ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER EM BRASÍLIA
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER
EM BRASLIA
LUCIANE SCOTT
BRASLIA/DF 2010
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER
EM BRASLIA
LUCIANE SCOTT
Dissertao defendida no Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo - rea de concentrao em Arquitetura e Urbanismo e linha de pesquisa em Teoria, Histria e Crtica da FAU-UNB. Professor Orientador: Andrey Rosenthal Schlee.
BRASLIA/DF 2010
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ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER EM
BRASLIA
Luciane Scott
Esta dissertao foi julgada e aprovada para obteno do grau de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo
Pelo Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
Braslia Unb.
Braslia, 03 de setembro de 2010.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________ Prof. Dr. Andrey Rosenthal Schlee
Prof. Dr. Ricardo de Souza Rocha
Profa Dra Sylvia Ficher
Prof. Dr. Eduardo Pierrotti Rossetti
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Aos meus pais
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AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Francisco e Reni Scott, e minha irm Juliane Scott Pivetta pelo amor e apoio incondicional, proporcionando todos os meios necessrios para
meu crescimento pessoal e profissional.
A Mrlou Peruzzolo Vieira pelo amor, carinho e por ter estado ao meu lado
sempre me incentivando.
Ao professor Andrey Rosenthal Schlee pela orientao, pacincia, confiana e
pelos ensinamentos durante o mestrado.
A Ana Lusa Diesel e Jssica de Souza pela amizade, e pelo apoio, apesar da
distncia.
Aos meus professores Fbio Mller e Ricardo Rocha por tudo que me
ensinaram, pela amizade e pelo incentivo, atravs de seus exemplos, a ser uma
pesquisadora.
s minhas companheiras de ps-graduao Ana Cludia, Ellayne, Daniela,
Maria e Mayra com quem dividi os momentos de alegria e preocupao.
A tia Nina e sua famlia e Anna Finger por terem me recebido em Braslia com
tanto carinho.
A Eduardo Rossetti, a Danilo Matoso Macedo, a Sylvia Ficher, a Graciete
Guerra da Costa, ao DEPHA, ARPDF, CEPLAN, IPHAN, Fundao Oscar Niemeyer
de Braslia e Natanry Osrio por toda a disponibilidade e auxlio.
Ao Programa da Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da UnB.
CAPES pela concesso da bolsa de estudos.
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... sempre considerei a arquitetura uma obra de arte e somente como tal capaz de subsistir. Oscar Niemeyer
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RESUMO
A pesquisa consiste no estudo e na sistematizao da arquitetura religiosa produzida
pelo arquiteto Oscar Niemeyer em Braslia/DF. Desdobra-se no inventrio e na
elaborao de fichas com o objetivo de compilar informaes sobre as obras
identificadas. So nove as edificaes religiosas produzidas pelo arquiteto: a Capela
do Palcio da Alvorada, a Igreja Nossa Senhora de Ftima, a Catedral Nossa
Senhora Aparecida, a Igreja do Instituto de Teologia (no construda), a Capela do
Palcio Jaburu, a Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, a
Catedral Militar Rainha da Paz, a Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados e a
Capela de Dom Bosco. Para contextualizar o tema, inicialmente aborda-se a questo
do tipo religioso em arquitetura e discute-se a vida do arquiteto a partir da totalidade
de sua produo arquitetnica religiosa.
PALAVRAS-CHAVE: Oscar Niemeyer, Arquitetura Religiosa, Braslia.
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ABSTRACT
The research is based on the study and systematization of the religious architecture
produced by the architect Oscar Niemeyer in Braslia. It unfolds in the inventory and
the development of files which aim is a compilation of information concerning the
works identified. There are nine religious buildings produced by the architect: Capela
do Palcio da Alvorada, Igreja Nossa Senhora de Ftima, Catedral Nossa Senhora
Aparecida, Igreja do Instituto de Teologia (not built), Capela do Palcio Jaburu, Igreja
Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, Catedral Militar Rainha da Paz,
Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados and Capela de Dom Bosco. To
contextualize the issue, it considers initially the type of religious architectures
question and discusses the life of the architect throughout the totality of his religious
architectural production.
KEYWORDS: Oscar Niemeyer, Religious Architecture , Braslia.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ARPDF Arquivo Pblico do Distrito Federal
CEPLAN Centro de Planejamento Oscar Niemeyer
DAU Departamento de Arquitetura e Urbanismo
DEPHA Diretoria de Patrimnio Histrico e Artstico do Distrito Federal
FON Fundao Oscar Niemeyer
IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
NOVACAP Companhia Urbanizadora da Nova Capital
SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
SEPHA - Seo de Patrimnio Histrico Arquitetnico Cmara dos Deputados.
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................ 10
1. ARQUITETURA RELIGIOSA ............................................................................. 14 2. OSCAR NIEMEYER E A ARQUITETURA RELIGIOSA ..................................... 34
3. FICHAS ............................................................................................................. 133 3.1. Capela Nossa Senhora da Alvorada .............................................................. 134
3.2. Igreja Nossa Senhora de Ftima .................................................................... 157
3.3. Catedral Nossa Senhora Aparecida ............................................................... 189
3.4. Igreja do Instituto de Teologia ........................................................................ 238
3.5. Capela do Palcio Jaburu .............................................................................. 242
3.6. Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina de Braslia ............................ 247
3.7. Catedral Santa Maria dos Militares Rainha da Paz ........................................ 264
3.8. Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados ............................................ 285
3.9. Capela de Dom Bosco .................................................................................... 297
CONCLUSO ....................................................................................................... 308 REFERNCIAS .................................................................................................... 310
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INTRODUO
A pesquisa consiste em um estudo dos edifcios religiosos projetados por
Oscar Niemeyer em Braslia/DF. A cidade construda no final da dcada de 50 para
ser a capital do pas ostenta vrias obras do arquiteto. Escolhido pelo ento
Presidente da Repblica, Juscelino Kubitschek de Oliveira, para ser o criador dos
principais edifcios que iriam compor a nova malha urbana e os espaos simblicos
de Braslia, Niemeyer projetou muito. Da inaugurao, aos dias de hoje, o arquiteto
acrescentou, ainda, uma srie de outras edificaes na Capital que, hoje, conta com
mais de 60 obras por ele assinadas.
O tipo funcional religioso est presente em nove edificaes: na Capela do
Palcio da Alvorada, na Igreja Nossa Senhora de Ftima, na Catedral Nossa
Senhora Aparecida, na Igreja do Instituto de Teologia (no construda), na Capela do
Palcio Jaburu, na Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, na
Catedral Militar Rainha da Paz, na Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados e
na Capela de Dom Bosco.
Estas edificaes foram objetos da pesquisa que, como assinalado, tem como
objetivo o estudo, a sistematizao e a compilao de informaes (como o material
grfico e projetual referente aos oito edifcios religiosos de Oscar Niemeyer
construdos na cidade de Braslia; bem como o projeto da Igreja para o Instituto de
Teologia, no executado). Procurou-se tambm desvendar a relao e a abordagem
do arquiteto com o sagrado e o possvel efeito refletido em suas obras. Alm disso, a
pesquisa visa contribuir como meio de conhecimento e registro iconogrfico desta
parcela da obra de Niemeyer.
A escolha da produo religiosa de Oscar Niemeyer relevante pela
qualidade arquitetnica alcanada neste tipo edilcio. O arquiteto se dedicou de
maneira especial ao tema, construindo um nmero significativo de capelas e igrejas,
obtendo grandes resultados nas obras destinadas interface entre o humano e o
divino. notvel o fato de que Niemeyer realizou em torno de 20 projetos de igrejas
ou capelas, sendo que a grande maioria se localiza em Braslia. Alm disso, um
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estudo sobre a produo arquitetnica religiosa brasileira importante por se tratar
de um tema sempre passvel de discusso.
Embora seja um arquiteto reconhecido por sua importncia e contribuio
arquitetura nacional e internacional tendo realizado aproximadamente 600 projetos
(nem todos executados) a sua obra ainda carece de estudos aprofundados. No
existe um sistema de catalogao dos trabalhos de Oscar Niemeyer, e o acesso aos
projetos, originais, principalmente sob a guarda da Fundao Oscar Niemeyer1, com
sede no Rio de Janeiro, extremamente e propositalmente dificultado.
interessante destacar que, entre todas as suas obras, duas das mais
reconhecidas pertenam arquitetura religiosa: a Igreja So Francisco de Assis, em
Belo Horizonte; e a Catedral Metropolitana de Braslia. Existem alguns poucos
estudos sobre a Catedral Nossa Senhora Aparecida, como o de Andrey Rosenthal
Schlee2, a dissertao de Fbio Mller3 sobre arquitetura religiosa que discorre sobre
a Catedral e a Igreja So Francisco de Assis, o livro Igreja da Pampulha, organizado
por Hugo Segawa4 e o livro de Danilo Matoso5, que engloba os projetos de Oscar
Niemeyer em Minas Gerais, dentre eles a Igreja da Pampulha. Entretanto, nenhum
trabalho teve como foco a totalidade da sua produo de edifcios religiosos, embora
alguns apaream de forma sucinta em livros de arquitetura brasileira e sobre o
arquiteto.
Esta pesquisa foi realizada a partir de um estudo sobre a histria da
arquitetura religiosa, e de uma reflexo sobre o arquiteto Oscar Niemeyer e o
conjunto de sua obra. Foram realizados levantamentos de dados e anlises de
1 exceo da Filial da Fundao Oscar Niemeyer em Braslia, onde se tem acesso pesquisa dos documentos, plantas e livros que esto sob sua guarda. 2 SCHLEE, Andrey R. Oscar Niemeyer y su Catedral. In: Ivan San Martn; Peter Krieger. (Org.). Sacralizacin, culto y religiosidad. Mxico: Universidade Autnoma do Mxico, 2009, v. 1. 3 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006 4 SEGAWA, Hugo (Org.) ; CASTRO, Maringela (Org.) ; FINGUERUT, Slvia (Org.) . Igreja da Pampulha: restauro e reflexes. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundao Roberto Marinho, 2006. 5 MACEDO, Danilo M. Da matria inveno: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais 1938-1955. Braslia, Cmara dos Deputados, Coordenao de publicaes, 2008.
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informaes descritivas e qualitativas, presentes em fontes tais como livros, revistas,
dissertaes, teses e Internet. Ainda foram produzidos estudos in loco, nas obras de
interesse para o tema, com realizao de medies, fotografias e desenhos. Por fim,
foi feita uma extensa pesquisa em rgos pblicos, buscando informaes, material
grfico, documentao projetual e informaes sobre outros projetos com fins
religiosos produzidos pelo arquiteto, baseando-se na listagem realizada pela
Fundao Oscar Niemeyer6.
Como o arquiteto trabalha com as mais diversas escalas de edifcios
religiosos: capelas, igrejas e catedrais, faz-se necessrio uma pequena explicao
sobre a particularidade de cada uma:
Capela, segundo o Mons. Guilherme Schubert um templo de dimenses menores, destinado a um nmero reduzido de pessoas, mas preparado para que
nele possa ser celebrada a santa missa.7 Pode ser pblica, semi-pblica ou
particular. So deste conjunto a Capela do Palcio da Alvorada (particular), a Capela
do Palcio Jaburu (particular), a Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados
(semi-pblica) e a Capela de Dom Bosco (pblica).
Igreja onde se desenvolvem todos os atos de culto da parquia que a
clula-mater da vida comunitrio-religiosa, onde o proco cuida do bem espiritual e
geral do cristo desde sua entrada no mundo at sua sada, e alm disso, pelos
sufrgios post mortem.8 As igrejas podem ser: matriz, filial, colegiada, conventual,
abacial ou de irmandade. Encontram-se nesta descrio a Igreja Nossa Senhora de
Ftima (Filial), a Igreja do Instituto de Teologia (no construda, mas seria
conventual), a Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge (matriz).
6 Essa relao reflete o estgio atual da pesquisa na Fundao Oscar Niemeyer (em dezembro de 2007), tendo sido excludos aqueles projetos cujos dados disponveis so insuficientes. Alguns desses projetos so resultado do trao original do arquiteto, desenvolvidos posteriormente por seus colaboradores. Disponvel em Acesso em 10 out. 2008. 7 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p.28 8 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p.28
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Catedral a sede oficial, episcopal, arquiepiscopal, primacial, patriarcal ou
metropolitana. So duas: a Catedral Nossa Senhora Aparecida (metropolitana), e a
Catedral Militar Rainha da Paz (arquiepiscopal).
Com fins didticos optou-se por dividir a dissertao em trs captulos:
O primeiro captulo busca esclarecer a evoluo dos locais sagrados
produzidos pelo homem destinados ao culto ou agrupamento de fiis. Inicia-se com a
definio de Tipo e Tipologia fundamentada na bibliografia pertinente. apenas
analisado neste capitulo o desenvolvimento do Cristianismo considerando-se o fato
de todas as igrejas estudadas serem crists. explicada a evoluo do tipo, partindo
das reunies em residncias adaptadas, passando por igrejas de tipo salo, de tipo
basilical, planta central, cruz grega e cruz latina. Esse ltimo foi o tipo que
permaneceu at o sculo XIX. No sculo XX iniciou-se a discusso sobre a funo
dos templos, e o papel dos edifcios comeou a mudar, com a modernizao da
Igreja e a adequao aos novos materiais de construo o que gerou uma grande
explorao das formas a serem adotadas.
A biografia de Oscar Niemeyer comentada no segundo captulo, tendo
como foco principal sua relao com a religiosidade e sua arquitetura sobre o tema.
So discutidos todos os projetos religiosos do arquiteto, no limitando-se apenas aos
exemplares de Braslia. Niemeyer que sempre afirmou ser ateu convicto nunca
escondeu sua curiosidade sobre o tema e a satisfao em projetar um edifcio
religioso.
Por fim, no terceiro captulo, foco principal do trabalho, so apresentadas as
fichas das edificaes religiosas de Braslia, com dados principais de identificao,
responsveis tcnicos pela obra, datas histricas, uma pequena descrio do
mobilirio e obras de arte, e dados de restauraes ou reformas ocorridas. Alm
disso, todo o material projetual encontrado (plantas, croquis e maquetes),
publicaes da poca, fotografias da construo, fotografias atuais e vista area.
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1 Arquitetura Religiosa O principiar da busca pelo sagrado confunde-se com o prprio surgimento da
humanidade. E gradualmente, de acordo com a poca vivida e a cultura de cada
agrupamento, foram se intensificando os diversos modos de manifestar esta noo
do sagrado. Em conseqncia dessa organizao, passou a existir a necessidade do
lugar sagrado e surgiram os templos dedicados adorao, submisso e
celebrao do poder divino.
Para a compreenso de que maneira esses edifcios se constituram ao longo
do tempo e de como esto sendo construdos na atualidade, faz-se necessrio
entender o surgimento dos primeiros espaos cristos, como se desenvolveram e de
que maneira suas formas se repetiram ao longo dos sculos gerando tipos at hoje
utilizados. Para tanto, inicialmente, observa-se a definio do conceito de tipo em
arquitetura, partindo deste para um estudo dos tipos utilizados para os edifcios
religiosos.
As noes de tipo e de tipologia ainda so fundamentais para o entendimento
e para a anlise das obras arquitetnicas. Diversos autores discorreram sobre este
assunto ao longo dos tempos, sendo uma das definies mais adotadas aquela
elaborada por Quatremre de Quincy, cunhada ainda no sculo XIX, e que buscou
diferenciar o tipo do modelo:
A palavra tipo no representa tanto a imagem de uma coisa a ser
copiada ou imitada perfeitamente quanto a idia de um elemento que
deve, ele mesmo, servir de regra ao modelo.[...]O modelo, entendido
segundo a execuo prtica da arte, um objeto que se deve repetir
tal como ; o tipo , pelo contrrio, um objeto, segundo o qual cada
um pode conceber obras, que no se assemelharo entre si. Tudo
preciso e dado no modelo; tudo mais ou menos vago no tipo.
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Assim, vemos que a imitao dos tipos nada tem que o sentimento e
o esprito no possam reconhecer.9
Para Quatremre de Quincy, o arquiteto sempre deveria voltar ao tipo, aos
princpios fundamentais de cada objeto arquitetnico, para conseguir entend-lo e
contribuir de maneira positiva para a soluo de um dado problema.
J no sculo XX, retomaram-se as discusses acerca da definio e do
emprego do tipo em arquitetura. Giulio Carlo Argan, entre outros autores,
caracterizou tipo como um esquema redutivo, ou seja: o tipo se configura assim
como um esquema deduzido atravs de um processo de reduo de um conjunto de
variantes formais a uma forma-base comum.10
Por sua vez, Aldo Rossi afirmou que o tipo surge de acordo com as
necessidades e em razo do local onde desenvolvido:
[...] constituem-se as primeiras formas e os primeiros tipos de
habitao, e os templos e edifcios mais complexos. O tipo vai se
constituindo, pois, de acordo com as necessidades e com as
aspiraes de beleza: nico, mas variadssimo em sociedades
diferentes, ele est ligado forma e ao modo de vida. [...] Penso,
pois, no conceito de tipo como algo permanente e complexo, um
enunciado lgico que est antes da forma e que a constitui.11
Rafael Moneo tambm forneceu sua definio:
Talvez possa ser definido como aquele conceito que descreve um
grupo de objetos caracterizados por ter a mesma estrutura formal.
No se trata pois, nem de um diagrama espacial, nem do objeto
mdio de uma srie. O conceito de tipo se baseia fundamentalmente
na possibilidade de agrupar os objetos servindo-se daquelas
9 Apud ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p.25. (grifo nosso) 10 ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e Destino. So Paulo: Editora tica, 2000. p. 66 e 67. 11 ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p.25. (grifo do autor)
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similitudes estruturais que lhe so inerentes, poderia dizer inclusive
que o tipo permite pensar em grupo.12
Assim, o Tipo pode ser entendido como o ponto de partida, a forma
primordial, que se desenvolve de maneiras diferentes gerando objetos finais distintos
entre si, mas mantendo caractersticas essenciais iguais e reconhecveis. Pode ser
definido tambm como uma espcie de esquema organizativo, encontrado na origem
das edificaes.
O edifcio cristo possui o papel de ser o lugar de comunho com Deus, de
orao e de encontro com os outros cristos. visto como um local sagrado em
meio ao profano. Costuma-se chamar o local onde os fiis se encontram de templo,
mas seu sentido bastante amplo e abrange diversas religies. Edgar Graeff,
explicou a funo inicial dos templos:
Numa primeira aproximao do reconhecimento da origem e da
funo do templo, pode-se considerar que ele foi criado como um
lugar especialmente agenciado para o exerccio de determinados
ritos; determinados, entenda-se, de acordo com as caractersticas de
cada religio, em cada poca.13
Mas, antes do entendimento de templo como construo, eram tratados como
um lugar sagrado: a palavra templum[...] significa originalmente recinto, zona,
cercada, separada (e, portanto, sagrada), e no uma construo, morada de Deus.14
Mais tarde comeou a ser empregada no sentido de edificaes. Estas eram
executadas sobre lugares previamente percebidos como sagrados15, e buscavam
reconstruir o espao csmico: o telhado do templo representa o cu; as paredes, os
12 Apud STRHER, Eneida R. Consideraes sobre o conceito de tipologia arquitetnica. In: O tipo na arquitetura: da teoria ao projeto. So Leopoldo: Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2001. p.27. 13 GRAEFF, Edgar Albuquerque. O Edifcio. Cadernos Brasileiros de Arquitetura, Projeto Editores Associados Ltda.1979. p.80. 14 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.19. 15 Um dos hbitos da Igreja Catlica, o de abenoar o terreno antes da construo do edifcio, provavelmente tenha origem nestes costumes.
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quatro pontos cardeais; o poo ou elemento aqutico, quando existe, uma
representao das guas infracsmicas. Enfim, o templo simboliza o centro, o lugar
sagrado por excelncia16.
A origem do Cristianismo est na pregao de Jesus de Nazar, reconhecido
como Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado17. Os seus ensinamentos
foram difundidos por seus discpulos que anos mais tarde colocaram no papel as
memrias da convivncia com o profeta atravs dos Evangelhos.
Componente da cultura do nosso tempo, o cristianismo nasceu numa
poca precisa da histria do mundo mediterrneo e prximo-oriental,
a Antiguidade, num pas, a Judia, que ento fazia parte do Imprio
Romano; arraigado na f e na cultura judaicas, desenvolveu-se
rapidamente na cultura greco-romana.18
Pequenas comunidades de crentes se formaram entre judeus e no-
judeus (ou gentios), na Palestina, depois na parte oriental do
Imprio Romano e em Roma, em seguida em sua parte ocidental,
mas tambm em regies externas Mesopotmia e talvez a ndia, a
partir da poca apostlica, Armnia, Gergia, Etipia, e entre os
povos brbaros: visigodos, ostrogodos, vndalos, nos sculos IV e
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Os primeiros cristos no tinham a preocupao de possuir um local
especfico para o culto. A Igreja, cuja origem vem do termo Ecclesia, designava a
16 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.19. 17 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03. 18 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03. 19 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03 e 04
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assemblia: a reunio de pessoas em funo de cultuar o cristianismo20: a palavra
latina ecclesia deriva-se do grego ekklesia, que quer dizer reunio ou assemblia.
nesse sentido que a palavra igreja usada.21 As pessoas reunidas formavam o
verdadeiro templo espiritual de Deus 22. Portanto Igreja representa um organismo
que segue determinada doutrina religiosa, enquanto igreja significa o local
consagrado reunio da comunidade. Para Guilherme Schubert:
Deus pode ser adorado em esprito e verdade, sem se entrar num
edifcio de culto; o cristianismo, por trs sculos, at a paz de
Constantino, viveu sua liturgia sem necessidade e possibilidade de
um recinto sagrado.23
importante ressaltar que durante viagens ou peregrinaes de povos,
mesmo antes do nascimento de Jesus Cristo, as tendas tinham uma grande
importncia em estabelecer um local designado ao encontro com Deus. No entanto a
tenda itinerante no entendida como morada de Deus, mas como um sinal de sua
presena.24
Em geral, as reunies ocorriam normalmente no interior de residncias
privadas, e suas celebraes eram realizadas de forma discreta. Conforme
possvel observar na Fig. 1. Essas edificaes se organizavam em vrios espaos ao
redor de um ptio central25, de forma aproximadamente quadrada, sendo chamadas
de domus ecclesia.
20 Com o tempo, passou tambm a ser entendido como um lugar, um edifcio especifico para os cultos. 21 A Igreja Atravs dos Tempos. Ecclesia. Disponvel em < http://www.ecclesia.com.br> Acesso em 28 mai. 2010. 22 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.31 23 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p. 8. 24 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.25 25 MULLER, Werner; VOGEL, Gunther. Atlas de Arquitectura. vol. 1. Madrid: Alianza Editorial, 1984.
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Figura 1 - Esquema das edificaes residenciais onde os primeiros cristos se reuniam. Fonte: desenhos da autora
Para a realizao dos cultos, os cristos ocupavam o maior dos espaos ou
uniam dois deles com a derrubada de uma das paredes. A forma resultante
aproximava-se do retngulo e no possua elementos que indicassem sua funo.
Apenas a presena de uma pequena sala batismal com pia e pinturas murais a
apontar a destinao do espao.
O edifcio cristo comeara sua vida como uma casa de classe
mdia, com os cmodos dispostos em torno de um ptio interno,
como era costume ento. Dentro deste prdio havia uma sala de culto
com espao para um altar e uma ctedra e cerca de 60 pessoas. Do
lado havia um cmodo menor decorado como um batistrio, com
cenas simples da Ressurreio [...] e milagres de cura.26
Um exemplo que permaneceu a edificao em Dura Europos, na
Mesopotmia (ver Fig. 2. e Fig. 3.)
26 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 49.
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Figura 2 - Casa em Dura Europos Fonte: Church Architecture from 300-1400. Disponvel em
acesso em 06 jun. 2010.
Figura 3 - Sala de Batismo, Dura Europos Fonte: COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo:
Edies Loyola, 2000. p. 49.
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Embora exista um conflito entre autores em relao s catacumbas (que eram
cemitrios subterrneos) terem sido lugares de culto, bem possvel que os cristos,
nos primeiros tempos, tambm se reunissem esporadicamente nesses espaos. Na
poca das perseguies havia uma lei romana que considerava sagrados e
inviolveis os cemitrios, o que impedia o acesso de perseguidores e permitiria que
cristos se reunissem de forma mais segura.27
Somente com o dito de Tolerncia de Milo, de 313 d.C. o Imperador
Constantino (272-337) reconheceu o Cristianismo como religio e conferiu liberdade
de culto aos cristos. E em 380 d.C. Teodsio (346-395) tornou o cristianismo a
religio obrigatria do Estado. Isso permitiu, com o auxlio financeiro dos cristos e
do Estado, que fossem adaptados antigos edifcios para o culto e iniciadas inmeras
construes de igrejas e santurios.
Com o crescimento do nmero de fiis, surgiram os edifcios dedicados
somente ao culto. As construes destinadas a uma comunidade eram simples, de
tipo salo, com uma abside28, independentes de outras edificaes ou contguas a
residncias, conforme Fig. 4.
Figura 4 - Esquema das edificaes de tipo salo Fonte: desenhos da autora
27 A Igreja Atravs dos Tempos. Ecclesia. Disponvel em Acesso em 28 mai. 2010. 28 Nicho, geralmente semicircular, que abriga um altar ou tribuna, acrescentado ao espao principal.
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Por sua vez, os edifcios destinados a sedes episcopais eram maiores, no
entanto permanecia a mesma simplicidade. Algumas edificaes possuam mais de
uma sala de culto. Tomou-se ento como referncia, para o desenvolvimento dos
edifcios destinados ao novo programa, os tipos e as formas da arquitetura romana
profana.
O tipo geralmente utilizado para as grandes salas de celebrao com a
comunidade (ecclesia) foi o basilical romano. A baslica era um edifcio utilizado para diversas funes, como mercado, sala de justia e ponto de encontro.
Localizava-se prximo ao local de desenvolvimento da vida pblica, por exemplo, a
praa do mercado.
O espao amplo onde se podia abrigar um grande nmero de fiis foi eleito
pelos cristos como adequado, j que tambm no possua nenhum significado
religioso anterior. As igrejas desenvolvidas a partir de ento foram a base da
arquitetura religiosa ocidental nos sculos seguintes. O primeiro local de grandes
reunies de cristos foi a Baslica do Palcio de Letrn, em Roma29.
O edifcio basilical cristo, de planta retangular longa, possua simetria axial, e
seqncia de trio30, nrtex31, corpo da Igreja (ou nave), transepto32, e a abside
(presbitrio33). (ver Fig. 5.)
Na baslica romana havia a presena de duas absides, uma em frente outra,
mas os cristos mantiveram uma s delas e deslocaram a entrada para o lado menor
do edifcio. O transepto transversal entre a nave e a abside foi mantido em alguns
exemplares, mas a baslica sem transepto foi o tipo mais utilizado. O volume externo
refletia a organizao interna.
29 MULLER, Werner; VOGEL, Gunther. Atlas de Arquitectura. vol. 1. Madrid: Alianza Editorial, 1984. 30 Ptio entrada da igreja, circundado por prticos. 31 Vestbulo da baslica paleocrist. 32 Nave transversal localizada entre a nave principal e o altar, formando ngulo reto com o eixo principal da edificao. 33 rea elevada reservada aos Sacerdotes e onde est localizado o altar.
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O interior era composto por uma grande sala retangular, com uma srie de
colunas que dividiam o espao em trs ou cinco naves longitudinais, com a nave
central mais elevada que as demais, mais baixas e estreitas. Em sua extremidade se
localizava a abside semicircular, ocupada pelo Bispo ou Celebrante principal e pelos
Sacerdotes Auxiliares34. O altar dedicado deusa da Justia - Minerva - foi
substitudo pelo altar cristo, e as duas tribunas elevadas (ambes) utilizadas no
mais pelas testemunhas e advogados, mas pelos anunciantes das Epstolas e
Evangelho. Ainda, nos edifcios cristos foi acrescentado um espao anterior sala
principal, onde se localizou o batistrio. Era clara a distino entre sacerdotes e
povo, o que no ficava to evidenciado nas construes anteriores.
O local de batismo, que antes provavelmente ocorria no interior das igrejas
residenciais, em um cmodo destinado a isso, passa a ser uma estrutura fora do
edifcio principal, normalmente de forma redonda ou poligonal.35
Figura 5 - Esquema das edificaes de tipo basilical
Fonte: desenhos da autora
A unio de espaos de funes litrgicas diferentes em um s complexo foi
utilizada em alguns casos, como nos mosteiros.
34 Na Baslica do Foro romano esta rea era destinada ao Pretor e seus assistentes. 35 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.38
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Por outro lado, os edifcios de Planta Central tiveram sua origem nas
sepulturas pr-histricas ou tholos36. Os gregos a adotaram para o culto de heris e
para a realizao de sacrifcios, na forma de um templo redondo com cella37 e prtico
circular. Posteriormente os romanos tomaram esta forma para os locais de
celebrao de suas divindades.
Para as igrejas batismais e as de carter comemorativo (cella memoriae38,
martyrium39), a arquitetura paleocrist adotou a tradio dos edifcios de planta
central, com espao principal separado por colunata, seguido de um espao
circundante. Ver Fig. 6.
Figura 6 - Esquema das edificaes de tipo central
Fonte: desenhos da autora
Os edifcios batismais foram erigidos para atender o nmero crescente de fiis
a receberem o sacramento, se localizando geralmente prximos a igrejas episcopais.
As edificaes de planta quadrada, circular ou poligonal com a pia (ou piscina) ao
centro, substituram os edifcios retangulares com a pia batismal em uma das
extremidades. A piscina escavada no cho era rodeada por colunata. A forma
36 Sepultura subterrnea com cmara circular coberta por cpula, acessada atravs de um longo corredor. 37 Cmara ou recinto principal do templo, onde est abrigada a imagem da divindade. 38 Igreja construda em memria de um mrtir ou de um santo. 39 Igreja construda sobre o tmulo de um mrtir.
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preferida era o octgono, coberto com uma cpula, e que assumiu variaes e
associaes com outros elementos construtivos.
Para as igrejas de carter comemorativo, construdas sobre a sepultura de
pessoas importantes ou de lugares significativos, as formas so mais diversas do
que as adotadas nos locais de batismo, j que no estavam sujeitas a um culto
religioso invarivel.
Um exemplo importante foi a igreja de Santa Constanza (ver Fig. 7), do incio
do sculo IV, em Roma, com sua colunata dupla em crculo ao centro, seguida de
parede circular com srie de nichos. O edifcio repetia a tradio do templo antigo
sendo cercado de prtico circular e a entrada era feita atravs de um nartx
transversal.
Figura 7 - Igreja de Santa Constanza. Fonte: Il Mausoleo di S. Costanza. Disponvel em
acesso em 02 jul. 2010.
A partir do governo de Justiniano (527-565) foram construdos vrios edifcios
para representar a importncia da Igreja e do Imprio. O tipo escolhido para isto
foram os Edifcios de Cpula, por seu interessante efeito espacial de composio
escalonada.
O tipo baslica e o edifcio de planta central se desenvolveram nos sculos IV
e V de maneira independente. A baslica atendia, com sua composio simples, as
exigncias litrgicas das Igrejas Paroquiais e Episcopais. J o edifcio de planta
central, com suas formas mais elaboradas, no cumpria essas exigncias.
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No sculo V apareceram as tentativas de unir as duas formas em uma s
edificao. Com a soma dos experimentos, experincias tcnicas e artsticas
surgiram as Baslicas de Cpula. Pode-se citar a Igreja de Santa Sofia (532-537), em
Constantinopla, como um dos exemplos mais expressivos. Possui planta retangular
com um espao longitudinal centralizado, repleta de arcadas e pilares, o presbitrio
em forma de trevo e o volume externo escalonado com cpulas e meias-cpulas.
Como continuao dos experimentos, por volta do sculo XI, e com a insero
de transeptos perpendiculares ao corpo da igreja surgiram as plantas em forma de
cruz. A partir da interpenetrao de duas naves retangulares, resultou a figura bsica
da cruz grega (Fig. 8): com um espao quadrado central, e quatro de mesmas dimenses nas laterais deste. Cada espao deste suportando uma cpula,
resultando num volume de cinco cpulas.
No comeo do sculo XIII a igreja sofreu uma diviso
A parte oriental da Igreja passaria a se chamar Igreja Ortodoxa, e a
parte ocidental, Igreja Catlica. As duas comunhes permaneceram
muito prximas em termos de doutrina e prtica ambas se mantm
apegadas Bblia; antiga estrutura da Igreja, liderada por bispos e
padres; aos sete sacramentos, aos dias dos santos e outras festas;
venerao de Maria.40
Mais tarde, vrias aes da Igreja como a venda de indulgncias, e a
negligncia e indiferena com os cristos, precipitaram uma maior e mais profunda
fragmentao da instituio.
Em 1517, O telogo alemo Martinho Lutero (1483-1546) revoltou-se contra
as prticas da igreja catlica, foi excomungado e fundou a Igreja Luterana. Esta no
reconhece a autoridade papal, nega o culto aos santos e acaba com a confisso
obrigatria e o celibato dos padres e religiosos. Mas manteve os sacramentos do
batismo e da eucaristia. Contrastando com a riqueza de decorao das igrejas
catlicas, as chamadas igrejas reformadas passaram a ser construes simples, 40 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 103.
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despojadas de ostentao, com foco no sermo (na palavra). Essa Reforma
protagonizada por Lutero se expandiu e deu origem a outras manifestaes em
diversos pases41.
A Igreja catlica reagiu com o que foi considerada uma contra-reforma: uma
reforma dentro da prpria igreja. A partir de 1520 foram notadas as primeiras
mudanas com as criaes de novas ordens religiosas: capuchinhos, teatinos,
barnabitas e jesutas. Mas a repercusso mais importante foi a realizao do Conclio
de Trento, convocado em 1542 e encerrado somente em 1563. Nestas sesses
buscou-se definir melhor a doutrina catlica.
Na ltima sesso, iniciada em 1562, o conclio reafirmou muito da
doutrina e da pratica medievais, como o celibato do Clo e a
existncia do purgatrio. Tambm defendeu a crena no livre-arbtrio
contra a doutrina de Lutero do cativeiro da vontade, e rejeitou sua
doutrina da f exclusiva, insistindo que o amor e a esperana tambm
so necessrios salvao e publicando decretos que extinguiam o
pluralismo e a compra e venda de cargos eclesisticos.
Aps o Conclio de Trento, que no havia se pronunciado a respeito dos locais
de culto, o arcebispo de Milo, So Carlos Borromeu (1538-1584) na Instruo sobre
a construo das Igrejas, recomendou:
[...] Contra o plano circular ou em cruz grega, preconizado o plano
em cruz latina, que alonga a nau para os fieis separando-a do coro
reservado ao clero. [...]. Na igreja, o altar-mor deve ficar bem
isolado[...] e elevado, de tal sorte que todos os olhares se dirijam para
o sacrifcio da missa.[...] o plpito do pregador ser ao contrario
aproximado o mais possvel da assistncia. Por outro lado, para que
essa possa acompanhar da melhor maneira possvel os ofcios, a
igreja dever ser to clara quanto possvel.42
41 O Calvinismo na Sua, o Anglicanismo na Inglaterra, o Presbiterianismo na Esccia, entre outros. 42 VENARD, Marc. A imagem tridentina: a ordem da beleza. In: Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 342.
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28
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Figura 8 - Esquema das edificaes de tipo cruciforme. Fonte: desenhos da autora
Estes tipos (salo, basilical romano, de planta central e cruciformes),
consagrados a partir dos primeiros sculos de culto cristo, seguiram orientando as
construes das Igrejas Catlicas at o sculo XIX.
No incio do sculo XX, muitos acreditavam que no havia sentido na procura
de uma nova arquitetura, sustentando que as igrejas existentes eram o modelo
adequado a ser seguido e repetido. Mas comeou-se a discutir esta prtica em busca
de uma adaptao s novas formas arquitetnicas e s novas tcnicas de
construo no somente nas igrejas catlicas, como tambm nas protestantes.
O papel dos edifcios religiosos como ponto de referncia comea a ser
alterado:
Assim como os horizontes das cidades modernas so dominados
pelos prdios comerciais, na Europa medieval as catedrais e igrejas
eram os edifcios maiores e mais importantes. A catedral era um
smbolo da cidade.43
43 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 111.
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No entanto neste momento as igrejas no precisam mais assumir esta funo,
perde-se a necessidade de construes gigantescas e imponentes.
O Movimento Litrgico, de acordo com as manifestaes do Papa Pio X
(1835-1914), que exerceu seu papado de 1903 a 1914, iniciou uma renovao na
Igreja Catlica. Houve iniciativas para aproximar os fiis da liturgia nas missas e a
inteno de aliar os artistas modernos Igreja, de maneira a reafirmar a
modernidade litrgica. No campo da arquitetura essas reformas preconizaram a
lgica e harmonia das construes com os materiais e tcnicas modernas.
[...] fundamental arquitetura eclesistica da reforma foi o carter
eminentemente central que deveria assumir o altar, em volta do qual
as pessoas reunir-se-iam, transplantando-o como domnio exclusivo
do clero e exaltando-o como pedra fundamental da Igreja crist, ao
mesmo tempo em que o relacionaria ao ato Eucarstico Cristo e aos
apstolos na ltima Ceia, em ideal cristocntrico. Alm de facilitar a
comunho e a participao da congregao na Casa de Deus e
Corpo de Cristo, a funo do templo reformado deveria ser a de
promover o senso comunitrio e encorajar a contribuio ativa do fiel
pela emoo individual em conjuno coletiva, sentido anlogo
viso socialista dos expressionistas.44
A Alemanha foi um campo especialmente frtil agregando inmeras novas
experincias (ver Fig. 9 a 13) . Um dos arquitetos que se dedicou explorao das
formas, buscando alternativas de configuraes dos espaos tradicionais e
aproximando o altar dos fiis foi Dominikus Bhm, seguido por seu colaborador
Rudolf Schwarz que em 1938 escreveu Vom Bau der Kirche45 onde apresentou
modelos esquemticos (ver Fig. 14) e discorreu sobre os problemas de
representatividade dos templos para o arquiteto. Tais modelos foram bastante
44 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006. p. 288 45 SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del Siglo XX en Alemania. Munich: Schnell & Steiner, 1974.
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30
divulgados, repercutindo na arquitetura religiosa de inmeros pases e de
importantes arquitetos como, por exemplo, Le Corbusier e Oscar Niemeyer.
Figura 9 - Auferstehungskirche ou Igreja da Ressurreio, Otto Bartning, 1929/30.
Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.59.
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31
Figura 10 - Modelo de uma igreja protestante em vidro e ao. Peter Grund. 1929.
Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.60
Figura 11 - Igreja Catlica St. Pius. H. Schedel, 1958/60.
Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.116.
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Figura 12 - Projeto de igreja com paredes curvas de concreto, T, Hermanns, 1963.
Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.128.
Figura 13 - Capela Protestantes, Fautze Rau, 1964/68.
Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.128.
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Figura 14 - Esquema das novas formas adotadas no sculo XX. Fonte: desenhos da autora
O evento mais importante do sculo XX para o catolicismo, no entanto foi o
Conclio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965. Neste, o catolicismo passou por
uma transformao efetiva e profunda em direo aceitao da modernidade, que
j vinha sendo discutida no seio da Igreja. A missa, que antes era celebrada em latim
e rezada pelo padre de costas para os fiis, passou a utilizar a lngua de cada pas e
o celebrante a se postar voltado para a assemblia. A mudana arquitetnica que
isto acarretou foi a localizao do altar, que se aproximou da assemblia, exigindo
uma reorganizao do espao.
Com todas essas transformaes, os espaos das igrejas tambm se
modificaram, com a principal finalidade de aproximar as pessoas da Divindade, dos
santos e do clero. Os santos passaram a ser tratados mais como humanos do que
divindades, e reduziram-se suas imagens em nmero, privilegiando a simplicidade. A
pia batismal que se localizava fora da igreja ou logo entrada, segundo a idia de
que as pessoas deveriam ser batizadas antes de entrarem no templo, que s deveria
ser freqentado depois que deixassem de ser pagos, passou a ter um local de
importncia dentro da nave. Os fiis deviam participar deste ato importante, e por
este motivo ela se localizou prxima ao altar, para que todos possam testemunh-lo.
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34
2 Oscar Niemeyer e a Arquitetura Religiosa Oscar Niemeyer, com mais de 100 anos de vida e uma longa carreira
profissional, teve muitas oportunidades de projetar e construir um grande nmero de
obras: museus, palcios, residncias, monumentos, parques, escolas entre outras,
tanto no Brasil quanto no exterior.
Entre os inmeros projetos encontram-se vrios exemplares, construdos ou
no, de edifcios religiosos. Embora declaradamente ateu, o arquiteto se dedicou de
maneira especial a este tema, desenvolvendo um nmero significativo de templos.
Estudando de maneira mais abrangente sua trajetria poderemos perceber
que o tema religioso esteve presente de diversas maneiras na vida do arquiteto.
Ainda criana, Niemeyer conviveu com o mundo religioso, atravs do ambiente de
orao em sua prpria famlia. Mais tarde, conheceu vrios exemplares de
arquitetura religiosa por meio de seus contatos profissionais e mesmo por meio da
conversa entre amigos, inclusive alguns religiosos.
Oscar Niemeyer nasceu em 15 de dezembro de 1907, na cidade do Rio de
Janeiro. Como consta em seus vrios registros biogrficos, viveu sua infncia na
casa de seus avs, no bairro das Laranjeiras (Fig. 15 e 16). Uma de suas mais
longnquas lembranas ligada religio: Foi na velha casa das Laranjeiras que
passei a minha mocidade, dela lembrando a sala de visita que virava capela.46
A importncia dada religio por sua av, o impressionou: A minha famlia
era catlica, famlia de fazendeiros procedente de Maric, com retrato do papa na
parede, cheia de preconceitos.47
A sala de visitas tinha cinco janelas trs dando para a rua, duas
para os lados. Numa destas, minha av embutiu um oratrio, que,
46 NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1978. p. 12. 47Entrevista ao Confea. Disponvel em Acesso em: 6 nov. 2008.
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35
aos domingos abrindo para a sala, permitia que a missa fosse rezada
em casa, to religiosa era a nossa famlia.48
Figura 15 - A casa da Rua Passos Manuel. Fonte: PETIT, Jean. Niemeyer Poeta da Arquitetura. Lugano: Fidia Edizzione dArte, 1998.
p.20.
48 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 05 jul. 2009. p. 38.
Figura 16 - Planta da casa da rua Passos Manuel. Sala de Estar em destaque. Fonte: Oscar Niemeyer. Casas onde Morei. Rio de Janeiro: Revan, 2005 p.35.
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36
Figura 17 Famlia de Oscar Niemeyer: esquerda seu irmo Carlos Augusto, sua me e seu pai, frente suas irms Lilia e Leonor, Oscar Niemeyer, irm Judith e irmo Paulo, dcada de 1920.
Fonte: GARCI, Willie. Celebrating Oscar Niemeyer. Oscar Niemeyer, Did You Know? 28 jul. 2009. Disponvel em acesso em 20 mai. 2010.
Mas Niemeyer no conseguia entender o ar solene com que ela realizava tais
ritos. Ainda criana, achava graa: Aos domingos minha av abria uma das janelas
da sala de visitas. Era o oratrio, e a missa rezada em casa com a presena da
vizinhana. No raro me retiravam da sala, a rir do ar compenetrado com que ela, em
voz alta, rezava a Salve-Rainha.49
Mais tarde, em sua juventude, comeou a questionar o Deus de sua av e a
buscar alternativas para entender o mundo: s vezes, muito jovem, o espiritismo me
atraa, logo dissolvido pelo materialismo dialtico irrecusvel.50
49 NIEMEYER, Oscar. Casas onde morei. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 13-14. 50 NIEMEYER, Oscar. Minha Arquitetura. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 339.
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37
Depois de trabalhar no Socorro Vermelho51, conviver com um grupo de
comunistas, e perceber a discrepncia entre pobres e ricos, Niemeyer deixou de
acreditar em Deus:
A idia de um Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas, havia
desaparecido do meu pensamento. Mas a viso de um ser humano
to frgil e desprotegido, diante deste universo fantstico que o cerca,
levava-me a acompanhar as conquistas da cincia, empenhada em
desvendar os mistrios do cosmo e de nossa prpria existncia.52
Mas no abandonou o assunto ao longo do tempo, surgindo em vrias de
suas declaraes. Em conversas com seu engenheiro e amigo, Carlos Sussekind,
confessou que buscou refgio na literatura para tentar entender a religio:
[...] li com ateno o livro Em que crem os que no crem? que
voc me deu. Pura especulao intelectual. Seus autores inteligentes
e cultos demais para uma conversa mais realista.53
Apesar de se declarar ateu, no mantm uma postura de rejeio em relao
religio e s pessoas que a seguem
[...] a lembrana daqueles velhos tempos, dos amigos em sua
maioria catlicos que nos freqentavam deixou-me a idia de que
se tratava de gente boa e bem intencionada, que manifestava uma
atitude generosa diante da pobreza, sem a revolta que em mim
passou a dominar
[...]
51 O Socorro Vermelho Internacional (SCI) foi um servio social organizado pela Internacional Comunista em 1922. Conduziu campanhas de apoio aos prisioneiros comunistas e reuniu apoio material e humanitrio em situaes especficas. No Brasil tambm era conhecido como Socorro Proletrio. 52 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 jul. 2009. p. 38. 53 NIEMEYER, Oscar. Conversa de Amigos: correspondncia entre Oscar Niemeyer e Jos Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 31.
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38
Tudo isso explica a minha postura compreensiva e quase indulgente
em relao aos que crem num Deus invisvel e onipotente,
aceitando, conforme tem acontecido, projetar uma igreja, uma
catedral, ou uma simples capela como a que acabo de desenhar, a
pedido de meu amigo Roberto Irineu Marinho. 54
Afirma tambm: No sou catlico, mas sempre senti certa atrao pelos
assuntos de religio, numa tendncia a especular sobre coisas em que intimamente
gostaria de acreditar.55
Oscar Niemeyer tambm fala do desafio e da grandeza de realizar um edifcio
voltado para a religio:
[...] ao desenhar uma igreja, o arquiteto sente, surpreso, como esta
generosa como tema arquitetural. Com que prazer desenhei as
colunas da Catedral de Braslia, a subirem em crculo, criando a
forma desejada! E lembro os contrastes de luz que adotei, to
importantes no interior de uma catedral.
Quando projeto uma catedral, reconheo que o prazer que sinto em
ver uma obra bem realizada muito menor do que a importncia que
lhe do aqueles que vo freqent-la, pois ali que acreditam
estarem perto de Deus. Para eles, o ser supremo que, onipotente,
tudo criou.
Eis como eu posso justificar essa contradio que alguns levantam
entre a minha posio de comunista e o meu interesse em desenhar
obras de carter religioso.56
54 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 jul. 2009. p. 38. 55 NIEMEYER, Oscar. Quase memrias: Viagens. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966, p. 99.
56 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 de jul. 2009. p. 38.
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39
Oscar Niemeyer ingressou na Escola Nacional de Belas Artes em 1929, aos
22 anos, onde se formou engenheiro-arquiteto (Fig. 18 e 19). Ainda estudante teve a
oportunidade de estagiar no escritrio de Lucio Costa e Carlos Leo, e de trabalhar
em uma construtora:
Como imaginava, a passagem pelo escritrio do Lucio foi
fundamental para mim. Quanta coisa devo a esses bons amigos!
Com eles compreendi melhor a nossa velha arquitetura colonial; eles
demonstravam a determinao com que devemos atuar no campo da
arquitetura. Com que interesse tomava contato com os primorosos
desenhos do Lucio e as belas mulheres que Leo to bem sabia
desenhar!57
Figura 18 - Carteira de Niemeyer como Aluno da Escola Nacional de Belas Artes Fonte: Cronologia Vida < http://www.niemeyer.org.br> acesso em 21 mar. 2010.
57 NIEMEYER, Oscar. Meu ssia e eu. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 61.
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40
Figura 19 - Diploma da Escola Nacional de Belas-Artes
Fonte: Cronologia Vida < http://www.niemeyer.org.br> acesso em 21 mar. 2010.
Nesta convivncia com os dois arquitetos possvel que Niemeyer tenha
estado em contato com um projeto que Lucio desenvolveu para um concurso de uma
cidade operria para Monlevade58, em 1934. Uma das edificaes desenvolvidas era
uma igreja que, segundo Carlos E. Comas59, inspirava-se diretamente na de Igreja
de Notre-Dame du Raincy, de Auguste Perret de 1922 (ver Fig., 20 e 21). O projeto
da igreja possua trs naves abobadadas, suportadas por colunas delgadas e com
elementos vazados filtrando a luz nas paredes laterais.
58 Concurso realizado pela Companhia de Siderurgia Belgo-Mineira, para um conjunto habitacional com residncias, igrejas, cinema, armazns. 59 COMAS, Carlos Eduardo. Precises brasileiras: sobre um estado passado da arquitetura e urbanismo modernos. Tese de doutorado. Universidade de Paris, 2002. p. 65.
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41
Figura 20 - Croqui de Monlevade. Lucio Costa. 1934. Fonte: BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
p. 75.
Figura 21 - Igreja de Monlevade. Lcio Costa. 1934. Fonte: BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
p. 75.
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42
Niemeyer cultivou vrias amizades ao longo de sua vida. E foram estes
contatos e amigos que lhe abriram as portas para aprender, aperfeioar, difundir e
executar sua arquitetura.
Em 1936, depois de recusar a execuo do projeto vencedor para o edifcio do
Ministrio da Educao e Sade60, o ministro Gustavo Capanema convidou Lucio
Costa para coordenar a elaborao de um novo projeto e este sugeriu a consultoria
de Le Corbusier. Oscar Niemeyer reivindicou sua participao na equipe61 e alm de
ter vivenciado o modo de projetar do mestre franco-suo, teve um papel importante
na escolha da soluo final para o Ministrio.
Foi durante o desenvolvimento do projeto de Le Corbusier para a
sede do MES que me senti mais confiante. O projeto estava sendo
desenhado na base do segundo projeto do velho mestre. O mesmo
bloco junto ao Ministrio do Trabalho, a mesma rua corredor e os
mesmos pilotis com quatro metros de altura e o brise vertical da ABI.
Curioso, fiz um croqui diferente, em funo do primeiro estudo de Le
Corbusier. Leo gostou da soluo, Lucio quis v-la e eu que
nenhuma pretenso tinha de mudar o projeto em execuo joguei o
croqui pela janela. Lucio mandou busc-lo e o adotou. Nesse
momento, senti que no seria um arquiteto medocre, que
compreendia a arquitetura contempornea e nela podia atuar
corajosamente.62
Entre outras coisas, em seu croqui, Niemeyer alterou a localizao do prdio
para o meio da quadra e aumentou para dez metros a altura dos pilotis, que antes
eram de apenas quatro metros.
60 Mais tarde, a Lei n.o 1.920, de 25 de julho de 1953, criou o Ministrio da Sade, e o Ministrio da Educao e Sade passou a se chamar Ministrio da Educao e Cultura. 61 Lucio Costa, Carlos Leo, Jorge Moreira, Affonso Reidy, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer. 62 NIEMEYER, Oscar. Meu ssia e eu. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 62.
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43
Figura 22 Croquis comparativos de Oscar Niemeyer1. proposta da equipe brasileira, 1. Proposta de Le Corbusier, 2. Proposta de Le Corbusier e proposta definitiva da equipe brasileira.
Fonte: PHILIPPOU, Styliane. Oscar Niemeyer: curves of irreverence. London: Yale University Press, 2008, p. 58.
A vinda de Le Corbusier influenciou a arquitetura brasileira e de maneira
especial, aliada ao apoio de Lucio Costa, contribuiu para a ascenso de Oscar
Niemeyer. Este foi o ponto de partida para que Niemeyer comeasse a desenvolver a
sua linguagem arquitetnica peculiar. Para Niemeyer,
[...] cujas preocupaes fundamentais eram j de ordem formal, o fato
de constatar pessoalmente a importncia que as mesmas tinham
para Le Corbusier, significou uma verdadeira libertao,
-
44
possibilitando-lhe lanar audaciosamente pelo caminho que viria a
torn-lo internacionalmente conhecido.63
Outro fato importante preconizado por Gustavo Capanema foi a criao, em
1937, do SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, destinado a
determinar, organizar, conservar, defender, enriquecer e propagar o patrimnio
artstico nacional64. A equipe ento formada possua predominantemente arquitetos,
que em sua maioria eram simpatizantes ao movimento moderno brasileiro.
O SPHAN comea a funcionar contando, alm de seu diretor Rodrigo
Mello Franco de Andrade, com os seguintes colaboradores: uma
secretria, Judith Martins, e os arquitetos Lucio Costa, Oscar
Niemeyer, Carlos Leo, Jos de Souza Reis, Paulo Thedim Barreto,
Renato Soeiro e Alcides da Rocha Miranda.65
Oscar Niemeyer, atravs dessa vivncia, teve contato com a arquitetura
brasileira do passado. Ao mesmo tempo em que ele e seus colegas estavam
interessados em criar uma nova arquitetura brasileira, baseada nos preceitos de Le
Corbusier, voltaram suas atenes tambm preservao e valorizao do passado,
aprendendo com as lies presentes em obras centenrias.
[...] aprendi a respeitar nosso passado colonial, a sentir como so
belas as velhas construes portuguesas, sbrias, rijas, com suas
grossas paredes de pedra ou taipa de pilo. E os telhados
derramados a contrastarem com suas brancas paredes caiadas.66
63 BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991. p. 90-91. 64 ANDRADE, Mrio. Anteprojeto do Patrimnio. In: CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 39. 65 CAVALCANTI, Lauro. Introduo. In CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 21. 66 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 42-43.
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45
Durante este perodo, Oscar Niemeyer visitou as cidades histricas, muitas
vezes ao lado de Rodrigo M. F. de Andrade67, tomando conhecimento da arquitetura
do sculo XVIII, das igrejas barrocas, das obras de Aleijadinho e passou a admir-
las.
Por outro lado tambm acompanhou a discusso acerca da insero de
construes modernas em stios histricos. Ele mesmo, em 1938, foi encarregado de
projetar um hotel para a cidade de Ouro Preto. A tarefa no era fcil, implicava em
construir um edifcio que atendesse s necessidades do turismo, tentando no entrar
em conflito com a paisagem da cidade. Com o auxlio de Lucio Costa, Niemeyer
conseguiu chegar a um resultado bastante razovel. Nesta poca, Lucio estava
finalizando seu projeto para um museu inserido no Sitio Histrico de So Miguel, um
dos stios histricos dos Sete Povos das Misses, no Rio Grande do Sul. (Fig. 23)
Figura 23 Museu das Misses. Fonte: So Miguel das Misses. Disponvel
acesso em 28 mai. 2010.
Um dos temas mais estudados pela Revista do Patrimnio, publicada
anualmente pelo SPHAN, era de carter religioso:
Um exame nos primeiros cinco exemplares confirma o perfil de um
patrimnio que privilegia os bens de pedra-e-cal, sobretudo religiosos
67 NIEMEYER, Oscar. Prefcio. In CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 10.
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de Minas e Rio de Janeiro. [...] Mais da metade (68%) dos artigos de
arquitetura, arte e histria abordam temas religiosos.68
Em 1940, Joaquim Cardozo comeou a trabalhar no SPHAN, no ano seguinte,
conheceu Niemeyer que o convidou para fazer os clculos de seus projetos para os
edifcios da Lagoa da Pampulha.
Cardozo se interessava pelas obras antigas e em 1943, publicou um ensaio
com o ttulo Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio na
revista nmero 7 do SPHAN. Este artigo foi publicado novamente na Mdulo, anos
mais tarde69 (Fig. 24). Cuja capa foi ilustrada com a imagem de uma casa colonial, a
fazenda de Coluband, onde se podem notar trs elementos importantes nesta
arquitetura: cobertura de telhas de barro, a colunata e a larga varanda. Elementos
que, inmeras vezes, seriam empregados por Niemeyer, de forma explcita ou
implcita.
Figura 24 - Capa da revista Mdulo no29, agosto de 1962
Fonte: Mdulo, Rio de Janeiro: no 29, Ago. 1962
68 CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 22. 69 CARDOZO, Joaquim. Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio. Revista Mdulo, no 29, ago. 1962. p. 1-23.
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No ensaio, Cardozo enfatiza a disposio da capela:
[...] em Coluband, a capela fica bastante afastada da casa-grande,
possui trre[sic], nave, capela-mor e sacristia, isto , todos os
requisitos de uma pequena igreja, em trno[sic] da qual h um largo
ptio que sempre ornamentado em dias de festa.70 (ver Fig. 25 e
26)
Figura 25 Planta Baixa Fazenda Coluband Fonte: Mdulo, Rio de Janeiro no 29, Ago. 1962, pag. 15.
Figura 26 - Fazenda Coluband Fonte: Fazenda Coluband
acesso em 02 fev. 2010.
70 CARDOZO, Joaquim. Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio. Revista Mdulo, no 29, ago. 1962. p. 9.
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Por sua vez, Rodrigo Mello Franco de Andrade, presidente do SPHAN at a
dcada de 60, escreveu acerca das capelas rurais na primeira edio da revista
Mdulo, em 1955, enfatizando a importncia dessas edificaes na histria da
arquitetura brasileira:
No se poderia escrever a histria da arquitetura religiosa no Brasil
sem um captulo especial dedicado s capelas rurais. O trabalho a
esse respeito que as exclusse seria, pelo menos, gravemente omisso
no tocante a alguns dos monumentos mais arcaicos e genunos do
acervo arquitetnico de nosso pas.71
Algumas destas construes resistiram ao tempo, e Rodrigo mencionou
aquelas de grande importncia, como a capela da Torre de Garcia dvila (Fig. 27),
as capelas integradas em residncias rurais estudadas por Lus Saia e relembrou as
apresentadas por Joaquim Cardozo72. Ainda citou a importncia dada por Lucio
Costa a este tipo de edificao quando discorreu sobre a arquitetura dos Jesutas.
Figura 27 - Capela da Casa da Torre de Garcia dvila Fonte: Fundao Garcia dvila acesso em 18 mai. de 2010.
Depois do desenvolvimento do Ministrio da Educao e Sade, Niemeyer
realizou alguns trabalhos. Alm de um edifcio para uma entidade assistencial, a
71 Mdulo, no 1, 1955. 72 Trabalho orientando pela Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e publicado na revista no 7 deste rgo, de 1943.
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Obra do Bero, elaborou outros projetos, a maioria no construdos.73Em 1938, foi
lanado um concurso para o projeto do Pavilho Brasileiro para a exposio de Nova
York. Apenas dois anos depois da vinda de Le Corbusier, a arquitetura brasileira
estava em franco desenvolvimento, porm, ainda em busca de um caminho que a
identificasse como arquitetura moderna e a distinguisse do estilo internacional.
Nesse momento, Lucio convidou Niemeyer para a elaborao de um projeto em
conjunto (Fig. 28). Prepararam uma edificao simples, de estrutura metlica, com o
uso de linhas curvas que alcanou grande sucesso.
Tratava-se de convincente exemplo de nova forma de expresso
arquitetnica, com caractersticas de criao autenticamente
brasileiras em sua flexibilidade e riqueza plsticas [...] atravs de uma
linguagem moderna, com marcante interpretao pessoal plenamente
vlida e de grande significao. 74
Figura 28 Croqui do Pavilho do Brasil. Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003
Acesso em 20 jan. 2010.
73 Segundo levantamento feito pela Fundao Oscar Niemeyer, foram construdos: a Obra do Bero (RJ, 1937), o Grande Hotel de Ouro Preto (MG, 1938), alm da participao no projeto do Ministrio da Educao e Sade e do Pavilho do Brasil para a Exposio Mundial de Nova Iorque. Neste tempo, Niemeyer tambm elaborou projetos que no foram construdos Clube Esportivo (RJ, 1935), Residncia (RJ, 1935), Residncia Henrique Xavier (RJ, 1936), Maternidade (RJ, 1937), Residncia Oswald de Andrade (SP, 1938), Residncia M. Passos (RJ, 1939) e participao no projeto para a Universidade do Brasil (RJ, 1936). 74 BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea brasileira. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991. p. 107.
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Nesse projeto, aparece um dos elementos que iria ser constante a partir de
ento na obra de Oscar Niemeyer: a rampa curvilnea, criando um percurso de
observao do edifcio.
Mais tarde, por volta de 1940, Niemeyer, mais uma vez por intermdio do
ministro Gustavo Capanema, foi apresentado a Juscelino Kubitschek, que o convidou
para projetar um conjunto de edifcios circundando a lagoa da Pampulha, em Belo
Horizonte. Em meio aos cinco edifcios75 estava a primeira obra religiosa de Oscar
Niemeyer.
Tudo comeou na Pampulha76, diz Oscar Niemeyer. Embora j houvesse
elaborado alguns projetos anteriormente, o arquiteto sempre se referiu a este
momento como o seu efetivo incio na rea da arquitetura.
Em cinco momentos divido a minha arquitetura: primeiro, Pampulha;
depois, de Pampulha a Braslia; depois, Braslia; depois ainda, minha
atuao no exterior; e, finalmente, os ltimos projetos que realizei.77
Nos projetos para a lagoa da Pampulha, Oscar explorou as possibilidades da
tcnica do concreto armado. Anos mais tarde, o arquiteto diria:
E tudo comeou quando iniciei os estudos de Pampulha [...]
desprezando deliberadamente o ngulo reto to louvado e a
arquitetura racionalista feita de rgua e esquadro, para penetrar
corajosamente nesse mundo de curvas e formas novas que o
concreto armado oferece.
75 Estavam previstas cinco edificaes: um Hotel (no construdo), um Cassino (atualmente Museu de Arte), um clube (Iate Golf Clube), restaurante (Casa do Baile) e uma igreja (Igreja de So Francisco de Assis). 76 NIEMEYER, Oscar. Conversa de Amigos: correspondncia entre Oscar Niemeyer e Jos Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p.57. 77 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 266.
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E foi no papel, ao desenhar esses projetos, que protestei contra essa
arquitetura montona e repetida, to fcil de elaborar que se
multiplicou rapidamente, dos Estados Unidos ao Japo.
[...] Era o protesto pretendido que o ambiente em que vivia exaltava
com suas praias brancas, suas montanhas monumentais, suas velhas
igrejas barrocas, suas belas mulheres bronzeadas.78
Em Pampulha ele buscou se libertar das limitaes funcionalistas e teve a
coragem de executar a arquitetura que almejava: a busca pela liberdade formal,
beleza e inveno.
O projeto me interessava vivamente. Era a oportunidade de contestar
a monotonia que cercava a arquitetura contempornea, a onda de um
funcionalismo mal compreendido que a castrava, dos dogmas de
forma e funo que surgiam, contrariando a liberdade plstica que o
concreto armado permitia. A curva me atraa. A curva livre e sensual
que a nova tcnica sugeria e as velhas igrejas barrocas lembravam.79
E para a pequenina igreja dedicada a So Francisco (Fig. 29), Niemeyer
explorou as possibilidades plsticas do concreto armado. A edificao est disposta
entre o lago da Pampulha e a avenida que o circunda. De traos delicados e cor
predominantemente azul, estabelece um ponto intermedirio no horizonte, uma
ligao entre o lago e o cu.
Ao visitante que chega pela avenida, descortina-se um grande painel,
delimitado pela laje de cobertura. O painel externo de azulejos80 em azul e branco foi
78 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 267-268. 79 Apud PETIT, Jean. Niemeyer: poeta da arquitetura. Lugano: Fidia Edizione dArte, 1998. p. 304.
80 Os azulejos foram executados por Paulo Osir Rossi e sua firma Osirarte, a mesma que realizou a execuo dos azulejos do Ministrio da Educao e Sade, em 1936.
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realizado por Candido Portinari retratando a vida de So Francisco de Assis.81. (Ver
Fig. 30)
Figura 29 - Croqui da Igreja So Francisco de Assis Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003.
Acesso em 20 jan 2010.
Figura 30 - Igreja So Francisco de Assis, 2005.
Fonte: Foto da autora
81 Os estudos comearam em 1943. A datao das obras segue as datas encontradas nas correspondncias entre Portinari e Oscar Niemeyer ou presentes na Cronobiografia de Portinari, realizada pelo Projeto Portinari.
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Conduzindo o visitante, o caminho de pedra portuguesa passa em meio aos
jardins elaborados pelo paisagista Roberto Burle Marx.
A cobertura da nave feita por casca de concreto em forma de arco
parablico e diminui em altura medida que se aproxima do altar. Neste ponto se
insere sob outra cobertura, abrigando sacristia e servios, com formato de quatro
parbolas unidas, sendo trs delas em menor tamanho, no entanto seu processo
construtivo diferente, as abbadas se apiam em pilares.
O que Oscar faz na sacristia e capela lateral da Pampulha nada mais
que [...] sucesso de abbadas, estendendo a parbola at o solo
nas extremidades supostamente de modo a transmitir os empuxos
finais at o solo.82
As cascas foram revestidas por pastilhas em porcelana azul, e nas laterais da
parte que reveste a nave esto dois mosaicos de autoria de Paulo Werneck (Fig. 30).
O acesso, pela fachada de vidro e brises voltada para o lago (Fig. 31),
marcado por uma marquise inclinada que une templo e campanrio. Um piso de
mrmore branco, com desenhos sinuosos em basalto preto integra exterior e interior.
Figura 31 - Igreja So Francisco de Assis, 2005.
Fonte: Foto da autora
82 MACEDO, Danilo M. Da matria inveno: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais 1938-1955. Braslia, Cmara dos Deputados, Coordenao de publicaes, 2008. p.178.
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Dentro da igreja (Fig. 32), a abbada parablica revestida de madeira afunila-
se suavemente em direo ao altar conduzindo o olhar para o mural de Portinari
intitulado So Francisco despojando-se das vestes. Para o interior Portinari tambm
realizou uma srie de quadros representando a Via Sacra e desenhou azulejos que
revestem duas bancadas laterais, as paredes do plpito, do confessionrio e do
guarda-corpo do coro. A parede que conforma o batistrio revestida na face
exterior por estes azulejos, e na interior por um bronze de Alfredo Ceschiatti.
Figura 32 Interior da Igreja So Francisco de Assis, 2005.
Fonte: Foto da autora
A integrao bem-sucedida de todas as partes tem origem na equipe que
Niemeyer convocou para auxili-lo: o engenheiro Joaquim Cardozo; o paisagista
Roberto Burle Marx; e artistas plsticos Cndido Portinari83, Alfredo Ceschiatti e
Paulo Werneck.
Niemeyer estabeleceu um ponto de partida para uma nova arquitetura, no
desvinculada dos preceitos racionalistas, mas com o algo a mais.
83 Em 1944, ainda durante as obras da Pampulha, Athos Bulco (futuro colaborador de Niemeyer em Braslia) conheceu Portinari, e foi convidado a ser seu assistente, atuando na execuo do Painel de So Francisco. Athos havia sado do Exercito quando Portinari o convidou para ajudar na Pampulha.
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Inovadora pelo inusitado emprego de uma casca parabolide para a
nave, associada a abbadas para o abrigo das demais dependncias
religiosas, numa combinao de estruturas cuja resultante formal
afastava-se de qualquer formulao do racionalismo do ps-guerra.84
No entanto, a inovao que Niemeyer traz relativa: mesmo criando um
marco para a renovao da arquitetura religiosa, ao mesmo tempo respeita a
tradio franciscana. A planta da Igreja de So Francisco de Assis possui todas as
caractersticas de um templo tradicional:
Nave nica, cruzeiro, nrtex, adro, torre-sineira de um lado s,
balaustrada sinuosa no coro, plpitos colocados no cruzeiro e nave
sem arestas vivas, tudo inundado com brilhante efeito de luz natural,
enfatizando o protagonismo do altar, so reais subterfgios da
arquitetura eclesistica franciscana presentes tanto nesses
exemplares do sculo XVIII, como na capela de Niemeyer dedicada a
So Francisco.85
Niemeyer utiliza um partido tradicional, mas confere uma nova leitura espacial
obra. Enquanto tipologicamente e programaticamente arquitetura tradicional
como as antigas capelas encontradas no interior do Brasil, possui tambm uma
caracterstica moderna. Niemeyer reinventou a arquitetura religiosa, sem perder as
caractersticas essenciais. Atravs das possibilidades do concreto, emprestou
planta tradicional uma feio revolucionria. O interior continua tradicional, mas com
uma releitura moderna, enquanto o exterior traz a inovao.
Nesse sentido, o arquiteto demonstra conhecer a histria da arquitetura
religiosa, provavelmente devido ao convvio no SPHAN. Nessa primeira obra, ele
mantm a tradio, os costumes, ao mesmo tempo em que busca uma integrao
com o seu tempo. Niemeyer segue a linha do desenvolvimento da arquitetura
84 SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1997. p. 100. 85 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006. p. 288
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religiosa. A arquitetura de igrejas foi se modificando ao longo dos tempos, de acordo
com as inovaes tcnicas que se produziam e a adequao foi sendo necessria.
A Igreja da Pampulha, no entanto, gerou uma grande polmica, envolvendo
representantes do clero, a populao e intelectuais.
[...] a querela gerada perpetuou-se por dezessete anos parecendo
apontar para uma condenao da esttica do modernismo por parte
de segmentos conservadores do clero e da sociedade daquela
poca.86
Ainda que o principal motivo fosse a no aceitao da modernidade da obra,
havia outros fatores contribuindo para os desentendimentos.
A igreja, porm, fora construda em um terreno no consagrado, nem
bento, sem consulta ao arcebispo, utilizando o trabalho de artistas
identificados ao comunismo e consagrada a um santo da escolha do
prprio prefeito.87
Isso gerou manifestaes da Cria, contrariada por no ter sido convidada a
participar do planejamento da edificao, alegando que a construo ignorava o
Cdigo de Direito Cannico88.
Embora o clero da poca tenha ficado escandalizado com o edifcio a ponto de
no permitir a sua consagrao, a intolerncia era maior com as obras de arte do
que com a arquitetura. Em entrevista, enquanto se referia aos painis e decorao
86 BAPTISTA, Anna Paola P. Modernismo e tradio na arte religiosa a querela da Pampulha. In: Locus: Revista de Histria. Juiz de Fora, v. 5, n. 2, jul. - dez. 1999. Disponvel em acesso em 25 jan 2010. 87 BAPTISTA, Anna Paola P. Modernismo e tradio na arte religiosa a querela da Pampulha. In: Locus: Revista de Histria. Juiz de Fora, v. 5, n. 2, jul. - dez. 1999. Disponvel em acesso em 25 jan 2010. 88 O Cdigo o principal documento legislativo da Igreja e se baseia na herana jurdico-legislativa da Revelao e da Tradio. Seu objetivo tornar visvel a estrutura hierrquica e orgnica da Igreja; organizar o exerccio das funes divinamente confiadas sociedade eclesial; compor as relaes mtuas entre os fiis; apoiar, proteger e promover iniciativas comuns em prol de uma vida cristo mais perfeita; permitir sociedade eclesial criar uma ordem que d primazia ao amor e facilite o desenvolvimento da Igreja e de cada um de seus membros." (cf. Cdigo de Direito Cannico - Ed. Loyola) Disponvel em acesso em 25 jan 2010.
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como fantasia dos artistas 89, o arcebispo de Belo Horizonte Dom Antonio Santos
Cabral afirmou:
Quanto ao estilo arquitetnico, repito, poderia haver tolerncia. Na
Frana, todas as reconstrues religiosas esto obedecendo a
tcnica do cimento armado. Estilo verdadeiramente revolucionrio,
porm, compreensvel.90
O debate foi longo, cogitando-se at mesmo a hiptese de se transformar o
edifcio em Museu de Arte Moderna. Em 1947 o edifcio foi tombado pelo SPHAN,
mas a igreja somente foi consagrada em 1959.
No mesmo ano em que visitou a Europa pela primeira vez, 1954, Niemeyer
projetou a residncia Cavanelas (Fig. 33 e 34), continuando suas experimentaes
formais. Em meio a uma paisagem deslumbrante, o edifcio possui um desenho
simples, enfatizando a leveza da estrutura e a continuidade dos espaos. Uma laje
esbelta de trelias metlicas levemente curvada para baixo no seu centro (catenria),
apoiada nas quatro extremidades, maneira de uma tenda. Alm dos quatro apoios
de pedra existem tambm duas paredes de pedra, delimitando a rea social e
separando-a da rea intima.
89 Afirmava ainda que eram Extravagncias que podem ficar muito bem nos sales da arte [...] Mas para um templo aquilo no fica bem, no podemos desvirtuar a obra do Senhor, nem a igreja lugar para experincias materialsticas, embora artsticas. Condenada a Igreja de S. Francisco da Pampulha. A Noite, Rio de Janeiro, RJ, 26 ago. 1946. Disponvel em acesso em 22 jan 2010. 90 Condenada a Igreja de S. Francisco da Pampulha. A Noite, Rio de Janeiro, RJ, 26 ago. 1946. Disponvel em acesso em 22 jan 2010.
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Figura 33 - Croqui da Residncia Cavanelas.
Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003 Acesso em
20 jan 2010.
Figura 34 Residncia Edmundo Cavanelas, Pedro do Rio, RJ, 1954.
FONTE: HESS, Alan; WEINTRAUB, Alan. Oscar Niemeyer Houses. New York: Rizzoli International Publications, 2006. p. 114
Por sua vez em 1955, Lucio Costa elaborou um anteprojeto91 para um altar ao
ar livre destinado ao 36o Congresso Eucarstico Internacional. Uma construo
bastante simples, em madeira, com uma enorme vela. (Fig. 35 e 36.)
91 O risco original feito por Lucio Costa foi desenvolvido pelos Arquitetos Alcides Rocha Miranda, Fernando Cabral Pinto e Elvin Mackay Dubugras.
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Figura 35 Altar para o 36o Congresso Eucarstico Internacional, 1955. Lucio Costa, Alcides Rocha
Miranda. Fonte: Altar para o 36 Congresso Eucarstico .
Acesso em 03 jun. 2009.
Figura 36 - Altar construdo para o 36o Congresso Eucarstico Internacional.
Fonte: Congresso Eucarstico Internacional. < http://elvindubugras.blogspot.com/2008/03/congresso-eucarstico-internacional.html >. Acesso em 31 jan. 2010.
No mesmo ano foi lanada a revista Mdulo92, instrumento de divulgao da
arquitetura brasileira em geral, e da arquitetura de Niemeyer em particular. Uma
explicao sobre o ttulo feita pela redao: Mdulo diz o dicionrio medida
reguladora das propores arquitetnicas de um edifcio.93 Enfatizou-se que este
princpio havia sido recriado por Le Corbusier, com base na representao das
92 Com a direo de Joaquim Cardozo, Oscar Niemeyer Filho, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga e Zenon Lotufo. 93 A revista e o ttulo. Mdulo, Rio de Janeiro, no 1, mar. 1955, p. 2.
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medidas do corpo humano: o Modulor. Finalizando o texto, Mdulo quer ser fiel a
esta lembrana, e guardar, entre os prodgios da tcnica e as fantasias da esttica, a
singela medida do humano.94 Na pgina seguinte um comentrio de Niemeyer
generoso a respeito de Le Corbusier e a sua influncia na arquitetura
contempornea.
No mbito religioso, e na mesma poca, uma obra feita por Le Corbusier
impressionou o arquiteto. Em 1950, o mestre franco-suo iniciou os estudos para a
Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, em Ronchamp, inaugurada em 1955 (Figs. 37 a 39).
Construdo em um stio com um cenrio de beleza especial e com antiga tradio
religiosa, o projeto de Le Corbusier impressionou pela forma adotada, muito diferente
das igrejas tradicionais, e pela sobriedade no uso dos materiais.
Figura 37 Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier Fonte: Chapel of Ntre Dame du Haut
acesso em 26 jun. 2010
94 A revista e o ttulo. Mdulo, Rio de Janeiro, no 1, mar. 1955, p. 2.
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Figura 38 - Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier Fonte: Chapel of Ntre Dame du Haut
Acesso em 26 jun. 2010
Figura 39 - Planta da Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier. Risco Original. 1950. Fonte: foto da autora. Exposio Le Corbusier entre dois mundos. Caixa Cultural, Braslia: 17 jul.
2009.
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Em 1956, Oscar publicou na Mdulo no 5, um artigo sobre a Igreja de
Ronchamp onde afirmou que a obra de Le Corbusier
como que um movimento de libertao h muito desejado, e que se
afirma agora com o mpeto criador do seu talento e da sua invulgar
personalidade. , em sntese, a predominncia da forma plstica,
sugerindo e dirigindo todo o planejamento, a imaginao do artista se
expandindo pura e espontnea em busca de beleza e harmonia.95
Para Niemeyer, a construo de Ronchamp, foi uma espcie de afirmao
positiva em relao a sua prpria arquitetura. como se Niemeyer recebesse um
aval sobre suas obras e idias.
Diz Niemeyer que a obra de Le Corbusier se caracterizou durante anos
disciplinada em princpios arquitetnicos por le[sic] mesmo institudos e que muitas
vzes[sic] condicionavam a beleza plstica a convenincias tcnico-funcionais.96 No
entanto Niemeyer acredita ter vislumbrado um desejo latente de maior liberdade de
criao e poesia 97 em meio a obra do arquiteto ao longo do tempo. E pensa que
Agora, com a Capela de Ronchamps [sic] realizada, sabemos que o
velho mestre atingiu o seu objetivo, e que hoje, mais jovem do que
nunca, a todos oferece o poder criador do seu talento e da sua
fantasia. 98
Neste mesmo artigo refere-se capela de Ronchamp como obra magistral, e
afirma que ela permanecer, atravs dos tempos, como uma obra de sensibilidade,
beleza e poesia.99
95 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no 5, set. 1956, p. 45. 96 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 97 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 98 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 99 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43.
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63
As formas livres da capela influenciaram fortemente Niemeyer que, logo em
1955, esboou um estudo sobre o tema (Figs. 40 a 42), publicado no livro escrito
sobre sua obra por Stamo Papadaki.100
Sem um stio especfico, Niemeyer elaborou um desenho de formas curvas,
para um espao destinado ao culto e a uma sacristia. A forma, vista do exter