Arlette geneve família beresford 02 me beije, canalha

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AArrlleettttee GGeenneevvee

MMee BBeeiijjee,, CCaannaallhhaa

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AARRGGUUMMEENNTTOO::

Andrew Robert Beresford é o libertino mais famoso de

todo o sul da Inglaterra. Suas conquistas são

escândalos contínuos em Whitam Hall, e além disso,

produzem uma terrível dor de cabeça no patriarca

dos Beresford. É um conquistador, e nenhuma mulher

é capaz de resistir a seu olhar e sorriso maliciosos.

Rosa de Lara e Guzmán acredita na liberdade e na

igualdade de todo o ser humano e, para escapar da

tirania do duque de Fortaleza, planeja a forma de

seduzir o jovem inglês que lhe roubou o coração:

Andrew Beresford. Sua alegria e sua impulsividade lhe

mostram um mundo que ignorava que existisse,

entretanto a guerra está a ponto de estourar...

Ambientada na convulsiva Madrid de 1835, quando

se gerou a primeira guerra carlista na Espanha, Me

Beije, Canalha é a história de dois corações que

souberam vencer a distância e superar as

dificuldades.

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PRÓLOGO

Palácio de Zújar, cidade de Córdoba.

Alonso cruzou a porta aberta na muralha árabe, que constituía a

entrada principal ao palácio. Este fora edificado em torno de um pátio

mudéjar1: um jardim de forma retangular, dividido em quatro zonas, com

reservatórios nos extremos enlaçados através de pequenos canais e lajes de

mármore que formavam um conjunto harmonioso e aprazível. Ao redor do

pátio se dispunham as dependências da moradia.

Zújar estava localizado no bairro do Bairro dos Judeus, muito perto

da mesquita e da catedral. Na zona mais influente e próspera da cidade de

Córdoba.

Alonso elevou seus olhos castanhos para as janelas fechadas da

planta alta. Os diferentes quartos estavam situados ali, distribuídos em

corredores amplos decorados com a arquitetura tradicional, muito estendida

na cidade, e com o acréscimo de colunas próprio da região. Com as mãos

às costas, observou com atenção cada arcada e canto do pátio, por isso, não

foi consciente da presença feminina que o esquadrinhava de uma porta

entreaberta, no outro extremo do jardim; mas, como se intuísse que o

estava olhando, Alonso girou sobre si mesmo e cravou seus olhos em Rosa

sem dizer nada.

1 A arte mudéjar é um estilo artístico e arquitetônico que incorpora influências, elementos ou materiais

de estilo hispânico e muçulmano. Fonte: Wikipédia.

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Esta olhou para seu irmão, que vestia uniforme de oficial militar.

Fixou-se no chapéu adornado em ouro que lhe cobria os cabelos negros,

pulcramente penteados para trás. A casaca azul escura estava enfeitada

também em tons dourados no pescoço. A cor combinava com o tom torrado

de sua pele. As voltas, pescoço e lapelas eram de um vermelho intenso.

Alonso levava as lapelas da casaca abertas até médio peito e viradas para

fora, seguindo a moda dos generais de terra.

Seu grau era indicado pelos dois galões dourados nos ombros.

Baixou os olhos para o cinturão, onde pendurava o sabre de oficial,

e cravou suas pupilas na mão masculina que segurava com força o punho.

Rosa pensou que seu irmão parecia imponente e em atitude perigosa. De

novo, olhou em seus olhos rasgados e profundos e analisou cada traço do

querido rosto. Sua forte constituição e sua altura dignificava o uniforme,

que caía como uma luva. Era muito atraente, mas teimoso e obstinado até

um ponto que conseguia desanimá-la. Desde menino, tinha mostrado seu

forte caráter e sua determinação em cada projeto que empreendia, e, no

auge de seus trinta e cinco anos, não mudou nem um pouco.

—Rosa — a saudou, com voz grave.

—Alonso — respondeu ela, a sua vez.

De novo, o silêncio se hospedou entre os dois irmãos, que se

contemplavam, um com excessiva arrogância, a outra com prudente

cautela.

Rosa olhou os dois soldados que faziam guarda na porta da rua e,

sem explicar o motivo, sentiu que lhe encolhia o estômago.

—Foi toda uma surpresa descobrir que tinha deixado os hábitos. —

A voz masculina soou fria como o gelo.

—Nunca tomei — confessou, um pouco coibida.

—Então, por que não retornou a Sevilha?

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—Acostumei-me a viver em Córdoba; aqui tenho tudo o que

preciso.

—Não convida seu irmão para um gole? Tenho a garganta

ressecada.

Era uma falta de educação por sua parte mantê-lo no pátio e não

convidá-lo ao interior da moradia, mas estava tão surpresa por sua chegada

que não tivera tempo de preparar-se para enfrentá-lo.

—É óbvio — respondeu um momento depois — Acompanhe-me.

Alonso se aproximou dela. Os guardas o seguiram, a um gesto dele,

vários passos atrás.

Rosa guiou seu irmão para a formosa biblioteca do palácio. Alonso

esteve a ponto de soltar um assobio de admiração. As enormes estantes

cheias de livros chegavam até o teto e cobriam três das quatro paredes da

estadia.

—Deve pagar uma renda muito alta por este lugar — disse, de

repente.

Rosa fechou os olhos um instante, antes de responder.

—É de minha propriedade. — Alonso a olhou, com olhos

semicerrados — Eu o comprei com parte da herança que me deixou mãe,

mas imagino que já sabe e só perguntou para me pegar com a guarda baixo,

como é costume em você, não é certo?

Alonso não se incomodou com sua crítica, mas pensou que, se só se

tratasse da compra do palácio, ele não estaria, nesse momento, em

Córdoba, desatendendo seus assuntos em Sevilha. Rosa pediu ao mordomo

que servisse um refresco e fez um gesto a seu irmão com a mão, para que

tomasse assento em umas belas poltronas estofadas em um tom verde muito

alegre.

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—Já tem várias propriedades — replicou ele, com aspereza — não

precisa de mais.

—É certo, mas a maioria está em Sevilha, e eu queria uma nesta

formosa cidade de Córdoba — respondeu, concisa — Desaprova minha

escolha?

Alonso não lhe respondeu, e, durante os seguintes minutos,

esperaram em silêncio, até que o mordomo deixou a bandeja na mesinha

auxiliar e partiu. Rosa olhou para a porta da biblioteca, quando o servente

saiu por ela, e se precaveu dos dois homens que montavam guarda do lado

de fora. Acreditava que ficariam no pátio.

—Estou detida? — perguntou a seu irmão, diretamente.

Cansou-se de ser educada e sentia a imperiosa necessidade de saber.

Alonso tomou seu tempo em lhe responder, e, quando o fez, seu

olhar bulia de desconfiança.

—Pensa que tem motivos para isso?

—Quer brincar de adivinhações? — Rosa lhe estendeu o suco de

laranja que tinha levado o mordomo.

Alonso aceitou o copo com um gesto de cortesia tão gélido, que ela

sentiu um calafrio na base da nuca.

—Andou muito mal, minha querida irmã — disse, de repente, com

uma voz áspera que lhe soou autoritária.

Rosa tragou uma saliva espessa. Sabia que esse momento ia chegar,

cedo ou tarde, embora acreditasse estar preparada, havia começado a

tremer.

—Refere-se a que viva em Córdoba ou a ter ideias políticas

diferentes das suas?

Alonso estreitou os olhos ainda mais.

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—Apoiar Carlos Isidro é uma soberana estupidez — soltou, de

repente.

Rosa apertou os lábios, ofendida.

—Pai morreu por quão ideais defendo. Esqueceu?

—Seus ideais são equivocados — replicou, aborrecido — Pai era

um traidor a Espanha. Um maldito bonapartista! Esqueceu você?

Preocupada, Rosa cravou suas pupilas negras nas de seu irmão.

Alonso Miguel de Lara e Arenas foi um dos muitos nobres que apoiaram

Napoleão Bonaparte e pagou com sua vida essa escolha.

—Pai defendia uns ideais que o rei Fernando se encarregou de

destruir e amordaçar. Acaso lhe deixa indiferente ver o que tem feito com o

povo? Sua tirania? Seu absolutismo?

As aletas do nariz de Alonso se dilataram, ao escutar sua irmã.

—Era um bebê, quando estourou a guerra com a França; pai não

pôde influir você para que adotasse sua postura e abraçasse suas ideias

políticas — o alfinetou, com fúria — Pensa assim porque se criou no país

inimigo que quis nos submeter, que nos massacrou para obtê-lo, maldita

seja!

—Nossa avó materna era francesa — recordou ela, amargamente —

mas que eu me criasse na França não significa nada. Os ultrajes são sempre

abusos, arbitrariedade, e, por esse motivo, me declaro contrária à política

que você defende.

Alonso a perfurou com um olhar ácido, cético ante a defesa de suas

ideias. Ele sabia muito bem que a educação que recebera na França era a

culpada da traição que tinha cometido.

Rosa inspirou, profundamente, ante as lembranças que a golpearam.

Depois da batalha de Somosierra, seu pai enviara a ela para a França com a

família materna de sua esposa. Alonso Miguel de Lara e Arenas

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compreendera que a situação na Espanha ia piorar e quis pôr a sua família a

salvo, mas Sofía, sua mulher, negou-se a partir e deixá-lo sozinho.

Finalmente, Alonso ficou também em Sevilha com eles. Por esse motivo,

Rosa se criou sem sua família mais próxima e cresceu com sua avó

materna, em um país odiado pelos espanhóis. Ela mesma era objeto da

aversão e o rechaço da nobreza sevilhana a sua volta.

—Por quê? — A pergunta foi formulada de forma imperativa.

Rosa decidiu justificar-se com seu irmão.

—Porque não sou como você — explicou, em voz baixa — e

porque acredito na liberdade e na igualdade de todo homem. Odeio os

métodos que utilizou este monarca para nos submeter.

—Por quê? — Alonso voltou a lhe fazer a mesma pergunta, mas,

agora, com um tom muito mais inquisitivo.

—Tomei a decisão de apoiar dom Carlos, porque acredito

sinceramente que é o melhor para a Espanha, para todos nós. — Ele bufou,

incrédulo — Acredito que seu reinado será mais eficaz que o de uma

infanta cuja minoria de idade nos trouxe uma regência pouco clara.

Fernando se rodeou de incompetentes, de conselheiros inúteis que utilizam

a regência da infanta em seu proveito. Não o vê?

—Não sabe o que diz! — vaiou Alonso, entre dentes.

—O que nos trouxe o rei depois de sua volta? Nada! Aboliu a

Constituição de 1812 que custou tantas vidas, restaurou a Inquisição, e

poderia seguir enumerando ações e atrocidades cometidas por esse rei que

defende, mas que não vale a pena.

Seu irmão inspirou, profundamente.

—Nos últimos tempos, permitiu certas reformas para atrair os

setores mais liberais. Pretendia igualar as leis em todo o reino.

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—Mas não foi suficiente! — exclamou, convencida — Nunca o

será! Não é capaz de vê-lo?

Alonso amaldiçoou com voz grave. Seu pai, morto na batalha de

Tolosa, permitiu que a herança íntegra de sua mãe passasse às mãos de sua

irmã, e ele acreditava, firmemente, que nenhuma mulher devia possuir tanta

riqueza, porque isso lhe outorgaria influência. Rosa fora educada como um

homem, inclusive estudara sob a supervisão de um professor e tutor francês

designado por seu pai. O duque de Fortaleza enviou a sua única filha muito

longe de sua influência, e, embora Alonso tentasse por todos os meios

anular os acertos feitos por seu pai e controlar o patrimônio e a riqueza de

sua irmã, não o tinha obtido. Logo, a muito insensata retornara a Sevilha,

quatro anos depois de terminar a guerra contra Napoleão. Relacionou-se

com traidores à monarquia e empregou o dinheiro de sua mãe, falecida

pouco depois da morte do duque, para financiar a reclamação de Carlos à

Coroa espanhola. Armar a um exército era muito caro, ele, como militar,

sabia.

Alonso fechou os olhos, por um momento. O que tinha de fazer a

seguir era extremamente desagradável, mas necessário. Deixou o copo na

bandeja, levantou-se de seu assento e se dirigiu para a porta. Agarrou o

trinco com a mão direita e a abriu.

—Prendam-na — ordenou, com voz firme.

Os dois soldados que montavam guarda em ambos os lados da porta

fizeram um gesto afirmativo com a cabeça e se meteram na estadia até ficar

frente a Rosa.

—Alonso! — exclamou ela, com os olhos arregalados — O que

significa isto?

—Fica detida pelo crime de traição à Coroa da Espanha.

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Não podia acreditar. Seu irmão a prendia? Observou os dois

soldados com o coração em um punho. Embora estivessem muito perto,

não a seguravam, por isso correu para Alonso e se abraçou a seu pescoço

para implorar.

—Não faça isso! Que seja outro o que cometa esta infâmia, mas

você não.

Soltou as mãos dela de seu pescoço e a olhou, fixamente, entre o

desgosto e a decepção.

—Sabia o preço que pagaria por sua deslealdade à Coroa. — Rosa

ergueu as costas e cravou seus olhos castanhos nos de seu irmão, que lhe

sustentava o olhar com aborrecimento — Por que acredita que solicitei seu

ingresso no convento de Santa Marta? Para evitar que cometesse o maior

engano de sua vida. Acredita que a Casa Real não conhece suas ações

políticas? Têm conhecimento de suas reuniões com um dos homens de

Rafael Maroto2: Joaquín Moreno. Sabem que, junto com outros traidores,

está financiando a reclamação ao trono de Carlos Isidro.

Rosa não podia pensar, mas tinha de ganhar tempo.

—Não penso me mover de Zújar.

Alonso lhe agarrou o queixo e a levantou.

Ela o olhou, atentamente. Seu irmão tinha os lábios apertados com

cólera, o que lhe produziu um sobressalto maior.

—É ainda mais estúpida do que acreditava — espetou,

amargamente — Por que acredita que solicitei à Coroa a responsabilidade

de levar a cabo sua detenção? Pretendo manter você com vida todo o tempo

que possa, embora não o mereça.

2 No original em espanhol: “ general espanhol que participou da Primeira Guerra Carlista a favor do

irmão do rei, Carlos Isidro”.

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Rosa já imaginava algo assim, mas ser presa por seu próprio irmão

resultava muito humilhante e doloroso.

—Permanecerá prisioneira no convento de Santa Marta por tempo

indefinido. Pode agradecer pelo sobrenome que leva e de que eu seja um

fiel servidor da Coroa, porque, do contrário, já estaria morta.

Ela sabia. Quando decidiu mostrar seu apoio ao irmão do rei

Fernando, Carlos, era consciente do risco que corria; mas seus ideais a

impeliam a fazer algo. Seu pai morrera por esses mesmos princípios, e

Rosa detestava a posição absolutista de seu irmão.

—Posso escrever uma nota a meu advogado para que se ocupe de

administrar as propriedades em minha ausência? E preciso dar ordens ao

serviço. — Alonso lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça — Então,

subirei a meu quarto para me trocar de roupa e vestir algo mais apropriado,

se não for inconveniente.

Pôde ver a dúvida nas pupilas dele.

—Que garantia tenho de que não tentará fugir, enquanto espero? —

perguntou, com certa desconfiança.

Olhou-o, com decepção nos olhos, mas com um brilho decidido em

seu atraente rosto.

—Porque sou plenamente consciente de que, enquanto esteja a seu

lado, seguirei com vida. Ao menos, até que seja julgada.

Alonso estava seguro de que não pensava em escapar, mas, embora

o tentasse, resultaria-lhe impossível; tinha uma guarnição de soldados na

porta do palácio e, no caso de, havia coberto também outras vias de

escapamento.

—Vá, então, e escreva essa carta, e vista um traje de viagem.

Rosa lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça e saiu da biblioteca

com o estômago revolto. Apoiou a mão sobre o corrimão de madeira da

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escada, deteve-se e respirou, profundamente. Agora que havia chegado o

momento, um agudo remorso lhe perfurou o coração. As possíveis

consequências de suas ações eram válidas, quando estava sozinha, mas

tinha alguém sob sua responsabilidade e falhara de forma estrepitosa.

Era imperioso que escrevesse uma carta e preparasse os

documentos que Glória teria que levar a Inglaterra; confiava em que

chegassem bem a seu destino. No momento em que decidiu ir de Sevilha,

longe da influência de seu irmão, soube que, cedo ou tarde, teria de prestar

contas por suas ações. Rezou uma prece e desejou que Deus escutasse seu

rogo. Felizmente, Alonso ignorava quase tudo a respeito dela e dos

segredos escondia.

Agora, seu destino estava nas mãos de Deus e o que mais amava na

vida ia ficar em mãos de uma pessoa que não via há anos. Teria mudado

muito, durante esse tempo? Aceitaria com indulgência cuidar do que mais

lhe importava no mundo?

«Meu deus, que a aceite e a proteja de todo o mal», suplicou, com o

coração atormentado.

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CAPÍTULO 1

Enchamos a noite de gemidos gloriosos

e suspiros celestiais, para que os anjos desfrutem.

e dancem ao ritmo de nossa paixão.

Andrew R. BERESFORD

Condado de Hampshire, Inglaterra, 1835.

Um dedo masculino percorria o contorno das costas nua da mulher.

Desenhou uma flor e continuou a descida até a curva do quadril. Ela moveu

a cintura, ao sentir a cócega do dedo brincalhão, mas não mudou sua

postura lânguida.

—É um homem travesso. — A voz feminina soou ansiosa — Mas

eu adoro tudo o que me faz. — Andrew sorriu de forma maliciosa,

enquanto lhe acariciava a curva do quadril de forma muito mais atrevida —

E é insaciável. — Suas palavras o fizeram estreitar os olhos, durante alguns

segundos.

À sua mente, acudiu uma lembrança que lhe resultou extremamente

dolorosa: a imagem de uma mulher que significara tudo para ele, e que, em

pagamento pelos profundos sentimentos que albergava por ela, tinha-o

usado a seu desejo e logo o deixado, sem se importar nem um pouco com o

amor que lhe professava. Piscou para tentar afastar o sentimento de

desgosto que o embargara, durante uns instantes.

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Sua companheira notou a leve hesitação de sua mão em sua pele e

apoiou os cotovelos no colchão para olhá-lo. Seus azuis olhos brilhavam

com um desejo que não tinha diminuído nem um pouco nessa tarde

libidinosa.

—Não deve preocupar-se, meu marido não chegará até manhã.

Sua voz apagou em Andrew a lembrança, mas, assim que ela

terminou de dizer essas palavras, ouviu-se a carruagem que tomava o

caminho de entrada à mansão. As rodas moviam os seixos no caminho e os

lançavam contra as esculturas que adornavam o percurso até a casa. O som

resultava inconfundível.

—Charles terá adiantado sua volta! — A voz da mulher soou

assustada, mas Andrew lhe piscou os olhos um olho para tranquilizá-la.

Ouviram o grito do chofer, que deteve os cavalos em frente à porta

principal. Andrew recolheu suas roupas espalhadas pelo chão a toda

velocidade. Vestiu primeiro as calças e, sem fechar os botões da camisa, a

pôs também, assim como as botas.

—Detesto ter de deixar você de forma tão apressada, mas devo ir.

— A mulher o beijou nos lábios, que ele abriu para ela de maneira

premeditada.

—Sentirei saudades, amor, não duvide. Até que a veja de novo, o

tempo será eterno e tedioso.

Andrew lhe segurou o queixo, para aprofundar seu beijo de

despedida.

—Nos veremos durante a próxima viagem de seu marido.

Avançou até o balcão e abriu a alta janela. Por fortuna, uma das

paredes do amplo quarto dava a um jardim lateral; a distância até o seguinte

balcão não era muita, e a trepadeira parecia resistente. Era fácil deslizar por

ela e cruzar o jardim até a taipa, para depois saltá-la. Tinha-o feito

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infinidade de vezes. Sabia que era arriscado manter uma relação com lady

Hill, mas a impetuosidade da dama era uma tentação que não podia resistir.

Embora cada vez fosse mais difícil manter encontros clandestinos, e temia

ter chegado o momento de terminar a aventura e passar a outras reservas

ainda não exploradas.

Agarrou a trepadeira e assegurou os pés, à medida que ia baixando;

a camisa aberta enganchou em um espinheiro, e Andrew soltou uma

maldição em voz baixa, quando teve de rasgar o tecido, mas já havia

chegado quase ao final e salvou a distância, até o chão para logo pôr-se a

correr em direção oposta à casa. Já podia ver o muro e a árvore por onde

tinha de subir. Tinha o cavalo preso do outro lado. Deu um salto e apoiou o

pé direito na parede para dar impulso e agarrar um galho grosso. O cálculo

fora perfeito, porque o peso de seu corpo o fez oscilar sobre sua cabeça e

pôde segurá-lo com a outra mão sem dificuldade. Balançou-se, até que

conseguiu elevar-se e ficar dobrado sobre o galho. Em questão de

segundos, sentou-se nela a escassos centímetros da borda do muro; de onde

estava, podia ver sua montaria, que pastava tranquilamente à luz da lua.

Então, Andrew girou o rosto para a casa e viu a silhueta feminina através

da janela aberta; esqueceu-se de fechá-la. Contemplou o rosto irado de

lorde Hill e a forma possessiva em que agarrou o braço de sua mulher e a

arrastou até o leito. Imaginou o que viria a seguir e, de repente, sentiu

remorsos.

Soube que tinha de recomeçar

Alcançou o muro com relativa facilidade e saltou junto a seu

cavalo, que não se moveu do lugar. Abotoou a camisa e desdobrou a capa

negra que tinha deixado dobrada sobre a sela. Depois de colocá-la sobre os

ombros, montou com uma agilidade assombrosa, esporeou o garanhão e

empreendeu galope para Southampton. Ali conhecia um botequim onde

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serviam boa cerveja negra e havia umas empregadas voluptuosas que

podiam lhe dar um bom momento, até que decidisse retornar a Whitam

Hall. Quando o fez, a altas horas da madrugada e algo ébrio, seu pai, o

marquês de Whitam, esperava-o com um ultimato que ia mudar sua vida

por completo.

John Beresford seguia movendo a taça de xerez na mão. Tinha o

olhar fixo em um quadro da biblioteca e, sem dar-se conta, seus olhos se

foram estreitando com desgosto, à medida que suas pupilas percorriam o

retrato de seu filho caçula. Era o libertino mais famoso de todo o sul da

Inglaterra, e suas contínuas conquistas femininas produziam em seu pai

uma terrível dor de cabeça. Por que maldita razão todos os problemas com

saias que tinha deviam ser com mulheres casadas com homens influentes?

John se cansara de lutar com maridos ultrajados que pediam o

sangue de seu filho.

Andrew se via envolto em vários duelos, dos quais saía ileso por

milagre, mas ele tinha intenção de mudar sua dissipada vida. Estava farto

de manter conversas infrutíferas para tentar fazê-lo repensar sobre sua

atitude e sua maneira despreocupada de levar as coisas, de meter-se em

situações perigosas.

Nem Christopher nem Arthur tinham obtido, tampouco, fazê-lo

mudar seu modo de agir e de comportar-se.

Deixou de observar o quadro para olhar o relógio pendurado na

extremidade contrário da parede. Os ponteiros marcavam as cinco da

madrugada. Para John, doía-lhe a cabeça de procurar soluções, medidas

para devolver seu filho ao caminho da responsabilidade. E, pela enésima

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vez, perguntou-se onde estaria naquele momento, a que mulher estaria

seduzindo de forma libertina e despreocupada.

Sentia que as horas que marcavam os ponteiros do relógio eram

como pequenas punhaladas em seu coração de pai preocupado.

Andrew era um libertino muito atraente. Um descarado encantador,

e nenhuma mulher resistia seu olhar malicioso, seu sorriso malandro, mas

John devia tomar medidas, embora, para isso, o tivesse de afastá-lo de

Whitam Hall durante um tempo prolongado.

Por fim, ouviu o som da porta ao abrir-se. E o golpe, seguido do

impropério que seu filho soltou, quando, no vestíbulo, tropeçou com a

cadeira estofada que John tinha separado da parede com esse propósito:

saber quando voltava. Levantou-se da poltrona e deixou a taça em um canto

da escrivaninha. Com passo firme e seguro, encaminhou-se para o

vestíbulo, antes que Andrew subisse a suas dependências. A casa estava

tenuemente iluminada com abajures de gás, que ordenou deixar acesas.

Quando mostrou a cabeça pela porta, seu filho estava tentando pendurar a

capa no cabide; seu lamentável estado não ia impedir a conversa .

—Estava esperando você.

Andrew deu um coice, sobressaltado. Quão último esperava ao

chegar a Whitam Hall era ver seu pai aguardando-o.

Voltou-se para ele com olhos abertos pela surpresa. Que fazia de pé

a aquelas horas da madrugada? Por que tinha esse olhar de amarga

decepção?

—Venha comigo, temos de conversar.

Andrew o seguiu à biblioteca. Uma vez dentro, tomou assento

frente a ele, sem que seus lábios abandonassem seu perene sorriso.

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—Se o visse neste momento... — John se calou. As sobrancelhas

loiras de seu filho se elevaram interrogantes — Tem um aspecto

lamentável.

—Bebi um pouco mais do que pensava — admitiu, com franqueza.

Seu pai negou com a cabeça, enquanto inspirava profundamente e

lhe punha diante um documento em branco.

—Assine. — Andrew olhou o papel, sem entender — Terá que

fazer uns acertos em seu imóvel e preciso de sua autorização. Tem-no

virtualmente na ruína.

Ele se sentiu um pouco envergonhado. Era verdade que descuidara-

se completamente da propriedade que seu pai lhe deu de presente, quando

fez dezoito anos. Por esse motivo, assinou sem demora o documento. John

o guardou em uma pasta de pele marrom.

—Comprei para você um grau de oficial na Marinha. Partirá a

próxima semana a bordo do Revenge.

Andrew piscou surpreso. Não tinha ouvido bem. Ingressar na

Marinha? Certamente, bebera muito: parecia-lhe que seu pai o enviava para

longe da Inglaterra.

—Não o quero em Whitam Hall — admitiu John, abatido — Não

penso em tolerar um escândalo mais.

—Na Marinha? — perguntou, pasmo — Quer me enviar para longe

da Inglaterra? Desterra-me? — Inspirou, profundamente.

Sua voz pastosa fez com que John lançasse uma maldição em voz

baixa.

—Não penso em pagar por nenhum outro excesso. Acabou-se sua

libertinagem às minhas custas. Não vai colocar-se em nenhum duelo mais.

Não, enquanto fique um sopro de ar nos meus pulmões.

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Andrew se apoiou no respaldo da poltrona, completamente

estupefato. Seu pai falava de enviá-lo para longe, mas ele já não era um

menino, embora se perguntasse por que motivo quereria fazer algo assim.

Ele simplesmente se divertia um pouco, bom, devia reconhecer que um

pouco mais da conta.

—Não penso em ingressar na Marinha — respondeu, com tom

escandalizado.

—Andrew — começou John — não pode seguir com esta vida

dissoluta. Penso que o exército o fará sentar a cabeça muito mais que meus

sermões e ameaças.

—Ao diabo o exército! — exclamou, zangado — Não em penso me

sair da Inglaterra. Está louco, se acredita que embarcarei de forma

voluntária.

Seu pai se levantou da poltrona sem afastar os olhos de seu filho

mais novo. Suspirou com cansaço e deu um passo atrás para separar a

cadeira da mesa.

—Em uma semana, embarcará no Revenge. Eu, se fosse você, iria

preparando a bagagem. E, agora, boa noite.

Andrew olhou sua solene partida sem poder articular palavra.

Seguiu sentado na mesma postura de abandono e sem saber com exatidão

se a ordem paterna tinha sido real ou imaginada. Seu pai o punha de

patinhas na rua. Por quê? Não podia entender, não tinha feito nenhum mal.

Bom, isso não era de tudo certo, os dois últimos duelos causaram alarme na

família, até o ponto de que seus dois irmãos mais velhos fizeram causa

comum com seu pai para tentar interferir em seus assuntos, mas ele não

permitiu. A honra de um homem era inquebrável, e, se tinha que defendê-la

em um duelo, a defenderia.

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A essa tardia hora da noite, Andrew imaginou se deveria limitar-se

a conquistar as casadas do povoado em vez das nobres; mas ele não era

quem as escolhia, justamente o contrário, elas o escolhiam. Caíam rendidas

de amor. Eram mulheres fáceis que procuravam alguns momentos de prazer

com um homem que soubesse seduzi-las, e Andrew era um perito em fazê-

las sentirem-se especiais.

Suspirou, cansado pela falta de sonho. Custava-lhe centrar-se e

tomar resoluções, por isso decidiu ir à cama, para recuperar forças e poder

enfrentar seu pai, no dia seguinte. Ele não pensava em ir a nenhum lado e,

se para contentá-lo tinha de deixar de pular com alguma mulher durante um

tempo, raciocinou que o esforço merecia a pena.

Ao dia seguinte, começaria o princípio de seu celibato e o final dos

duelos a meia-noite.

Com essa resolução em mente, levantou-se da poltrona e tomou o

mesmo caminho que seu pai, uns momentos antes.

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CAPÍTULO 2

John Beresford ficou um momento parado na soleira da porta da

biblioteca. A mulher estava de costas à janela, levava uma capa negra e

retorcia as mãos em um gesto compulsivo que o fez compreender quão

nervosa estava. Inclinava a cabeça, que inclinava um pouco para o ombro

esquerdo ao tempo que murmurava uma oração em voz baixa.

John deu os últimos passos, entrou na estadia e se aproximou dela.

—Desejava ver-me? — A mulher elevou o rosto, bruscamente, ao

ouvir sua voz, e ele pôde ver, então, quão jovem era.

Tinha o rosto redondo, e a palidez de suas bochechas era notável. A

moça qualificou-a assim porque lhe resultava impossível precisar sua

idade, sustentava-lhe o olhar com a submissão própria da servidão, embora

com a suficiente maturidade para conter seu medo.

—Procuro o senhor Andrew Beresford — disse ela, com palavras

medidas, em um tom muito suave.

John se surpreendeu com seu pedido.

—Deduzo de sua petição que conhece meu filho. — As pupilas da

jovem brilharam incômodas — Que deseja dele?

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—Está aqui? — John negou levemente, sem afastar seus olhos da

garota, que tinha incrementado os movimentos de suas mãos e mordia os

lábios nervosa — Preciso vê-lo com urgência!

—Diga-me por que o busca, e eu lhe transmitirei sua mensagem,

assim que retorne a Whitam Hall.

Ela piscou várias vezes.

—O que me traz aqui é um assunto privado que devo tratar

unicamente com ele.

Seu tom tinha subido de volume. John estava cada vez mais

intrigado.

—Meu filho não está em casa.

Suas palavras fizeram com que a moça deixasse cair os ombros

abatida, e soltou um suspiro de pesar claramente audível. Tinha o

semblante decomposto, e John se fixou na mão que levou a garganta para

conter um gemido. As sombras azuis sob seus bonitos olhos castanhos

evidenciavam uma profunda vacilação, como se não soubesse o que fazer a

seguir.

—Precisa de ajuda? — Sua pergunta soou sincera, e ela semicerrou

os olhos, como se considerasse a alternativa.

—Não posso perder mais tempo! Tenho de voltar com minha

senhora! — exclamou, com um fio de voz, e voltou a retorcer as mãos em

um intento de mantê-las ocupadas — Pode enviar um lacaio, para que tente

localizá-lo? Preciso falar com lorde Andrew para lhe entregar algo muito

importante.

John se fazia um montão de perguntas sobre a moça. Não era nobre,

bastou-lhe uma olhada para sabê-lo. Embora se movesse e se expressasse

com uma correção aprendida possivelmente na adolescência, sua forma de

falar denotava que fora educada por uma senhora benevolente. Tinha um

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acento como do sul da Espanha, possivelmente Sevilha ou Cádiz, embora

não pudesse precisá-lo. Um movimento na poltrona de pele fez com que

John desviasse os olhos da jovem a alguém que acabava de dar um salto

para ficar em pé. Não se precavera de que a moça não estava sozinha.

—Querida, despertei você? — A menina assentiu em resposta e, à

medida que avançava para onde estavam os dois adultos, a surpresa de John

aumentou.

A pequena andava muito erguida para sua idade. Uma capa de

veludo vermelho cobria seu corpinho. O capuz, que levava posta, tampava

seu rosto quase por completo. Como não via bem, ao caminhar, a jogou

para trás e, quando o fez, deixou ao descoberto uns cachos negros tão

formosos que John esteve a ponto de soltar um assobio de assombro. A

menina era de uma beleza excepcional, comovedora. Seu pequeno rosto

com forma de coração era aristocrático, e, quando seus olhos azuis se

cravaram nele, pareceu-lhe que estava contemplando um anjo.

Onde tinha visto antes esse olhar...?

—Desculpe-me, lorde Beresford, mas preciso falar com seu filho

logo — voltou a insistir a jovem, mas John não podia afastar os olhos da

pequena, que se deteve a um passo dele.

Inclinou-se até ficar em cócoras em frente a ela e a observou muito

atentamente. Tinha a pele muito branca, por isso, o negro de seu cabelo

realçava a cor celeste de seus olhos, emoldurados por longas e espessos

cílios. Como podia uma menina ser tão adorável?

—Olá, meu nome é John, e você? — Ela piscou várias vezes, sem

decidir-se a aceitar a mão que lhe estendia — Bem-vinda a Whitam Hall.

A jovem decidiu intervir.

—Permita que faça as honras, lorde Beresford. — Mas John seguia

de cócoras, olhando a pequena, com supremo interesse — Apresento-lhe

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Rosa Catalina Branca de Lara. — Ele a escutava sem afastar os olhos do

rosto infantil.

—Tem um nome muito longo para ser tão pequena — disse John à

menina, que tinha aceitado sua mão.

—Sua neta, lorde Beresford.

John se levantou, de repente, e olhou para a moça com olhos

exagerados; uns segundos depois, voltou-os a cravar na pequena.

Dissera sua neta!?

—É uma brincadeira?

A jovem puxou um envelope lacrado do bolso de sua capa negra e o

estendeu para ele.

—É uma carta de minha senhora para lorde Andrew Beresford.

Tenho que entregá-la em pessoa e deixar a pequena a seu cargo.

John não saía de seu assombro. Aquela preciosa criatura era filha de

Andrew?

—Quem é a mãe? — A pergunta de John não admitia evasão

alguma.

—Rosa María Sofía de Lara e Guzmán — respondeu ela, sem

vacilar.

Ele piscou atônito, antes de falar:

—Os Lara de Sevilha? Seu tio é o duque de Fortaleza? —

perguntou, embora conhecesse a resposta.

A moça afirmou com a cabeça, e John pensou a toda velocidade.

O duque de Fortaleza, Alonso de Lara, era inimigo inveterado do

tio de sua filha Aurora: Rodrigo de Velasco e Douro. Mãe de Deus! Que

diabos fez Andrew? A cólera começou a substituir a surpresa que o

embargava, mas, ao percebê-lo, a menina deu um passo para trás, e ele

amaldiçoou seu descuido, pois, de modo algum, desejava assustá-la.

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—Não é porque desconfie de sua palavra, senhorita... — John a

convidou a apresentar-se.

—Glória de Hernández e Romero. Trabalho para a senhora Lara há

vários anos.

—Compreenderá que necessito da confirmação de meu filho sobre

este assunto.

Mas o coração do John lhe dizia que a pequena era uma Beresford.

Concebida em uma das numerosas viagens de seu filho caçula à Espanha.

—Lorde Andrew Beresford é o pai da filha de minha senhora.

Trago sua certidão de nascimento. Também tenho que lhe entregar umas

competências, para que a reconheça legalmente na Inglaterra, assim como

documentos valiosos que minha senhora deseja que ele tenha, a partir de

agora.

—Onde está sua mãe? — A pergunta de John era bastante lógica,

dadas às circunstâncias — Por que não está aqui com ela?

A menina permanecia em silêncio, pega à saia da donzela e sem

afastar os olhos do rosto dele.

—Tem de ajudá-la, não pode negar. Meu Deus, minha senhora não

sabe o que fazer ou a quem recorrer!

John a contemplou, atentamente. A angústia da moça era autêntica.

Via-a debater-se em muitas dúvidas.

—Diga-me como pode ajudá-la meu filho.

Glória vacilou, durante um minuto longo e pesado, mas, finalmente,

se decidiu; ao fim e ao cabo, lorde John Beresford era o avô da pequena

Branca.

—Minha senhora foi presa e declarada traidora à Coroa da Espanha.

Será executada em breve.

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John procurou uma cadeira e se sentou, de repente. O sobressalto o

deixara sem capacidade de reação.

Tentou pensar em todos os aspectos da situação. Andrew havia

concebido uma filha com uma mulher pertencente a uma das famílias mais

influentes do sul da Espanha. Agora, a mãe da pequena estava acusada de

traição, e, em Whitam Hall, se encontrava a menina mais formosa do

mundo, com uns parentes que não conhecia. Algo tinha sentido? Que

demônios ocorria? E por que motivo ele não sabia absolutamente nada?

—Por favor, comece desde o começo — pediu, com uma careta

perplexa.

Glória vacilou um instante, mas, finalmente, aceitou. Tomou

assento na poltrona que havia frente à pequena mesa. A menina a seguiu, e

ela a acomodou sobre seu colo.

John seguia pensando em seu filho Andrew, nas consequências do

que fizera. Perguntou-se quando, como e onde conhecera irmã do duque de

Fortaleza. Alonso de Lara era o homem mais vingativo que existia.

No vestíbulo, se ouviram umas risadas, e lhe pareceu ouvir a voz de

Andrew. Olhou a moça e a pequena, que seguia em seus braços e se

levantou rápido para sair ao encontro deles.

—Irei em busca de meu filho, por favor, espere aqui.

Glória fez um leve assentimento.

John fechou os olhos ante o desastre que se erguia. Se o que a

jovem dizia era certo, se Andrew tinha uma filha, essa noite ia rodar uma

cabeça e tinha um nome: Andrew Beresford.

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—Onde está seu irmão? — Arthur olhou para seu pai, que tinha o

rosto sério. Ainda não tirara a capa negra nem as luvas de pele, e o

mordomo esperava para recolhê-los.

—Não pude convencê-lo para que retornasse comigo. Segue em

Portsmouth, nos jardins do porto, desfrutando de uma opereta satírica.

John inspirou, profundamente.

—Boa noite, lorde Beresford. — A amável saudação do jovem

McMillan fez com que deixasse de olhar a seu filho para observar ao moço

que era o melhor amigo de Arthur, desde que ambos estudaram na

universidade.

—Ao ouvi-los rir, pensei que Andrew havia retornado — explicou.

—Estou convencido de que chegará logo — respondeu Arthur.

John se disse que seu filho estava muito equivocado. Apesar da

conversa mantida dois dias atrás com Andrew na biblioteca e de sua

ordem, nada mudara. O jovem seguia com suas farras noturnas e seus

excessos.

—Arthur, vemo-nos na próxima semana.

Este se voltou para seu amigo e lhe sorriu para despedi-lo.

—Saúde lady McMillan de minha parte.

—Assim o farei.

—Lorde Beresford, Arthur, boa noite.

O jovem saiu pela porta com celeridade, e o vestíbulo ficou,

repentinamente, silencioso. Arthur olhava seu pai com interesse, porque o

notava ausente.

—Aconteceu algo grave? — perguntou, com um brilho de

preocupação nas pupilas.

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John inspirou e cravou seus olhos azuis em Andrew. E se

perguntou, de novo, por que motivo o mais novo era tão crápula, libertino e

irresponsável.

—Não vai acreditar nisso, mal posso acreditá-lo eu.

Arthur elevou uma sobrancelha com interesse, seu pai falava de

forma ininteligível.

—Não o compreendo.

John tinha um brilho estranho no olhar e uma determinação no

semblante, que o fez semicerrar os olhos, para observá-lo melhor.

—Prepare sua bagagem, partimos para Madrid.

Arthur o olhou atônito.

—Partir para a Espanha? Agora?

John tinha uma ideia. Sabia o que tinha de fazer para endireitar ao

amalucado Andrew e não ia hesitar nem um instante em levá-lo a cabo.

—Tenho de ajudar alguém — disse seu pai — Uma pessoa

importante para a família foi declarada traidora à Coroa espanhola, e devo

me entrevistar com o embaixador inglês em Madrid, e inclusive com o

duque de Fortaleza, se for necessário.

—Refere-se a Alonso de Lara? — perguntou Arthur, absolutamente

atônito.

—Por isso, tem que me acompanhar, preciso que me assessore em

alguns assuntos. Há aspectos legais que teremos que arrumar de Madrid.

—Não posso ir à Espanha agora. É uma loucura — respondeu

Arthur.

—Tem que ajudar seu irmão.

—Christopher?

—Não, Andrew — esclareceu John.

Arthur entendia cada vez menos.

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—Como?

—Explicarei isso tudo pelo caminho. Agora, ordene a Marcus que

prepare a bagagem, eu me encarregarei de escrever umas cartas e de que

disponham o Diabo Negro para nossa partida. Tenho que dar indicações ao

serviço e fazer uma visita breve a Christopher, para que vigie, em minha

ausência, esse vadio que tem por irmão.

De repente, John soltou uma gargalhada que pegou Arthur de

surpresa.

—Pai, está-me preocupando. — E era certo.

Olhou-o no rosto e viu um olhar decidido nos olhos claros.

—Deus escutou minha prece — disse John, mas o jovem Beresford

seguia sem compreender nada — Na biblioteca, se encontra o que

endireitará o rumo e o destino do Andrew. Enfim, um pouco de coerência e

normalidade em sua vida.

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CAPÍTULO 3

O ruído das cortinas ao serem corridas com brutalidade o fez

levantar a cabeça do travesseiro e gemer, um segundo depois. Era como se

o golpeassem com inusitada fúria contra uma bigorna. Sentia a garganta

ressecada e um gosto amargo no paladar. Tinha de permanecer quieto, para

que o estômago não o martirizasse. A cerveja do porto era realmente má, e,

agora, pagava as consequências de havê-la bebido.

—Volte a correr a cortina e fecha a porta ou será um homem morto

— ordenou Andrew, com voz estrangulada.

Marcus, o mordomo de Whitam Hall, estava acostumado a esse tipo

de vocabulário por parte do caçula dos Beresford.

—Tem visita — foi à direta resposta do homem.

Ele bocejou, sonoramente.

—Imagino que poderá atendê-la meu pai ou, em sua falta, Arthur.

—Algo assim é do todo impossível, porque nem seu pai nem seu

irmão se encontram em Whitam, neste preciso momento.

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Andrew amaldiçoou, em voz baixa.

—Que horas são?

—Faltam uns minutos para as oito.

—Faz apenas duas horas que me deitei! — bramou, zangado.

—Uma senhorita o aguarda, e seria uma descortesia muito grave

fazê-la esperar de forma desnecessária.

Ele voltou a soltar outra maldição. Não se sentia com forças para

receber ninguém.

—Que parta e retorne mais tarde!

—Isso é impossível senhor. É uma convidada muito especial. Seu

pai, lorde Beresford, deixou ordens explícitas sobre ela.

Andrew balbuciou de forma ininteligível. Parecia-lhe inaudito que

uma convidada se apresentasse na casa à uma hora tão inapropriada.

Marcus tirava os objetos de vestir do armário, sem dizer nada, tão

solene como sempre.

—Espero que o esforço valha a pena — disse ele, com voz

sonolenta.

—Posso lhe dizer que é uma moça preciosa — revelou, de repente,

o mordomo e, com essas palavras, avivou por completo seu interesse.

—Diz que é bonita? Como de formosa?

—A mais formosa que vi nunca, se me permitir isso.

—Confio em que não seja uma de minhas amantes despeitadas ou

uma bruxa enviada por meu pai para que me vigie, como vingança pessoal.

Pensou que seu pai era capaz de lhe enviar a uma matrona

desenquadrada, com tal de tirá-lo do leito. Quem diabos era aquela mulher,

para que ele tivesse de atendê-la a uma hora tão incomum da manhã?

—Duvido muito — respondeu o mordomo.

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—Que seja uma de meus amantes ou uma bruxa enviada por meu

pai para me vigiar?

—Rotundamente, a primeira questão, senhor.

Andrew acabou rindo. «Quem demônios em seu são julgamento

visita uma família respeitável às oito da manhã?», perguntou-se, ainda

meio adormecido, mas, de modo inconsciente, terminou de vestir uma

camisa branca e umas calças cinza.

Enrolou as mangas da camisa e prescindiu do lenço e o colete. O

rosto de Marcus refletiu de maneira bastante eloquente o que pensava de

seu traje desenvolto, mas ele estava desejando dar uma olhada na visita

para retornar à cama.

—Onde estão meu pai e meu irmão? — perguntou com interesse

genuíno.

—Lorde Beresford lhe deixou uma nota. ,

Andrew pensou que tudo era muito estranho. Seu pai não

acostumava sair da casa antes das dez da manhã, e por que motivo Arthur

se encontrava também ausente? Voltara para casa apenas um par de horas

antes que ele, e devia estar igual de esgotado.

Seguiu o mordomo pelo amplo corredor do segundo andar,

enquanto a cabeça zumbia; não pensava em beber uma cerveja mais nos

botequins do porto.

—Marcus, preciso de um café. — O homem lhe fez uma inclinação

de cabeça, ao tempo em que lhe sustentava a porta da sala de jantar, para

que entrasse — Desde quando se recebe as visitas na sala de jantar

familiar? — perguntou, completamente desconcertado.

Marcus se encolheu de ombros.

Andrew cruzou a soleira, mas a estadia estava vazia. Ali não havia

ninguém.

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—É uma brincadeira? — perguntou ao mordomo, que entrara justo

atrás dele. Marcus lhe assinalou o extremo da mesa, onde havia sentada

uma menina pequena.

Andrew cravou atônito os olhos nela.

Mal chegava à mesa, por esse motivo, tinha escapado a seu

escrutínio anterior. Pôs as mãos nos quadris e, interrogante, olhou para o

mordomo.

—O que significa isto? — perguntou, com voz controlada.

—A nota de seu pai, senhor. — Marcus lhe estendeu um envelope,

que ele se apressou a agarrar — Deseja seu café bem forte, como de

costume?

Andrew já não lhe respondeu. Tomou assento em frente da menina,

que o olhava com olhos sérios. Com a surpresa, se esqueceu da norma mais

elementar de todas: saudar, mas antes que pudesse abrir a boca, Marcus já

estava ao lado da criança com uma jarra cheia de chocolate quente.

—Senhorita Lara, deseja seu chocolate com leite? — A menina

olhou o mordomo e lhe fez uma ligeira inclinação com a cabeça, aceitando

— Os pães-doces estão deliciosos, acredito que gostará.

Andrew elevou uma sobrancelha, enquanto escutava o falatório de

Marcus. Em todos os anos que o conhecia, nunca o ouvira falar com tanta

candura com uma criança, e menos em um idioma que não fosse inglês, por

isso, concluiu que seu esforço merecia um aplauso.

—Senhorita Lara? — repetiu ele, em um perfeito espanhol, muito

interessado.

A menina cravou nele seus olhos azuis de uma forma tão intensa

que fez com que lhe encolhesse o estômago.

—Está muito longe de casa, não é?

A pequena seguia em silêncio.

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—Marcus — disse, de repente. O mordomo o olhou — que tragam

duas almofadas à senhorita Lara; mal a vejo a frente.

O homem fez uma inclinação de cabeça e partiu para cumprir o

encargo. Andrew rasgou o envelope para ler a nota, enquanto mexia o café

de sua xícara de forma mecânica.

O mordomo retornou com duas grandes almofadas. Levou-as junto

à menina e a levantou, para colocá-las sobre a cadeira. Logo, a sentou sobre

elas e lhe aproximou os pães-doces, para que lhe resultasse fácil pegá-los.

A pequena já levava um à boca, quando, de repente, se ouviu uma forte

exclamação e uma tosse seca.

Andrew engasgara com o primeiro gole de café, ao ler a nota de seu

pai. Seguia tossindo com dramalhões, por isso, Marcus se apressou a lhe

encher um copo com água.

—Más notícias? — perguntou o mordomo, com voz a tão seca

como seu rosto.

Andrew seguiu tossindo, sem afastar os olhos da menina, que

sustentava o pão-doce a meio caminho da boca.

—Pode acreditar que embarcaram ontem noite no Diabo Negro?

—É óbvio.

Deixou de olhar a menina, para elevar seu rosto para Marcus.

—Sabia?

—Lorde Beresford me deixou indicações, antes de sua partida —

respondeu o homem.

Andrew cada vez entendia menos.

Na nota, seu pai lhe explicava brevemente que era imperativo que

se ocupasse da pequena. Ele cravou de novo seus olhos nela, que o olhava

do outro extremo da mesa com imensa cautela; ainda não tinha provado o

pão-doce que sustentava entre seus dedinhos. Seu pai o deixava a cargo de

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uma menina da qual não sabia absolutamente nada. Simplesmente lhe dizia

que sua mãe não podia ocupar-se dela e que ele partia a Espanha com

Arthur para tentar resolver uma questão de vida ou morte. Retornariam ao

cabo de umas semanas como muito.

As indagações apareciam em sua mente, e o mal-estar de seu

estômago crescia a passos aumentados. Amaldiçoou a cerveja e as

empregadas do botequim do porto.

—Já pode dar a primeira mordida — disse, de repente.

A menina tomou suas palavras como uma ordem e, imediatamente,

levou o pão-doce à boca. Mastigou-o, lentamente, sem fazer ruído e sem

gestos exagerados, como era próprio em pirralhos de sua idade.

Andrew se dedicou a esquadrinhá-la com olho crítico.

Seu pai devia ter bons motivos para empreender uma viagem tão

repentina, mas se perguntou por que o deixou aos cuidados da pequena. Ele

não se acreditava capaz de uma ação de semelhante magnitude e, de novo,

se perguntou que assuntos devia resolver seu pai na Espanha.

O brilho de seus olhos azuis se empanou, durante uns instantes, ante

uma lembrança dolorosa. Fazia cinco anos que Andrew retornara de

Córdoba, e, em duas ocasiões, voltou para a cidade sulina para tentar

convencer a mulher de sua vida de que o aceitasse; mas ela não o recebera

nem quisera encontrar-se com ele, que, com essa fria negativa, recebeu o

maior golpe de sua vida. A única mulher que tinha amado de verdade o

tratara com pouca atenção, sem pensar em seus sentimentos, no muito que

a amava e necessitava.

Retornou a Inglaterra, mas já não pôde ser o mesmo de antes. Seu

pai lhe perguntou, em incontáveis ocasiões, o motivo de seu louco

comportamento como resultado de sua volta, mas ele não podia lhe revelar

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a profunda ferida que tratava de curar e que não podia esquecer: amar um

impossível.

Seria sempre um aviso de sua estupidez, de sua imaturidade e sua

loucura.

—Como se chama? — perguntou à menina, com voz suave.

Ela hesitou um instante. Logo, limpou os lábios com o guardanapo

dobrado, com um gesto tão sério e comedido que Andrew estreitou os

olhos, estranhando.

Comportava-se como uma perfeita dama, apesar de sua pouca

idade.

—Meu nome é Ro... rosa Ca... Catalina Branca de Lara —

gaguejou, ao pronunciá-lo, e estranhou, absolutamente. Por que punham

nas crianças nomes tão longos? — Mas me chamam de Branca.

Ao escutar o primeiro nome, o sangue lhe gelou nas veias durante

uns segundos. Andrew recordava-se perfeitamente de uma Rosa espanhola

cheia de espinhos, tantas, que uma das feridas que lhe provocara ainda

sangrava, e muito temia que não deixaria de afogar suas ilusões e

esperanças em um atoleiro de indiferença.

—Conheço um homem malvado que se chama Lara — disse, de

repente, e a menina abriu os olhos como pratos — Embora imagine que não

terá nada que ver com ele, não é?

—Espero que não trate de intimidá-la. — A voz de seu irmão às

suas costas o fez voltar à cabeça — Senhorita Lara, sou Christopher

Beresford.

Aproximou-se dela, tomou a mão infantil e a beijou com elegância.

A pequena fez um gesto com a cabeça tão régio, que Andrew se perguntou

se estaria acostumada a esse trato diferente masculino. Quando se precaveu

de que tinha a boca aberta de surpresa, fechou-a, morto de calor. Como era

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que seu irmão sabia o sobrenome da menina, se ele acabava de descobri-lo?

E, o mais surpreendente, que fazia em Whitam tão cedo?

—Marcus, eu também tomarei um café — disse ao mordomo.

Este saiu da sala de jantar familiar em absoluto silencio.

—Pai e Arthur partiram a Madrid — explicou Andrew a seu irmão

mais velho.

Christopher tomou assento ao lado da menina, que deixara sua taça

de chocolate para olhar com interesse o sorridente rosto masculino.

—E eu tenho que cuidar desta jovenzinha até sua volta. — As

palavras de Andrew tinham divulgado como uma queixa resignada.

Christopher agarrou a xícara de café que lhe deu Marcus.

—Um pouco de responsabilidade em sua vida não lhe virá mal —

espetou, de repente.

Andrew estalou a língua com chateio, ao escutá-lo. A palavra

responsabilidade estava engasgada fazia muito tempo.

—Como está minha cunhada? — perguntou a Christopher.

Os olhos de este brilharam.

—Imersa de cheio na decoração de nosso lar. — Andrew sorriu

pelo comentário — E me voltando louco, como sempre.

Andrew se animou, ao vislumbrar uma solução a seu problema.

—Poderia levar a senhorita Lara a sua casa. Ágata poderia ocupar-

se dela, até a volta de pai e de Arthur.

Christopher negou com a cabeça antes inclusive de que seu irmão

terminasse a frase.

—Disto não poderá escapar — disse, muito sério — Pai o designou

como protetor desta menininha, e penso em me assegurar de que cumpra

seu encargo à perfeição.

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—Uma mulher cuidaria dela muito melhor que eu — replicou ele,

com sinceridade.

—Isso é indiscutível, mas vê alguma mulher em Whitam Hall, salvo

as criadas? E admitirá que não podem deixar seu trabalho para ocupar do

seu.

Andrew amaldiçoou baixo.

—Contratarei uma babá para que se dela ocupe.

Christopher assentiu com a cabeça com gesto sério.

—Estou de acordo em que terá que procurar uma babá competente,

mas, até então, é sua responsabilidade.

—Tenho compromissos que atender.

—Falamos de farras, festas e duelos em metade da noite?

Andrew estreitou os olhos e o olhou, com aborrecimento.

—Os duelos são consequências não desejadas, mas lhe esclareço

que não é um delito desfrutar da vida.

Christopher piscou, assombrado pelo comentário de seu irmão.

—Andrew, você não desfruta da vida, devora-a! Mas de uma forma

errônea, e pai sofre muito cada vez que cabe a possibilidade de que o

matem em um desses duelos aos quais você adora assistir; e não como

mero espectador, mas sim como um participante ativo.

Ele inspirou fundo, não queria iniciar uma disputa com seu irmão

diante da menina.

—É preciosa — disse, de repente, Christopher.

Andrew devolveu sua atenção à pequena. A longa juba de cachos

negros era espetacular e contrastava belamente com a cor de seus olhos, de

um azul tão claro como um dia do verão. Tinha os lábios perfeitamente

desenhados e esboçavam um sorriso muito suave; recordaram-lhe as pétalas

de uma rosa a ponto de florescer.

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—Perguntou-me quem será sua mãe — disse, como para si mesmo.

—Indubitavelmente, deve ser uma mulher muito bela —respondeu

Christopher.

Andrew estava de acordo com sua apreciação. Uma menina tão

bonita devia ter uma mãe igual ou mais bela, se fosse possível.

—Não posso imaginar que seu pai não possa ocupar-se dela, de

protegê-la, que esteja de acordo com deixá-la aos cuidados de uns

completos desconhecidos.

Christopher pigarreou algo incômodo.

—Não me cabe a menor dúvida de que seu pai deve ser... — Calou

um momento, e Andrew se precaveu de que tinha na boca um tom

zombador — Como se diz em espanhol? Ah, sim, um irresponsável de

cuidado.

Ele o olhou ao perceber seu tom pedante. Christopher tinha nos

olhos um brilho malicioso que o desconcertou.

—Conhece seu pai? — Seu irmão arqueou uma sobrancelha, ao

ouvir a pergunta — Sabe algo que eu ignoro? Agradeceria toda a

informação que possa me dar.

—Só imagino como é. E penso que um homem em seu são

julgamento não permitiria que a esta preciosidade ocorresse nada mal.

Andrew estava de acordo. Disse:

—Possivelmente, esteja preso ou desaparecido... — Christopher

encolheu os ombros — E sinto muita curiosidade por saber o motivo da

repentina marcha de pai e de Arthur para ajudar à família desta criatura.

—Pai é um bom cristão — recordou Christopher — Agora tenho

que deixá-lo.

—Parte? — perguntou Andrew, atônito.

—Devo resolver uns assuntos em Devon antes das doze.

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—Eu gostaria de acompanhar você.

—Não pode. Sua tarefa é proteger a uma menor.

—Não é preciso que me recorde isso.

—Estarei vigiando você.

—Isso soa a ameaça.

Christopher já não respondeu. Olhou para a pequena, que se

mantinha em silêncio e sem mover-se, enquanto eles dois estiveram

conversando. Nenhum protesto, nenhuma queixa. Era uma menina

admirável.

—Quantos anos têm? — perguntou Christopher, de repente. Ela

levantou sua mãozinha e lhe mostrou quatro dedos — Meu filho estará

encantado de brincar com você, você gostaria? — A menina fez um gesto

afirmativo com a cabeça — Então, o trarei logo para que o conheça. — Um

segundo depois, agarrou-lhe a mão e a beijou com soma cortesia — A seus

pés, senhorita Lara.

—Dê saudações a minha cunhada e um beijo a meu sobrinho —

disse Andrew.

Christopher se voltou para ele com uma advertência em seus olhos

claros.

—Cuide dela ou terá que se ver comigo.

—Ameaça-me ou me adverte? — perguntou, aborrecido.

—Tome como quiser, mas não esqueça minhas palavras.

Depois de sua marcha, a sala de jantar ficou, repentinamente,

silenciosa.

A menina piscava, sem afastar seus olhinhos do rosto de Andrew.

Tinha as mãos recolhidas no colo e os ombros erguidos. Sua postura, séria

e decidida, fez com que ele a olhasse estranhando ainda mais. Por que se

mostrava tão comedida?

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—O que você gostaria de fazer? — perguntou, com curiosidade.

Por sua parte, adoraria deitar-se de novo na cama e dormir até a noite, mas

algo assim era completamente impossível dadas às circunstâncias —

Cavalgar? Brincar? Dormir?

A última pergunta a tinha formulado com um cômico tom de

esperança.

—Quero ir com mamãe — respondeu ela, com um fio de voz.

A tristeza de seu tom cravou ao Andrew diretamente no coração. O

que podia dizer para tranquilizá-la?

—Lamento, mas agora é impossível.

Os olhos infantis se encheram de lágrimas, que a pequena conteve.

Alarmou-o o controle que exercia a menina sobre seus sentimentos.

—Embora prometa que logo a verá.

Ela mordeu o lábio inferior, como se meditasse suas palavras.

—Começamos desde o começo? — perguntou Andrew, com um

sorriso e um segundo depois, apresentou-se com suma cortesia — Meu

nome é Andrew Beresford e prometo cuidar de você, até que possa se

reunir de novo com mamãe.

Depois de escutar seu nome, Branca assentiu com a cabeça e lhe

sorriu em resposta. O brilho cândido de seus olhinhos azuis o fez enrugar a

fronte com estranheza.

—Falaram-lhe que mim?

De novo, a cabeça dela se inclinou assentindo. Andrew supôs que

teria sido seu pai, antes de ir, e o agradecia. Quão último precisava era

cuidar de uma menina assustadiça e desconfiada.

—Gosta de sair a cavalgar? — Ele precisava montar para limpar-se.

Tinha a mente feita um matagal.

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43

A pequena não respondeu em seguida, mas, uns momentos depois,

fez um gesto afirmativo com a cabeça.

—Vamos, então, antes que o parque se encha de carruagens.

Andrew se levantou da cadeira e se encaminhou diretamente para a

menina. Estendeu-lhe os braços, para comprovar se os aceitava. Branca lhe

estendeu também os seus, e ele a agarrou para sair ao vestíbulo.

Seu pai poderia ter muitas queixas sobre ele, mas Andrew

indubitavelmente sabia como entreter uma criança, e pensava em fazê-lo,

imediatamente.

Ajudou-a a vestir uma capa vermelha e a atou ao pescoço com um

grande laço. Logo, lhe pôs o chapéu e meteu umas pequenas luvas no bolso

da jaqueta de montar, se por acaso ela necessitava delas mais tarde. Já nas

quadras, subiu-a sem esforço em uma dócil montaria. Tinha escolhido uma

égua mansa para o passeio. Quão último pretendia era assustá-la com um

animal brioso.

A menina se segurou ao pomo da sela e passou a perna por cima,

para cavalgar estilo amazona.

—Não vai montar de lado! — O tom de Andrew soou assustado —

Pode cair.

—Mamãe diz que as damas devem montar assim — explicou a

menina, com voz suave.

Embora ceceasse, pronunciava claramente todas as palavras.

—Quantos anos têm? — perguntou, de repente.

Na sala de jantar, não vira a resposta a essa mesma pergunta

formulada por Christopher. As largas costas de seu irmão a abafaram,

quando lhe mostrava os dedinhos.

Branca fez exatamente o mesmo, levantou a mão e lhe mostrou

quatro dedos.

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—Incrível! — exclamou ele, com um amplo sorriso — É muito

pequena para se expressar tão bem.

Ela piscou, sem compreender. Andrew olhou sua capa vermelha e

as botas combinando. Parecia um quadro pintado pelo Miguel Anjo.

—Logo, completarei cinco.

—Sabe conduzir um cavalo? — A menina negou com sua

cabecinha, e vários cachos ondularam no compasso de seu movimento —

Sempre montou de lado? — insistiu.

Ela não respondeu, mas Andrew tampouco esperava uma resposta.

Segurou as rédeas, apoiou o pé no estribo e, com um forte impulso, montou

justo atrás da pequena. Colocou-a bem sobre a cadeira e empreendeu um

trote ligeiro.

No último momento decidiu não levá-la até o parque de

Portsmouth, dariam um passeio pelos arredores do Whitam Hall e

retornariam para casa.

Com uma mão, segurou-a pela pequena cintura, e a menina apoiou

as costas no estômago dele e começou a rir, enquanto a égua iniciava um

galope controlado pelas peritas mãos de Andrew.

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CAPÍTULO 4

Tivera várias entrevistas e rechaçou todas as candidatas.

O motivo principal era que não falavam espanhol. Andrew

necessitava de uma babá que pudesse comunicar-se com a pequena em sua

própria língua, que lhe inspirasse confiança e ficasse com ela à noite,

enquanto ele cumpria com seus diversos compromissos, que de momento

não podia atender.

Sentado na poltrona, contemplou Branca, deitada de barriga para

baixo sobre o tapete, perto da lareira. Completamente absorta, pintava os

desenhos de um caderno que lhe dera. Ainda estranhava que não sentisse

nenhuma desconfiança dele. Aceitou sua companhia com uma facilidade

assombrosa, e o surpreendia gratamente que nunca se queixasse.

Intrigavam-no seus prolongados silêncios. Não havia conhecido nenhuma

criança tão séria, comedida e formal. Sabia que Branca estava na mesma

habitação que ele porque, de vez em quando, desviava os olhos do livro que

estava lendo para a pequena figura deitada no chão.

Sem se dar conta, Andrew sorriu.

Branca era a antítese de um menino alegre e despreocupado. Agora

que a conhecia melhor, dava-se perfeita conta da falta de espontaneidade e

do excesso de contenção que advertia em sua personalidade severa. Grave

de atitude e comportamento. Tinham-na ensinado a ser assim do berço, e se

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perguntou que pais educavam de maneira tão rígida uma menina tão

formosa.

Como se pressentisse que a observavam, Branca deixou de pintar

no caderno e cravou os olhos em Andrew. E lhe sorriu de uma forma tão

encantadora e doce, que lhe deu um tombo o coração.

As crianças de olhar tenro eram sua perdição!

Seguia refletindo sobre a viagem de seu pai a Espanha com seu

irmão sem lhe dizer nada, mas, com seu habitual bom humor, optou por

despreocupar-se. Deduziu que John pensara nele para cuidar da menina

porque não se confiava no caráter sério e seco de Arthur. Andrew, em

troca, adorava crianças e desfrutava muitíssimo, ao escutar suas línguas de

trapo, suas ocorrências graciosas, carentes de superficialidade, e, por esse

motivo, não se sentia muito zangado com seu pai por deixá-lo de babá.

Arthur teria organizado um motim, mas ele desfrutava com os pirralhos.

Adorava seus sobrinhos e estava acostumado a tratar com eles.

—Gostaria de uns pães-doces quentes? — perguntou. Branca o

olhou fixamente e assentiu, com expressão solene — Então, pedirei a

Marcus que nos prepare isso. Voltarei logo.

Branca olhou para Andrew, enquanto saía da biblioteca para dar as

pertinentes ordens ao mordomo, e, ao cabo de uns segundos, concentrou-se

de novo no desenho que estava pintando.

—Olá. — A saudação infantil a sobressaltou.

—Olá — correspondeu, com amabilidade.

Contemplou o menino loiro que se sentava a seu lado com olhos

curiosos. Não o ouviu entrar na sala.

O pequeno Christopher olhava os pés nus dela estranhando, um

segundo depois, olhou seus próprios pés, calçados com botas de couro.

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—Tem frio? — Branca negou com a cabeça — Onde estão? —

perguntou ele, assinalando com seu dedo indicador os pequenos pés.

—Meus zapatos? — perguntou, com interesse.

Christopher assentiu.

—Dizem-se sapatos — a corrigiu, dando-se importância, como se

ela não soubesse pronunciar bem as palavras.

—Zapatos — voltou a dizer Branca, extremamente intrigada com o

menino que se interessava por seus pés nus.

—Sa-pa-to — insistiu ele, muito sério.

Ela riu com olhos alegres; era a primeira criança que via em muito

tempo. Desceu os olhos, do rosto simpático à camisa de um vermelho

chamativo. Tinha bordados uns patos de cor branca que lhe chamaram

poderosamente a atenção.

—Eu gosto de sua camisa — disse, de repente. Ele baixou seus

olhos azuis para olhar — Quer pintar aqui? — convidou-o com um sorriso,

lhe assinalando o caderno. Chris lhe fez um gesto afirmativo — Quer a cor

asul? — ofereceu-lhe, com amabilidade.

—Azul — a voltou a corrigir ele, com a testa franzida.

—Asul — repetiu Branca, com olhos brilhantes.

Da porta, Christopher escutava a conversa de ambos os meninos.

Ela tinha o sotaque próprio da Andaluzia, algo completamente diferente do

que estava acostumado seu filho, que falava espanhol com acento francês.

Os dois voltaram à cabeça para a porta de entrada à biblioteca.

—Apresentou-se com correção? — perguntou Christopher a seu

filho. O pequeno assentiu com a cabeça — Recorda que, em presença de

uma dama, deve se mostrar educado.

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Andrew e seu irmão mais velho tomaram assento no amplo sofá de

pele. Christopher afastou um livro e uma estatueta da mesa auxiliar, para

que Marcus depositasse nela a bandeja com o chá e os pães-doces.

—Por que não veio Ágata? — perguntou Andrew, estranhando a

ausência de sua cunhada.

—Minha casa é um campo de batalha. Está decorando uma das

habitações para o bebê. Já sabe que os quartos estão virtualmente vazios,

salvo o nosso e a do pequeno Christopher, e precisamente esta tarde veio a

Pheasant House um de quão restauradores contratamos.

—Pai ainda não se acostumou a sua ausência. Segue afirmando que

Whitam Hall é muito grande. Aqui estariam muito bem. Sentimos

saudades, ao menos, eu sinto falta desse diabinho.

Christopher soube que seu irmão se referia ao pequeno Chris. E, ao

voltar à cabeça para olhar a seu filho, viu que ambos os meninos estavam

pintando no caderno que Branca sustentava em seu colo.

—Já falamos isso com pai em seu momento. Ágata esteve de

acordo em fazer realidade meu sonho de construir Pheasant House. —

Christopher calou um momento e contemplou seu irmão, que olhava com

doçura os dois pequenos sentados no tapete. Tinha o mesmo olhar

malicioso de quando era menino e planejava alguma travessura — É muito

boa, verdade?

Andrew fez um gesto afirmativo.

—E acabo de me precaver da falta que lhe faz estar com outras

crianças — respondeu Andrew.

—Encontrei uma babá para a senhorita Lara, virá na próxima

semana.

As sobrancelhas de Andrew se arquearam.

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—Eu entrevistei hoje um total de quatro, mas nenhuma falava

espanhol. Tive que descartá-las, apesar dos bons créditos que tinham.

O rosto de Andrew mostrava a impotência que havia sentido.

—Clare, a senhora Grant, está encantada de cuidar de Branca, até

que a mãe da pequena possa encarregar-se dela — disse Christopher.

—Fala espanhol? — Seu irmão assentiu com a cabeça — Como

encontrou uma babá tão depressa?

—É a que se ocupa de seu sobrinho. Ágata acredita que aqui, em

Whitam Hall, é mais necessária que em nosso lar. Ela ainda se pode ocupar

do Chris. Mas a senhora Grant deve resolver uma questão familiar em

Devon, antes de vir a Whitam: calculamos que poderá fazê-lo no começo

da próxima semana.

O rosto de Andrew mostrou o imenso alívio que sentia.

—Ainda me pergunto por que pai me deixou aos cuidados de uma

menina tão pequena e da que o ignoramos absolutamente tudo.

—Isso não é certo — o corrigiu Christopher — Pai conhece os pais

de Branca. Estão em um grave apuro e pretende ajudá-los, por isso teve que

ir a Espanha de forma tão repentina. Ali precisa do conselho e o

assessoramento de Arthur em alguns assuntos legais, e, por isso, deixou

para você o cuidado da pequena.

—Tão grave é a situação? — Andrew estava, realmente,

interessado.

Seu irmão decidiu sair pela tangente; não pensava em responder a

sua pergunta.

—O conde Falcon espera nossa assistência ao jantar que dará na

próxima sexta-feira em Selby House.

—Não esqueci. Embora ignorasse que assistiria — respondeu

Andrew.

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—Vou representar nosso pai.

Essas palavras incomodaram Andrew.

—Sou capaz de substituí-lo perfeitamente em qualquer ato,

enquanto esteja ausente — objetou, com voz seca.

Christopher não esperava que seu irmão se ofendesse.

—Pai está muito magoado por sua atitude destes últimos meses.

Andrew teve o bom tino de mostrar-se perturbado, ao ouvir sua

recriminação, e admitiu para si que tinha toda a razão, embora decidisse

mudar de assunto.

—São crianças muito bonitas. — Seu irmão esteve completamente

de acordo — Pode imaginar um compromisso futuro entre o pequeno Chris

e a senhorita Lara?

Christopher abriu a boca para dizer algo, mas a voltou a fechar em

seguida. Indubitavelmente, Andrew falava em brincadeira, mas não achou

nem pingo de graça no comentário.

—A última coisa que desejaria neste mundo — respondeu, ao fim

— é ter o pai dessa criatura como sogro. Acredito que terminaria

estrangulando-o com minhas próprias mãos.

Seu irmão piscou ,ao notar seu tom imperativo.

—Bom, para te ser franco, de estar em seu lugar, pensaria

exatamente igual a você. Um homem que não é capaz de proteger e cuidar

o que é seu não merece nenhum respeito — respondeu, mas Christopher

não pôde dizer nada mais, porque Marcus entrou na biblioteca nesse

preciso momento. Levava uma enorme bandeja de prata com diferentes

pratos cheios de doces. Deixou-a com suavidade sobre a mesinha auxiliar.

—Obrigado, Marcus — disse Christopher.

O mordomo fez a ambos os homens uma inclinação de cabeça,

antes de partir.

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—Venham, meninos, é hora de lanchar.

O pequeno Chris foi muito mais rápido que Branca, que primeiro

vestiu as meias três quartos e, depois, os sapatos com uma cerimônia que

quase conseguia deixar Andrew irritado. Tudo nela era meticuloso,

consciencioso, até um ponto exasperante. Moveu-se com passos medidos,

suaves, depositou o caderno e os lápis de cores em cima da enorme

escrivaninha e, depois, se encaminhou para onde estavam os três sentados.

Quando chegou à poltrona vazia do lado de Christopher, sentou-se, e

arrumou as possíveis rugas da saia de seu vestido azul, antes de olhar os

dois homens que a contemplavam estupefatos.

—É sempre assim tão cuidadosa em tudo? — Não precisou que

Andrew respondesse, porque seu olhar foi bastante eloquente — Acredito

que é bom para você — acrescentou Christopher — inclusive, é possível

que lhe ensine boas maneiras e comportamento.

Nesta ocasião, Andrew bufou, muito ofendido.

Ambos os irmãos falavam em inglês.

—Cada coisa que faz, como vestir a capa ou os sapatos, limpar-se

com o guardanapo, pentear o cabelo, é de uma meticulosidade irritante.

Branca observava o pequeno Chris, que tinha levado dois pães-

doces à boca, ao mesmo tempo, e os mastigava com a boca aberta. O

açúcar caía sobre a calça e os sapatos, sem que se preocupasse nem um

pouco.

—Senhorita Lara, deseja um pão-doce quente? — perguntou

Andrew, com suma cortesia. A pequena assentiu com a cabeça e aceitou o

prato que lhe estendia. Assegurou-se primeiro de que todos tivessem um

doce na mão, antes de agarrar o seu e dar a primeira mordida. Logo, o

mastigou lentamente, sem fazer ruído. Agarrou o guardanapo que lhe

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ofereceu Christopher e limpou alguns grãos de açúcar do lábio superior e o

deixou depois perfeitamente dobrado sobre seu colo.

—Se não o vir, não acredito! — exclamou Christopher, atônito.

—E isto não é nada, teria que vê-la no almoço — respondeu

Andrew — Estou convencido de que poderia cortar um camarão-rosa com

faca e garfo em segundos.

—Verdadeiramente assombroso!

Andrew arqueou uma sobrancelha, ao ouvir a exclamação de seu

irmão, e teve vontade de provocá-lo.

Com um sorriso avesso, espetou-lhe:

—Não entendo por que se surpreende tanto, é tão meticulosa quanto

você. Nem imagina o quanto recorda você. Se tivesse uma filha, não

pareceria mais, acredite.

Essa vez, que piscou com desconcerto foi o próprio Christopher,

porque seu irmão nem imaginava o perto que estava da verdade. Branca

não era sua filha, mas, sim, sua sobrinha. E, de repente, soltou uma sonora

gargalhada, ante o absurdo que lhe parecia tudo. Ambos os meninos o

olharam, sem compreender sua hilaridade, mas se somaram à alegria com

seus respectivos sorrisos.

Andrew lhes serviu chocolate quente e doce na xícara. O pequeno

Chris o bebeu de um gole, mas Branca tomou colherada a colherada, sem

dizer nada, olhando com seus grandes olhos o menino que sorvia de sua

taça com rapidez.

—A meu sobrinho não viriam mal alguns exemplos de maneiras —

prosseguiu Andrew — Possivelmente, teria que passar um pouco mais de

tempo com Branca.

Para ouvir seu nome, a menina cravou as pupilas no rosto de

Andrew, que lhe piscou o olho, com gesto cúmplice.

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—Não duvido que a presença da senhorita Lara seja muito

importante na vida dos Beresford. Nada voltará a ser igual na família,

posso assegurá-lo.

Andrew não soube por que as palavras de seu irmão lhe pareceram

um hieróglifo que implicava diretamente a ele. Christopher tinha um olhar

do mais estranho e se atreveria a dizer que perverso; como se soubesse algo

que ele ignorava e desfrutasse com isso.

O pequeno Chris decidiu que já haviam terminado de lanchar.

Deixou sua xícara vazia em cima da bandeja e tomou a Branca da

mão para conduzi-la à zona de jogos. Andrew a animou com um sorriso

para que acompanhasse seu sobrinho em sua iniciativa. Alegrava-se

enormemente da boa relação de ambos, mas, depois, se perguntou se não

seria prejudicial para a pequena afeiçoar-se a eles, se ia retornar logo a seu

lar.

Os passeios a cavalo matutinos se converteram em um costume

diário. Branca já controlava a pequena montaria que Andrew lhe fornecera.

Encontrar um pônei para ela não fora difícil, a dificuldade vinha porque

não queria montar escarranchado; seguia empenhada em fazê-lo ao estilo

amazona, e, finalmente, ele optou por capitular. O pônei era o animal mais

manso que encontrara, e embora, ao princípio, a Branca custasse um pouco

para dominá-lo, já era quase uma perita. A babá, Clare, ainda não tinha

retornado de Devon, mas ele confiava em que o fizesse muito em breve.

Andrew deteve sua montaria perto da lacuna, ao lado de Crimson

Hill, a casa onde viviam sua irmã Aurora e seu cunhado. Atou o pônei

junto ao garanhão no poste do cais e ajudou Branca a desmontar; ela alisou

a saia do vestido, assim que pôs os pés no chão.

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—Não está enrugada — disse ele, pela enésima vez.

A pequena piscou e, depois, lhe ofereceu um autêntico sorriso, dos

que podiam derreter o coração mais duro. Para Andrew, era cada vez mais

difícil mostrar-se firme, e cedia a suas demandas com uma brandura que

não surpreendia ninguém do serviço de Whitam Hall.

—Mamãe o faz sempre — respondeu, com voz suave.

Andrew suspirou, cansado de suas respostas repetitivas. A mãe da

menina devia ser absolutamente insuportável, se estivesse sempre pendente

de manter seu traje impecável.

—Tem quase cinco anos — replicou, com voz controlada — tem

direito a enrugar a roupa, a manchá-la, em uma palavra: a se despentear.

Branca o olhou com olhos como pratos.

—Dê... dê... — Era incapaz de pronunciar a palavra.

Andrew a ajudou com um sorriso de orelha a orelha.

—Dê — repetiu, sílaba a sílaba.

—Mamãe não se dê... dê... — Tentava, mas era muito difícil para

ela.

—Sabe o que? — disse ele. A menina o olhava com atenção —

Chegou a hora de que aprenda uma valiosa lição com a qual vai desfrutar

muito.

Andrew se encaminhou à borda do lago com Branca seguindo-o de

perto. Quando as botas dele tocaram a água, inclinou-se e agarrou um

punhado de barro. Sem prévio aviso, lançou-o sobre a roupa da pequena,

que olhou estupefata a bolota de lodo que descendia por seu peito e lhe

manchava, com uma esteira marrom, a camisa branca. Deu um passo atrás

completamente espantada. Andrew voltou para a carga e lhe lançou outra

bola de barro, mas, nesta ocasião, muito maior e escorregadia, que lhe baeu

em pleno queixo. A massa pegajosa escorreu pelo pescoço de Branca, que

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começou a soluçar assustada. Seus pequenos ombros começaram a tremer,

e Andrew se deteve, ao ver seu rosto triste.

Maldita fora! Outra menina começaria a brincar com ele e a lhe

devolver o mesmo trato.

—Branca, não se assuste, é só um jogo.

Tinha os bonitos olhos alagados em lágrimas, lágrimas que

começaram a descender profusamente por suas bochechas.

—Vamos, preciosa, não tem que preocupar-se pela roupa. Você não

gostaria de jogar barro em mim?

Ela negou várias vezes com ímpeto, e Andrew amaldiçoou sua falta

de perspectiva.

Brincara tanto com seus sobrinhos de manchar uns aos outros que

não teve em conta os sentimentos da pequena a respeito. Enxaguou a mão

cheia de barro na água e a secou na calça. A menina o observou, com certo

receio.

—Bom, como não quer brincar nos manchar a roupa, o que acha se

formos comer bagos? Conheço um lugar onde crescem gordas e suculentas.

Branca continuou em silêncio, e Andrew suspirou ante a decepção

que se levou por seu ato impulsivo. Agora, tinha de ganhar sua confiança

de novo. Por que diabos gostava tão pouco de sujar-se? Divertir-se como

qualquer outra criança?

—Verá que ricas estão.

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CAPÍTULO 5

Andrew olhou para a pequena com olhos brilhantes. Apoiou as mãos

nos estreitos quadris e franziu os lábios em uma careta apreciativa.

—Dê uma volta para que a veja melhor — pediu, amavelmente.

Branca obedeceu, em silêncio, e girou sobre si mesma não uma, a não ser

duas vezes — Está espetacular.

Ela inclinou a cabeça para olhar as botas brilhantes, gostava

muitíssimo. Ia vestida exatamente igual a Andrew: botas negras de cano

alto, calça cinza escuro e colete listrado de vermelho e cinza. O único

diferencial era a camisa branca; a dela levava séries de renda no peitilho e

nos punhos.

—Quer pôr a jaqueta, antes de sair? — Branca negou, ante sua

sugestão — A capa então? — O sorriso infantil o desarmou.

Estava como louca com sua larga capa negra, como a da Andrew.

Sentia-se entusiasmada de vestir igual a ele.

—Pareço uma menina? — perguntou, um pouco preocupada.

Andrew a olhou, com olhos semicerrados, mas risonhos.

—Com essa preciosa cabeleira, não só parece uma menina, também

uma princesa, e, inclusive, uma bruxinha feiticeira. — E era certo.

As grossas mechas negras descendiam sobre seus ombros e

embelezavam seu rosto realçando seu contorno.

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—Compadeço a seu pai. O dia que em cumpra os dezesseis anos,

não voltará a pregar olho, à noite.

Branca elevou suas escuras sobrancelhas, surpresa, não

compreendia ao todo suas palavras, mas, quando lhe piscou um olho com

gesto cúmplice, sorriu em resposta.

Andrew se sentia muito satisfeito com a mudança que se produziu

na menina. Agora que vestia de forma mais cômoda, poderia montar

escarranchado no pônei, sem preocupar-se com as rugas do vestido. Esses

gestos femininos em uma pessoazinha tão pequena o enervavam, mas tinha

encontrado a solução perfeita: vesti-la com calças.

Soltou um suspiro carregado de otimismo, conseguira o mais difícil,

que seu alfaiate fizesse uma cópia de seu traje de montar para a menina.

Embora sua petição suscitasse muitos olhares reprovadores por parte dos

empregados da casa, inclusive Marcus, ele acreditava que o esforço valia a

pena e, agora, que a via embelezada assim, o resultado era magnífico, e se

sentia muito satisfeito.

Branca estava adorável!

—Nunca diga a seu pai que lhe permiti usar calças, porque me

pegará com um tiro.

Ela o olhou, com olhos brilhantes, e Andrew franziu o cenho,

pensativo.

—Pode acreditar que, a estas alturas, ainda não sei como se chama

seu pai? — A menina seguiu olhando-o, em silêncio — Suponho que não

tem importância, mas eu gostaria de saber mais coisas de você. Por

exemplo, onde vive? Vai à escola?

Branca seguia de pé em meio da biblioteca, observando o rosto

sério de Andrew. Não compreendia a mudança de humor que se operou

nele.

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—Seu acento é do sul, mas não sei localizá-lo.

Ela encolheu os ombros, lhe dando a entender que ignorava o

significado da palavra « localizar».

—Como disse que se chama sua mamãe?

—Rosa María Sofía — respondeu, calmamente e com o olhar

orgulhoso, porque sabia pronunciar, sem equivocar-se, o nome completo de

sua mãe.

—E seu papai? — inquiriu, extremamente interessado.

A menina o olhou, fixamente; Andrew não perdia detalhe de cada

expressão de seu rosto.

Mas a pequena não pôde lhe responder devido à inoportuna entrada

de Christopher na biblioteca, seguida pelo mordomo. Quando olhou o traje

de Branca, apertou os lábios, com aborrecimento, convertendo-os em uma

linha. Ou era assombro?, perguntou-se Andrew.

—É carnaval? — perguntou seu irmão.

—Pensávamos em sair a cavalgar.

—Não a vestiu, adequadamente, para montar. Esquece que é uma

senhorita.

Branca olhava para Andrew e Christopher, alternativamente,

seguindo a conversa de ambos com rosto preocupado. Gostava de muito da

roupa que vestia e temia que a fizessem trocar por outra.

—Está aprendendo a montar um pônei e, por isso, deve vestir-se o

mais cômoda possível.

—Não é correto, Andrew — respondeu Christopher — A mãe dela

não gostaria, acredite.

Essas palavras aborreceram Andrew.

—Acaso vê sua mãe em Whitam?

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Christopher ia responder, mas pensou melhor e manteve a boca

fechada.

Andrew pensou que seu irmão se mostrava muito suspicaz com a

pequena.

—Estou tentando ensiná-la a montar, e, para obtê-lo, Branca deve

vestir cômoda, não é certo, preciosa? — Andrew fazia a elucidação e a

pergunta em espanhol.

A menina fez vários decididos assentimentos de cabeça.

—Precisa, urgentemente, de uma babá — disse Christopher.

Andrew se propôs a não zangar-se, embora essas palavras lhe

caíssem como um jarro de água fria.

—Branca, vá à cozinha e diga a Marcus que já pode avisar Simon

que prepare as montarias.

Ela saiu a toda velocidade da biblioteca, para cumprir seu encargo.

Estava claro que adorava agradá-lo. Quando os dois irmãos ficaram

a sós, Andrew olhou para Christopher com rosto sério e severidade.

—Rogo que omita comentários negativos na presença de Branca.

Christopher piscou, ao perceber seu aborrecimento. Tinha-o pego

de surpresa, mas não se preocupou: a pequena não entendia o idioma no

que conversavam normalmente.

—Pai fez mal a deixando a seu cuidado — espetou, de repente.

—Estou completamente de acordo.

—Pensa em assistir amanhã ao jantar em Selby House?

Informaram-me que não rechaçou o convite.

—Isso é porque havia pensado em ir.

—Não pode deixar a menina sozinha.

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—Marcus cuidará dela por umas horas em minha ausência. Além

disso, Whitam Hall está cheia de serventes, de criadas. Dificilmente, pode

dizer que estará sozinha.

—Deveria declinar o convite.

Andrew sabia que seu irmão temia que se fosse depois da farra, mas

não era tão insensato para contemplar essa possibilidade.

—Veio a Whitam somente por esse motivo, para me fazer desistir?

—Ágata deseja que Branca e você vão jantar no próximo sábado

em Pheasant House.

Andrew o pensou por apenas dois segundos.

—Não temos nada mais de interessante que fazer, podem contar

conosco.

—Seu entusiasmo me intimida.

—Sou um espelho que reflete o seu.

—Está muito suscetível.

Andrew calou-se, de repente. Acabava de começar uma discussão

com seu irmão mais velho e não sabia qual era realmente o motivo; pensou

que era devido a seu confinamento na casa.

Estava acostumado a lidar com pirralhos, sua irmã Aurora tinha seis

filhos com os quais ele estava acostumado a passar muitas tardes, quando

estavam em Crimson Hill, mas estar vários dias com suas noites a cargo de

uma menina pequena decidiu que havia o tornado muito suspicaz.

—Se não poder convencê-lo para que desista, parto-me.

Branca entrou na biblioteca, nesse preciso momento, e, por esse

motivo, Andrew não respondeu como acreditou que seu irmão merecia,

com seu mesmo tom seco.

—Nos veremos esta noite, Senhorita Lara, até logo. — E

Christopher partiu de Whitam Hall, que ficou, de repente, silencioso.

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Ambos, adulto e menina, olhavam o oco da porta vazio.

—Quantas bolachas comeu? — Andrew fez a pergunta, sem olhar

para Branca.

—Sinco — respondeu ela e limpou as mãos imediatamente, embora

não se precavesse de que tinha as comissuras da boca cheias de migalhas, e

que, por isso, a tinha descoberto Andrew.

—Come muitas bolachas com o passar do dia — advertiu, com voz

tranquila.

—Estão deliciosas — respondeu, justificando-se — São de mexas.

Andrew, agora sim, baixou os olhos e os cravou no rosto dela; ao

ver sua expressão de deleite, não pôde ocultar um sorriso.

—Adoro as bolachas de ameixa. Vamos pegar mais?

Branca agarrou a mão que lhe estendia e saíram ao vestíbulo, onde

pegaram as capas e as luvas de montar. Logo, retornaram sobre seus passos

e se dirigiram para a parte traseira da casa, onde estavam situados os

estábulos, mas, antes, fizeram uma parada na cozinha, para aprovisionar-se

de bolachas de ameixa.

A pequena Branca se resfriou. Andrew pensou que a jaqueta fora a

causa. Nas tardes anteriores, a temperatura foi suave e cálida, mas ele

esquecera quão caprichoso era o clima inglês para alguém não acostumado,

e, essa tarde, o vento gelado do Atlântico açoitou o condado de Portsmouth

com uma força insólita. A aula de equitação tinha durado muito pouco,

Andrew decidiu retornar à casa e pedir um chocolate bem quente para a

pequena. Logo após entrar no pátio e jardim traseiro, Branca começou a

espirrar. Ao lhe tocar o rosto, precaveu-se, preocupado, de que estava um

pouco mais quente que o normal. Um par de horas depois, a febre

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aumentou, e ele decidiu chamar o médico da família. Este a examinou

minuciosamente, mas o diagnóstico não era preocupante: um simples

resfriado que curaria em um par de dias no máximo.

Agora, plantado aos pés do leito, observava a pequena dormindo.

Tinha o rosto avermelhado e respirava com certa dificuldade. Andrew se

massageou a base do pescoço, onde lhe concentrava a tensão. Que Branca

se houvesse posto doente, estando sob sua responsabilidade, o fazia sentir

remorsos. Estava tão obcecado por obter que passasse bem, que esquecera a

regra mais elementar de todas: cada criança é um mundo, e o que a umas

não afetava, a outras sim.

Viu-a mover-se no leito com um gemido, a febre estava acostumada

a causar dores musculares e mal-estar geral. Aproximou-se da cabeceira e a

cobriu até o pescoço com a colcha. Voltou a lhe tocar a fronte, e embora a

febre baixasse algo graças ao tônico que lhe ministrara o médico, seguia

sendo considerável.

Arrastou a poltrona que estava na parede do fundo e a colocou ao

lado da mesinha auxiliar, muito perto do leito. Saiu logo em busca de um

livro e, quando encontrou um título que lhe pareceu interessante, retornou

ao quarto de Branca. Soltou o lenço do pescoço, enrolou as mangas da

camisa, e desabotoou os botões do colete.

Esperava-o uma larga noite.

Ágata manteve uma azeda discussão com seu marido sobre a

pequena Branca. Parecia-lhe amoral que mantivesse Andrew na ignorância

sobre sua paternidade, mas seu marido foi cortante a respeito. Tinha-lhe

explicado de forma firme, embora com infinita paciência, que John

Beresford queria assim por motivos que logo explicaria à família.

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Ele aceitara sem uma réplica, porque seu pai estranha vez errava,

quando tomava uma decisão. Ela decidiu deixar de visitar Whitam Hall por

medo de não ser capaz de calar a verdade, e Christopher aplaudira sua

decisão. Visitava seu irmão várias vezes, para certificar-se de que tudo

discorria com normalidade e sem contratempos, mas Ágata morria de

vontade de conhecer a menina e, finalmente, optou por deixar-se vencer

pela tentação.

Nesse momento, cruzava a cerca branca que dividia a propriedade

de Whitam Hall da adjacente, Crimson Hill, pertencente ao duque de Arun,

grande amigo do marquês de Whitam. O pequeno Christopher ria e fazia

perguntas sobre os diversos animais que encontravam pelo caminho.

Lesmas, gafanhoto e demais espécies.

—Aqui vive Branca — disse o menino, de repente, quando

cruzaram a grade de ferro que dava acesso ao caminho da casa. Ágata

pedira ao condutor da carruagem familiar que os deixasse perto, pois

gostava de caminhar um pouco. O molesto vento do dia anterior tinha

amainado por completo, e a manhã estava espetacular.

—Sim, Chris, aqui vive a prima Branca.

—É bonita, mas não sabe falar, não sabe dizer sapato. — Ela olhou a

seu filho, estranhando — Chama zapato, mas eu a ensinei a dizê-lo bem.

—E conseguiu? — perguntou, interessada.

O pirralho negou com sua loira cabeça.

—Fala de uma forma estranha. Algumas palavras não entendo.

Ágata sorriu. Seu filho era muito pequeno para compreender que as

crianças criadas na Andaluzia tinham uma forma particular de pronunciar

algumas palavras ou letras.

—Terá muito tempo para ensiná-la a falar direito.

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Justo quando terminava de dizer a última palavra, chegaram à porta

principal. Tocou a aldrava com suavidade, e, uns momentos depois, Marcus

abriu com o rosto sério, como era costume nele.

—Bom dia, Marcus! — saudou-o ela — Despertou a pequena

Branca? — O mordomo negou com a cabeça — Lorde Beresford,

possivelmente? — Outro gesto idêntico seguiu-se ao primeiro.

—Temo que estejam dormindo — respondeu, com a voz séria.

—Então, nós despertaremos a bela adormecida e a ajudaremos, não

é, Chris?

O menino assentiu, entusiasmado. Gostava muito desse conto,

porque sua mãe o narrava como se ele fosse o príncipe que resgatava a

princesa.

—Mas não penso em lhe dar um beijo para despertá-la — replicou,

com uma careta de asco.

Ágata sorriu, ao ver sua expressão.

—Acredito que não será necessário.

—Sigam-me, por favor — indicou o mordomo.

Mãe e filho subiram a escada em silêncio, atrás de Marcus. Quando

chegaram ao quarto de Branca, o mordomo levantou a mão para chamar,

mas Ágata o deteve.

—Nós os despertaremos, muito obrigado — disse, com voz suave.

—Ordeno que preparem dois talheres mais para o café da manhã?

Ela olhou a seu filho, que assentiu com entusiasmo em que pese a já

ter tomado o café da manhã. Adorava os pães-doces que preparava a

cozinheira de Whitam.

—Desceremos em alguns minutos.

Ambos olharam como Marcus partia. Ágata agarrou o trinco da

porta e o acionou para abri-la. A estadia estava cálida e tenuemente

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iluminada, porque não tinham deslocado as cortinas grosas de noite, só as

cortininhas. Quando voltou os olhos para o leito, a surpresa a deixou

pasma.

Andrew adormecera junto à menina!

Levava as calças, a camisa e o colete, embora tirasse as botas de

montar, que tinha deixado atiradas aos pés do leito. Dormia em cima da

colcha, e seus braços rodeavam a cintura da pequena, que estava virada

para ele com a cabeça descansando em seu pescoço. A respiração regular

de Andrew movia, levemente, algumas mechas do cabelo negro dela.

Era uma imagem preciosa, única.

—Tio, tio! — exclamou o pequeno Chris, e Ágata não chegou a

tempo de deter sua carreira para o leito, antes que se atirasse em cima de

Andrew, que despertou sobressaltado. Quão mesmo Branca.

Ágata levou a mão à boca, para afogar uma risada. Nesse momento,

seu cunhado tinha a mesma expressão atônita que sua filha.

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CAPÍTULO 6

Ágata se ocupou de ajudar a assear-se e vestir Branca, antes de

descer à sala de jantar familiar. A menina era um verdadeiro encanto. Doce,

submissa, e com um olhar tão parecido com o de Andrew, que se

perguntou, insistentemente, como era possível que este não se precaveu

ainda da enorme semelhança entre ambos. Quando a ouviu falar com

aquele acento tão particular, Ágata soube que era cordovês e não sevilhano,

como supunham todos. Ela o perdera, porque viveu muitos anos na França

e os últimos na Inglaterra, mas ouvi-lo de novo lhe agitou uma fibra de seu

ser até o ponto de sobressaltá-la de nostalgia.

Agora, os três esperavam a chegada de Andrew, que aceitara a

inesperada visita como era normal nele: com alegria e senso de humor. Não

havia um homem no mundo mais afável, carinhoso e simpático que seu

cunhado. Era excepcional, e, por isso, se sentia aborrecida pelo engano de

todos, incluída ela mesma.

Inspirou, profundamente, para tentar controlar os batimentos de seu

coração. Sentia-se emocionada, mas também inquieta. Nem John nem

Christopher tinham em conta a reação de Andrew, quando se inteirasse da

verdade. Contavam com seu bom caráter e sua maneira pacífica de levar as

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coisas, mas podia dar-lhes uma desagradável surpresa, reagindo como não

esperavam.

Olhou para Branca, que estava sentada sobre duas enormes

almofadas com os quais chegava bastante bem à mesa para poder comer

com comodidade. Seu filho Chris sempre ficava de joelhos sobre o assento,

quando não estava em casa, com sua cadeira especial mais alta do que o

normal, mas ela já deixara de insistir que se sentasse de forma correta,

quando fossem visitar a casa do avô.

—Diga a minha mamãe como diz sapato — pediu, de repente,

Chris.

Branca piscou surpreendida pela inesperada pergunta.

—Por quê? — perguntou, com um pouco de receio.

—Porque tem um acento encantador — respondeu Ágata, no lugar

de seu filho — O acento cordovês é precioso. — A menina mostrou um

cândido sorriso, ao escutá-la — Como se chama sua casa? Porque imagino

que tem nome — perguntou, logo com voz serena.

—Palácio Zújar — respondeu, com prontidão.

—Um nome muito bonito. A minha em Córdoba se chama Casa

Lucena — disse Ágata — Era a casa de meu avô.

Branca meditou suas palavras como se as tivesse compreendido.

—É minha prima? — perguntou, de repente, Chris — Porque minha

mamãe diz que é minha prima. Filha de meu tio, mas tenho muitos tios, e,

por isso, não sei qual é o seu papai.

—Só tem três tios — o corrigiu sua mãe — e um deles, o tio Justin,

não é irmão de papai, a não ser o marido de sua tia Aurora.

Chris estreitou os olhos sério, porque Ágata acabava de desmontar

o castelo familiar que tinha construído em sua cabeça.

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—Então, minha mamãe é sua tia? — perguntou Branca ao menino,

pensativa; igual ao pequeno Chris, fazia suposições sobre o assunto da

família.

—Como se chama sua mamãe? — perguntou ele, com voz aguda.

—Rosa María Sofía — respondeu ,com simplicidade, mas de cor.

—Por que tem um nome tão longo? — insistiu o pequeno, com suas

perguntas.

Ágata decidiu intervir.

—Porque as pessoas importantes estão acostumadas a levar os

nomes de seus avós e de seus papais. Não são longos, a não ser vários

nomes de uma vez.

Ambos os meninos ficaram meditando a resposta.

—É importante? — perguntou Chris, então, com voz confusa, e

sopesando se essa possibilidade era boa.

—Não sei — respondeu a menina, com sinceridade, ao tempo em

que fazia uma careta com sua boquinha.

—Branca é sobrinha de um duque e neta de um marquês —

esclareceu Ágata. Os olhos infantis de ambos se cravaram nela — Isso a

coloca em uma posição muito importante — recalcou.

—Então, seu pai é um rei ou um príncipe?

Ágata tinha vontade de terminar com as insistentes pergunta de seu

filho, mas, quando um tema lhe chamava a atenção, Chris se voltava

incansável.

—Meu papai é um... — Branca calou-se por um momento, tentando

recordar a palavra que ouvira dias atrás — Ex... Excên... Trico —

conseguiu balbuciar. E sorriu por seu lucro, porque era uma palavra muito

difícil.

Chris estourou em uma gargalhada, ao escutá-la.

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—Onde ouviu essa palavra? — perguntou Ágata, escandalizada.

Branca assinalou Chris com um dedo.

—Seu papai o disse a meu papai.

Ágata deixou de respirar.

Virgem Santa! A menina sabia que Andrew era seu pai? Como

diabos sabia? E, o mais preocupante, por que não havia dito nada? Tinha de

indagar isso, imediatamente. Mas a razão principal do assunto estava a

ponto de entrar na sala de jantar e se sentia relutante a tentá-lo, embora não

pôde com a curiosidade.

—Branca, preciosa — disse — responde a uma pergunta. — A

menina a olhou, solene — Conhece o nome de seu papai? Sabe quem é?

Os formosos olhos azuis se iluminaram durante uma fração de

segundo, e, a seguir fez, um gesto afirmativo com a cabeça.

—Conhece o nome de seu pai? — insistiu.

—Minha mamãe me fez aprendê-lo.

—Disse-lhe isso como um segredo? — Branca assentiu, com um

sorriso — Mas sabe o que é um segredo, pequena? — perguntou-lhe Ágata,

com um fio de voz, e, dessa vez, a menina a olhou confusa.

—Se prometer uma coisa, não pode contá-la nem dizê-la a ninguém

— disse, com um sussurro — e eu o prometi muitas vezes.

Ágata fechou os olhos completamente surpresa. Branca era uma

menina. Como podia guardar uma informação tão importante? Ia dizer algo

mais, mas Andrew escolheu esse preciso momento para entrar na sala de

jantar familiar, que ficou, de repente, silenciosa. Tinha o cabelo úmido pelo

banho e cheirava a sabão de feno.

Quando observou a atitude pensativa de sua cunhada e seu

semblante perturbado, perguntou-se o que teria acontecido em sua

ausência, mas decidiu não perguntar. Marcus entrou atrás dele, levava uma

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bandeja que depositou no aparador onde estava o resto das bandejas

tampadas. Um momento depois, serviu chocolate aos dois meninos e

deixou perto de ambos um prato com pães-doces recém-feitos.

Andrew encheu uma xícara com chá preto para sua cunhada,

acrescentou-lhe um pouco de leite e um pouco de açúcar. Ágata se

emocionou que fosse tão serviçal e atento. Não lhe importava

absolutamente em fazer o trabalho do mordomo. Conseguir que as pessoas

se sentissem a gosto a seu lado era algo inato nele.

—Manchou-se de asúcar — disse Branca a Chris e lhe passou seu

guardanapo, para que limpasse a boca.

Ele ignorou seu amável gesto e limpou a boca com o dorso da mão.

Ágata suspirou com alívio, porque pensou que as crianças se esqueceram

do tema.

—Minha mamãe diga-se: «Aquele não agradece ao diabo se

parece» — repôs Branca.

Ágata abriu a boca, surpresa, e Andrew olhou a menina com

inusitada atenção. Tinha tomado assento e ia beber de sua xícara de café,

mas a deixou suspensa no ar, a meio caminho da boca. O único alheio ao

comentário de Branca era o pequeno Chris, que rechaçara com total

indiferença o guardanapo oferecido um momento antes.

—Desculpe-se, Chris — o admoestou sua mãe. Ele a olhou,

enquanto devorava outro pão-doce quente — Muito amavelmente, ofereceu

seu guardanapo para se limpar, tem que lhe corresponder com um

agradecimento.

Andrew olhou, fixamente, o rosto da pequena, que dava pequenas

dentadas a seu pão-doce sem afastar os olhos de Chris. O dito que

mencionara havia lhe trazido uma lembrança que o confundiu, porque era o

mesmo que seu pai repetia até não poder mais. E, de repente, começou a

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olhá-la com olho crítico, com atenção incisiva, cortante. Tentando penetrar

em sua própria alma. Sentia-se engolido por uma espessa nuvem que não

podia ver nem ouvir, mas, sim, sentir a fria umidade que lhe penetrava até

os ossos. E, então, todas as perguntas que tinha de haver-se feito desde o

começo mesmo martelaram dentro de seu cérebro de forma brutal,

desenquadrando-o. E, como se o destino quisesse transtorná-lo ainda mais,

Branca deu um sorriso torto, quando o pão-doce escorreu pelos dedos de

Chris, e ao fazê-lo, lhe formou uma covinha na bochecha que o deixou

desencaixado. Fechou os olhos e engoliu, de repente, uma saliva espessa.

Tinha estado cego!

—Andrew, o que ocorre? — A voz de Ágata soou alarmada, mas

ele não pôde lhe responder. Ficou mudo, com as cordas vocais duras.

—Desculpem-me — disse, ao fim, depois de um longo silêncio,

incômodo e inesperado.

Levantou-se de sua cadeira com muita rapidez.

—Ágata, pode cuidar de Branca até que retorne?

Ela lhe fez um gesto de assentimento mal perceptível com a cabeça,

e ele saiu pela porta precipitadamente. Somente havia tomado um café.

Esteve virtualmente todo o dia fora de Whitam Hall, por isso,

quando voltou para sua casa, sua cunhada se foi, havia tempo, embora

tivesse dado instruções ao serviço para que cuidassem da pequena em sua

ausência e até que ele retornasse.

Andrew entregou a Marcus a capa, as luvas e o chapéu.

—Onde está a menina?

—No salão, diante da lareira. Simon está lhe ensinando a jogar

pôquer, apesar de minha manifesta opinião em contra.

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Andrew não disse nada. Foi direto ao salão, abriu rapidamente a

porta, e procurou com os olhos a pequena figura, mas não a viu logo,

porque estava sentada na poltrona que ficava de costas à porta.

—Branca? — A menina mostrou a cabecinha pela lateral da

poltrona — Tem que se preparar, vamos a uma reunião. — Simon se

levantara, quando Andrew fez sua aparição na estadia — Prepare a

carruagem, Simon, a senhorita Lara e eu temos uma entrevista em Selby

Cross.

O servente assentiu silencioso com a cabeça e se foi com passo

ligeiro.

—Tem um vestido bonito para um jantar importante? — Branca

piscou, interessada — Acompanharei você a escolher um.

Quando saíram pela porta em direção ao vestíbulo, deram-se de

cara com Marcus, que lhe levava uma bandeja com um café quente, mas

Andrew rechaçou a bebida. Sentia muita urgência.

O mordomo os contemplou ambos subirem a escada para o andar de

acima, onde estavam os quartos.

—Tenho um bonito — disse Branca, com um sorriso.

Andrew lhe acariciou os cachos do cabelo com ternura.

—Estou convencido de que será especial.

E não se equivocou.

Quando a ajudou a procurar no grande armário, a pequena lhe

indicou um vestido guardado entre tecidos de seda. Tinha um corpete

ajustado de um rico veludo azul, e com decote redondo com renda, coberto

com um lenço branco de linho muito fino. As mangas eram largas no

ombro, embora logo se ajustassem até o punho. Branca procurou uma rede

para cabelo para a cabeça e um avental branco, combinando com o lenço.

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Andrew deixou o bonito objeto em cima do leito e, depois, se voltou para

ela para lhe dar indicações.

—Agora, quando chegar Emma — que era a donzela que se

ocupava da habitação e a roupa da pequena — ajudará você a se vestir e se

pentear. Eu esperarei no salão. Será rápida? — Branca assentiu com sua

pequena cabecinha — Bem, assim que esteja preparada, partiremos. —

Emma chamou com os nódulos à porta. Andrew lhe deu permissão para

entrar e, logo, lhe disse que preparasse à menina. Um momento depois, saiu

do quarto com pressa.

Quando Branca entrou no salão, uma hora mais tarde, Andrew já a

estava esperando. Ia vestido a rigor, e ela o olhou, enquanto ele a olhava a

sua vez, surpreso. Era evidente que nunca vira uma menina vestida de

forma tão peculiar.

—Está preciosa — disse, com um amplo sorriso.

Os bordados da saia eram de cor branca, como a rede para cabelo e

os bordados da saia. Emma levava nas mãos a capa negra, perfeitamente

dobrada.

— Não prefere sua capa de veludo vermelho? — perguntou ele,

estranhando. Branca negou de forma repetida — A negra é para montar —

particularizou Andrew, para convencê-la.

A capa de veludo vermelho era muito mais apropriada para o

vestido que levava.

—Eu gosto muito desta — respondeu ela, com ingenuidade.

—Então, levará a negra. — calou-se um momento e, logo, se voltou

para Emma — Não é preciso que nos esperem acordados. A senhorita Lara

e eu retornaremos um pouco tarde.

A donzela, de rosto afável, sorriu.

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Colocou em Branca a capa, enquanto Andrew pegava a sua das

mãos de Marcus. Depois, os dois se dirigiram para o vestíbulo e a

carruagem que os esperava na porta.

CAPÍTULO 7

Esperava com impaciência a chegada de Christopher, enquanto

bebia uma taça de champanha no grande salão da mansão Selby. Nesse

momento, lorde Falcon conversava com ele sobre temas políticos que a

Andrew não interessavam absolutamente, mas não o demonstrou. Antes

tinha respondido a todas as perguntas sobre a ausência de seu pai, mas se

cansara de esperar a chegada de seu irmão. Quando, pela manhã, saiu

precipitadamente da sala de jantar de Whitam, foi em busca de Christopher

para lhe perguntar sobre o assunto que lhe queimava as vísceras, mas este

havia partido muito cedo para de Londres e não previa retornar até última

hora da tarde. Suas intenções de falar com ele se esfumaram, pois, como

um sopro de ar.

Andrew empregara várias horas em enviar telegramas; um a sua

irmã Aurora, em Granada, outro à granja Azhara, e um mais ao porto de

Paus, onde supôs que estaria amarrado o navio de seu pai. Tinha dedicado

parte da tarde a procurar uma babá em Portsmouth e Southampton, embora

sem êxito. Todas as agências necessitavam de vários dias para encontrar

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uma adequada. Finalmente, Andrew se deu por vencido e, em um arranque

impulsivo, decidiu levar a menina a Selby House com ele.

Agora, Branca estava brincando em uma das estadias infantis da

planta superior da mansão, com uma donzela que o conde Falcon teve a

amabilidade de lhe atribuir. Andrew sabia que Branca não ia ser a única

menina na casa.

E, de repente, viu Christopher, que acabava de entrar no salão e se

dispunha a passar entre os convidados para acompanhar Ágata a uma das

poltronas dispostas para as damas. Como se o pressentisse, seu irmão se

voltou para ele e o olhou com olhos semicerrados. Saudou-o com a cabeça

e seguiu falando com sua esposa e com uma das irmãs de lorde Falcon.

Depois de uns momentos que, para Andrew, pareceram eternos,

Christopher se despediu das damas e começou a atravessar o salão em

direção a ele, que tinha apurado já a quarta taça de champanha frio.

—Lorde Falcon, Andrew — saudou Christopher, com cortesia.

—Lorde Beresford — correspondeu o anfitrião com um sorriso e a

mão estendida. Ele se apressou a estreitá-la, mas estranhou a falta de

resposta de seu irmão, que tinha nos olhos um brilho estranho, como não o

tivesse visto nunca.

—Acreditava que finalmente não viria ao jantar — disse, com tom

recriminatório.

Andrew agarrou outra taça de champanhe de uma das bandejas que

passeava pelo salão um dos lacaios da mansão.

—Preciso falar com você — informou Andrew, de repente, com

voz áspera.

—Deixarei vocês para que conversem tranquilamente — se

apressou a dizer lorde Falcon e, lhes fazendo uma ligeira inclinação de

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cabeça, girou sobre seus calcanhares e se encaminhou para o outro extremo

da sala.

Christopher se fixou no traje de seu irmão; levava o laço do pescoço

algo solto, e ia um pouco despenteado, como se a urgência por chegar a

Selby o impedisse de arrumar-se como correspondia.

—Agora? Deseja falar quando está a ponto de começar o jantar?

—Acompanhe-me — ordenou Andrew, com a voz mais seca ainda.

Ele decidiu não contrariá-lo e o seguiu com passo rápido a caminho

de um dos gabinetes situado no outro extremo do amplo vestíbulo.

Ágata contemplou a saída impetuosa de ambos os irmãos e, sem

querer, franziu a fronte. Ficou, momentaneamente, pensativa, porque algo

ocorrera pela manhã que tinha provocado esse troco em Andrew, mas ela

ignorava o que podia ser. Seu cunhado não ouvira a conversa que manteve

com os meninos, mas o olhar furioso de seus olhos azuis era muito

eloquente. Pediu desculpas a lady Falcon e se levantou para seguir Andrew

e seu marido e tentar averiguar o que ocorria.

No pequeno despacho, Andrew olhava fixamente para seu irmão

mais velho com olhos brilhantes e os lábios apertados, até o ponto de

convertê-los em uma linha. Inspirou profundamente várias vezes e afiançou

os pés no chão, enquanto cruzava os braços contra o duro torso, sem se

importar que a casaca se enrugasse.

Christopher o via conter-se com muita dificuldade. Seu rosto

mostrava claramente que estava furioso, embora sua atitude comedida o

preocupasse ainda mais. Um homem em semelhante estado poderia

estourar a qualquer momento de forma ímpar e perigosa.

—A pequena Branca é uma Beresford? — perguntou Andrew, de

repente, com voz grave.

Christopher estreitou os olhos, ao escutá-lo.

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Perguntou-se como ou quando o teria descoberto e, ao momento,

amaldiçoou a visita de Ágata e o pequeno Chris a Whitam pela manhã;

devia ser a maneira como seu irmão descobrira o segredo. Sopesou negá-lo,

porque o prometeu ao pai de ambos, mas já não tinha sentido guardar

silêncio.

—Sim — respondeu, sinceramente.

Andrew tragou violentamente e soltou um abrupto suspiro.

—De pai? — perguntou, com olhos chamejantes — Branca é filha

de nosso pai?

Christopher estava atônito. Por que seu irmão pensava que a

pequena era filha do pai de ambos? Não tinha sentido.

Andrew se sentia abatido.

Quando viu o sorriso do meio lado e a covinha da bochecha infantil,

a dúvida o golpeou: tinha o mesmo sorriso e a mesma covinha de seu pai,

mas precisava da confirmação do Christopher. Sentia-se magoado de que

lhe escondessem o parentesco, por que motivo seu pai agiria dessa forma?

Incomodava-o que seu irmão mais velho estivesse a par da notícia e o

mantivessem à margem. Era parte da família, maldito fosse! Mas, nesse

momento, se sentia como um emparelha banido. Agora, compreendia a

rápida partida de seu pai e de seu irmão Arthur para a Espanha.

Todo o quebra-cabeças encaixava.

Christopher contemplou as variadas emoções que cruzaram o rosto

de seu irmão caçula e se compadeceu dele.

—É sua — espetou, de repente.

Andrew deu um passo para trás, como se o golpeassem no

estômago. Havia dito dele? Tinha que estar equivocado.

—Não é minha! Não é possível! — exclamou sentido — Não

conheço a mãe da pequena.

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—É sua, Andrew, vi a certidão de nascimento; pai me mostrou na

madrugada que partiu para a Espanha.

Um pensamento atravessou seu cérebro à velocidade do raio. Se seu

pai se desligou da menina, por que fora a Espanha para ajudar à mãe? E, o

que mais o intrigava, quem era e onde a tinha conhecido? Não escutava a

seu irmão mais velho, estava muito ocupado aceitando e desprezando

hipótese.

—Pai não pensa em assumir sua paternidade? — perguntou,

estupefato — Não posso acreditar, do pai não. É o homem mais

responsável que conheço, embora ainda esteja atônito de nosso parentesco

com a pequena. Descobri-lo foi surpreendente, mas não graças a você, não

é, irmão? — recriminou-o, magoado.

Christopher soltou um longo e profundo suspiro.

—Branca é sua filha. Não cabe nenhuma dúvida. Sua e da irmã do

duque de Fortaleza.

«O vingativo duque sevilhano?», perguntou-se Andrew, confuso,

mas seguia sem compreender por que Christopher insistia no mesmo. Ele

não conhecia a irmã do duque de Fortaleza. Nunca estivera em Sevilha! Ia

negar de novo, quando uma voz feminina do corredor o silenciou.

—Como se chamava? — A pergunta, formulada em voz baixa por

Ágata, fez com que ambos os irmãos se voltassem para ela. Estava de pé na

soleira da porta, como se não se atrevesse a cruzá-la — Como se chamava a

mulher que conheceu em Córdoba?

Andrew apertou a mandíbula com força. Nunca contou a sua

família dos sentimentos que despertara uma moça humilde que tinha

conhecido em Hornachuelos. Ignorava para aonde queria conduzi-lo sua

cunhada com essa pergunta, mas decidiu dizer a verdade.

—Rosa de Guzmán — respondeu, quase em um sussurro.

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Ágata suspeitara desde o começo. O acento da menina, parecido

com a moça que ela conheceu na fazenda de seu avô.

—A irmã do duque de Fortaleza se chama Rosa María Sofía de

Lara e Guzmán. — O rosto de Andrew se decompôs — Não sabia? É uma

preciosa mulher de cabelo negro e rosto sereno. Christopher e eu a

conhecemos na fazenda de meu avô faz seis anos, recorda?

Seu marido afirmou com a cabeça, sem afastar os olhos de seu

irmão.

O coração de Andrew deixou de pulsar durante uns segundos,

tentando assimilar a notícia. Rosa, sua Rosa era irmã do duque? Tinha-o

enganado! Tinha-lhe mentido! Por quê? Estava tão concentrado em seus

pensamentos que não se precaveu do envelope que Christopher lhe

estendia. Continuava tentando encontrar um sentido para tudo aquilo, mas

sem conseguir. A pequena era sua filha! Impossível! Ele não merecia um

presente tão maravilhoso, não fizera nada para merecê-lo, salvo amar a sua

mãe de uma forma louca, sem medida nem controle. E com a mesma

intensidade que a amara, a odiara por sua negativa a acompanhá-lo a

Inglaterra...

Seu rosto mostrou de maneira clara e contundente as emoções que a

revelação lhe produzia. Caos absoluto. Dor dilaceradora e um profundo

sentimento de perda. Ágata e Christopher se sentiram sobressaltados, ao

contemplá-lo, porque os olhos do jovem brilhavam, tentando assimilar a

dura revelação.

—É uma carta da senhorita Lara para você. — Andrew piscou

várias vezes, mas sem mover-se do lugar — Estive tentado a lhe entregar

isso em várias ocasiões, mas pai me aconselhou que esperasse até sua volta.

Andrew não fez ameaça de pegar o envelope, simplesmente olhou

para seu irmão com uma decepção tão profunda no olhar, que conseguiu

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com que Christopher baixasse os olhos com certa confusão; com isso, não

pôde preparar-se para o murro que recebeu a seguir.

Não pôde agarrar-se a nada e caiu para trás com estrépito. Ágata já

corria para ele para tentar segurá-lo.

—Andrew, Por Deus, não! — suplicou a seu cunhado —

Christopher não tem culpa.

Ele já segurava seu irmão pelo peitilho para voltar a golpeá-lo, mas,

depois de um instante, baixou o punho e soltou o tecido. Logo, agarrou o

envelope, que saíra disparado pelo impacto, dobrou-o e o guardou no bolso

interior da casaca.

Christopher se levantou, ao tempo em que passava o dorso da mão

pelo lábio machucado. Olhou o sangue e cravou suas pupilas em seu irmão.

—Não merecia isso, Christopher — disse este — Por quê? Maldito

seja! — espetou-lhe, amargamente.

Ágata se havia interposto entre ambos, acreditando que Andrew

voltaria a golpear Christopher, mas a ira que tinha embargado o caçula dos

Beresford partiu tão rápido como chegou: como a exalação de um suspiro.

—Foi uma decisão do pai, não minha.

—E por que partiu com Arthur a Espanha? O que me escondem?

Tenho direito de saber!

—Leia a carta — aconselhou Christopher, mas ele não queria fazê-

lo.

Andrew estava furioso, seu irmão teve a carta de Rosa todos

aqueles dias e não lhe havia dito nada. A escondeu! Parecia-lhe

inconcebível, mas se a pequena estava em Portsmouth e a mãe não, devia

ser por um motivo muito poderoso, e ele se sentia resistente saber. Não

podia arriscar-se a descobrir que Rosa já não existia. Que algo horrível lhe

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acontecera. Por isso, quando escutou as seguintes palavras de Christopher,

sentiu uma violenta sacudida, porque seus piores temores se confirmavam.

—Pai me disse que foi presa e declarada traidora à Coroa da

Espanha.

Andrew abriu a boca, mas a voltou a fechar em seguida. Percebeu

como o ar ficava retido na garganta e se sentia incapaz de empurrá-lo para

os pulmões. Teve que inspirar várias vezes para obter que descesse; uns

segundos depois, seu peito se dilatou para receber o ansiado sopro de

oxigênio.

«Traição à Coroa espanhola? Isso significa a forca!», pensou, com o

coração acelerado, mas não pôde responder a seu irmão, porque lorde

Falcon entrou no pequeno gabinete com ímpeto e com o semblante

preocupado. Piscou várias vezes, como se hesitasse em falar.

—Lorde Beresford — começou — a pequena Branca desapareceu.

Andrew sentiu um assobio horrível nos ouvidos. Retrocedeu

lentamente até topar com o quadril na borda da mesa. Posou a palma da

mão na cálida madeira de mogno, enquanto levava a outra ao peito, porque

lhe custava respirar. Em questão de minutos, havia descoberto que tinha

uma filha, que a mulher que amava com loucura estava condenada a morte,

e agora, agora...

Ágata foi até a escrivaninha para agarrá-lo pelo braço, pois viu que

tinha empalidecido por completo. Christopher se fez com o controle da

situação imediatamente.

—Pode ser um engano, lorde Falcon? — perguntou, com voz

calma, apesar das circunstâncias.

Por que diabos Andrew levara pequena Branca ao jantar?

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—A donzela está angustiada, diz que a acompanhou ao banho, e

que, ao comprovar sua tardança em sair, entrou em procurá-la, mas já não

estava.

—Como é possível que tenha desaparecido? — trovejou a voz de

Andrew — Como pode perder uma menina em um quarto de banho?

Lorde Falcon ficou tão vermelho como o sangue.

—Gladys não se precaveu de que a tinha levado a um quarto de

banho que tem duas portas enfrentadas; pode-se entrar de dois corredores

distintos. Tenho grande parte do serviço procurando-a por toda a casa.

Andrew não esperou nenhuma explicação mais. Saiu do gabinete

em direção ao vestíbulo e a escada imperial que subia ao andar superior. A

música do salão lhe parecia muito com um horrível grito que o

incomodava, profundamente, e seu coração martelava uma única ladainha:

«Tenho de encontrá-la. Tenho de encontrá-la».

Christopher reuniu os homens que estavam procurando a menina,

mas fazê-lo em meio de uma festa com mais de quinhentos convidados era

pouco menos que uma loucura. Ágata também participava da busca.

Registraram o segundo andar, os jardins traseiros, o porão e as cavalariças,

mas Selby House era uma casa muito grande com inumeráveis esconderijos

para uma menina tão pequena como Branca.

Andrew notava o coração nas têmporas, e, à medida que o tempo

transcorria sem encontrar à menina, sua angústia aumentava a uma

velocidade vertiginosa. Inclusive os convidados se precaveram de que

acontecia algo estranho, porque o jantar fora atrasado com uma breve

explicação. Via criados e donzelas ir e vir apressados pela casa, o que lhes

causou uma apreensão justificada.

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Andrew tropeçou com sua cunhada nos jardins. Ágata estava

acalorada e ofegante, seu embaraço a impedia de seguir o ritmo de outros,

mas o tentava.

Parecia-lhe uma brincadeira macabra. Justo quando Andrew

descobrira que tinha uma filha, perdia-a. Viu-o mexer no cabelo com

impaciência, amaldiçoar e jurar. Desatou o nó do lenço e desabotoado o

colete; tinha a aparência de um homem desesperado.

—Vamos encontrá-la, Andrew — disse.

E como se Deus tivesse escutado suas palavras, pelo atalho que

conduzia ao prado ouviram falar com dois meninos que vinham para eles

caminhando despreocupados, tão absortos um no outro que não se

precaveram dos dois adultos que os estavam olhando. Branca estava

acompanhada de um garoto alguns anos mais velho que ela.

Andrew se fixou em que a pequena levava nos braços um

cachorrinho de pelo negro que lhe mordia as rendas do vestido. O alívio foi

tão intenso que, inclusive, sentiu um leve enjoo. Fechou as pálpebras para

conter a emoção dilaceradora que o sacudia.

—Branca! — exclamou com voz firme.

Ambos os meninos deixaram de olhar o cão, para cravar os olhos

nos dois adultos que os observavam com aborrecimento.

—Fomos ver uns cachorrinhos — explicou Branca, com um tímido

sorriso — Verdade que é presioso? — Andrew contemplou o cão mais feio

que já vira. De orelhas enormes e focinho úmido.

E, de repente, notou um detalhe tão importante que se chamou a si

mesmo de estúpido uma infinidade de vezes. Ela jamais se dirigiu a ele por

seu nome, e, então, soube a razão. Recordou, perfeitamente, o brilho de

seus olhos infantis na manhã em que ele se apresentou com seu nome

completo. Sempre soube quem era!

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Sentia-se tão ridiculamente exposto, que olhou para outro lado,

enquanto inspirava fundo.

—Posso ficar com ele — perguntou-lhe a menina.

Andrew cravou nela seus olhos azuis e, ao vê-la com aquele sorriso

malicioso e o olhar lisonjeador, sentiu-se desolado. Fizera-o passar uns

momentos horríveis. De uma agonia tão estremecedora, que desejou apagar

o sorriso que esboçavam seus bonitos lábios.

—Deveria pedir a seu pai. Está de acordo? — Branca piscou

confusa, ao escutá-lo, porque seu tom era um pouco áspero.

—Andrew! — exclamou Ágata, surpreendida pela resposta.

—Estou tão furioso, que se remoo a língua possivelmente contrairei

raiva — alfinetou ele, amargamente.

—Ela não tem culpa — disse conciliadora.

«É certo», pensou Andrew.

A culpa de tudo o que sentia nesse preciso momento era de uma

mulher de cabelo negro que havia o tornado completamente louco. De

repente, e para surpresa de Ágata e do menino que acompanhava Branca,

ficou de cócoras e abraçou a pequena com força, com um caos anímico

mesclado de cólera, impotência e alegria. Beijou-a no cocuruto e fechou os

olhos, agradecendo por havê-la encontrado sem mais percalço que um bom

susto.

—Tão, posso ficar com ele? — voltou a perguntar a voz infantil.

Andrew sorriu, apesar de tudo. Agarrou-a pelos ombros e a separou

uns centímetros de seu corpo. Olhou-a no rosto e contemplou a íris de seus

olhos, idêntico ao dele; em realidade, idêntico a todos os Beresford.

Esteve completamente cego!

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—Perguntou a seu pai? —inquiriu, com os olhos semicerrados.

Esperava sua resposta com uma ansiedade desconhecida até então para ele.

Acabava de descobrir que lhe importava muitíssimo.

Branca jogou a cabeça para trás para ter uma melhor visão do rosto

masculino. Queria comprovar se seguia zangado com ela, mas o que

observou nos olhos dele foi o mesmo brilho malicioso de sempre, e

assentiu ligeiramente com a cabeça. Andrew voltou a abraçá-la muito mais

forte, tanto, que o cachorrinho protestou com um grunhido.

Era dele, fruto da paixão e o amor que compartilhara com Rosa. E

se sentiu tão orgulhosamente ufano, que não pôde evitar um sorriso

arrogante.

Branca era a filha que qualquer homem desejaria, e soube que a

mãe já não poderia negar a estar com ele, com os dois, porque ia fazer o

impossível para levá-la a Inglaterra.

Um momento depois, o jardim se encheu de gente que foi

comprovar a notícia de que tinham encontrado a pequena em perfeito

estado. O menino que a acompanhava era filho de um dos sobrinhos de

lorde Falcon e a convidara a ir ver uns cachorrinhos, quando a encontrou

perambulando sozinha pelos corredores do andar superior. A curiosidade

infantil havia feito o resto. Mas graças a Deus, tudo havia se resolvido bem.

Embora Andrew não fosse esquecer na vida o susto que se levou.

Quando o silêncio alagava cada espaço e canto da casa, quando a

penumbra lambia e engolia a luz do único abajur aceso do quarto, Andrew

decidiu ler a carta que Rosa lhe enviara. Uma carta da qual não teve notícia

até umas horas antes. Rasgou o envelope amarelo e abriu a folha de papel

com atenção. A bela caligrafia negra dançou durante um momento ante

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seus olhos devido à emoção que o embargava. Respirou, profundamente, e

cravou suas pupilas nas linhas negras com soma atenção.

Querido Andrés...

A lembrança o golpeou com fúria, porque ela sempre o chamava

Andrés.

Se soubesse quanto o desejei ao longo destes anos, vazios de sua

presença, quando minhas mãos ansiavam de novo seu contato cheio de

fogo, seus sorrisos cândidos e maliciosos. Foi em minha vida uma tábua de

salvação, e os remorsos que sinto por perder você de forma voluntária mal

me deixam respirar à noite, e, em meio de meu castigo eleito

conscientemente, sinto que a solidão me rodeia como um laço negro e forte

aperta-me tanto que mal posso desfazer o nó que me prende, mas o

mereço. Menti para você de uma forma que não tem desculpa nem

justificativa, e, neste momento crucial de minha existência, peço-lhe

perdão do fundo de minha alma. Não leve em conta a ofensa tão grave que

cometi ao lhe ocultar a existência de Branca: sua filha. É preciosa! E,

agora, lhe faço entrega do mesmo presente que você me fez naqueles dias

em Hornachuelos. Esta missiva não é uma petição nem uma ordem, a não

ser uma súplica de indulgência. Perdoe-me e aceite-a! Branca não tem

culpa de meus erros, de meu equívoco execrável, mas, se de algo lhe serve

este momento de pesar é que sinto por havê-lo enganado, recorde que

meus sentimentos por você sempre foram sinceros e profundos. Lutei com

todas as minhas forças contra meus ideais, mas não me senti capaz de

acompanhá-lo a sua pátria, nem fazer o que ditava meu coração

perseguido por minha consciência, e, por esse motivo, suplico-lhe com

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toda a minha alma, que me perdoe e compreenda quão duro foi para mim

tomar a decisão que tomei. Minha donzela, Glória de Hernández e

Romero, dará a você todos os documentos necessários para que possa

reconhecer nossa filha, assim como poderes para que possa administrar

sua fortuna, quando eu faltar.

Lamento não poder acompanhá-la em sua viagem a seu encontro,

mas devo confrontar o resultado de minhas decisões, que vêm me pedir

contas, e, embora gostaria, não posso me libertar de sua mão vingativa.

Por favor, Andrés, me perdoe e cuide o que mais quero no mundo:

nossa pequena.

Com afeto, Rosa María Sofía de Lara e Guzmán, para ti sempre,

Rosa de Guzmán.

Andrew terminou de ler a carta e a deixou repousando sobre seu

peito, junto a seu coração. «Irei buscar você, Rosa. Reunirei você com

nossa filha, e viveremos os três juntos e felizes. Trarei você para o lugar

onde deve estar sempre: a meu lado», prometeu-se em silêncio, ao tempo

em que dobrava a carta e a colocava de novo no envelope.

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CAPÍTULO 8

Andrew bebeu um longo gole de seu suco de frutas sem afastar os

olhos de Branca. Fixou-se em como passava a manteiga no pão recém-

assado e na enorme quantidade de geleia que lhe punha a seguir. Observou,

com interessem a perfeita dobra que fez na torrada, antes de levá-la à boca

e lhe dar uma pequena dentada, enquanto fechava os olhos com deleite e

lambia o lábio superior para retirar um rastro da suculenta geleia.

Essa manhã, Christopher decidira tomar o café da manhã em

Whitam Hall com seu irmão e sua sobrinha. Sentia a urgente necessidade

de comprovar se tudo ia bem. Mal pôde pregar olho durante a noite, depois

do susto da perda da pequena. Agora, ao observar Branca, precaveu-se,

pela primeira vez, de que, em cada gesto que fazia, era como se

contemplasse o próprio Andrew quando tinha sua idade, salvo que seu

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irmão mais novo estava acostumado a colocar muito mais geleia na torrada,

até o ponto de derramá-la no prato.

—Vou à Espanha esta tarde — anunciou este, de repente.

Christopher o olhou, impassível — Tenho que lhe pedir que cuide de minha

filha em minha ausência.

—Acha conveniente? — perguntou seu irmão, com a fronte

enrugada.

—Necessito de uma longa explicação — disse Andrew, direto.

—Da mãe? — Ambos dirigiram seu olhar à pequena, que seguia

comendo sua torrada alheia à conversa .

—Não posso ficar de braços cruzados, sem saber o que acontece e

como posso ajudá-la.

—Pai já está lá para tentá-lo.

Mas John não saberia como ajudar ou convencer Rosa, disse-se

Andrew.

—Conte-me, me diga como a conheceu — pediu Christopher.

Ele meditou uns instantes, sumido em lembranças que, pelo brilho

de seus olhos, deviam ser muito prazerosas.

—Conheci-a quando estivemos em Córdoba, muito antes que

recebesse o telegrama nos comunicando da enfermidade de pai, recorda? —

começou — Dois dos sobrinhos de Eulalia nos apresentaram, um deles

trabalhava como capataz na granja Azhara. Convidaram-me à festa da

fogueira, e ali, entre chamas de fogo e música, meus olhos descobriram a

mulher mais formosa que já vira. Foi olhá-la uma vez e já não pude voltar a

respirar com normalidade.

Por isso, Andrew havia demorado tanto em retornar a Inglaterra.

Até então, Christopher lhe escondera o telegrama sobre a enfermidade de

seu pai.

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—Não lhe disse quem era ou que fazia em Hornachuelos?

Seu irmão não respondeu. Meditou durante um longo instante,

como se acariciasse uma lembrança formosa.

—Se for sincero, mal podia pensar com coerência. O sangue me

fervia nas veias, meu coração galopava a seu desejo entre a euforia e o

desenfreio. E meu cérebro sofreu um motim emocional como não

experimentara nunca.

Christopher conhecia muito bem esses sintomas, ele mesmo os

tinha padecido por Ágata tempo atrás.

—Rechaçou você? — perguntou, então, com verdadeiro interesse.

Andrew não queria responder essa pergunta. Não, estando a menina

presente, mas, antes que pudesse dizer algo, Marcus entrou na sala de jantar

para anunciar uma visita, e esse lapso de tempo lhe deu uma pausa.

—Lady Jane Taylor pergunta se pode ser recebida — informou o

mordomo, com a mesma seriedade de sempre.

Christopher e Andrew se olharam fazendo a mesma pergunta.

Ignoravam quem era a dama em questão, mas a pequena Branca exclamou

com júbilo inusitado para ouvir o nome e, de forma quase instantânea,

desceu de suas duas almofadas para sair correndo para o vestíbulo. A

torrada mordida ficou esquecida no pequeno prato.

—Aia Jane! Aia Jane! — A menina saíra da sala de jantar a uma

velocidade que deixou atônitos a ambos os irmãos.

Seguiram-na com prontidão e, quando cruzaram a soleira da porta,

viram uma mulher que abraçava Branca com um grande sorriso nos lábios.

Agarrou-a nos braços, enquanto se sucedia uma inundação de perguntas e

respostas dadas e oferecidas em um perfeito inglês. Christopher e Andrew

não davam crédito ao que viam e ouviam. Seguiam de pé no vestíbulo, sem

perder nenhum detalhe do encontro entre a mulher e a menina.

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Lady Jane Taylor, uma mulher de uns quarenta e cinco anos, de tez

branca e cabelo loiro, abraçava a pequena com um genuíno afeto. Ao

precaver-se dos escrutinadores olhares masculinos, deixou Branca no chão

e olhou para ambos os homens tentando decidir a qual dos dois devia

oferecer seus respeitos em primeiro lugar; a aparência severa de um lhe

indicou que devia ser o primogênito. Lamentava que a carta de Rosa não

fosse mais explícita a respeito. Depois de um instante de dúvida,

aproximou-se diretamente de Christopher com a mão estendida.

—É um prazer, lorde Beresford. Sou lady Jane Taylor, amiga de

Rosa, a mãe desta preciosidade.

A menina não se afastou de suas saias.

Christopher lhe beijou a mão.

—Lady Jane, bem-vinda ao Whitam Hall. — Logo, Christopher se

voltou, ligeiramente, para seu irmão, quando este se inclinava para beijar

deste modo a mão da dama inglesa.

—Lorde Beresford. — Jane alargou o sorriso e aceitou a galante

saudação de Andrew.

—Por favor, nos acompanhe a tomar um chá, estaremos encantados

de conhecer as notícias que traz da Espanha.

Andrew não duvidava nem por um momento que Rosa enviara lady

Jane para cuidar da filha de ambos, mas se perguntava por que não tinha

chegado com ela ao princípio.

Quando os quatro estiveram sentados à larga mesa, Marcus serviu a

dama um chá com leite, que ela lhe agradeceu. Branca a olhava com olhos

cheios de alegria. Indubitavelmente, sentia pela mulher um carinho

especial, e estava tão emocionada com sua chegada, que a interrompeu em

sua explicação para lhe perguntar por sua mãe. Mas lady Jane a olhou com

atenção e uma ligeira advertência em seus olhos castanhos, e Branca

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repetiu a pergunta em espanhol, embora logo voltasse a fazê-la em inglês.

Jane lhe respondeu com grande afeto e infinita paciência.

Andrew acabava de descobrir por que a pequena falava inglês tão

bem como espanhol; devia-se a lady Jane. Recordou todas as conversações

que manteve em sua presença com seu irmão mais velho, com sua cunhada

e inclusive com o serviço, acreditando que não entendia nada; quão

equivocado estava. Branca compreendia cada palavra que saía por sua

boca.

—Conhece-a a muito tempo?

Christopher não soube se a pergunta de seu irmão se referia à mãe

ou à filha.

—Cuido desta menina desde que era um bebê. — Acariciou o

cabelo de Branca, com carinho — E sofri muito por estar separada dela.

A pequena não pôde conter-se, desceu da cadeira e se aproximou

até Jane, que a levantou e a sentou no colo, ao tempo em que a beijava na

bochecha. As amostras de alegria do vestíbulo não foram suficientes, e os

seguintes minutos transcorreram-se entre abraços e bajulações entre ambas,

até que Christopher decidiu intervir. Andrew tinha de manter uma conversa

privada com a inglesa e, para isso, precisava que a menina não estivesse

presente.

—Eu adoraria conhecer seu pônei. Andrew me falou muito dele e

de quão bem monta. — Os olhos de Branca se iluminaram — Acompanha-

me? — Ela acessou, com entusiasmo.

Ele se levantou, então, com cerimônia de sua cadeira e estendeu a

mão a modo de convite para sua sobrinha.

—Estaremos no estábulo — disse, antes de ir.

O silêncio que seguiu à partida de tio e sobrinha resultou algo

incômodo. Andrew terminou seu café frio, enquanto observava a mulher,

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que não tirara o chapéu nem as luvas, coisa que fez então, como se lhe

tivesse lido o pensamento.

—Falaremos melhor no salão. — Andrew não esperou sua resposta.

Abriu-lhe a porta da sala de jantar com gentileza, e Jane o seguiu, em

silêncio, mas sem deixar de sorrir. Foram ao salão, e, uma vez ali, sentou-

se na poltrona de pele que lhe indicou.

—Como está Rosa? — Andrew não esperou sequer a que a mulher

arrumasse as dobras da saia. Estava ansioso. Preocupado e cheio de

perguntas que não se atrevia a formular — Onde está presa?

—Está detida no convento de Santa Marta, em Sevilha.

Andrew fechou os olhos e se recostou no respaldo da cadeira, como

se sobre seus ombros tivesse caído todo o peso do mundo. Tinha a pequena

esperança de que tudo estivesse já solucionado ao fim.

—Gostaria de estar com ela, quando a prenderam — continuou Jane

— mas me encontrava resolvendo uns assuntos em Madrid. Por isso, não

pude trazer para a menina com você, como Rosa desejava, e não imagina o

quanto o lamentei.

—Por que a detiveram? — Andrew o intuía, mas precisava

perguntá-lo.

—Por seu apoio a Carlos Isidro, o irmão do rei Fernando. Alguns

nobres espanhóis não estão de acordo com a regência de María Cristina.

Andrew pensou que a notícia era pior do que pensava. A Espanha

se dividia entre os seguidores de Fernando e os de Carlos. O avô de sua

cunhada Ágata tivera de fugir para a França, anos atrás, quando se produziu

o primeiro intento de derrubar o rei.

—Quando terá lugar o julgamento?

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—Está previsto para dentro de dois meses, mas há um problema

muito grave: dom Alonso de Lara, o irmão de Rosa, é um dos principais

acusadores.

Andrew o temia. O duque de Fortaleza era o mais leal defensor do

rei Fernando, além de um justiceiro implacável. Era um militar de alta

graduação que gozava do favor do rei da Espanha e o encarregado de

prender os traidores à Coroa.

—É você a professora de Branca?

Lady Jane fez um gesto negativo com a cabeça.

—Branca teve um professor francês desde que sabe andar. Está

aprendendo as letras e os números, e a música lhe dá bastante bem. Tem

uma voz muito bonita para cantar.

Andrew estava aniquilado. De repente, tinha uma fonte inesgotável

de informação a respeito de sua filha. Parecia-lhe incrível que, ao fim,

pudesse saciar sua curiosidade sobre ela. Tão pequena e já conhecia as

letras e os números. Estava perplexo.

—Foi toda uma surpresa descobrir que fala inglesa quase sem

acento — disse, com um tom de orgulho que fez com que Jane sorrisse.

—Era parte de meu trabalho, lorde Beresford. Desde que Branca era

um bebê, lhe falou nas duas línguas, a espanhola e a inglesa. A senhora

Lara o dispôs assim. Trabalhou em excesso se em procurar uma babá que

fosse nativa de Grã-Bretanha. — Lady Jane ficou pensativa, uns momentos,

recordando o passado — Nós nos conhecemos na embaixada inglesa em

Madrid, pouco depois da morte de meu marido. Era comerciante e adorava

viver na Espanha, igual a mim. Causava-me pena retornar a Inglaterra após

enviuvar, e, como um milagre inesperado, a senhora Lara me ofereceu sua

amizade e sua casa em troca de ensinar à pequena minha língua materna e a

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história de meu país. Quando vi o formoso rosto de sua filha, não pude

resistir. É uma menina tão inteligente!

Andrew se sentia estranhamente confuso.

Rosa lhe escondera a existência da menina, e esse era um ato

censurável de que teria de lhe render contas, quando a resgatasse. Porque

isso era precisamente o que pretendia fazer: ir até a Espanha e levar dali a

mulher que lhe tinha mentido, enganado e dado o presente mais formoso de

quantos podiam entregar-se.

—Ficará na Inglaterra? — perguntou a lady Jane, com um tom de

esperança que não trabalhou em excesso em ocultar.

—Não posso abandonar a Branca. É como a filha que não tive, sinto

por ela um carinho especial. E, além disso, prometi a minha amiga Rosa

que viria aqui, se seus temores se confirmassem. Ela já suspeitava que

podiam prendê-la por seu apoio a Carlos Isidro.

Andrew olhou a dama, que lhe sustentava o olhar sem uma piscada.

Viu em seus olhos uma absoluta sinceridade, e suas palavras, oferecidas de

forma tão generosa, aliviaram seu coração. Soube que poderia partir

imediatamente e ficar tranquilo, porque sua pequena estaria em boas mãos.

—Rosa me deu claras instruções: tinha de trazer a menina para

você, mas tudo se precipitou antes que eu terminasse meus assuntos em

Madrid. Quando recebi o telegrama em que me informava da detenção de

minha amiga, soube que havia chegado o momento de embarcar rumo a

minha pátria para me ocupar de Branca, como lhe prometi.

—Necessito de um endereço em Sevilha — disse Andrew — e

alguns detalhes que considero muito importantes.

Lady Jane fez um gesto afirmativo.

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—É óbvio — respondeu cúmplice — embora Rosa confie em que a

transladem ao convento da Santa Isabel, na cidade de Córdoba, até que a

julguem. Acredita que as religiosas não se oporão.

Andrew pensou que lhe resultaria muito mais fácil resgatá-la em

Córdoba que em Sevilha, pois, na primeira cidade, tinha amigos que

podiam ajudá-lo; a possível dificuldade não conseguiu desanimá-lo.

—Conhece o convento?

—Visitei-o em inumeráveis ocasiões.

Andrew pensou que o destino lhe sorria.

—Onde está Alonso de Lara?

—Sua residência habitual é o palácio dos Silêncios, em Sevilha,

mas, ultimamente, se encontra na corte madrilenha.

Ele pensava a toda velocidade. Se o irmão de Rosa se encontrava,

permanentemente, em Madrid, tudo resultaria muito mais fácil, embora

morresse de vontades de pô-lo em seu lugar. Ia agir como acusador no

julgamento de sua irmã? Acaso não tinha honra nem decência? À família

não se traía; Andrew se prometeu lhe dar seu castigo chegado o momento.

—Fale-me de Alonso de Lara — pediu a lady Jane.

—Que deseja saber sobre ele?

—Tudo, absolutamente tudo.

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CAPÍTULO 9

Rosa María Sofía de Lara e Guzmán

Convento de Santa Marta, Sevilha.

A madre superiora conduziu John Beresford para uma salinha

privada onde as noviças podiam ver seus familiares um momento. A

religiosa ignorava que John não era um familiar, a não ser um amigo

interessado, mas os créditos que levava eram mais que suficientes. A Coroa

lhe permitia um breve encontro com a detida.

—A senhora Lara virá em seguida. — John fez um gesto de

agradecimento à monja, que tinha um olhar sério e severo — Por favor,

seja breve.

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Ele tomou assento na única cadeira disponível. A estadia era

pequena e estava mal ventilada. Fixou-se na madeira escura da mesa e no

crucifixo que havia em uma das paredes, de onde pendurava como se o

tivessem esquecido. As paredes de pedra cheiravam a mofo envelhecido, e

o chão de tijolo cru estava úmido pela água que tinham utilizado em sua

limpeza. Ouviu passos apressados e se levantou, rapidamente, antes que a

porta se abrisse. Uma mulher entrou justo detrás da madre superiora.

—Esperarei lá fora — disse a religiosa, e suas palavras soaram

como uma crítica.

Rosa de Lara olhou, surpresa, o homem que permanecia de pé ao

outro lado da mesa. Nas semanas que estava encerrada no convento, não

recebera nenhuma visita, e não entendia o que fazia um estrangeiro em

Santa Marta.

—Meu nome é John Beresford — se apresentou ele.

Rosa deu um passo atrás para ouvir o nome.

Piscou, nervosa, porque o último que esperava em seu

confinamento era conhecer o pai de Andrew, mas sua presença em Sevilha

só podia significar uma coisa: que ocorrera algo espantoso.

—Minha pequena! — exclamou, aterrorizada — Meu Deus! Não!

John a tranquilizou, imediatamente.

—Branca se encontra bem. Está aos cuidados de seu pai, meu filho

Andrew.

Respirou profundamente aliviada, embora fechasse os olhos para

tentar controlar a angústia que a embargava.

John se dedicou a olhar a mulher que tinha diante. Era de uma

formosura comovedora. Pequena, mas esbelta. De cabelo tão negro como o

de sua filha, e com um rosto muito harmonioso e aristocrático.

Compreendeu, perfeitamente, por que Andrew se havia sentido atraído por

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99

ela. Observou, com grande atenção, o controle que exercia sobre suas

emoções, que foram do desespero à impaciência, sua forma precavida de

olhá-lo e a prudência que brilhava em seus olhos escuros. Nessa breve

apreciação, entendeu por que Rosa manteve seu filho na ignorância respeito

à de sua paternidade: Andrew não estava à sua altura!

—Como está Branca? Comporta-se bem? Sinto tanta falta dela!

—Minha neta é uma menina preciosa, um orgulho para os

Beresford.

As lágrimas foram aos olhos de Rosa. Eram as palavras que

precisava escutar, nesse momento, e as agradeceu profundamente.

—Como permitiu a madre superiora esta visita? — Formulou a

pergunta com soma estranheza.

—Por Arthur Wellesley3, que era amigo do falecido rei Fernando.

Graças a sua influência, pude conseguir uma permissão para visitá-la aqui

em Sevilha.

Rosa tomou assento em frente a ele, que a imitou, um instante

depois.

—Não tenho coragem para sustentar seu olhar — começou ela —

Fui muito injusta com Andrew —acrescentou, cheia de angústia.

John precisava saber de uma coisa de forma imperativa.

—Por favor, me diga que minha neta não foi o resultado de um

escarcéu sem importância.

Os olhos de Rosa se abriram, atônitos. Como podia lhe perguntar

algo tão íntimo e de modo tão direto? Mas seu olhar se adoçou, ao evocar a

3 “Primeiro duque de Wellington e primeiro ministro do Reino Unido de 22 de janeiro de 1828 até 22 de

novembro de 1830”.

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lembrança do homem que significara tudo para ela; e sua renúncia mais

significativa.

Ao ver seu rosto, John comprovou que suas deduções foram

acertadas. Andrew lhe importava muitíssimo! O alívio quase lhe produziu

um sobressalto.

—Amei Andrés, profundamente. Sua alegria, sua impulsividade. —

Calou-se, um momento, antes de continuar — Descobri um mundo que

ignorava que existisse. Apaixonei-me, perdidamente, mas não podia

acompanhá-lo a Inglaterra como ele pretendia. Você pode compreendê-lo?

— O longo e profundo suspiro masculino a pegou de surpresa.

John o entendia muito mais do que podia imaginar a senhorita Lara.

Ele mesmo se encontrou em uma situação idêntica a de seu filho caçula. No

passado, amou uma mulher sobre a que pesava uma grande

responsabilidade, com raízes profundamente arraigadas em sua família, em

sua terra... É óbvio que a compreendia. John se perguntou se, como ele,

seus filhos estariam destinados a apaixonar-se por mulheres com um futuro

difícil.

—A pequena já está reconhecida como uma Beresford. Meu filho

Arthur, que é um excelente advogado, pôde fazer todos os trâmites da

embaixada inglesa em Madrid.

Rosa suspirou, profundamente sossegada. Sua filha estava a salvo

de seu tio Alonso, e Andrew controlaria o patrimônio da pequena, quando

ela faltasse.

—Além disso, averiguamos e preparou uma forma de ajudá-la.

—Ajudar-me? Mais ainda? — perguntou, surpresa.

—A rainha regente, María Cristina de Borbón, deu seu

consentimento para que o embaixador da Inglaterra, sir George Villiers,

possa visitá-la na próxima semana.

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Rosa se perguntou por que motivo lhe concedia essa mercê

inesperada.

—Consegui uns poderes para que o embaixador a despose com meu

filho Andrew. Se me permitir isso, pronunciarei os votos em seu nome.

O gemido dela foi espontâneo e inesperado.

«Casar-se com Andrew, sem Andrew?», perguntou-se, bastante

confusa.

—Andrés, Andrew — retificou, ao precaver-se de que tinha

pronunciado o nome em espanhol, embora não fosse à primeira vez — Está

de acordo?

John sabia que agia mal, ao lhe esconder a verdade, mas, depois de

uma exaustiva investigação, descobrira que os cargos que pesavam sobre a

mulher eram muito graves para andar com escrúpulos. Não pensava em lhe

dizer que Andrew ignorava, inclusive, que estivesse cuidando de sua

própria filha. Uma vez que ela estivesse a salvo na Inglaterra, tentaria

resolver o problema das meias verdades. Se Rosa não admitisse que amava

o amalucado de seu filho, possivelmente, não se atreveria a mentir de

forma tão descarada, mas não podia deixar uma menina sem mãe.

Sua neta merecia todo seu esforço.

—Quando o matrimônio seja um fato, será você cidadã inglesa, e

procederemos a solicitar, legalmente, seu retorno à Inglaterra.

Ela fechou os olhos, porque compreendia muito bem o que isso

significava.

—Meu desterro voluntário — disse, com infinita tristeza.

—Melhor um desterro que a forca — replicou ele, convencido.

—Renunciaria a tudo com tal de estar de novo junto a minha

pequena, não o duvide nem um instante. —Mas o tom de sua voz

desmentia suas palavras.

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John inspirou com força, porque não a compreendia. Casando-se

com Andrew, poderia escapar de uma morte segura. O preço lhe parecia

insignificante.

—Senhorita Lara, acredite em mim, terá de renunciar a tudo. —

Rosa se manteve em silêncio, durante uns momentos, assimilando a

mudança que se produziu em seu futuro em uns instantes — A Coroa não

permitirá mais intervenções por sua parte, nem pessoais nem monetárias,

na política da nação. Uma vez que seja cidadã inglesa, acabaram-se as

conspirações contra a monarquia espanhola.

Ela sabia como estava jogando María Cristina. Ao permitir seu

matrimônio com um cidadão britânico, matava dois pássaros com um tiro.

Assegurava a lealdade de seu irmão Alonso, que veria o perdão real como

um ato de bondade, e também se assegurava a passividade de alguns nobres

que não veriam com bons olhos a execução da irmã do duque de Fortaleza,

e que poderiam opor-se a isso. A regente era uma mulher muito inteligente

e não agia de maneira precipitada ou impulsiva. Media cada passo,

valorando no que a beneficiava, e procedia em consequência.

—Conte-me como conheceu meu filho — pediu John, de repente —

Por favor.

Rosa esboçou um cândido sorriso, embora a vergonha tingisse de

vermelho suas pálidas bochechas.

—Foi em Hornachuelos, na granja Azhara. Andrew assistia com

uns amigos ciganos a uma festa popular entre granjeiros. Eu me reunia

esses dias com Joaquín Moreno, o secretário de Rafael Maroto. Sabe de

quem falo?

John lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas permaneceu

calado, animando-a a que continuasse com sua explicação.

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—Desarmou-me sua alegria, sua forma vivaz de levar as coisas. E

os dias que passamos juntos na serra se encarregaram do resto.

—Informaram-me que pensava em tomar os hábitos.

Rosa experimentou uma sacudida, ao escutar as palavras do

marquês.

John podia imaginar o acontecido, uma noviça que ma provara o

sabor da existência e encontrou em Andrew o meio para fazê-lo. E, se de

algo podia estar seguro, era da capacidade que tinha seu filho caçula para

desfrutar da vida, espremê-la ao máximo e contagiar sua felicidade ao resto

dos mortais.

Rosa não respondeu logo. Que tomasse os hábitos era o que

pretendia seu irmão Alonso, mas ela não tinha nenhuma intenção de fazê-

lo. Por isso, pediu, então, que a transladassem do convento de Santa Marta,

em Sevilha, onde estava encerrada e vigiada, ao de Santa Isabel, no

Córdoba. Pretendia ir o mais longe possível da influência de seu irmão, e

sabia o que tinha de fazer para que a Igreja não aceitasse seu voto de

renúncia ao mundo: entregar-se a um homem, perder a castidade de forma

voluntária.

Andrew tinha resultado ser a tabela de salvação da qual necessitava.

Em um de seus encontros lhe dissera, claramente, que só estava no

Córdoba de passagem. Pensou que, para ele, seria simplesmente uma

mulher fácil que conheceu em terras cordovesas e, portanto, suscetível de

esquecer, mas não havia contado com apaixonar-se cegamente por Andrés,

nem o quão profundamente ia feri-lo com sua negativa a acompanhá-lo a

seu país, quando ele pediu. Seus cálculos foram errôneos, mal aplicados, e

tinha feito sofrer um homem que não o merecia, mas ela se envolveu total e

absolutamente com seus sentimentos. Pouco depois da partida de Andrew,

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motivada pelo despeito por sua negativa a casar-se com ele e acompanhá-lo

a Inglaterra, descobriu que estava grávida...

—Nunca tive intenção de tomar os hábitos. Era meu irmão Alonso

o mais interessado em que o fizesse, porque desse modo poderia controlar a

herança que me deixou minha mãe e reprimir minhas ideias políticas.

»Meu pai foi bonapartista, lutou pela liberdade de um povo

amordaçado. Admirava o que Napoleão obteve na França, e acreditou,

como muitos nobres décadas atrás, que, na Espanha, poderia triunfar algo

similar. Eu tratei de seguir seus passos, embora com um resultado péssimo,

como pode comprovar.

—A política é um assunto muito sério — disse John — Muitos

homens perderam a vida ao longo da história por situar-se a um lado ou a

outro.

Rosa já sabia. Mas havia sentido muito dentro de seu coração que

lhe devia lealdade a seu pai e aos ideais pelos que este tinha morrido.

—Você se casará com meu filho Andrew por poderes?

Rosa meditou por um longo instante a pergunta. Apresentava-se

uma oportunidade que não podia rechaçar, mas teria coragem para

enfrentar Andrés cara a cara? Seria possível retornar com sua filha? Poderia

separar-se de tudo o que conhecera e partir a um país que não tinha visto

alguma vez? Obter o perdão do homem a quem havia enganado e mentido?

As dúvidas a devoravam. O desespero a sacudia, mas o que mais

desejava no mundo era abraçar de novo sua pequena, e, por ela, pactuaria

com o próprio diabo, se este o pedisse.

—Sim — respondeu ela, sem vacilar — Eu me casarei com seu

filho Andrew.

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Arthur estava esgotado. Resolver questões legais em um país

diferente da Inglaterra, onde a papelada se multiplicava por dez, resultava

desolador. Mas tudo saíra bem. Branca, a menina que ele não chegou a ver

em Whitam Hall, agora, era legalmente lady Beresford, e as diversas

propriedades que possuía sua mãe mudaram de titularidade e, agora,

pertenciam à pequena; seu irmão Andrew fora renomado curador de todas

elas. Arthur pensou que Rosa de Lara era uma mulher muito rica, e sua

sobrinha Branca o seria, no futuro. Tinha um patrimônio de várias casas em

Sevilha, um palácio em Córdoba e outro em Guadalajara. Um imóvel na

serra de Hornachuelos com touros selvagens e um moinho para moer

azeitonas. Rosa de Lara tinha disposto tudo, antes de ser detida,

demonstrando, com isso, uma previsão surpreendente. Graças a sua rapidez

e intuição, o trabalho de Arthur resultou muito menos difícil e mais

frutífero.

Agora, se perguntava, insistentemente, como teria obtido seu pai

uma procuração do próprio Andrew para o casamento, mas tinha por

costume não questionar nenhuma das decisões de seu progenitor, pois

sempre mostrava uma sagacidade única e acertada.

Massageou-se o pescoço, tenso pelas últimas gestões. Entre

reuniões com o embaixador inglês e o embaixador espanhol, e as viagens

de Madrid a Sevilha e vice-versa, mal dormira. Mas se sentia tranquilo,

porque tudo se resolveu muito melhor do que esperava. Olhou a rua

tranquila e observou os caminhantes, com interesse. Adoraria percorrer a

formosa cidade sevilhana e, inclusive, viajar até Salamanca para comprar

alguns cavalos para sua irmã e seu cunhado. Os gados salmantinos tinham

fama de criar formosos e finos garanhões.

Quando ouviu a porta se abrir, deixou de olhar pelo balcão. Seu pai

acabava de deixar sobre uma mesinha o chapéu, a capa e as luvas.

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—Como se encontra a senhorita Lara? — perguntou, com interesse.

—Lady Beresford, Arthur, não esqueça que já está casada com seu

irmão e é membro de nossa família.

Arthur não podia esquecer. E se sentia estranhamente desejoso de

ver a cara de Andrew, quando descobrisse. Acabaram-se as farras noturnas!

Ir de um leito a outro, antes, inclusive, que se esfriassem os lençóis do

primeiro.

—O indulto já chegou — disse seu pai — Logo, poderá retornar a

Inglaterra, e minha neta se reunirá, ao fim, com sua mãe.

John soltou logo um suspiro azedo.

Lutar com as confusões de seus filhos o esgotava, enormemente.

Ainda recordava os problemas que teve que sortear com Christopher e

Ágata em Paris. Quase perdeu a vida no intento, mas o resultado valeu a

pena. Nunca vira seu primogênito mais feliz e completo. Sua esposa era

perfeita para ele; em realidade, para todos. Por esse motivo, quando

conheceu sua neta Branca e soube das dificuldades pelas quais passava a

mãe, decidiu que tinha de fazer algo, de uma vez que represasse a vida de

libertinagem que levava seu filho caçula. Rosa resultou ser tal como

imaginava. Seus filhos sentiam uma predileção natural por mulheres de

existência complicada, embora formosas e apaixonadas até o ponto de

provocar a loucura em um homem.

Arthur contemplou seu pai, que servia brandy em duas taças e lhe

oferecia uma. Ambos se sentaram nas macias poltronas do hotel. Tinham

alugado uma ampla suíte com vistas a Guadalquivir.

—Parece cansado.

—Estou desejando terminar com isto, mas, até que lady Beresford

não esteja instalada em Whitam Hall, não poderei descansar totalmente.

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Embora esteja pensando em viajar até a cidade de Granada. Tenho muita

vontade de ver sua irmã.

Arthur pensou que uma estadia de seu pai em Granada poderia ser

muito benéfica para sua saúde. A tranquilidade da cidade sulina e os

cuidados de sua irmã eram o que precisava nesse preciso momento.

—Esforçou-se muito — o reprovou, embora com supremo respeito

— E o médico foi cortante a respeito —recordou — Nada de emoções

fortes, parece que esqueceu.

—Vale a pena, Arthur. O esforço vale a pena, embora me custe

compreender por que seus irmãos escolheram mulheres com um caráter tão

visceral e decidido.

Ele pensou em sua cunhada Ágata e nas vicissitudes que teve de

enfrentar seu irmão, até que, finalmente, puderam estar juntos. E, agora,

acontecia o mesmo com Andrew. Uma situação que o fez reafirmar-se em

sua decisão de não casar-se com uma estrangeira de ideais complicados.

—Tremo ao pensar na filha que me dará você — começou John —

A mulher que seu coração escolherá.

Arthur se incomodou um pouco. Ele não pensava em agir de forma

tão irresponsável como seus dois irmãos. Ele tinha a cabeça sobre os

ombros, às ideias bem claras e gostos bem definidos.

—Eu me casarei com uma autêntica dama inglesa — asseverou,

convencido — Refinada. Elegante. Uma mulher a quem não importará a

política, nem será propensa a meter-se em confusões. Será uma perfeita

senhora, dedicada por inteiro a seu marido.

John foi enrugando o cenho, à medida que o escutava. Falava com

calculada frieza, com uma indiferença que raiava o desprezo, e não gostou,

absolutamente.

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—Arthur, aceite um conselho que lhe ofereço com a experiência

adquirida com os anos: no coração não se pode mandar. Quando chegar o

momento, tomará suas próprias decisões, e não poderá fazer nada.

Arthur pensou que seu pai estava muito equivocado, ele sabia

segurar suas emoções e seus impulsos. Nenhuma mulher ia romper o

controle e o domínio que tinha sobre sua aprazível existência, por esse

motivo, replicou convencido:

—Eu sei, exatamente, o que quero em minha vida, e o que desejo

não são complicações sentimentais como a de meus irmãos. Escolherei uma

dama inglesa no sentido amplo da expressão.

—Uma dama inglesa? — repetiu John, com ceticismo.

—Posso lhe assegurar que não terá nascido na Espanha nem na

França.

John tomou um gole de seu brandy, sem que a desconfiança

desaparecesse de suas pupilas. Algo lhe dizia que Arthur seguiria o mesmo

caminho de seus dois irmãos. Inclusive, era possível que seu coração

escolhesse uma moça ainda mais complicada que Ágata Martin ou Rosa de

Lara. Seus três filhos tinham um gosto muito parecido com respeito às

mulheres; de caráter forte e decidido, muito apaixonadas. Com uma

necessidade tão intensa de desfrutar da vida, que não lhes importava

romper todas as regras e normas para obtê-lo.

—Acredito que vou tomar uma pausa em Granada — confirmou.

—Pode voltar com Aurora e Justin, quando eles decidam fazê-lo —

respondeu Arthur, cada vez mais convencido — As crianças estarão

encantados de ter seu avô, durante uns dias.

John pensou que tinha razão. Sentia saudade de seus netos e morria

de vontade de abraçá-los.

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—Não quero que retorne sozinho — admitiu John, com certa

culpabilidade.

Arthur esboçou um sorriso.

—Tenho intenções de viajar a Salamanca. Eu gostaria de comprar

um par de éguas árabes para nossos garanhões da Inglaterra. O embaixador

me comentou que alguns gados salmantinos são excepcionais.

John se enterneceu, ao ver a paixão que seu filho sentia pelos

cavalos. Sua irmã Aurora e ele estavam obtendo umas crias valiosas e que

alcançavam preços exagerados no mercado boiadeiro inglês.

—Sir George Villiers convidou-me a propriedade de férias e

prometeu me levar ao melhor gado — comentou.

John se surpreendia com a amizade que se forjou entre o

embaixador inglês em Madrid e Arthur e se perguntou se a sobrinha do

embaixador teria algo a ver nisso.

—Sente-se atraído pela sobrinha do embaixador, filho?

Arthur levantou uma sobrancelha, ao ouvir a pergunta tão direta.

—É uma perfeita dama inglesa — respondeu, com certa ironia.

John ficou desarmado. Não soube se seu filho falava em brincadeira

ou a sério.

—Quando retornará a Whitam Hall?

—Quando tiver conseguido as éguas.

—Tomará cuidado?

Arthur o olhou, com um sorriso matreiro.

—Esteja tranquilo, pai, esquece que eu não sou Christopher nem

Andrew.

Mas essa resposta obteve justamente o contrário: não o tranquilizou

nem um pouco.

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CAPÍTULO 10

A mulher apenas coberta com uma camisola branca destacava-se na

escuridão da quarto. Tinha uma mão debaixo da bochecha e dormia de

frente à porta.

Andrew caminhou os dois únicos passos que o separavam dela e

tomou assento na borda do leito com suavidade, para não despertá-la. O

formoso cabelo comprido caía com descuido pelos ombros e as costas. A

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tentação de agarrar algumas mechas entre seus dedos, para sentir sua

textura, foi quase insuportável; recordava, perfeitamente, aquele corpo

feminino abafado unicamente pela cortina de cabelo escuro e sedoso.

Ela se revolveu, como se percebesse sua presença na quarto.

—Chist.

Rosa sentiu que alguém lhe tampava a boca com a mão e a

esmagava contra o colchão.

—Não vou fazer machucá-la, mas, se gritar, podem nos descobrir.

Piscou para esclarecer a visão.

Sobre ela se inclinava um rosto parcialmente coberto por um capuz

marrom. Era um monge? Como conseguira entrar em seu quarto? Por que

lhe tampava a boca? O coração pulsava acelerado, embora tivesse a frieza

de raciocinar que, se quisesse machucá-la, já teria feito.

—Se afastar a mão, gritará?

Rosa fez um gesto negativo, e a mão morna do homem se afastou

muito lentamente.

Os largos dedos agarraram a borda do tecido marrom que lhe cobria

a cabeça e jogou o capuz para trás. Ao ficar ao descoberto o cabelo loiro

ondulado e o sorriso, Rosa sentiu que o coração lhe dava um tombo.

—Andrés! — exclamou Rosa, estupefata — O que faz aqui? Como

entrou? O que ocorreu? — A sucessão de perguntas não seguia uma ordem

lógica.

Estava assustada. A presença de Andrés na estadia só podia

significar problemas.

—Aconteceu algo a Branca?

—A pequena está perfeitamente. Lady Jane cuida dela em minha

ausência.

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Rosa tratava de encontrar sentido à presença dele em Sevilha.

Estava sentado em seu leito como se fosse algo completamente natural.

Lady Jane estava na Inglaterra? O alívio que sentia se manifestou em forma

de suspiro.

—Por que vai vestido de monge? O que faz no convento?

O sorriso masculino se alargou, e o musculoso corpo se inclinou

ainda mais sobre ela, que recordou, de repente, que seguia deitada.

Rastejou para trás e se incorporou sobre o travesseiro, sem deixar de olhar,

com assombro, o rosto querido, recordado.

—Sinceramente, esperava uma recepção mais calorosa por sua

parte — a repreendeu ele.

Rosa levou uma mão à garganta para sufocar um gemido. Tinha de

estar sonhando, Andrew não podia estar ali com ela, porque a porta da

quarto seguia fechada com chave e a janela não fora forçada, mas estava a

seu lado. Podia cheirar o aroma de sua pele, tocar o grosso cabelo rebelde.

Um instante depois, lançou-se em seus braços. Ele a recebeu como se fosse

uma peça preciosa e extremamente delicada, estreitou-a contra seu peito e

aspirou ao aroma de seu cabelo, um instante depois, procurou com sua boca

os lábios femininos, que se abriram a seu encontro sem um protesto. O

beijo foi faminto, intenso de recriminações, completo de saudade.

Andrew saboreou o sabor de Rosa. A suavidade interior de suas

bochechas, a voluptuosidade de seus lábios grossos e suculentos.

Ela pensou que a presença de Andrés ali era um milagre.

Ao cabo dos anos, sentir-se de novo abraçada por ele, beijada de

forma tão intensa, era um sonho feito realidade; mas as perguntas se

acumulavam em sua mente, por isso, parou o beijo com relutância.

Cravou suas pupilas nas masculinas, que brilhavam interrogantes.

—Está louco.

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—Vim resgatar você — anunciou ele, triunfante.

—Resgatar-me? — perguntou, desconcertada — Como entrou?

—Por este muro.

—Pela horta das laranjeiras?

—A escalada é mais fácil do que parece à simples vista. A parede

está em muito mal estado. Há ocos entre as pedras que servem como

degraus.

A Rosa custava pensar.

—Tem de partir — disse, ao fim, apressada.

Andrew a olhou, atônito.

—Partiremos, quando terminar de beijar você outra vez.

Não lhe deu opção de negar, encerrou-a entre seu peito e seus

braços e se apoderou de sua boca como um morto de fome. Rosa lhe

correspondeu completamente vencida e cheia de sentimentos

contraditórios: sorte, preocupação, felicidade, prudência.

Depois de um longo momento, Andrew finalizou o beijo, mas não a

soltou do fechamento de seus braços.

—Tem que ir, podem descobrir você — o apressou ela — e, então,

pioraremos tudo.

—Então, vamos! — concluiu ele — Julio e Luis não esperarão toda

a noite.

Julio e Luis eram sobrinhos da aia cigana de sua irmã Aurora.

Tinham-no acompanhado, decididos a lhe emprestar a ajuda necessária

para resgatá-la; bastou que mencionasse o problema, para que acudissem

dispostos. Andrew também contratara um par de trabalhadores, por

precaução. Não queria deixar nenhum fio solto.

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Rosa o olhou atônita, mas eufórica. Andrew pretendia que partisse

com ele! Ela nada ansiava mais no mundo, mas não podia fazê-lo, disse-se,

com desânimo.

—Pretende que me parta com você, agora? — perguntou, surpresa.

—Acabo de assaltar um convento para liberar você, que resgate

seria se a deixasse aqui?

A lógica era esmagadora, mas ela não variou sua postura.

Rosa quase conseguira a liberdade. Tinham-lhe concedido o

indulto, mas precisava ter uma conversa com seu irmão pela manhã, antes

de ser liberada. Não podia fugir! Fazer isso seria complicar tudo.

—Não posso partir com você — disse, ao fim, cheia de angústia.

Andrew a olhou, incapaz de reagir e sem entender de todo sua

negativa.

Por ela, galopara como um louco até Dover. Procurara e contratara

um veleiro que lhe custou uma pequena fortuna, e que, nesse preciso

momento, estava ancorado no porto de Sevilha, esperando-os. Recorrera a

seus dois amigos bandoleiros para que o ajudassem, e Rosa resistia a

acompanhá-lo.

—Não fala sério — alfinetou, ainda incrédulo.

Ela compreendeu que sua negativa o incomodava, de novo, mas

devia fazer as coisas bem por sua pequena.

—Antes de poder partir de forma definitiva, tenho de falar com meu

irmão Alonso e, para isso, devo permanecer aqui.

Andrew ignorava que Rosa fora indultada pela Coroa em troca de

pactuar algumas coisas com o duque de Fortaleza. Acordos que iam

confirmar aquela mesma manhã, antes de sua completa liberação.

—Fala do mesmo irmão que está disposto a acusá-la? A contribuir

com seu enforcamento?

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As perguntas a desconcertaram, porque aquilo não era verdade.

Alonso não era um assassino.

—Permita que lhe explique...

—Não temos tempo — a interrompeu ele.

—Andrés! Não posso partir com você! —exclamou, cheia de dor.

Andrew se cansou de suas contínuas negativas. Rosa tinha uma

obrigação com sua filha muito mais importante que pactuar um acordo com

seu irmão. Segurou-a pelos ombros, para obrigá-la a sair do leito, mas ela

resistiu.

—Não posso acompanhar você — insistiu, embora morresse de

vontade de fazê-lo.

Sua cortante negativa o enfureceu. Olhou-a de maneira intensa,

penetrante.

—Peço-lhe uma prova de amor — disse, solene.

—Prova de amor? — repetiu ela, completamente sobrepujada.

—Se alguma vez me quis, se deseja abraçar de novo nossa filha,

peço uma prova de amor: acompanhe-me agora. Não olhe para trás. Deixe

tudo e venha comigo. Sem perguntas, sem dúvidas. Só venha.

Rosa fechou os olhos, por um instante. Andrew não imaginava o

que significava para ela deixar tudo e sem solucionar nada. Tinha ao

alcance da mão pactuar um acordo que resultaria benéfico para a filha de

ambos no futuro. E lhe pedia uma prova de amor, mas... Por Deus que ia

dá-la!

—Então, vamos, rápido!

Andrew a beijou, profundamente, antes de virar-se e ir para a porta

fechada.

Rosa tinha baixado já um pé ao chão, enquanto agarrava a bata para

vesti-la, mas, com tão má sorte, que o outro pé se enredou no longo

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cinturão, ao tentar dar um passo. Assim, não pôde reagir a tempo, e caiu

com estrépito para frente, golpeando a cabeça na esquina bicuda da

mesinha de noite, sobre a qual havia um copo de água meio vazio e um

rosário de contas de madeira com um crucifixo de prata.

Ficou inconsciente no chão, e Andrew correu para socorrê-la.

Abraçou-a muito forte e a estreitou contra seu peito, aflito; instantes depois,

tomou o pulso e se fixou no golpe que levou na cabeça e que começava a

adquirir uma cor púrpura.

Agarrou-a nos braços e a tirou da estadia. Com ela assim, não

poderia escalar o muro, mas, graças à lady Jane, sabia que caminho tomar

para sair pela porta principal sem contratempos. Só devia ter um pouco de

paciência. Logo, seria a hora de laudes, quer dizer, por volta das três da

madrugada. A essa hora, segundo a regra beneditina, era preceptivo que

toda a comunidade religiosa se reunisse na capela para rezar, e faltavam

apenas uns minutos. Ao não ser monja nem noviça, Rosa não tinha essa

obrigação, e, por isso, a encontrou dormindo em seu leito como um anjo.

Lady Jane instruíra Andrew muito bem a respeito.

Olhou o corpo feminino que sustentava entre seus braços com

imensa ternura.

Rosa tinha perdido peso, era de sobra conhecida a austeridade dos

conventos em todos os aspectos, mas ele pensava em mudar essa

circunstância, imediatamente. No momento em que despertasse, conseguir

para ela um café da manhã digno de uma rainha, para lhe pôr carne nos

ossos.

A partir desse momento, estaria junto a ele, em sua casa e em seu

leito. Podia um homem pedir mais? Duvidava.

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Um suave balanço despertou, mas lhe doía terrivelmente à cabeça e,

além disso, sentia o estômago revolto. De repente, recordou tudo. Golpeou-

se, ao cair sobre a mesinha!

Levantou a mão e comprovou que tinha a cabeça enfaixada, embora

pudesse perceber a protuberância do golpe através da fina atadura.

Quando se incorporou, viu Andrew aos pés do leito, observando-a

com olhar cálido. Tinha as mãos apoiadas nos estreitos quadris. Vestia

calça negra ajustada, camisa branca com dois botões abertos no pescoço, e

faixa vermelho combinando com o lenço, que atara como um corsário;

parecia uma mescla de pirata e bandoleiro. O coração se acelerou,

imediatamente, pois estava muito mais atraente que antigamente. Os anos

lhe deram um ar muito mais amadurecido, mas seguia tendo o mesmo

aspecto de patife.

Olhou-o com um pesar tão profundo em seus olhos castanhos, que

conseguiu incomodá-lo, embora não fosse consciente disso.

Andrew seguia suas sucessivas emoções com atenção. Viu-a passar

do amor mais intenso ao arrependimento mais genuíno e se perguntou o

motivo. Os olhos de Rosa lhe demonstravam que seguia sentindo um

interesse muito profundo por ele e algo mais que o mantinha alerta.

—Meu Deus, sou uma insensata! — exclamou ela, com um fio de

voz.

Rosa percebia a enorme estupidez que tinha cometido, ao não falar

com seu irmão e deixar todos seus assuntos bem atados.

Ele seguiu contemplando-a, em silêncio. Hesitando entre ir a seu

encontro e abraçá-la ou esperar que se acostumasse à ideia de não ter o

controle sobre os acontecimentos.

Finalmente, rompeu o silêncio.

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—Está a salvo — disse, depois de um longo momento que, para

Rosa, pareceu tenso.

Sua mente seguia calibrando as consequências de sua escapada.

—Já estava a salvo, Andrés — respondeu, com a voz fraca — mas,

quando estou com você, não posso pensar. Nubla-me o julgamento e a

razão — acrescentou, com certo pesar.

Andrew esperava outro comportamento por sua parte, não aquela

resignada aceitação; e isso lhe provocava incerteza.

—Desculpe meu ceticismo, Rosa, acaso não estava encerrada entre

quatro paredes, a espera de um julgamento que a tivesse condenado à

forca?

«É certo, mas não tem nem ideia do que fiz», pensou mortificada.

—Graças a John Beresford, minha vida não corria perigo —

esclareceu, com um tom que soava a recriminação. Andrew apertou os

punhos aos flancos, ao ouvir isso — Só tinha de assinar um acordo

voluntário mediante o qual me comprometia a não voltar a me envolver em

uma conspiração contra a Coroa espanhola. Era o preço pelo indulto

devotado e, como garantia, devia deixar minhas posses em Sevilha.

—Então, que seu irmão Alonso envie o acordo à Inglaterra, onde

residirá, a partir de agora. De lá, poderá administrar todos os aspectos

legais presentes e futuros.

Rosa se disse que ele não tinha nem ideia do que podia significar

sua partida.

—Para meu irmão, minha fuga significará uma prova mais de

minha rebeldia e minha intenção de não manter o acordo. — Andrew não o

via como ela — Deveria retornar e tentar consertá-lo.

—Não — respondeu ele, cortante — Se retornar, prenderão você,

de novo, por essas mesmas razões.

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—É uma possibilidade...

—Já não há volta, Rosa, aceite.

Ela apertou os lábios, aborrecida por sua postura intransigente.

Jogava-se muito!

Vê-lo, depois de tanto tempo, criou um caos emocional. Despertou

todos os sentimentos que acreditava controlados e conseguiu fazer renascer

o fogo da paixão que a consumia, mas, agora, mais calma, dava-se perfeita

conta do enorme engano que cometera. Só teria de esperar um pouco mais

e sua liberdade seria uma realidade sem sombras.

—Não decida por mim! — alfinetou, seca, e Andrew sentiu uma

sacudida em todo o corpo que o deixou tremendo.

Seu rosto, normalmente risonho, adquiriu um tom vermelho de

fúria.

—Acaso não o fez você faz anos? Decidiu por mim e me roubou

cinco preciosos anos de minha filha. É a menos indicada para me lançar

uma acusação assim.

Rosa inspirou fundo. Levantou-se do leito e se aproximou, até ficar

a um passo dele. Equivocou-se ao escolher as palavras; podia ver em seus

olhos o ferido que se sentia.

—Lamento — se desculpou, com sinceridade — mas a

oportunidade de consertar minha situação e ver você, depois de tanto

tempo, me perturbou de tal forma que esqueci tudo. Com você, sempre me

esqueço de tudo.

Suas palavras pareceram, para Andrew, uma recriminação.

O brilho dos olhos azuis se empanou, por um instante, e a olhou,

fixamente, sem piscar. Parecia-lhe inaudito que Rosa acreditasse que

aquela simples desculpa pudesse apagar cinco anos de pérfido silêncio.

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—Isso é tudo? — perguntou, com voz colérica — Faz uma ideia do

dano que me fez? Suas ações foram uma afronta difícil de assimilar.

—Foi uma decisão provocada pelas circunstâncias — se defendeu

ela.

Andrew estava cada vez mais zangado. Tinha a esperança de

encontrar outra explicação. Medo, vergonha, possivelmente vacilação...

—Pelas circunstâncias? — repetiu, com voz ameaçadora — Acaso

enganei você? Acha que menti? Que a usei, vilmente?

O rosto de Rosa ia adquirindo a cor dos morangos amadurecidos.

Suas palavras soavam devastadoras nos lábios masculinos.

Sentia-se mortificada, porque Andrés tinha razão em tudo.

Enganara-o, ao não lhe dizer quem era realmente. Mentira, ao evitar

encontrar-se com ele nas duas ocasiões em que havia retornado a procurá-

la, e o usara sexualmente para cumprir um propósito: deixar de ser uma

noviça aceitável para a Igreja.

—Teria de experimentar o que se sente, quando mentem para você,

quando usam você.

—Cale-se! Deixe de repetir isso — pediu, angustiada.

—Mas, a diferença de você, nossa filha me importa muito para

devolver a você o que realmente merece.

—Acreditava que me tinha perdoado — disse, em um sussurro.

—Neste momento de minha existência, sinto-me traído, e o perdão

fica em um segundo plano.

Rosa mordeu o lábio inferior, com nervosismo. Ante a alegria de

vê-lo, tinha esquecido o censurável de suas ações.

—Traí você, mas não com intenção de feri-lo. Suas palavras o

fazem parecer vingativo, e nunca pensei que fosse.

—Não sou, mas me custa aceitar sua postura.

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Andrés escutava sua explicação muito melhor do que ela imaginara.

—Minha postura tem um propósito: proteger Branca.

Andrew esteve a ponto de amaldiçoar, mas se conteve.

—Seu comportamento a pôs em um grande perigo. Esteve a ponto

de deixá-la órfã, converteu-a em uma possível arma para que seu tio se

vingue de você, além de convertê-la em centro dos olhares e a crítica de

todos que a rodeiam, o que a impedirá de levar uma vida digna, porque

sempre será a filha de uma traidora e uma bastarda.

Rosa conteve um gemido. As palavras de Andrew estavam cheias

de razão e a golpearam, ferozmente, embora o tom utilizado por ele fosse

muito mais suave do que merecia.

—Tratava de evitar precisamente isso — disse.

—E isso redime sua premeditada conduta anterior?

—Enviei-a a Inglaterra para seu pai — recordou.

Andrew resmungou ostensivamente.

—Enviou-a a Inglaterra unicamente quando se viu quase com a

soga ao pescoço, não por um gesto de consideração a mim. Acaso os fatos

não a assinalam como uma mulher traiçoeira?

Tinha toda a razão em sentir-se ofendido, mas ela agira por um

sentimento de lealdade e, agora, por medo.

—Traiçoeira não, desesperada — o corrigiu — E o desespero nos

induz a cometer atos impulsivos e equivocados.

—Então, também poderá justificar meus.

—O que trata de me dizer?

Já não respondeu. Falou-lhe sem piedade, mas se sentia tão

ultrajado em seu orgulho masculino que não media as palavras.

—Quando cruzarmos o mar da Irlanda, explicarei.

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—O mar da Irlanda? — Rosa não compreendia nada — Não vamos

a Portsmouth? — Seu silêncio a alarmou — Aonde me leva?

—Vamos a Gretna Green.

—A Gretna Green? — perguntou, ainda mais confusa.

—Vamos nos casar na Escócia. Minha filha não pode continuar

sendo uma bastarda.

Rosa ficou muda. O peso de suas palavras caiu em cima dela como

um raio paralisante.

Andrés ignorava que estava casado com ela por procuração!

—Não posso me casar com você! — exclamou, com o estômago

encolhido de apreensão.

Andrew tomou sua negativa da pior forma possível e não pôde

conter-se. Emoldurou-lhe o rosto com as mãos e a olhou com olhos como

adagas. Afundou os dedos em sua espessa e longa juba e os fechou como

garras, para obrigá-la a jogar a cabeça para trás.

—Basta! — disse, com voz rouca pelo despeito — Não penso em

tolerar nenhuma negativa mais. No passado me ofereceu muitas, mas, neste

momento, não vou aceitar nenhuma sozinha.

Soltou-a com tanta força que ela esteve a ponto de perder o

equilíbrio, mas pôde segurar-se com a mão direita à camisa dele, para

evitar cair.

—Andrés! — exclamou doída — Não compreende que...?

Não lhe permitiu continuar. Silenciou-a, com um dedo, embora

fosse o obscurecimento de seus olhos o que calou sua réplica.

—Nesse arca, tem roupa. — Assinalou-lhe um baú com a cabeça,

situado em um canto junto à estreita mesa que servia de escritório —

Troque-se e desfrute da travessia.

Saiu do camarote precipitadamente.

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Rosa ficou pasma. Cheia de um desgosto que lhe provocava um

sufoco físico. John mentira! Andrew não sabia que estava casado com ela.

Deus bendito! E agora como lhe explicava que não podiam casar-se porque

já estavam unidos em matrimônio? E o mais preocupante, como se tomaria

ele esse troco em sua vida, sem ter participado dele? O temor pelo possível

resultado a martirizava, porque a manipulação fora completa.

Andrew teria motivos de sobra para estar, e continuar estando,

completamente zangado com ela.

CAPÍTULO 11

Alonso de Lara olhou para a madre superiora, fulminando-a com o

olhar. Ignorava por que lhe escondera as visitas que havia recebido sua

irmã no convento, dias atrás. E, agora, se inteirava de que desaparecera de

seu quarto sem deixar rastro. Via a religiosa retorcer as mãos, com

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preocupação, certamente devido às repercussões que poderia ter para a

ordem o aborrecimento da casa De Lara. E tinha razão em estar

preocupada, porque, nesse momento, sentia o impulso de retirar os recursos

que destinava ao convento cada ano.

Olhou para seu secretário e homem de confiança, que seguia

passando um dedo pelos documentos que encontraram nas dependências de

sua irmã, em uma gaveta do pequeno escritório.

Luis do García era um advogado muito competente e trabalhava

para ele fazia vários anos.

Alonso seguia atônito; a roupa de sua irmã estava toda no armário,

assim como objetos pessoais que nenhuma mulher deixaria de forma

voluntária. Seus olhos percorreram o quarto espartano. Podia perceber no

ambiente o perfume de Rosa, e se perguntou, pela enésima vez, por que

teria voltado a enganá-lo.

—O documento é legal — afirmou o secretário.

Alonso apertou os dentes, com força. Fora um estúpido. Sua irmã

seguia sendo igual de rebelde e contumaz.

—A menina foi reconhecida por seu pai — acrescentou, de repente,

o advogado.

—Menina? — perguntou Alonso, com voz furiosa.

—A filha de sua irmã, senhor Lara. Entre os documentos, está sua

certidão de nascimento.

«Rosa tem uma filha? Impossível!», pensou Alonso. Se tivesse, ele

saberia. Começou a caminhar acima e abaixo da estadia. Refletindo,

descartando possibilidades, sopesando alternativas.

—A menina, Rosa Catalina Branca de Lara, nasceu na cidade de

Córdoba.

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Alonso fechou os olhos, um instante, incapaz de assimilar a

surpreendente noticia. Rosa tinha uma filha! Uma menina que ele

desconhecia por completo!

—Tenho uma sobrinha? — perguntou, completamente estupefato

— E não sabia absolutamente nada? — Seu olhar de falcão se cravou na

religiosa, que desviou os olhos, rapidamente — Isto é uma traição sem

comparação! — exclamou, colérico.

Luis do García continuava examinando documentos.

—O matrimônio de sua irmã com lorde Andrew Robert Beresford é

legal. A cerimônia foi oficiada pelo embaixador inglês, sir George Villiers.

Alonso pensava a toda velocidade. Havia dito Beresford? Tinha de

estar equivocado.

—Os Beresford de Portsmouth? — perguntou, com voz cheia de

ódio e ansiedade.

O advogado assentiu com a cabeça, e Alonso amaldiçoou,

violentamente. Ele conhecia muito bem os Beresford, mas uma dúvida lhe

mordia o coração, lhe provocando um estado caótico difícil de conter:

como Rosa os conhecera? Indubitavelmente, por sua amiga Isabel, a filha

de seu inimigo mais inveterado: o conde Ayllón.

—Maldita traidora! — resmungou, ofendido.

Rosa zombava dele durante anos. Maquinara às suas costas, não só

contra a Coroa, mas também contra a casa De Lara. Tinha a certeza de que,

por trás do casamento de sua irmã com um maldito inglês, estava o conde

Ayllón. E jurou fazê-lo engolir suas manipulações.

—A rainha María Cristina atuou como testemunha ausente do

matrimônio. Aqui está sua assinatura real no documento — prosseguiu o

advogado, que seguia examinando documentos.

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Alonso cada vez entendia menos. A rainha não podia apoiar a união

de sua irmã com um desconhecido. Tinha de haver um engano.

—Todas as propriedades foram transferidas em nome de sua

sobrinha, senhor Lara. E o pai da pequena foi renomado tutor e curador das

mesmas. — Alonso piscou incrédulo. Abobalhado. Sua irmã jogou suas

cartas com uma astúcia assombrosa — Mas estes documentos são meras

cópias, imagino que os autênticos estarão em poder de lorde Andrew

Robert Beresford.

—Não servem para uma reclamação? — perguntou.

O advogado negou com a cabeça.

—Suponho que sua irmã decidiu fazer uma cópia deles, se por

acaso fosse necessário.

—Necessário para que? — inquiriu Alonso, com voz ainda mais

furiosa.

—Para que a Coroa ou a casa De Lara não pudesse ter acesso às

suas propriedades e a sua fortuna. Com eles, poderia mostrar sua

legalidade, mas não serviriam para levar a cabo uma reclamação, porque

para isso são necessários os originais.

Alonso resmungou, ostensivamente. Mas, se sua irmã acreditava

que o vencera, estava muito equivocada. Cravou seus olhos em seu

secretário e homem de confiança que, agora, contemplava em silêncio os

documentos.

—Vá a Córdoba, ao palácio de Zújar, e procure lá todos os

documentos que ache de interesse. Veremo-nos em Madrid em dois dias.

O outro homem lhe fez um gesto afirmativo. Alonso recolheu todas

as cópias, enrolou-as e as atou com uma fita amarela. Olhou o advogado,

com os olhos semicerrados.

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—E prepare um contrato matrimonial entre minha sobrinha, Rosa

Catalina Branca de Lara, e o primogênito do duque de Marinaleda, Leon

Alejandro de Fidalgo e Ursina.

Luis do García se recostou no respaldo da cadeira, enquanto olhava

o duque de Fortaleza caminhar de um lado a outro da estadia com rosto

sombrio e um duro olhar.

—Esse acordo matrimonial estava destinado a sua filha, senhor

Lara — disse, de repente.

Alonso se deteve e o olhou. Em efeito, combinara esse acordo para

sua futura filha, mas ainda não tinha descendência e duvidava que a tivesse.

—Mas eu não tenho nenhuma filha, não é? — perguntou, de forma

retórica — Embora me caiu do céu uma sobrinha. Um golpe de sorte que

penso em aproveitar ao máximo.

—O duque de Marinaleda pode pôr alguma objeção a respeito —

disse o advogado, com tom comedido.

—Meu amigo Leonardo não porá objeções — alegou, convencido

— Seu filho tem quase quinze anos, e minha sobrinha cinco. Uma idade

muito apropriada para arrumar um matrimônio entre ambos.

—Devemos pensar na parte contrária. O pai da menina pode opinar

de forma muito diferente — continuou o homem de confiança do Alonso

— Não esqueça que foi reconhecida recentemente. A menina é, portanto,

cidadã inglesa.

Alonso sorriu com cinismo.

—A menina nasceu em Córdoba, não é certo? — O advogado

assentiu — Isso é o único que me importa.

—Deverá obter que a Coroa apoie sua reclamação sobre a menina.

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—Sou um Grande da Espanha4. A Coroa me respaldará. Como

responsável por minha sobrinha, poderei conseguir um casamento com uma

casa leal à Coroa. E minha irmã estará completamente de acordo, posso

assegurar.

Levavam vários dias de navegação, mas Andrew não fora nenhuma

só vez ao camarote onde Rosa estava encerrada. Esta sentia que mudara

uma prisão por outra. Cada vez que um dos grumetes lhe levava uma

bandeja com comida, ela insistia em sair, mas sempre topava com uma

cortante negativa. E sua fúria ia alcançando o ponto de ebulição necessário

para uma explosão, salvo que não podia ressarcir-se como gostaria.

Passou os dedos pelo cabelo despenteado. No pequeno camarote,

não tinha sequer um pente, assim não ficava mais remédio que levá-lo solto

e desgrenhado. Banhava-se, a cada noite, com água salgada, embora fosse o

suficientemente grata para não queixar-se dessa circunstância. Entretanto,

não suportava a solidão e o silêncio. Apesar dos anos que havia passado no

convento, não se acostumava à falta de companhia e chegou a pensar que ia

voltar se louca, se continuasse presa, com a melancolia como única

acompanhante.

Com o transcorrer das horas, pôde repassar uma e outra vez sua

situação.

Escapara de Sevilha no momento menos indicado. Pretendia fazer

as coisas bem pelo futuro de sua pequena, para que pudesse voltar para

Córdoba sem que a considerassem uma pária, mas isso agora já não poderia

4 “A Grandeza da Espanha é o máximo título da nobreza espanhola na hierarquia aristocrática. É

também a mais alto título de seu tipo em toda a Europa. Seus privilégios foram maiores que os de

outras figuras similares: pares da França ou do Reino Unido.”.

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acontecer. Depois do indulto, teria de viver na Inglaterra, mas de que lhe

servia? Amaldiçoou sua má sorte e a teimosia de Andrew por não escutar

as razões que havia enumerado para retornar imediatamente à cidade de

Guadalquivir. Ao pensar nele, o coração se acelerou de novo. Estava muito

mais atraente e viril, sem que a veia de canalha que o caracterizava tivesse

desaparecido nem um pingo. Mas ambos estavam colocados totalmente em

uma situação bizarra, casados sem que uma das partes soubesse. Rosa

concluiu que merecia tudo o que lhe ocorria; por agir sem pensar nas

consequências.

Vivera de forma temerária, dando passos perigosos sem calibrar

aonde a levariam e, agora, se encontrava com o que se procurou com sua

soberba: o desterro e o desprezo do homem que mais lhe importava. Porque

não cabia a menor dúvida de que Andrew a desprezava. Seu olhar colérico,

cheio de recriminações, o dizia. Ela o feriu de uma maneira profunda,

completa. A mente de Rosa, rebelde e faminta, voltava uma e outra vez aos

dias que passara em sua companhia. Amando-o de uma forma louca e

alucinada.

A primeira noite, quando o conheceu, se vestia e ria como um

fazendeiro cordovês, salvo por aqueles olhos cor de céu, e o cabelo

dourado. Andrew a olhou, e todo seu corpo se amotinou em um desejo que

a abrasou por completo. Nunca desejou nada com tal intensidade, até o

ponto da loucura, e essa imprudência temerária de ansiar o que não devia

ainda a martirizava, porque se comportara como uma tola, com uma

insensatez carente de toda lógica. Mas Andrew lhe correspondeu, e ela se

refugiou em seus braços com uma força demolidora e, logo, o afastou de si

por essa mesma loucura que a havia possuído.

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A porta do camarote se abriu com certa brutalidade, e Andrew

apareceu por ela. Entrou com semblante sério e olhar crítico, e Rosa se

encolheu como se houvesse sentido uma dor repentina.

—Acabamos de entrar na baía de Portsmouth.

Suas palavras a desconcertaram.

—Então, não vamos cruzar o mar da Irlanda?

—Há uma pequena mudança de planos.

—Por quê? — Rosa esperava que explicasse, mas o mutismo dele

lhe resultou inesperado — Mereço saber, Andrés.

Ele a olhou com um brilho resistente que lhe produziu um calafrio.

—Saberá ao seu devido tempo. Agora, prepare-se para deixar o

navio. Toma, cubra-se com esta capa.

Rosa pôde agarrá-la, antes que caísse no chão. Seguia de camisola.

Andrew não teve a previsão de pegar um vestido de seu armário no

convento, quando ela bateu a testa na mesinha de noite.

Ele partiu da mesma forma que chegara: com brutalidade, e ela

ficou de pé, no centro do camarote, sem saber a que ater-se. Recordou a

azeda discussão que mantiveram dias atrás e procurou o motivo para sua

mudança de atitude, agora, distante e fria. Não parecia o mesmo homem

pelo qual se apaixonou, e a culpa a afogava.

As seguintes horas foram caóticas.

No navio, os marinheiros iam e vinham pela proa e popa a toda

velocidade, em uma atividade frenética que lhe resultou viciante pelo

contraste com o tempo em que passara em absoluta passividade. Rosa

ignorava todo o relativo ao manejo de um veleiro, nunca teve ocasião de

viajar por mar; a maior parte de sua vida transcorreu entre quatro paredes

silenciosas, sem companhia, salvo os anos que havia vivido e estudado na

França, que foram os mais formosos e frutíferos, embora cheios de

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insatisfações. Ninguém lhe perguntara nunca aonde queria viver, o que

desejava fazer com sua vida; sempre agiram por ela, tomado decisões em

seu nome. Primeiro, seu pai, depois, seu irmão, e, agora, Andrew.

Do corrimão do veleiro, pôde ver a atividade do porto, os diversos

navios amarrados, a atividade comercial do entorno e a carruagem com o

emblema dos Beresford na porta esperando no porto. Uma brisa fria

penetrou pela barra de sua camisola e formou redemoinhos com o tecido

entre suas pernas. A fina capa não a protegia do vento gelado que soprava.

A diferença com o clima de Sevilha era mais que notável, mas, ao olhar as

verdes montanhas, seu cenho enrugado se distendeu. A Inglaterra era um

país formoso. Poderia encaixar-se ela lá?

—Preparada? — voltou-se, bruscamente, ao ouvir a voz de Andrew,

parado atrás dela — Sua filha a espera.

Suas palavras conseguiram fazê-la perder a coragem, porque se

tinha referido à pequena Branca unicamente como filha dela, não de ambos.

Não soube como tomar a frieza que mostravam seus olhos e a expressão

cínica daquela boca que ansiava beijar.

—Andrés... — começou — nunca pretendi ferir você, ao menos, de

forma consciente. — Calou um momento para posar a mão no braço dele

— Peço, por nossa pequena, que dissimule o ressentimento que sente por

mim diante dela. Por favor. Somente na presença da menina, o resto da

gente não me importa.

Andrew a olhou, com intensidade.

Rosa voltava a ser a mesma mulher que o rechaçara no passado:

comedida, séria, prudente, amadurecida. Mas ele sabia que era uma

fachada, porque, entre seus braços, era toda fogo e paixão. Por isso, agora,

detestava sua aparência altiva, senhorial.

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—Não pressuponha meus sentimentos — respondeu — Estou

furioso, decepcionado, mas não sinto ressentimento por você.

O coração de Rosa voou durante um segundo, impulsionado por

uma alegria desconhecida.

—Obrigado — disse, comovida. Ele contemplou como seus lábios

pronunciavam seu agradecimento — Não mereço sua consideração nem

sua amabilidade, depois do trato injusto que lhe dei.

Andrew elevou as sobrancelhas, interrogante. Sua aparente

submissão resultava todo um enigma para ele, e deduziu que os dias que

Rosa passou em solidão tinham obrado o milagre de lhe insuflar sensatez,

ao menos, essa era sua intenção.

Manter-se afastado dela custou-lhe um esforço sobre-humano.

—Nisso estamos de acordo — respondeu, com voz tranquila — O

rancor é uma emoção que desprezo e que não tem lugar em minha vida.

Confio em que não se esqueça disso.

Por que motivo sua elucidação, tão seca, parecia uma ameaça?,

perguntou-se Rosa, com curiosidade.

—Não esquecerei.

—Então, vamos, Whitam Hall nos espera.

Rosa tomou o braço que Andrew lhe oferecia e o seguiu pela

passarela em suspense.

Uma nova vida se abria ante ela, mas não estava segura de estar à

altura. Tinha medo, mas que ser humano poderia manter-se impávido ante

tamanhas adversidades? Estivera tão perto da morte que ainda não se

recuperou do susto.

Sob os dedos gelados percebia a força dos músculos de Andrew e

não soube por que estranha razão isso a fazia sentir-se reconfortada. Sem

querer, ele sempre teve essa capacidade de fazê-la sentir-se a salvo. E

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esperava que essa emoção fundamental não se esfumasse nunca de seu

corpo nem de seu coração.

Whitam Hall era espetacular. A mansão fora erguida em um terreno

alto e, na extremidade, dominava a baía de Portsmouth por completo. Com

seus dois andares, elevava-se orgulhosa para o céu. A fachada era luxuosa,

sólida, majestosa. Quando Andrew a conduziu para dentro, sua surpresa

aumentou ainda mais. No amplo vestíbulo, havia duas escadas, uma de

frente para a outra, que subiam ao andar de acima. Os móveis pareciam

fabricados especialmente para a casa, e os numerosos quadros do saguão

ofereciam ao convidado a magnífica oportunidade de admirá-los e valorá-

los, enquanto esperavam ser recebidos. Deteve-se ante um que chamou,

poderosamente, sua atenção. Era o último da fileira, e a mulher

representada no tecido a deixou sem respiração, durante um momento. Era

bela e, indubitavelmente, de origem espanhola.

Andrew observou a série de emoções que atravessaram o rosto dela,

ao olhar os retratos de sua família.

—Quem é? — perguntou Rosa, cheia de curiosidade.

—Minha irmã Aurora — respondeu ele.

—É muito bonita.

«Não tanto como você», pensou Andrew, sem deixar de olhá-la.

Uma voz infantil no andar superior fez com que Rosa levasse a mão

à garganta, sobressaltada. Hesitava entre dar um passo ou ficar quieta. A

pequena Branca descia os degraus com rapidez, acompanhada de lady Jane.

Gritava e aplaudia, ao mesmo tempo, e, quando desceu o último degrau,

ficou parada, durante um instante, antes de voltar a gritar como uma louca.

—Mami! Mami!

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Empreendeu uma veloz corrida em busca dos braços de sua mãe,

que ficou de cócoras, justo no momento em que Branca chegava a seu lado.

Estreitou-a em um abraço tenro e amoroso, enquanto a cobria de beijos.

—Minha menina preciosa. Como está grande!

Menina e mulher riam e falavam, ao mesmo tempo. Andrew pôde

notar a emoção na voz de Rosa. A esperança que continha e a alegria que a

transbordava. Um momento depois, a pequena se separou dos braços de sua

mãe e correu a abraçar-se às pernas de seu pai. Andrew ficou cravado no

chão, ante essa amostra de afeto inesperado.

—Obigada!Obigada!

Ele a segurou nos braços e a estreitou, com força. Sua felicidade

resultava contagiosa.

—Disse que a reuniria logo com ela. Tinha esquecido?

Rosa contemplou extasiada a imagem de Andrés girando com a

filha de ambos nos braços e sentiu um nó na garganta que a impedia de

respirar. Nesse momento, era plenamente consciente do enorme dano que

lhe fizera com seu silêncio, e essa certeza lhe pesou na alma como se

levasse em cima de si uma imensa roda de moinho.

Lady Jane abraçou Rosa com carinho e respeito.

—Alegro-me tanto de vê-la— disse, emocionada.

—Obrigado por cuidar de minha pequena — respondeu ela.

Marcus, o mordomo, pigarreou para chamar a atenção de Andrew.

—A bagagem já está descarregada da carruagem, assim como

outros equipamentos que levou.

—Obrigado, Marcus. Ordene que preparem o quarto dourado para a

senhora Lara.

—Ocupei-me disso, antes de sua marcha.

Andrew sorriu. O homem era excepcionalmente eficiente.

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Rosa mordeu o lábio inferior, preocupada. Tinha de haver revelado

a Andrew que estavam casados, mas, depois de cinco anos de separação,

quase lhe parecia um insulto. Sopesou se seria melhor que fosse John quem

informasse a seu filho da medida adotada em seu nome para liberá-la da

forca e tirá-la da Espanha. Finalmente, não sem certas reservas, decidiu que

o marquês era o mais apropriado para explicar.

Esperaria sua volta para lhe revelar a Andrew o matrimônio entre

ambos.

—Seu irmão Christopher e sua esposa deverão jantar aqui, esta

noite.

Andrew fechou os olhos ante a notícia. Quão último precisava era a

presença de seu irmão mais velho e sua cunhada em seu primeiro dia em

Whitam, mas não disse nada. Seguia com sua filha nos braços, que agora

havia recostado sua pequena cabecinha em seu ombro com verdadeiro

prazer.

—Acompanhamos a mamãe a seu quarto?

A pequena Branca lhe fez um gesto afirmativo.

—Esperarei vocês na biblioteca — disse lady Jane, com as mãos

cruzadas sobre o colo.

Os três seguiram Marcus para o andar superior.

Rosa caminhava atrás de Andrew e sua filha. Contemplou,

entusiasmada, o laço paterno-filial que se desenvolveu entre eles, e isso a

enterneceu, profundamente. Disse-se que o sangue podia mais que a lógica

e os raciocínios. Andrew poderia estar zangado com ela, mas jamais

pagaria com a pequena. E todas as dúvidas que sentia, antes de decidir

entregar-se, se voltaram contra ela de uma forma feroz. Cinco anos atrás,

equivocou-se, e esse tempo maravilhoso e único já não poderia ser

recuperado.

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Marcus se deteve em frente a uma porta fechada, procurou entre

suas chaves a da habitação e, um momento depois, estava abrindo as

cortinas e abrindo as janelas que davam ao jardim traseiro.

Rosa contemplou o quarto com agrado. Ao ver os marcos dourados

dos quadros e o espelho, assim como a colcha, compreendeu por que o

chamavam de quarto dourado.

—É precioso — conseguiu dizer.

—A habitação de Branca é contigua a esta — informou Andrew —

Lady Jane está alojada no outro extremo do corredor.

Marcus ordenava alguns objetos de cama que as donzelas deixaram

aos pés do leito.

—Lamento que não tenha roupa, mas Emma lhe trará algumas dos

objetos que minha irmã deixou em Whitam, quando se mudou para seu

novo lar. A donzela a ajudará a fazer os acertos necessários para que lhe

sirvam. Confio em que possa vestir algum dos vestidos antes do almoço.

—Não se importará? — perguntou ela, com certa vacilação.

As mulheres costumavam ser muito possessivas com seus pertences

e a última coisa que desejava era incomodar a irmã de Andrew.

—Aurora é muito generosa, estará encantada em ajudar.

—Obrigada.

—Amanhã, iremos a Portsmouth para lhe encomendar um novo

vestuário. — Rosa permaneceu em silêncio — Logo, virei buscar você para

acompanhá-la à sala de jantar.

A seguir, deixou a pequena Branca no chão. Esta correu até o leito e

se sentou sobre o fofo colchão.

—Passe bem — disse Andrew à menina e, depois, girou sobre si

mesmo e se encaminhou à porta que Marcus sustentava aberta.

Um instante depois, o quarto ficou em silêncio.

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CAPÍTULO 12

Andrew não sabia como enfrentar os acontecimentos.

Quando decidiu ir em busca de Rosa para tentar salvá-la, tinha as

ideias claras, mas agora tudo se tornava de um cinza tão escuro que o

impedia de orientar-se para avançar. Estava preciosa, muito mais formosa

do que recordava, mas sua contenção era um muro que ele não poderia

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escalar, se ela não o ajudasse. Sua nova negativa a casar-se com ele lhe

causou o mesmo efeito que uma estocada direta no coração. Não pudera

convencê-la cinco anos atrás, e, agora, embora acreditasse, erroneamente,

que a pequena Branca seria o meio para que ela cedesse, ao fim, havia

tornado a equivocar-se por completo. Por esse motivo, mudou seus planos.

Gretna Green podia esperar por um momento mais propício. Enquanto isso,

ele tinha ante si a maior provocação de sua existência: obter sua completa

capitulação.

Rosa de Lara era a mulher de sua vida. Descobrira isso na granja

Azhara, na mesma noite em que a conheceu. Seus olhos inocentes, sua boca

sensual sorrindo, selaram seu destino. Mas ignorava tantas coisas dela, que,

agora, se perguntava como se conectaram de uma forma tão especial no

passado.

Entretanto, em parte, se sentia tranquilo. Agora, Rosa dependia

unicamente dele, porque havia deixado tudo para acompanhá-lo à sua

pátria, e, embora o patrimônio do Andrew não fosse muito, poderia mantê-

la de forma folgada, até que encaminhasse sua vida profissional. Fora um

excelente estudante, com notas mais que satisfatórias, e pensava que não

lhe resultaria difícil encontrar uma ocupação adequada a sua formação

acadêmica. Inclusive, estava disposto a pedir a seu pai para que lhe desse

uma mão para obter seu objetivo.

Não obstante, se mostrava precavido. Tinha a mente cheia de ideias

e o coração transbordante de ilusões, mas as mãos vazias de respostas por

parte de Rosa, embora nada pudesse mudar as grandes expectativas que se

abriam, ao tê-la em seu lar. O futuro se apresentava cúmplice,

possivelmente conciliador, e não pensava em desperdiçar as oportunidades

que o destino colocava em seu caminho. Tinha de convencê-la. Havia

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muitas coisas contra, mas, mesmo assim, algumas questões deviam ser

discutidas e resolvidas entre ambos.

Chamou com suavidade à porta fechada do quarto. Lá dentro podia

ouvir a risada de Branca e a voz melodiosa de sua mãe, que lhe dizia que

deixasse de pular sobre o leito. Seu coração palpitou, emocionado. Ele, que

fazia umas semanas era um excêntrico sem rumo e sem uma meta essencial

na vida, tinha, agora, a seus cuidados duas preciosas flores; tão delicadas e

especiais que pensava em pôr todo seu empenho em cuidar delas e mimá-

las como mereciam. O conceito de família o orgulhava, pois sempre

invejou a felicidade que se respirava no lar de sua irmã e no de seu irmão

Christopher. Andrew queria o mesmo para si e, agora que tinha uma filha,

devia velar por sua segurança futura.

Branca abriu a porta e, ao ver seu pai de pé na soleira, dedicou-lhe

um sorriso capaz de derreter qualquer um, desses que transformam tudo em

positivo. E Andrew soube que, com ela, ia ter um enorme problema, porque

não poderia negar nada do que lhe pedisse.

—Estão preparadas?

A menina o pegou pela mão para ajudá-lo a entrar, como se intuísse

que precisava.

—Mamãe tem problemas com o decote e desidiu trocar de vestido.

A palavra «decote» lhe produziu um caos emocional.

Recordava, perfeitamente, seu corpo nu entre seus braços, seu

aroma doce e sua pele quente. Teve de pigarrear para recuperar a voz. Só

de pensar intimamente nela, tremia de desejo.

—Sua tia é mais alta que mamãe, e, por isso, o vestido não se ajusta

a sua estatura.

Branca enrugou a fronte assimilando as palavras de seu pai. Ela não

conhecia sua tia, e não sabia se era tão alta como lhe dizia.

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—Mamãe diz que não tem peitos.

—Branca! — A exclamação de Rosa chegou do interior do quarto

de banho.

—Pelo que me lembro, isso não lhe falta — disse Andrew à

menina, como se fosse um segredo.

—Andrés! — voltou a exclamar Rosa, mas mais horrorizada —

Querida — acrescentou, dirigindo-se a Branca — não deve repetir as

palavras que ouve dos adultos, quando estes mantêm uma conversa que não

é com você. — Seu tom foi contundente, para que o efeito da reprimenda

não perdesse sua finalidade: a correção — E mamãe não disse essa palavra.

—Que palavra? — perguntou Andrew à menina como se não a

tivesse ouvido.

—Peitosss — voltou a dizer Branca, arrastando os esses.

—Ah, isso! — exclamou, zombador.

Como podia manter uma conversa tão escandalosa com a menina e

de forma tão natural? Apareceu pelo oco entre o quarto de banho e o

dormitório e ficou olhando pai e filha com olhos amorosos.

Nenhum dos dois se precaveu disso.

E terminou por esboçar um sorriso. Educar a pequena era uma

tarefa constante e pensou que, graças a Andrew, agora, todo seu esforço

terminaria indo por água abaixo, porque ele mesmo era um menino; mas

estava adorável olhando para sua filha com aquela admiração. Não cabia

dúvida do muito que a queria. E voltou a sentir-se terrivelmente culpada.

—Disse busto — matizou, cruzando a soleira que dividia o quarto

de banho do quarto.

Andrew a olhou, mas o sorriso se apagou de seu rosto, ao

contemplar seu traje. Vestia roupas de criada: saia negra e blusa branca.

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Rosa soube o que se passava em sua mente naquele preciso

momento.

—Andrés, não é um desprezo a sua irmã, mas sua roupa fica

enorme em todos os sentidos. Emma teve a amabilidade de me emprestar

algo dela. Ambas temos as medidas parecidas.

—Também eu poderia lhe emprestar algo meu — ofereceu ele, com

um olhar enigmático — Se pusesse isso, faria-me imensamente feliz.

Andrew tinha em mente sua bata de cetim azul. Seria interessante

vê-la vestida sem nada debaixo, só a pele acetinada de seu corpo; o tecido

arrastaria pelo chão, fazendo com que se abrisse na frente, deixando

expostas suas coxas brancas...

Ao ouvir o gorjeio de Branca, Rosa olhou para ambos com olhos

semicerrados; ao parecer, guardavam um segredo. Pai e filha trocaram um

olhar cúmplice que a fez lançar um suspiro.

A pequena voltou a gemer, afogando uma risada.

—Por que riem? — perguntou-lhes, cheia de curiosidade, mas

nenhum dos dois respondeu.

—Está preparada? — A voz de Andrew soou pouco séria.

Ela fez um gesto afirmativo e tomou a mão que lhe estendia, mas,

antes de sair do quarto olhou para a donzela.

—Obrigado, Emma, por sua amabilidade. Logo, lhe devolverei a

roupa.

A moça lhe sorriu e continuou recolhendo os objetos que ficaram

pulverizados sobre o leito, depois das numerosas provas.

—Como e onde lhe contou? — perguntou Andrew.

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Nesse momento, Rosa olhava para sua amiga Jane, que conversava

animadamente com Branca no outro extremo do salão.

—Como lhe contei o que...? — disse ela, voltando à cabeça para

ele, que estava a um pequeno passo.

—Que sou seu pai. — Sua voz tinha um tom de causar pena que

enterneceu Rosa — Tinha me proposto manter esta conversa contigo em

um momento mais propício, mas não posso esperar, a impaciência me

devora, e preciso saber.

Rosa piscou várias vezes, tentando tragar o doloroso nó que sentia

na garganta. Teria de passar muito tempo para que Andrew superasse sua

decepção e ela seus remorsos.

—A mesma noite em que partiu de Zújar a seu encontro.

Andrew tinha uma pequena esperança de que tivesse contado antes

e não na noite em que a prenderam, como acabava de lhe dizer ela, porque

isso queria dizer que, se não fosse pelas atuais circunstâncias, ele seguiria

sem saber da existência da pequena.

—Branca não me disse nada a respeito — explicou ele — Manteve-

se em silêncio como se fosse um segredo muito importante. — Havia

melancolia em sua voz masculina?, perguntou-se Rosa — Todos me

mantiveram na ignorância, e, uma vez que soube, essa atitude me

desanimou.

—Lamento — voltou a desculpar-se.

Podia imaginar o difícil que resultava a ele toda aquela situação,

mas Rosa lhe escrevera uma carta contando-lhe tudo, junto com os

documentos legais para que reconhecesse Branca. Ignorava que John lhe

escondesse e, o mais preocupante, por que? Não lhe ocorriam as palavras

idôneas para suavizar a decepção que lhe provocara, exceto dizer a

verdade.

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Andrew sentia muitas coisas, nesse preciso momento, e a

indulgência não era uma delas. Não podia evitar os sentimentos que o

sacudiam.

—Nunca lhe disse que seu pai estivesse morto, a não ser longe por

circunstâncias alheias que ela não podia entender ainda. — Embora

Andrew devesse haver sentido certo alivio, ao ouvi-la, não foi assim. Doeu-

lhe a manipulação de Rosa a respeito de sua paternidade, mas não disse

nada; continuou em um silêncio distante — Pouco antes que me

prendessem — continuou ela — dava-lhe instruções precisas sobre você e

sobre a viagem que ia empreender. Branca sabia que ia reunir-se, ao fim,

com seu pai, mas lhe pedi prudência e cautela, recordei-lhe que era possível

que não a recordasse, porque tinha passado muito tempo. — Os olhos dele

se estreitaram, com dor — Fiz-lhe prometer que guardaria silêncio até

comprovar que a aceitava, que a recebia com afeto. É uma menina muito

inteligente e entendeu perfeitamente minhas palavras.

—Maldita seja, Rosa! É muito pequena para carregar com essa

responsabilidade. Como pôde...? — Mas não pôde continuar, porque Rosa

cortou seu arrebatamento.

—Fiz o melhor que soube — respondeu, com voz fraca.

—Por que não me disse isso, quando fui buscar você? — Seu tom

era de desgosto — Merecia saber. Tinha uma filha, uma filha do amor, que

mantinha deliberadamente separada de mim.

Esse fora seu engano maior, pensou ela, mas já não podia mudar.

—Não estava preparado para ser pai — soltou, de repente, mas, ao

momento, retificou — Acreditei que não estava preparado.

O dano já aparecia, e não podia retirar suas palavras, que

pareceram, extremamente, ofensivas.

—Estava você para ser mãe?

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Rosa o olhou de frente e, um segundo depois, negou com a cabeça.

A tristeza de Andrew a desarmava.

—Nossa pequena não foi concebida por obrigação nem por honra, a

não ser, como você mesmo disse, por amor. E, por esse amor que sentia por

você, não queria atá-lo a minha vida com os laços de um dever e um

compromisso que não tinha procurado.

Andrew não pôde evitar apertar a mandíbula, ao escutá-la. Parecia-

lhe que as razões que esgrimia eram meras desculpas.

—Uma filha é uma responsabilidade, e eu estou acostumado a levar

as responsabilidades muito a sério — respondeu com voz tranquila, embora

com certo ressentimento que não tentou esconder.

—Aí tem a resposta — replicou Rosa — Era uma responsabilidade

que não procurava, e não me senti com suficiente força moral para obrigá-

lo.

Disse-se que Andrew era um homem que não se intimidava ante

nada. E um espírito livre como o seu não podia ser escravizado por um

arrebatamento de paixão que produziu um filho. Por que ele não podia vê-

lo com a mesma objetividade?

—Casaria com você sem vacilar — disse, com os olhos

semicerrados e ameaçadores. Rosa pensou que casar-se não era o problema.

Andrés retornara a Córdoba em duas ocasiões, para convencê-la — Mas

não me deu a oportunidade de oferecer meu amparo para você e a menina.

Deixou-me à margem, sem ter em conta meus sentimentos.

De sua boca, fluíam todas as recriminações que merecia.

—Quem era eu para cortar suas asas e mudar o rumo de seu voo?

— espetou, com o coração em um punho — Estava de passagem em minha

vida, eu simplesmente seria uma lembrança seletiva em sua memória. Não

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me devia nada, não lhe pedi nada — concluiu, com um fio de voz —

Deseja me fazer sentir culpada, mas lhe asseguro que não é preciso, porque

os remorsos não me deixam dormir à noite. Entretanto, não posso mudar os

fatos por mais que o anseie.

Andrew sentiu que a irritação crescia dentro dele, mas não podia lhe

dar saída porque não estavam sozinhos. Para Rosa, tudo tinha justificativa,

mas ele se sentia com uma parte de sua alma decepada. Ia replicar, com

secura, quando Marcus anunciou a chegada de Christopher e Ágata, com o

pequeno Chris. Andrew guardou para si a enxurrada de recriminações para

um momento mais apropriado, quando pudessem esclarecer coisas de

forma definitiva.

Precisava, com desespero, escutar toda a verdade de seus lábios.

As apresentações entre cunhados tiveram lugar com suma cortesia.

Christopher mostrou tosa sua elegância para fazer Rosa e Jane se

sentirem confortáveis em sua presença.

De vez em quando, Ágata olhava o rosto do Andrew, escurecido

por um sentimento de perda e dor como não nunca vira. Não parecia o

mesmo homem despreocupado e risonho que sempre fora. E, durante o

jantar, se mostrou calado, distante, como se estivesse perdido em

pensamentos dolorosos. Sentia vontade de estender a mão e lhe transmitir

um pouco de ânimo, mas se conteve com esforço.

Fixou-se em que Rosa não levantou os olhos dos diferentes pratos,

durante o jantar. Parecia incômoda e chateada. Felizmente, a pequena

Branca não era consciente da batalha emocional que seus pais mantinham

em silêncio. A pequena estava absorta, tentando que Chris segurasse o

garfo da forma correta, e esse detalhe lhe arrancou um sorriso de empatia.

Ambos os meninos tinham quase a mesma idade, mas Branca era muito

mais amadurecida, e Ágata recordou quão difícil resultava criar um filho

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sozinha. Ela mesma tinha sofrido na carne, por isso, compreendia bem

Rosa, embora também se compadecesse por Andrew.

Tinham o mesmo problema que viveram Christopher e ela, anos

atrás, mas, ao fixar seus olhos na pequena, que seguia de modo atento cada

ação do pequeno Chris, disse-se que não importava o abismo que parecia

separá-los, Branca ia ser o conduto que canalizaria de novo as ilusões e as

metas de ambos.

Sorriu ante esse pensamento reconfortante, entretanto, as seguintes

palavras de Christopher acenderam um paiol de pólvora devastador. Apesar

de lhe dirigiu um olhar de contenção, ele não a respeitou. Elevou sua taça

de champanhe em direção ao casal que seguia em um silêncio incômodo,

enquanto Ágata fazia vários gestos negativos com a cabeça que seu marido

ignorou por completo.

—Bem-vinda à família, lady Beresford.

Nesse momento, os olhos de Andrew brilharam como duas chamas

incandescentes. Escutou com suma atenção as palavras de seu irmão.

—É um enorme prazer recebê-la entre nós como esposa de meu

irmão mais novo. — Alguém gemeu, mas ninguém soube de que boca saíra

à exclamação — Ordenei a Marcus que sirva uma sobremesa especial para

celebrar o acontecimento. Um casamento é um casamento, embora o noivo

estivesse ausente, enquanto se celebrava.

Rosa conteve a respiração, ao mesmo tempo em que abria muito os

olhos pelo horror e a surpresa. Ágata tentou dar a Christopher um pontapé

por debaixo da mesa, sem conseguir; não podia alcançá-lo, porque presidia

a mesa, sentado à cabeceira da mesma.

Andrew cravou as pupilas na mulher sentada a seu lado, que não

afastava os olhos do rosto de seu irmão, e, por alguma estranha razão,

soube que as palavras de Christopher eram a chave.

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Contemplou a quebra de onda de emoções contraditórias que

cruzaram o formoso rosto de Rosa, que ficou da cor das rosas vermelhas.

Viu com interesse o sobressalto que tentava conter, a surpresa e a vergonha

que expressou, ao mesmo tempo, em questão de segundos.

Fechou os olhos com uma terrível suspeita.

—Obrigado, lorde Beresford — disse Rosa, com voz entrecortada.

E, logo, desviou os olhos de Christopher para cravá-los em Andrew, mas

este não olhava para ela, a não ser para um ponto indeterminável da sala de

jantar — Mas não mereço semelhante honra.

O chiado das pernas da cadeira, ao ser corrida para trás com

brutalidade, foi desagradável e premonitório. Andrew se levantou e a olhou

de forma penetrante, aguda, quase com violência.

—Nisso estamos de acordo — conveio, com voz áspera e

ressentida.

Um momento depois, abandonou o local com descortesia, sem virar

para trás.

CAPÍTULO 13

—Christopher! — exclamou Ágata.

—Meu Deus! — soluçou Rosa.

—O que acontece? —perguntou Branca, com semblante

preocupado, ao ouvir a imprecação de sua mãe.

A menina contemplou a saída do Andrew com surpresa, sem saber

o que tinha acontecido entre os adultos. Só viu que sua mãe parecia

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angustiada e deixou o garfo sobre o prato para ir com ela. Mas lady Jane,

rápida e intuitiva, a segurou pela mão para impedi-la. Um segundo mais

tarde, levantou-se para abandonar o salão. Tinha pegado a pequena nos

braços, enquanto lhe sussurrava algo ao ouvido que a deixou em silêncio e

total. Um instante depois, estendeu a mão ao pequeno Chris, convidando-o

a ir com elas. O menino não o duvidou. Desceu da cadeira e os três se

foram da sala de jantar.

O silêncio que seguiu a seguir resultou pesado e cheio de coisas não

sortes.

—Por que fez isso? —perguntou Ágata a Christopher, com a voz

tensa.

Rosa não podia elevar os olhos do prato. Sentia-se mortificada.

Ainda notava cravado nas vísceras o olhar sofredor de Andrés, antes de

abandonar a sala de jantar.

—Acreditei que sabia ou que devia saber — se desculpou ele, que

ainda não era consciente da brecha aberta entre seu irmão e sua cunhada.

—Não pude dizer-lhe. O medo me paralisou — confessou Rosa,

fechando os olhos.

Christopher emudeceu, ao ouvir seu tom desolado. Andrew não

sabia que estava casado? Acaso não havia resgatado Rosa ele mesmo?

—Recebi um telegrama de meu pai me contando que tudo tinha

saído de forma satisfatória — explicou — e que, por isso, decidiu

descansar uns dias em Granada, com minha irmã e sua família. Meu pai

precisava recuperar as forças, por isso, não está em Whitam conosco.

Supus que, depois de sua partida de Sevilha, tudo estava esclarecido.

Rosa pensou que tudo se complicava. Ela esperava ver o John em

Whitam e, agora, entendia o motivo de sua ausência.

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—Quando nos despedimos, seu pai não mencionou aonde ia, e

supus que retornava a Grã-Bretanha.

—Por quê? — Ágata reiterou a pergunta a seu marido, mas foi Rosa

a que respondeu.

Olhou para Christopher, enquanto este sustentava o olhar com

determinação.

—John Beresford me fez acreditar que Andrés concordava com o

casamento. Quando descobri a mentira, senti-me incapaz de lhe revelar a

verdade. Imagino que primeiro queria comprovar seus sentimentos a

respeito. Mas, agora, já é tarde.

Christopher meditou um instante.

—Meu irmão é um homem capaz e amadurecido, aceitará que o

casamento por procuração foi um mal necessário.

Rosa piscou várias vezes, tentando conter as lágrimas. Suas

palavras acertaram em cheio. Seu casamento podia se considerar um mal

necessário.

—Christopher! — voltou a exclamar Ágata. Parecia-lhe inaudita a

falta de tato de seu marido, ao tratar de um assunto tão delicado e

espinhoso.

Rosa esticou os ombros, e suas pupilas brilharam com

determinação.

—Já não há motivos para manter esta farsa. Minha vida já não corre

perigo. O casamento foi concebido para me tirar da Espanha e evitar meu

enforcamento. Andrés voltará a ser um homem livre, eu asseguro.

Ágata pensou que Rosa se equivocava nas palavras e na maneira de

enfocar o assunto.

—Permita que seja ele quem tome a decisão em uma direção ou em

outra — aconselhou — Ele merece.

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Rosa meditou sua sugestão e soube que tinha razão. Andrew devia

ter a última palavra sobre a situação de ambos.

—Assim o farei, embora duvide que agora me escute —

reconheceu, cheia de tristeza.

—Não o fará — vaticinou Christopher, escurecendo ainda mais o

semblante dela — Esconderam muitas coisas dele. Um homem tem seu

orgulho, e o de meu irmão foi muito pisoteado nestas semanas.

A vergonha tingiu de um vermelho intenso as bochechas de Rosa, e

Ágata decidiu romper uma lança em seu favor, ao ver a tribulação que

sentia.

—Andrew possui a capacidade necessária para compreender e agir

em conformidade. Não terá de julgar uma postura que não tomou ainda —

disse — Falarei com ele — acrescentou, depois.

—Não! — exclamou Christopher — Eu sou tão culpado como o

resto por guardar silêncio. É justo que eu seja quem tente apaziguá-lo.

Rosa não escutava nenhum dos dois. Sentia que devia procurar

Andrew. Deixaria que ele tomasse a decisão de seguir casado com ela ou

não.

—Onde posso encontrá-lo? — perguntou, com voz triste — Tenho

a obrigação de falar com ele, antes que ninguém. Devo-lhe cinco anos de

silêncio. Quero manter uma conversa em particular com ele de forma

urgente.

Ágata e Christopher a olharam, com surpresa, e, logo, calibraram

qual seria a melhor alternativa naquelas circunstâncias.

—É justo, Christopher — disse Ágata.

—No porto, há um botequim, Port Royal, Andrew está acostumado

a ir lá, de vez em quando, para tomar uma cerveja, quando se sente

intranquilo. — Rosa se levantou da cadeira e se encaminhou para a porta

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— Não é um lugar apropriado para uma dama — acrescentou Christopher

— Acompanharei você.

Ela conseguiu sorrir em meio de sua aflição e lhe fez um gesto

negativo com a cabeça.

—Não sou uma dama. Sou uma esposa que vai a busca de seu

marido para trazê-lo de volta a casa e falar com ele. — Ágata sentiu

vontade de aplaudi-la. Eram as palavras certas, e Christopher as entendeu à

perfeição — Preciso ir sozinha para convencê-lo.

—Então, pedirei a Simon que prepare a carruagem e a acompanhe.

O porto não é um lugar perigoso em Portsmouth, mas não se deve baixar

nunca guarda.

—Obrigada.

Quando Rosa foi falar com sua filha antes de partir em busca de

Andrew, Christopher fez o mesmo para dar as ordens necessárias. Retornou

uns momentos depois. Marcus o seguia de perto, com uma bandeja com

café que deixou em cima da mesa, sem servir, por expresso desejo de

Christopher. O mordomo abandonou o salão em silêncio.

Ágata olhou para seu marido com os olhos entrecerrados, enquanto

se servia um café com muito açúcar.

—Sabia que não sabia, mas agiu como se soubesse — reprovou,

zangada.

—É um trava-língua, querida? — O sorriso zombador dele a

enrijeceu.

Em todos os anos que levavam juntos, Christopher não tinha

suavizado nenhuma das arestas de soberba de seu caráter, mas ela o amava

com loucura.

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152

—Sabia que Andrew ignorava que estava casado. Armou esta

confusão de propósito.

—Pai me informou de tudo e me deu instruções precisas com

respeito a nossa cunhada e sua chegada a Whitam Hall. Ele não tinha modo

de saber que meu irmãozinho iria em sua busca para trazê-la para casa.

Suponho que nem lhe ocorreu; algo insólito, porque a impulsividade de

Andrew lhe deu mais de uma dor de cabeça.

—Por que não falou com seu irmão, antes de acender o pavio?

—Porque nunca o vi tão perdido. Não se precaveu que seu rosto

contorcido durante o jantar? Não sei o que aconteceu entre esses dois, mas

não podia ficar de braços cruzados vendo como seguia na ignorância.

—Mas escolheu o caminho equivocado — o recriminou, com certa

aspereza.

—Escolhi o caminho direto. Nada de rodeios. E não conseguirá que

me arrependa.

—E por que a enviou ao botequim? Pode ser perigoso.

—Precisamente, querida Ágata. Vaticino que meu irmão vai às

nuvens, quando a vir lá, ou, como diria meu pai, armará a de Deus é

Cristo5. E presumo que o aborrecimento o empurrará a levá-la para longe e

mantê-la presa em uma habitação durante dias, onde terão muito tempo

para conversar, além de dedicar-se a outros misteres, que aqui, em Whitam

Hall, seria pouco menos que impossível de levar a cabo, porque há muita

gente.

—Christopher! — exclamou horrorizada, mas, um segundo depois,

sorriu — Não tem remédio.

5 No original:” A Frase refere-se às controvérsias no Concílio de Nicéia — o primeiro concílio ecumênico

— celebrado no ano de 325. Nele, se discutiu a dupla natureza, humana e divina, de Jesus Cristo”.

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—Acabo de lhes oferecer uma estupenda lua de mel. Nós nos

ocuparemos de Branca até sua volta.

Ágata o olhou, entusiasmada. Sempre conseguia surpreendê-la.

Tinha acreditado que atuava por um impulso, mas nada mais longe

da verdade. Christopher sabia em todo momento o que fazia, e isso

aumentou sua admiração por ele.

Rosa tinha esquecido dois detalhes importantes, quando empurrou a

porta de madeira do botequim para entrar: que ia vestida com roupas de

criada e que não sabia como esquivar-se de homens ansiosos por

companhia feminina. Sempre vivera protegida, nunca se vira em meio de

uma disputa ou rixa das que abundavam nos botequins de qualquer porto, e,

sem saber, estava a ponto de meter-se na boca do lobo. Mas tinha tal

urgência em encontrar a Andrew que não mediu o perigo ao que ia se

expor.

O aroma da madeira salgada e o uísque ácido a fez conter a

respiração. Olhou para Simon, atrás dela, e lhe pediu que se mantivesse do

lado de fora até que localizasse Andrew. O homem não gostou de sua

petição, mas aceitou de forma relutante. Era um empregado que nunca

discutia uma ordem e, embora nessa ocasião estivesse a ponto de fazê-lo,

finalmente, aceitou ficar fora do botequim, embora vigilante.

Os olhos de Rosa percorreram o local lotado.

As mesas estavam cheias de homens que bebiam e falavam ao

mesmo tempo. Outros, sentados no bar, contemplavam às garçonetes com

interesse libidinoso. Sentia-se extremamente incômoda, mas chegara muito

longe para retirar-se. Um marinheiro com algumas cervejas a mais, sentado

em um canto, reparou em sua solitária presença. Cravou seus olhos

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cinzentos em seu cabelo negro que o capuz da capa não escondia

totalmente e, como impulsionado por uma mola, levantou-se e se

encaminhou diretamente para ela, que estava de costas, olhando em outra

direção. Quando sentiu o forte braço que a segurava pela cintura, voltou-se

esperançada, mas não viu Andrés, a não ser um homem corpulento que

cheirava a cerveja amarga.

A sucessão de palavras em inglês a deixou confusa, pois mal

entendia o idioma. Por um instante, lamentou seu impulso. Precisava falar

com Andrés, mas, ao tentar buscá-lo, podia ver-se metida em um problema.

O marinheiro a segurou mais forte, e Rosa tentou empurrá-lo com uma

desculpa em espanhol.

Simon apareceu atrás dela e conseguiu soltar as mãos como garras

que a prendiam. O forte impulso a fez tropeçar para trás e não pôde evitar

cair sobre uma mesa. Outros braços muito mais decididos a seguraram

pelos ombros, antes que caísse no chão.

—Que demônios faz aqui?

Era Andrés!

O alívio que sentiu foi imediato, mas sua sensação de tranquilidade

durou muito pouco. Vários marinheiros foram em ajuda do primeiro e

começaram a golpear Simon. Andrew a empurrou para fora do botequim,

protegendo-a com seu musculoso e robusto corpo. Ordenou-lhe que subisse

à carruagem, mas, antes que ela pudesse fazê-lo, várias mãos o pegaram,

atirando-o no chão. A sucessão de golpes rápidos que ele recebeu a deixou

paralisada. Rosa retornou sobre seus passos e se meteu totalmente na briga,

sem pensar que poderia sair maltratada. Andrew tinha conseguido derrubar

três marinheiros, mas um quarto se aproximava por trás com intenções

pouco claras. Rosa nem pensou, agarrou uma jarra grande cheia de cerveja

de uma das mesas e a estampou ao homem na cabeça; depois do golpe, o

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marinheiro caiu a seus pés, inconsciente. Andrew se voltou e, ao

compreender o que ela tinha feito, sorriu-lhe, mas, ao fazê-lo, baixou a

guarda e recebeu um murro que o lançou para trás com força.

Simon estava recebendo outro tanto. Eram muitos!

Rosa pensava a toda velocidade e, então se lembrou do fuzil e da

pistola que Simon levava na boleia. Saiu a toda velocidade para agarrá-los,

mas demorou mais do que pensava, porque, quando retornou, Andrew

estava em um verdadeiro problema. Dois marinheiros o seguravam contra o

bar, e um terceiro o golpeava no estômago com força. Rosa acionou o

gatilho e apontou ao teto, um segundo depois, disparou. O som foi

ensurdecedor, e todos os que brigavam detiveram-se para olhá-la. A

fumaça seguia saindo da boca do canhão do fuzil. Então, levantou a pistola

e, embora não apontasse para ninguém em particular, a ameaça brilhava em

seus olhos.

—Soltem meu marido imediatamente! — bramou, estridentemente

—. Ou juro que vou explodir a cabeça de vocês. — Martelou a arma de

pequenas dimensões. Segurar o fuzil descarregado e a pistola ao mesmo

tempo era difícil, mas tentou não demonstrar aos indivíduos que não

tiravam os olhos de cima dela.

Os que seguravam Andrew o soltaram e lhe permitiram aproximar-

se dela, sem contratempos. Tirou-lhe a arma quente que sustentava; a

pistola lhe custou algo mais, porque Rosa se negava a entregá-la. Simon se

soltou também dos que o atacavam, e Andrew lhe deu um punhado de

libras para que pagasse os destroços das mesas e as cadeiras causados pela

briga.

—Vamos — disse a Rosa, com voz firme.

Rodeou seus ombros com o braço e a dirigiu para fora do botequim.

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Ela reagiu, ao fim. Elevou seus olhos para ele e contemplou seu

rosto machucado.

—Sinto muito — se desculpou, de novo.

Era plenamente consciente de que fora a causadora da briga e se

sentia desanimada. Sempre agia sem pensar, e os resultados acabavam

alcançando-a.

—Quando terminar com você, sim, sentirá muito, acredite em mim.

Suas palavras soaram como uma ameaça, mas Rosa pensou que as

merecia. Simon, que os seguia de perto, subiu à boleia e esperou. Andrew a

ajudou a subir os degraus, enquanto sustentava a porta da carruagem.

—A Gretna Green — ordenou ao chofer, com voz firme.

A ordem tinha divulgado irrevogável.

CAPÍTULO 14

—Andrés...! — exclamou Rosa, para detê-lo, mas ele não o

permitiu.

—Tem toda a noite para me dar a explicação que espero desde que

meu querido irmão soltou essas pérolas por sua boca. — Ela se amassou

em sua capa de veludo negro e apoiou as costas no fofo respaldo do assento

— E prometo escutar atentamente até o final.

Andrew tomou assento em frente a ela e golpeou com o punho o

teto para que Simon empreendesse viagem para a fronteira escocesa.

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Depois de uns instantes de silêncio nos quais só se ouviu a respiração de

ambos, Andrew a animou, embora com voz um tanto rouca:

—Seu marido está esperando.

Jesus! Tinha que lhe recordar a frase que ela empregara no

botequim para dissuadir um grupo de marinheiros bêbados, disse-se Rosa.

Em questão de segundos, havia perdido a voz e recuperado a vergonha,

pois devia dar uma explicação que ia resultar longa e dolorosa, embora

extremamente necessária.

—Já estamos casados — soltou, com voz tremente — Seu pai

pronunciou os votos em seu nome no convento de Santa Marta. Uniu-nos

em matrimônio o embaixador inglês, com a rainha María Cristina de

Borbón como testemunha de nosso enlace, embora a soberana não estivesse

presente.

Andrew inspirou, profundamente.

Suspeitou, ao escutar o surpreendente brinde de seu irmão. E soube

que este fez isso de propósito para lhe tirar de uma vez por todas a atadura

que tinha nos olhos. Embora censurasse seu modo de fazê-lo, pois quase

teve uma vertigem, ao descobri-lo. De fato, sentiu-se tão perturbado que

teve de sair da casa para respirar um pouco de ar fresco e limpar os

sentimentos que o apressavam.

—Não seja muito duro com seu pai — pediu com voz causar pena

— Descobriu que, se me casasse com você, me converteria em cidadã

inglesa, e, assim, podia pedir minha volta a Inglaterra com a pressão e o

respaldo da embaixada britânica para obtê-lo.

Andrew pensou que algo assim era típico de John Beresford,

sempre procurando soluções rápidas e eficazes.

—Poderia ter a amabilidade de me contar esse pequeno detalhe,

quando fui resgatá-la — a recriminou, um pouco aborrecido.

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—Quando me percebi que não sabia, faltou-me coragem para lhe

dizer isso. Senti-me incapaz de apertar ainda mais o nó que sentia que atei a

seu pescoço.

E era certo. Desde que tinha descoberto sua paternidade, começou

uma descida sem freios nem controle, pensou Andrew resignado.

—Pronunciou seus votos de forma voluntária? — perguntou, com

verdadeiro interesse.

Se Rosa se viu coagida, afundando ainda mais no poço emocional

em que se encontrava.

Ela inspirou, profundamente, antes de responder.

—Acreditei que você estava de acordo — respondeu, cabisbaixa—

e lamento muito que não seja assim. Somei outro engano mais em sua vida.

—Esquece que eu quis me casar com você desde o começo.

Como poderia esquecer! Tomar a decisão que tomou em seu

momento foi o mais duro que Rosa fizera em sua vida.

—Não podia me casar com você porque já o estou — recordou

Rosa, de forma aprazível — E o fiz voluntariamente.

Ele mostrou seu temperamento afetuoso de sempre e um sorriso de

canalha.

—Meu cunhado Justin se casou inconsciente, mas eu estou decidido

a pronunciar meus votos com voz firme e clara, para que não tenha

nenhuma dúvida a respeito, nem agora nem nunca.

Rosa abriu os olhos, com surpresa.

—Não é obrigado, Andrés. Não há necessidade de casar

novamente. — Ele a olhou com as pálpebras semicerradas. Cada palavra

que saía por sua boca o comovia absolutamente — Aprecio muito você

para isso.

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—Aprecia-me? — perguntou, assombrado — Por favor, troque o

verbo, porque apreço não é o que espero de você.

Os olhos de Rosa brilharam na escuridão do interior da carruagem.

Precipitou-se de novo, mas se sentia tão feliz de ele tomava o assunto, que

decidiu abrir seu coração de uma vez por todas. Andrés merecia isso.

—Quero-o muito para forçá-lo. Sempre o amei, desde o momento

em que conheci você, já sabe.

Ele sorriu com infinita tristeza, porque, apesar de tudo, sentia-se

ressentido, decepcionado, e não pôde evitar recriminá-la:

—Se me amasse como assegura, não me afastaria de sua vida.

Justamente o contrário, faria parte da minha, sem condições.

Rosa se desanimou, pois viu que seguia zangado com ela e suas

decisões.

—Não podia ir com você. Minha vida estava em Zújar. A sua em

Whitam.

Andrew bufou; esperava dela algo mais que atalhos.

—Eu teria ficado com você. E sabe por quê? Porque, ao contrário

de você, você foi tudo para mim.

Rosa baixou as pálpebras, tentando que ele não visse como seu

sincero reconhecimento a deixou perturbada.

—Não queria ser injusta com você afastando-o de tudo o que amava

e conhecia. Sua família, sua casa, seus amigos.

Andrew voltou para o ataque sem compaixão, descarregando toda a

artilharia de seu arsenal emotivo.

—Minha família, minha casa e meus amigos estariam onde você

estivesse.

«Essa é a maior diferença entre nós», disse-se Rosa. Sempre havia

sentido dentro de seu ser que Andrés a amava muito mais que ela. Não

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160

reservava uma parte de si mesmo. Entregava tudo, mas Rosa não sabia

como fazê-lo, sem sentir que ficava exposta, vulnerável.

—Não podia deixar tudo para ir com você — declarou, baixinho —

Não estava preparada para isso, e é uma decisão que terá que me perdoar e

aceitar.

—Agora, o fez, deixou tudo — a provocou.

Rosa tinha de purgar seus pecados e só existia um caminho para

conseguir: chegar a seu coração com a verdade.

—As circunstâncias mudaram — respondeu, em um sussurro — e

não posso pensar somente em mim. Devo fazê-lo também na preciosa filha

que temos.

—E levou cinco anos para perceber isso? Tinha de chegar a essa

conclusão no exato instante em que descobriu que estava grávida.

A atmosfera do interior da carruagem se tornou espessa de ira,

quente de recriminações. Andrew retornava ao mesmo tema uma e outra

vez. Rosa compreendia que tinha de superar sua decepção, e falar sobre

isso contribuiria a acelerá-lo. Embora se sentisse realmente incômoda,

manteve-se firme em suas respostas.

—Seria uma egoísta consumada se tivesse suposto que você não

havia refeito sua vida e formado uma família feliz. Como poderia quebrar

os muros de sua paz? Seu reduto de tranquilidade? Os anos nos modificam,

Andrés, e também nossas prioridades.

Ele se disse que em parte tinha razão, mas Rosa ignorava que

jamais poderia amar outra como a amara. Para que sua vida fosse

completamente feliz, Rosa devia estar incluída e também a pequena que

conceberam.

—É tarde para convencê-lo do contrário, compreendo. — Rosa

calou um momento para tomar ar, antes de continuar — Mas não é para lhe

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dizer que penso em compensar você pelo passado, se me permitir isso.

Equivoquei-me, Andrés, mas estou aqui e isso é quão único importa. Amo

você! Com toda minha alma.

Rosa não poderia escolher melhores palavras que acalmassem seu

maltratado orgulho masculino. Andrew as aceitou com grande prazer.

—Tem a mais remota ideia do que penso fazer com você em nosso

caminho para Gretna Green? — Fez-lhe um gesto negativo, embora pouco

convincente — Vou fazer amor com você como um louco. Penso em beijar

cada centímetro de sua pele e levá-la até as estrelas, para ouvir você gritar

de novo. Nem imagina o que me custou me manter afastado de você.

Tremo só de pensar em possuí-la.

—Andrés! — exclamou, completamente envergonhada, mas cheia

de júbilo.

—Uma vez claros seus sentimentos e meus, o único que resta é

escutar seus gemidos, seus suspiros de prazer. É meu objetivo neste

momento.

Quando Rosa viu que se sentava a seu lado com claras intenções de

cumprir sua palavra, ficou sem respiração, e o coração se acelerou de forma

perigosa.

—Esquece que não era a única gemia e suspirava — recordou,

malévola.

Segurou-lhe as mãos, encerrando-as entre as suas.

—Então, enchamos a noite de gemidos gloriosos e suspiros

celestiais para que os anjos desfrutem e dancem ao ritmo de nossa paixão.

Rosa não pôde protestar mais, porque a boca de Andrew tinha

capturado a sua. E ela o seguiu em sua reclamação, submissa, lhe

oferecendo tudo que pedia, inclusive sua própria alma.

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Amava-o, adorava Andrew Beresford e o resto carecia de

importância.

O balanço da carruagem ajudava ao propósito que ele tinha de

seduzi-la, de arrancar-lhe a resposta física que ansiava desde o momento

em que a viu dormindo em seu leito do convento de Santa Marta. Desejava

lhe causar um motim emocional como nunca conhecera. Os dias de

travessia resultaram ser um suplício de que saíra cordato com muita

dificuldade. Desejava-a, desejava perder-se nela como tantas vezes no

passado.

De um só gesto, sentou-a sobre seus joelhos e lhe desatou o laço da

capa, que se deslizou até o chão da carruagem. A roupa de donzela que

Rosa vestia ajudava bastante na tarefa de despi-la. Tirou-lhe a barra da

camisa branca de dentro da saia e tocou a pele quente de sua cintura com a

gema dos dedos, sem deixar de beijá-la. O gemido da garganta feminina lhe

indicou que ia pelo caminho certo. Deslizou seus lábios úmidos por seu

macio pescoço e foi deixando um rastro de beijos que deixou seus cabelos

de pé. Rosa rodeou com suas mãos a cabeça dele para aproximá-la de seu

decote, quando Andrew se entreteve no canal no início de seus seios como

se saboreasse o momento. Um a um, foi desabotoando os botões da fina

camisa de algodão, descobrindo sua pele acetinada. Agradeceu que não

levasse sutiã, porque, assim, podia acessar sem travas seus seios

amadurecidos, que ficaram expostos, ao arrancar o último botão.

—Peça-me isso — disse Andrew, de repente.

Rosa não podia pensar devido às sensações que a embargavam.

Havia fechado os olhos no momento em que sentiu a língua quente e áspera

dele sobre o vale de seus seios.

—Rosa, me diga o que desejo escutar! — insistiu — Agrade-me.

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Tinha de concentrar-se, mas antes devia recuperar a respiração e a

fala.

—Que lhe diga...? — sentiu-se incapaz de terminar a frase.

Os dedos de subiam sua saia pelos quadris. Nada separava sua pele

dos dedos travessos que lhe acariciavam o interior das coxas até chegar ao

vértice que ardia como se lhe tivessem colocado um carvão em brasa.

Começou a ofegar de prazer.

—Por Deus, Andrés! — exclamou, com voz entrecortada — Não

posso pensar.

—São unicamente duas palavras, e recordo que estava acostumado

a me dizer isso a cada momento.

Seu fôlego sobre seu seio esquerdo a desconcentrava. Sentiu como

lhe endurecia o mamilo ante a expectativa de que o beijasse, mas Andrew

se mantinha perversamente afastado, respirando tão perto do sensível

montículo que notou uma chicotada nas vísceras que a fez lançar um

gemido.

—Me beije, canalha! — balbuciou, ao fim.

E a boca faminta de Andrew chupou e mordiscou o mamilo

feminino a seu desejo, ao mesmo tempo em que lhe afastava a roupa

interior e a levantava para deixá-la cair sobre seus quadris com um só

gesto.

Rosa ficou sem respiração durante um instante longo, eterno.

Incapaz de fazer nada, salvo desfrutar da plenitude de sentir-se invadida

pela potência sexual de Andrew.

—Se você se mover, me mata! — exclamou ele, cheio de paixão.

«Sempre acontecia assim», recordou Rosa. Cada vez que ele a

penetrava, o mundo se detinha, e os dois ficavam durante uns instantes

completamente quietos, como tentando recuperar a capacidade de reação.

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—Se não me mover, morrerei eu — disse, com a voz rouca pela

emoção, mas não teve tempo de dizer mais, porque um buraco do caminho

a lançou para cima e a fez aterrissar sobre o duro membro de Andrew de

forma surpreendente.

O gemido masculino quase a convenceu de deter o movimento

rotatório que iniciara com os quadris, mas recordou a tempo quanto do ele

gostava que ela tomasse a iniciativa.

—Estar assim com você é como estar no paraíso — sussurrou

Andrew, junto a seu ouvido. O ardente murmúrio lhe acelerou o coração —

Poderia morrer agora mesmo.

Rosa acabou sorrindo. Andrew era um amante excepcional, mas

tinha o costume de falar muito no momento mais inoportuno.

—Se falar, me desconcentra — se queixou, com o queixo apoiado

no cocuruto dele.

—Tento desconcentrar-me eu e, assim, evitar me derramar em seu

interior como se fosse um jovenzinho inexperiente.

Com as mãos, lhe segurava as nádegas e a ajudava no movimento

ascendente e descendente.

—Estou ardendo, Andrés!

—Então, me abrace para que eu arda com você...

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CAPÍTULO 15

Palácio do Oriente, Madrid.

Alonso de Lara esperava a rainha María Cristina com atitude

cautelosa.

As notícias que lhe levava eram esperançosas, porque a guerra

contra o infante dom Carlos durava mais do esperado. As províncias do

norte se haviam amotinado. Rioja e Navarra estavam ao mando de

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Zumalacárregui6, e obtinham vitórias inesperadas. O general organizou em

pouco tempo um exército considerável, ao que se uniram outros carlistas,

debilitados depois da expedição de Pedro Sarsfie. Pôde equipar seus

homens com armas tomadas dos exércitos cristinos no campo de batalha e

participaram de ataques contra destacamentos dirigidos por dom Luis

Fernández de Córdoba.

Zumalacárregui era um homem consciente de sua inferioridade

numérica, e, por esse motivo, se valia das táticas de guerrilha que foram

proveitosas no passado contra Napoleão, para minar o exército da rainha

María Cristina. Mas se mostrava cruel na repressão e empregava o terror

para manter controlado o território, atitude que Alonso censurava.

Felizmente para a monarquia, a derrota que sofrera o exército carlista na

batalha de Mendaza e a prudente retirada na batalha de Arquijas havia dado

um giro inesperado à luta.

Os carlistas retrocediam, e eles avançavam.

Alonso se deteve para observar o Salão de Embaixadores, onde

esperava a rainha María Cristina de Borbón. Foi chamado a palácio com

urgência.

O salão estava presidido por dois tronos. Pareceu-lhe que o veludo

vermelho enfeitado com franjas de estilo rococó de prata dourada que

cobria as paredes carregava demais o conjunto decorativo.

Em ambos os lados do trono havia quatro leões de bronze, cada um

com uma garra apoiada sobre uma bola calcária de cor avermelhada. Além

disso, decoravam o salão doze consoles dourados com espelhos fabricados

e trazidos da Itália. Tanto os consoles como os espelhos representavam as

6 “Tomás de Zumalacárregui y de Imaz, duque de Victoria e conde de Zumalacárregui, conhecido como

«Tio Tomás», foi um militar espanhol que chegou a ser general durante a primeira guerra carlista”.

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quatro estações do ano, os quatro elementos e os quatro continentes.

Alonso dirigiu seus olhos para as estátuas dos leões, trazidas por Velázquez

por encargo do rei Felipe IV. O conjunto da sala era excepcional, mas o

fazia sentir estranhamente oprimido.

Uma das grossas e altas portas de uma das laterais se abriu para dar

passo à rainha. Alonso se inclinou em uma profunda reverência.

—Levante-se, duque.

Alonso cumpriu a ordem real e ficou a aproximadamente um metro

da figura régia.

María Cristina ia acompanhada por seus homens de confiança:

Agustín Fernando Muñoz, Martínez de Rosa e Luis Fernández de Córdoba.

—Que notícias traz? — perguntou a rainha, com voz marcial.

—A derrota sofrida pelo exército carlista na batalha de Mendaza e a

prudente retirada na batalha de Arquijas deram um giro inesperado à luta.

Os carlistas retrocedem, majestade.

María Cristina lançou um profundo suspiro e seguiu olhando

Alonso, com olhos inquisitivos.

—Mas me preocupa Nazario Eguía, que assumiu o posto de general

em chefe das tropas em Navarra — repôs a rainha — Seu exército sobe a

mais de trinta e seis mil homens.

—Estão empenhados em liberar Bilbao e essa pretensão pode lhes

sair muito cara — respondeu Alonso.

A rainha começou a percorrer a sala acima e abaixo a passos curtos,

meditando as palavras do duque.

—O que realmente nos faz mal não é o exército armado, a não ser

as guerrilhas.

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Alonso suspirou. A luta de guerrilhas minava o exército real da

mesma forma em que minaram o exército de Napoleão; porque se

escondiam nas montanhas e se moviam como serpentes sigilosas.

A rainha se deteve e o olhou com atitude reprovadora.

—Acreditava que, ao estabelecer alianças entre nobres e unir casas

importantes mediante matrimônios conseguiria parar esta guerra absurda,

essa reclamação sem sentido por parte de meu cunhado.

Alonso esticou os ombros, pois sabia o que vinha a seguir.

—Aracena de Velasco comanda a maior guerrilha de Burgos.

Ele apertou os lábios com fúria ante o nome mencionado pela

rainha. Fechou os punhos aos flancos para conter a cólera.

—Aracena é um problema menor, majestade — replicou, seco.

—Uni as casas de Lara e Velasco precisamente para evitar isto. E

me surpreende sua falta de capacidade para controlar sua esposa. — A

crítica da rainha lhe ardeu no mais profundo — Aceitei o matrimônio de

Rosa de Lara com o inglês para me assegurar a lealdade de sua irmã, mas

tudo foi em vão.

Alonso estreitou os olhos, antes de responder.

—Por esse motivo, desejo pedir a mercê de uma graça. — As

sobrancelhas da rainha se elevaram interrogantes — Um compromisso

entre minha sobrinha Rosa Catalina Branca de Lara e Leon Alejandro de

Fidalgo e Ursina.

A rainha piscou, surpreendida. A pretensão de Alonso de Lara de

unir os ducados de Fortaleza e Marinaleda era de uma ambição desmedida.

—E que ganha a Coroa com a união de ambas as famílias?

—Se aprovarem o compromisso de minha sobrinha, controlarei a

fortuna e influência de minha irmã para que não possa financiar a luta de

dom Carlos.

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—Consta-lhes que o esteja financiando? — perguntou a rainha, com

voz seca.

Alonso sabia que caminhava na borda de um precipício. A rainha

era muito desconfiada, e ele tinha de andar com muito cuidado.

—Não — respondeu, de forma categórica — mas o pai da pequena,

como tutor e curador da fortuna desta, pode desviar recursos para a causa

carlista. Mas, se consigo o acordo de compromisso, as propriedades de

minha irmã passarão a minha sobrinha e ficarão presas como dote. Nesse

caso, eu as controlarei.

A rainha meditou uns momentos sua proposta.

—Se acessar ao compromisso — disse, ao fim — posso criar um

conflito internacional com a Inglaterra que poderia ser prejudicial para a

Coroa e não estou disposta a um infortúnio de tal magnitude.

Alonso temia uma resposta assim.

—Os ingleses estão lutando a favor do infante dom Carlos —

espetou, com voz tranquila — Um exemplo disso o têm em Charles

Frederick7. E muitos outros dos que ainda não temos conhecimento.

O queixo da rainha se endureceu, ao escutá-lo.

O inglês era prisioneiro de Alonso de Lara e quão último

necessitava a monarquia espanhola era de intrusos que se acreditavam

paladinos da reclamação carlista.

—Fala com imprudência, De Lara, e posso tomar como uma

provocação.

Fernando Muñoz decidiu intervir na discussão.

—Não é uma ideia tão descabelada — apontou, conciliador — mas,

de fazê-la efetiva, terei que atar bem todos os cabos. — María Cristina e

7 “Soldado inglês que serviu com os carlistas.”.

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Alonso olharam, atentamente, o ministro, sopesando suas palavras —

Assegurar a lealdade dos nobres unindo-os às famílias mais fiéis é a melhor

estratégia que podemos seguir para obter a vitória.

—Mas até agora não deu resultado. — A rainha tinha em mente o

casamento de Alonso de Lara com Aracena de Velasco, e de Rosa de Lara

com um inglês, ambos apoiados por ela — Pensei, erroneamente, que ter à

maioria dos nobres de minha parte seria suficiente, mas me equivoquei.

—O conde Ayllón não se pronunciou a respeito — recordou Alonso

à rainha — Segue vivendo à margem, em sua torre vermelha, e duvido que

se mova em um sentido ou outro.

—De Velasco seria um aliado importante para minha causa —

comentou María Cristina, com um suspiro de resignação — Com seu apoio,

poderíamos ter outros tão importantes como o do marquês de Irian, o duque

de Besande e os condes de Arcayos e Laciana.

—Tenho intenção de visitar minha irmã na Inglaterra — disse

Alonso, em voz baixa — E posso me entrevistar com o conde Ayllón,

majestade. Tentarei inquirir sobre sua demonstrada parcialidade no assunto

que nos concerne.

A rainha estreitou os olhos com certa irritação.

—Preciso de você aqui, na Espanha, e não em um país estrangeiro

que pode manifestar-se a favor do direito divino da infanta Isabel de

proclamar-se a rainha legítima de todos os espanhóis.

—Será só um breve período de tempo, o suficiente para tentar fazê-

los compreender, a minha irmã e ao conde, a necessidade imperiosa de

apoiar sua causa.

—Não penso em criar um conflito por sua desmedida ambição,

duque.

—Não o farão, majestade. Dou minha palavra.

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—Vá, então. Tente controlar sua irmã e convença o conde a meu

favor.

Tudo tinha ficado dito.

Alonso fez uma profunda reverência e se retirou caminhando de

costas, até dar com a porta de madeira. Agarrou o trinco dourado e voltou a

inclinar a cabeça a modo de despedida. Fechou a porta brandamente atrás

de si.

Tinha por diante um longo caminho, e muitas armadilhas pela

frente, mas se sua irmã se acreditava a salvo dele, estava muito equivocada.

CAPÍTULO 16

Os dias que desfrutaram na fronteira escocesa foram os mais

formosos de que podia recordar. Casar-se na pequena capela foi toda uma

experiência que a encheu de imensa sorte. Rosa não trocaria esses

momentos por nada do mundo. Andrew se mostrara risonho, falador e tenro

como no passado. Ela desfrutava de cada minuto de energia que esbanjava,

e lá, em Gretna Green, parecia como se o tempo não tivesse transcorrido,

era como se continuassem amando-se na serra de Hornachuelos, livres de

toda pressão e responsabilidade, como dois adolescentes.

Mas haviam retornado a Whitam Hall. Andrew a apresentou a todo

o serviço como a senhora da casa, nomeação que aceitaram todos e cada

um deles. Desde esse momento, cada decisão relativa ao serviço doméstico

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era fiscalizada por ela. Rosa se transladara da habitação dourada ao quarto

de Andrés, onde compartilhavam intensas noites de amor e brincadeiras.

A vida estava se comportando magnanimamente com ela.

Andrew olhava para a mulher que havia virado seu mundo pelo

avesso. Era a mesma feiticeira que conhecera em Hornachuelos. Serena nos

gestos, ávida na aprendizagem e uma amante desinibida e risonha como só

existiam nos relatos escritos especialmente para o sexo masculino.

Recordou a primeira vez que a viu falando com um homem que lhe pareceu

um comerciante. Ali, no pátio sombrio da casa, tinha ficado cativado pela

figura daquela mulher que irradiava sensualidade por cada poro da pele. O

sussurro de sua voz aveludada, os gestos calmos e contidos o atraíram

como se ele fosse uma abelha e tivesse descoberto, de repente, o prado

mais formoso, repleto de flores.

Perseguiu-a e a acossou, até que o sorriso que lhe ofereceu o deixou

tonto de desejo. Mas Rosa não foi uma conquista fácil. Esquivava-se com

mestria dos dardos que lhe lançava, até que a sorte lhe sorriu, ao fim, e um

deles acertou o coração feminino.

Fazê-la sua foi o mais ousado e divino que podia aspirar um mortal.

Andrew se apaixonou por completo em questão de dias. Rosa levou mais

tempo aceitar que também sucumbira à flecha que Cupido arrojara a

ambos, mas, quando ao fim o admitiu, o fez o homem mais feliz do

mundo... Até que o descartou. Esse dia e os restantes, Andrew caiu do

paraíso terrestre aos infernos em chamas, embora confiasse cegamente em

sair ileso deles.

Era dela. Casada duas vezes para que nunca houvesse nenhuma

dúvida a respeito. Rosa de Lara era Rosa Beresford, para o bom e para o

mau.

—Parece o gato que comeu o camundongo.

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Andrew entreabriu os olhos, ao ouvir suas palavras. Estava imerso

em lembranças que lhe aceleravam o coração.

—Lady Beresford, não sou o gato que comeu o camundongo, sou

um leão que caçou a corça esquiva.

Rosa lhe sorriu pela metáfora utilizada.

—Pensa em devorá-la?

Ele negou com a cabeça várias vezes.

—É tão formosa que decidi mantê-la cativa em meu reino.

Apanhada sob minhas garras e com meu fôlego desenhando corações em

seu pescoço de cisne.

Os olhos dela brilharam com humor.

—Sempre gostei dessa particularidade sua — confessou, em voz

baixa — Seu incrível senso de humor; algo estranho, vindo de um inglês.

Andrew cruzou uma perna sobre a outra, enquanto a carruagem

seguia seu destino para Crimson Hill, onde ia ter lugar uma recepção por

suas bodas.

—Porque sou um inglês sulino. E nós temos o sangue mais quente,

como os espanhóis.

Rosa não podia estar mais em desacordo.

Recordava, perfeitamente, o irmão mais velho de Andrew, Arthur,

pois nunca contemplara um rosto mais severo e régio. Tinha levado o

assunto da legalidade da pequena Branca com uma parcialidade que a

deixou surpresa. Não contemplara em seu rosto varonil um sorriso, nem um

brilho de empatia. Não, Andrés se equivocava. Os homens ingleses do sul

eram estritos e sérios.

—Eu não gosto de deixar Branca sozinha — disse, de repente, com

olhar nostálgico.

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—Nossa pequena está bem. Lady Jane não permitirá que lhe ocorra

nada de mau.

—Minha mente sabe, mas meu coração não quer separar-se dela.

Andrew não pôde lhe dizer nenhuma palavra de consolo, porque a

carruagem cruzava o portão e tomava o caminho que levava a mansão.

Olhou para Rosa, que demonstrou seu nervosismo mordendo o lábio

inferior. Começou a alisar as inexistentes rugas da saia de seu vestido de

gala com gestos idênticos aos de Branca.

—Não deve preocupar-se. Nunca permitiria que lhe fizessem mal.

Mas o temor dela discorria por outros atalhos muito mais sombrios:

seu irmão Alonso e a guerra na Espanha; embora não pensasse em admitir.

—Desejo ser digna de você, Andrés — soltou à queima roupa —

Não gostaria de envergonhar você diante de seus amigos.

Ele inspirou profundamente ante a chicotada de orgulho que sentiu.

Gostou de suas palavras extremamente, mas não lhe disse.

—Desejo começar bem nossa vida em comum. Ser aceita pelas

pessoas que o amam.

—Não tem nada a temer nesse aspecto. É a mulher de minha vida, e

todos sabem ou saberão.

Rosa o olhou, com os olhos brilhantes de emoção. Andrew era um

homem que não media as palavras de afeto, e, nele, não resultavam

açucaradas. Dizia o que pensava e fazia com que seu coração se acelerasse,

ao ouvi-lo. Era um sedutor nato. Um Dom Juan único, e era seu marido.

Realmente, sentia-se muito feliz.

A carruagem deteve seu avanço, e Andrew a segurou pelas mãos,

antes de abrir a porta e sair, mas antes de ajudá-la a descer, disse-lhe umas

palavras para tranquilizá-la.

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—Agora, estou aqui para proteger e amar você. Afaste a

preocupação de seu rosto e o temor de sua alma. Minha família a quererá

tanto como eu. Meus amigos a respeitarão tanto ou mais que eu.

O sorriso de Rosa lhe demonstrou que suas palavras eram

apropriadas.

Andrew lhe beijou ambas as mãos e a ajudou a sair, ao fim, da

carruagem. Quando se voltou lhe oferecendo o braço, viu que Christopher e

Ágata começavam a descer a escada da casa a seu encontro. Era todo um

detalhe que os acompanhassem naquele primeiro encontro que iam ter

como marido e mulher com a nobreza de Portsmouth.

—Está preciosa, lady Beresford. Andrew... — A efusiva saudação

de Christopher foi como um bálsamo reparador em seus músculos

doloridos pela tensão.

Era tão agradável receber amostras de ânimo!

Aceitou o beijo galante de seu cunhado e o carinhoso abraço de

Ágata. Rosa se sentia realmente sobressaltada pelo bom recebimento.

—É impressionante — disse ao mesmo tempo em que levantava os

olhos para olhar a mansão, depois das saudações — Quase tanto como

Whitam Hall.

Christopher gostou dessas palavras, pois seguia preferindo o lar dos

Beresford.

—Crimson é maior, mas Whitam não está atrás em tamanho.

A voz de Andrew parecia orgulhosa, e Rosa pensou que tinha

motivos para isso. Ambas as casas eram excepcionais e de um luxo que

sobressaltava.

—Chegamos tarde — se apressou a dizer Christopher — Ágata não

me permitiu mostrar meus respeitos a Devlin até sua chegada.

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—Rosa deve fazer sua entrada apoiada pela família — reiterou sua

esposa.

Rosa dedicou um sorriso a sua cunhada, enquanto aceitava o braço

de Andrew para subir.

O duque de Arun e dono da mansão estava no outro extremo de

uma longa fila de convidados. Era um homem alto e de cabelo abundante.

Sorria de uma forma que surpreendeu Rosa, que o imaginara muito mais

austero e frio. Andrew a conduziu pelo corredor iluminado até o grande

salão.

—Não esperamos que nos anunciem? — perguntou ela, alarmada.

Christopher e Ágata os seguiam de perto.

—Somos da família — disse Christopher — Minha irmã está

casada com o primogênito do duque. Crimson Hill é nosso segundo lar.

Para Rosa, a explicação parecia inaudita, porque, apesar do

parentesco, seguiam sendo convidados.

—Encontra-se aqui? — referia-se a Aurora, a irmã de Andrew e

Christopher.

—Não. Vive a maior parte do ano em sua casa de Granada. Eu

estou acostumado a visitá-la ao menos uma vez ao ano.

Rosa o olhou, perplexa, mas se manteve em silêncio. Agora,

recordava as palavras de John. Depois de arrumar o assunto dela, tinha-lhe

mencionado que iria passar uns dias com sua filha Aurora.

O duque os divisou na distância e, desculpando-se com alguns

convidados, pôs-se a caminhar diretamente para eles. Rosa se preparou

para efetuar a reverência requerida.

—Estava-lhes esperando. — A voz grave não continha nem um

pingo de recriminação.

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—Lorde Penword — começou Andrew — permita que o presente a

minha esposa, Rosa de Lara e Guzmán.

Devlin observou para a moça com olhar crítico, e ela se inclinou em

uma reverência profunda e cheia de graça.

—Sua excelência...

Devlin lhe beijou a mão, com candura.

Ágata olhava para sua cunhada entre o assombro e a inveja. Ela

jamais poderia realizar uma reverência tão cheia de mímico e elegância.

—Bem-vinda a Crimson Hill.

E desde esse momento Andrew ficou sozinho, pois Devlin

monopolizou a atenção de Rosa por completo. Agarrada a seu braço,

conduziu-a para o resto dos convidados para apresentá-la com todas as

honras.

Christopher, Ágata e Andrew passaram a seguinte hora

respondendo às perguntas formuladas por matronas e amigos muito

interessados em conhecer os pormenores de tão singular casamento.

—Vou resgatá-la — se ofereceu Ágata, mas Andrew negou com a

cabeça sem afastar os olhos de sua mulher, que, nesse preciso momento,

falava de forma comedida com lorde Eliot8.

Rosa escutava muito atenta as explicações que lhe dava o lorde

sobre algo. Via-a assentir, de vez em quando.

—É toda uma dama — disse, de repente, Ágata — Leva mais de

uma hora escutando ao mesmo interlocutor sem que seu rosto mostre outra

emoção salvo interesse. Eu estaria morta de aborrecimento.

Andrew pensava exatamente igual, mas se manteve em silêncio.

8 “Lord Eliot foi enviado à Espanha pelo governo britânico para por fim aos fuzilamentos indiscriminados

de prisioneiros em ambos os lados e promover a troca dos mesmos”.

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Christopher bebeu um gole de uma taça de champanhe. Enquanto a

que sustentava Andrew se esquentava em sua mão, sem que lhe

emprestasse atenção.

—Logo se anunciará o jantar — recordou Christopher.

Ele não podia afastar seus olhos da figura de sua esposa. Rosa

mantinha as costas retas, a cabeça inclinada para lorde Eliot e as mãos

enlaçadas. Tinha o porte de uma rainha e a moderação de um general. E se

perguntou por que lhe incomodava essa atitude. Uma só vez, o olhar dela se

desviou para onde estava contemplando-a, devorando-a com os olhos.

—Vê, Andrew — disse Christopher — Rosa é muito educada para

interromper uma conversa que seguro que não lhe interessa.

—Não queria parecer impaciente ou intrometido — admitiu, em

voz baixa.

—Está em seu direito de reclamar uma atenção que lhe pertence.

Lorde Eliot terá que aceitar e o resto dos convidados também.

Mas não foi preciso que Andrew a resgatasse, porque lorde Eliot já

a acompanhava de retorno a ele.

O rosto de Rosa refletia uma preocupação que lhe produziu um frio

no estômago. De que diabos teriam falado? Por que sua esposa passou da

alegria ao sofrimento à velocidade de um raio? Andrew tinha muitas

perguntas, mas sua curiosidade deveria esperar um momento mais propício

para ser saciada, porque, nesse instante, se anunciou o jantar.

Rosa já não era a mesma pessoa que havia chegado cheia de ilusão

à mansão de Crimson Hill agarrada em seu braço. No jantar, esteve séria,

ausente. Nem as brincadeiras de Ágata a tinham feito mudar o semblante.

—O que aconteceu? — perguntou Andrew, antes da sobremesa.

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Ela permaneceu em silêncio a maior parte do jantar. Andrew a tinha

sentada justo a sua frente por um erro de protocolo que não fora consertado

a tempo, e, graças a isso, não perdeu nem um só gesto de seu rosto.

—Lorde Eliot viajará a Espanha breve — respondeu ela, com voz

pausada.

Ele entreabriu os olhos, porque ignorava o que significava essa

viagem para sua mulher.

—O governo britânico se preocupa com o contínuo fuzilamento de

rebeldes em minha pátria.

Agora, Andrew amaldiçoou baixo. Se a Inglaterra intervisse na luta

dos espanhóis, os problemas não demorariam para aparecer.

—Estiveram falando de fuzilamentos? — Parecia-lhe inaudito que

lorde Eliot monopolizasse sua esposa com um tema político e que só

correspondia a homens.

—Sabe que fui presa pela Coroa espanhola por me pronunciar a

favor de Carlos Isidro.

Andrew se perguntou como sabia que ele havia desposado com uma

rebelde.

—Os carlistas também começaram a fuzilar em represália a quão

prisioneiros capturam — continuou Rosa — Essas barbaridades estão

sendo discutidas pelo governo britânico, que decidiu enviar uma comissão

para que ambos os bandos cheguem a um acordo para suprimir os

fuzilamentos indiscriminados.

—Entendo sua preocupação, mas aqui está a salvo.

Rosa o olhou, com olhos sérios.

—Sei, mas isso não faz com que não me sinta preocupada com

minha família e amigos que ficaram na Espanha.

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—É o que tem a guerra, Rosa. Os resultados costumam ser terríveis

ali onde se produz.

—Conversar com lorde Eliot me recordou por que terá que seguir

lutando.

Ele temia algo assim. Rosa escapara da forca de milagre, mas

seguia pensando nos que combatiam por seus ideais.

—Deixemos a política por esta noite, lady Beresford.

Ela cravou suas pupilas no rosto de seu marido, que tinha adotado

um gesto diabolicamente atraente.

—E, além disso, sei como apagar essa expressão tristeza de seu

rosto. Não quero ver preocupação nele nunca mais.

Rosa não pôde lhe responder, porque o servente acabava de servir a

sobremesa: pudim de chocolate e morangos enfeitados com mel. Quando ia

cravar a colher no mesmo, notou uma carícia sob a mesa. Um pé masculino

acabava de deslizar pelo interior de suas pernas.

Desviou os olhos do prato para seu marido, que seguia comendo

pudim, alheio ao sufoco que lhe provocou. Ficou rígida e soltou a colher,

que fez um som metálico ao se chocar contra a porcelana do prato.

—Andrés! — exclamou, ao notar a segunda carícia, que nesta

ocasião tinha chegado ao joelho.

—Acontece algo? — perguntou Ágata, que estava sentada a seu

lado.

Christopher estava sentado à direita de Andrew.

—É a primeira vez que prova o pudim — soltou este a sua cunhada,

com humor.

Rosa inspirou, profundamente, enquanto seu pé seguia

atormentando-a por debaixo da mesa.

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Jesus! Mal podia respirar e levar a colherada de pudim à boca, sem

que lhe tremesse a mão. Com a perna direita tentou afastar o pé de Andrew,

mas o movimento a deslocou na cadeira. Conseguiu segurar-se na borda da

mesa para não perder o equilíbrio.

—Andrés! — sussurrou, atônita, porque ele seguia com o jogo.

Tinha chegado à face interna de suas coxas.

Ele elevou os olhos do prato para olhá-la; pôs-se tão vermelha

escarlate.

—Você não gosta do pudim, querida? Ou continua pensando na

guerra?

CAPÍTULO 17

Rosa se mostrava receptiva.

Estava aprendendo muito sobre sua nova pátria e os costumes

diferentes dos ingleses. Todos em Whitam a ajudavam, para que se

adaptasse o mais rápido possível, e como membro recente da família

Beresford, fora aceita pela nobreza de Portsmouth por completo.

Em Whitam, se esperava a visita oficial do embaixador espanhol

em Londres, assim como a de lorde Eliot e a do coronel John Gurwood9.

9 “Ajudou a negociar o chamado Tratado de lord Eliot na Espanha”.

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Andrew se sentia um pouco excedido, porque seu pai sempre se encarregou

das visitas especiais. Christopher não ajudava muito nesse aspecto, pois

estava convencido de que seu irmão mais novo poderia superar a prova

com facilidade. Mas nenhum deles podia imaginar o horror que lhe causava

não estar à altura.

Seguiu abrindo a correspondência com a mente posta na futura

visita.

Imaginou o motivo de que o embaixador espanhol agendasse uma

reunião na ausência do patriarca dos Beresford, e Andrew a amaldiçoava,

porque isso queria dizer que estava decidido a manter uma conversa com

Rosa sobre os rebeldes espanhóis. Tirar dela toda a informação que

considerasse útil. Mas ele ansiava que ela se esquecesse da luta da Espanha

e começasse a viver tranquila a seu lado, em Whitam, o lugar onde estaria a

salvo.

O som da porta da biblioteca, ao se abrir, o fez levantar os olhos da

correspondência ante a presença de sua filha, que mal alcançava a

maçaneta.

O sorriso infantil o desarmou por completo e fez com que, em seu

coração, sentisse um amor desmedido e profundo.

—Está preparada? — perguntou.

Branca lhe fez um gesto afirmativo que fez ondear os cachos de sua

cabeleira negra.

—Mamãe disse que virá logo.

Ele se levantou da poltrona e pôs-se a andar em direção à pequena.

Quando chegou a seu lado, ficou de cócoras e a olhou nos olhos.

—Está preciosa.

Branca lhe esboçou um radiante sorriso.

—Você também — respondeu, cândida.

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—Eu também estou precioso? — perguntou Andrew, com picardia.

—Tão presioso como Atila.

Ele estalou a língua, ao recordar o cão que adotara Branca e o nome

que lhe colocou. Que, certamente, servia como uma luva.

Por onde corria, já não crescia a erva.

—Atila continuará sem entrar na casa até que domine esse ímpeto

que tem. E o que diga não conseguirá me fazer mudar de opinião.

—Atila não sabe o que faze — argumentou à pequena.

Andrew estava de acordo com sua filha, mas o cão seguiria no

estábulo, até que aprendesse a conter-se. Ainda podia ouvir o grito que deu

a cozinheira, quando comeu parte do faisão assado para o jantar. E isso sem

mencionar o alvoroço das donzelas, quando mordeu os travesseiros. Ainda

lhe parecia ver plumas flutuando nas quartos.

—Mas eu o ensinarei — admitiu a pequena, com orgulho.

Andrew a abraçou muito forte. Um momento depois, segurou-a pela

mão, para sair ao encontro de sua esposa, que descia para eles pela escada

principal.

Quando os viu, Rosa inspirou, profundamente. Branca ia vestida

exatamente igual a seu pai: calça de montar, colete estampado, blusa

branca, botas negras e capa combinando.

Andrew conteve um assobio, ao ver o traje de Rosa. Levava um

traje de amazona de veludo verde escuro, o cabelo recolhido com uma rede

para cabelo e o chapéu inclinado, com flores combinando com a cor do

vestido. Todo seu vestuário tinha chegado da Espanha um par de dias atrás.

Cada vez que a via, ficava sem fôlego.

—Direi a Emma que troque sua roupa — disse Rosa à menina, com

voz contida.

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Girou sobre si mesma e pôs-se a andar, mas as palavras do Andrew

a detiveram.

—A Branca adora cavalgar vestida assim. Não é, querida?

A pequena manteve um prolongado silêncio, pega às pernas de seu

pai, como procurando seu amparo.

Rosa se virou, de repente, e cravou suas pupilas nas de Andrew, que

a olhava com ironia.

—Branca, vá em busca de Emma e lhe diga que troque seu vestido.

A menina obedeceu sua mãe, imediatamente. Soltou-se da mão de

Andrew e correu para o vestíbulo sem olhar atrás. Ele cruzou os braços e

sustentou o olhar de Rosa.

—Andrés, Branca não pode ir vestida como um menino —

começou ela, mas a expressão dele a fez morder o lábio inferior.

—Nossa filha irá vestida como desejo, sempre que for

acompanhada de seu pai.

Rosa piscou uma vez, porque Andrew tinha utilizado um tom

autoritário.

—Tem de aprender a comportar-se como uma senhorita e vestir-se

como um moço não a ajudará — tentou lhe explicar.

Ele esboçou um sorriso arrebatador.

—É muito pequena para preocupar-se com esses pormenores. Tem

todo o tempo do mundo para aprender os rigores da etiqueta, acredite. —

Rosa soltou o ar, pouco a pouco — E será a última vez que questiona

minha autoridade na presença de nossa filha.

Rosa baixou os olhos ao chão, sobressaltada. Andrew tinha razão,

mas a ela ainda custava assimilar que a educação de sua pequena já não lhe

competia exclusivamente.

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—Lamento o haver desafiado — disse, sincera — mas Branca se

vestirá como uma senhorita ou não sairá a cavalgar.

Ele deu um passo em direção a ela, com os olhos entreabertos.

Compreendia, perfeitamente, o desconforto que lhe produzia o traje da

menina, porque Rosa se criou com normas rígidas e regras e, sem dar-se

conta, transladava essa austeridade para sua filha; mas não pensava em

permitir, embora tivesse de pará-la em seu avanço e determinação. Branca

se criaria como uma menina normal e sob a supervisão de um pai que a

adorava.

Rosa sabia que se extrapolara em suas palavras, mas educar uma

criança era difícil e não pensava em jogar pela amurada anos de dedicação

e esforço. Acaso Andrew não se precavia de quão prejudicial poderia ser

para o futuro da menina que a pontuassem de excêntrica? De estranha? E

lhe permitindo cavalgar com traje masculino, fomentava precisamente

essas qualidades, nada desejáveis em uma senhorita.

—Andrés, não pretendia desgostar você — disse, com sinceridade.

—Mas o fez — replicou ele, firme, mas sem recriminação.

—Branca tem de aprender desde pequena, e eu não gostaria que a

considerassem rebelde, porque não lhe ensinou a acatar as normas

adequadas para uma moça decente.

—Tem muito tempo para aprender a acatar as normas.

—Mas não aprenderá, se não lhe pusermos limitações.

—Vestir-se de forma cômoda para cavalgar não significa não lhe

pôr limitações.

Rosa inspirou fundo, enquanto procurava argumentos.

—Quando se converter em uma adolescente, não vai querer vestir

uma incômoda e volumosa saia cada vez que se apresentar a ocasião de

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cavalgar, e, então, você, com sua permissividade, terá criado um grande

problema.

Andrew estava a ponto de rir, mas não o fez para não minar sua

autoridade. Rosa estava deliciosa defendendo uma postura do todo lógica e

coerente. Mas ele pretendia educar sua filha longe do protocolo e a rigidez.

—Cavalgará com saia cada vez que a etiqueta o exija, posso

assegurá-lo, mas, quando montar com seus pais, não limitará sua liberdade.

Rosa estava a ponto de soltar um impropério, mas se conteve. A

discussão estava adquirindo umas proporções desmedidas e lhe estava

escapando das mãos.

—Não pretendia provocar você — confessou, com um fio de voz.

—Toda você é uma provocação.

Andrew tinha chegado a seu lado. Segurou-a pela cintura e a pegou

a seu corpo.

—E deve aprender bem uma coisa: de agora em diante, não voltará

a me contradizer na presença de nossa filha.

—Mas Andrés...

—Vou beijar você tão intensamente que não vai saber onde tem a

cabeça e onde os pés. Vou soltar essa gloriosa juba para que ondeie ao

vento, enquanto cavalga para meu lado, para que ensine nossa filha parte da

liberdade de que pode desfrutar junto a seus pais.

E começou a fazer precisamente isso.

Tirou-lhe o chapéu da cabeça e o lançou ao cabide em um canto,

mas com tão mau tino que caiu ao chão. Logo, inclinou a cabeça ao

encontro de sua boca e a beijou como um homem beija a mulher que ama.

Com ardorosa paixão. Com fome voraz. Enquanto, ia tirando os

grampos do coque e lhe soltando as mechas, com tanta suavidade como se

o fizesse com a língua em lugar de com os dedos.

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O sabor dele a embriagava. O aroma de sua pele lhe enlouquecia os

sentidos, e, quando Andrew se afastou, Rosa não sabia onde se encontrava

nem o que estavam discutindo. Sentia em seu interior uma avalanche de

sensações que a deixavam enjoada.

—Estou sem fôlego — confessou, perturbada e completamente

excitada.

Ele cravou suas pupilas em seu rosto, avermelhado por seu beijo, e

a desejou com uma intensidade inquietante.

—Pois respire fundo, porque vou beijá-la outra vez.

Já inclinava a cabeça ao encontro de sua boca, quando uma risada

infantil fez com que se separasse de Rosa, que seguia com os olhos

fechados e os lábios entreabertos, esperando o beijo prometido.

Ambos estavam na metade do vestíbulo. Tinham perdido a noção

do tempo, e separá-los custou um esforço incrível.

Andrew olhou para Branca, que substituíra as calças por uma saia

azul, mas seguia levando a camisa, o colete, as botas e a capa.

Rosa se recuperou, ao fim, e cravou os olhos na pequena, que a

olhava de uma forma que lhe resultou enigmática. O brilho de seus olhos

infantis lhe provocou um frio no estômago e a sensação de perder algo,

embora ignorasse o que. A cumplicidade entre pai e filha era inegável e a

encheu de uma paz desconhecida até então.

—Está preparada? — perguntou a sua filha, com voz doce.

Branca fez um gesto afirmativo, mas não lhe respondeu.

Rosa se voltou para a porta, enquanto colocava as luvas com mãos

nervosas. Os beijos de Andrew a deixavam louca, faziam-na arder, e, se

Branca não os interrompesse, não lhe teria importado que fizessem amor no

vestíbulo da casa. Estava perdendo a sensatez rapidamente!

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Andrew estendeu uma mão para Branca, que desce o último degrau

para ele. Quando se precaveu de que sua mãe não os estava olhando, subiu

a saia azul e mostrou a seu pai que debaixo seguia levando calças.

Andrew soltou uma gargalhada, ao tempo em que a agarrava em

braços.

Rosa se voltou para ver o que lhe provocava semelhante hilaridade,

mas o único que viu foi como Andrew sussurrava algo no ouvido de

Branca, esta o fazia um gesto afirmativo e lhe correspondia com um sorriso

cândido.

A imagem de pai e filha compartilhando uma confidência era

realmente preciosa e lhe pôs um nó na garganta.

—O que o preocupa? — A pergunta de Christopher o devolveu

bruscamente à realidade — Ultimamente, o noto ausente. Distraído.

A preocupação de Andrew tinha um nome: a guerra da Espanha.

—Amanhã, será o jantar oficial com o embaixador espanhol e lorde

Eliot.

Christopher bebeu um gole de sua taça de brandy.

—Rosa fará tudo muito bem. É uma mulher preparada, embora

confie que seja outro o motivo de sua tensão.

Andrew não se sentia tenso, e, embora estivesse de acordo com a

apreciação de seu irmão a respeito de Rosa, essa não era a questão.

—Acredita que o pai demorará muito em retornar?

Christopher encolheu os ombros. Ignorava a data da volta de seu

pai, inclusive a de Arthur, que decidira seguir um tempo fora da Inglaterra.

Encontrava-se em Salamanca, comprando éguas para as quadras de

Crimson Hill.

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Seu irmão ganhava autênticas fortunas com os potros que criava.

—Parece arrasado — comentou Christopher, sem afastar os olhos

de seu irmão caçula.

O rosto normalmente despreocupado de Andrew tinha um rito de

intranquilidade que lhe resultava estranho. Novo.

Ambos estavam sentados frente à mesa do gabinete, na biblioteca

de Whitam. A porta estava fechada para preservar sua intimidade.

—Pai é um homem muito influente e os compromissos aos quais

tenho que assistir em seu nome são muitos. Mal acabo com um, quando já

tenho outros em florações e todos inevitáveis.

A queixa de Andrew a Christopher pareceu justificada; o jovem não

estava acostumado aos rigores da etiqueta. Tinha sido mimado.

—Pois não aceite os convites — aconselhou, sem alterar-se.

As loiras sobrancelhas de Andrew formaram um arco perfeito.

«Não aceitar? Impossível», disse-se.

—Não posso.

—Por quê?

—Porque são compromissos de meu pai, e meu dever é representá-

lo. Que seu nome continue sem máculas. Levou toda uma vida para formar

sua excelente reputação, e eu não posso jogar tudo fora só porque as

reuniões sociais me deixam agoniado.

Christopher abriu a boca, mas a fechou, de novo. Andrew não

parecia o mesmo. Onde estava o libertino que ia de farra em farra até cair

exausto?

—Presumo que essas palavras não são suas, mas, sim, de sua

esposa.

O brilho nos olhos de seu irmão lhe mostrou que tinha acertado

totalmente na hipótese.

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—É uma dama em todos os sentidos da palavra — disse Andrew,

de repente.

Christopher não pôde discernir por que seu tom parecia resignado.

Rosa era uma mulher excelente, uma esposa extraordinária e uma mãe

atenta e abnegada.

—Para todos que a vêm, é óbvio que o ama e se esforça por agradá-

lo — disse, para consolá-lo.

—Mas é tão... — Andrew calou um momento — tão rígida e severa

— concluiu, ao fim — Seus gestos são cuidados, elegantes. Nunca leva o

vestido enrugado ou um cacho fora de seu lugar. Jamais ri de forma

espontânea em presença de convidados. Controla suas emoções diante das

pessoas como se fosse uma rainha ante seus inimigos. Deixa-me louco

tanta austeridade!

Christopher começava a compreender o humor de seu irmão.

—Falou com ela a respeito? Seria bom que lhe contasse como o faz

sentir sua régia educação.

A expressão do rosto de Andrew foi tão cômica, que, para

Christopher, custou um verdadeiro esforço manter a compostura e não

soltar uma gargalhada.

—Acha que posso lhe dizer que me incomoda sua forma de ser tão

educada? Foi criada desde o berço para comportar-se como se espera em

uma dama de alta linhagem.

—E onde reside o problema?

—Eu gostaria de vê-la perder as estribeiras, ao menos uma vez. Que

manche o vestido e que não se importe. Que leve o cabelo solto para o

desfrute de meus olhos...

—Deveria aceitá-la como é.

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Aceitava-a, disse-se Andrew, mas não podia evitar desejar que

fosse mais espontânea com ele.

—Quando a conheci, era uma pessoa completamente diferente da

mulher que é agora. Apaixonei-me por sua forma de me olhar. Sua maneira

de comportar-se, livre, mas inocente. Calada, mas comunicativa...

Christopher decidiu interrompê-lo.

—Entre aquela moça e a mulher que é agora, há uma menina de

cinco anos e uma guerra, Andrew. Deve ter sido muito duro para ela criar

minha preciosa sobrinha sozinha. Manter um enfrentamento com um irmão

absolutista e, além disso, ser declarada traidora à Coroa. Não esqueça que

está viva por milagre.

—Tem razão — concedeu Andrew — Mesmo assim, não posso

evitar sentir que eu gostaria que cantasse uma balada de amor para mim ou

que desse um soco em uma mulher por minha honra. Pareço um menino

com um acesso de raiva, não é? — reconheceu, humildemente.

Christopher recordou que Ágata fizera, precisamente, algo assim

por ele, mas Ágata não era filha de um duque espanhol, a não ser a filha de

um derrotado oficial francês.

—Você viveu sempre no limite. Sem se importar nem um pouco

com os corações que deixava quebrados pelo caminho. — Seu irmão ia

interrompê-lo, mas Christopher não permitiu — Nunca teve

responsabilidades. Pai deixou que crescesse livre, sem mais cargas que a

diversão, embora sempre pensei fosse um desserviço, e o tempo me deu a

razão.

—Eu a amo com toda minha alma, Christopher — admitiu, com

voz firme — mas me desgosta que seja tão perfeita.

Tinha dado com a palavra adequada: Rosa era muito perfeita para

ele.

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—Então, diga-lhe, para que saiba como se sente.

Mas Andrew não pensava em seguir sua sugestão.

O problema não estava em Rosa, a não ser nele mesmo, que tinha

muita saudade da mulher que fora no passado. Os momentos risonhos e

despreocupados que compartilharam, quando ele ignorava que era a filha

de um duque e a irmã de um homem muito intolerante e belicoso.

Andrew colocou como meta conseguir que Rosa se comportasse de

forma mais natural, mas não sabia se obteria seu propósito.

CAPÍTULO 18

Rosa fiscalizou tudo pela enésima vez.

A prata foi polida até deixá-la reluzente. A baixela de honra estava

colocada com esmero, e os centros de flores enchiam de fragrância não só a

sala de jantar, mas também o vestíbulo e o salão principal da casa.

Escolhera com mimo o jantar e repassado com a cozinheira os detalhes dos

pratos e das sobremesas. Contratara dois lacaios mais para reforçar o

serviço em uma ocasião tão especial como a que ia viver-se em Whitam

Hall.

Quando Andrew a apresentou ao pessoal da casa, Rosa acreditou

que faz com que a obedecessem ia resultar muito difícil, entretanto, o

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mordomo, a cozinheira e o resto do serviço acataram cada sua sugestão sem

uma réplica. Levar a mansão de Whitam não era trabalho fácil, mas estava

bem preparada, e, graças ao respeito que lhe mostravam todos, realizar as

tarefas próprias da senhora da casa era fácil.

—Marcus. — O mordomo cravou os olhos nela, que lhe sorriu

agradecida — Tudo está perfeito.

O homem inchou o peito, com orgulho. O reconhecimento que

acabava de fazer a senhora por seu trabalho lhe resultou inesperado, mas

muito agradável.

—É meu trabalho, milady — respondeu, um tanto incômodo.

Rosa posou a mão direita no antebraço do mordomo, enquanto o

olhava com atenção.

—É algo mais que isso. É dedicação exclusiva. Whitam funciona à

perfeição graças a seu esforço e ao do resto do pessoal da casa. Muito

obrigado e, por favor, transmita a todos meu sincero agradecimento.

Marcus estava realmente sobressaltado. Era a primeira vez que uma

senhora Beresford lhe agradecia por fazer seu trabalho. Um trabalho que

realizava com supremo prazer.

—Vai deixá-lo vermelho, querida.

A voz de Andrew lhe chegou da porta de entrada ao salão principal.

Rosa o olhou, mas não avançou para ele.

—Só constato um fato que merece um efusivo reconhecimento por

nossa parte — alegou, com voz cheia de simpatia, que provocou a rápida

retirada de Marcus.

—Irei fiscalizar que as donzelas tenham tudo pronto, milady.

Andrew não deixou de olhar o mordomo, que já fechava a porta

atrás dele.

—Tem a ele comendo em sua mão.

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Rosa se inclinara para cheirar o buquê de flores disposto no centro

da mesa. Outros menores estavam colocados a uma prudente distancia entre

si para não carregar muito o ambiente com o penetrante aroma das rosas.

—Cada dia me surpreende mais — continuou ele.

Rosa se voltou para seu marido, que caminhava para ela com um

brilho malicioso nos olhos. O coração acelerou. Assim que o olhava,

esquecia-se absolutamente de tudo. Que poder tinha Andrew que a

subjugava por completo?

—Surpreendo você? — perguntou, com certa ansiedade na voz.

Ele se fixou em seu vestido, de decote quadrado com transparências

de renda no pescoço. A cintura era alta, logo abaixo do busto. Mal tinha

cauda, e a cor dourada era muito bonita. Conseguia que o cabelo dela

brilhasse ainda mais escuro sob o lustre de cristal. As joias que levava eram

muito discretas, apenas uma cadeia fina com um pequeno crucifixo no

pescoço. Um passador de pérolas no elaborado coque e o anel de

esmeraldas que lhe pôs no dedo, quando a desposou na fronteira escocesa.

Mas, embora fosse vestida com farrapos, sua linhagem seria

indiscutível. E, de repente, a dúvida fez vacilar sua confiança. Ele nunca se

preocupou pela etiqueta, por guardar as formas. Seu pai sempre lhe tinha

desculpado e permitido que prescindisse da maioria dos compromissos

sociais, porque lhe resultavam tremendamente aborrecidos.

—Noto-o preocupado. — As palavras de Rosa lhe chegaram entre

suspiros.

Estava perdido, imerso em sentimentos desanimadores.

—Andrés...

Piscou para afastar a incômoda sensação de estar fora do lugar.

Rosa entrelaçara seus dedos com os seus, frios de repente.

—Está preciosa — disse, ao fim.

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Ela cravou os olhos nos seus e admirou seu brilho.

—A velada será um êxito — acrescentou ele, com orgulho —

Durante semanas, se falará do suntuoso jantar oferecido em Whitam Hall.

Ela tomou como o elogio que era, mas algo em sua atitude lhe

chamou a atenção. Fazia vários dias, o rosto de Andrew refletia

preocupação, certa reserva, e ignorava o motivo.

—Você faz tudo muito mais fácil — disse ela, com simplicidade.

Gostou muito dessas palavras, embora soubesse que as havia dito

para agradá-lo. Rosa sempre tinha uma palavra amável para todos,

inclusive para o moço que se ocupava de manter limpos os estábulos.

—Eu gosto de seu lar. Aqui, se respira amor e cordialidade —

acrescentou ela, sem deixar de olhá-lo.

—Quando conhecer melhor meu irmão Arthur, mudará de opinião.

Rosa entreabriu os olhos, estranhando o comentário. Embora Arthur

lhe parecesse frio e reservado, não acreditava capaz de alterar a harmonia

familiar que ela podia perceber na casa. Em cada canto do lar.

—Certamente, parece excessivamente sério — comentou, sem lhe

soltar a mão — Mas suponho que é só a primeira impressão.

Andrew lhe pôs a palma da mão no ombro. Mal podia afastar o

olhar de seu rosto, belo e cheio de interesse. Por mulheres como Rosa, se

conquistavam impérios, declaravam-se guerras, perdia-se a vida.

—Necessita de um pouco de descuido em sua aparência.

—Descuido...? — Não pôde terminar a frase, porque a boca de

Andrew cobriu a sua com voracidade.

Sua ávida língua a pegou de surpresa, e seu ofego de prazer ficou

afogado em sua garganta. Seu marido lhe mordiscou o lábio inferior,

acariciou-lhe o interior das bochechas e procurou sua língua com a sua de

forma atrevida e sensual. As pernas de Rosa ameaçaram não sustentá-la;

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parecia que os joelhos houvessem se tornado de gelatina, e não teve mais

remédio que agarrar-se às lapelas da casaca dele para não cair no chão.

A mão de Andrew foi ascendendo, lentamente, por suas costas,

acariciando cada vértebra e oco até alcançar a base de sua nuca, onde a

segurou com suficiente força, para que ela não pudesse mover a cabeça. E

aprofundou ainda mais o beijo. Saboreou-a com consciência e desejo.

Buscou em seu interior acetinado, até o ponto de enjoá-la por falta de ar.

—Jesus! — exclamou Rosa, quando os lábios dele começaram a

riscar um pequeno círculo ao redor de sua orelha.

O movimento lhe resultava tremendamente excitante e lhe

provocava umas cócegas no ventre que se parecia com o bater de asas de

algumas brincalhonas borboletas.

—Deixe isso solto.

Rosa não soube a que se referia, até que ouviu soltar o passador que

lhe segurava a espessa juba escura. Quando suas grossas mechas

começaram a cair pelos ombros e as costas, separou-se uns centímetros de

seu corpo.

—Andrés! — exclamou, horrorizada — Não é apropriado que uma

dama leve o cabelo solto em um jantar formal.

Tentava voltar a prender o cabelo, mas os dedos dele o impediam.

Andrew enroscou algumas mechas entre os dedos e as acariciava como se

quisesse comprovar sua textura e grossura.

—Adoro seu cabelo. Eu adoro vê-lo solto.

O instante mágico e íntimo que compartilharam se desvaneceu de

forma brusca. Rosa tinha os lábios inchados pelo beijo, às bochechas

ruborizadas pela fricção do rosto masculino e o cabelo despenteado e

caindo completamente à vontade em sua cintura.

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—E o verá, esta noite, quando tiver ido o último dos convidados —

disse, com um tom de voz involuntariamente seco.

—Aos convidados não importará — respondeu ele, para incentivá-

la.

Rosa não podia compreender sua despreocupada atitude. Ela era

uma dama, e as damas não se apresentavam em um jantar como se fossem

lavadeiras.

—Mas, a mim, sim, e é uma opinião que deveria sobressair-se em

uma situação como esta.

—O coronel John Gurwood e sua esposa esperam ser recebidos —

anunciou Marcus, depois de um leve pigarro.

O gemido de horror de Rosa fez com que Andrew fechasse os

olhos. Tinha cometido uma grande estupidez, ao lhe soltar o precioso

cabelo.

—Preciso me arrumar, mas não posso cruzar o vestíbulo para subir

a meus aposentos e permitir que me vejam assim.

Seu pânico era bastante eloquente.

—Parece uma ninfa — lhe sussurrou ele ao ouvido.

—Andrés! — exclamou indignada.

O horror em seu rosto o fez desistir de sua postura brincalhona.

Rosa estava realmente preocupada, tentando prender as mechas com o

passador, sem conseguir.

—Não se preocupe — concedeu, resignado — Eu os acompanharei

à biblioteca para mostrar ao coronel a coleção de armas de meu pai, assim,

terá tempo suficiente para subir e se recompor.

Rosa lançou um suspiro entrecortado.

—Obrigada — respondeu, com simplicidade.

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Mas Andrew voltou a beijá-la de maneira apaixonada e intensa, até

que o pigarro de Marcus o fez soltá-la. Esqueceu-se, completamente, do

mordomo e dos dois primeiros convidados, que esperavam no vestíbulo.

O jantar discorria com normalidade, mas os olhos de Andrew não se

separavam da figura de sua esposa, que escutava, atentamente, o coronel e

sua mulher. Ambos lhe explicavam, com meticulosa exatidão, a forma de

vida no Caribe, aonde fora destinado o coronel, no princípio de sua carreira

militar. Nem um gesto mostrava quão aborrecida devia lhe parecer à

conversa para Rosa. Vigiava com esmero que não faltasse nada na mesa e,

de vez em quando, olhava para Marcus e lhe fazia um gesto afirmativo,

como indicando que tudo transcorria com normalidade. As taças dos

convidados sempre estavam cheias e, às damas, lhes facilitou uns leques,

para que se refrescassem do calor que produziam as velas, a boa conversa

e o bom humor que reinava na sala de jantar.

Ele estava sentado no outro extremo da mesa, junto ao embaixador

espanhol e sua esposa. Seu irmão Christopher presidia em ausência do pai

de ambos. Rosa se sentava entre os dois convidados masculinos de maior

idade, lhes demonstrando assim uma grande deferência. Quem gostaria de

estar entre duas pessoas que mal ouviam e cuja única conversa era as

vicissitudes do passado? Ele, certamente, não.

Ágata ria junto a duas senhoras que não paravam de falar sobre

moda, um tema que, ao menos, não devia resultar muito tedioso a sua

cunhada, e Andrew se encontrou, de repente, analisando cada rosto com

interesse. Estava mortalmente aborrecido, cansado de escutar a conversa

sobre a guerra da Espanha que tinha iniciado o embaixador, tema que gerou

uma polêmica entre vários cavalheiros. E, quando cravou suas pupilas em

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seu irmão, precaveu-se que mantinha a mesma serenidade que Rosa. Estava

sentado de forma erguida, sem relaxar os ombros, justamente o contrário

que ele, que tinha cruzado uma perna sobre outra para manter-se sentado

sem dobrar-se como um acordeão. Os olhos de Christopher demonstravam

interesse pela pessoa que monopolizava sua atenção, mas sem abandonar o

ar elegante que o caracterizava. Ao olhar, sucessivamente, para Rosa e para

Christopher, precaveu-se de que ambos estavam cortados pelo mesmo

padrão, tinham a mesma desenvoltura, elegância e saber estar. De repente,

seus olhos se desviaram para sua cunhada Ágata, que o olhava fixamente e

o fazia um gesto de contenção mal perceptível com a cabeça. Sabia o que

estava pensando! Esboçou um sorriso, ao tempo em que elevava a taça e

lhe dedicava um brinde.

—Verdade, lorde Beresford? — Andrew abandonou seus

pensamentos, para fixar os olhos no embaixador que lhe fizera a pergunta,

uma pergunta que ele não tinha ouvido, por estar pendente de seu irmão e

de sua mulher.

—Perdão? — respondeu, com outra pergunta; estava

completamente sobressaltado.

—Lorde Freeman acredita que o levante carlista não durará muito

tempo.

Seguiam falando da guerra na Espanha, um tema que Andrew

começava a detestar.

—O afastamento das hostilidades por parte de ambos os bandos

seria muito benéfico para o resto dos espanhóis que não combatem —

respondeu veloz, mas sem emoção.

O embaixador espanhol se apoiou no respaldo da cadeira e o olhou,

atentamente. Analisava seu comentário de forma crítica.

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—Por suas palavras, deduzo que está a favor da regência de María

Cristina, certo? — A pergunta de lorde Freeman o pegou com o guarda

baixo.

Ele não estava a favor nem contra nada.

—As guerras só trazem morte e miséria — alegou, com voz

despreocupada — e isso é um fato indiscutível.

—E o que pensa sua esposa de sua postura neutra? — insistiu o

embaixador, sem deixar de olhá-lo.

Andrew não meditou a resposta, que foi a seus lábios quase sem

pensar.

—Lady Beresford pensa igual a eu.

—Permita-me que o duvide, lorde Beresford — o contradisse o

embaixador, com voz calma — Sabemos que sua esposa é partidária de

Carlos e não da infanta e que financiou com sua própria herança a

reclamação do irmão do rei.

Andrew entrava em um terreno perigoso, mas queria resolver o

tema de forma definitiva.

—Minha esposa compreende e aceita que a política é coisa de

homens. Agora, é cidadã inglesa, e, portanto, a sublevação de dom Carlos e

a resposta bélica dos seguidores da infanta não é um problema para ela.

O gemido generalizado lhe mostrou que havia dito as palavras

equivocadas, e, depois delas, produziu-se um incômodo silêncio.

Andrew olhou a Rosa, que o contemplava incrédula e, um segundo

depois, desolada.

—Andrew, a maioria dos convidados não conhecem seu senso de

humor — interveio Christopher, tentando desviar a atenção da resposta de

seu irmão.

Rosa seguia sem afastar os olhos dos dele.

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Andrew compreendeu que acabava de colocá-la em uma situação

bastante comprometedora. Expressou em voz alta o que sentia e tinha

esquecido por completo que sentado a seu lado estava o embaixador

espanhol, claro defensor da regência de María Cristina.

O silêncio se prolongou durante uns momentos angustiantes,

incômodos. Ágata não sabia como sua cunhada podia emendar um

comentário tão desafortunado por parte do Andrew.

Mas Rosa respondeu de forma muito diferente a como esperavam

todos.

—Meu marido tem razão em relação à política. E a situação

espanhola o preocupa, embora ele se cale, para não me inquietar —

admitiu, ao fim — Sua insônia por meu bem-estar o leva a expressar-se

assim, não é, amor?

Agora, todos os olhares se dirigiram para Andrew.

Rosa conseguira mitigar o desastre que tinha ocasionado com suas

palavras e o deixou muito melhor do que o fez ele com ela.

—Só desejo sua felicidade — disse Andrew, em voz baixa, como se

fosse um sussurro.

Cada palavra pronunciada por sua boca saía, diretamente, do

coração, e estavam cheias de um amor profundo e apaixonado que Rosa

soube valorizar.

—Sei — correspondeu, com simplicidade — E estou imensamente

agradecida.

Os convidados seguiam o diálogo de ambos. Era como se

estivessem sozinhos na sala de jantar e sentados juntos, apesar da distância

que os separava.

Christopher decidiu intervir na conversa que se tornou sossegada

graças ao saber fazer de sua cunhada. Conseguiu que umas palavras

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depreciativas fossem tomadas como uma declaração de amor. Estava

assombrado.

—Senhores, tomaremos o brandy no salão. Rogo que me

acompanhem.

As palavras de Christopher obtiveram que os homens se

levantassem para segui-lo, salvo Andrew, que continuou sentado à mesa,

sem afastar os olhos de Rosa.

Nada na postura dela indicava que estivesse ofendida. Somente seus

olhos expressavam certo pesar, mas passaria despercebido para qualquer

pessoa que não a conhecesse tão bem.

Era uma mulher única.

CAPÍTULO 19

Andrew não acompanhou seu irmão ao salão, com o resto dos

convidados masculinos para saborear uma taça de brandy. Precisava

respirar um pouco de ar, por isso, saiu ao jardim traseiro da mansão.

Encaminhou-se para o roseiral, cruzou-o e se sentou em um banco de

pedra, ao amparo de umas árvores frutíferas.

A noite era, na verdade, formosa, mas ele se sentia aflito.

Rosa não tirou os olhos de cima dele, depois de seu último

comentário, mas como boa anfitriã, acompanhou o resto das convidadas à

sala especialmente habilitada para elas, enquanto os homens fumavam e

falavam de política no salão.

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Andrew não compreendia a necessidade que sentiam os homens de

manter-se separados de suas mulheres, quando o único que ele ansiava era

estar com a sua. Mais que nada, gostaria de tê-la, nesse momento, sentada a

seu lado, desfrutando de uma cálida e perfumada noite sob as estrelas. Sem

preocupar-se com os problemas do mundo, nem escutar, durante horas

intermináveis, as banais conversações de convidados que não significavam

nada.

Suspirou, com um pouco de tédio.

—Procurava você. — A voz de sua cunhada lhe chegou em tom

muito baixo.

—Precisava respirar um pouco de ar — disse, com certo

desconforto.

Acreditava que nenhum convidado se precavesse de sua fuga para

os jardins.

—Posso me sentar com você?

Andrew se fez a um lado do banco e afastou algumas folhas secas

que a brisa vespertina espalhara pelo jardim.

Depois de uns momentos de silêncio, Ágata o rompeu, com um

comentário cheio de simpatia.

—Sei como se sente. — Suas palavras o pegaram de surpresa.

Ele mesmo não saberia expressar como se sentia.

—Comigo aconteceu um pouco parecido com Christopher.

Andrew a olhou, com os olhos brilhantes de interesse.

—Sentia que não estava à sua altura?

—Nunca estarei à altura dele, Andrew, mas aprendi a aceitar

minhas limitações.

A palavra «limitação» lhe resultava aborrecível.

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—Acreditava que o amor que nos professamos superaria qualquer

barreira — admitiu, com certa vacilação — mas, agora, não estou tão

seguro.

—Entendo seu desgosto, mas acredito que está fazendo isso muito

bem.

Andrew desprezou suas palavras de ânimo porque não eram certas.

Não estava fazendo nada bem, justamente o contrário. Sua atitude indolente

começava a pesar no aspecto de Rosa.

—Por que a provoca? — perguntou Ágata, olhando-o nos olhos.

Ele sentiu a necessidade de afastar os olhos, mas não o fez. Lá, em

meio ao jardim e rodeados pelas árvores frutíferas, sua cunhada acabava de

pôr nomes aos desencontrados sentimentos que o sobressaltavam.

Provocava Rosa com premeditação!

Meditou profundamente, antes de responder.

—Possivelmente, para obter uma resposta como a que obteve meu

irmão de você.

Ágata piscou, atônita por suas palavras.

—Rosa é uma dama, e eu uma má cópia que tenta parecer com isso.

Andrew negou várias vezes com a cabeça.

—Você é autêntica e não deveria se menosprezar.

—Não julga nem questiona o severo e intransigente caráter de

Christopher com tanta dureza e parcialidade como o faz com o caráter de

Rosa, por que?

Era certo. Seu irmão se comportava com a mesma correção e frieza

que sua mulher. Mas ele não se deitava com Christopher, nem desejava

passar toda a vida a seu lado. Se fosse assim, o mataria em um arranque de

tédio!

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205

—Desejo recuperar a moça que conheci em Hornachuelos e me

desanima não saber como conseguir.

Ágata entendia muito bem as palavras de seu cunhado, que se

equivocava, guiado por um sentimento de inferioridade. Rosa destilava

segurança por cada poro de sua pele. Tinha sido educada desde a infância

com rigidez, controle e, o mais importante, ausência de liberdade. O que,

para Andrew, foi dado de mãos cheias.

—Conheceu uma moça única e acredita que era perfeita para você,

porque pensou que não tinha uma família a que prestar contas e estar presa.

Uma mulher sem responsabilidades, mas se enganava. Todo tem um

passado, mas está em você conseguir que seja seu presente e seu futuro.

Andrew meditou as palavras de Ágata.

Era certo. Havia tomado a Rosa por uma moça singela e órfã,

porque, quando lhe perguntou por sua família, ela deixou muito claro que

perdera todos na guerra contra Napoleão.

—Nunca me falou de seu irmão — reconheceu, com certo pesar —

Em Hornachuelos, fomos simplesmente duas pessoas que deram rédea solta

ao amor que sentiam e os devorava.

—Um casamento deve compartilhar muitas coisas além de amor.

Sentimentos como o respeito, a fidelidade e a confiança.

—Sinto-me um egoísta. Sou ambicioso, sei, mas a amo muito e não

me conformo sendo uma sombra a seu lado. Quero iluminar toda sua vida.

Ágata soltou um suspiro, pormenorizado.

—Então, compartilhe com ela suas inquietações. Ajude-a a alcançar

suas metas e será sua estrela brilhante pelas noites e seu sol quente durante

o dia.

Andrew ignorava para onde o conduzia Ágata com suas palavras.

—Não compreendo que tenta me dizer.

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206

—Se lhe importar a política, não a desanime, participe ativamente

nela e tome partido. Se lhe preocupar a situação na Espanha, lhe dê consolo

e lhe mostre seu apoio.

—Sempre rechacei a política — admitiu, evasivo — detesto as

reuniões sociais e a falsidade da aristocracia em geral. Resulta-me

vomitivo.

Sua cunhada fez uma careta de censura por seu último comentário.

—Pois, mal que lhe apesar, desposou, nada mais e nada menos, que

a filha de um duque. A irmã de um duque e a futura tia de um duque.

Embora não queira caldo, lhe tocará tomar três taças10

.

Andrew riu, ao fim.

—Agora, que recuperou um pouco de senso comum, procure sua

esposa e lhe mostre o quanto brilha para ela...

A ausência de Andrew na recepção lhe produzia um enorme

desconforto. Os convidados masculinos se reuniram de novo com as damas

para escutar um pouco de música, e ela se encontrava no dilema de querer

ir buscá-lo e não poder fazê-lo, porque, então, deixaria desatendidas às

damas. Algo imperdoável para uma boa anfitriã. Mas, quando o viu cruzar

as enormes portas de vidro que davam ao jardim traseiro, o suspiro que lhe

saiu da alma foi audível para as duas mulheres que tentavam monopolizar

nesse momento sua atenção.

Desejava com todas suas forças que Andrew se dirigisse para ela e a

beijasse, porque, assim, conseguiria acalmar a ansiedade que sentia, mas

10

Ditado mexicano, que significa que se quiser muito alguma coisa, tem que arcar com as

consequências.

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207

ele fez justamente o contrário do que desejava. Sentou-se junto a lorde

Eliot e aceitou uma taça que lhe serviu seu irmão, solícito, mas com olhar

severo.

Christopher censurava a escapada de Andrew justo depois do jantar.

Ágata apareceu, pouco depois, e esboçou um sorriso em direção a

Rosa acompanhada de um brilho especial no olhar. Rosa se perguntou por

que lhe sorria, embora decidisse levar isso como uma amostra de

solidariedade pelo bom resultado final da recepção.

Durante a seguinte hora, dedicou-se não só a escutar atentamente o

bate-papo de lady Stone, mas também a observar cuidadosamente seu

marido, que seguia mostrando um enorme interesse pela conversa que

mantinham com lorde Eliot. Via-o assentir e negar pouco depois e se fez

um montão de perguntas a respeito.

Os convidados foram abandonando a casa em um constante fluxo.

E, quando a grossa porta se fechou depois do último, Christopher encarou

com Andrew de uma forma que o coração de Rosa se encolheu.

—Está satisfeito? — Seu irmão não esperou nem que o mordomo

partisse para as dependências do serviço para ordenar que retirassem os

restos do jantar.

Rosa estava junto a Ágata. Ambas saíram ao vestíbulo para se

despedir do último convidado, e a voz colérica do Christopher as deixou

paralisadas.

—Mais do que esperava. — A voz de Andrew parecia insolente.

—Deveria lhe dar um murro — o ameaçou seu irmão, que não

afastava os olhos do rosto dele — Hoje se comportou como um autêntico

pusilânime e pôs Rosa em uma situação difícil.

—Sei, mas não foi premeditado.

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208

Ambas as mulheres seguiam sua conversa . Nenhum deles se

moveu. Os dois se mantinham alerta.

—E já está? — perguntou, mais colérico ainda — Em certas

ocasiões, terá de comportar-se como um verdadeiro homem e, esta noite, se

mostrou um pirralho imaturo, insensível e falto de ideias.

—Lorde Beresford! — exclamou Rosa, completamente atônita.

Mas seu cunhado não a olhou nem cessou em suas duras recriminações.

Ágata a segurou pela mão no momento em que a viu avançar para

Andrew, que seguia na mesma postura defensiva.

—É de humanos errar, Christopher, e meu comentário foi um

pensamento em voz alta que não pude conter a tempo.

—Maldito! — resmungou seu irmão mais velho, com voz altiva —

Seu comportamento deveria envergonhar você, e não me dê desculpas.

Hoje fez algo lamentável, como desaparecer justo depois do jantar. Em que

demônios estava pensando?

Rosa mantinha o olhar cravado no rosto de Andrew, que se via

aflito. As duras palavras de Christopher o machucavam e o faziam fechar

os punhos aos flancos.

Seu irmão voltou para a carga, mas Rosa se adiantou, apesar do

gesto de Ágata para que se contivesse.

—Hoje, os dois Beresford desta casa estão se comportando de uma

maneira muito imatura.

Christopher se voltou para ela, às suas costas, junto à escada.

—Defende-o? — perguntou, estupefato — Não posso acreditar!

—Andrés agiu de forma impulsiva, certo, mas foi motivado porque

não está acostumado à obrigação de seguir normas muito rígidas e mostrar,

em todo momento, um sorriso satisfeito que nenhum dos convidados

aprecia nem um pouco. Por isso, me parecem estranhas suas palavras

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209

recriminatórias. Se tiver algo que lhe dizer a respeito, faça-o na intimidade,

e não no meio do vestíbulo e diante de duas senhoras que só desejam ir

dormir, depois de uma velada exaustiva.

Ágata conteve a respiração, ao escutar sua cunhada. Nenhuma

mulher lhe falava assim com primogênito dos Beresford. Nem ela mesma

se atreveria!

Christopher piscou várias vezes, ao tempo em que assimilava a

severa reprimenda que acabava de soltar sua cunhada. Como podia

defender o crápula de seu irmão, depois do abafadiço espetáculo que tinha

devotado antes, durante e depois do jantar?, perguntou-se irado.

—Assim, se deseja continuar a discussão, por favor, rogo que seja

na biblioteca e com a porta fechada, para evitar um desconforto, e, agora,

boa noite, lorde Beresford.

Rosa girou sobre si mesma e começou a subir a escada. Ágata a

seguiu, precipitadamente. Seguia atônita e sem poder pronunciar palavra.

Andrew a contemplou, enquanto subia, com sua cunhada atrás.

Quando ambas as mulheres se perderam no corredor de acima, cravou suas

pupilas nas costas de seu irmão, que seguia olhando a escada assombrado.

Christopher se voltou para ele com uma expressão bastante

eloquente: estava atônito!

—Não a merece.

—Sei — respondeu Andrew, cheio de orgulho.

Um breve silêncio se instalou entre ambos os irmãos, que não

moveram nem um músculo.

—Queria uma bofetada? Pois aí a tem. Cretino! — Andrew esboçou

um sorriso um pouco perturbado — Ficaremos em Whitam até a volta do

pai — concluiu Christopher.

E suas palavras soaram cortantes.

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210

—Acaso não confia em mim? — perguntou Andrew, com ironia.

Seu irmão o olhou de cima abaixo, sem piscar.

—Nem um pouco.

E, depois da ofensiva resposta, voltou-se rápido e subiu os degraus

de dois em dois.

Andrew ficou, de repente, sozinho no grande vestíbulo de Whitam

Hall.

CAPÍTULO 20

Rosa seguia escovando o cabelo, esperando a chegada de Andrew ao

quarto.

Cada vez que recordava o que dissera ao primogênito dos

Beresford, ruborizava de vergonha. Mas Christopher se mostrou muito

intolerante com seu irmão, que estava aprendendo a passos largos as

inumeráveis e tediosas regras sociais. Este seguia sendo um espírito livre,

como em Hornachuelos, e isso era o que mais a atraiu nele, no passado.

Andrew nascera em uma família nobre, mas nunca se comportou como tal

porque não lhe fazia falta, até então.

Quando ouviu o ruído do trinco, deteve a mão com a escova no ar e

se voltou para Andrew, que sustentava duas taças de cristal e uma garrafa

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211

de vinho tinto. Ficou parado na metade da quarto, sem afastar seus olhos

azuis dela.

—Deixa-me sem fôlego. — O carinhoso elogio lhe provocou a

mesma emoção de sempre.

Rosa deixou a escova de manga de prata na pequena mesa que

utilizava como penteadeira. A habitação de Andrew era muito masculina.

Como ele.

—Estou zangada — espetou, de repente.

O silêncio se instalou entre ambos, até que Andrew decidiu rompê-

lo.

—Sei. — E, pela primeira vez, se precaveu de quantas vezes

repetira essas mesmas palavras, desde que estava casado — Por isso, quero

fazer as pazes com você.

—Não é um menino, Andrés. Não pode se comportar com essa falta

de coerência.

—Não é falta de coerência, Rosa.

Ela abriu a boca, mas a fechou, um instante depois.

Ele tinha deixado à garrafa e as duas taças sobre a mesinha de

cabeceira. Viu-o caminhar para o closet, enquanto desabotoava a camisa de

gala, o colete e as calças. Fechou os olhos, porque ainda lhe produzia certo

sobressalto contemplar como se despia diante dela.

Seu corpo era como o de uma divindade nórdica. Dourado da

cabeça aos pés.

Quando ouviu o ruído da garrafa ao ser desarrolhada, abriu-os

rápido. Andrew vestira um roupão de seda azul que se adaptava aos

músculos de seu corpo, delineando-os.

—Meu comportamento é o resultado da insegurança que me

provoca — disse, a seguir.

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212

—Insegurança? Não o compreendo, Andrés. — E era certo.

Cravou suas pupilas nas dele, que lhe mostravam um brilho de

desejo misturado com incerteza.

—Temo cometer enganos, por isso, me comportei assim esta noite.

—Andrés! — exclamou, compungida. Ela esperava outra resposta.

—Mas lhe dou minha palavra de que, de agora em diante, me

esforçarei ao máximo para ser um autêntico Beresford.

—Meu aborrecimento não está provocado por seu comentário

durante o jantar — esclareceu, com a voz serena.

Ele estava perplexo. «Então, por que está zangada?», perguntou-se.

—Mas, sim, por sua passividade ao permitir esse tom em seu irmão

ao censurá-lo — acrescentou Rosa.

Estava cada vez mais atônito.

—Você é responsável em Whitam, na ausência de seu pai. Embora

seu irmão esteja presente no jantar, é um convidado mais. E não deve

permitir que monopolize a reunião e se desloque no trato com os

convidados. Não é correto, Andrés. Hoje deveria ter ocupado o lugar de

honra na mesa e não ficar à margem como um mero observador, sem

intervir.

Andrew sentia uma vontade enorme de soltar uma gargalhada,

embora se contivesse, mas esboçou um sorriso de orelha a orelha. Ela

seguia falando do maldito protocolo.

—Não escutou nada do disse — o recriminou, mas de forma mais

suave, ao ver sua diversão.

Ele fez um gesto negativo com a cabeça.

—Sim escutei, mas não estou de acordo com você. Como

primogênito e futuro marquês, Christopher é responsável por tudo o que

acontece em Whitam, na ausência de nosso pai. E, esta noite, eu me

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213

comportei como um pirralho imaturo, porque me aterra a ideia de perder

você.

«Andrés temia perdê-la?» Sua confissão a pegou despreparada.

—Sou eu a que se sente insegura a respeito de você.

Sem pretender, Rosa ouvira uma conversa entre duas convidadas

sobre as contínuas e constantes conquista do jovem Beresford. Sem querer,

descobriu que seu marido era um libertino consumado e, de repente, ser

consciente disso lhe provocava um temor muito real.

Andrew a olhou entre a dúvida e o assombro. Ela se sentia

insegura? Não podia acreditar!

Rosa decidiu lhe contar o motivo de sua preocupação.

—Por acaso, ouvi uma conversa sobre as mulheres que desfilaram

por seu leito. Segundo duas das convidadas, o número de suas conquistas

chega a uma centena. — calou-se, por um momento, porque a conversa a

mortificava, mas tinha de ser sincera com ele e lhe mostrar o modo como a

afetava saber disso — E devo admitir que não gostei em absoluto. Embora

não tenho o direito a recriminá-lo, posto que agia como um homem sem

responsabilidades.

Rosa não duvidava que as mulheres exageravam o número de

conquistas de Andrew, mas, mesmo assim, não gostou de conhecer seu

passado amoroso.

Ele sentia em enorme desejo de abraçá-la. Conforme disse, estava

zangada e se sentia insegura, mas mostrava o orgulho de um general em

plena batalha.

Não perdia o orgulho nem quando estava com ciúmes.

—Foram muitas — a provocou — mas não uma centena.

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214

Durante um décimo de segundo, o brilho nas pupilas de Rosa lhe

mostrou como seria uma vingança consumada por ela: absoluta. E esse

conhecimento o fez tomar ar.

—Mas não significaram nada — acrescentou — Foram um triste

consolo no qual tentei me refugiar depois de seu abandono.

Os olhos dela brilharam espectadores.

—Não o abandonei — esclareceu — Eu me neguei a acompanhá-lo,

o que não é o mesmo.

Sua observação o incomodou, porque os desviava de um tema que

começava a apaixoná-lo: os ciúmes femininos.

—Destroçou-me o coração, Rosa, e, depois, caminhei na borda do

precipício. Por isso, procurei consolo em outros braços femininos.

—Em outros ou em centenas? — perguntou, controlando sua voz,

mas não seu olhar.

Sua contínua piscada mostrou a Andrew que estava muito afetada.

—É e será a única mulher em minha vida. — Sua declaração,

singela e espontânea, arrancou-lhe um profundo suspiro, uma exalação que

impregnou na alma dele, acariciando-a por completo.

Rosa se manteve em silêncio, mas abandonou sua postura passiva,

sentada frente da penteadeira e se aproximou de onde estava ele, com os

braços na cintura e o rosto imperturbável.

—Amo você, Andrés, com toda minha alma. Não quero perder você

nem desejo que procure consolo em outro leito que não seja o meu.

Suas palavras o desarmaram por completo.

—Então, me deixe que lhe mostre tudo o que sinto por você e quão

valiosa é aos meus olhos.

Suas mãos seguraram as suas com delicadeza.

Rosa se deixou guiar até os pés do leito.

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215

—Se olhe como a vejo e note a adoração que sinto por você.

Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.

Andrew lhe agarrou uma mão, colou-a as suaves costas dela a seu

peito e começou a lhe sussurrar ao ouvido em voz muito baixa.

Rosa fechou os olhos, ante sua petição.

Andrew lhe abriu a palma e a levou para a seda da camisola, onde

iniciou um lento percurso em seu quadril direito, enquanto ele a guiava.

—O contorno é perfeito, firme e ondulante. O começo de uma

questão inacabada. — A mão aberta de Rosa acariciava a própria curva de

seu quadril, que, em seu subconsciente, se revelou como uma suave duna

do deserto. Agora, seguia o percurso por seu ventre e seu estômago — Esta

ligeira proeminência me recorda a ladeira de uma montanha orgulhosa,

com um pendente atraente, e aqui — a palma dele se deteve em seu umbigo

— aqui, na boca da cratera adormecida, escondem-se segredos que

ninguém pode desvelar, apesar de que nos resulta sedutor, intrigante. O

começo de uma aventura que nos apanha, engole-nos. — De novo, voltou a

posar sua mão no dorso da dela para seguir a exploração. Com suma

destreza, a subiu pelo lado direito até alcançar a delicada curva do seio,

onde a deteve para que ela calibrasse a forma e o peso — Dois montículos

perfeitos em um vale fértil, cheios das mais doces promessas.

Fê-la girar no sentido das agulhas do relógio, a palma de Rosa

estava quente a seu contato.

Ela ofegou, sufocada. O jogo que Andrew tinha começado era

extremamente erótico.

—Sente tudo o que diz quando lhe fala com suas carícias. — Seus

mamilos se endureceram ante suas palavras, e ficaram eretos, como casulos

de rosa, antes de abrir-se ao sol.

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216

Rosa começava a tragar com dificuldade. Andrew era um sedutor

nato.

—Se fosse mais alta, seriam pequenos. Se fosse menor, justamente

o contrário, mas têm o tamanho perfeito para que um homem se deleite

com eles e morra por saboreá-los. — Sua mão percorreu o seio dela até

alcançar a base de sua garganta — Um atalho solitário que nos conduz à

cova das maravilhas, onde nos esperam mil e uma sensações, mas antes

devemos sortear a montanha belicosa. — Sua forte mão tinha alcançado a

parte baixa de seu queixo e se dirigia impenitente ao contorno de seus

lábios.

O peito de Rosa começou a agitar-se, estremecido. As metáforas de

Andrew sobre seu corpo lhe produziam um ardor incessante no ventre, que

subia de intensidade a cada momento.

—Duas pétalas que se abrem à reclamação de uma abelha para

beber o néctar que esconde em seu interior.

Acariciou-lhe com um dedo os lábios abertos pela surpresa. Rosa os

fechou por instinto e, um instante depois, notou o sabor dele em sua boca;

seu gosto salgado lhe produziu um intenso prazer que a deslocou.

Era imune a tudo o que não fosse às sensações que despertavam as

sensuais palavras dele em seu ouvido.

—É o prazer feito realidade. — Os lábios de Andrew foram

passeando à vontade por seu pescoço, procurando o prêmio que ela estava a

ponto de lhe outorgar.

Acariciou seus delicados ombros e a virou, com grande lentidão,

para ele.

—Abra sua cova para mim! — Rosa lhe correspondeu — A mais

sedutora das deusas.

A boca dele a buscou até encontrá-la.

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217

O beijo firme e delicado ante a selvagem resposta dela se tornou

lacerante.

A mão de Andrew tinha abandonado a passividade para acariciar o

mesmo trajeto que fizera a mão dela uns minutos antes. Seguia reclamando

com a língua, pedindo uma rendição que Rosa lhe outorgou encantada. Ela

gemia ante as sensações que foram circulando por seu corpo, lhe causando

pequenas cãibras nas extremidades. Os joelhos começaram a fraquejar e se

recostou no peito forte de Andrew.

Sua boca tinha sabor de café e o aroma lhe resultou extremamente

excitante, por isso, seguiu bebendo como uma sedenta. Mordiscou seus

voluptuosos lábios com consciência. Com sua língua, indagou, explorou e

delineou as curvas mais ocultas sem que ela opusesse resistência. Quando a

mão dele se fechou em torno de seu seio, Rosa lançou um gemido profundo

que a surpreendeu por sua intensidade, e a descarga que recebeu a deixou

tão fraca que não replicou quando foi deitada no leito.

Rosa baixou a mão em uma suave carícia pelo duro torso dele,

medindo, descobrindo os planos duros de seu estômago, que se iam

revelando, à medida que o tocava com dedos febris. Seguiu descendo por

seu estômago até a abertura da bata. Seu pênis, ereto como um mastro,

sofreu uma violenta sacudida ante o roçar delicado de sua mão e se

entregou a sua exploração tornando-se ainda mais duro.

Rosa seguiu em seu desinibido avanço.

Começou, com ousadia, uma lenta exploração do tamanho,

suavidade e longitude do membro pulsante em sua mão com um desespero

que escapava ao entendimento de Andrew. Conheciam-se intimamente,

mas com ela sempre era como a primeira vez.

Desfez-se da bata de seda azul, e Rosa o ajudou, solícita, a cada

segundo, mais impaciente. Ele fez o mesmo com a camisola dela. Quando

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218

ambos estiveram nus sobre a colcha, as mãos de Andrew agarraram as dela,

que segurou por cima de sua cabeça, antes de voltar a apoderar-se de sua

boca em uma lenta descida que, para Rosa, resultou angustiante pela

expectativa.

Os lábios de Andrew riscavam círculos sobre seu pescoço, seu

queixo, antes de apoderar-se novamente de sua boca. Não pôde conter um

gemido de prazer, ante o sabor que a seduzia.

Andrew perfilou com sua língua morna suas curvas acetinadas em

um beijo lento e profundo que lhe arrancou outro gemido gutural.

—Quero sentir você dentro! — Sua exclamação urgente fez que o

membro do Andrew se elevasse com um espasmo brutal — Rápido!

Escutou o rogo suplicante e, de uma só investida, entrou em seu

interior como se fosse um guerreiro furioso após cravar sua lança na presa

que esteve espreitando. As vibrantes pulsações dela o encheram de atônita

estupefação. Não havia começado a mover-se, e Rosa chegou ao orgasmo

quase sem sua colaboração.

Andrew se debatia entre sentir-se adulado ou ofendido.

Quando os gemidos femininos se apaziguaram em parte, começou

um lento ataque que foi enchendo-a outra vez de excitação. Rosa rodeou a

cintura dele com as pernas, para acompanhá-lo nos movimentos. Sentia-se

como uma taça vazia que ia enchendo, pouco a pouco, de borbulhas

faiscantes, que se chocavam umas com outras, lhe produzindo uma

sensação plena e maravilhosa. Andrew a submetia com urgentes

arremessos, medindo a cadência e a intensidade. Quando acreditou

conveniente, começou a acelerar o ritmo, ao mesmo tempo em que a

respiração. Rosa voltou a gritar, quando o paiol de pólvora estalou em seu

interior de novo.

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219

Andrew rugiu com prazer, ao alcançar a liberação, poucos instantes

depois dela. Seu rugido de satisfação deve ter sido ouvido por toda a casa.

CAPÍTULO 21

Sentia-se cheia de expectativas.

Os dias passavam iguais entre si, e a harmonia e a felicidade que

reinavam em Whitam a faziam sentir-se o ser mais privilegiado do mundo.

Andrew enchia suas ilusões de esposa apaixonada, e a presença na casa do

Christopher e Ágata alimentava ainda mais o crescente interesse que seu

marido mostrava pela política e os assuntos de sociedade. Tinham assistido

a dois jantares formais e a um picnic em um parque próximo ao porto.

Andrew fora quase tão formal e bom convidado como seu irmão maior. Sua

inteligente conversa e seus elegantes gestos conquistaram a maioria das

matronas do condado de Hampshire.

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220

Seu amor era um diamante em bruto, e Rosa se sentia muito

afortunada por havê-lo encontrado.

Andrew desejava agradá-la em tudo e, por isso, aceitou um convite

de lorde Eliot, para que o visitasse em sua residência de Londres. O

embaixador na Espanha desejava lhe comentar alguns assuntos, antes de

sua partida para Madrid, e ambos tinham consertado uma reunião ali.

Embora levasse unicamente dois dias fora de Whitam, para ela pareciam

muito semanas, porque Andrew se converteu no pilar fundamental de sua

existência e porque desejava conhecer notícias sobre o desenlace do

enfrentamento na Espanha.

Soltou a pluma que sustentava e a deixou de novo no tinteiro.

Estava escrevendo uma carta a sua madrinha. Fazia muitos anos que não a

via, por isso, a convidava a visitá-la em breve em Whitam.

—Alonso de Lara espera ser recebido. — Marcus havia entrado tão

silenciosamente que Rosa, em um princípio, não o ouviu. O leal servente

repetiu suas palavras — O duque de Fortaleza se encontra no vestíbulo,

milady.

Seu ofego foi claramente audível. «Que fazia Alonso em

Whitam?», perguntou-se, desesperada. Marcus entregou o cartão de visita,

e Rosa se encontrou lendo umas letras que pareciam apagar-se.

Um suor frio começou a brotar em sua fronte. Alonso sempre ia

acompanhado de más notícias. Desde que podia recordar, cada vez que seu

irmão aparecia, a paz se esfumava do ambiente como por arte de magia.

—Se o estimar conveniente, posso lhe dizer que não está em casa

ou que se sente indisposta.

Rosa levantou os olhos do cartão ao mordomo, que a olhava solene.

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221

Marcus estava disposto a tirá-la do apuro que lhe tinha parecido que

representava a visita de Alonso, e Rosa supôs que seu desgosto resultava

muito evidente.

Inspirou, profundamente, antes de lhe responder:

—Leve-o à biblioteca. Eu o receberei lá.

Marcus fez um gesto afirmativo e, de forma tão silenciosa como

tinha entrado, abandonou a sala de leitura onde ela se encontrava.

Rosa levou uma mão ao estômago ante a arcada que lhe sobreveio.

A visita de seu irmão não pressagiava nada bom, e ela sabia melhor

que ninguém. Tinha abandonado o convento sem assinar o acordo

preparado pela rainha, nem o transpasse de suas propriedades.

Secou a palma das mãos no tecido de seu vestido e, ao olhá-las, viu

o quanto tremiam. Tentou recolher algumas mechas que se soltaram do

coque, e alisou a saia, acaso tivesse alguma ruga. Encaminhou-se para a

porta com passos curtos, medidos, como se fosse diretamente à força.

Empurrou a porta e saiu ao vestíbulo. A distância entre a biblioteca e o

salão de leitura não era muita, mas, para Rosa, pareceram léguas íngremes

e cheias de penhascos cortantes.

Quando chegou frente à porta fechada, inspirou, de novo, e

empurrou a grossa madeira. Seu irmão estava de costas e olhava uma das

estantes cheias de livros. Com os dedos da mão direita, acariciava um

luxuoso volume de couro, com letras gravadas em ouro na parte de trás.

—Alonso.

Este se virou, com rapidez, para sua voz, que parecia indecisa.

Quando Rosa cravou os olhos em seu rosto, sufocou um gemido de

surpresa. Seu irmão não parecia o mesmo! Levava o cabelo mais longo e

tinha emagrecido grandemente.

—Rosa — respondeu, com voz seca.

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222

Ela se sentia incapaz de dar um passo mais. Parecia como se lhe

pregassem os sapatos ao chão e se sentia as pernas torpes e pesadas.

—Tomarei um café, muito obrigado — disse Alonso, para romper o

silêncio que se instalou entre os dois.

Rosa não lhe perguntara se desejava tomar algo. Sentia-se tão

paralisada que mal podia respirar, muito menos falar.

—O que faz em Whitam Hall? — conseguiu perguntar, ao fim, mas

sem poder controlar os anárquicos batimentos de seu coração.

Ele caminhou vários passos, até situar-se a escassos centímetros

dela, quase na soleira do aposento. Rosa fechou, ao fim a porta, às suas

costas e ficou apoiada na madeira. Não soltou o trinco. Desejava ter as

mãos ocupadas, para que Alonso não se precavesse de quão nervosa estava

em sua presença.

—Tenho assuntos para tratar com você — admitiu seu irmão, com

voz firme e sem deixar de olhá-la.

—Depois partirá? — perguntou, com ousadia.

Com essa pergunta, demonstrava o temor que sua presença lhe

produzia.

Alonso entreabriu os olhos, com cautela. Parecia muito apurada, e

ele sabia por que. Rosa avançou vários passos, até chegar perto da lareira.

—Desejo conhecer minha sobrinha — soltou ele, de repente.

O ar se tornou tão espesso que os pulmões dela não podiam inalá-

lo. Sentia-se incapaz de empurrar o fôlego de vida através de sua garganta

até seu peito. Respirava de forma entrecortada, com inspirações pausadas,

mas não funcionava. Afogava-se!

—Pedirei um café — disse a seu irmão, com apenas um fio de voz.

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223

Rosa acionou o atirador situado perto da lareira para chamar o

serviço. O mordomo apareceu no aposento apenas uns instantes depois.

—Marcus, dois cafés, por favor.

Antes de retirar-se, o homem olhou com olhos semicerrados a visita

inesperada e sustentou o olhar do duque uns segundos mais do que indicava

o protocolo. Finalmente, abandonou a biblioteca.

—Um criado insolente — arguiu Alonso, com voz crítica.

Quando voltou a olhar para sua irmã, precaveu-se de que seguia em

completo silêncio e apoiada no suporte de mármore da lareira. Parecia

como se necessitasse de sustento. Ele começou a percorrer o agradável

aposento, olhando cada objeto com suma atenção.

—Está me deixando nervosa. — As palavras de Rosa detiveram

seus passos e se voltou para ela para olhá-la de frente.

—Tem motivos para lhe estar — alfinetou, cínico.

—Aqui não pode manipular minha vida nem meus interesses — o

desafiou.

Estava tão exaltada que mal meditava as palavras antes de dizê-las.

A surpresa se refletiu claramente no rosto de Alonso, que a olhou

entre a resignação e o dever por cumprir.

—Nunca pretendi machucar você — disse, com voz amarga — Não

obstante, é meu único parente vivo e faz muitos anos prometi velar por sua

segurança.

—Veio sozinho?

Alonso se perguntou por que sua irmã mudava de conversa como

quem troca o lenço de mão. Evitava olhá-lo, e isso o enervou.

A entrada do mordomo silenciou sua réplica. Observou Marcus

enquanto deixava a bandeja de prata na mesa e servia o café com gestos

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224

precisos. Quando tudo esteve preparado, fez uma inclinação de cabeça e se

retirou.

O silêncio entre ambos os irmãos resultou muito eloquente.

Rosa inspirou fundo para tentar acalmar-se. Pegou uma das xícaras

de porcelana com café e a ofereceu o Alonso, que tomou sem dizer nada.

Sentaram-se em frente à mesa.

—Não viajei sozinho. Acompanham-me Alejandro de Martín e

Villanueva e Enrique Palácios.

Rosa conhecia ambos os nobres; serviam com ardor à rainha María

Cristina.

—Fizeram uma viagem muito longa.

Alonso cravou suas pupilas nela, antes de responder.

—Iria às colônias, se fosse preciso.

Rosa desviou os olhos de seu irmão e esticou as costas. Sua frase

resultava muito reveladora, pois Alonso detestava as colônias espanholas.

—Por quê, Rosa?

A pergunta direta lhe mordeu o coração. Em sua voz, não havia

cólera nem altivez e, sim, um matiz de decepção que a fez olhá-lo de frente.

—Quando me apresentou a oportunidade de partir do convento, não

medi as consequências — respondeu, sincera.

—Não lhe perguntei por que motivo fugiu, mas, sim, por que me

escondeu que tenho uma sobrinha.

Ela sopesou várias respostas e, finalmente, pensou que lhe dizer a

verdade seria o melhor nesse momento.

—Nunca tive intenção de tomar os hábitos. Parti de Sevilha para

pôr distância entre você e suas intenções. Uma vez instalada em

Hornachuelos, conheci lorde Beresford e me apaixonei profundamente

dele. O resto não importa.

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—Essa decisão sua já a pressupunha — respondeu severo, se

referindo aos hábitos que não tomara — mas sua desobediência me aflige

até um ponto inconcebível.

—Minha desobediência tem um nome: fidelidade e compromisso.

Seu irmão a olhou, perplexo.

—Parecem as palavras de um político pronunciando um discurso —

respondeu — e não o de uma dama de sua linhagem e com

responsabilidades.

Rosa se prometera não perder o controle, mas estava custando um

esforço tremendo. Seu irmão tinha a capacidade de derreter sua vontade

como manteiga.

—Já não tem controle sobre mim, nem sobre minhas propriedades.

Tomei em minhas mãos o rumo de minha vida e atuo em consequência.

—E o que conseguiu, Rosa? — A pergunta exigia uma resposta

inteligente. Alonso não era um homem de meias palavras, e ela decidiu

mostrar-se valente.

—Independência.

—Recordo-lhe que, agora, é uma mulher casada, seu marido

controla sua liberdade. Chama isso de independência? E, o mais grave,

Rosa, seu inglês pratica outra religião distinta de nosso país e antepassados.

Não sente o mínimo remorso?

Alonso tinha razão, mas, por amor, ela evitava todos e cada um

desses detalhes que, agora, tão amavelmente lhe mostrava.

—Já conhece o dito, «O amor e o mar não se podem murar», e eu

amo lorde Beresford tão profundamente que essas objeções me pareceram

superáveis.

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226

—Mas é um estrangeiro, Por Deus, Rosa! — clamou seu irmão,

com um tom de voz desesperado — Devia fidelidade à família. Devia-me

obediência!

Ela soltou o ar, abruptamente.

—Pretende me castigar com suas palavras? — perguntou, magoada

— Andrés é estrangeiro, sim, mas seu pai lutou na Espanha contra

Napoleão. Sua irmã é espanhola e sobrinha do conde de Ayllón. Como

pode ver, não foi uma escolha tão desastrosa.

—Só tento ajudar você, mas você nunca me permitiu — respondeu,

pesaroso.

—Ajudar? Encerrando-me em um convento? — inquiriu, cheia de

uma angústia, ressabiada por anos de silêncio — Essa é sua forma de

ajudar a sua única irmã?

—Intermediei ante a Coroa para evitar seu enforcamento, mas, em

vez de confiar em mim, aceitou a ajuda do primeiro que lhe ofereceu isso

com interesses.

—Isso é uma sandice — replicou, aborrecida — O auxílio do

marquês de Whitam foi altruísta e desinteressado.

—Sou um grande da Espanha e minha irmã uma das mulheres mais

ricas da Andaluzia; não posso acreditar na imparcialidade de seus

benfeitores.

Alonso se mostrava tão suscetível como sempre.

—Quando conheci lorde Beresford, ele não sabia quem era eu. E

me amou, acreditando que era uma moça singela.

Alonso meditou suas palavras. No convento, levava uma vida

austera e sem luxos, lhe teria resultado fácil fazer-se passar por uma

camponesa, a não ser por seus traços aristocráticos e aquela altivez inata

em sua forma de olhar.

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227

—Olhe-se no espelho e verá como isso que diz é uma soberana

estupidez. Só terá que se ver uma só vez para saber que por suas veias corre

o sangue mais nobre. Duvido que o tal Beresford ignore quem era

realmente.

Rosa não pensava em cair na armadilha; Andrew estava fora de

toda discussão.

—Veio de tão longe para me recordar quão nobre é meu sangue?

A pergunta estava cheia de sarcasmo.

Alonso apertou a mandíbula até ranger os dentes, pois não esperava

essa atitude obstinada por parte dela. No passado, Rosa sempre se mostrou

introvertida e distante. Era sua única irmã, mas se comportava com ele

como uma completa estranha.

—Embora resulte inconcebível, sempre tive um autêntico interesse

por proteger você.

Ela piscou várias vezes. Essa admissão a pegou com a guarda baixa.

—Recordo que foi você quem me prendeu.

—Fiz isso para salvar sua vida. Incrédula!

—Não minta, Alonso! Não posso suportar!

—Não o faço, e não imagina nem por um momento os favores que

tive que outorgar, nem o muito que tive que rogar por sua causa.

—Nunca lhe pedi isso.

—Não me precisa pedir isso. Sou seu irmão e prometi a pai que a

protegeria, inclusive com minha própria vida.

Rosa se sentia cada vez mais incômoda.

A atitude do Alonso a desconcertava, porque não se comportava

como ela esperava. Não lhe falava com ódio, nem seu tom continha

despeito algum, e essa clara resignação a incomodava, profundamente,

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porque a fazia parecer mais culpada do que se sentia por havê-lo enganado

e fugido, quando tudo estava a ponto de concluir.

—O que quer, Alonso? A que veio, realmente, a Whitam Hall?

Um silêncio pesado, como uma sombria tormenta, pendeu entre

ambos, que se mediam mutuamente como adversários e não como irmãos.

—Mudei meu testamento e nomeei minha sobrinha herdeira de todo

meu patrimônio. Meu títulos passarão diretamente a ela, quando eu morrer.

Rosa abriu os olhos como pratos, depois escutar a franca declaração

de seu irmão.

Alonso estava louco!

CAPÍTULO 22

—A Espanha está em guerra, e comando os Húsares da Princesa,11

no norte. A situação lá é bastante delicada.

11 Regimento criado em 16 de março de 1833. Inicialmente, utilizado como escolta de honra da

princesa, mas a eclosão da guerra civil fez com que passassem a prestar serviço na campanha junto com

o restante dos regimentos de cavalaria”.

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229

—Sei — admitiu, algo evasiva — O embaixador espanhol em

Londres teve a bondade me informar de como se desenvolve o conflito na

Espanha.

Alonso ignorava que o embaixador espanhol tivesse entendimentos

com sua irmã.

—Preocupa-me morrer em combate sem ter deixado meus assuntos

resolvidos.

—Agradeço a grande honra que faz a Branca, mas estou convencida

de que terá seu próprio herdeiro. É um dos melhores paladinos da rainha,

poucos homens superam sua audácia e inteligência em batalha.

Alonso se sentiu comovido por suas palavras, embora não

demonstrasse.

—Mas é um fato que posso morrer amanhã por uma baioneta

inimiga ou por uma bomba no campo. E, com sua declaração de rebeldia, o

título que ostentou nosso pai, nosso avô e parentes anteriores, passará à

Coroa, assim como a totalidade de nossas posses. Não pode permitir, Rosa.

Nosso pai e antepassados se revolverão em suas tumbas, se o fizer.

Ela não queria considerar essa possibilidade. Alonso era o único

familiar próximo que tinha, e pensar em perdê-lo agitava seu coração com

sentimentos contraditórios pela primeira vez em sua vida.

Desde menina, se havia sentido deslocada, porque ela se criou longe

do lar familiar, enquanto que seu irmão desfrutara da companhia de seus

pais. Isso alimentou sua rebeldia contra ele. Agora, podia admiti-lo e ser

consciente disso aumentou a vergonha que sentia até um ponto intolerável.

—E isso o que significa? Não posso retornar a Espanha! Não, a

menos que ganhem os carlistas.

Alonso inspirou, profundamente.

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230

—Olhe em seu coração, Rosa. Estou convencido de que sabe que

não ganharão. Não podem vencer o exército real!

Ela o pressentia. Apesar das vitórias carlistas, a rainha ganharia,

finalmente, a batalha contra dom Carlos.

—Então, já está tudo dito entre os dois. Ou não é isso o que deseja

escutar de meus lábios? — perguntou, angustiada.

—A Coroa não esquecerá sua traição, mas Branca pode ser o meio

para que algum dia possa retornar a Sevilha.

—Não sei se desejo retornar — admitiu, um pouco perturbada.

Alonso a olhou, atônito. Sua irmã não podia falar a sério.

—Renuncia a tudo o que pai lhe ensinou? Despreza nossas raízes?

Amigos? Não posso acreditar, Rosa, seria uma infâmia muito grande.

Ela soube que tinha equivocado as palavras.

—Lamento me haver misturado em política e pôr, com isso, em

interdição o bom nome da família. Se pudesse voltar atrás, tomaria outros

roteiros, mas já não posso mudar os fatos — admitiu em um sussurro pouco

audível.

—Então, me permita que arrume os assuntos que assegurem o

futuro de Branca na Espanha.

«Assegurar o futuro de Branca?» Rosa não compreendia nada.

—Como? — perguntou, atônita pela sugestão.

—A rainha está disposta a aceitá-la como minha legítima herdeira

e, além disso, aprova o compromisso nupcial entre o ducado de Fortaleza e

o de Marinaleda.

Rosa ergueu as costas, ao ouvi-lo.

—Não penso em prometer minha filha! — replicou, com incrédula

agitação.

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231

—Escute-me, Rosa — pediu ele, em um tom conciliatório — Faz

muitos anos, assinei um acordo com o ducado de Marinaleda entre minha

primogênita e o primogênito do Leonardo, e, agora, é impossível rompê-lo.

Permita que lhe mostre os documentos que redigi, porque inclui algumas

mudanças.

Alonso se levantou e se encaminhou com passo veloz até o lateral

da lareira apagada. Agarrou uma pasta de pele que Rosa não vira quando

entrou no aposento e retornou até onde ela estava sentada, quieta, sem

mover-se.

Viu-o desatar o nó que fechava a pasta e começar a tirar diversos

papéis.

—Aqui tem meu testamento e uma cópia que ficará em seu poder,

quando partir.

Entregou-lhe o documento, que ela leu com suma atenção.

—Este é o acordo nupcial entre ambos os ducados, mas me permiti

incluir uma cláusula: Branca poderá romper o acordo, se, finalmente, não

desejar o compromisso com Marinaleda, embora, para isso, terá de esperar

à maioridade e renunciar a metade de seu dote. É o melhor que pude

conseguir.

Alonso deixou o documento na mesa e ia amontoando outros.

—Todas e cada uma das propriedades que estão em posse dos Lara

passarão a Branca, quando cumprir a maioridade, e, em caso de contrair

matrimônio, passarão às mãos de seu marido, mas você administrará o

usufruto de todas.

Rosa estava assombrada. Ao olhar aqueles documentos, sentia uma

opressão no peito. Era como se Alonso dispusesse tudo para sua morte

iminente.

—Só existe uma condição — disse ele.

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—Uma condição?

—A rainha deseja conhecer Branca em pessoa. Uma vez o fizer,

expedirá o documento real que a reclamará na corte, quando cumprir os

dezoito anos, para tomar posse de sua herança. Mas deseja assiná-lo na

presença da pequena, como manda a lei.

—Meu Deus! — A voz de Rosa parecia angustiada.

Tudo aquilo era muito mais sério do que podia imaginar.

—Juro que a protegerei com minha vida, se me confiar isso!

—Não posso enviá-la a Espanha!

—A menina estará fora algumas semanas, no máximo.

Algumas semanas que, para ela, seriam como muito anos.

—Está louco se acredita, por um momento, que estou disposta a

deixar partir a minha pequena!

—Rosa, não se prenda com ninharias. É um preço ínfimo em troca

de ser minha herdeira legítima. A rainha compreenderia que é um ato de

boa fé por sua parte.

—Tenho que falar com Andrés.

Alonso apertou os lábios, com uma careta de ira.

—Eu falarei com ele — concedeu, de forma marcial.

Ela piscou confusa, pensando em Andrew e no que diria se

estivesse presente.

—Não está aqui, foi a Londres.

Seu irmão inspirou várias vezes, ao mesmo tempo em que

entreabria seus olhos negros.

—Quando pensa em retornar?

—Ignoro-o, possivelmente dentro de dois ou três dias; uma semana,

no máximo.

—Não posso esperar tanto tempo!

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Rosa o olhou de frente e lhe sustentou o olhar, com crueldade.

—Alguns dias não supõem nenhuma mudança.

—Como pode dizer algo assim? Estamos em guerra, maldita seja!

Ela conteve um gemido e sopesou diferentes alternativas.

—Podemos arrumar estes assuntos mais adiante — disse, embora

sem estar completamente convencida.

—Quando tiver morrido? — perguntou seu irmão, à queima-roupa.

—Alonso! — exclamou, horrorizada.

—Sempre, desde que tenho memória, você pôs obstáculos em

minha vida. — O suspiro dela o enervou ainda mais — Merecia saber que

não tinha intenção de tomar os hábitos. Que tinha uma sobrinha e que

pensava em se casar com um completo desconhecido. Você foi uma

constante decepção. Um amontoado de desobediências que nos levaram até

aqui: um beco sem saída.

Rosa o olhou, fixamente, com uma dor surda no peito.

Ela foi criada na França e não vira morrer a seus amigos no campo

de batalha, lutando contra os franceses para defender suas terras, a seus

filhos. Acreditou-se em posse da verdade e, agora, quando quase tinha

perdido a sua filha por suas ideias políticas, deu-se conta de que nada

importava mais que a família, e que Alonso seguia sendo seu irmão...

—Sei, e não sabe o quanto lamento.

—Então, me ajude a tomar as medidas que assegurem o futuro de

minha única sobrinha. A que não percamos tudo o que obtiveram nossos

pais...

—Não está sendo justo.

—Deve isso ao nosso pai! — exclamou ele, com um tom de voz

que lhe colocou o cabelo de pé.

Rosa pensou que Alonso sabia como dar estocadas certeiras.

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—Não posso agir às costas de Andrés, é o pai de Branca e, agora,

não está em Whitam para dar sua autorização.

—Um pai ausente até faz bem pouco, não é certo?

O rubor cobriu as bochechas de Rosa por completo.

—Esse foi um comentário malevolente. Ele desconhecia sua

paternidade.

Alonso atacou com mais firmeza.

—Malevolente ou não, é certo. Rosa, desejo apagar a palavra

«traidor» de nosso sobrenome e, com sua atitude, me faz sentir que lhe

importa bem pouco que o obtenha.

Ela sentia que lhe faltava o ar. Cada palavra que pronunciava seu

irmão lhe cravava no coração como uma mordida de serpente. Ignorava

como enfrentar esse fato indisputável: tinha atirado no lodo o ilustre nome

de sua família. Gerações de Lara com uma honra irrepreensível.

—A traidora sou eu, você não deveria pagar por meus pecados.

Alonso sabia que encontrara uma greta onde penetrar mais

profundamente com seus argumentos. Rosa estava a ponto de capitular,

pressentia-o.

—A palavra «traidor» estará ligada a nosso sobrenome

eternamente, se eu morrer em batalha e não me permite que reconheça

Branca como minha herdeira.

Rosa pensava a toda velocidade.

—Para reconhecê-la, a menina não precisa viajar a Espanha por um

capricho da rainha.

Alonso apertou muito mais forte o laço que ia atando ao pescoço de

sua irmã.

—Foi reclamada pela regente. Sou um grande da Espanha, maldita

seja! Não posso nem ir urinar sem permissão da Coroa.

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Rosa desprezava esses pensamentos, porque a levavam para um

lugar ao que não queria ir: às consequências de suas ações.

Ansiava ainda mais que Alonso que a palavra «traidor» não

estivesse ligada para sempre ao sobrenome Lara, mas como seu irmão tinha

exposto de forma tão contundente, isso era precisamente o que ocorreria, se

ele morresse em batalha e sem descendência.

Então, ela, como única representante viva da dinastia Lara, teria de

suportar o desprezo e a vergonha que a acompanhariam sempre, não

somente a ela, mas também a todos os seus descendentes.

Não podia fazer isso a seu irmão! Mas tampouco podia agir às

costas de Andrew.

Alonso se precaveu de sua vacilação.

—Juro que a protegerei com minha vida! — exclamou, de forma

veemente.

Rosa se retorcia as mãos, angustiada.

—Não posso, Alonso! Seriamente que não. Andrés não merece algo

assim. Não posso agir às suas costas sem conhecer sua opinião a respeito.

Os olhos dele se cravaram nos de Rosa, sem piedade.

—É sua última palavra? — perguntou, magoado. Ferido no mais

profundo de seus sentimentos fraternais.

Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, enquanto o silêncio

voltava a instalar-se entre ambos. Depois de um momento longo e pesado,

Alonso se levantou, enfim, da poltrona e pôs-se a andar para a porta sem

pronunciar uma só palavra.

Rosa o observou com os olhos cheios de lágrimas. Não se despediu

dela, sequer uma despedida amarga, mas, antes que ele abrisse a porta,

deteve-o com suas palavras.

—Espere...!

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Alonso não voltou.

Ficou quieto com os ombros tensos, as costas erguidas e a mão no

trinco de bronze.

No aposento, ouvia-se o respirar agitado de Rosa, o frufrú do tecido

de seu vestido, ao levantar-se da cadeira e aproximar-se dele.

—Mandarei uma mensagem urgente a lorde Christopher Beresford.

É o irmão de meu marido. Falarei com ele e lhe contarei sua proposta.

Alonso fez um gesto afirmativo, e, quando se voltou de novo para

Rosa, esta já tinha alcançado o atirador para chamar o serviço.

CAPÍTULO 23

Andrew saltou da boleia da carruagem a toda velocidade, antes,

inclusive, de que tivessem freado os cavalos. Sentia-se ansioso por entrar

em casa e abraçar as duas mulheres de sua vida. Subiu os degraus de dois

em dois e tocou a aldrava da porta com energia inusitada. Ignorava por que

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Marcus demorava tanto em abrir e voltou a insistir com mais urgência

ainda.

Quando a grossa porta de entrada se abriu, ao fim, a calidez do

interior o recebeu como se lhe desse um abraço. Não se parou para dar as

luvas nem o chapéu ao mordomo, mas, sim, os lançou de forma precipitada

sobre a cadeira de veludo que estava próximo a uma parede do amplo

vestíbulo e se encaminhou com passo rápido para o grande salão; mas o

encontrou vazio. Voltou-se com os olhos entreabertos para Marcus, que o

seguia de perto.

—Onde está lady Beresford? — Mas não esperou uma resposta por

sua parte.

Foi de novo para o vestíbulo e começou a subir a escada em direção

aos quartos. Quando chegou à habitação de Branca, seu rosto mostrava um

sorriso de orelha a orelha.

—Onde está minha princesa?

Mas o aposento também estava vazio. Mantinha a porta aberta sem

soltar o pomo. Era inconcebível que ninguém saísse a recebê-lo. Estava

fora há quase uma semana, e os dias pareceram muito longos e tediosos.

—Andrés! — A exclamação de sua esposa, que acabava de chegar

ao patamar de acima, o fez sair do dormitório de Branca a toda pressa.

Rosa o ouvira chegar, quando se encontrava na sala de leitura, mas

não teve tempo de alcançá-lo. E rezou para que Christopher Beresford

chegasse logo à casa, como de costume, e, assim, poder ajudá-la na

explicação que tinha que dar a seu marido sobre a ausência de Branca.

Eram os termos que combinara com Christopher, mas não estava segura de

que este chegasse a tempo.

Andrew superou a distância que os separava e, ao chegar a seu lado,

abraçou-a e a beijou, com intensidade. Sentira muita saudade dela. Mordeu-

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lhe os lábios e afundou com a língua em sua cavidade aveludada; a boca de

Rosa lhe respondeu com o mesmo desejo.

Provou a pura ambrósia.

Ela se deixou abraçar, embora respondesse à efusiva saudação com

certo recato, porque estavam de pé no patamar de acima, à vista de

qualquer servente. Andrew interrompeu o beijo, mas não se separou dela.

Seguia abraçando-a com força.

—Senti muito a sua falta — sussurrou, com voz carinhosa.

O coração de Rosa galopava ditoso.

—Não sabia que chegaria hoje. Christopher disse que

possivelmente se atrasaria até manhã. — Seu tom parecia contido, mas

emocionado.

—Não suporto Londres. É muito buliçoso e enervante — disse ele,

enquanto seguia estreitando-a entre seus braços — Trouxe uns presentes a

Branca, mas ainda não a vi.

—Andrés. — Rosa tinha pronunciado seu nome quietamente, mas

não lhe emprestava atenção.

Segurou-a pela mão com carinho e pôs-se a andar com ela em

direção ao andar de abaixo, porque imaginou que Branca estaria no jardim

traseiro. Adorava brincar dentro do labirinto com o nervoso Atila como

companheiro.

—Vamos procurá-la juntos. Estou desejando abraçar minha

pequena. Não imagina quanto pensei nela. — Retificou suas palavras —

Quanto pensei nas duas.

—Andrés... — Rosa repetiu seu nome de maneira vacilante, e ele se

precaveu de que resistia a acompanhá-lo — Tenho que conversar com

você.

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—Eu também — respondeu — mas antes quero abraçar e beijar a

minha menina.

Rosa mordeu o lábio inferior, porque fizera algo censurável e não

sabia como dizer-lhe. Confiava em seu bom caráter e em sua forma

particular e pacífica de tomar as notícias desagradáveis. Puxou sua mão

para ela e o olhou com candura em seus olhos castanhos.

—Tenho que falar com você sobre Branca.

Andrew sentiu algo parecido à incerteza no peito e a olhou com

cautela.

—O que ocorre? Por que não vai me receber?

Rosa o conduziu de volta ao quarto de ambos, algumas portas além

do quarto de Branca. Ele se deixou guiar em silêncio, embora com o

coração em um punho. A estranha atitude era insólita, por não dizer

preocupante.

Rosa entrou no dormitório e fechou a porta atrás deles.

—Branca não está em Whitam Hall — disse, ao fim.

Andrew a olhou, entre surpreso e alarmado.

—Vai caminho da Espanha, acompanhada de meu irmão Alonso e

de lady Jane.

Ele acreditou que não tinha ouvido bem.

—Faz uns dias, recebi a visita de meu irmão —,continuou Rosa.

Andrew seguia em silêncio, sem poder articular palavra — E graças a

Deus, tudo ficou solucionado entre ambos. Sinto-me na verdade feliz.

—Repete o que disse — insistiu, com voz séria.

—Tenho que lhe explicar muitas coisas — prosseguiu ela, mas

Andrew a interrompeu:

—Repete o que disse.

Rosa mordeu o lábio, porque não sabia como lhe contar a verdade.

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—Branca foi reconhecida como herdeira legítima de meu irmão

Alonso.

Herdeira legítima? Do que estava falando?, perguntou-se ele.

—Está brincando comigo? Porque lhe informo que não tem graça

— disse, sem piscar.

Ela negou com a cabeça.

—A Coroa da Espanha reclama a presença de Branca para legalizar

a petição de meu irmão de nomeá-la sua herdeira. Há muitos aspectos

legais que resolver e têm de fazer-se em Madrid.

O silêncio de Andrew pendeu sobre sua cabeça como uma espada

afiada. O brilho de suas pupilas adquiriu um matiz perigoso e que não vira

nunca.

—Enviou a minha filha para fora da Inglaterra sem minha

permissão?

Sua voz parecia tão fria como o gelo, e seus olhos azuis se tornaram

escuros como uma tormenta de inverno.

—A rainha María Cristina de Borbón assim o exigiu.

O coração de Andrew saltou, dolorosamente, no peito. A revelação

de Rosa era como uma punhalada nas costas.

—Não lhe inspiro o suficiente respeito e confiança para tratar um

assunto tão delicado comigo? — Sua pergunta tinha um tom de tristeza que

a pegou de surpresa — Não considera que esteja à altura para decidir sobre

o futuro de nossa filha?

Rosa sabia que caminhava por areias movediças.

—Estava ausente e Alonso tinha de partir imediatamente — se

justificou.

Andrew fechou os olhos um instante, tentando tragar o veneno que

lhe tinha vertido diretamente na garganta.

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241

—Confiou a vida da minha filha a um homem que estava disposto a

enforcar você? Para ele, Branca significa pouco mais que nada! — Sua voz

exsudava uma incredulidade que se ia transformando em fúria desmedida.

Rosa saiu em defesa de seu irmão. Andrés levava o assunto muito

pior do que esperava, mas ela agira de boa fé. Estava em jogo uma herança.

—Alonso não fará nenhum dano a nossa filha, ao contrário. Deseja

assegurar o futuro de Branca como sua herdeira legítima, e, como grande

da Espanha, tem que fazê-lo como exige a Coroa.

Ele passou a mão pelo cabelo revolto. Parecia-lhe inconcebível que

Rosa agisse com tão pouco julgamento.

—E lhe importa mais um título que o bem-estar de nossa filha?

A pergunta era injusta, e, assim, o disse ela.

—Meu irmão pode morrer amanhã lutando contra os carlistas, e eu

fui declarada traidora à Coroa. Como posso permitir que desonre o nome de

minha família por minha causa? Minha obrigação é defender e manter o

título de meus antepassados. Se o perdesse, meu pai se revolveria em sua

tumba.

—Tem ideia do que fez? — Seu tom demonstrava muito mais

receio do que Rosa imaginava.

—O correto — respondeu, com um fio de voz, mas não tremeu.

—O correto!? — bramou Andrew, com as mãos na cintura.

Pôs-se a andar para ela, que se debatia entre continuar sua

explicação ou abraçar-se a ele para acalmar a dor que lhe via nos olhos. Seu

comportamento fora censurável, mas compreendia a angústia de seu irmão

e a importância de seus motivos, que o levaram a apresentar-se em

Whitam, deixando a um lado seu orgulho. Por isso, agira como o tinha

feito.

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242

Andrew chegou até onde ela estava e, agarrando-a pelos ombros,

sacudiu-a com força inusitada.

—É uma insensata! — exclamou, com voz furiosa — Uma

completa estúpida que só pensa nos malditos títulos.

Os dedos dele se cravaram na tenra carne de seus ombros e não a

soltou. Seguiu sacudindo-a com cólera ardente, entristecedora.

—Bem diz seu irmão que é uma traidora, além de uma

conspiradora. Joga com a vida de outros, sem se importar absolutamente o

que se perca no caminho.

—Andrés! — exclamou ela, suplicante. Machucava-lhe os ombros,

e suas palavras lhe causavam uma profunda dor no coração — Fiz o

correto!

—Maldita seja sua percepção do que é correto e o que não!

Soltou-a, de repente, como se não suportasse tocá-la.

Rosa esteve a ponto de cair ao chão pela força do impulso.

Contemplou-o caminhar com passos rápidos, e, então, sem prévio aviso,

dirigir-se para a escrivaninha que ela usava como penteadeira, agarrar um

vaso de porcelana e estelar o contra a parede com todas suas forças. O vaso

se fez em pedacinhos. Logo continuou lançando à parede todos os objetos

que encontrou, até deixar a penteadeira vazia.

—Andrés, Andrés! O que faz? — perguntou ela, correndo até ele,

para detê-lo, e interpondo-se de forma temerária na trajetória dos objetos

lançados.

Andrew a olhou, furioso.

—Desafogar a ira que me consome.

Ela se abraçou ao corpo firme dele, mas Andrew estava muito

afetado para permiti-lo.

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243

Ambos gritavam de uma vez, Andrew pedindo que o soltasse, Rosa

desculpando-se por não obedecê-lo.

—Que diabos ocorre aqui!?

Christopher entrou, de repente, no quarto. A porta golpeou a parede

com brutalidade, ao abrir-se, e deixou um rastro profundo na grossa

tapeçaria. Quando se precaveu do desastre do dormitório, inspirou com

força uma baforada de ar. O chão estava cheio de cristais, de louça

destroçada e de porcelana. Ignorava qual dos dois tinha começado a batalha

campal.

Mas, indubitavelmente, ambos haviam se tornado loucos.

Olhou para seu irmão e a sua cunhada sem compreender nada. Rosa

estava abraçada ao pescoço de Andrew, e este tentava lhe soltar as mãos,

sem conseguir.

Uma lembrança como uma chama lhe trouxe uma imagem parecida

dele e Ágata em uma habitação em Paris, anos atrás.

—Solte-me! — pediu Andrew, com voz áspera, alheio à derrota

emocional dela.

—Não, não o soltarei até que me escute! — insistiu Rosa, com voz

angustiada.

—Se em algo aprecia seu bem-estar físico, me solte, porque não

respondo de meus atos. Não agora que me sinto traído por você.

Ela não se soltou do pescoço dele, nem se afastou.

—Não posso permitir que parta tão furioso.

Andrew voltou a resmungar de forma visível.

Christopher seguia na soleira, sem decidir-se a entrar nem a deixá-

los sozinhos. Embora supusesse que a pior parte do estalo violento tinha

passado.

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—Sinto-me incapaz de escutar você. Antes tenho que assimilar suas

censuráveis ações. Sinto-me ultrajado!

Ao escutá-lo, Rosa o soltou, ao fim, e se afastou um passo dele, mas

Andrew não abandonou o quarto, como ela acreditava.

Algo em seu olhar a insistiu a afastar-se tal e como ele queria.

Andrew seguia respirando de forma agitada depois do estalo, e Rosa

decidiu bater em retirada, porque entendia que necessitava de tempo para

acalmar-se e que não o faria, estando ela presente.

—Quando desejar continuar esta conversa , em encontrará na sala

de costura. Esperarei você lá.

Encaminhou-se para a porta com a alma encolhida. O despeito de

Andrew, era muito evidente para a tranquilidade de seu espírito. Ao passar

junto a Christopher, olhou-o com os olhos alagados em lágrimas, mas seu

cunhado se manteve em silêncio.

Ambos os homens ficaram sozinhos na quarto.

Christopher ouviu a respiração agitada de seu irmão, que havia se

virado para o balcão para ficar de costas para ele. Durante vários minutos,

nenhum dos dois se moveu, nem fizeram nada para aproximar-se.

Quando uma das donzelas subiu para recolher a louça destroçada, a

pedido de Rosa, Christopher lhe fez um gesto negativo com a cabeça para

que os deixasse sozinhos. A criada fechou a porta sem dizer nada.

De repente, Andrew rompeu o incômodo silêncio.

—Por que, Christopher? Por que permitiu que a levasse?

Andrew seguia de costas a ele, que deu vários passos até aproximar-

se de seu irmão.

—Era o correto, Andrew.

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245

A resposta de seu irmão mais velho o fez voltar-se, rapidamente,

para ele, aflito pela traição. Olhava-o, sem acreditar suas palavras, que o

encheram de veneno.

—Eu não permitiria que se levassem o pequeno Chris jamais! —

respondeu, enervado, até um ponto que, para Christopher, resultou

alarmante.

E se deu conta de que Andrew estava na verdade decepcionado. Seu

caráter aprazível, agora, estava dominado pela cólera, e seus olhos, que

sempre riam com júbilo, mostravam nesse momento uma profunda dor.

—Deixei-as a seu cuidado, confiava em você... —recriminou-o.

Mas não pôde terminar a frase. Sentia na garganta uma opressão que o

impedia de respirar com normalidade.

—Alonso de Lara falou comigo, antes de partir com a pequena.

As pupilas de Andrew brilharam com um fogo que anunciavam o

caos absoluto. Christopher soube, que nesse estado, seu irmão poderia fazer

algo, e tentou apaziguá-lo.

—Não permitirá que lhe ocorra nada à menina. Além disso,

removeu céu e terra para reconhecê-la legalmente como sua herdeira.

—Só é um maldito título! — exclamou, com veemência — E minha

filha vai se encontrar em meio de uma guerra entre. Diga, como poderá

protegê-la em meio da barbárie, se ele mesmo estará dirigindo uma parte do

exército?

Christopher suspirou, resignado, porque seu irmão mostrava um

aspecto que, a ele, tinha escapado. Quando sua cunhada e o duque de

Fortaleza lhe explicaram as razões para legalizar à pequena como herdeira

do ducado, pensou que era o melhor para a continuidade da casa de Lara.

O duque mostrara todos e cada um dos documentos preparados e

registrados, contou-lhe os passos que havia dado para resolver as possíveis

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246

dificuldades, e as razões da Coroa, ao exigir a presença da menina para

ultimar os detalhes sobre sua herança.

Ele, melhor que ninguém, compreendia a importância que tinham

os títulos e a responsabilidade, assim como a necessidade de fazer todo o

possível para conservá-los.

—Andrew, seu cunhado é um homem sensato, e estou convencido

de que protegerá a pequena Branca com todas suas forças. Além disso, na

corte de Madrid, estará muito mais a salvo do que possamos imaginar. A

insurreição tem lugar no norte.

—Está completamente equivocado. A sublevação chegará a Madrid

muito antes do que imagina — replicou, mal-humorado — Você agiu que

forma censurável pondo em perigo a vida de minha filha, e isso é algo que

não penso em esquecer nem perdoar.

Christopher tomou sua recriminação com estoicismo, mas não

reteve a réplica feroz que foi a seus lábios.

—Sei julgar os homens, e seu cunhado removeu céu e terra para

reconhecer à pequena como sua única e legítima herdeira. Deveria meditá-

lo, e, depois, se ainda se ache com posse da única verdade, julgue Rosa e

seu esforço para não permitir que a herança de seu pai se malogre e se

perca por insignificâncias.

Andrew o olhou, com as pupilas brilhantes e os lábios apertados

com desgosto.

—Nunca me importaram os títulos, sabe. E as ações do duque de

Fortaleza têm um único propósito: castigá-la. E você, meu irmão mais

velho, o protetor da família, a serviu em bandeja de prata.

Christopher pensou que estava muito equivocado, mas tão magoado

como o via, era virtualmente impossível fazê-lo raciocinar.

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247

Andrew passou muito perto dele ao partir do quarto, mas

Christopher o segurou pelo braço, detendo-o.

—O que pensa em fazer? — A pergunta soou preocupada.

Nesses momentos, seu irmão era como um paiol de pólvora a ponto

de estalar.

Andrew se soltou de sua mão e o olhou com uma decepção tão

profunda nos olhos, que o estômago de Christopher se apertou.

—Trazer de volta a minha pequena.

Seu irmão o seguiu pelos corredores de Whitam, lhe pedindo

explicações dessas últimas palavras.

CAPÍTULO 24

Rosa se sentia as mãos ardentes de tanto esfregá-las entre si.

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Levava horas esperando Andrés, mas a desculpa e a explicação que

tinha preparadas para ele não iam servir de nada se não lhe permitia

oferecê-las. Durante horas, debateu-se entre fazer o correto ou esperar sua

chegada, mas a pressa de seu irmão Alonso requeria medidas urgentes, e

falar com o Christopher em um primeiro momento e lhe expor as dúvidas

que a angustiavam, além das preocupações, tinha-lhe esclarecido muitos

detalhes. Seu cunhado se mostrou a favor do reconhecimento da pequena

como herdeira de Alonso, mas, agora, ao comprovar a enorme decepção

que ocasionara ao homem que mais amava no mundo, Rosa se sentia

desfalecer. Mas não podia mudar os fatos.

Levava tantos anos equivocando-se em suas decisões, que se

perguntou se, alguma vez, aprenderia a meditar, antes de deixar-se levar

por seus impulsos. Suspirou várias vezes. Se pudesse retroceder seis anos,

tomaria um rumo muito diferente ao que tomou então, mas, agora, só podia

encarar as dificuldades conforme vinham e enfrentar os resultados com

coragem.

Alguém moveu o trinco, e ela se preparou para ver Andrew, ao fim.

Entretanto, a pessoa que cruzou a soleira não era o homem ao que queria

com todas suas forças.

—Rosa... —, A potente voz de Christopher varreu suas ilusões, que

ficaram pulverizadas pelo chão, ao tempo em que ela se sumia no

desespero.

—Onde está Andrés? — Sua voz soou com uma angústia evidente.

—Ultimando os detalhes para sua marcha.

—Parte? Aonde...?

—Pensa trazer de volta Branca.

O coração de Rosa se deteve, um instante. A cor tinha desaparecido

de suas bochechas, que se tornaram brancas como a cera.

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249

—Então, partirei com ele.

Seu cunhado deteve seu avanço para a porta. Os olhos dela se

cravaram nos dele com surpresa.

—Se retornar à Espanha, será detida — disse.

Essa era uma verdade esmagadora, mas Rosa estava muito longe de

sentir preocupação por si mesma.

—E o que me importa isso!

A mão de Christopher seguia segurando-a pelo cotovelo. Ela tentou

soltar-se, mas não conseguiu.

—Andrew não atende a razões, mas confio em que você, sim, o

faça.

—Não devia permitir que meu irmão levasse Branca. Acreditava

que fazia o correto, mas Andrés me demonstrou quão equivocada estava.

Nenhum título nem riqueza vale a dor que lhe causei. Sinto-me

profundamente arrependida.

Rosa se debatia, tentando soltar-se do aperto de Christopher.

—Se partir, todo o esforço de meu pai será sido em vão, e não

posso permitir isso — alegou, convencido — Além disso, não falamos de

uma simples herança, mas, sim, de um nome e um legado.

Rosa mordeu o lábio inferior, muito alterada.

Quando permitiu a partida de sua pequena, seu coração se partiu em

dois, apesar de saber que a separação seria breve, mas a reação de Andrew

mudava, absolutamente, tudo. Supôs que ele ia incomodar se, embora

pensasse que a compreenderia, mas fora muito curta em sua valoração.

Andrew estava irreconhecível.

—Devo evitar um enfrentamento entre meu irmão e meu marido —

respondeu, concisa — devo me colocar entre os dois.

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E isso a sobressaltava. Não importava o que fizesse, um dos dois

homens de sua vida ia estar em desacordo e ficar decepcionado.

Christopher pensava justamente o contrário. Ambos os homens

podiam resolver suas diferenças, se não tivessem que preocupar-se da

segurança dela, mas não sabia como fazê-la entender. Rosa seria mais um

estorvo que uma ajuda.

—Andrew não quererá levar você com ele. Não estando tão

zangado que está com você.

Tinha omitido a parte que incluía a ele no aborrecimento de seu

irmão. Rosa o olhou, confundida.

—O longo trajeto temperará seu ânimo, acalmará sua fúria, mas

sempre e quando não o perseguir com sua presença, lhe recordando

precisamente o motivo pelo que tem que fazer a viagem.

Suas palavras a ofenderam.

—Andrés não conhece os rigores da corte espanhola. Não pode

apresentar-se ante a rainha e, voilà!, tudo solucionado. Ali as coisas não

funcionam assim — tentou lhe explicar.

—Esse foi nosso maior engano: pensar por ele — admitiu

Christopher — Que Andrew salte a maior parte das regras sociais não quer

dizer que as desconheça ou que não as possa cumprir.

Mas Rosa não o escutava. Estava surda a tudo o que não fosse a

enorme necessidade de consertar o erro cometido.

—Vou com ele.

Christopher a soltou, ao fim.

Ela secou a palma das mãos no vestido de forma inconsciente.

Suava de medo e temor, por não saber como represar o desastre que

propiciara com sua impulsividade.

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251

—Acredito sinceramente que se equivoca — disse seu cunhado,

com voz muito séria.

—Não, não se equivoca. — A voz de Ágata chegou a ambos em um

tom muito baixo.

Esta deixou aberta a porta do salão de costura, ao entrar e se

aproximou dos dois.

—Não se intrometa — aconselhou Christopher a sua mulher, que

caminhava decidida para Rosa.

Se Ágata intervisse, os problemas aumentariam.

—Prometo não me intrometer tanto como você — replicou ela,

embora sem deixar de olhar para Christopher, com olhos cheios de afeto.

Rosa ficou apanhada entre o casal, que, com sua presença, a

impediam de uma saída digna para o vestíbulo. Para fazê-lo, teria que fazer

um giro brusco e dar as costas a ambos.

Ágata desviou o olhar de seu marido para fixá-lo nela.

—Procure Andrew e fale com ele. Escute o que sente seu coração e,

depois, aja. Agora, mais que nunca, necessita do apoio de todos.

E, dizendo isto, se moveu para o lado, para permitir sua saída. Rosa

lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça, antes de abandonar o aposento, a

toda velocidade.

Christopher entreabriu os olhos, ao mesmo tempo em que olhava

para sua mulher, que sorria de forma ardilosa, como se soubesse algo que a

ele escapava.

—Acaba de enredar a meada ainda mais, ao animá-la a encetar-se

de novo em uma briga com Andrew.

Ela pôs as mãos na cintura e levantou o queixo, com insolência.

Certamente, cabia essa possibilidade, mas confiava no caráter aprazível de

seu cunhado para resolver a situação.

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252

—E isso o diz um homem que nunca retificou sua postura.

O golpe de Ágata resultou certeiro, porque Christopher cometera

muitos enganos no passado, ações equivocadas que lhe recordava, agora,

tão amavelmente.

—Agi de boa fé — disse — Escutei as razões de Alonso de Lara e

entendi a preocupação que sentia sobre o futuro de seu ducado. Além disso,

é o tio da pequena.

Mas esse não era o problema, pensou Ágata.

—Conhecendo Andrew como o conhece, devia ser manter à

margem e agir em seu benefício. Branca jamais sairia de Whitam sem sua

autorização, sabe. É tão responsável por isto como Rosa.

Ele pensou que sua esposa tinha parte de razão, mas a herança e as

raízes pesavam muito no ânimo para ter em conta outros detalhes mais

insignificantes. Mostrou-se igual de interessado que sua cunhada. Havia um

ducado que salvar!

Ágata continuou em seu ataque com voz serena, enquanto

acariciava a bochecha de seu marido.

—Todos passam por cima os desejos de Andrew, se amparando no

pouco que lhe importam os convencionalismos, mas posso assegurar sem

temor a me equivocar, que, nesta ocasião, não ter em conta seus

sentimentos foi daninho e perverso. Um ato censurável que não esquecerá

em muito tempo.

Rosa não chegou a bater na porta do quarto. Entrou decidida, mas

Andrew não estava lá. A donzela recolhera a louça destroçada no chão e

arrumou a penteadeira. Voltou-se, com ímpeto, e retornou sobre seus

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passos de novo para o corredor, ao que davam as diferentes habitações e

salas da planta superior.

Tinha uma intuição e se deixou guiar por ela.

Devia encontrar Andrew, tinha de falar com ele e lhe pedir perdão.

Agira como uma insensata, movida pelos remorsos que sentia por trair o

nome da família em prol de uns ideais que, agora, lhe pareciam

secundários.

E, agora, sua família era Andrew!

E não haver demonstrado isso lhe produzia uma sensação de sufoco

extremo.

Com passos enérgicos, chegou até a porta do quarto da pequena

Branca. A grossa folha de madeira não estava fechada, a não ser

entreaberta, e, com mão tremente, a empurrou, brandamente, antes de

entrar na silenciosa habitação.

A tarde começava a definhar, e os últimos raios de sol se foram

apagando pouco a pouco entre as cortinas brancas. Rosa não tinha

almoçado e supunha que Andrew tampouco teria comido, depois do

enfrentamento de ambos no meio da amanhã.

Ele estava sentado no fofo colchão e sustentava um objeto negro

entre os dedos.

—Não levou sua capa.

Acariciava o negro tecido com reverência.

Sobre o leito, havia uma bolsa de viagem aberta. Rosa pôde dar

uma breve olhada a seu interior e viu que estava virtualmente cheia de

roupa. Ajoelhou-se aos pés dele e lhe segurar as mãos entre as suas.

—Perdoe-me, Andrés — se desculpou, com um fio de voz —

Lamento muitíssimo ferir você com minhas ações.

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Mas seu marido não a olhava. Seguia tocando a grossa malha de

forma mecânica e com expressão ausente.

—Não tive em conta sua opinião, e tem todo o direito de estar

zangado comigo, mas juro que não voltará a acontecer.

Seu silêncio a preocupava muitíssimo. Andrew tinha o olhar

perdido e uma careta indecifrável nos lábios.

—Prepararei minha bagagem — disse Rosa, de repente.

Levantou-se do chão, mas a mão de seu marido reteve a sua com

firmeza.

—Aonde vai? — perguntou, com voz rouca.

Rosa o olhou, perplexa. Aonde poderia ir a não ser com ele?

—Acompanho você...

Sua reação a pegou, completamente, de surpresa. Andrew se

levantou, com solenidade, dobrou a capa de viagem de Branca e a colocou

dentro da bolsa antes de fechá-la.

—Não necessito de sua companhia para trazer de retorno a minha

pequena — espetou.

Ela inspirou, profundamente, pelo tom que ele tinha utilizado:

áspero e provocador.

—Sou consciente de que não necessita da minha companhia para

trazê-la, mas, mesmo assim, desejo ir com você.

Ele, agora sim, a olhou com as pálpebras entreabertas.

—Deseja somar outra preocupação às que já tenho?

Rosa deu um passo para trás, para olhá-lo melhor. Seu marido era

um homem muito alto e corpulento.

—Sei como se sente, e, por isso, quero emendar meu grave engano.

Andrew passou os dedos pelo cabelo, para tentar acalmar-se.

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Durante horas, meditara muito nos motivos de uns e outros para pô-

lo na situação em que se encontrava. E isso o levou a tomar uma decisão

irrevogável.

—Sinto-me ofendido — reconheceu, com voz cansada.

Rosa se abraçou a si mesma, como se, de repente, a tivesse açoitado

um ar gélido do norte.

—A mulher que amava mais que a minha vida jogou-me de seu

lado, como se fosse um estorvo em seu mundo de etiquetas e regras sociais,

salvo que eu não tinha modo de saber, porque acreditei que era uma moça

singela e não a elevada filha de um duque. Se me houvesse dito quem era

realmente, teria agido em conformidade. — Rosa ia protestar, mas a mão

elevada dele silenciou sua resposta — Meu pai tomou a decisão de me

casar sem meu conhecimento, porque acreditou que era o melhor para

liberar você da forca. E tinha razão, mas se esqueceu de me perguntar o que

opinava e sentia a respeito, ignorava quem foi para mim e o que significava

em minha vida. — Um silêncio pesado, amargo, instalou-se entre ambos

durante uns momentos — Meu irmão mais velho, o homem que mais

admiro depois de meu pai, ocultou-me que a formosa menina que tinha sob

minha responsabilidade em Whitam era minha própria filha e, agora,

conspira com você para me tirar isso. Diga-me, Rosa, como deveria me

sentir?

Ela não podia responder, porque se sentia mortificada.

Andrew tinha exposto todas e cada uma das censuráveis ações que

todos cometeram contra ele e as enumerou sem despeito, rancor ou cólera.

Mas suas palavras continham uma decepção tão profunda que lhe abateu o

ânimo e a deixou com uma sensação de derrota muito mais intensa que a

que refletia o semblante masculino.

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Viu-o vestir a casaca e abotoá-la com gestos lentos. O coração de

Rosa se encolheu, de forma dolorosa.

—Andrés, por favor... — Mal podia articular as palavras. Tinha os

lábios insensíveis de tanto apertá-los pelo remorso que sentia — Pensa em

partir sem me dizer nada mais?

Não lhe respondeu. Limitou-se a olhá-la de ma maneira penetrante,

como se quisesse ver no interior dela a outra pessoa. Depois de seu severo

escrutínio, soltou um suspiro e saiu pela porta, mas, antes de fechá-la,

voltou-se um pouco para ela.

—Pergunte a Christopher. Ele informará você sobre os detalhes de

minha marcha...

—Andrés, não! Diga-me isso você! — exclamou, realmente

preocupada e com um tom compungido que não o comoveu nem um pouco.

Negou com a cabeça várias vezes.

—Está proibida de sair da Inglaterra — lhe recordou — E, embora

eu gostaria de lhe pagar com a mesma moeda, não sou como você. Porque

eu, sim, valorei você sempre como merece, ou como acreditava que

merecia, que não é o mesmo, não é?

Rosa conteve um gemido, ao sentir-se golpeada por suas duras

palavras.

—Fale com o Christopher, ele a informará de tudo.

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CAPÍTULO 25

Palácio dos Silêncios, Parque dos Príncipes, Sevilha.

Andrew seguia esperando em um dos bancos de pedra situado em

um lateral do formoso jardim arborizado. A residência dos Lara estava

localizada em um lugar emblemático e muito formoso da cidade de

Guadalquivir. Fazia várias gerações, pertencia a essa família. O palácio,

chamado dos Silêncios pelo claustro que tinha encostado na parte esquerda,

era um dos mais antigos e belos que ele já vira. O edifício se compunha de

uma planta quadrada e cada um dos quatro lados recebia o nome de panda.

No centro, estava o jardim, e, em uma das fontes, havia encostados vários

bancos para a leitura e a meditação. Andrew estava, agora, sentado em um

deles, o mais próximo ao poço de água. No espaço restante, o lugar se

dividia em quatro caminhos que levavam a um roseiral, uma horta de

árvores frutíferas, ao claustro e a outro jardim que continha uma piscina,

provavelmente destinada ao banho, nos dias mais quentes.

Levantou os olhos para a galeria superior com um corredor coberto

limitado por uma arcada. Cravou seus olhos num local onde havia um

pequeno aposento que podia servir de escritório ou biblioteca independente

da biblioteca principal que possuíam a maioria dos palácios e castelos. A

seguir, se achava o grande salão, peça imprescindível e que geralmente se

construía com variada e rica ornamentação arquitetônica.

Andrew continuou movendo o pé, ritmicamente, enquanto que, com

os olhos, seguia os desenhos geométrico dos ladrilhos do jardim,

intercalados com pedras de mármore listrado de cinza. Mas, incapaz de

permanecer sentado, aguardando, dedicou-se a observar as paredes do

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jardim, cuja delicada decoração geométrica, indubitavelmente, estava

inspirada em imagens da natureza e da pesca. Encaminhou-se para o

seguinte jardim, que continha a piscina, e, uma vez lá, olhou a quietude da

água, que parecia um espelho onde se refletia a serenidade do céu azul e o

verde relaxante do mirto.

Como podia um lugar transmitir tanta paz e quietude?, perguntou-

se. Concluiu que o nome do palácio era muito apropriado, porque, entre

seus muros, se respirava calma e contenção.

Contemplou a água, durante um momento, ao tempo em que

aspirava ao aroma penetrante dos jasmins e a lavanda. A profusão de

aromas e cores daquele lugar era assustadora.

Ficou ali quieto, até que, ao fim, ouviu abrir-se a grossa porta do

claustro e os passos firmes que se dirigiam para onde ele estava. Supôs que

seria o mordomo, mas sua surpresa foi grande quando foi o próprio Alonso

se apresentou ante ele.

Andrew cravou seus olhos em seu cunhado que, com traje militar,

caminhava diretamente para ele. Não mudara muito, apesar dos anos que se

transcorreram, desde que o viu pela primeira vez na casa do tio de sua irmã

Aurora.

Sem lugar a dúvidas, Alonso o teria visto da casa.

—Siga-me. — A ordem imperativa o fez estalar a língua com certa

brincadeira, porque o duque omitiu o gesto mais elementar de todos: a

saudação.

Andrew fez o que pedia seu cunhado e caminhou atrás dele, mas

para o palácio e não para o claustro, como acreditava. Alonso lhe sustentou

a porta, para que entrasse, e logo a fechou. Conduziu-o por vários

corredores e pátios, até a biblioteca principal e, uma vez ali, convidou-o a

sentar-se em frente à escrivaninha de madeira de castanheiro.

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Andrew decidiu manter-se de pé para não perder a vantagem que

sua elevada estatura lhe conferia.

—Na Inglaterra — começou para romper o gelo — damos as boas-

vindas às visitas, embora nos resultem desagradáveis.

A recriminação não afetou Alonso, que, ignorando a posição de pé

de seu inesperado convidado, tomou assento atrás da mesa. Logo, cruzou

uma perna sobre outra com inusitada elegância, como era próprio em

homens de sua fila.

—Não estou acostumado a saudar meus inimigos — respondeu,

com sinceridade.

A resposta pegou de surpresa Andrew, que o olhou tão

sobressaltado como incrédulo. Havia dito inimigo?, perguntou-se.

—Sou seu cunhado, não um adversário — respondeu ele, cortante

— Confio em que saiba distinguir a diferença, ou se não, lhe posso mostrar

isso com gosto.

Alonso tinha de levantar a cabeça para olhá-lo, mas isso não o

impediu de mostrar seu desdém e o poder que ostentava em seu próprio lar.

Se o malandro queria permanecer de pé, ele não ia impedi-lo.

Andrew tirou as luvas e o chapéu e os deixou sobre a escrivaninha.

—A que devo a honra de sua visita? — inquiriu Alonso, com voz

áspera.

Ele pensou que a pergunta era tão estúpida como a atitude do

homem que a formulava, mas decidiu mostrar respeito ao único tio materno

de sua filha, embora não o merecesse.

Se algo podia fazer em honra de seu pai, era mostrar-se educado e

correto.

Começou a passear pelo amplo aposento, admirando os retratos das

paredes. Um deles lhe chamou poderosamente a atenção, porque

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representava uma menina que ria feliz, enquanto abraçava um cachorrinho.

Indubitavelmente, o retrato era de Rosa, mas não fora pintado na Espanha,

a não ser no estrangeiro. Deduziu-o pela distribuição do jardim e a casa que

se podia ver no fundo, embora não pudesse assegurá-lo de todo.

A luz do quadro era na verdade magnífica.

—Devo esperar todo o dia para obter uma resposta tão singela? —

voltou a insistir Alonso, com voz um pouco mais inquieta, mas com o olhar

tão frio que parecia de gelo.

Sentia que a atitude passiva e aprazível do inglês o atordoava.

Quando o mordomo lhe mostrou o cartão de visita, havia sentido a

imperiosa necessidade de queimá-lo, mas ele não era homem que desse as

costas aos problemas. Alguma vez, tinha de enfrentar o marido de sua irmã,

e fazê-lo em seu território lhe parecia do mais apropriado.

Andrew o olhou, de frente, sem hesitação, mas sem que sua atitude

denotasse predisposição à belicosidade, justamente o contrário: seu rosto

mostrava absoluta determinação a fixar uma trégua. Deteve-se em frente a

Alonso, ambos separados pela larga mesa.

—Algo óbvio: desejo ver minha filha.

Os dois homens se olharam, com os olhos entreabertos, medindo-se

com insolência.

—Percorreu um caminho muito longo simplesmente para uma

visita.

Andrew soube que Alonso jogava com ele, mas levava certa

vantagem que estaria satisfeito de lhe mostrar ao seu devido tempo.

—Também temos que concretizar alguns aspectos legais sobre a

herança de Branca e seu futuro. Depois, minha filha retornará a casa.

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261

Alonso soltou, de repente, o ar que estava contendo, e Andrew se

felicitou, porque isso queria dizer que o duque não estava tão seguro como

presumia com sua atitude régia, excessivamente marcial.

—Minha sobrinha deveria criar-se na Espanha. Conhecer suas

raízes e amar o legado de sua herança. Viver na Inglaterra a privará de tudo

isso.

Andrew meditou suas palavras e, contra todo prognóstico, esboçou

um sorriso cheio de empatia. Estava completamente de acordo com sua

última frase. A Inglaterra era muito diferente da Espanha.

—Apesar de tudo, cunhado... — Andrew remarcou a palavra, pondo

em relevo o parentesco entre ambos de uma forma que chiou nos ouvidos

de Alonso — Branca se criará junto a seu pai. E surpresa!, Seu pai é inglês,

e, além disso, vive na Inglaterra. Embora, para sua tranquilidade presente e

futura, direi que sempre será bem-vindo em Whitam, quando desejar fazer

uma visita a sua sobrinha... Ou a sua irmã.

A última palavra a disse com um toque de sarcasmo que, para

Alonso, não passou despercebida. O inglês tinha mostrado suas cartas sem

nenhum blefe, mas ele sabia como deixar uma boa partida, quando estava

perdendo. E, com respeito a sua sobrinha, tinha perdido a vantagem.

—Está-me provocando? — Tinha apertado as mandíbulas, até o

ponto de fazer chiar os dentes — Porque a paciência não é uma de minhas

virtudes.

Andrew se surpreendia com o caráter extremo do irmão de Rosa.

Via-o rígido em sua cadeira, sem perder a compostura, salvo algum

movimento na comissura da boca de tanto contraí-la, aborrecido, mas sabia

que era, simplesmente, aparência. Alonso de Lara fora criado de forma

ainda mais severa que seu irmão Christopher, por isso, compreendia a

imensa solidão de sua alma e se compadeceu dele, embora cuidasse de não

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262

demonstrar. Intuía que o homem agressivo que tinha diante não agradeceria

que lhe tivesse lástima.

—Tenho outros assuntos para tratar com você e, embora lhe pareça

estranho, provocá-lo não é um deles — admitiu Andrew, de forma

conciliadora.

Alonso se sentia desconcertado.

Estava acostumado a tratar com homens muito mais duros e

matreiros, mas a atitude repousada e plácida do inglês o surpreendia.

Outros, por muito menos, haveriam desembainhado a espada e tentado

cravar-lhe no coração. Inspirou, profundamente, e se manteve em silêncio,

avaliando o homem que tinha frente de si. Sua forma descuidada de apoiar

a palma das mãos na mesa e a forma de inclinar-se lhe pareceram

provocadoras. Vestia traje militar inglês e se perguntou o motivo para

semelhante excentricidade; a Inglaterra não estava em guerra com nenhuma

de suas colônias.

—Aceito que designe a Branca como sua herdeira, mas não aprovo

o compromisso que consertou para ela. Esse é um assunto que me compete

exclusivamente. — Christopher lhe dera todos os documentos facilitados

pelo duque de Fortaleza em sua visita a Whitam. E Andrew os estudou

muito bem durante o longo trajeto para a Espanha.

Alonso apoiou as costas no alto respaldo da cadeira, ao tempo em

que cruzava as mãos sobre a mesa com atitude cautelosa. Agora, tinha de

superar o problema mais importante da operação que levara a cabo.

—Se algo me acontecesse — começou — Branca seria duquesa de

Lara e não poderia optar por um matrimônio de inferior fila.

Andrew decidiu sentar-se, porque a conversa se estava pondo mais

interessante por momentos. Afastou as luvas de pele e o chapéu a um lado,

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263

ao tempo em que se ajustava a espada ao quadril, para tomar assento com

maior comodidade.

—Na Inglaterra, também temos ducados que se mostrarão

interessados em consertar um matrimônio com minha filha. Mas isso é algo

que não penso considerar de momento. Possivelmente, quando Branca

cumpra os... Trinta anos?

Alonso soube que estava brincando com ele e ficou furioso. Havia

dito trinta anos? Isso era uma estupidez. Os matrimônios se consertavam na

infância.

—Acreditava que estávamos falando a sério — disse, com voz

cortante.

—Disse-lhe isso para que tenha claro que, nesse aspecto, não penso

capitular. Que minha filha se case está descartado por muito tempo.

—Isso é inviável — alegou Alonso, com os olhos entreabertos.

—É uma atitude aceitável nas atuais circunstâncias, e me estou

mostrando extremamente razoável neste assunto — espetou Andrew, com

um tom de voz parecido ao que utilizavam os meninos quando reprovavam

outro por fazer uma armadilha.

—Se minha sobrinha se casar com um inglês, não poderá ocupar-se

de sua herança na Espanha. O ducado ficaria relegado, e isso é algo que

não posso nem devo permitir.

Andrew pensou que nisso tinha que dar parte de razão a seu

cunhado. Se Branca contraísse matrimônio com um duque inglês, o ducado

de Fortaleza ficaria sempre em segundo lugar, algo inconcebível para um

homem do caráter e a inteligência do duque de Fortaleza.

—Pensou, por um momento, que sua sobrinha pode desejar casar-se

simplesmente por amor e sem um título no meio?

Alonso abriu a boca, estupefato.

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—Branca é uma herdeira e como tal tem uma obrigação a cumprir.

Andrew deu um passo em falso, mas tentou retificar. Levar o

espanhol por esse caminho significava lhe explicar que, embora Rosa fosse

à filha de um duque e ele o filho caçula de um marquês sem opção a

nenhum título, amavam-se com loucura. Com o matrimônio de ambos,

deram a Alonso motivos para temer pela futura união de Branca.

Fora a Sevilha para ganhar a confiança de seu cunhado. Para lhe

demonstrar que era um homem digno de confiança e que pretendia o

mesmo que ele: a felicidade de Rosa e de Branca, mas não estava

conseguindo. Alonso se mostrava muito suscetível e tão estrito com as

normas que recordou seu irmão mais velho. Falar de amor sem títulos no

meio era algo inconcebível para um nobre tão elevado como o duque de

Fortaleza.

Durante a viagem, sopesou todas as alternativas que tinha em seu

primeiro encontro com ele: desafiá-lo em duelo, lhe dar uma surra ou tentar

chegar a um acordo satisfatório para ambos e, ao mesmo tempo, ganhar seu

respeito pelo bem de Rosa e de Branca. Levou dias para controlar a fúria

que o embargava e chegar à conclusão de que queria obter a confiança de

seu cunhado acima de tudo. Era o irmão de Rosa! E isso eram palavras

maiores. Andrew não desejava disputas familiares e, se tivesse o único

familiar de sua esposa em contra ele, a convivência familiar podia

converter-se em um problema a longo prazo. Além disso, não era tão

egoísta para privar sua filha de seu único tio materno. Seu pai, John,

inculcara-lhe desde a infância a necessidade de respeitar e valorizar a

família, e, por isso, encontrava-se, agora, tão longe da Inglaterra, tentando

fazer raciocinar um teimoso duque.

—Você vai perder e sabe disso. Nenhuma Coroa, seja britânica ou

espanhola, tirará de um pai o poder de combinar o casamento de sua filha.

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265

O duque apertou os lábios, com uma careta de desdém.

Alonso era plenamente consciente de que o pai de seu cunhado,

John Beresford, era um marquês muito respeitado. Fizera indagações a

respeito e obteve informação sobre a família até cinco gerações atrás, e

embora o homem que tinha diante não possuísse título, sua linhagem era

indiscutível. Se Rosa se fixasse em um plebeu, tudo seria muito mais fácil,

mas os aristocratas eram ilustres, tanto na Espanha como na Inglaterra, e a

rainha María Cristina deixara isso muito claro, quando aceitou que a

pequena Branca herdasse o ducado de Fortaleza.

—Tudo o que fiz até agora foi pelo bem-estar de minha sobrinha no

presente e no futuro. Condeno os atos políticos e a atitude rebelde de minha

irmã, mas sou consciente de que Branca não tem culpa do comportamento

da mãe e, por isso mesmo, sinto que é minha obrigação impedir que pague

por seus enganos. Embora ambos sabemos o preço disso, não é certo?

Alonso se referia à declaração de traição por parte da Coroa

espanhola sobre Rosa. Ele pretendia limpar essa mancha do futuro de sua

sobrinha e, para obtê-lo, devia mostrar submissão absoluta à rainha.

Andrew estava de acordo em quase todas as suas afirmações, mas

seus atos foram equivocados, ao não tratar diretamente com ele em Whitam

Hall. Sua atitude levantou entre os dois um muro alto e espinhoso, que ele

sozinho não poderia atravessar, se a outra parte não estivesse disposta a um

acordo de cooperação.

—Quando pensava em devolvê-la a Inglaterra? — Andrew jogava

muito com a pergunta e esperou com ânsia a resposta, porque, com ela,

Alonso demonstraria seu grau de venerabilidade.

O duque não titubeou, ao responder, e, por isso, Andrew soube que

era sincero.

—Tudo estava disposto para que retornasse em um par de dias.

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266

O alívio que sentiu ao escutá-lo se refletiu em todo seu corpo, que

ficou, de repente, bambo na cadeira. Parte da tensão que sentira nas últimas

horas se esfumou totalmente, lhe deixando uma sensação de quietude

indescritível.

Em que pese a sua obstinação, Alonso era um homem consequente

em ações e palavras.

—Pensava em acompanhá-la de volta? — perguntou.

Ele negou com a cabeça de maneira quase imperceptível.

—Quatro de meus melhores homens iriam ocupar-se da segurança

de Branca em seu retorno, mas com seu pai aqui, deduzo que já não é

necessário que me ocupe disso.

—Posso ver agora minha filha? — perguntou Andrew, com voz

imperativa — Acredito que cumpri de forma satisfatória suas expectativas,

porque segue tendo a cabeça sobre os ombros.

Alonso relaxou também sua postura e se inclinou para seu cunhado.

—Devo admitir que me surpreendeu — replicou — Mas ainda

temos que tratar o acordo de compromisso com o ducado de Marinaleda.

Nesse assunto, Andrew se mostrou implacável.

—Não aceito o compromisso — reiterou, com voz que não admitia

réplica.

O duque utilizou toda sua artilharia.

—Marinaleda é uma das melhores e mais importantes famílias da

Andaluzia, e me atreveria a dizer que da Espanha — contra-atacou,

decidido a fazer capitular o pai de sua sobrinha — Seria uma soberana

estupidez romper o acordo.

—Não duvido, mas, por mais empenho que ponha, não aceitarei o

compromisso.

—Minha sobrinha merece inclusive uma coroa.

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267

Essas palavras o afetaram, profundamente. Alonso falava

convencido, e Andrew gostou que tivesse em tão alta consideração a sua

filha.

—E a terá, se assim desejar — concedeu, ao fim.

O duque soltou um suspiro que, para Andrew, pareceu apaziguado.

—Então, estamos de acordo — rematou, mas ele voltou a negar

com sua loira cabeça, sem que o sorriso abandonasse seus lábios.

—Se Branca deseja casar-se com um nobre espanhol, não oporei a

isso, mas não penso passar em um acordo matrimonial que lhe impeça de

ter a liberdade de escolher a seu futuro cônjuge.

—Há uma cláusula no contrato que lhe outorga a faculdade de

romper o compromisso, se assim o desejar, mas, para isso, terá que esperar

os dezoito anos e perder a metade do dote.

Por que ninguém lhe falara dessa cláusula?, perguntou-se Andrew,

estranhando. Estava discutindo com seu cunhado algo que tinha acerto no

futuro.

—Embora haja mais um — prosseguiu Alonso.

Ele se preparou para o pior.

—A Coroa espanhola terá a última palavra sobre o enlace que

pactue minha sobrinha e sobre o candidato eleito por ela — informou, de

forma concisa.

Andrew sopesava os prós e os contra.

—Isso é inaceitável. Não estamos falando de política, mas, sim, do

futuro casamento de minha filha.

Alonso teimou ainda mais.

—Será uma grande da Espanha, com responsabilidades que não

poderá evitar.

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268

Andrew pensou que, se seu cunhado voltasse a repetir a palavra

«grande», ia fazer algo drástico, como lhe lavar a boca com água de Javel12

.

—Só está especulando com a possibilidade, porque, até a data, você

segue vivo e presumo que com sua dignidade intacta para encher este

mausoléu de pequenos Laras tão frios e, insuportavelmente, rígidos como

seu progenitor...

Depois de escutar sua invectiva, Alonso fez uma careta que parecia

diversão, mas Andrew pensou que seguro que se equivocava, pois seu

cunhado era o homem mais seco e autoritário que havia conhecido.

—Estamos de acordo, então? — O duque ficou de pé e lhe estendeu

a mão como dando o tema por resolvido.

Andrew também se levantou, mas duvidou uns instantes em aceitar

a conclusão do trato, pois não tinha obtido nada, salvo aparar as arestas

com ele. Mas, ao menos, já não sentia vontades de lhe fazer verdadeiro

dano, só de derrubá-lo com um murro.

—Aceito. — Estreitou a mão que lhe estendia Alonso e, de repente,

fez algo completamente inesperado e que pegou o duque de surpresa.

Sem soltá-lo, lhe deu um murro com a esquerda que o deixou

desequilibrado por completo. A cadeira caiu com estrépito, assim como

vários equipamentos do escritório, mas Alonso pôde apoiar-se na mesa,

para não cair no chão.

Quando se recuperou, olhou ameaçador para o homem que teve a

ousadia de golpeá-lo em sua própria casa, mas Andrew esboçou um sorriso

cúmplice.

12

água de Javel é um desinfetante muito forte usado em várias partes do mundo. Mata uma infinidade

de bactérias e pode ter também função alvejante.

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269

—Isto é para que não esqueça que sou o pai de sua sobrinha e o

marido de sua irmã. Quando desejar tratar um assunto legal, fará isso

comigo ou não será o único murro que receberá de mim. — Seu cunhado

massageou o queixo, mas não fez ameaça de devolver o golpe. Ainda

estava assombrado pela audácia que demonstrara — E, agora, faça chamar

minha filha, porque não posso esperar mais para vê-la.

Durante um momento, os dois homens se olharam desafiando-se;

finalmente, Alonso se aproximou do atirador e chamou. Quando o

mordomo abriu a porta com atitude solene, voltou-se para ele.

—Avise a lady Jane para que traga para a senhorita Lara.

Andrew esteve a ponto de corrigir seu cunhado, com um novo

golpe, por sua maneira de chamar Branca. Pelo visto, não fez caso de sua

advertência uns momentos antes, mas decidiu deixar passar. Tempo teria de

lhe baixar a bola ducal.

A inoportuna entrada de Branca na biblioteca, acompanhada de lady

Jane, converteu-se em uma festa de gritos e aplausos. Andrew abraçou a

menina e a lançou várias vezes no ar. As gargalhadas infantis resultavam

contagiosas. Uns momentos depois, pai e filha começaram um bate-papo

em inglês que excluiu Alonso, por completo.

Este ignorava tudo a respeito de sua sobrinha, mas também

desconhecia tudo o que tinha a ver com sua irmã. Era consciente de que o

fato de haver-se criado na França fora o estopim para sua declarada

rebeldia e sua obstinada teima.

Rosa o havia enganado, manipulado, mas ele conseguiu a

cooperação de Andrew Beresford para assegurar a continuidade do ducado;

podia sentir-se satisfeito. Quando decidiu embarcar com rumo à Inglaterra,

esperava muito menos, mas seus planos de controlar o imenso patrimônio

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270

de sua irmã estavam muito mais perto, com a designação de sua sobrinha

como herdeira.

A partida se tornou um impasse, como previra desde o momento em

que soube da chegada ao palácio dos Silêncios do inglês que, agora,

formava parte da família Lara.

Desaprovava por completo a escolha de Rosa, porque, por

linhagem, podia aspirar a muito mais. Se lhe contasse que não pensava

tomar os hábitos, combinaria para ela um matrimônio muito mais vantajoso

com um nobre afim à casa Lara. Mas isso já não tinha remédio, embora a

situação de Branca, sim; e ele pensava em vigiar com muita atenção a sua

sobrinha, para que não cometesse o mesmo engano da mãe. Não pensava

em permitir que desposasse um maldito inglês. A herança materna dos Lara

devia continuar na Espanha.

Andrew se aproximou dele com sua filha em braços.

—O tio Alonso está encantado de que fique aqui uns dias — disse à

pequena em espanhol, e a menina voltou a gritar com júbilo.

Ele não estava encantado nem um pouco, mas não o contradisse.

Não ficava mais remédio que oferecer hospitalidade ao pai de sua sobrinha,

até que partisse, mas confiava que isso ocorresse muito em breve.

—Bem-vindo a Silêncios, cunhado.

Disse-o com a mesma entonação sarcástica que utilizara Andrew

momentos antes e recebeu uma piscada como resposta.

Andrew se sentia satisfeito, porque tudo saíra como tinha planejado

em um princípio, bom, ao menos em parte, porque tratar com Alonso de

Lara resultava complicado e exaustivo.

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271

Branca estava com seu avô John Beresford em Granada. Ambos

retornariam a Whitam Hall com Justin e Aurora, que pensavam partir em

breve a bordo do Diabo Negro. O veleiro, propriedade de seu pai, estava

ancorado frente à Torre do Diablo na costa Granada e esperava as

oportunas ordens. Lady Jane também voltava com eles. Com aquela

entonação que Andrew adorava, Branca lhe explicou que, durante o tempo

que estivera em Sevilha, lady Jane cuidou muito bem dela. Ele agradecia a

mulher, profundamente, mas sua filha era uma contínua caixa de surpresas.

Não protestou nenhuma só vez, ante o desconforto de ir de um lado

a outro com estranhos, e se mostrou encantada de conhecer seu tio Alonso

e de poder estar um tempo em sua companhia. A incomum maturidade de

sua pequena o enchia de um imenso orgulho paterno. Nesses momentos,

Branca recebia os cuidados de seus primos mais velhos: Mary, Roderick, e

os gêmeos Hayden e Devlin, na casa granadina que possuía sua irmã

Aurora. Seus sobrinhos se puseram muito contentes, ao conhecer sua nova

prima, e embora Andrew soubesse que Branca ia estar muito bem e

protegida por sua família, deixá-la de novo a cargo de outro lhe parecia um

suplício. Queria-a com toda sua alma e o entristecia enormemente separar-

se dela. Mas ele não podia voltar ainda à Inglaterra, porque aceitara um

encargo e tinha a obrigação de cumprir.

A longa e sincera conversa manteve com seu pai foi muito frutífera,

mas John não guardou nenhuma só recriminação das que tinha pendentes.

E foi demolidor.

Ainda lhe ardiam as orelhas pelo sermão de desaprovação que

recebeu de sua parte, embora o merecesse. Durante anos, comportou-se

como um cretino sem escrúpulos, mas resistiu a lhe confessar que sua

atitude desmedida era consequência do desamor que Rosa lhe mostrara no

passado. Ela nunca deixou de amá-lo, mas se calou, convenientemente.

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272

Se Rosa confessasse que era filha de um duque, Andrew teria

acatado e seguido todas as regras sociais para ganhar a sua família e a toda

a nobreza sevilhana, se fosse necessário, mas o fizera acreditar que era uma

moça singela e sem responsabilidades, e essa omissão da verdade os levou

por um caminho espinhoso e estéril. Mas, por Branca, por sua filha, ia fazer

todo o possível por cumprir cada estúpida norma de etiqueta, embora

perdesse a vida no intento. Tinha uma grande responsabilidade e, por isso,

aceitou ingressar no exército, sob as ordens do coronel John Gurwood. Se

demonstrasse à rainha da Espanha sua boa disposição, ao lutar por sua

causa, e de mediar no conflito sob a tutela da Inglaterra, María Cristina

compreenderia que neles não tinha inimigos.

Entretanto, seu pai era outra questão.

John Beresford se mostrou surpreso, quando lhe revelou o cargo

militar que aceitou por sugestão de lorde Eliot e do coronel John Gurwood.

Ambos foram comissionados para mediar na guerra espanhola, e Andrew ia

ser o homem de confiança de Gurwood nas conversações que iam manter

com ambos os lados. O grau de oficial que lhe comprara John e que não

havia utilizado lhe serviria, nesses momentos cruciais.

Seu pai expressou seu desgosto, porque a situação na Espanha se

estava tornando perigosa. Andrew era consciente disso, por isso, insistiu

tanto em que sua irmã abandonasse a Espanha e retornasse a Inglaterra com

seu marido e filhos.

Agora, se encontrava no palácio dos Silêncios, esperando a chegada

do coronel Gurwood e do embaixador inglês, para ultimar detalhes com

Alonso de Lara, que tinha de retornar, em breve, à frente norte. Quando

contou seus planos a seu cunhado, o duque se mostrou atônito e reservado.

Alonso era da opinião de que os estrangeiros não deviam intervir

em um conflito que não lhes correspondia, mas as credenciais de tradutor

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273

que lhe mostrara silenciaram seu protesto. A rainha María Cristina e Carlos

Isidro aceitaram a intervenção estrangeira, e ele não era ninguém para

questionar os motivos reais. Além disso, como Andrew Beresford falava e

escrevia corretamente em espanhol, seria um tradutor necessário e

competente entre ingleses e espanhóis.

Tampouco objetou em nada a sua intenção de levar a pequena

Branca a Granada com seu avô, em vez da Inglaterra, e retornar ele, dois

dias depois, para manter uma reunião com homens influentes vindos de

Grã-Bretanha para conversar sobre a guerra em chão espanhol.

Andrew repassou, brevemente, seu traje e acomodou a espada ao

cinto, mas, antes de terminar de ajustar o cinturão, o mordomo anunciou a

esperada visita.

Alonso ficou de pé e se encaminhou para a porta.

Um grupo de quatro homens fez sua enérgica entrada na grande

biblioteca do palácio, e, todos salvo um, iam vestidos de militar.

—Sua excelência. — O primeiro em saudar foi o embaixador

espanhol, seguido muito perto por lorde Eliot e, finalmente, pelo coronel

Gurwood, que ia acompanhado de seu homem de confiança, o general

espanhol Francisco José de Santillana e Murillo. Este fez ao duque uma

breve inclinação de cabeça a que ele correspondeu com uma saudação

militar em toda regra.

Alonso apresentou seu cunhado, antes de convidá-los a tomar

assento. Explicou sua presença na casa e na reunião que ia ter lugar nesses

momentos. Instantes depois, pediu ao mordomo cafés e licor para todos os

presentes.

Durante as seguintes horas, os homens reunidos no palácio dos

Silêncios se dedicaram a planejar estratégias de combate e a designar

lugares apropriados para o intercâmbio de prisioneiros de ambos os bandos.

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274

Falou-se da vitória obtida em Bilbao, Durango e Guernica com uma

pequena divisão, graças à fortificação das cidades. Falaram com supremo

respeito do general Espartero, que perseguira pequenas guerrilhas que se

foram formando em distintos pontos, depois do enfrentamento. O general

Santillana elogiou com urgência e orgulho a façanha de Espartero, quando

os cristinos foram sitiados no norte por uma coluna de seis mil homens. O

intrépido militar pôde liberar a cidade com uma força cinco vezes inferior

que as dos atacantes. Por esse motivo, Santillana insistia em encarar os

enfrentamentos seguindo o modelo de Espartero, para, assim, sofrer as

menores baixas possíveis.

Andrew escutava com atenção, sem interromper a conversa entre o

general inglês e o espanhol sobre acordos táticos que deviam ser pactuados.

E ali, entre tensões e recriminações não ditas em voz alta, formou-se a

comissão para obter que ambos os lados chegassem a um acordo para evitar

os fuzilamentos indiscriminados.

Alonso não desviou os olhos nenhuma só vez da figura de Andrew

e se perguntou o que o futuro lhe reservaria na guerra espanhola.

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CAPÍTULO 26

Rosa sentia muita falta de Andrés.

Se tornava muito difícil imaginá-lo em sua pátria, com seu irmão

Alonso como companheiro, porque, mais que um familiar político, este

seria um rival implacável.

A chegada de Branca semanas atrás, acompanhada de John

Beresford, provocou-lhe uma alegria que seria completa, se seu marido

tivesse cruzado a soleira com ela. Mas sua prolongada ausência lhe

recordava o estúpida que fora, ao não valorar o amor que lhe professava

como se merecia.

Quantos enganos!

Mas já não tinha sentido lamentar-se por algo que não podia mudar,

embora ansiasse com todas suas forças.

Seguiu contemplando as flores do jardim, através de uma janela da

biblioteca, enquanto bebia um gole pequeno de sua xícara de chá

fumegante. Sentia saudades do café da Espanha... Rosa sorriu. Tinha

saudades de muitas coisas que já não poderia recuperar e só lhe restava

mostrar sua conformidade pela fortuna que a vida lhe ofereceu, apesar de

seus graves equívocos. Outros haviam perdido muito mais que ela na cruel

batalha que se travara em chão pátrio, e isso a fez lamentar, profundamente,

com sincero remorso o tempo que tinha desperdiçado em lamentações.

Atrás cristal, o fôlego de Rosa empanava as figuras do jardim e o

escureciam e, sem ser consciente do que fazia, com o dedo indicador,

desenhou o contorno de uma flor e um coração que chorava. As

imaginárias lágrimas caíam sobre a flor, mas no desenho não a dobravam.

Voltou a exalar o quente fôlego e seguiu desenhando figuras abstratas sem

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276

sentido e sem forma ao redor da flor que delineara primeiro. Uns momentos

depois, com a malha da manga do vestido limpou qualquer rastro que

tivesse deixado no cristal com seu jogo e terminou o chá.

Ao virar-se para a mesinha auxiliar para deixar a xícara, precaveu-

se de que não estava sozinha. Christopher estava de pé, observando-a,

atentamente, tanto, que conseguiu pô-la nervosa. Em certas ocasiões,

olhava-a como se fosse um ser de outro mundo, e Rosa se perguntou o

motivo daquele constante escrutínio sobre sua pessoa. Adotou uma postura

relaxada e lhe falou com um timbre de voz sereno. Não o ouvira entrar,

mas isso era porque nunca fechava a porta das dependências onde se

encontrasse. Odiava os espaços fechados.

—Deseja uma xícara de chá? — perguntou.

Christopher fez um gesto negativo com a cabeça e avançou para

onde ela estava.

—Acreditava que meu pai estaria aqui, na biblioteca.

Rosa duvidou de sua explicação, seu cunhado tinha nos olhos um

brilho que ela começava a conhecer muito bem. Desde a chegada de John a

Whitam, este sempre levava Branca para passear pelo parque nessa mesma

hora.

—Retornarão logo — respondeu.

Nem um só gesto de Christopher indicou a Rosa que este

conhecesse essa informação.

—Aceitarei essa xícara de chá. — Sua mudança de parecer a pegou

de surpresa. Mesmo assim, encheu outra xícara e a entregou com mão

firme.

—Obrigado — disse ele, enquanto tomava assento a seu lado. Em

vista das circunstâncias, Rosa optou por sentar-se.

—Não se merecem — disse ela, com um fio de voz.

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Durante os seguintes minutos, o silêncio reinou entre os dois,

enquanto se observavam com cautela e franco interesse.

Depois da partida de Andrew para a Espanha, Rosa perguntou a

Christopher sobre os motivos que este lhe dera para sua repentina viagem,

mas seu cunhado demonstrou uma insensibilidade que ainda a incomodava,

ao não responder a suas perguntas com clareza e rapidez.

Embora ela tentasse impedir a viagem de Andrew em busca da filha

de ambos, não conseguiu. E, depois de sua marcha, sentia-se ferida e cheia

de umas dúvidas que a encheram de um descuido que não havia curado

nem com a chegada de sua pequena Branca nem os cuidados que lhe

dispensava seu sogro.

Christopher intuiu cada pergunta que cruzou pela mente dela,

enquanto o olhava, mas, educada nas mais estritas normas, jamais se

atreveria a perguntá-las. Tomou o chá de um gole e depositou a xícara e o

pires sobre a bandeja, depois, acomodou-se na poltrona de pele, ao tempo

em que cruzava uma perna sobre a outra sem afastar seu inquisitivo olhar

do rosto feminino. De repente, Rosa desejou que John Beresford ou a

própria Ágata entrassem na biblioteca, para aliviar um pouco a tensão que

lhe provocava estar com o homem mais enigmático de quantos tinha

conhecido.

—Andrew estará bem — disse, de repente.

Os olhos dela cintilaram, ao escutá-lo. Se Andrew estava bem ou

não, só dependia de Deus e de sua misericórdia divina; por isso, a

banalidade do comentário lhe pareceu sem nexo.

—Rezo toda noite para que seja assim — respondeu, com certo

desconforto.

Christopher sabia que lhe devia uma longa explicação, mas a havia

posposto, confiando no breve retorno de seu irmão. Tinha-lhe devotado só

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respostas curtas e evasivas sobre a decisão de Andrew de acompanhar o

embaixador espanhol a Madrid e agir como tradutor na comissão enviada à

Espanha para intermediar na luta.

—Se não estar aqui é por um motivo concreto que já lhe expliquei

em muitas ocasiões — continuou Christopher, com voz firme, mas sem

intenção de ofendê-la.

Rosa piscou uma só vez, enquanto o escutava, com atenção.

—Mas não deve temer por ele. Sua vida não corre perigo.

O comentário a enervou. Estar em meio de uma guerra era ter todas

as chances para uma morte horrenda, inclusive mesmo não compartilhasse

os ideais do conflito.

—Que fácil resulta pressupor algo assim da segurança de Whitam

— respondeu, com a voz um pouco alterada — não é certo?

—Admito que me sinto um pouco preocupado e, por isso, acredito

que seria interessante que mantivéssemos uma conversa sobre o assunto.

Intuo que, assim, ficaria muito mais tranquila — disse, sem afastar os olhos

dos dela, que resplandeceram, de forma intensa.

Perguntou-se se o motivo seria o aborrecimento ou a tristeza.

—Agora? — perguntou Rosa, incrédula — Quer que falemos agora,

depois de semanas de silêncio? Parece-me inaudito.

Christopher lhe sustentou o olhar inexpressivo.

Ela se acomodou na poltrona e olhou o vaso com flores do centro

da mesa, enquanto tentava retomar o controle de sua respiração. Se

seguisse olhando para seu cunhado, sentia que ia perder a compostura em

sua presença.

—Aquela noite estava muito alterada para se mostrar razoável, e

Andrew foi muito cortante a respeito.

—Cortante? — repetiu, com curiosidade — A que se refere?

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—Ele não desejava que você saísse da Inglaterra sob nenhuma

hipótese.

Esse detalhe ficou bem claro, antes que seu marido partisse.

—Ele mesmo me deu essa ordem e não pensava em desobedecê-la,

mas o que anseio saber é por que decidiu intervir em um conflito que

desdenha. Andrés detesta a luta na Espanha, por isso, me parece ilógico e

contraproducente que tenha decidido fazer-se de intérprete para ambos os

bandos — arguiu, imersa em suas cortantes dúvidas — Não tem por que

fazê-lo.

Christopher se disse que Rosa tinha toda a razão em mostrar-se

suscetível.

—Sim, tem por quê.

—Ah, sim? — perguntou, intrigada.

—Pretende ganhar a confiança da rainha da Espanha.

Agora, sim, que ficou atônita e sem capacidade de reação. Durante

vários minutos, esteve olhando para Christopher muda de assombro.

—De María Cristina? — conseguiu perguntar, um momento depois,

em um tom de voz que raiava o ceticismo.

—Explicou-me que deseja limpar o nome de Lara e restaurar a

honra de sua família, e, para isso, deve intervir na luta a favor da regente.

Rosa fechou os olhos ante as quebras de onda de emoção que a

embargaram. Por que Andrew não lhe disse nada? Porque estava zangado

com ela pelos últimos acontecimentos, disse-se. Mas um profundo alívio a

alagou, fazendo-a soltar um suspiro longo e significativo.

Depois da chegada de John com Branca, a tensão que se respirava

em Whitam Hall havia minguado grandemente. Rosa sentia que lorde

Beresford a culpava pelo alistamento de seu filho mais novo, mas não a

fazia sentir incômoda por isso; justamente o contrário.

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Mas não estranhava que ninguém assinalasse seus enganos, para

que Rosa se sentisse atormentada; mal podia respirar pela culpa que a

embargava e, até que Andrew retornasse, não deixaria de sentir-se como

uma pessoa que manteve uma atitude execrável.

—Nunca esperei algo heroico de sua parte — respondeu,

cabisbaixa.

Era insuportável sustentar o olhar de Christopher. Recordava muito

Alonso.

—A postura de meu irmão nestes meses é a consequência lógica da

insegurança que o faz sentir.

Rosa levou suas palavras de uma forma completamente distinta

como pretendia Christopher.

—Jamais lhe faltaria em modo algum. Não está em minha natureza

me mostrar vaidosa ou frívola.

—É a filha de um duque, e sua fila a permitiu ter tudo o que

desejava.

A frase parecia como uma acusação, e, assim, tomou Rosa.

—Sou neta de um duque, filha de um duque e afilhada de uma

duquesa. Acredita que devo me sentir envergonhada?

Não pretendia mostrar-se pedante, mas a atitude de seu cunhado a

irritava. Durante semanas, ele evitou falar com ela sobre Andrew. Rosa o

tinha exigido, suplicado, mas sem obter nada. E, agora, se mostrava como

um autêntico cretino.

Christopher meio sorriu, ante seu arranque de mau humor. Tinha as

costas tão rígidas que parecia uma lança.

—Meu irmão acredita que, a seu lado, se encontra em clara

desvantagem, e eu fui tão estúpido que aumentei sua insegurança com

minha defesa à sua forma de se comportar.

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281

«Christopher a defendera frente a Andrew? Por quê?», perguntou,

estranhando.

—Como poderia ter aumentado sua insegurança, se eu, alguma vez,

lhe dei motivos para desconfiar de mim? — perguntou, com absoluto

desconcerto.

—Andrew não sente ciúmes, nem teme que se mostre cabeça de

vento com outros homens; sua insegurança está causada por sua educação.

Por ser filha de quem é.

Ela demorou um longo minuto em compreender as palavras de seu

cunhado.

O próprio Andrew lhe falara de seus temores, depois de um jantar

desastroso com o embaixador espanhol, em Whitam, mas Rosa acreditava

que sua insegurança estava motivada por outra causa.

—Por que se sente inseguro ante minha linhagem? — perguntou, de

improviso — Ele mesmo é filho de um marquês e não de um limpador de

lareira s. Isso não tem sentido.

Christopher se perguntou o mesmo uma infinidade de vezes. Desde

a adolescência, seu irmão possuía um encanto natural que conseguia

seduzir a qualquer. Perdoava-lhe quase tudo, sem importar a gravidade, por

isso lhe parecia tão falta de lógica a insegurança que Rosa lhe provocava.

—Segundo suas palavras, é muito perfeita. Seu comportamento

sempre é impecável. Rigoroso.

Rosa piscou, confusa, porque essas palavras, sim, a deslocaram.

—Meu comportamento é de tudo adequado. Não posso me mostrar

como uma descarada. Minha obrigação é honrar o nome de minha família.

Christopher suspirou. Tinha-a onde a levara com suas palavras.

—Andrew precisa da mulher que conheceu em Hornachuelos. A

moça de comportamento singelo que o fez perder a cabeça.

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Rosa se sentia tão surpreendida que, se a acertassem, não tirariam

nenhuma gota de sangue.

Por que Andrew se empenhava em recuperar um tempo que já havia

passado?, perguntou-se, perplexa. Entre ela e a mulher que ele conheceu

em Hornachuelos, aconteceram muitas coisas que a mudaram de forma

drástica: uma maternidade, uma guerra...

—As mudanças que vivi são inevitáveis. Inclusive, ele mesmo não

é o que conheci em Córdoba.

Christopher negou com a cabeça de maneira eloquente.

—Um exemplo para que compreenda seu desgosto. Meu irmão

adoraria que lhe dedicasse uma canção. E mais, que a cantasse em público

em um jantar de gala.

Rosa afundou os ombros. Que lhe dedicasse uma canção?

Certamente, não entendia nada.

—Não sei cantar — admitiu, sem pudor algum — e não mataria de

tédio os convidados com um hobby tão comum e pouco transcendental.

—Também poderia dar uma bofetada em uma mulher para defender

o nome de Andrew, quando o chamassem de libertino.

Christopher rogou que suas palavras não se voltassem contra ele,

porque, se de algo se podia tachar seu irmão, era de libertino consumado.

Rosa piscou várias vezes, atônita pelos roteiros que estava tomando

a conversa .

Momentos atrás, estavam falando do alistamento de Andrew e,

agora, de que ela batesse em uma mulher inexistente.

—Jamais me rebaixaria a esbofetear ninguém. Não está em meu

caráter me mostrar como uma harpia belicosa e inculta.

Christopher soube que fio puxar para lhe mostrar o que Andrew

pretendia dela.

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—Não agiria assim porque é filha de um duque? — provocou-a.

Rosa tomou ar, antes de dar uma resposta a seu mordaz comentário.

—Não agiria assim porque um olhar inteligente silencia a postura

mais enérgica e o protesto mais acalorado — respondeu com voz firme,

mas, no fundo, escandalizada — Para que nos manchar as mãos, quando

podem usar o intelecto de forma muito mais eficaz e contundente?

Christopher esboçou um autêntico sorriso. Estava desfrutando

muito daquela conversa . Era muito difícil encontrar uma mulher com uma

mente tão fina e cuidadosa.

—Ágata cantou uma tonadilha burlesca em um jantar que meu pai

ofereceu em sua honra. — Rosa o olhou, precavida — E deu um murro em

uma antiga amante despeitada que se mostrou insolente. — Os olhos de

Christopher brilharam com orgulho, ao recordar o incidente que levantou

tantas ampolas — Devo confessar que desfrutei muitíssimo com seu

comportamento tão afastado do protocolo.

Rosa abriu a boca para dizer algo, mas pensou melhor e optou por

fechá-la e meditar no que Christopher lhe disse.

—Tenta me advertir de que Andrés não se incomodaria nem um

pouco com um comportamento assim de minha parte? — raciocinou, ao

fim, depois de uma longa pausa — E lorde John Beresford tampouco?

Não podia acreditar. Bater uma antiga amante de Andrew?

Certamente que poderia fazê-lo; até deixá-la inconsciente...

—Em Whitam Hall, sempre pode ser você mesma — disse

Christopher, em tom confidencial — Embora seja filha de um duque ou

parente da própria rainha da Espanha.

Deus bendito! Agora, entendia.

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—Poderá comportar-se com a mesma liberdade que em

Hornachuelos, e Andrew será feliz de recuperar a mulher pela qual se

apaixonou, perdidamente.

A mente de Rosa fervia de especulações. A responsabilidade pesava

sobre seus ombros de uma forma contínua, até o ponto de asfixiá-la.

—Mas eu não sei cantar! — exclamou, horrorizada.

Ele reprimiu uma ameaça de sorriso, ao ver sua cunhada tão aflita.

Tomando e descartando opções a toda velocidade.

—Rosa, presumo que tem uma boa direita e não tenho a menor

dúvida de que poderia utilizá-la, sem rubor algum, caso se apresentasse a

ocasião.

Ela tapou a boca com a mão, para conter a risada.

—Se Andrew for intervir por você em um conflito que detesta, é

justo que lhe corresponda com a mesma moeda. — Rosa fez um gesto

afirmativo — Que recupere a mulher que conheceu em Hornachuelos. Faça

tudo o que nunca faria como filha de um duque e, sim, como a mulher que

ama meu irmão. Predigo que será o homem mais feliz do mundo.

Já não esperou uma resposta por sua parte. Levantou-se e caminhou

para a porta que dava ao vestíbulo. Intuiu que Rosa precisava meditar na

conversa que haviam mantido e, com sua marcha, deu-lhe a oportunidade

de fazê-lo.

Rosa estava sumida em uma marejada de sentimentos que se

enredavam cada vez mais. Andrew lhe dissera como se sentia, mas ela

estava imersa em uma nuvem de normas, protocolo e regras. Ambos

mudaram, mas as palavras de Christopher abriram uma porta a um mundo

desconhecido que deveria cruzar pelo bem de seu casamento.

Embora não pensasse em cantar uma canção, embora sua vida

dependesse disso.

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CAPÍTULO 27

Voltava para casa. Sentia-se exausto, mas feliz.

O conflito na Espanha seguia sangrento, mas o intercâmbio de

prisioneiros resultou eficaz e seguro. Parte da comissão inglesa, continuaria

durante uns meses em chão espanhol, mas até novas ordens, ele podia

retornar a casa.

Durante as semanas que passou tão perto da luta, tinha meditado,

profundamente, sobre a importância que dava a detalhes que, com o tempo,

resultavam insignificantes. Graças ao conflito no qual tomou parte como

tradutor, descobriu que o que realmente lhe importava na vida era sua

família.

Os grossos muros de Whitam Hall lhe pareceram à entrada ao

paraíso.

Ficou parado na escadaria da mansão, escutando o gorjeio dos

pássaros. Contemplou as nuvens que brincavam com o sol, escondendo-o, e

se deleitou com a música de piano que se ouvia no interior da casa.

Procurou a chave no bolso de sua calça militar e a colocou com cuidado na

fechadura. John estava acostumado a desgostar-se com ele e com seus

irmãos por usar chave própria. Alegava, enfaticamente, que o serviço

estava para abrir e fechar a porta, mas lorde Beresford ignorava que seus

irmãos e ele preferiam entrar e sair sem ser vistos; assim, Marcus não podia

lhe dar detalhes sobre as escapadas que estavam acostumados a

protagonizar de madrugada.

Mas isso fazia já muito tempo.

Justo quando se voltou para fechar a porta atrás de si, ouviu uma

nota mal tocada e uma risada infantil que se desculpava. Soube que sua

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286

filha estava tocando o piano e, em vez de percorrer os passos que o

separavam do salão, ficou parado no vestíbulo, escutando às escondidas as

diversas risadas e comentários sobre a letra de uma canção.

Marcus apareceu no vestíbulo como se o pressentisse, mas lhe fez

um gesto com o dedo nos lábios para que não delatasse sua presença ao

resto da família. Aproximou-se com sigilo para a porta aberta e

contemplou, com olhos famintos, o espetáculo que se apresentava ante seus

olhos.

John estava sentado ao piano, com a pequena Branca a seu lado,

com as mãos sobre o teclado de ébano e marfim. O pequeno Chris estava

recostado sobre o tapete, muito perto da lareira apagada, e Rosa, sua Rosa,

estava de costas a ele, passando as folhas de uma partitura.

Ouviu a potente voz de seu irmão Christopher repreendendo seu

filho porque não emprestava a devida atenção, mas o menino estava muito

ocupado em lutar com uns cavalos de madeira. Percebeu o tinido de uma

colher, ao mexer uma xícara de porcelana, e supôs que sua cunhada Ágata

estava acrescentando leite e açúcar a uma reconfortante xícara de chá

fumegante.

Sentira tanta falta do chá!

Seu pequeno tesouro voltou a tocar as teclas e retomar uma melodia

inglesa que ele não ouvia desde que era um menino. Conforme ia escutando

debulhar a letra, foi ficando mais e mais perplexo.

A voz infantil tinha um timbre invejável e entoava com suma

correção, mas a canção era muito zombadora para que a interpretasse uma

menina tão pequena como Branca.

Levou a mão à boca, para reprimir uma gargalhada.

Indubitavelmente, o responsável pela letra era John Beresford, pois, quando

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a menina se equivocou em uma palavra e cessou de tocar, ele voltou a

começar a canção com sua voz de barítono.

Deve ter rido em voz alta, porque Rosa olhou por volta da porta e,

de repente, ficou lívida.

Disse seu nome, e avô e neta detiveram a interpretação, de repente.

—Andrés! — voltou a exclamar Rosa, com a mão na garganta;

possivelmente, para conter os amalucados batimentos de seu coração, que

se desbocara ao vê-lo de pé na soleira de entrada ao salão.

—Filho!

Os brilhantes olhos de seu pai eram a melhor boas-vindas que podia

ter.

—Tio, tio! — O pequeno Chris se levantou do tapete para ir a seu

encontro, mas não foi tão rápido como Branca, que chegou um passo antes

que ele.

Tomou ambos os meninos nos braços e os fez girar pela habitação,

lhes provocando gargalhadas de deleite.

Rosa se aproximou deles, mas conteve o ímpeto de abraçá-lo, até

que Andrew deixou de dar voltas pelo aposento.

Soltou os meninos no chão com suavidade e ficou em frente a ela.

—Andrés...! Meu deus!

Ambos se olharam, sem piscar. Rosa estava repleta de alegria, ao

vê-lo ileso. Com apenas um arranhão na bochecha esquerda.

—Mas que bonita está!

Não se importou que a abraçasse, nem que fundisse sua boca com a

sua diante da família em um beijo tão intenso que a deixou tonta e repleta

de uma felicidade indescritível. Mas o pigarrear de John fez com que ele a

soltasse com relutância.

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Não era o momento de dar um festim com sua esposa, por mais que

ansiasse agarrá-la nos braços e levá-la ao dormitório nesse preciso

momento, para dar rédea solta à paixão que o afogava.

—Bem-vindo a casa, filho! — As palavras de seu pai o fizeram

desviar os olhos de Rosa para ele, mas sem mover-se do lugar. Seguia

segurando-a pelos ombros com firmeza, impedindo que pusesse distância

entre ambos.

Christopher o saudou de forma efusiva, e Ágata o abraçou ao

pescoço com alegria sincera.

—Que recebimento tão esplêndido! — disse, emocionado.

John estreitou sua mão e, seguidamente, atraiu-o para seu corpo

robusto para lhe dar um abraço de urso. Para Andrew, não ficou mais

remédio que soltar Rosa.

—A emoção me transborda ao ver você são e, por fim, em casa.

A voz de seu pai estava impregnada de um sentimento grato e vivo,

produzido pela volta de seu filho caçula ao lar familiar. Andrew vestia um

pouco desalinhado e tinha o cabelo bastante mais longo e claro, sintoma

inegável de que tinha gozado do sol espanhol.

Depois do efusivo abraço paterno, desabotoou a jaqueta e a lançou,

com certeira pontaria, para o sofá. Logo, desabotoou também as mangas da

camisa e as enrolou de qualquer modo. Nesse sentido, não havia mudado

nada, pensou John.

—Daria minha vida por um banho quente e uma xícara de chá —

disse a todos, com semblante risonho, como era habitual nele. Mas Ágata

se adiantou a seus desejos e já lhe trazia uma xícara fumegante que ele

bebeu de um gole.

—Direi a Marcus que lhe prepare um banho — se ofereceu

Christopher, com emoção contida.

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Saiu do salão em busca do mordomo para dizer-lhe.

John não podia separar os olhos de seu filho. Andrew mudara muito

e não precisamente no físico. Na profundidade de seu olhar, tinha uma

resolução que não nunca vira, e da qual gostou muitíssimo.

—Ajudarei você — se ofereceu Rosa.

Os olhos do Andrew se cravaram nela, ao escutar suas palavras. Se

subisse com ele ao quarto, terminaria fazendo o amor com ela como um

louco, e todos saberiam.

Agarrou-a pela mão para sair com ela do aposento.

—Não pode ir e nos deixar assim ansiosos por saber algo de sua

estadia na Espanha — disse John, atônito.

—Pai — respondeu Rosa, com um amplo sorriso — Andrés nos

informará durante o jantar de tudo o que desejamos saber, não é, amor?

Se ela continuasse olhando-o assim, não responderia por seus atos.

Rosa lhe deu uma cotovelada carinhosa, para que respondesse a seu pai.

Mas Andrew estava saboreando suas palavras. Nenhum dos

pressente podia imaginar o que sentiu, ao ouvi-la chamar John Beresford de

pai.

Ela, sim, tinha muitas coisas que lhe contar.

—Dou minha palavra de que lhes informarei de tudo, durante o

jantar.

Branca se pegou a ele e colocou a mãozinha na de seu pai, que se

agachou para abraçá-la com infinita ternura. Cheirou o cabelo infantil e

fechou os olhos pelas gratas lembranças que foram à sua memória.

Era tão bom estar de novo em casa!

Finalmente, afastou a pequena de seu corpo uns centímetros, para

olhá-la, fixamente, nos olhos.

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—Prometo descer muito em breve e lhe contar muitas coisas. —

Calou um momento, antes de continuar — Poderá esperar?

Branca lhe fez um gesto afirmativo com a pequena cabeça.

—Chris e eu esperaremos até intão — respondeu, com voz solene.

Andrew não pôde resistir ao impulso de beijar sua macia bochecha

nem de voltar a estreitá-la entre seus braços. Ver o rosto angélico de sua

filha era a maior bênção que podia receber.

—Acompanha-me? — As palavras foram dirigidas a Rosa.

Andrew se tinha elevado de sua postura de cócoras e lhe estendia a

mão com um brilho de desejo nos olhos. Ela a aceitou encantada, e ambos

saíram do salão compartilhando confidências, sem virar para trás. Subiram

a escada entre carinhos e beijos.

Quando chegaram ao quarto, Marcus terminava de ordenar o banho

e fiscalizava com absoluta discrição à roupa do armário, escolhendo alguns

objetos apropriados. Christopher lhe informou do caráter festivo que teria o

jantar pela chegada inesperada de Andrew. As cozinhas buliam de

atividade preparando as boas vindas ao mais jovem dos Beresford.

—Senti tanto a sua falta... — Ele voltou a beijá-la, intensamente,

sem se importar com a presença do servente, que se movia em silencio pelo

quarto.

—Tem que tomar um banho — recordou Rosa, enquanto lhe

desabotoava, um a um, os botões da camisa.

Andrew não cessava de beijá-la de forma ardorosa, e ela passou a

palma da mão pelo duro peito masculino. Delineou a curva das costelas e

seu ventre liso.

Ele gemeu, como se com seu roce lhe provocasse uma dor

insuportável.

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—Marcus, já pode se retirar... — Mas o mordomo saíra do quarto

minutos antes, completamente sobressaltado.

Andrew a abraçou tão forte que Rosa temeu que lhe rompesse as

costelas.

—Amo você, Andrés. Não volte a me deixar sozinha nunca mais.

Ele não pôde lhe responder, porque sitiou sua boca com uma fome

desmedida. Rosa se apoiou em seu corpo firme e lhe rodeou o pescoço com

os braços, sem separar os lábios dos seus.

Agarrou-a nos braços e se dirigiu com ela para o leito, sem deixar

de beijá-la.

—Andrés, não... O que...

Não lhe permitiu continuar com a negativa.

Aprofundou o beijo e a apertou muito mais forte contra seu corpo,

até o ponto de lhe arrancar um gemido de prazer.

—Vou fazer amor com você agora mesmo.

—A água vai esfriar.

—Voltarei a pedir que a esquentem mais tarde.

—Não, espere... — Rosa se afastou e provocou que a soltasse —

Desejo tanto ou mais que você que faça amor comigo, mas o esperam lá em

baixo, e seria uma grosseria impacientá-los, sem um motivo válido.

—Fazer amor com você não é um motivo válido?

Ela sorriu de orelha a orelha.

—O melhor, mas não penso permitir que se atrase por minha culpa.

Andrew já se desabotoava os botões da calça azul escura.

—Você mesma está provocando o atraso com sua negativa.

—Andrés! — exclamou ela, quando ele ficou completamente nu —

Não tem vergonha. — Mas a recriminação foi dita em um tom de

brincadeira que o encantou.

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Rosa não podia imaginar os horrores que tinha visto. A crueldade

com que os homens se atacavam. E, agora, só desejava perder-se entre seus

braços durante uns momentos.

—Estou disposto a fazer amor com você, e não poderá me deter.

Ela soube que não podia negar-se. Não quando havia sofrido e

chorado tanto por ele, quando temeu perdê-lo para sempre. Tê-lo a seu lado

era um sonho feito realidade.

—Então, me beije, canalha...

Quando entraram no salão, todos os olhares lhes demonstraram que

sabiam perfeitamente o que ocorrera entre os dois, na intimidade do quarto.

Rosa ficou vermelha escarlate, ao precaver-se do olhar faiscante de sua

cunhada Ágata, mas Andrew mostrou seu melhor aspecto e piscou um olho

a seu pai, que teve que morder o lábio, para que não o delatasse um sorriso

cúmplice. Devia mostrar-se severo, mas com seu filho caçula sempre lhe

custava um verdadeiro esforço.

Seguia sendo um vadio incorrigível.

Andrew se precaveu de que a cadeira alta de Branca estava ao lado

da sua. Um detalhe que agradeceu, enormemente, porque ansiava passar

todo o tempo possível com a menina de seus olhos.

Cada comensal tomou assento em seu respectivo lugar, salvo Rosa,

que se sentou justo em frente a ele. Ante o olhar inquisitivo dele por não

estar a seu lado, ela o olhou de forma maliciosa, como se guardasse um

segredo que ninguém conhecia e que não pensava em revelar de momento.

O jantar transcorreu entre risadas, anedotas sobre o insofrível sol

espanhol e o vinho dos botequins, que derrubava os homens com mais

contundência que as balas do inimigo.

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Andrew brincou com Branca entre bocado e bocado. A menina o

olhava encantada e atenta a cada palavra que saía de sua boca. Ágata não

cessava de sorrir, e Rosa, sua Rosa, tinha o semblante de alguém que, na

vida, não anseia nada mais que viver esse momento. Valia participar de

uma guerra, se a recepção era assim de espetacular.

Depois das sobremesas, as crianças se retiraram, acompanhados de

lady Jane, que foi à sala de jantar, para felicitá-lo por sua volta. Marcus

deixou a bandeja com o café no centro da mesa, assim como uma das

melhores garrafas de brandy das adegas de Whitam Hall.

—Renderam-se os carlistas? — A pergunta de John conseguiu que

Andrew afastasse os olhos de sua mulher, e olhasse para seu pai, que

esperava sua resposta com interesse.

—O exército de María Cristina está tendo reversos importantes.

Todos o escutavam, com grande atenção.

—Sofreu derrotas graves e decisivas em Artaza, onde os carlistas de

Zumalacárregui venceram Jerónimo Valdés. Mas os cristinos estão

preparando uma grande ofensiva. As tropas leais à rainha partirão de

Aclama para ocupar o alto de Arlabán, que, atualmente, está em poder dos

carlistas. Comandará as tropas o general Luis Fernández da Córdoba e

contarão com o apoio da Legião Auxiliar Britânica13

. Também a Legião

Francesa e unidades sob o mando de Baldomero Espartero. Ele se dividirão

em três avanços para conter e envolver o inimigo por várias frentes.

—Essa é uma excelente notícia — disse John — Pode significar o

desenlace e o final da luta.

Andrew pensava igual a seu pai.

13 A Legião Auxiliar Britânica era o corpo militar de voluntários formado em 1935 pela Grã Bretanha a

pedido do governo da regente da Espanha, María Cristina de Borbón, para apoiar as tropas liberadas

durante a primeira guerra carlista”.

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—Voltará para a luta? — A pergunta de seu irmão fez com que

Rosa contivesse o fôlego. Não tinha ponderado essa possibilidade.

Retornar Andrew à luta? Só de pensar nisso, ficava doente, pensou,

com os olhos obscurecidos pela preocupação. Mas o gesto negativo de seu

marido fez com que a angústia que a embargara, instantes antes, remetesse,

de repente.

—O duque de Fortaleza intercedeu pessoalmente ante a Coroa para

obter minha volta à Inglaterra. Se voltarem a necessitar, novamente, meus

serviços como tradutor, ele mesmo reclamará minha presença, embora

duvide que o faça.

Rosa inspirou tão profundamente que quase se afogou com seu

próprio ar. Andrew ficava em Whitam! Sentia-se eufórica.

—Então, tudo terminou? — A pergunta de seu irmão mais velho o

devolveu à realidade.

—O primeiro-ministro me ofereceu um posto como ajudante e

supervisor do embaixador inglês na Espanha. O oferecimento está

avalizado pelo coronel John Gurwood, embora me asseguraram que

poderia realizar a supervisão de Londres.

John pensou que era o sonho de qualquer pai, um de seus filhos

metido em política! E, de repente, se deu conta do quanto benéfica foi à

presença de Rosa na vida de Andrew. Não só o represara, mas também

conseguia que o rebelde de seu filho tomasse as rédeas de sua existência e a

dirigisse de forma extraordinária.

John se sentia muito orgulhoso. Andrew na política! Não podia

acreditar.

—Que fantástica notícia! — exclamou Ágata, enquanto aplaudia

com ardor.

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Os olhos de Andrew se cravaram em Rosa, e, nesse momento,

agradeceu por tê-la sentada diante dele, porque assim não se perdia uma só

expressão de seu formoso rosto.

—O que pensa? — Para ele, era vital conhecer a opinião dela.

—É o que realmente deseja?

Sua voz continha uma ansiedade que ele entendia bem.

—Como filho caçula, minha opção era a Igreja — explicou

Andrew. Rosa mordeu o lábio, para conter um sorriso, porque este não

servia para clérigo — Ou a política.

—É muito descarado para se dedicar ao ministério espiritual —

soltou Christopher, de repente.

Andrew o olhou, com uma sobrancelha elevada, ante seu

comentário insolente.

—E você que não tem casa? — perguntou a seu irmão, com

sarcasmo.

—Andrés! — Esperava a exclamação de Rosa, por isso, esboçou

um sorriso cúmplice, antes de lhe oferecer uma breve explicação.

—Durante muito tempo, Arthur e eu sonhamos em perder de vista o

frio do Christopher. — Andrew ficou meditando em silêncio, como se, de

repente, se precavesse de algo — Possivelmente, por isso, Arthur segue na

Espanha, para não lutar com a arrogância e soberba do herdeiro de Whitam,

mas, contrariamente ao que pensávamos quando se casou com Ágata, passa

mais tempo em Whitam que em seu próprio lar.

—Andrew! — Agora a exclamação de surpresa proveio do próprio

John.

Com um olhar o ameaçou para que contivesse a língua, mas

Andrew subtraiu importância à advertência paterna.

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—Como está Arthur? — perguntou Ágata, para aliviar o momento,

embora Christopher não fizesse caso da queixa de seu irmão.

Continuou saboreando o brandy com rosto agradado.

—Anda à caça da sobrinha de sir George Villiers, o embaixador

inglês em Madrid.

John conhecia as intenções de seu filho, porque o próprio Arthur as

revelara, antes de partir para Granada.

—Depois da reunião que mantive com o coronel e o embaixador no

palácio dos Silêncios, passei dois dias no imóvel que sir George Villiers

tem em Salamanca.

—Pensa em retornar logo? — Ante a pergunta de John, Andrew

encolheu os ombros.

—Não é perigoso que fique na Espanha? — inquiriu Rosa,

pensativa.

Ele negou com a cabeça.

—As primeiras insurreições foram as de agrupamentos locais de

Voluntários Realistas14

, e tiveram muito pouco êxito, exceto no norte, onde

conseguiram controlar as cidades de Logroño, Pamplona e Aclama, embora

por pouco tempo. As sublevações não têm o respaldo do exército.

—É um alívio saber disso — disse John — Mas me intranquiliza

que seu irmão siga lá, se a luta se recrudescer.

—Arthur é inteligente — respondeu Christopher — Se o centro da

Espanha se voltar instável, irá para o sul, a Ronda ou inclusive a Granada.

Poderá retornar pelo cabo de Paus.

14

“O Corpo de Voluntários Realistas foi uma milícia que Fernando VII organizou em 10 de junho de

1823, depois da queda governo liberal na Espanha. Tinha como objetivo evitar o restabelecimento do

governo constitucional e lutar contra os elementos liberais. Dissolveu-se, oficialmente, em 1833, e uma

parte de seus integrantes se uniu às forças do infante Carlos María Isidro, durante a primeira guerra

carlista”.

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John meditou as palavras de seu primogênito e confiou que fosse

assim. Ele lutara na guerra da independência contra Napoleão e conhecia o

selvagem que se voltavam os homens, quando lutavam. Rezou com todas

suas forças, para que Arthur retornasse logo ileso.

Olhou para seu filho caçula e percebeu como esgotado estava.

—Vá descansar, Andrew. Amanhã, continuará nos informando de

tudo. Parece exausto, e nós podemos conter nossa impaciência até então.

Ele seguiu o conselho de seu pai acompanhado por Rosa, que se

despediu de todos com um gesto de mão. Mas Andrew não tinha intenções

de dormir, mas, sim, de voltar a fazer amor com sua esposa sem descanso.

Não podia mover o braço. Pela escuridão do quarto, supôs que

devia ser ainda de madrugada e, em parte, se envergonhou por cair rendido

sem fazer amor com Rosa, de novo, como era sua intenção. Tinha-a

esperado no leito, mas estava tão extenuado que não se deu conta de

quando adormeceu nem de quando ela se meteu entre os lençóis.

Custava-lhe mover-se no leito. Tentou virar-se e, então, se precaveu

que a pequena Branca estava dormindo entre ele e Rosa e lhe esmagava o

braço com seu corpo. A intromissão infantil, mais que lhe incomodá-lo,

arrancou-lhe um sorriso de sorte.

Virou-se, com cuidado, para não despertá-la, e a deslocou para o

travesseiro. A menina seguiu adormecida, sem dar-se conta de nada. Rosa

se removeu, ao receber um golpe de um braço da pequena, mas tampouco

despertou, simplesmente soltou um longo suspiro e seguiu quieta, na

mesma postura.

Andrew afastou um cacho de cabelo negro do rosto de Branca e o

colocou atrás da orelha. Na escuridão do quarto e em completa placidez, o

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rosto de sua filha lhe pareceu ainda mais bonito. Colocou o braço em cima

da cintura de Rosa, que, por instinto, se pegou mais às costas de Branca.

Andrew fechou os olhos e inspirou longamente, antes de voltar a cair em

um sonho profundo.

Tinha entre seus braços o que mais amava no mundo.

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CAPÍTULO 28

O peculiar som das cortinas, ao serem abertas com certa rudeza, o

fez levantar a cabeça dos macios travesseiros. Andrew piscou várias vezes,

para limpar o torpor. Estava sozinho na cama e ignorava em que momento

as duas mulheres de sua vida saíram da habitação. Marcus acabava de

virar-se e se dirigia, com cerimônia, para o closet.

—Volte a correr a cortina — ordenou Andrew, com voz

estrangulada — ou é um homem morto. — O mordomo resmungou entre

dentes, ao escutar a áspera ordem. Felizmente, estava acostumado a esse

tipo de vocabulário por parte de Andrew e também a não lhe fazer caso, na

maioria das vezes.

—Esperam-no no salão — foi sua cortês resposta. Marcus tirou do

armário uma camisa branca perfeitamente engomada e uma calça de

montar.

Ele bocejou, sonoramente. Parecia-lhe que tinha dormido vinte e

quatro horas seguidas. Sentia os músculos relaxados e o coração tranquilo.

—Lady Beresford e a pequena Branca esperam há mais de trinta

minutos. Estão ansiosas, segundo suas palavras, para sair a cavalgar em sua

companhia.

—Que horas são?

—As dez menos quarto.

Essa informação conseguiu que Andrew se incorporasse do leito de

um salto.

—Tão tarde?

—Temo que é uma hora algo incomum — assentiu Marcus.

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300

Andrew se dirigiu para o jarro que o mordomo enchera com um

pouco de água e, nos seguintes vinte minutos, se dedicou ao trabalho de

assear-se e vestir-se, antes de descer à sala de jantar.

Por cima de seu jornal, John Beresford olhou para sua nora, que

repreendia, de forma carinhosa, Branca. A menina golpeava a xícara de

chocolate com a pequena colher, mostrando, assim, a impaciência que

sentia. Levavam duas horas esperando que Andrew aparecesse à sala de

jantar familiar, mas, ante seu atraso, parecia que teriam de esperar um

pouco mais.

—Querida, termine o chocolate.

Branca voltou a segurar a xícara e a levá-la aos lábios, para beber o

último gole que restava, antes de deixá-la, de novo, em seu lugar. Andrew

entrou no aposento com um sorriso de desculpa.

—Sinto ter adormecido.

John entreabriu os olhos, ao tempo em que deixava o jornal dobrado

a um lado da mesa.

—É incrível que não o tenha despertado o escândalo que montou o

pequeno Chris, quando seu irmão e Ágata o levaram de Whitam, na

primeira hora da manhã.

—Espero que não partiram a em razão de minhas palavras de ontem

— meio que se desculpou Andrew.

—Por certo, foi um pouco grosseiro ao dizer isso — espetou John,

com voz autoritária.

—Pai, nem imagina o que significa suportar seu frio aborrecimento.

Andrew se aproximuo de Rosa e a saudou com um beijo nos lábios

que durou mais tempo do que o permitido para um beijo matinal dado em

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301

presença de John. Branca lhe deixou um rastro de chocolate na bochecha,

quando o beijou e, surpreendentemente, ninguém disse nada.

—Está preciosa. — O galanteio era dirigido à pequena Branca.

Andrew pegou a xícara de café que Marcus lhe oferecia e levou a

boca um croissant crocante. Tomou o café da manhã de pé.

John suspirou, resignado. Seu filho seguia com seus costumes.

Continuava saltando todas as normas em cada ocasião que se apresentava, e

o café da manhã dessa manhã não era uma exceção.

—Sabe que me desgosta que esteja de pé, enquanto outros estão

sentados à mesa.

Andrew bebeu o café de um gole e se limpou com o guardanapo,

antes de responder a seu pai.

—Sei, mas não quero atrasar mais o passeio com minhas

encantadoras mulheres. Penso em desfrutar desta maravilhosa manhã no

parque e já levo atraso mais que suficiente.

John fez um gesto negativo, ao ouvir sua explicação, mas não disse

nada.

—Estou preparado.

Branca foi primeira em saltar da cadeira e correr para os braços de

seu pai, que a levantou, com alvoroço. Mas, quando olhou para Rosa, ficou

boquiaberto, de surpresa. Mãe e filha foram vestidas igual a ele. Calça

negra, colete cinza e camisa branca. Estivera tão concentrado em tomar o

café da manhã que não se fixou em seu traje.

—Pensa em cavalgar assim?

Rosa olhou sua roupa e sorriu, maliciosa.

As calças que tinha mandado confeccionar ficavam bastante bem,

embora justas. A camisa branca com babados nos punhos e no peito lhe

dava um ar de bandoleira, que a faixa vermelha ajudava a acentuar.

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Tinha pegado emprestado um colete de Andrew do qual gostava de

muito e que se parecia bastante ao que ele vestia essa manhã. Além disso,

recolheu a longa cabeleira em um rabo bastante singela, mas que resultava

muito cômodo.

—O pai não se importa — disse ela, com um brilho nos olhos, que

Andrew pensou que poderia lhe derreter os ossos.

—Não está muito bonita? — A voz de Branca fez com que

desviasse os olhos de sua esposa para a pequena.

Bonita era pouco, Rosa estava espetacular, pensou Andrew. Mas

não podia sair para cavalgar com aquelas calças, porque ele cairia do

cavalo, ao não poder afastar os olhos dela; daquelas curvas que o

deixaremos louco.

—Retornaremos logo, pai. — Rosa já se inclinava para John, para

lhe dar um beijo na bochecha.

Andrew a seguiu para o vestíbulo, mudo de assombro. Viu-a vestir

as luvas e pegar a capa que Marcus lhe estendia. Depois, voltou-se para ele,

sem que seus olhos deixassem de brilhar. Estendeu as luvas a Branca e lhe

atou a cinta da capa para ajustá-la ao pescoço.

A pequena seguia nos braços de seu pai.

—Esta noite temos que assistir a um jantar em casa do capitão

Damon. — Este era íntimo amigo de John — Deseja celebrar sua volta do

fronte com um jantar formal, e seu pai aceitou em seu nome.

Andrew seguia mudo, observando os movimentos de Rosa. Apesar

de levar a capa negra, podia vislumbrar perfeitamente sua silhueta com as

calças justas. Tragou o nó que sentia na garganta.

—Já cavalgou vestida assim? — perguntou.

Ela negou com a cabeça, e ele suspirou, profundamente aliviado.

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—Prometi a John que somente o faria nesta ocasião. Por você, para

agradá-lo.

Ele se fazia um montão de perguntas. Meses atrás, Rosa se negara

que Branca cavalgasse com calças e, agora, se encontrava com a grata

surpresa de vê-la vestida assim.

—Branca, querida, importa-se de pedir à cozinheira umas bolachas

de ameixa para o caminho? — pediu Andrew e a baixou ao chão.

A menina se apressou a cumprir sua petição e saiu correndo em

direção às cozinhas.

—Por quê? — perguntou, quando ficaram sozinhos.

Estava intrigado. Parecia-lhe inaudito que sua esposa levasse calças

e o cabelo recolhido daquela forma descuidada. Estava arrebatadora, mas

ansiava conhecer o motivo.

Ela o olhou, completamente entusiasmada.

—Porque desejo lhe demonstrar algo. — O coração do Andrew

palpitou com violência dentro de seu peito — Sou a mesma mulher que

conheceu em Hornachuelos e se tiver de vestir calças para convencê-lo

disso...

Deixou o resto da frase sem concluir.

Andrew se aproximava dela, com lentidão. Observando seu rosto, à

medida que lhe explicava o porquê de sua mudança radical. Sustentava-lhe

o olhar de forma serena, com determinação. E não se moveu, apesar de que

lhe tremia o joelho esquerdo.

Nas semanas em que Andrew estivera longe, combatendo, havia

sentido o maior medo de sua existência, e esse terror justificado a perdê-lo

a fizeram chegar a uma conclusão fundamental: não esbanjar o tempo nem

as energias em convencionalismos. Ele queria recuperar a mulher pela qual

se apaixonou, e ela jurou que lhe daria. Compreendeu que saltar algumas

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normas de etiqueta não supunha um descalabro em sua existência,

justamente o contrário; poderia desfrutar da liberdade, sem a pressão nem a

rigidez do protocolo, ao menos quando estivesse a seu lado.

E essa manhã começava o princípio de sua liberação.

—Sinto-me imensamente feliz — disse Andrew, com a voz cheia

de paixão.

Ela se colou a seu corpo, excitando-o, sem intenção.

—É maravilhoso pertencer a sua família. — A voz dela soou

candente, sensual e cheia de uma emoção que o embargou por completo —

Vou ser muito feliz a seu lado e vamos criar um montão de crianças

maravilhosas aqui em Whitam.

Andrew pôs as palmas das mãos em seus ombros, estava a ponto de

beijá-la, mas, se o fizesse, já não poderia parar. E ir montar se iria ao diabo.

—Está tentando me dizer que está grávida? — O brilho de seus

olhos se intensificou com a pergunta.

Rosa fez um gesto negativo que levou a decepção às pupilas de

Andrew.

—Você gostaria que estivesse? — perguntou, à sua vez.

Ele afirmou várias vezes e de forma contundente.

—Desejo um montão de meninas tão formosas e inteligentes como

Branca. Entre dez e doze acredito que seria uma cifra aceitável. — ficou

um momento calado, como se meditasse — Mas me conformarei com seis

ou sete.

Rosa arregalou os olhos. Acreditava que não tinha ouvido bem.

—Tantas? — perguntou, para provocá-lo.

A mão dele a segurou pela nuca e foi atraindo-a muito devagar, sem

piscar, para não perder o amor que refletia o rosto dela, ao olhá-lo.

—Todas as que queira me dar.

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—Nenhum varão? — atreveu-se a perguntar Rosa.

Andrew negou, repetidamente, com a cabeça.

—Não posso me arriscar a ter um que se pareça com o tio

Christopher ou a Arthur. Ficaria louco e viveria o resto de meus dias me

amaldiçoando por isso.

Rosa soltou uma gargalhada, pela insólita resposta.

—Por que é tão maravilhoso? — disse-o com uma ansiedade que

lhe provocou um frio no estômago.

—Porque amo você — respondeu ele, simplesmente.

Rosa inspirou fundo, sem afastar os olhos dos dele.

—Diga-me isso de novo, porque cada vez que o faz, sinto que me

enche de força e coragem para enfrentar o que quer que seja.

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EPÍLOGO

A carruagem continuava seu percurso com seus dois ocupantes em

completo silêncio. Andrew continuava com o olhar cravado em Rosa que,

envolta em sua capa de seda, olhava as luzes do porto, enquanto as rodas

giravam sobre a pavimentação cinza. O pequeno farol de gás projetava uma

tênue luz que iluminava o rosto feminino e o fazia brilhar sob a lua. O

decote do vestido tinha a renda descosturada na parte esquerda e um rasgo

na cintura que já não tinha acerto.

Mas Rosa não estava zangada com ele, apesar de ser a causa de seu

desalinho.

O jantar em Blandford Abbey foi muito interessante, para não dizer

insólito. Durante o jantar, Rosa esteve sentada em frente a ele, por petição

dela, embora Andrew ignorasse o motivo, mas, quando sentiu seu pé

deslizar-se por sua panturrilha, na metade do jantar, soube a causa dessa

mudança de lugar. Ao princípio, pensou que fosse um roce acidental, nada

na postura dela indicava o contrário, pois Rosa seguia conversando com o

comensal que tinha a sua direita com rosto imperturbável e com toda sua

atenção posta na descrição dos puros-sangues árabes. A segunda ocasião

em que sentiu o deslizamento do pé feminino sofreu um sobressalto que

quase o fez atirar a taça de vinho. Dessa vez, fora muito mais ousada, e

seus dedos lhe roçaram a virilha, provocando uma ereção extremamente

dolorosa. Mas Andrew se desforrou com acréscimo pelo jogo que ela

iniciara, e o resultado era o desalinho que, agora, mostrava na roupa e no

cabelo.

—De verdade não está zangada comigo?

Rosa o olhou e mordeu o lábio inferior, antes de lhe responder.

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—Muitíssimo — disse com olhos brilhantes — Mas por outros

motivos que nada têm a ver com o que imagina.

Ele imaginava muito mais do que ela acreditava.

Os carinhos que trocaram no aposento onde guardavam as capas e

os chapéus foi memorável, mas muito insatisfatório, porque não pôde dar

rédeas soltas à paixão que o consumia. Passou toda a velada excitado,

desejando retornar a Whitam para fazer amor como um louco durante toda

a noite.

—Lamento haver rasgado seu vestido — se desculpou, com

sinceridade.

Ela baixou as pálpebras para olhar o decote.

—Penso em fazer que me pague, pelo menos, uns quantos vestidos

de festa.

—Então, não está zangada? — voltou a perguntar. Sua resposta lhe

importava muitíssimo.

Rosa o olhou, com as pupilas brilhantes de paixão.

—Não pode começar algo, se não tiver intenção de terminá-lo — o

repreendeu, mas com um tom de voz tão sensual que conseguiu lhe acelerar

o pulso e a respiração.

Andrew inspirou com força, e, ela, ao escutá-lo, abandonou seu

lugar na carruagem e se sentou nos joelhos dele, ao tempo em que

levantava a saia com claras intenções de provocá-lo.

Esse descaramento feminino gostava e o martirizava por igual.

—Busca uma compensação? — disse ele, com uma voz que soou

estrangulada; ela riu, em resposta.

—Uma dúzia, mas me conformarei com um incentivo, antes de

chegar em casa.

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Andrew a fez dar a volta e a sentou sobre seus joelhos de costas a

ele. Acariciou-lhe as coxas acetinadas com a palma quente.

—Excita-me que não leve as meias.

Em realidade, tudo nela o estimulava, provocava-lhe uma paixão

extrema.

Rosa não respondeu, porque a mão dele se deteve no vértice de suas

coxas, enquanto metia a outra no decote de seu vestido, lhe rasgando ainda

mais a renda.

—Adoro tocar você, cheirar.

O fôlego dele lhe acariciou a base do pescoço e lhe provocou

centenas de cócegas.

—Recoste sobre mim, para que possa lhe dar a compensação que

anda procurando há horas. — Ela obedeceu, submissa.

Apoiou as costas no robusto torso masculino, e, ao fazê-lo, ele pôde

tocá-la de forma mais íntima.

A mão de Andrew acariciou seu púbis, coberto pelas finas calcinhas

e, com os dedos, lhe beliscou o mamilo até ficar o ereto. Rosa tinha

começado a ofegar, enquanto desfrutava das carícias que lhe prodigalizava.

Quando introduziu seus dedos sob o tecido, arqueou as costas e abriu mais

as pernas. Ele começou a tocá-la de forma tão suave que ela teve que

levantar os quadris para manter o contato.

—É preciosa — disse Andrew ao ouvido, quando a ouviu gemer de

forma entrecortada — E um vulcão em erupção, que abrasa tudo o que

toca.

A mão dele se retirava de seu centro, para voltar, instantes depois, à

carga, deixando-a louca. Andrew aumentava seu desejo a um ritmo

frenético.

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—Agora mesmo, cheira a ambosia. O néctar doce que estou

impaciente por saborear...

Deslizou a língua pela base do pescoço e lhe lambeu o lóbulo da

orelha, excitando-a.

—Penso em fazer amor com você durante toda a noite. Estarei

dentro de você até que não possa suportar mais. E, então, quando me

suplicar...

—Andrés... — protestou, com um fio de voz — Fala... Muito!

Esmagou a mão dele com a sua, para mantê-la quieta, mas Andrew

utilizou os dedos para lhe acariciar o clitóris e, então, tudo estalou a seu

redor.

Enquanto as quebras de onda de prazer passavam, ele seguiu lhe

sussurrando palavras formosas ao ouvido.

Quando Rosa desceu da carruagem, Andrew reprimiu um

impropério. Parecia uma lavadeira que acabou de derrubar-se na praça do

mercado por uma hortaliça. Antes de entrar, ela alisou o vestido, como se

acreditasse, realmente, que poderia recompor seu aspecto, embora se visse

adorável, ao tentar.

—Estou decente?

Andrew se negou a responder com sinceridade, porque, se o fizesse,

ia criar um problema. Rosa continuava arrumando o cabelo, solto e

desgrenhado. Subiu o decote e tentou esconder o rasgo da renda.

Agarrou a mão que lhe oferecia para subir a escada de entrada à

mansão, mas, antes de tocar a aldrava, Marcus abriu a porta e a manteve

aberta para que entrassem.

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—Lorde e lady Beresford, esperam no salão — anunciou com voz

solene, como era habitual nele.

Andrew suspirou. Não gostava nem um pouco atender a visita de

seu irmão Christopher, porque o que realmente desejava era deitar Rosa na

cama e fazer amor com ela até o dia seguinte. Lamentou que o pai de

ambos seguisse de visita em Crimson Hill, com o duque de Arun. Sem ele

em casa, não ficava mais remédio que atendê-los de forma pessoal. Devlin

Penword tinha celebrado um jantar formal, e sua irmã Aurora insistiu muito

que John assistisse, até perdendo o jantar oferecido pelo capitão Damon.

Mas seu pai era um homem de muitos recursos: apresentara seus respeitos

em Blandford Abbey e, depois, partiu rumo à casa de sua filha Aurora. E,

desse modo, contentou os dois anfitriões.

Ágata abraçou Rosa inclusive antes que esta chegasse ao centro do

salão.

—Alguém parece ter sofrido um acidente. — O comentário de

Christopher sobre a aparência de sua cunhada fez com que Rosa voltasse a

examinar seu traje, mas além do rasgo, tudo parecia estar bem.

Ela não podia saber que, sem o amparo da capa, tinha uma

aparência caótica e desordenada. Algo incomum nela.

—Enganchei o vestido em uma das figuras de ferro que tanto

abundam em Blandford Abbey — explicou, sem convencer, com suas

palavras, a nenhum dos ali presentes.

Christopher arqueou as sobrancelhas, ao escutá-la. E, ao ver o

sorriso pedante no rosto de seu irmão mais novo, soube qual foi à figura

que lhe destroçou o bonito vestido.

—Tem um telegrama do comando de Madrid. Trouxeram-no faz

uns trinta minutos.

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311

Rosa levou a mão à garganta, para deter os batimentos de seu

coração. Não queria nem pensar na possibilidade de que Andrew tivesse

que retornar à frente.

Ele agarrou o papel dobrado e o leu com atenção. Os segundos que

se passaram a seguir resultaram muito longos para as três pessoas que

esperavam e a entrada de John na sala, seguido de lorde Justin Penword,

não desfez o mutismo.

John olhou para seus filhos e suas noras e, ao fixar o olhar em Rosa,

acreditou que seus olhos o enganavam.

—O que lhe ocorreu? — perguntou.

Parecia-lhe inaudito que sua nora estivesse no salão com

semelhante aparência. Não era próprio dela. Rosa era sempre o paradigma

do decoro e o recato.

—Andrew recebeu notícias da Espanha — respondeu ela, sem

afastar os olhos de seu marido e sem precaver-se da pergunta que lhe

formulou seu sogro sobre seu aspecto.

Respirava com muita dificuldade.

—Alonso de Lara foi sequestrado por uma guerrilha burguesa.

Pedem um resgate de cinquenta mil reais para liberá-lo.

—Capturado por uma guerrilha? — repetiu Rosa, enquanto Ágata

continha um gemido de horror.

Mas o sorriso de Andrew a deslocou por completo. O que

significava aquela amostra de diversão ante uma notícia tão terrível?,

perguntou-se.

—É a guerrilha que lidera Aracena de Velasco, a filha do conde de

Ayllón.

Rosa piscou ainda mais confusa. Aracena e Isabel eram suas mais

íntimas amigas e fazia muito tempo que não sabia nada sobre elas. Ambas

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embarcaram para a Inglaterra procurando o pai que desconhecia sua

existência.

—A cunhada de meu irmão Jamie comanda uma guerrilha? Já! Esta

sim que é boa — exclamou o herdeiro de Arun.

—Aracena de Velasco é cunhada de seu irmão? — Rosa fez a

pergunta, sem compreender absolutamente nada. Isabel casou com um

inglês?, perguntou-se atônita.

Justin a olhou com interesse, mas foi John quem respondeu:

—Dona Isabel de Velasco contraiu núpcias com lorde Jamie

Penword, irmão de Justin e cunhado de minha filha Aurora.

Rosa inspirou com força. Isabel vivia muito perto dela. Por que

ninguém disse nada? Porque ignoravam que eram amigas. Isabel, casada!

—Vive perto daqui? — atreveu-se a perguntar.

—Em Crimson Hill — respondeu Justin, adiantando-se a John.

Rosa fechou os olhos, porque a mansão do duque estava muito

perto de Whitam. Mas não tinha visto sua amiga, quando assistiu a um

jantar em sua honra após retornar de Sevilha.

—Não a vi, quando visitei Crimson Hill — alegou, em voz muito

baixa.

—Meu irmão Jamie e sua esposa estão na Escócia — explicou

Justin, com voz enérgica — embora presuma que retornarão logo.

Por isso, não tinham se encontrado.

—Alonso deve estar furioso — disse, de repente, Andrew.

Furioso era dizer pouco, pensou Rosa. Devia estar frenético e

irritado.

—E o que isso tem que a ver com você? — A pergunta foi

formulada Ágata, que seguia analisando o conteúdo do telegrama.

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—O general Francisco José de Santillana e Murillo me oferece a

oportunidade de negociar o resgate. Como familiar de Alonso de Lara,

acredita que tenho não só o direito, mas também a obrigação de ajudá-lo.

—Não pode ser! — exclamou Rosa, horrorizada.

Andrew não podia retornar a Espanha nem intervir em um resgate,

embora o prisioneiro fosse seu próprio irmão. Mas não pôde objetar nada,

porque, no vestíbulo, se ouviram, de repente, uns gritos irados. Era a voz de

Arthur e a de uma desconhecida.

John levou a mão ao peito, ante sua intuição.

—Justin, me sirva um conhaque, por favor.

—Pai! Encontra-se bem? — Depois das palavras de Christopher,

todos os olhos se dirigiram da porta que comunicava com o vestíbulo ao

rosto de John, que tinha empalidecido por completo.

Uns instantes depois, uma moça pequena fez sua entrada no salão,

empurrada por um Arthur de rosto iracundo.

—Volte a dizer algo e juro que lhe arrancarei a língua! — a

repreendeu, com voz grave e áspera.

Ela se voltou para ele com olhos que despediam um fogo abrasador.

—Nunca, jamais volte a me dirigir a palavra! Porque não respondo

por meus atos.

Todos no aposento olhavam a cena como se observassem uma peça

de teatro. Arthur foi diretamente para a mesinha onde estavam às bebidas e

se serviu uma generosa ração de uísque, que tomou de um gole.

John olhava sem piscar para a moça que ficou de pé junto à

poltrona de pele. Por sua postura, intuía que não desejava estar ali. Vestia-

se de forma um tanto estranha, com um chapéu que lhe cobria toda a

cabeça e parte dos ombros.

—Arthur, o que...?

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John foi incapaz de continuar a frase, quando seu filho se voltou

para ele. Tinha um olho arroxeado, o lábio inferior partido e os nódulos da

mão com que sustentava o copo de licor com feridas que deviam ter

sangrado.

Arthur olhou para seu pai, que lhe sustentava o olhar com uma

pergunta nos olhos.

—Boa noite, pai, presumo que não esperava ver-me. — John seguia

olhando a moça, com interesse, como o resto da família — Acredito que

devo fazer as honras correspondentes e realizar as oportunas

apresentações...

Mas, antes de fazê-lo, serve-se outra medida de licor, embora nesta

ocasião o tomou em dois goles.

Finalmente, aproximou-se onde estavam todos, perplexos, e disse:

—Família, apresento-lhes lady Beresford, mi... Minha esposa. — A

vacilação tinha sido intencionada.

John tomou assento, de repente, e soltou o copo, que terminou

estatelando-se no chão. Mas nenhum deles desviou os olhos para o som de

cristais quebrados, porque seguiam olhando fixamente a recém-chegada.

O olhar atônito de seu pai e de Christopher fez com que Arthur

soltasse uma gargalhada carente de humor. Ágata e Rosa mal se atreviam a

respirar. Justin tinha cruzado os braços e olhava para moça com insolente

descaramento, embora resultasse impossível ver seu rosto, porque seu

estranho chapéu o tampava por completo.

Arthur soube o que passou pela mente de seu pai e de seu irmão,

nesse preciso instante, e decidiu enfrentar suas perdas. Cortar pela raiz as

especulações.

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—E, para sua informação, não está grávida nem vai estar nunca —

rematou, antes de pegar a garrafa e sair pela porta — E, agora, vou agarrar

a bebedeira que vim procurar e da qual preciso tanto como respirar.

Depois de sua marcha, o silêncio caiu sobre os presentes como uma

pesada laje. Podiam-se ouvir as respirações de cada um. Christopher ia

dizer algo, quando no vestíbulo se ouviu o tinido de umas esporas.

Imediatamente depois, um homem entrou no grande salão de Whitam Hall.

Tinha uma estatura impressionante; era tão alto ou mais que o

próprio Christopher e vestia-se de forma muito estranha. Não tinha

descoberto a cabeça e o chapéu que levava era de asa larga. Mas o

escrutínio de Christopher foi muito além da cabeça do desconhecido. Ao

redor do pescoço, levava um lenço de algodão vermelho ao que afrouxara o

nó, de modo que ficava bastante folgado sobre o pescoço. As calças eram

muito diferentes das que vira, anteriormente, mas não podia apreciar bem

pelas rachaduras que cobriam suas pernas. Calçava botas altas com ponteira

pronunciada, possivelmente, para facilitar que o pé encaixasse no estribo.

Mas o mais surpreendente era o rifle que tinha apoiado no ombro e que lhe

dava um aspecto bastante perigoso.

O homem fez um varrido com o olhar, detendo-se em cada uma das

pessoas que havia no salão. Seus olhos escuros não mostraram nem

hesitação nenhuma vacilação, ao passar de um rosto a outro com imensa

curiosidade e absoluto descaramento.

—E você é...? — perguntou Christopher, sem sair ainda do

assombro que lhe havia produzido a inesperada visita. Deu um passo

adiante, sem afastar o olhar do rosto torrado pelo sol, mas foi à moça a que

tomou a iniciativa nas apresentações.

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—Desculpe a grosseria de Arthur Beresford, milord — disse, com

voz cálida, embora um tanto nervosa — Apresento meu irmão Liberty

Matthew.

Os olhos de Christopher se cravaram na pequena mulher que havia

se interposto entre o mencionado e ele, como se tentasse protegê-lo.

John pensou que as dificuldades retornavam, e que a moça que

tinha frente a si, com aquele chapéu muito grande para sua pequena

estatura, não era a sobrinha do embaixador inglês, a não ser uma completa

desconhecida que falava com acento das colônias. Maldita fosse! O que

fizera Arthur em Salamanca para terminar casado com uma americana? E

por que diabos chegou a Whitman Hall tão furioso? John não entendia

nada, mas estava disposto a averiguá-lo.

FIM

Família Beresford

1 – Me Ame, Canalha

2 – Me Beije, Canalha

NT. A autora está escrevendo a história do terceiro irmão, ainda sem

data de lançamento.

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EEbbooookkss ddiissttrriibbuuííddooss sseemm ffiinnss lluuccrraattiivvooss ee ddee ffããss ppaarraa ffããss..

AA ccoommeerrcciiaalliizzaaççããoo ddeessttee pprroodduuttoo éé eessttrriittaammeennttee pprrooiibbiiddaa