permite-lhe, em sua mo-vimentação de representações, de identidades,a aquisição de uma competência irreversível,após negociar soluções novas com os diversoselementos da rede de construção de saberes

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montada para a solução do enigma proposto;b) montar um contrato pedagógico explícito com

os alunos, para a resolução dos problemas comum calendário a ser seguido;

c) fazer reuniões regulares com os alunos e comos outros professores, para situar os avanços dosprojetos;

d) realizar reuniões de encorajamento, ou dereinício das ações, assim que a dinâmica inicialsofra uma queda ou que surja um problemaimportante;

e) cuidar para que haja uma boa relação entre acondução dos projetos e a observação dos pro-gramas da escola;

f) fazer, em co-gestão com os alunos, o relatóriofinal dos projetos.

4 CONCLUSÃO

Estamos em fase de pesquisas sobre o tema mas játemos alguns resultados altamente encorajadores das van-tagens da aplicação desta metodologia, nos trabalhos eprojetos em andamento no LACTEA. Ao final do calendá-rio estabelecido com os alunos para o desenvolvimentodos projetos, estes são apresentados e expostos publica-mente em seção aberta a todos, inclusive aos familiaresdos alunos participantes. Não têm sido raras as cenas dealegria e de orgulho dos pais pelos trabalhos dos filhos,numa evidente demonstração de mudança de representa-ções e de identidades (“eu não sabia que meu filho fossecapaz disso”...). A auto-estima, o objeto concreto apresen-tado e exposto como prova incontestável da aquisição decompetência e conhecimento são, para os alunos, formasde reconhecimento social incomparáveis.

Além disso, não têm sido também raras as situaçõesem que o projeto desenvolvido conduza a outros proje-tos: os de inserção profissional. A descoberta de vocaçõese capacidades permite que o aluno caminhe em direção adeterminados cursos posteriores, em busca do aperfeiçoa-mento dos conhecimentos adquiridos e da aquisição deoutros que o leve a uma inserção no mercado. O acompa-nhamento desse processo encoraja-nos na continuidadede nossas pesquisas sobre o “aprender por projetos” e con-duz também a outros questionamentos e a outros proje-tos: que processos de “gestão das redes educativas” – aterceira revolução citada – se adaptariam melhor a umapedagogia de projetos nas escolas? São os novos desafiosque se colocam diante dos professores engajados em talmetologia de trabalho.

5 ABSTRACT

In this work an introduction to the pedagogy ofprojects is done, based on the knowledge explosion ofthree recent revolutions of interactivity, cognition andnetwork management. These revolutions made easy thedevelopment of a learning culture based in pedagogy ofprojects. Beginning on the fundamentals ofrepresentation, identity, negotiation and networks, thispaper will discuss a methodology of research projectsin schools.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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