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186 “Trabalho, obra, ação” 1 (Hannah Arendt) Tradução de Adriano Correia Revisão de Theresa Calvet de Magalhães Resumo: Em meados da década de 1960, quando a relevância do pen- samento para a moralidade se convertia em uma das preocupações cen- trais de Hannah Arendt, ela retoma, no texto aqui traduzido, sua inusitada distinção entre as atividades fundamentais do trabalho, da obra e da ação. Partindo da questão “em que consiste uma vida ativa?”, ela revisita e repõe suas análises de A condição humana, ocupando-se novamente com as implicações das inversões hierárquicas entre estas atividades para a vida, para o mundo e, principalmente, para a plurali- dade humana. No mesmo sentido, ela examina os princípios que orien- tam as atividades do animal laborans, do homo faber e do homem de ação, assim como seu significado para a afirmação da liberdade humana e da dignidade da política. Para Hannah Arendt, este é o ponto de par- tida para pensar sobre o que estamos fazendo. Durante esta breve hora, eu gostaria de levantar uma questão apa- rentemente estranha. Minha questão é a seguinte: em que consiste uma vida ativa? O que fazemos quando estamos ativos? Ao propor esta ques- tão, admitirei como válida a antiga distinção entre dois modos de vida, entre uma vita contemplativa e uma vita activa, que encontramos em nossa tradição de pensamento filosófico e religioso até o limiar da era moderna, e que quando falamos de contemplação e ação, nos referimos não apenas a certas faculdades humanas, mas a dois modos de vida dis- tintos. Sem dúvida, a questão possui alguma relevância, porque mesmo se não contestarmos a suposição tradicional de que a contemplação é de

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    Trabalho, obra, ao1

    (Hannah Arendt)

    Traduo de Adriano CorreiaReviso de Theresa Calvet de Magalhes

    Resumo: Em meados da dcada de 1960, quando a relevncia do pen-samento para a moralidade se convertia em uma das preocupaes cen-trais de Hannah Arendt, ela retoma, no texto aqui traduzido, suainusitada distino entre as atividades fundamentais do trabalho, daobra e da ao. Partindo da questo em que consiste uma vida ativa?,ela revisita e repe suas anlises de A condio humana, ocupando-senovamente com as implicaes das inverses hierrquicas entre estasatividades para a vida, para o mundo e, principalmente, para a plurali-dade humana. No mesmo sentido, ela examina os princpios que orien-tam as atividades do animal laborans, do homo faber e do homem deao, assim como seu significado para a afirmao da liberdade humanae da dignidade da poltica. Para Hannah Arendt, este o ponto de par-tida para pensar sobre o que estamos fazendo.

    Durante esta breve hora, eu gostaria de levantar uma questo apa-rentemente estranha. Minha questo a seguinte: em que consiste umavida ativa? O que fazemos quando estamos ativos? Ao propor esta ques-to, admitirei como vlida a antiga distino entre dois modos de vida,entre uma vita contemplativa e uma vita activa, que encontramos emnossa tradio de pensamento filosfico e religioso at o limiar da eramoderna, e que quando falamos de contemplao e ao, nos referimosno apenas a certas faculdades humanas, mas a dois modos de vida dis-tintos. Sem dvida, a questo possui alguma relevncia, porque mesmose no contestarmos a suposio tradicional de que a contemplao de

  • uma ordem superior ao ou a de que toda ao efetivamente ape-nas um meio cujo verdadeiro fim a contemplao, no podemos duvi-dar e ningum jamais duvidou de que seja bastante possvel paraos seres humanos passar pela vida sem jamais se entregarem contem-plao, ao passo que, por outro lado, ningum pode permanecer emestado contemplativo durante toda sua vida. Em outras palavras, a vidaativa no apenas aquela em que a maioria dos homens est engajada,mas ainda aquela de que nenhum homem pode escapar completa-mente. Pois prprio da condio humana que a contemplao perma-nea dependente de todos os tipos de atividade ela depende dotrabalho para produzir tudo o que necessrio para manter vivo o orga-nismo humano, depende da fabricao para criar tudo o que precisopara abrigar o corpo humano e necessita da ao para organizar a vidaem comum dos muitos seres humanos, de tal modo que a paz, a condi-o para a quietude da contemplao, esteja assegurada.

    Como comecei com a nossa tradio, eu justamente descrevi as trsprincipais articulaes da vida ativa de um modo tradicional, isto ,como servindo aos fins da contemplao. inteiramente natural que avida ativa tenha sido descrita sempre por aqueles que seguiam eles pr-prios o modo contemplativo de vida. Por conseguinte, a vita activa sem-pre foi definida do ponto de vista da contemplao; comparados com aabsoluta quietude da contemplao, todos os tipos de atividade humanapareciam ser semelhantes, na medida em que se caracterizavam pelain-quietude, por algo negativo: pela a-skholia ou pelo nec-otium, ono-cio [non-leisure]2 ou a ausncia das condies que tornam possvela contemplao. Comparadas com esta atitude de quietude, todas as dis-tines e articulaes no interior da vita activa desaparecem. Considera-das do ponto de vista da contemplao, no importa o que perturba anecessria quietude j que ela perturbada.

    Tradicionalmente, portanto, a vita activa recebeu sua significao davita contemplativa; foi atribuda a ela uma dignidade muito restrita por-que servia as necessidades e exigncias da contemplao em um corpovivo. O cristianismo, com sua crena em um alm, cujas alegrias seanunciam nos deleites da contemplao, conferiu uma sano religiosaao rebaixamento da vita activa 3, enquanto que, por outro lado, o

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    mandamento de amar ao prximo atuou como um contrapeso a estaavaliao desconhecida pela Antigidade. Mas, a determinao da pr-pria ordem, de acordo com a qual a contemplao era a mais elevadadas faculdades humanas era grega, e no crist, em sua origem; coinci-diu com a descoberta da contemplao como o modo de vida do fil-sofo, que foi considerado, enquanto tal, superior ao modo de vidapoltico do cidado na plis. O essencial da questo, que posso mencio-nar aqui apenas de passagem, que o cristianismo, ao contrrio do quecom freqncia se admitiu, no elevou a vida ativa a uma posio supe-rior, no a salvou de ser uma vida derivativa e no a considerou, pelomenos no teoricamente, como algo que possui sua significao e seufim em si mesma. E uma mudana nesta ordem hierrquica era de fatoimpossvel enquanto a verdade era o nico princpio abrangente paraestabelecer uma ordem entre as faculdades humanas, uma verdade que,ademais, era compreendida como revelao, como algo essencialmentedado ao homem, distinta da verdade que ou o resultado de alguma ati-vidade mental pensamento ou raciocnio ou aquele conhecimentoque adquiro por meio da fabricao.

    Portanto, surge a questo: porque a vita activa, com todas as suasdistines e articulaes, no foi descoberta aps a ruptura modernacom a tradio e a inverso final de sua ordem hierrquica, are-valorao4 de todos os valores por Marx e Nietzsche? E a resposta,embora bastante complexa na anlise efetiva, pode ser resumida breve-mente aqui: da prpria natureza da famosa inverso dos sistemas filo-sficos e hierarquias de valores que o prprio quadro conceitualpermanea intacto. Isso verdadeiro especialmente para Marx, queestava convencido de que era suficiente virar Hegel de cabea parabaixo para encontrar a verdade isto , a verdade do sistema hegeli-ano, que a descoberta da natureza dialtica da histria.

    Permitam-me explicar brevemente como esta identidade se mostraem nosso contexto. Quando enumerei as principais atividades humanas Trabalho-Obra-Ao era bvio que a ao ocupava a posio maiselevada. Na medida em que a ao est ligada esfera poltica da vidahumana, esta apreciao est de acordo com a pr-filosfica epr-platnica, opinio corrente da vida da plis grega. A introduo da

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  • contemplao como o ponto mais alto da hierarquia teve como resul-tado que esta ordem foi de fato remanejada, embora nem sempre emuma teoria explcita (freqentemente se prestou uma homenagem pura-mente verbal velha hierarquia, quando ela j tinha sido invertida noensinamento efetivo dos filsofos). Considerada do ponto de vista dacontemplao, a atividade mais elevada no era a ao, mas a fabrica-o; a ascenso da atividade do arteso na escala de valoraes fez suaprimeira apario dramtica nos dilogos platnicos5. O trabalho, claro, permaneceu no nvel mais baixo, mas a atividade poltica comoalgo necessrio vida de contemplao s era agora reconhecida namedida em que podia ser prosseguida da mesma maneira que a ativi-dade do arteso. S se podia esperar que a ao poltica produzisseresultados duradouros se fosse considerada imagem da atividade dafabricao. E tais resultados duradouros significavam paz, a paz necess-ria contemplao: nenhuma mudana.

    Se considerarmos agora a inverso na era moderna, percebemosimediatamente que sua caracterstica mais importante a este respeito sua glorificao do trabalho, certamente a ltima coisa que qualquermembro de uma das comunidades clssicas, seja ela Roma ou a Grcia,teria considerado como digna desta posio. Entretanto, no momentoem que nos aprofundamos mais neste assunto, percebemos que nofora o trabalho enquanto tal que ocupou esta posio (Adam Smith,Locke e Marx so unnimes em seu menosprezo das tarefas servis, dotrabalho no especializado que serve apenas ao consumo), mas o traba-lho produtivo6. Mais uma vez, o padro dos resultados duradouros overdadeiro estalo. Assim, Marx, certamente o maior dos filsofos dotrabalho, tentou constantemente re-interpretar o trabalho imagem daatividade da fabricao novamente custa da atividade poltica. Semdvida, as coisas haviam mudado. A atividade poltica no era mais vistacomo o estabelecimento de leis imutveis que fabricariam uma comu-nidade poltica, que teriam como resultado final um produto confivel,parecendo exatamente tal como foi projetado pelo fabricante comose as leis e as constituies fossem coisas da mesma natureza que a mesafabricada pelo carpinteiro de acordo com o projeto que tinha em menteantes de comear a faz-la. Presumia-se agora que a atividade poltica

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    faz a histria [make history] uma expresso que apareceu pela pri-meira vez em Vico7 e no uma comunidade poltica; e esta histriatinha, como todos sabemos, seu produto final, a sociedade sem classesque seria o fim do processo histrico, tal como a mesa efetivamente ofim do processo da fabricao. Em outras palavras, uma vez que no nvelterico, os grandes re-valoradores [re-evaluators] dos velhos valores nofizeram seno virar as coisas de cabea para baixo, a velha hierarquia nointerior da vita activa quase no foi perturbada; os velhos modos depensar prevaleceram e a nica distino relevante entre a nova e a velhahierarquia foi a de que esta ltima, cuja origem e significncia repousa-vam na real experincia da contemplao, tornou-se altamente questio-nvel. Pois o verdadeiro evento que caracteriza a era moderna a esterespeito era que a prpria contemplao tornara-se sem sentido8.

    No lidaremos com este evento aqui. Em vez disso, aceitando a hie-rarquia mais antiga, pr-filosfica, proponho examinar estas atividadeselas mesmas. E a primeira coisa que talvez j tenham notado, a minhadistino entre trabalho [labor] e obra [work]9, que provavelmente vosparecia um pouco incomum. Retirei-a de uma observao um tantocasual de Locke, que fala do trabalho de nosso corpo e da obra de nos-sas mos10. (Os trabalhadores, na linguagem aristotlica, so aquelesque com seus corpos atendem s necessidades da vida11). A evidnciafenomnica a favor desta distino bastante impressionante para serignorada e, no entanto, um fato que, com exceo de umas poucasconsideraes esparsas e o importante testemunho da histria social einstitucional, no h praticamente nada para apia-la.

    Contra esta escassez de evidncia encontra-se o fato simples e per-sistente de que toda lngua europia, antiga ou moderna, contm duaspalavras etimologicamente independentes para o que viemos a conside-rar como a mesma atividade: assim, o grego distinguia ponein de erga-zesthai, o latim laborare de facere ou fabricari, o francs travailler deouvrer, o alemo arbeiten de werken. Em todos estes casos, os [termos]equivalentes de trabalho tm uma conotao inequvoca de experin-cias corporais, de fadigas e penas; e na maioria dos casos eles tambmso usados, de modo bastante significativo, para as dores do parto. Oltimo a utilizar esta conexo original foi Marx, que definiu o trabalho

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  • como a reproduo da vida individual e a gestao, a produo deuma vida alheia12, como a reproduo da espcie.

    Se deixarmos de lado todas as teorias, especialmente as teoriasmodernas do trabalho depois de Marx, e seguirmos unicamente esta evi-dncia etimolgica e histrica, bvio que o trabalho uma atividadeque corresponde aos processos biolgicos do corpo, que ele , comodisse o jovem Marx, o metabolismo entre o homem e a natureza13 ou omodo humano deste metabolismo que partilhamos com todos os orga-nismos vivos. Ao trabalhar, os homens produzem as necessidades vitaisque devem alimentar o processo vital do corpo humano. E uma vez queeste processo vital, embora nos conduza do nascimento at a morte emuma progresso retilnea de declnio, em si mesmo circular, a prpriaatividade do trabalho tem de seguir o ciclo da vida, o movimento circu-lar de nossas funes corporais, o que significa que a atividade do traba-lho nunca chega a um fim enquanto durar a vida; ela infinitamenterepetitiva. Diferentemente da atividade da fabricao, cujo fim atin-gido quando o objeto est terminado, pronto para ser adicionado aomundo comum das coisas e dos objetos, a atividade do trabalho se movesempre no mesmo crculo prescrito pelo organismo vivo14, e o fim desuas fadigas e penas s chega com o fim, isto , com a morte do orga-nismo individual.

    Em outras palavras, o trabalho produz bens de consumo, e trabalhare consumir so apenas dois estgios do sempre-recorrente ciclo da vidabiolgica. Estes dois estgios do processo vital seguem-se um ao outroto intimamente que quase constituem um mesmo movimento, o qual,mal termina, tem de comear tudo de novo15. O trabalho, diferentementede todas as outras atividades humanas, permanece sob o signo da neces-sidade, a necessidade de subsistir16, como Locke costumava dizer, ou aeterna necessidade imposta pela natureza, nas palavras de Marx. Por-tanto, a verdadeira meta da revoluo em Marx no meramente aemancipao das classes trabalhadora ou operria, mas a emancipaodo homem em relao ao trabalho. Pois o reino da liberdade comeasomente quando o trabalho determinado pela carncia e pela urgnciadas necessidades fsicas termina17. Esta emancipao, como sabemosagora, na medida em que mesmo possvel, no se d com a

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    emancipao poltica a igualdade de todas as classes de cidados ,mas atravs da tecnologia. Eu disse na medida em que isso possvel, ecom esta reserva quis dizer que o consumo, enquanto um estgio domovimento cclico do organismo vivo, tambm em certo sentido traba-lhoso [laborious].

    Os bens de consumo, o resultado imediato do processo de trabalho,so as menos durveis das coisas tangveis. So, como assinalou Locke,de curta durao, de modo que se no forem consumidos se dete-rioraro e perecero por si prprios18. Depois de uma breve permann-cia no mundo, retornam ao processo natural que os forneceu, sejaatravs da absoro no processo vital do animal humano, seja por dete-riorao; em sua forma manufaturada, eles desaparecem mais rapida-mente que qualquer outra parte do mundo. Eles so as menosmundanas e, ao mesmo tempo, as mais naturais e necessrias de todasas coisas. Embora sejam manufaturados, eles vm e vo, so produzidose consumidos, de acordo com o sempre-recorrente movimento cclicoda natureza19. Por conseguinte, no podem ser acumulados e armaze-nados20, como seria necessrio se tivessem de servir ao principal prop-sito de Locke: estabelecer a validade da propriedade privada no direitoque os homens tm de possuir seu prprio corpo.

    Mas, enquanto o trabalho, no sentido de produo de qualquer coisadurvel algo que sobrevive prpria atividade e at mesmo ao tempode vida do produtor , bastante improdutivo e ftil, ele altamenteprodutivo em um outro sentido. A potncia de trabalho do homem talque ele produz mais bens de consumo do que necessrio para sua pr-pria sobrevivncia e a de sua famlia. Esta abundncia, por assim dizer,natural do processo de trabalho permitiu aos homens escravizar ouexplorar seus semelhantes, liberando-se assim do fardo da vida; eembora esta liberao dos poucos tenha sido alcanada sempre pelouso da fora por uma classe dominante, nunca teria sido possvel semessa fertilidade inerente ao prprio trabalho humano. Contudo, mesmoessa produtividade especificamente humana uma parte integrante danatureza e participa da superabundncia que vemos em toda parte nolar da natureza. No seno um outro modo do crescei e multipli-cai-vos21, em que como se a voz da prpria natureza falasse conosco.

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  • Uma vez que o trabalho corresponde condio da prpria vida,participa no apenas das suas fadigas e penas, mas tambm da mera feli-cidade com que podemos experimentar o fato de estarmos vivos. Abno ou a alegria do trabalho22, que desempenha um papel toimportante nas teorias modernas do trabalho, no uma noo vazia. Ohomem, o autor do artifcio humano, que designamos mundo para dis-tingui-lo da natureza, e os homens, que esto sempre envolvidos unscom os outros por meio da ao e da fala, no so de modo algum seresmeramente naturais. Mas, na medida em que ns tambm somos apenascriaturas vivas, o trabalho o nico modo de podermos tambm perma-necer e voltear com contento no crculo prescrito pela natureza, afadi-gando-se e descansando, trabalhando e consumindo, com a mesmaregularidade feliz e sem propsito com a qual o dia e a noite, a vida e amorte sucedem um ao outro. A recompensa das fadigas e penas, emborano deixe coisa alguma atrs de si, at mais real, menos ftil que qual-quer outra forma de felicidade. Ela repousa na fertilidade da natureza,na confiana serena de que aquele que, nas fadigas e penas, fez suaparte, permanece uma parte da natureza, no futuro de seus filhos e dosfilhos de seus filhos. O Antigo Testamento, que, ao contrrio da Antigi-dade clssica, sustentava que a vida sagrada e que, por conseguinte,nem a morte nem o trabalho so um mal (certamente no como umargumento contra a vida), mostra nas estrias [stories] dos patriarcas oquanto eles estavam despreocupados com a morte e como a morte osalcanava sob a forma familiar da noite e do repouso tranqilo e eternoem uma velhice boa e repleta de anos23.

    A bno da vida como um todo, inerente ao trabalho, nunca podeser encontrada na obra e no deve ser confundida com o perodo de ale-gria inevitavelmente breve que segue a realizao e acompanha o aca-bamento. A bno do trabalho que o esforo e a gratificao seguemum ao outro to proximamente quanto a produo e o consumo, demodo que a felicidade concomitante ao prprio processo. No h feli-cidade nem contentamento duradouros para os seres humanos fora docrculo prescrito de dolorosa exausto e prazerosa regenerao. Tudo oque lana este ciclo em desequilbrio a misria, onde a exausto seguida pela penria; ou uma vida inteiramente sem esforo, onde o

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    tdio toma o lugar da exausto; e onde os moinhos da necessidade, doconsumo e da digesto trituram at a morte, inclementes, um corpohumano impotente arruna a felicidade elementar que resulta do estarvivo24. Um elemento de trabalho est presente em todas as atividadeshumanas, mesmo na mais elevada, na medida em que elas so executa-das como tarefas rotineiras mediante as quais ganhamos a vida e nosmantemos vivos. Seu prprio carter repetitivo, que na maioria dasvezes sentimos ser um fardo que nos extenua, que fornece aquelemnimo de contentamento animal para o qual os grandes e significativosmomentos de alegria, que so raros e jamais duram, nunca podem serum substituto e sem o qual os mais duradouros momentos de verdadeiraaflio e tristeza, embora igualmente raros, dificilmente poderiam sersuportados.

    A obra de nossas mos, distintamente do trabalho de nossos cor-pos25, fabrica a mera variedade infinita das coisas cuja soma total consti-tui o artifcio humano, o mundo em que vivemos. Tais coisas no sobens de consumo, mas objetos de uso, e o seu uso adequado no causaseu desaparecimento. Elas do ao mundo a estabilidade e a solidez semas quais no se poderia contar com ele para abrigar a criatura mortal einstvel que o homem.

    Certamente, a durabilidade do mundo das coisas no absoluta; noconsumimos coisas, mas as usamos; e se no o fizermos, elas simples-mente se degradam e retornam ao processo natural geral do qual foramretiradas e contra o qual as erigimos. A cadeira, se abandonada prpriasorte ou expelida do mundo humano, converter-se- novamente emmadeira, e a madeira se deteriorar e retornar ao solo do qual a rvorebrotou antes que fosse derrubada para se tornar o material sobre o qualoperar [work] e com o qual construir. Contudo, embora o uso no deixede desgastar estes objetos, este fim no previamente planejado, noera o objetivo de sua fabricao, como a destruio ou o consumoimediato do po o seu fim intrnseco; o que o uso desgasta a durabili-dade. Em outras palavras, a destruio, embora inevitvel, incidentalpara o uso, mas inerente ao consumo. O que distingue o par de sapatosmais dbil dos meros bens de consumo que eles no se estragam seno os calo, eles so objetos e, portanto, possuem uma certa

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  • independncia objetiva prpria, por mais modesta que seja. Usados ouno, eles permanecero no mundo durante um certo tempo a menosque sejam gratuitamente destrudos26.

    esta durabilidade que concede s coisas do mundo sua relativaindependncia em relao aos homens que as produziram e as usam, asua objetividade que as faz resistir, se opor27 e suportar, ao menospor um tempo, as necessidades e carncias vorazes de seus usuriosvivos. Deste ponto de vista, as coisas do mundo tm por funo estabili-zar a vida humana, e sua objetividade repousa no fato de que oshomens, no obstante sua natureza sempre em mudana, podem reco-brar sua identidade graas sua relao com a duradoura identidadedos objetos, com a mesma cadeira hoje e amanh, a mesma casa deoutrora, do nascimento at a morte. Ante a subjetividade dos homensencontra-se a objetividade do artifcio feito pelo homem, no a indife-rena da natureza. Somente porque erigimos um mundo de objetos apartir do que a natureza nos d e construmos um ambiente artificial nanatureza, protegendo-nos assim dela, podemos considerar a naturezacomo algo objetivo. Sem um mundo entre os homens e a naturezahaveria movimento eterno, mas no objetividade28.

    A durabilidade e a objetividade so o resultado da fabricao, a obrado homo faber, que consiste em uma reificao29. A solidez, inerentemesmo s coisas mais frgeis provm finalmente da matria que trans-formada em material. O material j um produto das mos humanasque o retiraram de seu lugar natural, seja matando um processo vital,como no caso da rvore que fornece a madeira, seja interrompendoalgum dos processos mais lentos da natureza, como no caso do ferro, dapedra ou do mrmore, arrancados do ventre da Terra. Este elemento deviolao e violncia est presente em toda fabricao, e o homemenquanto criador do artifcio humano sempre foi um destruidor da natu-reza. A experincia desta violncia a mais fundamental experincia dafora humana e, ao mesmo tempo, o exato oposto do esforo doloroso edesgastante experimentado no mero trabalho. Isto j no o ganhar oseu po com o suor do prprio rosto, em que o homem pode real-mente ser o senhor e mestre de todas as criaturas vivas, mas permaneceainda o servo da natureza, de suas prprias necessidades naturais e da

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    Terra. O homo faber torna-se senhor e mestre da prpria natureza namedida em que viola e parcialmente destri o que lhe foi dado30.

    O processo da fabricao inteiramente determinado pelas catego-rias dos meios e do fim. A coisa fabricada um produto final no duplosentido que o processo de produo chega nele a um fim e tambm queele apenas um meio para produzir esse fim. Diferentemente da ativi-dade do trabalho, em que o trabalho e o consumo so apenas dois est-gios de um mesmo processo o processo vital do indivduo ou dasociedade , a fabricao e o uso so dois processos completamentediferentes31. O fim do processo de fabricao se d quando a coisa concluda, e esse processo no precisa ser repetido. O impulso para arepetio provm da necessidade que o arteso tem de ganhar seusmeios de subsistncia, ou seja, do elemento de trabalho inerente a suaobra32. Pode tambm provir da demanda de multiplicao no mercado.Em ambos os casos, o processo repetido por razes externas a elemesmo, diferentemente da repetio compulsria inerente ao trabalho,onde se tem de comer para trabalhar e trabalhar para comer33. A multipli-cao no deve ser confundida com a repetio, embora ela possa serpercebida pelo arteso individual como uma mera repetio que umamquina pode realizar melhor e de modo mais produtivo. A multiplica-o realmente multiplica as coisas, enquanto que a repetio apenassegue o ciclo recorrente da vida no qual seus produtos desaparecemquase to rapidamente quanto apareceram.

    Ter um comeo definido e um fim previsvel definido a marca dafabricao, que apenas por esta caracterstica j se distingue de todas asoutras atividades humanas. O trabalho, aprisionado no movimentocclico do processo biolgico, no tem, propriamente falando, nem umcomeo nem um fim apenas pausas, intervalos entre a exausto e aregenerao. A ao, embora possa ter um comeo definido, nunca,como veremos, tem um fim previsvel. Esta grande confiabilidade daobra se reflete no fato de que o processo de fabricao, ao contrrio daao, no irreversvel: toda coisa produzida por mos humanas podeser destruda por elas, e nenhum objeto de uso to urgentementenecessrio no processo vital que seu fabricante no possa suportar suadestruio e sobreviver a ela. O homem, o fabricante do artifcio

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  • humano, de seu prprio mundo, realmente um senhor e mestre, noapenas porque se estabeleceu como o mestre de toda a natureza, mastambm porque senhor de si mesmo e do que faz. Isto no se aplicanem ao trabalho, onde os homens permanecem sujeitos necessidadede sua vida, nem ao, onde permanecem na dependncia de seussemelhantes. Sozinho com a sua imagem do futuro produto, o homofaber livre para produzir, e sozinho novamente ante a obra de suasmos, ele livre para destruir34.

    Disse antes que todos os processos de fabricao so determinadospela categoria dos meios e do fim. Isto se mostra mais claramente noenorme papel que as ferramentas e os instrumentos desempenhamneles. Do ponto de vista do homo faber, o homem realmente, comodisse Benjamin Franklin, um fabricante de ferramentas35. claro que asferramentas e utenslios so empregados tambm no processo de traba-lho, como sabe toda dona de casa que possui orgulhosamente todos osequipamentos de uma cozinha moderna; mas estes utenslios assumemum carter e uma funo diferentes quando so usados para trabalhar;eles servem para aliviar a carga e mecanizar o trabalho do trabalhador,so, por assim dizer, antropocntricos, enquanto que as ferramentas dafabricao so projetadas e inventadas para a fabricao das coisas e suaadequao e preciso so ditadas antes por metas objetivas que pornecessidades e carncias subjetivas. Ademais, todo processo de fabrica-o produz coisas que duram consideravelmente mais que o processoque as trouxe existncia, enquanto que em um processo de trabalho,que gera esses bens de curta durao, as ferramentas e instrumentosque so usados so as nicas coisas que sobrevivem ao prprio pro-cesso de trabalho36. Eles so as coisas de uso para o trabalho e, comotais, no resultam da prpria atividade do trabalho. O que domina o tra-balho com o prprio corpo, e incidentalmente todos os processos defabricao realizados no modo do trabalho, no nem o esforo propo-sitado nem o prprio produto, mas o movimento do processo e o ritmoque ele impe aos trabalhadores. Os utenslios do trabalho so tragadospor este ritmo em que o corpo e a ferramenta volteiam no mesmo movi-mento repetitivo at no uso das mquinas, que so mais bem ajusta-das execuo do trabalho, devido a seu movimento, no mais o

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    movimento do corpo que determina o movimento do utenslio, mas omovimento das mquinas que compele os movimentos do corpo e, emum estgio mais avanado, o substitui completamente. Parece-me bas-tante significativo que a questo muito discutida sobre se o homem deveser ajustado mquina ou se a mquina deve ser ajustada naturezado homem nunca tenha sido levantada a respeito dos meros instrumen-tos e ferramentas. E a razo disto que todas as ferramentas da manufa-tura permanecem a servio da mo, ao passo que as mquinasrealmente exigem que o trabalhador as sirva, ajuste o ritmo natural doseu corpo ao movimento mecnico delas. Em outras palavras, mesmo amais refinada ferramenta permanece uma serva incapaz de guiar ou desubstituir a mo; mesmo a mquina mais primitiva guia e substitui ideal-mente o trabalho do corpo.

    A experincia mais fundamental que temos da instrumentalidadesurge do processo de fabricao. Aqui realmente verdade que o fimjustifica os meios; ele faz mais, ele os produz e os organiza. O fim justi-fica a violncia feita natureza para conseguir o material, como a made-ira justifica matar a rvore, e a mesa justifica destruir a madeira. Domesmo modo, o produto final organiza o prprio processo de fabrica-o, decide sobre os especialistas necessrios, o grau de cooperao, e onmero de assistentes ou colaboradores. Por conseguinte, tudo e todosso julgados aqui em termos de adequao e de utilidade para o pro-duto final desejado, e nada mais37.

    Muito estranhamente, a validade da categoria meios-fim no seesgota com o produto acabado para o qual tudo e todos se tornam ummeio. Embora o objeto seja um fim em relao aos meios pelos quais foiproduzido e o verdadeiro fim do processo de fabricao, ele nunca setorna, por assim dizer, um fim em si mesmo, ao menos no enquantopermanece um objeto de uso. Ele ocupa imediatamente seu lugar emuma outra cadeia de meios e de fins, em virtude de sua prpria utilidade;como um simples objeto de uso, ele se torna um meio para, por exem-plo, uma vida confortvel, ou como um objeto de troca, isto , namedida em que foi atribudo um valor definido ao material usado para afabricao, ele se torna um meio para a obteno de outros objetos. Emoutras palavras, em um mundo estritamente utilitrio, todos os fins so

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  • constrangidos a ser de curta durao; so transformados em meios paraalcanar outros fins. Uma vez que o fim atingido, deixa de ser um fim,torna-se um objeto entre objetos que a qualquer momento podem sertransformados em meios para alcanar outros fins. A perplexidade doutilitarismo, que a filosofia do homo faber, por assim dizer, que elefica aprisionado na cadeia sem fim dos meios e dos fins sem jamais che-gar a algum princpio que pudesse justificar a categoria, isto , a prpriautilidade38.

    A sada habitual deste dilema fazer do usurio, o prprio homem, ofim ltimo, para interromper a cadeia sem fim dos fins e dos meios. Queo homem um fim em si mesmo e nunca deve ser usado como um meiopara atingir outros fins, no importa quo elevados possam ser, algoque conhecemos bem a partir da filosofia moral de Kant, e no hdvida de que ele queria, antes de tudo, relegar a categoria meios-fim esua filosofia do utilitarismo a seu lugar prprio e a impedir de reger asrelaes entre o homem e o homem, em vez das relaes entre oshomens e as coisas. Entretanto, mesmo a frmula intrinsecamente para-doxal de Kant fracassa na soluo das perplexidades do homo faber. Aoelevar o homem enquanto usurio posio de um fim ltimo, eledegrada at mais vigorosamente todos os outros fins a meros meios. Seo homem enquanto usurio o fim mais elevado, a medida de todas ascoisas, ento no apenas a natureza, tratada pela fabricao como omaterial quase sem valor sobre o qual operar [work] e agregar valor(como disse Locke)39, mas as prprias coisas valiosas tornam-se merosmeios, perdendo assim sua importncia intrnseca. Ou para dizer isto deum outro modo, a mais mundana de todas as atividades perde a sua sig-nificao objetiva original e torna-se um meio para satisfazer necessida-des subjetivas; em e por si mesma, no mais significativa, no importaquo til possa ser.

    Do ponto de vista da fabricao, o produto acabado um fim em si,uma entidade durvel independente com uma existncia prpria, tantoquanto o homem um fim em si mesmo na filosofia moral de Kant. claro, o que est em questo aqui no a instrumentalidade como tal, ouso de meios para atingir um fim, mas antes a generalizao da expe-rincia da fabricao, em que a utilidade e a serventia so estabelecidas

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    como os padres ltimos para o mundo assim como para a vida doshomens ativos que se movem nele40. O homo faber, podemos dizer,transgrediu os limites de sua atividade quando, sob o disfarce do utilita-rismo, prope que a instrumentalidade governe o mbito do mundoacabado to exclusivamente quanto governa a atividade atravs da qualtodas as coisas contidas nele vm a ser. Esta generalizao ser sempre atentao especfica do homo faber, se bem que, em ltima anlise, elaser a sua prpria perdio: s lhe restar a ausncia de significao noseio da utilidade; o utilitarismo nunca pode encontrar a resposta para aquesto que certa vez Lessing colocou aos filsofos utilitaristas de seutempo: E qual , por favor, a utilidade da utilidade?41.

    Na prpria esfera da fabricao h apenas um tipo de objetos aosquais no se aplica a cadeia sem fim dos meios e dos fins, e a obra dearte, a coisa mais intil e ao mesmo tempo mais durvel que as moshumanas podem produzir. Sua caracterstica prpria seu distancia-mento de todo o contexto do uso ordinrio, de modo que no caso de umantigo objeto de uso, digamos um mvel de uma poca passada, serconsiderado uma obra-prima por uma gerao posterior, ele colo-cado em um museu e destarte cuidadosamente afastado de qualquerpossvel uso. Assim como o propsito de uma cadeira realizadoquando se senta nela, o propsito intrnseco de uma obra de arte quer o artista o saiba ou no, quer o propsito seja atingido ou no alcanar a permanncia atravs das eras. Em nenhuma outra parte amera durabilidade do mundo feito pelo homem surge com tal pureza eclaridade; em nenhuma outra parte, portanto, este mundo-coisa serevela to espetacularmente como a morada no-mortal para seres mor-tais. E embora a verdadeira fonte de inspirao destas coisas permanen-tes seja o pensamento, isto no as impede de ser coisas. O processo depensamento no produz qualquer coisa tangvel, tal como a mera habili-dade para usar os objetos no os produz. a reificao, que ocorrequando registramos algo por escrito, pintamos uma imagem, compomosuma pea de msica, etc., que verdadeiramente faz do pensamento umarealidade; e para produzir essas coisas-pensamento, que habitualmentechamamos obras de arte, exige-se a mesma maestria [workmanship]que, atravs do instrumento primordial das mos humanas, constri as

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  • outras coisas menos durveis e mais teis do artifcio humano42.O mundo das coisas fabricado pelo homem torna-se uma morada

    para homens mortais, cuja estabilidade suportar e sobreviver ao movi-mento de permanente mudana de suas vidas e feitos apenas na medidaem que transcenda tanto a pura funcionalidade dos bens de consumocomo a mera utilidade dos objetos de uso43. A vida, em seu sentidono-biolgico, o lapso de tempo concedido a cada homem entre o nas-cimento e a morte, se manifesta na ao e na fala, s quais agora temosde voltar nossa ateno. Com a palavra e o ato ns nos inserimos nomundo humano, e esta insero como um segundo nascimento, noqual confirmamos e assumimos o fato bruto de nosso aparecimentofsico original. Desde que por meio do nascimento ingressamos no Ser[Being], partilhamos com os outros entes a qualidade da Alteridade[Otherness], um aspecto importante da pluralidade que faz com que pos-samos definir apenas pela distino, que sejamos incapazes de dizer oque algo sem distingui-lo de alguma outra coisa. Ademais, partilhamoscom todo organismo vivo aquele tipo de traos distintivos que o tornaum ente individual. Entretanto, apenas o homem pode expressar a alteri-dade e a individualidade, somente ele pode distinguir-se e comunicar-sea si mesmo e no meramente comunicar alguma coisa sede ou fome,afeio, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade e a distino con-vertem-se em unicidade, e o que o homem insere com a palavra e o atono grupo de sua prpria espcie, a unicidade. Esta insero no nos imposta pela necessidade, como o trabalho, e no motivada pelascarncias e desejos, como a fabricao. Ela incondicionada; seuimpulso surge do comeo que veio ao mundo quando nascemos e aoqual respondemos comeando algo novo por nossa prpria iniciativa.Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar uma iniciativa, comear,como indica a palavra grega arkhein; ou colocar algo em movimento,que a significao original do latim agere44.

    Todas as atividades humanas so condicionadas pelo fato da plurali-dade humana, o fato de que no Um homem, mas homens, no plural,habitam a Terra e de uma maneira ou outra vivem juntos. Mas apenas aao e a fala se relacionam especificamente com este fato de que viversignifica sempre viver entre os homens, entre aqueles que so meus

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    iguais. Portanto, quando me insiro no mundo, em um mundo ondeoutros j esto presentes. A ao e a fala so to estreitamente ligadasporque o ato primordial e especificamente humano sempre tem de res-ponder tambm questo colocada a todo recm-chegado: Quem voc?. A revelao de quem algum est implcita no fato de que decerto modo a ao muda no existe, ou se existe irrelevante; sem afala, a ao perde o ator, e o agente de atos s possvel na medida emque ele ao mesmo tempo o falante de palavras que se identifica comoo ator e anuncia o que ele est fazendo, o que fez e o que pretendefazer. exatamente como Dante disse certa vez e de modo maissucinto do que eu seria capaz (De Monarchia, I, 13) : Pois em todaao, o que visado primeiramente pelo agente a revelao de suaprpria imagem. Da resulta que todo agente, na medida em que atua,tem prazer em faz-lo; como tudo que deseja sua prpria existncia ecomo na ao a existncia do agente de algum modo intensificada, oprazer se segue necessariamenteAssim, nada age, a menos que ao agirtorne patente seu si-mesmo latente. claro que esta revelao doquem, em contraste com o que algum ou faz seus talentos ousuas fraquezas, seus sucessos e seus fracassos, que ele pode exibir ouocultar , no pode ser realizada intencionalmente. Ao contrrio, mais que provvel que o quem permanea sempre oculto para a pr-pria pessoa como o daimon na religio grega, que acompanha ohomem ao longo de toda sua vida, sempre olhando por trs sobre seusombros e, portanto, visvel apenas queles que ele encontra. No obs-tante, embora desconhecida para a pessoa, a ao intensamente pes-soal. A ao sem um nome, um quem ligado a ela, sem sentido,enquanto que uma obra de arte conserva sua relevncia quer conhea-mos ou no o nome do artista. Permitam-me recordar-vos os monumen-tos ao Soldado Desconhecido depois da Primeira Guerra Mundial. Elestestemunham a necessidade de se encontrar um quem, um algumidentificvel, que quatro anos de massacre em massa deveriam ter reve-lado. A relutncia a se resignar ao fato brutal de que o agente da guerratenha sido na verdade Ningum inspirou a edificao dos monumentosaos desconhecidos isto , a todos aqueles que a guerra fracassou em

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  • tornar conhecidos, privando-os, com isso, no de suas realizaes, masde sua dignidade humana45.

    Onde quer que os homens vivam juntos, existe uma teia de relaeshumanas46 que , por assim dizer, urdida pelos feitos e palavras de inu-merveis pessoas, tanto vivas quanto mortas. Cada feito e cada novocomeo cai em uma teia j existente onde, no entanto, deflagram dealgum modo um novo processo que afetar muitos outros, alm inclu-sive daqueles com quem o agente mantm um contato direto. porcausa desta j existente teia de relaes humanas, com suas vontades eintenes conflitantes, que a ao quase nunca atinge seu propsito. E tambm por causa deste meio [medium] e do trao de imprevisibilidadeque o acompanha que a ao sempre produz47 estrias, com ou seminteno, to naturalmente quanto a fabricao produz coisas tangveis.Essas estrias podem ento ser registradas em documentos e monumen-tos, ser contadas na poesia e na historiografia e inseridas em todo tipode material. Elas mesmas, todavia, so de uma natureza inteiramentediferente dessas reificaes. Tais estrias nos dizem mais acerca de seussujeitos, o heri em cada estria, do que qualquer produto das moshumanas jamais nos conta acerca do mestre que o produziu e, apesardisto, no so produtos, propriamente falando. Embora todos iniciemsua prpria estria, ao menos a estria de sua prpria vida [life-story],ningum o autor ou produtor dela. E, no entanto, precisamente nes-sas estrias que a verdadeira significao de uma vida humana final-mente se revela48. Que toda vida individual entre o nascimento e a mortepossa afinal ser narrada como uma estria com comeo e fim a condi-o pr-poltica e pr-histrica da histria [history], a grande estria semcomeo nem fim. Mas a razo pela qual cada vida humana conta suaestria e pela qual a histria se torna afinal o livro de estrias [storybook]da humanidade, com muitos atores e oradores e ainda assim sem qual-quer autor identificvel, que ambas resultam da ao. A estria real naqual nos engajamos enquanto vivemos no possui um fabricante visvelou invisvel, porque ela no fabricada.

    A ausncia de um fabricante neste domnio explica a extraordinriafragilidade e falta de confiabilidade dos assuntos estritamente humanos.Como sempre agimos em uma teia de relaes, as conseqncias de

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    cada ato so ilimitadas; toda ao deflagra no apenas uma reao, masuma reao em cadeia, e todo processo causa de novos processosimprevisveis. Esta ilimitabilidade inevitvel; no poderia ser remedi-ada restringindo nossas aes a um quadro limitado, palpvel, de cir-cunstncias, ou armazenando todo o material pertinente emcomputadores gigantes. O menor ato, nas mais limitadas circunstncias,porta o grmen da mesma ilimitabilidade e imprevisibilidade; um ato,um gesto ou uma palavra podem ser suficientes para mudar qualquerconstelao49. Ao agir, em contraposio fabricao, de fato verdadeque nunca podemos saber realmente o que estamos fazendo.

    H, no entanto, em ntido contraste com esta fragilidade e falta deconfiabilidade dos assuntos humanos, uma outra caracterstica da aohumana que parece torn-la ainda mais perigosa do que, em todo caso,nos permitido admitir. E o simples fato de que embora no saibamoso que estamos fazendo quando agimos, jamais temos qualquer possibili-dade de desfazer o que fizemos. Os processos de ao so no apenasimprevisveis, mas tambm irreversveis; no h autor ou fabricante quepossa desfazer ou destruir o que fez, caso no o agrade ou as conse-qncias se mostrarem desastrosas. Esta persistncia peculiar da ao,aparentemente em oposio fragilidade de seus resultados, seria com-pletamente insuportvel se esta capacidade no possusse algum rem-dio em seu prprio mbito.

    A redeno possvel da infortuna da irreversibilidade a faculdadede perdoar e o remdio para a imprevisibilidade est contido na facul-dade de fazer e de cumprir promessas. Os dois remdios50 formam umpar: o perdo diz respeito ao passado e serve para desfazer o que foifeito, enquanto que o compromisso atravs de promessas serve paraestabelecer ilhas de segurana no oceano de incerteza futura, sem asquais nem mesmo a continuidade, sem falar de todo tipo de durabili-dade, jamais seria possvel nas relaes entre os homens. Sem sermosperdoados, liberados das conseqncias do que fizemos, a nossa capa-cidade de agir estaria, por assim dizer, confinada a um nico ato do qualjamais nos recuperaramos; permaneceramos as vtimas de suas conse-qncias para sempre, semelhantes ao aprendiz de feiticeiro que nodispunha da frmula mgica para quebrar o encanto51. Sem estarmos

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  • obrigados ao cumprimento de promessas, nunca seramos capazes deatingir aquele grau de identidade e de continuidade que, juntas, produ-zem [produce] a pessoa acerca de quem uma estria pode ser contada;cada um de ns estaria condenado a vagar desamparado e sem direona escurido de seu prprio corao solitrio, enredado em suas contra-dies e equvocos e em seus humores sempre em mudana. (Esta iden-tidade subjetiva, alcanada com o compromisso por meio de promessas,deve ser distinguida da identidade objetiva, isto , ligada a objetos[object-related], que surge da confrontao com a mesmidade [sameness]do mundo, que mencionei na discusso da fabricao). Neste sentido,perdoar e prometer equivalem a mecanismos de controle embutidos naprpria faculdade de iniciar processos novos e sem fim52.

    Sem a ao, sem a capacidade de iniciar algo novo e assim articular onovo comeo que entra no mundo com o nascimento de cada serhumano, a vida do homem, despendida entre o nascimento e a morte,estaria de fato irremediavelmente condenada. A prpria durao davida, seguindo em direo morte, conduziria inevitavelmente todacoisa humana runa e destruio. A ao, com todas as suas incerte-zas, como um lembrete sempre presente de que os homens, emboratenham de morrer, no nasceram para morrer, mas para iniciar algonovo. Initium ut esset homo creatus est para que houvesse um incioo homem foi criado, disse Agostinho53. Com a criao do homem, oprincpio do comeo veio ao mundo o que naturalmente apenas umoutro modo de dizer que com a criao do homem o princpio da liber-dade apareceu sobre a Terra.

    * * *

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    Observao sobre as notas da traduo

    Esta traduo foi concebida, a princpio, estritamente para fins did-ticos. As notas abaixo foram inseridas pelo tradutor com o propsito defacilitar a comparao desta conferncia com A condio humana (HC),tema deste livro, da qual ao mesmo tempo um resumo e uma reelabo-rao. Foram inseridas umas poucas referncias aos autores citados, apartir, na maior parte das vezes, das prprias indicaes de HannahArendt em A condio humana. De qualquer modo, as notas no soindispensveis compreenso do texto, nem so exaustivas.

    Os trechos citados de A condio humana foram traduzidos sempredo original em ingls, de modo que a indicao das pginas da ediobrasileira visa exclusivamente propiciar um melhor acesso s afinidadese pequenas diferenas entre os textos. No obstante, o prprio ttulo daconferncia nesta traduo, para mencionar o mais flagrante, apontapara opes distintas daquelas da traduo brasileira. Para as notas,alm da comparao da conferncia Trabalho, obra, ao com o textooriginal de A condio humana, conferimos tambm uma verso imedi-atamente anterior, no datada, da mesma conferncia; uma versomais prxima do texto de A condio humana, com vrias anotaesmanuscritas feitas pela prpria Hannah Arendt, incorporadas na versodefinitiva que traduzimos aqui.

    A verso anterior e o texto final da conferncia (p. 023216-023247)podem ser consultados na pgina:http://memory.loc.gov/ammem/arendthtml/ arendthome.html referenciada aqui como Hannah Arendt Papers. The Manuscript Divi-sion, Library of Congress que disponibiliza, fac-similado, parte daobra completa de Hannah Arendt, notadamente textos no publicados.

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  • 1. As vrias tradues deste texto apresentamos seguintes ttulos: "Arbeit, Herstellen, Handeln"(alem); "Travail, oeuvre, action" (francesa);"Lavoro, opera, azione" (italiana); "Labor, trabajo,accin" (espanhola). Ao optar por "Trabalho,obra, ao", seguimos as prprias indicaes deArendt, tanto no prprio texto traduzido quantoem notas a A condio humana (HC). Na nota 3, p. 80 (cf. trad. bras.), na seo intitulada "Thelabour of our body and the work of our hands",Arendt afirma o seguinte: "Assim, a lngua gregadistingue entre ponein e ergazesthai, o latimentre laborare e facere ou fabricare, que tm amesma raiz etimolgica, o francs entre travail-ler e ouvrer, o alemo entre arbeiten e werken.Em todos estes casos, apenas os equivalentes de'labor' tm uma conotao inequvoca de dores epenas. O alemo Arbeit se aplicava original-mente apenas ao trabalho agrcola executadopor servos e no obra do arteso, que era cha-mada Werk. O francs travailler substituiu omais antigo labourer e deriva de tripalium, umaespcie de tortura (ver Grimm, Wrterbuch, p.1854ss., e Lucien Fbre, 'Travail: volution d'unmot et d'une ide', Journal de psychologie nor-male et pathologique, vol. XLI, n 1, 1948)". Cf.Hannah ARENDT, The human condition (HC), p.79-84 (cf. p. 90-95). A despeito de HannahArendt no mencionar o portugus, o que seaplica ao francs, etimologicamente, tambm seajusta ao nosso idioma. Cf., a este respeito, Ante-nor NASCENTES, Dicionrio etimolgico da ln-gua portuguesa. Rio de Janeiro, 1955; Jos PedroMACHADO, Dicionrio etimolgico da lngua por-tuguesa. v. II. Lisboa: Confluncia, 1959; e Anto-nio Geraldo CUNHA, Dicionrio etimolgicoNova Fronteira. 2. ed. So Paulo: Nova Fronteira[s. d.].

    Sobre a traduo em portugus dos termos"labor" e "work", conferir Theresa CALVET DEMAGALHES, "A categoria de trabalho [labor] emHannah Arendt", passim; e Celso LAFER, HannahArendt: pensamento, persuaso e poder, p. 29,referenciados na bibliografia da apresentao traduo. Sobre o emprego dos termos em Han-nah Arendt, conferir ainda, por exemplo, Mil-dred BAKAN, "Hannah Arendt's concepts of labor

    and work" e Robert W. MAJOR, "A reading ofHannah Arendt's 'unusual' distinction betweenlabor and work", In: Melvin A. HILL, HannahArendt: the recovery of the public world. NewYork: St. Martin's Press, 1979.

    2. Em HC, p. 15 (cf. p. 24 da trad. bras.), emque aparece a referncia a esses termos grego elatino, Hannah Arendt no inclui "non-leisure"para traduzi-los. Adiante, na p. 131 (cf. p. 144da trad. bras.), temos a possvel razo destaopo. Ela fala do srio problema social dolazer, "isto , essencialmente o problema decomo proporcionar oportunidade suficientepara a exausto diria conservar intacta a capa-cidade para o consumo". Em nota, na p.131-132 (cf. p. 144 da trad. bras.), ela acrescentaque esse lazer [leisure], "no absolutamente omesmo que a skhol da Antigidade, que noera um fenmeno de consumo, 'conspcuo' ouno, e no ocorria devido ao aparecimento de'tempo livre', resguardado do trabalho, mas era,pelo contrrio, uma consciente 'absteno de'todas as atividades conectadas ao mero estarvivo, tanto a atividade de consumir quanto a detrabalhar. A pedra de toque desta skhol,enquanto distinta do moderno ideal do lazer, a bem conhecida e freqentemente descrita fru-galidade da vida grega no perodo clssico".

    3. Do incio do pargrafo at este ponto, Han-nah Arendt reproduz textualmente HC, p. 16(cf. p. 24 da trad. bras.). O que se segue at ofim do pargrafo comporta ligeiras modifica-es e parfrases do texto original, e uns pou-cos acrscimos. Um acrscimo digno de nota a referncia ao "amor ao prximo", tema caro aArendt na sua dissertao de doutorado O con-ceito de amor em Agostinho (Der Liebesbegriffbei Augustin), concluda em 1929, sob orienta-o de Karl Jaspers, que ela estava a revisarpara publicao em ingls na poca em quepreparou esta conferncia. O texto em inglsnunca veio a ser publicado durante a vida deArendt [Cf. Hannah ARENDT, Love and SaintAugustine. (ed. J. V. Scott e J. C. Stark). Chicago:Chicago University Press, 1996].

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    4. Hannah Arendt emprega aqui expresso"re-evaluation of all values", em uma clara refe-rncia ao alemo "Umwerthung der Werthe", umdos principais motivos do ltimo perodo da filo-sofia de Friedrich Nietzsche. O texto "the're-evaluation of all values'", atribudo aNietzsche, aparece como um acrscimo deArendt, manuscrito margem da verso anteriorda conferncia "Labor, work, action" (Cf. Han-nah Arendt's Papers, p. 023232), mas no na p.17 (cf. p. 25 da trad. bras.) de HC, de onde elaretira este texto e o modifica; na p. 117 (cf. p. 129da trad. bras.) ela faz uma importante aluso "criao de valores". Na obra publicada deNietzsche podemos encontrar vrias refernciasa tal propsito, mas mencionamos aqui, a ttulode exemplo, os 46 e 203 de Para alm de beme mal (Jenseits von Gut und Bse), os 7 e 8 da1 dissertao e o 27 da 3 dissertao de Para agenealogia damoral (Zur Genealogie der Moral).Nas suas clssicas tradues das obras deNietzsche para o ingls, Walter Kaufmann sem-pre empregou o termo "revaluation" para tradu-zir "Umwerthung" (o prefixo alemo "um" indicamovimento circular, retorno, mudana). HannahArendt lanou mo das tradues de Kaufmann,por exemplo, na srie de conferncias "Somequestions of moral philosophy" (1965) profe-ridas na mesma poca da conferncia "Labor,work, action" (1964) , cujo texto foi recente-mente includo em Hannah ARENDT, Responsibi-lity and judgment (ed. Jerome Kohn). New York:Schocken Books, 2003 [Traduo brasileira deRosaura Eichenberg, com reviso tcnica deAndr Duarte e Bethnia Assy, publicada pelaCompanhia das Letras em 2004, com o ttulo Res-ponsabilidade e julgamento]. Na primeira dasquatro conferncias, Arendt comenta o projetonietzscheano de "Umwerthung der Werthe", nap. 51 (p. 114 da trad. bras.). As melhores tradu-es da obra de Nietzsche no Brasil, possivel-mente mais prximas do sentido radical doprojeto nietzscheano, optaram por traduzir"Umwerthung" por "transvalorao" (RubensRodrigues Torres Filho Abril Cultural, Col. OsPensadores) ou "tresvalorao" (Paulo Csar deSouza Companhia das Letras), ambas reme-tendo mesma preposio latina trans ("almde, para l de; depois de") (Cf. Dicionrio

    Houaiss). A mesma soluo (transvaloracin)j havia sido acolhida antes pela traduo espa-nhola de Andrs Snchez Pascual (ed. Alianza).

    5. Na p. 301 (cf. p. 314 da trad. bras.) de HC,Hannah Arendt afirma: "Plato, assim comoAristteles, tendem a inverter a relao entreobra e ao a favor da obra (...) E a razo paraesta predileo em filosofia de modo algum asuspeita, politicamente inspirada, da ao, quemencionamos acima, mas [a suspeita] filosofica-mente muito mais compulsiva de que a contem-plao e a fabricao (theora e poisis) tmuma afinidade interna e no se encontram namesma inequvoca oposio uma com a outracomo a contemplao e a ao".

    6. Conferir HC, p. 103 (cf. p. 115 da trad. bras.).

    7. Conferir HC, p. 298, nota 62 (cf. p. 311 datrad. bras.).

    8. "A contemplao mesma tornou-se comple-tamente sem sentido". HC, p. 292 (cf. p. 305 datrad. bras.).

    9. Hannah Arendt menciona que "trabalho eobra (ponos e ergon) eram distintos emHesodo; apenas a obra era devida a Eris, adeusa da boa disputa (Os trabalhos e os dias20-26), mas o trabalho, como todos os outrosmales, provinha da caixa de Pandora (90ss.) e uma punio de Zeus porque Prometeu 'astuci-oso o enganou'". HC, p. 83, nota 8 (cf. p. 93-94).

    10. John LOCKE, Second Treatise of Civil Govern-ment, cap. V (Of property), sec. 26, citado emHC, p. 79 (cf. p. 90 da trad. bras.).

    11. ARISTTELES, Politics, 1254b25, citado emHC, p. 80 (cf. p. 90 da trad. bras.). Conferirainda HC, p. 104 (cf. p. 116 da trad. bras.).

    12. Karl MARX, A ideologia alem, citado emHC, p. 106 (cf. p. 118 da trad. bras.).

    13. Ao citar a definio marxiana do trabalhocomo "o metabolismo do homem com a natu-reza", Hannah Arendt insere a seguinte nota,que reproduzo integralmente: "Capital (Modern

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  • Library ed.), p. 201. Esta frmula freqente naobra de Marx e sempre repetida quase verbatim:Trabalho a eterna necessidade natural de efe-tuar o metabolismo entre o homem e a natureza.(Ver, por exemplo, Das Kapital, Vol. I, parte 1,cap. 1, seo 2 e parte 3, cap. 5. A traduoinglesa padro, Ed. Modern Library, no alcanaa preciso de Marx). Encontramos quase amesma formulao no vol. III de Das Kapital, p.872. Obviamente, quando Marx fala, como fre-qentemente o faz, do 'processo vital da socieda-de', no est pensando por metforas". HC, p. 99,nota 34 (cf. p. 110 da trad. bras.).

    14. "De todas as atividades humanas, nem aonem a obra, mas apenas o trabalho sem fim,progredindo automaticamente de acordo com aprpria vida e fora do escopo das decises inten-cionais ou propsitos humanamente significati-vos". HC, p. 105-106 (cf. p. 117-118 da trad.bras.). Significativamente, na p. 96-97 (cf. p. 108da trad. bras.), Hannah Arendt afirma ainda que"vida um processo que em toda parte consome[uses up] a durabilidade, a corri, a faz desapare-cer, at finalmente a matria morta, o resultadodos pequenos processos vitais, nicos e cclicos,retorna ao gigantesco ciclo global da prprianatureza, onde no existe incio nem fim e ondetodas as coisas naturais volteiam em uma repeti-o sem mudana e sem morte (...) Uma filosofiada vida que no chegue, como Nietzsche, afir-mao do 'eterno retorno' (eiwige Wiederkehr)como o princpio supremo de todo ser, simples-mente no sabe do que est falando".

    15. Conferir HC, p. 96 (cf. p. 107-108 da trad.bras.).

    16. John LOCKE, Second Treatise of Civil Govern-ment, cap. V (Of property), sec. 46, citado emHC, p. 100 (cf. p. 111 da trad. bras.).

    17. Esta parte repete HC, p. 104 (cf. p. 116 datrad. bras.), com pequenas modificaes (porexemplo, o acrscimo de "classe operria"). Han-nah Arendt cita Das Kapital, III, p. 873.

    18. John LOCKE, Second Treatise of Civil Govern-ment, cap. V (Of property), sec. 46, citado em

    HC, p. 96 (cf. p. 107 da trad. bras.). Cf. ainda p.103-104 (cf. p. 115-116), para a distino entrecoisas de curta durao e coisas durveis.

    19.Do incio do pargrafo at este ponto, Han-nah Arendt cita, com pequenas modificaes,HC, p. 96 (cf. p. 107-108 da trad. bras.).

    20. Conferir HC, p. 109 (cf. p. 121 da trad. bras.)e p. 124 (cf. p. 136 da trad. bras.).

    21.Gnesis, 9, 7.

    22. A partir deste ponto, at o final do par-grafo, Hannah Arendt reproduz, com poucasmodificaes, HC, p. 106-107 (cf. p. 118-119 datrad. bras.). Vale a pena ressaltar os acrscimos "A recompensa das fadigas e penas, emborano deixe coisa alguma atrs de si, at maisreal, menos ftil que qualquer outra forma defelicidade"; "O homem, o autor do artifciohumano, que designamos mundo para distin-gui-lo da natureza, e os homens, que esto sem-pre envolvidos uns com os outros por meio daao e da fala, no so de modo algum seresmeramente naturais" que j aparecem na ver-so anterior deste texto (Hannah Arendtpapers, p. 023236).

    23. Conferir, por exemplo, Gnesis 15, 15 e 25,7-8 (Abrao), e tambm 35, 28-29 (Isaac). Verainda HC, p. 107, nota 53 (cf. p. 119 da trad.bras.).

    24.Do incio do pargrafo a este ponto, HannahArendt cita HC, p. 108 (cf. p. 120 da trad. bras.),com uma breve supresso. Hannah Arendt exa-mina detidamente o tema da pobreza e da mis-ria, notadamente em sua relao com a poltica,em On revolution (London: Penguin Books,1990), nas duas primeiras sees do captulo"The social question" ("A questo social"), p.59-73.

    25.Hannah Arendt cita neste pargrafo HC, p.136 (cf. p. 149 da trad. bras.) e suprime: "homofaber que fabrica e liberalmente 'opera sobre',distinto do animal laborans, que trabalha e 'semistura com'". Cf. p. 168 (cf. p. 181 da trad.bras.).

    210 Arendt, H. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 7, 2/2005, p. 187-213.

    26.Neste pargrafo, Hannah Arendt parafraseia eseleciona textos das p. 136-138 de HC (cf. p.149-151). Antes do exemplo mencionado, elasuprimiu o seguinte texto: "Embora o uso e oconsumo, como a obra e o trabalho, no sejamidnticos, eles parecem se sobrepor em impor-tantes reas, em uma medida tal que o acordounnime com que tanto a opinio pblicaquanto a instruda identificaram esses dois dife-rentes assuntos parece bem justificado. O uso, defato, contm um elemento de consumo, namedida em que o processo de desgaste acontecepor meio do contato do objeto de uso com oorganismo consumidor vivo, e quanto mais pr-ximo o contato entre o corpo e a coisa usada,mais plausvel parecer uma equao de ambos.Se algum explica, por exemplo, a natureza dosobjetos de uso em termos de vesturio, ser ten-tado a concluir que o uso no seno o con-sumo em um passo mais lento. Contra isto seencontra o que mencionei antes, que a destrui-o, embora inevitvel, incidental ao uso, masinerente ao consumo. O que distingue...". HC, p.137-138 (cf. p. 150-151 da trad. bras.).

    27. Em HC, p. 137 (cf. p. 150 da trad. bras.), Han-nah Arendt insere a seguinte nota para comentara expresso "stand against": "isto est implicadono verbo latino obicere, do qual o nosso 'objeto' uma derivao tardia, e na palavra alem paraobjeto, Gegenstand. 'Objeto' significa, literal-mente 'algo lanado' ou 'posto defronte'".

    28.Neste pargrafo, Hannah Arendt reproduzHC, p. 137 (cf. p. 150 da trad. bras.), com peque-nas modificaes e supresses.

    29. Cf. em HC, p. 102 (cf. p. 114 da trad. bras.), anota 41, sobre reificao. Ela afirma que "mesmoMarx, que realmente definiu o homem como umanimal laborans, teve de admitir que a produti-vidade do trabalho, propriamente falando,comea apenas com a reificao (Vergegens-tndlichung), com 'a edificao de um mundoobjetivo de coisas' (Erzeugung einer gegenstnd-lichen Welt). Mas o esforo do trabalho nuncalivra o animal trabalhador de repetir isso tudo denovo, e permanece, portanto, uma 'eterna neces-sidade imposta pela natureza'. Quando Marx

    insiste que o 'processo de trabalho chega a seufim no produto' ["Des Prozess erlischt im Pro-dukt". Das Kapital, vol. I, parte 3, cap. 5], eleesquece sua prpria definio deste processocomo o 'metabolismo entre o homem e a natu-reza', dentro do qual o produto imediata-mente 'incorporado', consumido e aniquiladopelo processo vital do corpo". HC, p. 102-103(cf. p. 114-115 da trad. bras.).

    30.Neste pargrafo, Hannah Arendt seleciona emodifica trechos das p. 139-140 de HC (cf. p.152-153 da trad. bras.). Na p. 139 (cf. p. 152 datrad. bras.) ela afirma que "o animal laborans,que com seu corpo e com a ajuda de animaisdomesticados alimenta a vida, pode ser osenhor e mestre de todas as criaturas vivas, masele ainda permanece o servo da natureza e daTerra; apenas o homo faber se comporta comosenhor e mestre de toda a Terra".

    31. Esta frase um importante acrscimo deArendt ao texto de HC, da p. 143 (cf. p. 156 datrad. bras.), selecionado para a composiodeste pargrafo. Este adendo j se encontradatilografado na verso anterior deste texto (cf.Hannah Arendt Papers, p. 023239).

    32. Em HC, p. 143 (cf. p. 156 da trad. bras.), estetrecho aparece como se segue: "(...) subsistn-cia, caso em que sua fabricao coincide comseu trabalho".

    33. At este ponto, Hannah Arendt reproduzHC, p. 143 (cf. p. 156 da trad. bras.), compequenas modificaes e supresses.

    34.Neste pargrafo, Hannah Arendt reproduzHC, p. 143-4 (cf. p. 156-157 da trad. bras.).

    35.HC, p. 144 (cf. p. 157 da trad. bras.). HannahArendt recolhe esta referncia de Marx: "Marx em um dos muitos apartes que do testemu-nho de seu sentido histrico eminente obser-vou uma vez que a definio de BenjaminFranklin do homem como um fabricante de fer-ramentas to caracterstica dos ianques [Yan-keedom], isto , da era moderna, quanto adefinio de homem como um animal polticofoi para a Antigidade". HC, p. 159 (cf. p. 172 da

    Trabalho, obra, ao 211

  • trad. bras.). Cf. Das Kapital, parte IV, cap. 13 eparte III, cap. 7, seo 1.

    36. "Para o animal laborans, portanto, como eleest sujeito aos processos vitais devoradores econstantemente ocupado com eles, a durabili-dade e a estabilidade do mundo esto represen-tadas primordialmente nas ferramentas einstrumentos que ele usa". HC, p. 144 (cf. p. 157da trad. bras.). Neste pargrafo, Hannah Arendtrecolhe e reformula alguns trechos de HC, p.144-145.

    37.Neste pargrafo, Hannah Arendt reproduzHC, p. 153 (cf. p. 166 da trad. bras.), com peque-nas modificaes.

    38. "Esta perplexidade, inerente a todo utilita-rismo consistente, a filosofia do homo faber porexcelncia, pode ser diagnosticada teoricamentecomo uma inata incapacidade para compreendera distino entre utilidade e significao, queexpressamos lingisticamente pela distinoentre 'a fim de' [in order to] e 'por causa de' [forthe sake of]". HC, p. 154 (cf. p. 167 da trad. bras.).

    39. John LOCKE, Second Treatise of Civil Govern-ment, cap. V (Of property), sec. 43, citado emHC, p. 135 (cf. p. 147 da trad. bras.). Sobre "adici-onar valor", cf. John LOCKE, Second Treatise ofCivil Government, cap. V (Of property), sec. 40,citado em HC, p. 103 (cf. p. 115 da trad. bras.).Neste pargrafo, Hannah Arendt recolhe e para-fraseia trechos de HC, p. 155 (cf. p. 168 da trad.bras.).

    40. Citao de HC, p. 157 (cf. p. 170 da trad.bras.).

    41. Frase citada em HC, p. 154 (cf. p. 167 da trad.bras.).

    42.Neste pargrafo, Hannah Arendt recolhe ereescreve trechos de HC, p. 167-169 (cf. p.180-182 da trad. bras.). Conferir ainda HC, p.90-91 (p. 101-102 da trad. bras.), sobre a relaoentre pensamento e fabricao.

    43. "Se o animal laborans necessita da ajuda dohomo faber para facilitar seu trabalho e remover

    sua dor, e se os mortais necessitam de sua ajuda[do homo faber] para edificar uma casa sobre aTerra, os homens que agem e falam necessitamda ajuda do homo faber em sua capacidadesuprema, isto , da ajuda dos artistas, dos poe-tas e historiadores, dos construtores de monu-mentos ou escritores, porque sem eles o nicoproduto da atividade dos homens, a estria queencenam e contam, de modo algum sobrevive-ria. Para ser o que o mundo sempre destinadoa ser, um lar para os homens durantes sua vidana Terra, o artifcio humano tem de ser umlugar adequado para a ao e a fala, para ativi-dades no apenas inteiramente inteis para asnecessidades da vida, mas de uma naturezainteiramente diferente das mltiplas atividadesde fabricao por meio das quais o prpriomundo e todas as coisas nele so produzidos.No precisamos escolher aqui entre Plato eProtgoras, ou decidir se o homem ou um deusdeve ser a medida de todas as coisas; o que certo que a medida no pode ser nem as ativi-dades motrizes da vida biolgica e do trabalho,nem o instrumentalismo utilitrio da fabricaoe do uso". HC, p. 173-174 (cf. p. 187 da trad.bras.).

    44.Hannah Arendt recolheu neste pargrafo,com modificaes, trechos de HC, p. 173 e176-177, 175-176 e 177 (cf. p. 187-190 da trad.bras.).

    45.Hannah Arendt reescreve neste pargrafo,com modificaes, trechos de HC, p. 178-179,175, 179 e 180-181 (cf. p. 191-192, 188, 192, 193da trad. bras.). A citao de Dante apareceuantes como epgrafe ao captulo "Action" deHC.

    46. "O domnio dos assuntos humanos, estrita-mente falando, consiste em uma teia de rela-es humanas que existe onde quer que oshomens vivam juntos". HC, p. 183-184 (cf. p.196 da trad. bras.).

    47.Hannah Arendt, em HC, p. 184 (cf. p.196-197), de onde foi extrado este pargrafo,com modificaes, pe entre aspas a palavra"produces".

    212 Arendt, H. Cadernos de tica e Filosofia Poltica 7, 2/2005, p. 187-213.

    48. Esta frase um acrscimo de Hannah Arendtao texto de HC. Ela aparece manuscrita mar-gem na verso anterior desta conferncia. Cf.Hannah Arendt papers, p. 023245.

    49. At este ponto, Hannah Arendt modificou otexto de HC, p. 190 (cf. p. 203 da trad. bras.).

    50. Em HC, p. 237 (cf. p. 249 da trad. bras.), Han-nah Arendt empregou, no mesmo trecho, "facul-dades", em vez de "remdios".

    51.Do incio do pargrafo at este ponto HannahArendt reproduz, com ligeiras modificaes, otexto de HC, p. 237 (cf. p. 249 da trad. bras.). Oque se segue, com exceo da ltima frase dopargrafo, uma anotao manuscrita feita porela na verso anterior desta conferncia. Cf.Hannah Arendt Papers, p. 023246.

    52. Ao contrrio do trabalho e da fabricao, aao se redime a partir de si prpria, diz Arendt:"Aqui, o remdio contra a irreversibilidade e aimprevisibilidade dos processos iniciados pelaao no provm de uma outra faculdade, quimais elevada, mas uma das potencialidades daprpria ao". HC, p. 236-237 (cf. trad. bras., p.248).

    53. Esta frase de Agostinho, seguramente a refe-rncia mais citada em toda a obra publicada deArendt, fundamental compreenso arendti-ana do significado da ao e da liberdade. Afrase foi retirada de De civitate Dei, XII, 20, ecitada antes em HC, p. 177 (cf. p. 190 da trad.Bras.).

    Trabalho, obra, ao 213