Arquitetura Do Espetáculo Em Cena

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  • Valrio Marcos Nogueira Pietraria

    Arquitetura do Espetculo em Cena

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    DEPARTAMENTO DE PROJETO

  • Valrio Marcos Nogueira Pietraria

    Arquitetura do Espetculo em Cena

    Dissertao apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

    rea de concentrao: Projeto de Arquitetura

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Jlio Valentino Bruna

    Exemplar revisado e alterado em relao verso original,

    sob responsabilidade do autor e anuncia do orientador.

    O original se encontra disponvel na sede do programa.

    So Paulo, 20 de maio de 2014.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    DEPARTAMENTO DE PROJETO

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    [email protected] ; [email protected]

    Pietraria, Valrio Marcos NogueiraP625a Arquitetura do espetculo em cena / Valrio Marcos Nogueira Pietraria. - So Paulo, 2014. 328 p. : il. Dissertao (Mestrado - rea de Concentrao: Projeto

    de Arquitetura) FAUUSP.

    Orientador: Paulo Jlio Valentino Bruna 1.Teatro 2.Cenrio 3.reas centrais So Paulo (SP)

    4.Arquitetura - So Paulo (SP) I.Ttulo

    CDU 725.822

  • para Enrico e Gabriel, que me demonstram

    diariamente que a vida vale a pena,

    e para Cristina, que me fez.

  • Agradecimentos

    Ao Prof. Dr. Paulo Jlio Valentino Bruna, pela preciosa

    e decisiva orientao.

    Aos professores Valentin Fabre e Jean Perrottet, por

    me apresentarem o tema, com toda a sabedoria de anos de

    dedicao a ele.

    A Profa. Dra. Maria Lcia Pupo, que apoiou desde o

    incio minha proposta.

    A todos os funcionrios da biblioteca da FAU-USP, cuja

    disponibilidade muito contribuiu nas investigaes realizadas;

    em especial, Rejane Alves e Valria Valente.

    Ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, em particu-

    lar Vivian Lazzareschi, por permitir momentos importan-

    tes de pesquisa.

    Aos colegas e aos professores da Ps-Graduao, Ri-

    cardo Marques de Azevedo, Hugo Segawa, Mnica Junqueira,

    Adilson Macedo, Alexandre Delijaicov, Francisco Spadoni e

    Helio Pion, pelos fundamentais ensinamentos.

    Ao Prof. Dr. Ablio Guerra, por acreditar neste trabalho.

    A Profa. Dra. Maria Eugnia Poulet, pela inestimvel

    ajuda no encontro da bibliografia.

    A gentileza da Profa. Marie-Jose Fourtanier, em nos

    apresentar obras to fundamentais.

    A Nelson Kon, pela qualidade do trabalho que vem

    desenvolvendo e disponibilizando para o enriquecimento de

    nossos projetos.

    Ao UNA Arquitetos, pela ajuda incondicional.

    A Patrcia Casadei, pelas verses sempre precisas.

    A Gabriel Pietraria, pela dedicao e qualidade do

    material grfico apresentado.

    A Claudia Nucci, que entendeu e apoiou esse projeto

    desde o incio.

    A Dra. Cleyde Casadei que ainda nos fornece biblio-

    grafias.

    A Pat Metheny, West Montegomery e Boogaloo Joe Jo-

    nes, pela companhia.

    A minha me, Antonieta, por ter me ensinado a ler e

    escrever, e meu pai, Rangel, por ter me ensinado a desenhar.

    A Cristina Pietraria, eternamente presente, que l,

    entende, revisa e constri diariamente este percurso.

  • 8

  • Resumo

    O objetivo desta dissertao o entendimento da arquitetura do espetculo e sua relao com os questiona-mentos artsticos que vm se manifestando desde a dcada

    de 1920. O cenrio recente aponta para a reconquista da

    cidade como territrio das manifestaes artsticas, como

    lugar do espetculo.

    Aps discutir questes nocionais e metodolgicas para o estudo do tema, analisamos O Lugar do Espetculo, apresentado como uma reflexo sobre os meios utilizados

    para que tais manifestaes cumpram seu papel transfor-

    mador.

    A Metrpole em Cena apresenta os desdobramen-

    tos, desde a dcada de 1950, por inmeras manifestaes

    artsticas de carter urbano em que a cidade no apenas

    cenrio, mas tambm argumento, roteiro e personagem.

    Para tanto, o trabalho investiga as noes e as mani-

    festaes da arquitetura do espetculo nesse perodo e es-tabelece, em particular, um paralelo com obras produzidas

    por mestres como Walter Gropius, Eric Mendelsohn, Mies van der Rohe, Rino Levi, Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da

    Rocha.

    Tendo os centros urbanos como territrio, em espe-

    cial a regio central da cidade de So Paulo, foram tambm

    estudadas estratgias e metodologias de projeto aplicadas

    arquitetura do espetculo e as recentes intervenes em

    seu patrimnio construdo.

    O fio condutor de nossa pesquisa a identificao dos valores essenciais da arquitetura do espetculo que tm inspirado tanto arquitetos quanto encenadores e pen-

    sadores teatrais.

    Palavras-chave: arquitetura do espetculo; centro - So Paulo; arquitetura - So Paulo; teatros (arquitetura mo-derna)

  • Abstract

    The objective of this dissertation is to understand

    the architecture of the spectacle and its relation to artistic

    questions which have been posed since the 1920s. The re-cent scenario points to reconquering the city as territory for artistic manifestations, as the place of the spectacle.

    After discussing notional and methodological ques-

    tions to study the theme, we analyze The Place of the Spec-

    tacle which is presented as a reflection about the means

    used so that such manifestations can perform their trans-

    forming role.

    The Metropolis in Scene describes the develop-

    ments, since the 1950s, through several artistic manifesta-

    tions of urban nature in which the city is not only scenario,

    but also argument, script and character.

    Therefore, this dissertation investigates the notions

    and manifestations of the architecture of the spectacle in this period and draws, particularly, a parallel to works pro-duced by masters such as Walter Gropius, Eric Mendelsohn,

    Mies van der Rohe, Rino Levi, Lina Bo Bardi and Paulo Men-

    des da Rocha.

    Having urban centers as territory, specially So

    Paulos city downtown area, project strategies and metho-

    dologies applied to the architecture of the spectacle as well

    as recent interventions in its built heritage are studied.

    The line of reasoning of our research is to identify

    essential values of the architecture of the spectacle which has been inspiring both architects, directors and theatrical thinkers.

    Key-words: theater (architecture); architecture of spec-tacle; architecture down town - Sao Paulo; architecture -

    So Paulo; modern architecture.

  • O risco de escrever um estudo sobre a arquitetura brasileira do sculo 20 reproduzir inadvertida-mente aquilo que se critica: uma viso totaliza-dora que apaga as diferenas, exalta as formas dominadoras e dissimula a diversidade. A histria e a historiografia recentes ainda se refazem do

    impacto epistemolgico provocado, por exemplo, pelas ideias de um Michel Foucault escritos teci-dos com a microtrama de uma complexa urdidu-ra. Nesse caminho, a viabilidade de dar formas a problemas, de articular perguntas muito mais intensa que nossa capacidade individual de for-mular respostas.

    HUGO SEGAWA, 1997

  • Sumrio

    Introduo

    Cap1. A arquitetura do espetculo: noo e metodologia

    1.1 O Concreto e o Imaginrio

    1.2 A Imagem do Espetculo

    1.3 O Sentido do Espetculo

    1.4 A Ideia de Espetculo

    1.5 Abstrao e Espetculo

    1.6 Procura do Projeto

    Cap 2. O Lugar da Arquitetura do Espetculo

    2.1 Mobilidade em Cena

    2.2 O Lugar do Espetculo

    2.3 O Lugar do Projeto

    16

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    41

    45

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    56

    59

    71

    81

  • Cap 3. A Arquitetura do Espetculo

    e a Modernidade

    3.1 Auditorim Building

    3.2 Bauhaus - Teatro Total

    3.3 Complexo WOGA Berlin - 1928 - 1981

    3.4 Teatro Nacional de Mannhein

    Cap 4. A Metrpole Em Cena4.1 Olhar e Ver

    4.2 Percorrer

    4.3 Fun Palace

    4.3 Mummers Theater - Stage Center

    4.4 Plateau Beau-bourg

    4.5 IRCAM: A Arquitetura na Composio

    Cap 5. A Arquitetura do Espetculo e a Arquitetura Moderna de So Paulo

    5.1 O Espetculo segundo Rino Levi

    5.2 Edifcio Dirios Associados - Edifcio Taba

    Guaianases - So Paulo

    Cap 6. A Arquitetura do Espetculo Recente

    em So Paulo

    6.1 Morte e Vida da Alegoria

    6.2 O Espetculo em uma Dcada

    6.3 Centro Cultural Agncia Central dos Correios

    6.4 Praa das Artes - 28.500 m2 de rea construda

    6.5 Estao Julio Prestes - Sala So Paulo de

    Concertos Sinfnicos

    6.6 Complexo Cultural Luz

    Consideraes Finais

    Bibliografia

    90

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    101

    117

    135

    152

    163

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    269

    293

    308

    312

  • 16

    Introduo

  • 17

    A riqueza das decoraes, o charme da paisagem, da arquitetura e todos os efeitos dos cenrios tea-trais, repousam unicamente nas leis da perspectiva.

    (BHLE, Theater-Kalechismu, 2009, p. 112-113)

    O texto e a imagem ao lado elucidam a difcil tare-O texto e a imagem ao lado elucidam a difcil tare-

    fa que o tema de nossa pesquisa - arquitetura e espetculo

    - apresenta, pela simples combinao das palavras e pelo surpreendente resultado da Paris vista do cu, sem seus grandes monumentos. O assunto pode parecer uma pro-

    vocao e na realidade provoca sim reflexo, como no

    trabalho apresentado pelo escritrio Baukunst na revista

    Critcat1.

    Baseado nas leis da perspectiva, as mesmas que orientaram os espetculos teatrais e, consequentemente, no s sua cenografia mas sobretudo a prpria arquitetu-

    ra dos seus edifcios durante boa parte dos ltimos scu-

    los depois do Renascimento, Baukunst constri uma nova

    realidade da metrpole francesa ao suprimir seus edifcios

    monumentais. Para a imagem em questo, poderamos ci-tar a retirada da Tour Eiffel e do Trocadro, em primeiro pla-1 Revista Criticat #3, 03/2009, p. 112-113. Baukunst Architects apresenta a vista area de Paris sem monumentos, a cidade com seus parques, eixos, boulevards, mas sem sua monumentalidade edificada.

    17

    Fonte: Arch. Baukunst, Vue de Paris, in Architectures, Wallonie-Bruxelles. Inven-

    taires 2005-2010

  • 18

    petacularizao da arquitetura, fenmeno que vem ocu-

    pando de maneira significativa boa parte das publicaes

    recentes. Isto se faz necessrio para a definio do caminho

    aqui escolhido, ou seja, aquele que pesquisa a arquitetura

    do espetculo por meio de seus valores ligados ao conjunto

    de manifestaes artsticas voltadas para o espetculo.

    Nas duas ltimas dcadas, a facilidade de movi-mentao de uma crescente populao com re-cursos econmicos, a dinmica cultural criada pelo incremento da disponibilidade do tempo de lazer, o bombardeio de imagens na sociedade do espetculo, forjada no zapping televisivo, gerado-ra das cenografias urbanas miditicas, colocaram

    o museu de arte no centro do novo sistema icnico que toda cidade globalizada deseja possuir. As-sim teve incio uma concorrncia entre os arqui-tetos renomados, que alm de resolver os proble-mas tcnicos e funcionais dos museus projetados, identificaram-nos com a sua linguagem pessoal.

    (SEGRE, in Kiefer, 2008, p.109)

    no, dos Les Invalides, Grand e o Petit Palais, mais ao centro, e mais ao fundo o Louvre, o arco do Carrousel, entre outros.

    O exerccio permite verificar que tal monumentalidade est

    presente na essncia da cidade, na forma de organizao

    de seu territrio, independente de seus grandes edifcios.

    Estaramos, dessa forma, observando o poder do projeto e

    da perspectiva como instrumento de projeto, como trans-

    missor de contedos estticos definidos.

    Tomando como base a estratgia de Baukunst, po-

    deramos pensar que o estudo da produo arquitetnica

    atual nos encaminharia para discusses que abordam a

    arquitetura valendo-se de vises oriundas de diversas re-as do conhecimento2. No entanto, sob o ponto de vista do interesse de nossa pesquisa, algumas delas revelaram-se

    incapazes de contribuir para o debate proposto. Essa cons-

    tatao no pretende negar a validade de tais vises mas

    sim afirmar a escolha por autores cujo trabalho est mais

    prximo dos assuntos primordiais do tema, ou seja, da ar-

    quitetura e do espetculo.

    Sendo assim, parece-nos importante abordar a es-

    2 A referncia feita, por exemplo, a importantes publicaes como a de Kate Nesbitt - Uma nova Agenda para a Arquitetura. So Paulo, Cosac Naify, 2006 ou ainda O Campo Ampliado da Arquitetura: Antologia Terica (1993-2009) DE A. KRISTA SYKES, SO PAULO, COSAC NAIFY, 2012.

  • 19

    a espetacularizao da vida, da prpria vida cotidiana. Guy

    Debord (1992) j detectara de maneira precisa esse pro-

    cesso desde a dcada de 1960. Mario Vargas Llosa ampliou

    a abrangncia do tema em sua recente obra A Civilizao do

    Espetculo (2013), o que confirma as observaes perce-bidas no campo da arquitetura, como vamos discutir mais adiante.

    O processo pode ser encarado como fruto da falta de

    formao ou da desinformao ou ainda da m formao do

    espectador urbano. Para Otlia Arantes (1998, p. 145-146),

    no se trata mais de encar-lo como o homem da multido,

    repetindo com maior intensidade a alegoria de Baudelaire.

    Estamos lidando com outro personagem, cuja falta de subs-

    tncia fica clara pela forma como se deixa fascinar pelo caos

    urbano, pelo mundo de frivolidade, conclui. A afirmao da

    autora se apoia num discurso filosfico para situar-nos pe-

    rante o pblico que assiste ao espetculo das intervenes urbanas desmedidas baseadas numa avalanche discursiva e projetual, dentro do contexto arquitetnico da dcada

    de 1990. No que se refere arquitetura como protagonis-

    O raciocnio de Roberto Segre, construdo para a situao de espetacularizao da arquitetura dos museus, pode ser estendido para grande parte da produo de ar-quitetura recente.

    O espetculo da arquitetura ocupou, nos ltimos

    anos, um espao significativo na mdia especializada em

    particular e em toda a mdia em geral. notvel como as relaes de mercado e a propaganda poltica lanam mo

    da espetacularizao da arquitetura em benefcio prprio.

    A situao pode estar ainda mais prxima da prpria natu-

    reza da arquitetura , como observa Guy Duplat:

    Os mais importantes arquitetos sonham com sua mise en scne, sua cenografia pessoal, seu look (...) - atuam como personagens de teatro. O que importa em arquitetura, a partir de ento, fa- fa-fa-zer o acontecimento, e a informtica permite conceber arquiteturas que fazem acontecer. [des-

    taques do autor]3 Na realidade, pode-se admitir que se trata de uma situao mais abrangente, pois o que estamos assistindo 3 COMMUNAUT FRANAISE WALLONIE-BRUXELLES - Architectures, Wallonie-Bruxelles. Inventaires 2005-2010, p. 124. Nossa traduo do texto original: Les architectes les plus importants soignent leur mise en scne, leur scnographies personnelles, parfois leur look (....), et jouent des personnages de thtre. En architecture aussi, ce qui compte dsormais pour certains, est de faire lvnement et les programmes informatiques permettent aux architectes de concevoir des architectures qui font lvnement.

  • 20

    Collins pretende explicar com esse raciocnio o por-

    qu da busca obsessiva da originalidade na arquitetura em

    prejuzo das qualidades essenciais da obra representada,

    naquele momento, pelos preceitos da Modernidade.

    O que estaramos assistindo agora a predominn-

    cia de projetos que privilegiam valores de singularidade em

    detrimento da identidade da obra. Encontrar maneiras de se destacar, criar uma valor singular, em relao a determi-nado territrio em que a obra se insere, indiferentemente

    s condies do lugar, apontando uma clara sobreposio

    a suas caractersticas locais, seria uma busca evidente de

    espetacularizao da obra. Nesse caso fica clara a falta de

    identidade da obra, daquilo que demonstra sua essncia,

    que seria compensada ou substituda pelo valor de singula-

    ridade, pelo poder da diferena, do extraordinrio, do espe-

    tacular.

    H quem, como Helio Pion, acredite que o projeto de arquitetura como conhecimento uma atividade des-provida de praticidade, do imediatismo das solues da

    vida contempornea, o que explicaria, segundo ele, a baixa

    ta dessas intervenes, tal processo se intensifica como um

    dos sintomas da prpria transformao cultural que se ace-

    lera nas duas dcadas posteriores a esse texto, como ainda

    veremos nesta introduo.

    Tal fenmeno, no que se refere produo arquite-tnica, tem sido detectado h um certo tempo por outros autores. Peter Collins j admitira a existncia de rivalidades entre arquitetos, o que, segundo ele, contribuiu para esse processo, mas o explica com outros argumentos:

    Infelizmente, a introduo da fotografia tem

    atuado contra a estandardizao funcional, pois antes da apario das revistas no parecia irra-cional que localidades distantes tivessem edifcios

    pblicos similares, mas a facilidade de comparar duas fotografias criou inevitavelmente o falso

    sentido de rivalidade entre os arquitetos, para que cada comunidade se sinta obrigada a ter edifcios pblicos que sejam originais, embora a

    soluo racional do problema seja resultante de

    formas padronizadas. (COLLINS, 1998, p. 236) 4

    4 Nossa traduo do texto original: Desgraciadamente, la introduccin de la fo-tografa ha actuado contra esta estandardizacin funcional; pues antes de que existiesen las revistas ilustradas de arquitectura, no pareca irracional que dos localidades lejanas, tuvieran edificios pblicos similares; pero la facilidad de comparar dos fotografas ha creado inevitablemente un falso sentido de rivalidad entre los arquitectos, por el que cada comunidad se siente obligada a tener edificios pblicos que sean originales, aunque la solucin racional del problema de la acomodacin est resulta por formas estandard.

  • 21

    tao, o territrio da cidade de So Paulo e sua regio cen-

    tral.

    Dentre as diversas razes que podem justificar a es-

    colha desse territrio esto aspectos importantes que tm

    feito parte do debate face urbanizao descontrolada: os ganhos sociais e econmicos gerados por equipamentos culturais inseridos em centros urbanos problemticos j

    so conhecidos em diversas experincias realizadas nos l-

    timos anos. Casos emblemticos no contexto latino ameri-

    cano, como o de Medelln na Colmbia5, podem ser citados como bem sucedidas intervenes em que a Arquitetura

    a protagonista. Porm sabe-se tambm que, como afirmou

    Ana Carla Fonseca6 em recente seminrio realizado sobre o assunto, Um equipamento cultural, sozinho, no impacta

    no entorno - vide a Sala So Paulo, que magnfica como equipamento cultural, mas no se insere no espao em que se situa.

    O objetivo do presente trabalho, portanto, compre-ender o papel da arquitetura do espetculo nesse processo de reconquista do espao urbano deteriorado e aferir qual

    5 Rede de parques-bibliotecas instalados em regies violentas da cidade; acess-vel em: http://www.isatvideo.com.br/Canais/culturaetransformacaourbana/Chan-nel.aspx6 Ver Folha de So Paulo, de 16/02/13. Ana Carla Fonseca economista e dou-tora em urbanismo, foi curadora do Seminrio Internacional de Cultura e Trans-formao Urbana, realizado em 22 e 23/11/2011 em So Paulo. Acessvel em http://www.redbcm.com.br/arquivos/cidadescriativas/ana-carla-fonseca-cidades-criativas.pdf

    qualidade da arquitetura atual, restrita a sua espetaculari-zao:

    No h dvidas de que esse modo de proceder conta com o relativismo mais generoso como re-ferncia esttica idnea para sua sobrevivncia: responde situao atual na qual a ideia de arte mais difundida a que a confunde com o espe-tculo, e o espetculo se identifica com a exibio do despudor, tanto nas televises como nas cida-des. (PION, 2006, p. 82)[nosso destaque]

    O trecho da citao de Hlio Pion em destaque leva--nos a perceber a dificuldade de se estudar a arquitetura e

    o espetculo, tema que se situa tambm na difcil fronteira

    que tem unido ou separado profissionais do espetculo e os

    arquitetos ao longo da histria.

    Cabe, dessa forma, precisar que o que tratamos como tema a Arquitetura do Espetculo, que significa o es-pao de manifestaes artsticas dramticas, musicais,

    folclricas etc. concebido, apropriado ou transformado, e pertencente ao territrio da cidade que, em nossa disser-

  • 22

    cenrio da historiografia da Arquitetura Moderna, e obras

    realizadas recentemente na cidade de So Paulo para, den-

    tro dessa forma de anlise, destacar aspectos importantes relacionados ao tema e reconquista dos espaos urbanos deteriorados, em particular, o Centro de So Paulo.

    H portanto um roteiro, um trajeto que parte de estudos dessas obras da Arquitetura Moderna at chegar regio central de So Paulo. Essa escolha foi tambm mo-

    tivada pela vigncia na cidade da Lei dos Teatros7, que visa incentivar a construo de equipamentos com essa finali-

    dade - o espetculo -, no considerando sua rea constru-

    da para efeito dos clculos de rea mxima permitida, at o

    limite de 25% do total. Por essa diretriz possvel constatar

    que a arquitetura do espetculo ser associada a conjuntos

    multifuncionais, a fim de poder desfrutar dos benefcios da

    lei, cujos efeitos prticos no sero discutidos por ns.

    7 Lei Municipal 3598/1995.

    sua contribuio para a prtica da prpria arquitetura e para a construo de uma metodologia. Dessa forma, as

    seguintes perguntas podem ser formuladas: h qualida-

    des adquiridas pela arquitetura em funo das condies e

    exigncias do tema? No sentido inverso, em que medida o

    mundo do espetculo se beneficia da qualidade arquitet-

    nica das obras? Durante nosso processo de pesquisa relativa Ar-quitetura do Espetculo percebemos a necessidade de es-tudar a noo desse tema e sua manifestao na Moderni-

    dade. Isso se justifica pela autonomia da forma assumida

    pela Arquitetura desde o sculo XVIII e consolidada pelo

    Arquitetura Moderna, ou seja, a autonomia e a abstrao organizadas segundo critrios visuais capazes de revelar a essncia do objeto arquitetnico. Esse aspecto nos til para entendermos os valores assumidos pela arquitetura do espetculo na metrpole e qual foi sua capacidade em

    indicar caminhos e em se tornar referncia urbana.

    Para esse estudo, propomos relacionar obras signifi-

    cativas, selecionadas em funo de sua relevncia dentro do

  • 23

  • 24

    Captulo 1

    a Arquitetura do Espetculo:Noo e Metodologia

  • 25

    Toda a vida das sociedades em que reinam as con-dies modernas de produo apresenta-se como uma imensa acumulao de espetculos. Tudo aquilo que era diretamente vivido se distanciou

    em uma representao.8 (DEBORD, 1992, p. 15)

    Uma das estratgias que utilizamos em nossa pes-quisa foi, como dito na introduo, a pesquisa bibliogrfica de autores, nem sempre especializados, que apresentaram pontos de vistas que avaliamos serem teis para a melhor

    compreenso do tema. No nos pareceu, como poderemos

    observar neste captulo, haver um arcabouo ou um lastro

    terico definido que possa ser considerado detentor das ba-

    ses de uma anlise segura e definitiva sobre a Arquitetura

    8 Nossa traduo do texto original: Toute la vie des socits dans lesquelles rgnent les conditions modernes de production sannonce comme une immense accumulation de spectacles. Tout ce qui tait directement vcu sest loign dans une reprsentation.

    do Espetculo. Ficar demonstrado que a forma apresenta-

    da, como um mosaico de reflexes, muitas vezes opostas ou

    contraditrias, ilustram a prpria dificuldade de definio

    do tema. Por que ento dedicar tanto espao noo e me-todologia e no as tomar prontas de uma corrente terica?

    Acreditamos ser necessrio constru-las, discutir o que di-zem os autores, ainda que esse caminho no tenha sido su-ficiente para definir uma linha de anlise definitiva para as

    etapas seguintes do trabalho. Ele apontou, no entanto, fun-

    damentos significativos tanto do ponto de vista da relao da arquitetura com o espetculo como deste com a cidade, o que, dessa maneira, mostrou sua importncia para orien-tar cada uma das etapas. Em outras palavras, as noes re-

    colhidas junto aos autores estudados, ainda que sem uma

    aparente linha de raciocnio clara, uma teoria, trouxeram

    para a pesquisa elementos que nos auxiliam no conheci-

    mento do tema e mesmo na tentativa de defin-lo: o que a

    Arquitetura do Espetculo? ou haveria uma Arquitetura do

    Espetculo?

    25

  • 26

  • 27

    Para alguns autores, deveramos fazer, a princpio,

    uma distino clara entre espetculo e teatro. o caso de Pierre Francastel9, para quem essa distino deve ser ob-servada em funo da sua evoluo em determinadas ci-

    vilizaes e em perodos histricos precisos. Haveria dife-

    renas significativas, em especial a partir do momento em

    que o teatro deixou de ser a visualizao do texto sacro, du-

    rante o Renascimento. Mas o teatro antes de mais nada

    um espetculo, acrescenta o autor. Francastel observa com

    bastante pertinncia que a grande discusso que se coloca

    em relao definio do lugar do espetculo, o Lugar

    do Teatro, em suas palavras. Seria para uns o espao fsico,

    material, a arquitetura onde se passa o espetculo teatral. nesse ponto que se pode estabelecer a relao entre o projeto e a cidade. H quem defenda, afirma por outro lado

    Francastel, que o quadro mental, o texto, a ao, um lu-

    gar essencialmente imaginrio. Aqui podemos relacion-lo

    com a cidade e a cena. Seria esse um dos grandes desafios

    da arquitetura do espetculo: como conciliar um lugar ma-

    terial e um lugar imaginrio.

    9 FRANCASTEL, P. Le Thtre est-il un Art Visuel? in Bablet, [1963] 2002, p. 77.

    1.1

    O Concreto e o Imaginrio

  • 28

    valiosa e significativa, alm da simples sobrevivncia fsica,

    onde podemos perceber os primrdios de instituies cvi-

    cas tais como o teatro, alm da universidade e do templo. A relao desperta ainda maior interesse quando Munford afirma:

    No apenas no teatro que o espectador sente se-rem os atores maiores do que na vida real. esta uma iluso caracterstica produzida pela cidade, porque o centro urbano , na realidade, um tea-tro. (1982, p. 83)

    A citao ilustra como a arquitetura urbana vai se tornando o lugar dos jogos sociais, das relaes humanas prprias de cada momento civilizatrio, alimentando um verdadeiro drama dirio, ou, como diz o autor que aqui nos serve de referncia: Dentro do teatro da cidade, represen-

    tavam-se novos dramas da vida. (MUNFORD, 1982, p. 613) Observamos nesse caso como essa criao humana, a cidade, passa de mero cenrio a instrumento, ou seja, dei-

    xa de ser o suporte para inspirar novos textos, novas aes,

    para ser o engenho capaz de gerar novos contedos, torna-

    -se cena.

    O autor faz ainda em sua conferncia10 um paralelo entre a msica e o teatro, ao afirmar que da inveno do ins-trumento at a criao da obra escrita h sempre um longo perodo de aprimoramento, que passa obrigatoriamente pela construo de diversos outros instrumentos que so abandonados ao longo do tempo, mas que so fundamen-

    tais para a dinmica geral da criao artstica. Isso fica claro

    em uma de suas afirmaes:

    As grandes obras so aquelas que ultrapassaram os meios tcnicos disponveis. (...) H sempre uma relao dialtica entre o instrumento e a obra, um

    afrontamento. (FRANCASTEL, [1963] 2002, p. 80)11

    Comparar o teatro com o espao urbano, com o sur-gimento da cidade, com a era das capitais e com a metrpo-le um procedimento que ser encontrado com frequn-cia em nosso trabalho, como aconteceu na leitura de Lewis Munford. O autor faz diversas referncias ao tema em seu

    livro A Cidade na Histria (1982). Em suas reflexes ele ob-

    serva como, desde as colonizaes primitivas temporrias,

    havia aspectos que se relacionavam com uma vivncia mais

    10 O livro, Le Lieu Thtral dans la Socit Moderne (BABLET, Denis, Paris, CNRS Ed., 2002), o registro das conferncias apresentadas durante o colquio do mesmo nome realizado em Raimond, Frana, em 1961. 11 Nossa traduo do texto original: Les grandes oeuvres sont celles qui ont dpass les moyens techniques existants. (...) Il y a toujours rapport dialectique entre linstrument et loeuvre, affrontement.

  • 29

    Preocupado com aspectos de outra ordem, muito mais prximos da construo visual da cidade, Kevin Linch, na obra A Imagem da Cidade (2011), observa que o modo atual da experincia urbana nos faz ser atrados por for-

    mas de organizao em sequncia, seguindo um modelo

    temporal, familiar ao teatro e msica. Assim, a cidade tra-

    dicional, clssica, possui incio, clmax e final, enquanto a metrpole se assemelha muito mais a peas aparentemente indeterminveis, variadas, muito prximas do jazz.

    Seu texto fartamente ilustrado por fotografias e desenhos que demonstram de maneira precisa suas ideias, constituindo-se em um verdadeiro roteiro pleno de cen-

    rios urbanos.

    Algumas de suas afirmaes se aproximam, por

    exemplo, das preocupaes estticas dos realizadores tea-

    trais das vanguardas artsticas do incio do sculo XX, como

    Adolphe Appia e Gordon Craig12. Na medida em que os valo-

    res estticos so baseados na abstrao da forma, essa rela-

    o fica mais clara. Isso pode ser observado quando ele fala sobre Qualidades da Forma:12 Sobre Appia e Graig ver o cap. O Lugar do Espetculo.

    1.2A Imagem do Espetculo

  • 30

    ao mesmo tempo em que reserva um espao significativo

    para a ruptura com as formas estabelecidas:

    Romper entre o visual da sala e o da cena, fazer o indivduo desaparecer, para usar o material hu-mano. Criar uma cena de inveno. O material hu-mano aparece, mas igual, como valor-espetculo,

    ao objeto e ao cenrio. (LEGER, 1989, p. 131)13

    Leger, durante conferncia na dcada de 1920, apre-

    senta por meio desse raciocnio a importncia da constru-o visual da ao como estratgia para a renovao da arte atravs do espetculo. Por esse caminho, o artista-estrela no poderia se tornar um obstculo para a unidade visual da cena, como completa o autor.

    Podemos exemplificar tal proposta com o espetcu-lo Einstein on the Beach, de Robert Wilson e Philip Glass, de 1989, uma obra musical lrica baseada na construo de um

    universo grfico e espacial em que os elementos cnicos,

    luz, objetos e atores, so tratados de maneira semelhante. H quem, com uma outra viso, no compartilhe das 13 No livro Funes da Pintura, o trecho parte da conferncia O Espetculo - Luz, cor, imagem mvel, objeto-espetculo, de 1924, publicada no Bulletin de lEffort Moderne, Paris.

    Precisamos de novas ideias sobre a teoria das formas

    que so percebidas como uma continuidade no tem-

    po, bem como de arqutipos de design que exibam

    uma sequncia meldica dos elementos da imagem,

    ou uma sucesso formal de espao, textura, movi-

    mento, luz ou silhueta. (LYNCH, 2011, p. 120) Poderamos dizer, baseando-nos em suas anlises,

    que o juzo de valores dessas novas ideias seria necess-rio para uma percepo do territrio da cidade como cons-truo visual de ordem superior, como proposto pelas van-guardas artsticas da dcada de 1920, de que fizeram parte

    Appia e Craig no teatro. Apesar de dedicar sua obra s artes plsticas, Fernad Leger, em Funes da Pintura (1989), entende que encarar o mundo em todas as suas manifestaes visuais uma das

    necessidades fundamentais de nossa existncia, verdadei-

    ramente falar de espetculo. Nesse sentido se aproxima das ideias de Lynch ao chamar a ateno para a importncia do forte significado expressivo da qualidade visual da cidade,

  • 31

    Einstein on the Beach, Robert Wilson e Philip Glass. Fonte: Staatsthheater Stutgart, 1989.

  • 32

    na complexidade e na fora dos usos de determinadas regi-

    es.

    Mas no estaramos, com esse debate, distanciando-

    -nos do interesse do presente trabalho? Acreditamos que no, na medida em que entender as ideias ligadas direta-mente ao tema - a arquitetura do espetculo - e relacion-

    -las quelas que permeiam o campo de sua aplicao - a ci-

    dade -, um caminho que pode nos ajudar a responder s

    questes colocadas na introduo.

    Se Jacobs dedica maior importncia diversidade de

    atividades como caminho para a recuperao das regies

    apagadas da cidade, conforme suas palavras, no descarta,

    entretanto, o projeto como meio de atingi-la. Faz, ao con-

    trrio, uma reflexo sobre os limites e potencialidades da

    ordem visual, qual dedica todo um captulo.

    No nos parece tambm que autora faa apenas uma

    oposio ao funcionalismo ingnuo ao propor a dinmica

    funcional da cidade baseada na diversidade. Condena,

    verdade, a criao de conjuntos especializados, como os

    centros administrativos ou os centros culturais que desfi-

    consideraes de Lynch e da viso pictrica de Leger, como

    Jane Jacobs que afirma sobre a Ordem Visual da Cidade:...

    uma cidade no uma obra de arte. (2009, p. 415)

    Para a autora, a forma adequada dada cidade por

    sua vitalidade, sua dinmica e complexidade. Isso explica-

    ria, de uma certa maneira, o porqu da decadncia ou do

    caos urbanos: a ausncia de clareza em sua ordem funcio-

    nal levaria determinadas regies ao descontrole e ao aban-

    dono. Mas ela admite, mais adiante, que a afirmao ante-rior no pode ser to radical como possa parecer em uma primeira anlise. Isso fica mais claro quando acrescenta:

    No necessrio que os projetistas tenham um controle literal sobre todo campo de viso para dar ordem visual s cidades. raro a arte ser to cabalmente literal, e se for, uma arte pobre. (JACOBS, 2009, p. 421)

    Nesse caso, Jacobs estaria admitindo, de maneira menos direta, a importncia que a ordem visual representa para a vitalidade da cidade, ainda que baseada, segundo ela,

  • 33

    guraram determinadas cidades durante as dcadas de 1960

    e 1970, como o caso do Carnegie Hall e do Lincoln Center

    em Nova York:

    (...) o Carnegie Hall uma pea de xadrez vital que atua conjuntamente com outras peas. O plano mais desastroso que se poderia arquitetar nessa vizinhana seria a demolio do Carnegie Hall e sua substituio por outro edifcio de escritrios.

    Foi exatamente isso o que quase aconteceu em re-sultado da deciso do municpio de Nova York de

    pegar todas as peas culturais mais expressivas, ou potencialmente expressivas, e segreg-las num ncleo planejado chamado Lincoln Center for Performing Arts. O Carnegie Hall foi salvo por um fio, graas obstinada presso poltica de cida-dos, embora no v mais ser a sede da Filarm-nica de Nova York, que se descontaminar da cidade comum. (JACOBS, 2009, p. 185) [Em itlico e entre aspas no texto original]

    Lincoln Center - Nova York - Vista area ilustrada. Fonte: Lincoln Center

  • 34

  • 35

    As ideais de Peter Collins (1998), j citado por ns, colocam a arquitetura do espetculo como sendo de espe-cial interesse para compreender a evoluo da arquitetura na Modernidade. Segundo ele, os teatros, alm dos hospi-

    tais e prises, tornaram-se ilustrao histrica permanen-

    te no idealismo funcionalista desde o sculo XVII. Segundo

    ele, foram esses temas tratados com destaque por arquite-tos, tratadistas e pensadores que discutiram a renovao da arquitetura dentro de uma perspectiva funcional, baseada

    em modelos e prottipos.

    O autor salienta que a relao entre as exigncias

    funcionais, isto , a visibilidade, a acstica, as condies de

    segurana, e a expresso arquitetnica um dos problemas

    cruciais da era moderna, e conclui:

    O problema de criar inequivocamente uma ex-presso arquitetnica pode parecer insolvel por trs atitudes mutuamente excludentes. Por exem-plo, pode-se declarar que cada programa sus-ceptvel de vrias solues; pode-se declarar que um edifcio moderno necessita ser o mais adap-

    1.3

    O Sentido do Espetculo

  • 36

    para verificar sua formulao em busca de uma Teoria da

    Produo do Espao (1979, p. 111-116). O autor parte dos conceitos da Economia Poltica, que ele sugere gerar uma outra disciplina, a Economia Po-ltica do Espao, e conclui no haver a produo do espao teatral, pois no se pode falar em produo arquitetnica

    teatral, na medida em que todas as etapas de tal teoria, pro-duo, distribuio e consumo, no se concretizam. Nesse

    caso, a recepo do contedo teatral no se daria devido a problemas de ordem tcnica e de organizao, baseados na configurao da sala, que impediriam que o processo se

    completasse. Segundo ele, ao observar teatros histricos

    de cena frontal italiana, fica claro que o distanciamento do espectador, posicionado em pontos cegos da plateia, impede que haja as etapas necessrias para a plenitude do

    espetculo. Com esses argumentos, para Coelho Neto, esta-

    ria comprometida a troca entre autores, atores e o pblico,

    funo primordial do teatro.

    Tal argumento se torna frgil, mesmo consideran-

    do o momento em que o texto foi escrito (final da dcada

    tvel possvel, e portanto que o exterior deve ex-pressar esta flexibilidade; ou se pode ter a viso

    de que o funcionalismo implica formas compositi-

    vas padronizadas. (COLLINS, 1998, p. 238)14

    Essa reflexo nos pareceu til para estabelecer par-

    metros de compreenso e de comparao entre os projetos

    analisados nos prximos captulos. Collins percebe clara-

    mente a dificuldade que a Arquitetura enfrentara mais in-

    tensamente a partir do sculo XIX na conciliao entre seus

    preceitos, sua funcionalidade e seu papel perante a cidade, situao que se torna ainda mais evidente na produo ar-quitetnica recente, o que poderemos aferir pelo percurso

    estabelecido nessa pesquisa. Isso torna-se importante se pretendemos estabelecer uma metodologia de anlise que no se restrinja a um determinado ponto de vista ou ainda a

    um recorte excludente, o que poderia reduzir nossas possi-

    bilidades de compreenso. o que ocorre, por exemplo, na

    obra a seguir.

    Jos Teixeira Coelho Netto, em seu livro A Constru-

    o do Sentido em Arquitetura, utiliza a arquitetura teatral 14 Nossa traduo do texto original: El problema de crear inequvocamente una expresin arquitectnica puede parecer insoluble por tres actitudes mutuamente excluyentes. Por ejemplo, se puede declarar que cada programa es susceptible de varias soluciones ( y por lo tanto no cabe ya pensar en una sola expresin funcional autntica); se puede declarar que un edificio moderno necesita ser lo ms adaptable posible (y por lo tanto que el exterior debe expresar esta flexibilidad), o se puede tener la visin (ya expuesta con respecto a los teatros, hospitales y prisiones) de que el funcionalismo implica formas compositivas estandard.

  • 37

    Cada produto da concepo moderna encontra sua legalidade formal ao concluir o processo de concepo: a ordem especfica de cada objeto e

    aparece s ao final do projeto. Tal estrutura, pr-pria de cada artefato, lhe confere uma identidade concreta: lhe faz ser algo, sem necessidade, por-tanto, de parecer-se algo.

    A identificao do problema, prvia proposta

    arquitetnica - de carter artstico - seria neces-sariamente racional, mas a arquitetura no ba-seia seus critrios de concepo em preconceitos racionais, seno em processos de inteleco visual nos quais a proposta de forma resolve situaes de projeto, ao mesmo tempo que revela o carter atpico de sua natureza. (PION, 2008, p. 50)

    O raciocnio de Pion no se ope s dificuldades apontadas por Collins para a concepo do projeto. Ao con-

    trrio, explica a arquitetura como disciplina, capaz de cons-truir seu sentido atravs dos processos que lhe so prprios e no daqueles originrios de outras disciplinas.

    Nesse caso estaramos nos aproximando do proje-

    de 1970), pois apesar dos limites que tal soluo tradicio-nal representa, no se pode desconhecer as pesquisas que tanto arquitetos como encenadores e pensadores teatrais vm empreendendo desde o sculo XIX, como bem lembrou

    Collins. Tais pesquisas, intensificadas durante a dcada de

    1920, tm sido alvo de grande interesse desde as ltimas

    dcadas do sculo XX e incio do sculo XXI, como tratare-

    mos no captulo A Metrpole em Cena.

    Pode-se tentar ainda entender seu posicionamento

    quando afirma que: ...a recepo das formas de arte dis-pensa a inteleco racional e mesmo grande a tentao de declarar que o juzo mesmo prejudicial percepo

    esttica.(COELHO NETO, 1979, p. 130)

    A viso de Coelho Netto em nada contribui para o

    compreenso dos fatos urbanos, em particular aqueles li-

    gados presente pesquisa. Se o conhecimento do tema e a

    procura do seu entendimento so condies para sua ava-

    liao, razovel que seja feito um esforo para a compre-

    enso da obra arquitetnica por seus valores essenciais.

    Nisso, auxilia-nos Hlio Pion:

  • 38

    escolhidas ao identificarmos seus mecanismos de projeto, prprios da arquitetura, ou mesmo, prprios da arquitetura do espetculo, sem contudo perder a perspectiva em rela-o ao quadro urbano e social com o qual ela se relaciona, o que nos parece mais apropriado. Em outras palavras, se

    admitimos que desde as vanguardas artsticas da dcada de

    1920 ocorre um profundo questionamento da prpria ativi-dade do teatro, do lugar essencialmente imaginrio a que se refere Francastel, seria razovel dizer que o mtodo de clas-

    sificao por tipologias seria de difcil sustentao. Como

    conclui Alan Colquhoun, sobre a Tipologia e Metodologia de

    Projeto:

    Minha inteno ao sublinhar esse fato [sobre a preexistncia de complexos tipolgicos para a resoluo de problemas] no defender o retor-no de uma arquitetura que aceita a tradio de modo irrefletido. Isso seria o mesmo que afirmar

    a existncia de uma relao fixa e imutvel en-tre formas e significados. A mudana a carac-terstica de nosso tempo, e justamente por isso preciso investigar o papel que as modificaes de

    solues-tipo desempenham com relao aos pro-blemas e solues que no tm precedentes em qualquer tradio. (in NESBITT, 2006, p. 282)

    to do lugar do espetculo baseado no estabelecimento de tipos ou de prottipos, como proposto pelo Movimento Mo-derno?

    Se a resposta for afirmativa, deveramos seguir o

    traado de Nikolaus Pevsner (1979) ao descrever a histria

    da arquitetura baseada no elenco das obras mais significa-

    tivas, classificadas por tipologia de usos, como os Teatros.

    Esse mecanismo til para compreendermos a evoluo

    tcnica dos edifcios teatrais, mas se torna limitado para en-

    tendermos os processos de projeto e sua relao com os va-lores prprios da arquitetura, com a histria e com a cida-de. Isto , a comparao entre as diversas obras nos parece

    um procedimento fundamental, porm a perspectiva deve

    prosseguir dentro das condies estabelecidas pela prpria

    arquitetura, sem que sejam abandonados os mecanismos usados inicialmente, que, de acordo com cada momento histrico, podem ter sido de ordem tecnolgica, esttica ou mesmo poltica.

    Se, ao contrrio, relativizarmos esse caminho conhe-

    cido pela historiografia, poderemos melhor avaliar as obras

  • 39

    Concurso Teatro de Chamberry - Alessandro Anselmi, 1982. Fonte: Institut Franais dArchitecture, Paris, 1988

  • 40

  • 41

    Na viso de tericos do teatro, como Denis Bablet

    (2002), o questionamento do lugar do espetculo no deve

    passar pelas modificaes dos detalhes decorativos interio-

    res ou exteriores do edifcio. Na realidade, o pesquisador

    alerta para o fato desse questionamento se dar muito mais em relao estrutura do espao, que vai dos modelos mais tradicionais da cena frontal ocupao de edificaes his-tricas ou abandonadas, ou ainda os espetculos ao ar livre ou sob tendas mveis. Baseando-se nos raciocnios de gran-

    des cengrafos, diretores teatrais e pensadores do teatro

    como Gordon Craig, Adolphe Appia e Reinhart, Bablet lem-

    bra que os inmeros teatros transformveis, construdos

    tanto na Europa como na Amrica do Norte, j mostraram

    todo o seu potencial de flexibilidade, mas as dificuldades de agilidade e os custos envolvidos para tal atributo no devem ser ignorados. E conclui:Antes de ser um problema de estrutura arquitet-nica, de meios de expresso e de esttica, o proble-ma do teatro antes um problema de sociedade.1.4

    A Ideia de Espetculo

  • 42

    Steiner e Guy Debord. 16

    Por esse panorama percebe-se como a cultura vai se subordinando imagem em detrimento da palavra, do dis-curso falado e escrito. Steiner, citado por Vargas Llosa, dis-corre sobre como a contracultura eliminou a hierarquia ou a linha divisria entre as culturas superior e inferior, entre

    o civilizado e o primitivo. Considera sua evoluo vtima do

    abandono da tradio, em que a vida ativa passar a ter a

    vida artificial do arquivo. (STEINER, G. apud LLOSA, 2013,

    P. 18-19)

    Ao mesmo tempo, as proposies de Guy Debord, que Vargas Llosa considera muito mais que culturais, pois utilizam raciocnios econmicos, filosficos e histricos,

    confirmam como a vida se transformou em espectadora de

    si mesma, como a representao substituiu a vivncia, um

    sintoma de empobrecimento humano, segundo ele.

    A metamorfose chega a nossos dias atravs dos con-

    16O autor destaca (p. 11-27) os seguintes ensaios sobre a metamorfose da no-o de cultura:ELIOT, T. S. - Notas para uma Definio de Cultura, Madrid, Faber and Faber, 1962; primeira edio 1948.STEINER, George - En el Castillo de Barba Azul. Aproximacin a un nuevo con-cepto de cultura. Barcelona, Gedisa, 2006; primeira edio 1971.DEBORD, Guy. La Socit du Spectacle. Paris, Galimard, 1992.LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. La Cultura-mundo. Resposta a una socie-dad desorientada. Barcelona, Anagrama, 2010.

    Ora, vivemos em uma sociedade profundamente instvel, em plena transformao. A variedade de propostas em matria de lugar teatral a ima-gem dessa instabilidade. Em perodo de transio no se pode desejar solues definitivas, ou mes-desejar solues definitivas, ou mes-mo durveis, nem elaborar uma doutrina rgida. Em primeiro lugar uma sociedade e uma drama-turgia, em seguida uma arquitetura teatral que

    delas se emane. (BABLET, 2002, p. 25)15

    Tal transformao, a que se refere Bablet em 1962, pode ser comprovada pela prpria evoluo da noo de cultura, que, como nos mostra Mario Vargas Llosa (2013),

    modificou-se de maneira assustadora em pouco mais de

    meio sculo, uma metamorfose, usando sua definio.

    Para prov-lo, o autor faz uma reviso de ensaios significa-

    tivos sobre o assunto, desde a noo da alta cultura de T.

    S. Eliot, at a cultura-mundo de Gilles Lipovetsky e Jean

    Serroy, passando por importantes publicaes de George

    15 Nossa traduo do texto original: Avant dtre un problme de structure architectonique, de moyens dexpression et desthtique, le problme du thtre est dabord un problme de socit. Or nous vivons dans une socit profondment instable, en pleine transformation. La varit des propositions en matire de lieu thtral est limage de cette instabilit. En priode de transition on ne peut souhaiter de solution sinon dfinitive, du moins durable, ni laborer une doctrine rigide. Dabord une socit et une dramaturgie, ensuite une architecture thtrale qui en soit lmanation.

  • 43

    ceitos desenvolvidos por Lipovetsky e Serroy, em especial

    a cultura-mundo, que a verdadeira cultura de massas,

    graas ao da revoluo cientfica e tecnolgica que vem

    eliminando as fronteiras geogrficas, promovendo a aproxi-

    mao entre tradies, crenas e lnguas. A indstria cultu-

    ral se apropriou dessa condio favorvel para transformar

    a cultura em artigo de consumo de massas. Isso possvel

    pelo predomnio da imagem e do som sobre a palavra, o que

    os autores chamam de mundo-tela, que dessincronizou e

    desregulou o espao-tempo da cultura: De T.S. Eliot a Frdric Martel a ideia de cultura experimentou muito mais que uma evoluo pau-latina: uma mudana traumtica, da qual surgiu uma realidade nova em que restam apenas ras-tros da que foi substituda. (LLOSA, 2013, p. 27)

    Poderamos, ento, admitir que a identificao des-

    ses rastros a que se refere Vargas LLosa nos auxiliaria na compreenso do quadro atual que rege a arquitetura do es-petculo e o prprio espetculo. Quais seriam os valores da arte do espetculo na busca de novos universos dramticos em sua aventura perante a cidade?

  • 44

  • 45

    Percebe-se que essa estreita relao entre teatro e cidade, ora a inspirar, ora a ser inspirada, revela ser par-te do permanente confronto entre os questionamentos da

    arte e a sociedade. Novamente a comparao se manifesta

    nas declaraes de Marcel Freydefont ([1997] 2008, p. 44):

    A metfora recproca do teatro e da cidade se mantem portanto viva nesse incio do sculo XXI. Consider-la atualmente implica contudo se cons-cientizar de uma transformao da ideia que se possa fazer tanto do teatro como da prpria ci-

    dade17. Freydemont lembra-nos que o estreito elo entre te-atro e cidade est presente desde Alberti ([1452] 2004), quando o arquiteto do Renascimento considerou a cidade como uma grande casa e a casa como uma pequena cidade, ou seja, por analogia, a cidade como um grande teatro e o

    teatro como uma pequena cidade.

    Certamente Alberti referira-se arquitetura, cida-

    de edificada. O que nos caberia entender agora em que

    medida as transformaes atuais levaram abstrao da

    17 Nossa traduo do texto original: La mtaphore rciproque du thtre et de la ville reste donc vive en ce dbut de XXIe sicle. La considrer aujourdhui implique cependant de prendre acte dune transformation de Iide que Ion peut se faire aussi bien du thtre que de la ville elle-mme.

    1.5

    Abstrao e Espetculo

  • 46

    primordial; o mesmo acontece com a concen-trao; aqueles que se lanam ao teatro de rua correm grande perigo de trair seu objetivo, no levam a srio o desafio tcnico que isso significa.

    (in LArchitecture dAujourdhui 152, 1970, p. CXXXIV)18

    Nessa passagem Peter Brook j identificava em

    1970 a complexidade da relao entre a arquitetura e o es-

    petculo. Caberia uma profunda avaliao, segundo ele, a

    respeito dos contedos que os grupos teatrais pretendiam

    transmitir e quais seriam as possibilidades de tal ao. Se-ria esse um caminho para que as perdas citadas por ele no se transformassem em obstculo, em dificuldade? Naquele momento, depois de uma dcada de intensa contestao da contra cultura, como observado por Steiner, Brook nos in-

    daga se no estaramos, em nome da liberao, colocando

    em jogo a comunicao do espetculo, que exige foco e con-

    centrao. Observamos que esse tipo de descontentamento se-gue uma linha no tempo que, apesar de responder a preo-18 Nossa traduo do texto original: Sur quel fond doit-il se dgager pour tre en conformit avec les impratifs de la cration du microcosme? Comme tout lieu clos prsente obligatoirement un fond, ce qui compte est de savoir si ce fond sert, et quoi. Il y a deux possibilits, le fond vivant et le fond abstrait. () Moins on aperoit le fond, plus limage dune action apparat libre. Il faut savoir ce quon gagne et ce quon perd. En perdant lacoustique on se prive dun lment primordial. En perdant concentration aussi. Ceux qui tentent le thtre de rue sont en grand danger de trahir leur but, ils ne prennent pas assez au srieux le dfi technique.

    cena, baseada na abstrao da prpria forma edificada, na abstrao da cidade, da metrpole, ou seria, ao contrrio, a busca da cidade como cenrio, como ilustrao dramtica da cena? Isso significa dizer que a abstrao na arte abrira o caminho para a procura dos valores universais presentes na cidade e que a amplificao das relaes entre o espe-tculo e a arquitetura, entre o espetculo e a cidade, indica no necessariamente uma volta s suas origens mas sim o encontro dos valores contidos no espao edificado.

    A dvida persiste sob o ponto de vista de um ence-

    nador teatral como Peter Brook:

    Sobre qual fundo deve [o corpo] se destacar para estar em conformidade com os imperativos da criao do microcosmos? Como todo lugar fecha-do tem um fundo, o importante saber se este ser-ve e a que serve, se ele vivo ou abstrato. Quanto menos o fundo aparece, mais a ao se destaca, mais a imagem se liberta.(...)

    Devemos saber o que se ganha e o que se per-de. Perdendo a acstica, perde-se um elemento

  • 47

    cupaes distintas, ocupam de maneira clara os pensadores

    teatrais. Na medida em que a evoluo da tcnica estabelece

    um caminho frtil para tal liberao, os parmetros de con-

    trole sobre a concentrao e a comunicao vo se flexibili-

    zando. Na realidade, poderamos dizer que novas formas de

    comunicao e a diversificao dos mecanismos dos jogos

    dramticos vm, ao preencher essa funo, compensar essa

    aparente perda:

    Na verdade o problema do lugar teatral s deve ser colocado em relao aos sentidos, ao contedo e ao uso do espetculo. (...)

    Para sair do teatro deve-se ter profundas razes. Talvez se tivermos coisas a dizer que no possam ser ditas em um teatro.

    (CHEREAU, in LArchitecture dAujourdhui 152, 1970, p. 3-4)19

    Adolphe Appia (in Aujourdhui, Art et Architecture 15, 1958 p.7) declarou serem fundamentais o fim da passi-vidade do espectador e a mudana de sintonia entre espe-tculo e pblico. Para ele, a arte antes de tudo uma atitude

    19 Nossa traduo do texto original: En fait ce problme du lieu thtral, on ne doit se le poser quen relation avec le sens, les contenus et lutilisation du spectacle. () Pour sortir du thtre il faut avoir des profondes raisons. Peut-tre si lon a dire des choses qui ne peuvent tre dites dans un thtre.

    Os Lugares do Espetculo, capa de LArchitecture dAujourdhui, 152-1970

  • 48

    participao imperativa, mais do que comunicativa. Nesse aspecto poderia ser considerada oposta quela que esta-belecia o distanciamento como forma de compreenso do espetculo, pois o envolvimento do espectador com as per-sonagens prejudicaria seu entendimento. A evoluo at aquele momento levou cena que se desenvolve com os atores no meio do pblico, como o caso do Living Theater20, mas que no obriga uma partici-pao, sendo na verdade uma forma participativa profun-

    da atravs do recolhimento. Em outros casos, em especial

    em espetculos do novo teatro norte americano, o pblico

    20 Living Theater trabalha com teatro experimental desde 1947 em Nova York, defendendo a supresso dos limites entre teatro e vida, pblico e cena; o tea-tro como luta poltica pela desobedincia civil. Em 1970, colaborou com o Teatro Oficina em So Paulo. Importante notar que em ingls britnico a grafia correta theatre enquanto em ingls americano theater.

    e, para que isso seja possvel, a aproximao seria indispen-

    svel. Poderamos interpretar essa postura pela materiali-zao da sala em arena, com a plateia envolvendo a cena ou ainda como o espetculo saindo ao encontro do pblico, ou

    seja, da cidade.

    Tal proximidade preconizada por Appia pressupe

    uma adeso, uma participao do pblico. Anne-Marie Gourdon (in LArchitecture dAujourdhui 152, 1970, p. 8) ex-plica como a participao se tornou um mito capaz de tudo resolver. Mas qual participao?, pergunta a autora.

    Na realidade o teatro permitiu, desde o incio do s-

    culo XX, que fossem reunidas multides em torno do espe-tculo, como no Grosse Schaupielhaus de Hans Poelzig de 1919, uma forma de valorizao quantitativa promovida

    pelo teatro popular, como na Antiguidade. Orientado pelo

    encenador Max Reinhart, Poelzig constri em Berlin sua

    grande arena, um palco envolvido pela manifestao cole-

    tiva promovida por seus 3.500 espectadores.

    Em seguida, a participao se transformou na ade-

    so ao teatro poltico, que segundo Gourdon, seria uma

    Grosse Schaupielhaus Berlim. Fonte: www.library.calvin.eu

  • 49

    convidado a reagir, a criar parte da cena, realizando um verdadeiro encontro coletivo e participativo. Para Dario Fo (in LArchitecture dAujourdhui 199, 1978, p. 9), o teatro deveria se moldar situao. O dra-

    maturgo explica como a sociedade italiana se manifesta pu-

    blicamente por meio de manifestaes coletivas, pblicas,

    de espetculos, e as condies devem ser estabelecidas em

    funo das necessidades de cada situao. No haveria rele-vncia no lugar do espetculo desde que estivessem garan-tidas as condies para sua plena realizao, em todos os

    espaos possveis:

    Com suas ruas, praas e edifcios pblicos, a cida-de o mais vasto lugar de espetculos. Em escalas diferentes, as manifestaes valorizavam esses es-paos, embelezavam-nos, at os idealizavam. (...)

    Juntos, esses espaos, praas, igrejas, mercados, escolas, etc, formam um s lugar do espetculo. Como uma cena que muda de cenrio, a cidade

    um teatro21.(DUPAVILLON, in LArchitecture dAujourdhui 199, 1978, p. 9)

    21 Nossa traduo do texto original: Avec ses rues, ses places et ses difices publics, la ville est le plus vaste lieu de spectacle. A des chelles diffrentes, ces manifestations valorisaient ces espaces, les embellissaient, les idalisaient mme (...) Ensemble ces lieux ne forment bien quun seul espace du spectacle. Comme une scne qui change de dcor, la ville est un thtre.

    Os Lugares do Espetculo, capa de LArchitecture dAujourdhui, 199 - 1978

  • 50

  • 51

    Dentro do panorama descrito acima, complexo e em muitos casos contraditrio, parece-nos oportuno investigar o tema no pela compreenso de seus aspectos de natureza social e nem mesmo sob a perspectiva da renovao de seus contedos teatrais - pois estaramos nos distanciando dos

    nossos objetivos principais ligados ao projeto arquitetni-

    co e sua metodologia - mas sim, analisar como o tema foi

    abordado pela Arquitetura Moderna e de que forma vem se

    manifestando. Acreditamos ser essa uma contribuio para

    o entendimento de algo que h muito nos surpreende: um aparente distanciamento entre os encenadores22 teatrais e a arquitetura do espetculo.

    22 Segundo a professora Maria Lcia Puppo, em depoimento recolhido, encena-dor o diretor teatral que d um passo adiante e lana um conceito de teatro, uma ideia sobre a cena, um verdadeiro criador, algum que pensa a cena e quase sempre escreve sobre o assunto.

    1.6

    Procura do Projeto

  • 52

    camente em seu contexto para entend-las.

    Essa uma forma de classificao encontrada em

    grande parte da historiografia crtica que aborda o tema, o

    que nos parece insuficiente para a compreenso da arquite-

    tura que aqui destacamos e, sobretudo, sua ntima relao

    com a cidade.

    Segundo Helio Pion, fundamental que a atividade

    de projetar seja apoiada em juzos de reconhecimento das estruturas internas da obra, e, para isso, preciso educar o olhar. Citando Kant, ele acrescenta: O juzo esttico no

    pode ser ensinado, aprende-se com a prtica24

    A comparao tambm o recurso de verificao que todo artista, consciente ou inconsciente, uti-liza e pelo qual ele aprende a manifestar o ver-dadeiro (para ele) o mais definidamente possvel.

    Ele compara cada obra nova com a anterior, de sua prpria produo tanto quanto a de outros. Ele compara o prprio trabalho com a natureza, assim como com outra arte. Essa comparao o exerccio de sua viso das relaes e leva o artis-ta a ver e comparar os opostos: o individual e o universal. (MONDRIAN, 2008, p. 114) [em itlico no texto original]

    24 PFEIFFER, Helen - Helio Pin. Idias e Formas, 1999, p. 53.

    Como bem observa Marina Waissman:

    (...) a arquitetura uma atividade concreta e pr-tica, e qualquer tipo de reflexo a que ela se refe-re conservar uma relao mais ou menos direta com a praxis. dessa forma que a teoria, definida como sistema de pensamento, pode assumir a for-ma normativa, isto , um sistema de leis ou nor-mas que determinam como deve ser a arquitetura

    (...) (WAISSMAN, 1993, p. 29) 23 Pretendemos assim utilizar o Projeto no somen-

    te como objeto de anlise crtica mas tambm entend-lo

    como instrumento de pesquisa e reflexo. Acreditamos que essa estratgia de pesquisa pode, atravs da compreenso do objeto projetado ou construdo,

    reconhecer suas qualidades e seus defeitos. Isso significa

    perceber qual foi o conhecimento e o caminho adotados por cada arquiteto na soluo do problema apresentado pela arquitetura do espetculo. Nesse sentido parece-nos ino-portuno restringir o trabalho ao reconhecimento de teorias aplicadas s obras estudadas ou mesmo inseri-las histori-

    23 Nossa traduo do texto original: (...) la arquitectura es una actividad concre-ta y prctica, y cualquier tipo de reflexin que a ella se refiera conservar una relacin ms o menos directa con la praxis. De ah que la teora, definida como sistema de pensamiento, puede asumir la forma de una normativa, esto es, un sistema de leyes o normas que determinan cmo ha de ser la arquitectura (...)

  • 53

    Comparao das plantas dos maiores teatros europeus do sculo XVIII. Fonte: Pevsner, 1979.

  • 54

    mentos cones - arcos, torres, catedrais, obeliscos - ainda mantem sua monumentalidade. Para responder complexidade das questes le-

    vantadas, foi-nos necessrio introduzir em nossa proposta metodolgica outros subtemas, nem sempre evidentes, en-contrados com frequncia e utilizados exaustivamente por arquitetos, autores, encenadores e todos os pensadores do mundo do espetculo, como o valor primordial da obra, a tecnologia, ou ainda a revitalizao ou reconverso da ar-quitetura e do prprio espao da cidade. Nesses casos, as

    obras apresentadas, desde o captulo que aborda a Moder-

    nidade chegando at a produo recente em So Paulo, so reveladoras dos aspectos mencionados, como poderemos verificar a seguir.

    Colocar lado a lado experincias nem sempre con-

    temporneas entre si revelou a existncia de questes re-

    correntes que, de uma certa forma, j fazem parte da es-

    sncia do tema, como poder ser observado. Poderamos,

    ento, consider-las como subtemas a fim de organizar as obras segundo a estreita relao encontrada por seus auto-res.

    Os projetos sero apresentados, de uma certa forma,

    baseados nesses subtemas: O Lugar da Arquitetura do Espetculo, que investiga o espetculo e sua relao com o lugar, com a transforma-

    o do lugar , sua transitoriedade e sua permanncia. A Modernidade como detentora de reflexes que le-varam renovao dos contedos cenogrficos e arquitet-

    nicos baseados na plena percepo do espao. A Metrpole em Cena, que apresenta a Cidade como Teatro, emprestando seus espaos pblicos como lugar de

    cortejos, manifestaes; a mobilidade, a cidade como palco, em que a paisagem construda tema, cenrio, e a Cidade

    como Monumento que, mesmo desprovida do seus monu-

  • 55

    Auditrio do Mit - Harvard - Eero Saarinen, 1960, Fonte Forsyth, 1985

  • 56

    Captulo 2

    o Lugar da Arquitetura do Espetculo

  • 57

    (...) o lugar teatral, a partir do momento que deixa de ser improvisado num stio natural, numa pra-a pblica, ou num local no especializado, desde que convocado para garantir uma continuidade de representaes, torna-se edifcio teatral.

    (JACQUOT, in BABLET, 2002, p. 225)25

    Como observamos, o lugar do espetculo est direta e fisicamente relacionado com a cidade ou com o territrio da cidade, cidade como monumento e como territrio de apropriaes, como meio de expresso. So conhecidas in-

    meras manifestaes artsticas de carter urbano em que a cidade no apenas cenrio mas tambm argumento, roteiro, personagem.

    Houve recentemente um momento significativo da

    historiografia da arquitetura em que modernidade foi ques-tionada em sua incapacidade de se relacionar com o entor-no e em construir cidades.

    25 Nossa traduo do texto original: (...) le lieu thtral, ds quil cesse dtre im-provis dans un site naturel, une place publique, ou un local non spcialis, ds quil est appel assurer une continuit des reprsentations, devient difice thtral.

    Nesse captulo interessa-nos investigar de que ma-neira a arquitetura do espetculo se relacionou com o lugar, ou com a criao da noo de lugar e como contribuiu para sua permanncia e sua evoluo.

    Esse exerccio nos parece positivo na medida em

    que busca entender como o tema foi abordado nas obras

    destacadas e qual foi a repercusso em relao produo

    da arquitetura.

    Thtre Garonne - Toulouse-Galerias da adutora do rio Garonne.

    Foto: Valrio Pietraria

  • 58

    Fitzcarraldo, filme de Werner Herzog, 1982

  • 59

    Na sequncia final do filme Fitzcarraldo26, o perso-nagem principal, depois de percorrer sua Odisseia Amaz-nica, na obsesso de edificar uma pera em meio floresta, retorna derrotado ao porto inicial, onde embarcara em seu gaiola27, voltando ao incio de sua aventura. A construo flutuante, sobrevivente de ataques indgenas e de escaladas

    morro acima, retorna da longa viagem paradoxalmente de

    forma triunfante, executando uma pera em que maestro,

    msicos e cantores se instalam em decks generosos, e espa-

    lham melodias durante seu trajeto fluvial, aplaudidos pela

    plateia que os assiste em terra firme. A imagem citada, em que o barco palco e o rio teatro, com suas margem repletas de espectadores, ilustra de forma lrica, bem ao gosto do diretor alemo, como as

    manifestaes artsticas expressas por meio de espetculos

    representam fonte de inspirao para construtores e reali-

    zadores. Podem ser feitas leituras distintas dessa situao

    excepcional: a pera fluvial est relacionada com a tradio

    dos cortejos folclricos ou religiosos, em que as embarca-

    es, principal meio de comunicao das populaes ribei-

    26 Filme de 1982, do cineasta alemo Werner Herzog, com Klaus Kinsk e Claudia Cardinale.27 Gaiolas: embarcaes a motor, que fazem o transporte fluvial de passageiros, no norte e nordeste do Brasil; os passageiros dormem em redes no convs, o que segundo a tradio oral deu origem ao nomegaiolas; as redes balanam de um lado para o outro, tal como os poleiros dos pssaros nas gaiolas.

    2.1

    Mobilidade em Cena

  • 60

    ram o espetculo tema, o que est totalmente relacionado com a msica de Haendel que, segundo Otto Maria Carpe-

    aux, grandiosa, assombrosa e sabe, como nenhuma outra,

    envolver os sentidos. (CARPEAUX, 1958, p. 87)

    BR329 um espetculo que foi produzido em So Paulo em 2006 pelo Teatro da Vertigem, em que o barco

    29 Ver FERNANDES, S. 2010, p.95; ver tambm BARRETO, G. M. 2008.

    rinhas, o veculo desse espetculo itinerante. Mas para

    Herzog a situao criada o meio para que a expressivida-

    de do seu cinema esteja presente no aspecto monumental

    da obra flutuante. O gaiola o engenho criado pelo homem,

    capaz de transpor as dificuldades representadas pela flo-

    resta e de promover, portanto, o espetculo. interessante lembrar que o aspecto pico e, de certa forma, quase barroco da obra de Herzog, tem

    um paralelo na monumentalidade da msica de George

    Friedrich Handel. Uma de suas obras mais conhecidas, Wa-

    ter Music, encomendada pelo Rei Jorge I, foi apresentada

    em 17 de julho de 1717 durante um cortejo naval pelo rio

    Tmisa em Londres. A corte foi levada em barcaas abertas

    do Palcio Real, em Whitehall, at Chelsea, ouvindo, em ou-

    tra barcaa, a orquestra de 50 msicos tocar a composio de Haendel. Ao longo do trajeto, nas duas margens do rio, a populao acompanhou o esplendoroso espetculo, que se repetiu no retorno do cortejo, aps a comemorao dos convidados, at a madrugada28. Esse acontecimento ilustra como o lugar escolhido e sua forma de apresentao torna-

    28 Ver BURROWS, J.- Guia de Msica Clssica, 2008, p. 115.

    BR3 - Teatro da Vertigem, 2006. A construo de Braslia - metfora nos

    viadutos do Cebolo sobre o rio Tiet. Fonte: FERNANDES, 2010.

  • 61

    a plateia, onde o espectador navega pelo poludo rio Tiet

    na capital paulista. A ao se desenvolve nas diversas situa-

    es criadas e baseadas na pesquisa do grupo voltada para

    as identidades ou no identidades brasileiras, como explica

    Slvia Fernandes. Os lugares escolhidos como cenrio fazem

    parte de uma geografia artificial, um ambiente modificado pela engenharia e pela arquitetura da metrpole, e do su-porte dramaturgia construda durante as longas viagens

    de investigao feitas pelo grupo no norte e no centro-oeste

    do pas.

    Como afirma Slvia Fernandes, trata-se de um convi-

    te ao pblico para o desgarramento, cuja inteno a de

    potencializar o experimento da catstrofe social por meio

    da vivncia real no rio morto (...) (FERNANDES, S. 2013, p.

    415). Essa imerso radical a que o espetculo submete o pblico fruto do desejo do Grupo de transitar por situa-

    es limites como a do Bom Retiro 958 metros, que en-

    cena a vida na metrpole (cf. captulo 4, A Metrople Em

    Cena).

    Em Veneza todas as pessoas andam como se esti-vessem a atravessar um palco: nos seus afazeres, com que nada fazem, ou nos seus devaneios va-zios, surgem constantemente a dobrar uma esqui-na para desaparecerem de imediato numa outra e tm nisso sempre alguma coisa de atores, que direita e esquerda da cena no so nada, a representao s acontece ali e no tem qualquer motivao na realidade do antes, nem qualquer consequncia na realidade do depois. (SIMMEL, 2011, p. 44)

    Quando Georg Simmel fala de Veneza em sua obra A

    Esttica e a Cidade, relaciona, em determinado momento do texto, sua dinmica urbana ao fato de que o significado do seu cotidiano est baseado na presena, uma presena de palco. Todo o cenrio representado pela cidade lacustre

    estabelece o contraponto ao movimento do pblico, o ator

    urbano. Essa permanncia da arquitetura como cenrio se-

    ria renovada de forma definitiva pela vida de seus habitan-

    tes.

    O valor de permanncia da arquitetura tem inte-

    resse particular na obra de Aldo Rossi. O Teatro del Mondo,

  • 62

    construdo para a Bienal de Arquitetura de Veneza de 1980, ao contrrio da embarcao usada por Fitzcarraldo como palco, ou o barco do BR3 que plateia, o prprio teatro na-vegante, possvel graas associao do conhecimento na-

    val ao conhecimento teatral. conhecida na historiografia a contribuio dos conhecimentos da tecnologia nutica para a arquitetura. No caso especfico do teatro italiano, toda a

    tecnologia cnica, que caracteriza sua tipologia de palco, est baseada nos conhecimentos nuticos adquiridos at aquele momento30. Aldo Rossi projeta seu teatro veneziano baseado nos conceitos de tipologia31 por ele desenvolvidos, bem como na permanncia das estruturas arquitetnicas

    na memria e na cultura da cidade ao longo do tempo. Des-sa maneira, essa obra representa para a paisagem da cidade de Veneza o resgate das tradies dos espetculos marti-

    mos na laguna.

    30 DEL NERO, C. - Mquina para os Deuses: anotaes de um cengrafo e o discurso da cenografia. 2009, p.73.

    31 ROSSI, A. - A Arquitetura da Cidade, So Paulo, Martins Fontes, 2001.

    Teatro del Mondo Veneza. Fonte: ROSSI, 1985.

  • 63

    gia Rossi demonstra como a arquitetura constri e modifi-ca cidades, mesmo na paisagem consolidada de Veneza, em uma ao plena de contemporaneidade. O Teatro del Mondo composto por uma sala qua-drada em que a cena central definida por duas plateias

    paralelas, em arquibancada. O componente vertical, dois

    nveis de galerias na periferia do quadrado, assemelha-se

    situao do Teatro Elisabetano do sculo XVI33, e confere ao pequeno edifcio o aspecto monumental procurado por

    Aldo Rossi. Aps o trmino do evento, para enfatizar o carter transitrio da obra, o Teatro del Mondo viajou para a costa da Iugoslvia, at a cidade de Dubrovnik, intervindo tam-

    bm na paisagem dessa antiga colnia vneta, antes de ser

    desmontado. Estamos diante de uma arquitetura do espetculo provisria, temporria, dotada de mobilidade. Entretanto

    no a soluo formal criada por Rossi que interfere, que

    modifica a natureza do lugar. a instituio que se mani-

    festa. Para Montaner, o projeto de Rossi tem uma misso

    33 Teatros construdos durante o reinado de Elisabeth I fora das muralhas de Londres, aps sua proibio pela Cartes des Comdiens em 1574, sendo os primeiros em que os proprietrios eram os prprios atores, reunidos em socie-dades acionrias. Dentre os mais conhecidos, o Globe Theatre, foi criado por Willian Shakespeare em 1599, projeto dos irmos Burbage, na margem direita do rio Tmisa. Foi destrudo pelo grande incndio da cidade em 1666. Ver BRE-TON, G. - Thtres, 1989, e LArcha n. 01, 1986.

    (...) o Teatro del Mondo navegou at Veneza e a aportou com a naturalidade de quem parte do lugar.

    (...) atrelado ao locus para o qual foi projetado, exemplifica um paradoxo entre mobilidade e en-raizamento. (BOGA, 2009, p. 212)

    A afirmao de Marta Boga pode ser verificada pelo registro fotogrfico do percurso do Teatro em Veneza. A le-veza de sua materialidade contrasta com a ordem arquitet-nica consolidada, mas se aproxima com extrema afinidade

    do equilbrio e simetria estabelecidos pelo cenrio existen-

    te. Entretanto, na mobilidade inerente desse projeto que

    est sua capacidade de interferncia em lugares distintos,

    modificando situaes, recriando o monumento. Estaria

    nessa qualidade, segundo Josep Maria Montaner (1993, p.

    191), sua verdadeira monumentalidade. A instigante inverso, a do teatro que barco, permi-te dotar o primeiro dessa mobilidade to reclamada pelos grupos teatrais contemporneos32, levando-o a interferir em diversos contextos da cidade italiana. Com essa estrat-

    32 A mobilidade na dramaturgia de grupos como a Cia. So Jorge de Variedades, o Teatro da Vertigem e Teatro do Centro da Terra foi analisada em Teatralidades Contemporneas, FERNANDES, S. 2010, e Performatividade e Gnese da Cena, FERNANDES, S., 2013.

  • 64

    simblica, ele constri a narrativa para o aconte-cimento, demonstrando como a arquitetura, por seu valor intrnseco, ultrapassa as questes fun-

    cionais. (MONTANER, 2001, p. 75)

    (...) por trs dessa realidade que muda de uma poca para outra, h uma realidade permanente que, de al-gum modo, consegue furtar-se ao do tempo. (ROSSI, 2001, p. 7)

    Plantas e cortes, escala 1:400

    Teatro del Mondo Veneza. Fonte: ROSSI, 1985.

  • 65

    Interior.

    Teatro del Mondo Veneza. Fonte: ROSSI, 1985.

    Interior

    Montagem

  • 66

    Karaza, Teatro Ritual e Situao

    Ao final da dcada de 1960, quando os ventos de

    protesto contra os sistemas e culturas institudos sopravam com mais fora em todo o mundo, tam-bm no pacfico Japo explodiu uma energia cria-tiva sem paralelos em sua histria. O ponto alto de sua resistncia cultural foi o avano do pas na rea da arte vanguardista. A Associao de Arte Gutai de Kansai, na arte moderna, e o teatro de situaes, liderado por Karajuro, alm do Tenjo Sajiki do grupo de Shuji Terayama, no teatro An-gura, exibiam sua presena dominante. (ANDO, 2010, p. 343)

    A arquitetura de Tadao Ando, autor da citao acima

    e responsvel pelo projeto do Teatro Karaza, conhecida por sua relao entre luz e sombra, entre o vazio e o sli-do do concreto, entre o etreo e o definitivo e, sobretudo,

    por sua capacidade de ritualizao, aspecto fundamental da

    cultura japonesa.

    O ritual, no projeto do Teatro Karaza, est presente primeiramente na sua condio de itinerante, na monta-gem e desmontagem do edifcio. Est tambm presente em

    sua organizao espacial e a relao que estabelece com o pblico.

    Concebido para abrigar o grupo teatral de vanguar-

    da, dirigido por Karajuro, em Tokyo, a soluo original de

    Ando projeta uma construo em estrutura de madeira e

    fechamento em bambu. A obra executada em 1987 s mar-

    gens do rio Sumida teve sua estrutura inicial substituda por um sistema metlico de andaimes tubulares de rpida manipulao, o que permite que seja montado em trinta dias, nos lugares mais variados, pela disponibilidade do sistema. Essa soluo, alm de garantir a estabilidade da

    estrutura, permite ainda que nela seja distribuda a infraes-

    trutura cnica do espetculo.

    (...) esses tubos de ferro expressam uma sensibili-dade afim ao temperamento de Karajuro, fazendo

    deles o material mais apropriado para essa pro-posta. Isso porque o Teatro Shitamachi Karaza, nascido de um tipo de guerrilha urbana, reque-ria uma construo nica, mas que tivesse em sua origem uma trivialidade cotidiana. (ANDO, 2010, p. 343)

  • 67

    Elevao e planta, escala 1:500. Teatro Karaza - Tokyo. Fonte: BRETON, 1989

  • 68

    tcnica, que permite uma leitura muito mais profunda do

    que sua aparncia geomtrica. A distribuies e as junes

    da malha tubular definem com o conjunto de equipamen-

    tos cnicos o tratamento interno da sala. Admite o arquiteto que est na escolha do sistema construtivo a grande virtu-de do projeto, o que, no seu entendimento, permitiria sua

    construo em qualquer lugar do mundo.

    A opacidade do volume gradual em funo da su-

    cesso de fechamentos, representados por cada galeria

    anelar. A luz, fundamental em sua obra, assim como o rudo

    exterior so filtrados por camadas.

    Observa-se que uma permanncia temporria, ou

    seja, a soluo construtiva em malha tubular, a mesma usa-da por Aldo Rossi para o tambm itinerante Teatro del Mon-do, viabilizou a obra, no somente em termos financeiros

    mas sobretudo por dissimular seu carter transitrio. A ar-

    quitetura de Tadao Ando, baseada nos valores tectnicos do

    concreto armado encontrou aqui sua fora na organizao e no sequenciamento dos movimentos antes, durante e aps o espetculo, uma imagem que ainda nos parece presente.

    Ando busca formas essenciais. O volume, um dode-

    cgono, organiza a sala em anfiteatro, envolvida por duas galerias de circulao, a primeira um deambulatrio inter-no e a seguinte, um terrao anelar protegido pela fachada

    da edificao. Essa associao de espaos perifricos se co-necta com o terreno natural atravs de uma passarela em arco, completando o percurso. A arquitetura cria o ritual de preparao para o espectador pela sucesso de espaos, de travessias.

    Dentro da tradio de simplicidade do espao tra-dicional da arquitetura japonesa, o Teatro Kura-za a sntese da ideia primordial que o arquiteto procura defender, evitando toda interferncia se-cundria, capaz de criar qualquer rudo em rela-o sua obra. (MONTANER, 2001, p. 151-153) O projeto garantiu a universalidade defendida pelo Movimento Moderno, em virtude da soluo construtiva

    adotada. Tadao Ando, crtico do internacionalismo como

    valor da arquitetura, apresenta nesse projeto o que chama de Modernidade Fechada34, representada pela preciso da 34 Ver Frampton, K. 2003, p. 393-394.

  • 69

    Alm de Tokyo, foram programadas

    montagens em Osaka, Kyoto e nas docas de

    Nova York. Porm Ando admitiu, anos de-pois, que os custos envolvidos para erguer seu teatro mvel foram responsveis por inviabilizar sua reproduo em outras situ-aes, como desejara:

    Contudo, meu sonho de que o teatro mvel fosse reaparecer mais tarde, em alguma outra cidade, afinal no

    se concretizou. O Shitamachi Kara-za fora construdo, sem dvida, com base no conceito de teatro mvel imprevisvel, mas naturalmente a construo resultou em custos e con-sumiu prazos considerveis (...) A ar-quitetura uma arte de expresso, mas, pelo fato de demandar recursos elevados e uma enorme mobilizao humana, construir um ato produti-

    vo extremamente social. (ANDO, 2010, p. 353)

    Teatro Karaza - Tokyo. Fonte: BRETON, 1989

  • 70

    MUBE - So Paulo. Foto: Nelson KON

  • 71

    Os centros urbanos da metrpole contempornea passaram por momentos de esquecimento e abandono.

    A busca do mercado por novas fronteiras urbanas deixou para trs um passivo sobre o qual a cidade agora se debrua na tentativa de recuperar o patrimnio comprometido. A Arte nesses casos um agente que se apresenta na linha de frente das lutas por essa reconquista. So aes

    de denncia ao abandono, de ocupao de espaos desco-

    nhecidos, so intervenes que buscam a sensibilizao e

    convocam reflexo.

    No exemplo concreto da cidade de So Paulo as ma-

    nifestao teatrais vm desempenhando papel relevante nesse processo35. Um dos grupos teatrais de maior des-taque, a Cia dos Satyros, instala-se no incio da dcada de 2000 em um imvel localizado na Praa Roosevelt.

    Esse espao pblico, a Praa Roosevelt, um exem-

    plo do que Hugo Segawa chama de Episdios de um Brasil

    Grande e Moderno 1950-1980 (2002, p. 159), uma grande

    estrutura em concreto armado, que cobre parte do eixo ro-

    35 Para a compreenso desses movimentos ver:. ARANTES, Otlia - Urbanismo em Fim de Linha, cap. A Cultura da Cidade, p. 144. Sobres museus e novas estratgias urbanas.. FERNANDES, Slvia Teatralidades Contemporneas, 2010, parte II, Processos Colaborativos.

    2.2

    O Lugar do EspetculoO Espetculo da Transformao

  • 72

    dovirio leste oeste que corta a cidade36. O interesse nesse lugar, despertado nos Satyros e em outros grupos teatrais que vieram ali se instalar em seguida, deve-se a condies

    significativas : a total deteriorao em que se encontrava

    e, por outro lado, sua localizao estratgica, prxima ao

    bairro da Bela Vista, tradicional reduto do teatro paulista-

    no, bem como de edifcios de grande valor cultural e arqui-

    tetnico para a cidade, como o Teatro Cultura Artstica37 e o Cine Bijou, que introduziu na cidade programao cinema-

    togrfica alternativa ao cinema comercial e que funcionou

    no local de 1961 a 1995.

    O processo, hoje emblemtico, de retomada do uso

    desse espao pblico deu-se depois de uma dcada de

    atividades teatrais que trouxeram de volta o pblico e as atividades culturais e comerciais decorrentes dessa nova animao. Esse movimento culminou com a reestruturao

    total do espao fsico por parte do poder pblico, devolven-do a Praa cidade, agora com uma proposta considerada aberta e integradora.

    Cabe-nos aqui observar, justamente, de que maneira

    36 Elevado Costa e Silva - Radial Leste. Praa Roosevelt, obra de Roberto Coelho Cardozo, 1970. Outros exemplos: Praa da S e Metr, obra da equipe Emurb; Praa da Bandeira e Garagem Emurb, 1973, obra nunca terminada.

    37 Teatro Cultura Artstica, obra de Rino Levi Arquitetos Associados, 1942.

    o espao do espetculo participou dessa transformao do lugar. Em que medida podemos perceber que houve uma contribuio para a construo do carter do lugar, no sen-tido do que o diferencia, do que lhe d caractersticas pr-

    prias em relao a outro?

    Tomemos como base de anlise, ou como caminho de anlise, o processo de apropriao, por parte da Arte do Espetculo, do espao fsico necessrio para desenvolver

    seu trabalho. A Cia. dos Satyros, e as outras que a sucede-

    Praa Roosevelt, projeto original, Roberto Coelho Cardozo.

    Fonte: Revista Acrpole n. 780, 12/1970

  • 73

    est sim presente nas propores generosas, na escala do lugar, que permitiram a concepo do espao imaginrio criada pela direo do espetculo, caracterizada pelas in-curses espaciais horizontais e verticais do drama.

    Como mostram os diagramas acima, a ao se desen-

    volve em posies e situaes distintas em que o artefato

    que pontua as mudanas a plateia em forma de arquiban-

    cada metlica, provida de rodzios, movidas pela prpria

    fora dos atores, que no momento da movimentao no fa-

    zem parte diretamente da ao, transformando-se no prin-cipal equipamento de que o grupo lana mo durante todo o espetculo, uma ao com o pblico.

    A estratgia est muito prxima das teorias elabo-

    radas por criadores cengrafos e pensadores do teatro do

    incio do sculo XX, como Adolphe Appia e Gordon Craig40.

    Para Appia, a dimenso cnica dada pela busca da din-

    mica entre espao e tempo - movimento - que oscilam entre

    si e dificilmente encontram um equilbrio, mas esto sem-

    pre em uma interdependncia, uma subordinao. em Appia que encontraremos a desmaterializao da cena, o 40 Ver: . BABLET, Denis Le lieu thtral dans la socit moderne, 2002, cap. La Remise en Question du Lieu Thtral, p.15.. LIMA, Evelyn F. Wernwck - Arquitetura e Teatro. O Edifcio Teatral de Andrea Palladio a Christian de Portzamparc, 2010, p. 121.. DEL NERO, C. 2009, p. 217-263.

    ram, se instalou no pavimento trreo e no mezanino de um dos diversos edifcios torres que desde a dcada de 1960

    definem os limites fsicos da Praa.

    As intervenes realizadas nesses edifcios trouxe-

    ram interessantes formas de utilizao do espao cnico,

    que dissolve as barreiras entre plateia e palco, j conheci-

    das em outras experincias na cidade38. Os diagramas apresentados a seguir registram uma das montagens realizadas em um desses espaos transfor-

    mados:

    Espao Satyros I Praa Roosevelt, 214. Espetculo: Roberto Zucco39, de Bernard-Marie Kolts, maro 2011. O espao do espetculo nesse caso parte do trata-mento genrico desse grande ambiente em que a ao se desenvolve. A arquitetura original do edifcio no participa

    como ilustrao, artifcio, rudimento, elemento bsico, pri-

    mitivo. Ela simplesmente no vista, no evidente. Porm

    38 Ver Teatro Oficina, de 1984, obra de Lina Bo Bardi e Edson Elito para o grupo de mesmo nome liderado por Jos Celso Martinez Corra.

    39 Pea do dramaturgo francs Bernard-Marie Kolts, de 1988, inspirada em um cartaz de procura-se, de um assassino em srie chamado Roberto Succo, um doente mental de 26 anos que fora internado em 1981 por ter matado seus pais, e que em 1986 foge do hospital de forma espetacular, voltando a cometer novos crimes.

  • 74

    uso intensivo dos recursos de iluminao e da msica para

    a construo das sensaes, sendo, no entanto, preservada

    a nica realidade fundamental, a do ator em cena.

    Craig defendia o teatro como um espao vazio, pleno

    de ideias a serem construdas. Deveramos encontrar ape-nas um piso, paredes e telhado, onde a cada espetculo se-ria concebida uma arquitetura especfica, onde cada drama

    encontraria o seu lugar cnico. H no caso do espetculo Roberto Zucco estratgias semelhantes s desses cengrafos alinhados com as van-

    guardas artsticas da dcada d