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1 Desnaturalizar as ‘endemias de estimação’: mobilização social em contextos das arboviroses no Brasil Autores: * 1 Valcler Rangel Fernandes; Maurício Monken & Grácia Maria M. Gondin; Zélia M. Profeta da Luz; Ana Beatriz A. Slaibi Lopes; Márcia Correa e Castro; Emanoel Campos Filho; André Luiz da Silva Lima; José Paulo Vicente da Silva e Annibal Coelho de Amorim CONTEXTO Desde os anos 1980, a população brasileira enfrenta sucessivas epidemias de dengue. A doença é provocada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti, vetor de disseminação de outras infecções que aparecem mais recentemente no cenário nacional, como Zika, Chikungunya e a febre amarela urbana (esta reemergente no país). Agravando o cenário, estudos epidemiológicos apontam associação entre a infecção pelo vírus Zika e alterações congênitas de recém-nascidos causadoras de microcefalia. Em 2015, este cenário fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarasse Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em decorrência da dispersão do vírus Zika e suas consequências com a transmissão autóctone em 24 países nas Américas. No Brasil, esta epidemia tem potencial para se transformar em tragédia, dada as condições socioambientais e sanitárias favoráveis à disseminação da doença em regiões onde predomina situação de extrema desigualdade social e condições de vida precárias. Cabe salientar que os índices alarmantes de arboviroses se concentram nas mesmas regiões onde a dengue incide há 30 anos. A partir deste panorama, duas questões merecem ser discutidas: primeiro o possível fracasso das estratégias vigentes de enfrentamento das arboviroses, adotados por diferentes esferas governamentais. Além disso, fica igualmente claro que as origens do problema não estão meramente na dispersão do vetor, mas se articulam aos determinantes sociais de saúde. No contexto brasileiro, o setor saúde tem sido marcado, em sua história recente, pela organização de um modelo centrado no aspecto clínico e assistencial, resultando na ampliação de um complexo industrial da saúde globalizado e dominado por grandes corporações. Este modelo não tem respondido de forma efetiva aos problemas de saúde de populações em países com características demográficas, 1 Respectivamente, médico sanitarista/Fiocruz; prof. e pesquisadores do LAVSA/EPSJV/Fiocruz; Centro de Pesquisas René RachouFiocruz/MG; assessora VPEICFiocruz;/RJ; jornalista Canal Saúde/Fiocruz; Mestrando/UFRJ e do IDEIASUS/Fiocruz; Doutorando ENSP/FIOCRUZ; enfermeiro e médico, pesquisadores do IDEIASUS e “Mobilização Social em contextos das Arboviroses”/Fiocruz. Ver CV detalhados na Plataforma LATTES. Correspondência: Fundação Oswaldo CRUZ - Fiocruz, Av. Brasil, 4036, sala 815, CEP: 21.041-361, Manguinhos, RJ, Brasil. (e-mail: [email protected])

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Desnaturalizar as ‘endemias de estimação’: mobilização social em contextos das

arboviroses no Brasil

Autores: *1 Valcler Rangel Fernandes; Maurício Monken & Grácia Maria M. Gondin; Zélia M. Profeta da Luz; Ana

Beatriz A. Slaibi Lopes; Márcia Correa e Castro; Emanoel Campos Filho; André Luiz da Silva Lima; José Paulo

Vicente da Silva e Annibal Coelho de Amorim

CONTEXTO

Desde os anos 1980, a população brasileira enfrenta sucessivas epidemias de

dengue. A doença é provocada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes

Aegypti, vetor de disseminação de outras infecções que aparecem mais recentemente

no cenário nacional, como Zika, Chikungunya e a febre amarela urbana (esta

reemergente no país). Agravando o cenário, estudos epidemiológicos apontam

associação entre a infecção pelo vírus Zika e alterações congênitas de recém-nascidos

causadoras de microcefalia.

Em 2015, este cenário fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS)

declarasse Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em

decorrência da dispersão do vírus Zika e suas consequências com a transmissão

autóctone em 24 países nas Américas. No Brasil, esta epidemia tem potencial para se

transformar em tragédia, dada as condições socioambientais e sanitárias favoráveis à

disseminação da doença em regiões onde predomina situação de extrema

desigualdade social e condições de vida precárias.

Cabe salientar que os índices alarmantes de arboviroses se concentram nas

mesmas regiões onde a dengue incide há 30 anos. A partir deste panorama, duas

questões merecem ser discutidas: primeiro o possível fracasso das estratégias vigentes

de enfrentamento das arboviroses, adotados por diferentes esferas governamentais.

Além disso, fica igualmente claro que as origens do problema não estão meramente

na dispersão do vetor, mas se articulam aos determinantes sociais de saúde.

No contexto brasileiro, o setor saúde tem sido marcado, em sua história

recente, pela organização de um modelo centrado no aspecto clínico e assistencial,

resultando na ampliação de um complexo industrial da saúde globalizado e dominado

por grandes corporações. Este modelo não tem respondido de forma efetiva aos

problemas de saúde de populações em países com características demográficas,

1Respectivamente, médico sanitarista/Fiocruz; prof. e pesquisadores do LAVSA/EPSJV/Fiocruz; Centro de Pesquisas

René Rachou–Fiocruz/MG; assessora VPEIC–Fiocruz;/RJ; jornalista Canal Saúde/Fiocruz; Mestrando/UFRJ e do IDEIASUS/Fiocruz; Doutorando ENSP/FIOCRUZ; enfermeiro e médico, pesquisadores do IDEIASUS e “Mobilização Social em contextos das Arboviroses”/Fiocruz. Ver CV detalhados na Plataforma LATTES. Correspondência: Fundação Oswaldo CRUZ - Fiocruz, Av. Brasil, 4036, sala 815, CEP: 21.041-361, Manguinhos, RJ, Brasil. (e-mail: [email protected])

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epidemiológicas e sanitárias como o Brasil, marcados por desigualdades sociais e de

acesso a cuidados de saúde (GONDIM, 2011).

Por isso, torna-se necessária a estruturação de um sistema de vigilância em

saúde que se contraponha ao modelo médico-assistencial e sanitarista-campanhista,

compreendendo a saúde, a doença e o cuidado como manifestações resultantes de

processos históricos e culturais (MENDES, 1993). Na perspectiva deste artigo, a

vigilância em saúde deve ter base territorial e popular, incorporando,

simultaneamente, a determinação social do processo saúde-doença das epidemias e a

promoção da saúde como eixo norteador de processos e ações.

O Território como lócus de mobilização social

Vivemos em um período histórico de profundas alterações nos modos de vida

de pessoas e da sociedade, resultado do processo de globalização da economia com

expansão e incorporação massiva de processos técnicos em redes de cadeias

produtivas e de finanças em todos os lugares do planeta, com apropriação de recursos

locais e intensificação de fluxos de circulação e de troca de informações,

materialidades e pessoas. (GONDIM et al, 2008)

A velocidade desses acontecimentos no espaço-tempo efetuam alterações

locais com consequências no ambiente, na vida social, na cultura e na política, que

exigem respostas imediatas de setores governamentais - como a saúde - para vigiar e

prevenir problemas e dar assistência às populações da cidade , do campo e da floresta.

Neste processo, emerge como contraponto à globalização (SANTOS, 1999) a questão

do local e do território vivido. Estes devem ser observados não só como lócus da

habitação, mas também como lugar para a produção, para as trocas materiais e

simbólicas e para convivência entre as pessoas.

O processo de globalização tem como característica central a transposição de

qualquer forma de fronteira física ou simbólica, no âmbito individual e coletivo.

Problemas de toda ordem circunscrevem desafios complexos e multidimensionais. A

globalização da economia e a intensidade de seus fluxos homogeinizam recursos e

trocas, subtraindo particularidades e singularidade dos territórios e propiciando

mudanças rápidas e significativas na propagação de doenças e patógenos (vírus e

bactérias) por todo o planeta.

Em contraposição, a vigilância em saúde - ideia proposta e disseminada no

Brasil a partir dos anos 1980 - tem como pilar o território, entendido como lugar onde

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se produz a vida social e onde são evidenciadas potencialidades, necessidades e

problemas de saúde. O entendimento dessa realidade específica e local possibilita

estruturar tecnicamente ações para melhoria das condições de vida e saúde das

populações. Nessa acepção o território constitui-se como categoria central para

operacionalização de diferentes formas de intervenção visando o enfrentamento das

múltiplas e singulares situações de saúde.

No Brasil, a proposta de Vigilância da Saúde de base territorial (TEIXEIRA,

VILLAS BOAS e PAIM, 1998; MENDES, 1993; MONKEN e BARCELLOS, 2005)

surge como modelo tecnológico de organização do processo de trabalho e da atenção

à saúde, apoiado na observação e contextualização dos determinantes sociais da saúde

e na concretude dos processos sociais que ocorrem no território, os quais contribuem

para estruturar práticas sanitárias por meio da participação social e da

intersetorialidade.

Para compreender cada contexto sócio-sanitário, a Vigilância da Saúde de

base territorial aciona diversos conhecimentos - epidemiológicos, geográficos,

sociológicos, educacionais - indispensáveis ao agir estratégico. Além disso, ao micro-

territorializar situações-problema, essa perspectiva materializa e evidencia as

necessidades das populações, e, contando com a participação popular para solucionar

questões, busca assegurar o acesso a serviços e ações de saúde, de forma integral,

efetiva e equânime (MENDES, 1993).

Território e participação social no enfrentamento dos problemas de saúde

Território é conceito que nos ajuda a descrever e entender as formas de viver

no planeta. Possibilita a análise social de populações nos âmbitos geral, particular e

singular (CASTELLANOS, 1990; MONKEN e BARCELLOS, 2005; GONDIM,

2011) contribuindo para o conhecimento dos modos e estilos de vida das pessoas e

grupos: sua cultura e tradições, saberes, ideias, sentimentos, projetos e interesses

diversos que se materializam na apropriação e controle de espaços. O território

também expressa diversas dimensões da existência humana (física, política,

econômica, social, ambiental, epidemiológica, sanitária, subjetiva) que podem ser

base estruturante para a mobilização social e intervenção intersetorial, no

enfrentamento das arboviroses e outros problemas de saúde.

Conhecer o território contribui para o entendimento do processo saúde-

doença-cuidado e para identificar formas de uso que podem potencializar a

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capacidade operacional do sistema de saúde local, de modo a organizar ações e

serviços no enfrentamento aos problemas e as necessidades da população. O olhar

sobre o território permite reconhecer singularidades espaciais, dinâmicas sociais,

econômicas e políticas e decodificar os múltiplos saberes (populares, técnicos,

tecnológicos) que lhes aferem sentidos e significados. Também possibilita aos

profissionais de saúde compreender a produção social da saúde, contribuindo para a

implementação de práticas de cuidado e de atenção à saúde efetivas junto aos

diferentes grupos populacionais. (MONKEN e GONDIM, 2016)

Poder é o conceito chave para entender o significado de território. Expressa a

possibilidade de exercer mando, julgo ou imposição de vontade ou projeto particular a

outras pessoas, grupos, instituições. Tem sido exercitado, para além da sua

contribuição na definição do Estado, como característica singular de todos os atores

sociais que usam e disputam ideias, intenções e desejos no espaço coletivo ou

particular. A população, as empresas, o poder público, os grupos sociais, as diversas

organizações sociais, culturais, religiosas e outras possuem poder e o exercem de

acordo com seus planos e projetos; e com suas capacidades de fazer com que eles se

materializem. As redes comunitárias também exercem poder de apropriação sobre o

território. Estruturam-se no cotidiano, fortalecendo os processos de vizinhança, de

relações comunitárias e de coexistência da diversidade entre pessoas e grupos.

Essas relações constroem processos de apoio social por meio de atores locais

que realizam práticas populares como ervateiros, parteiras, benzedeiros curandeiros,

cuidadores informais de idosos e de crianças, entre outros. São saberes populares que

fortalecem os laços, os vínculos e as identidades territoriais, no enfrentamento dos

problemas e na busca de suprir as necessidades locais, sendo fundamentais na

mobilização da população. Essa dinâmica ocorre fortemente em nível local, nos

territórios de comunidades com população de baixa renda, onde se observa acentuada

exclusão social e busca ativa às redes de apoio como uma estratégia de sobrevivência

(MONKEN e GONDIM, 2016).

A sociedade ao produzir e se apropriar do território cria regras de uso e de

poder. Tais relações de poder ditam regras sociais ou leis específicas, que podem ser

criadas pelo Estado (formais) ou pela sociedade (informais). As formais estão escritas,

nem todos as conhecem, mas devem se submeter a elas. As informais não estão

escritas, todos as reconhecem e as seguem se forem pactuadas pelo coletivo. As

regras, leis e os estilos de vida são códigos, valores e significados que permeiam o

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cotidiano e que afetam a conduta das pessoas criando, inclusive, culturas de

comportamento. Reconhecer estas regras é fundamental para que se organize qualquer

tipo de mobilização social no enfrentamento de problemas locais.

Dinâmicas territoriais criam diferentes territorialidades que expressam

relações de poder que, por sua vez, afetam recortes espaciais singulares. Desta forma,

as territorialidades são estratégias que os atores sociais, individuais ou coletivos,

públicos ou privados, utilizam para influenciar ou controlar pessoas, recursos,

fenômenos e relações, delimitando e efetivando o controle sobre uma área,

comunidade, bairro, município, estado e até mesmo país (SACK, 1986).

Na atualidade vem se intensificando a produção de multiterritorialidades, dada

a diversidade crescente de atores com projetos distintos suscitando processo constante

de transformação. Significa a sobreposição de várias intenções de uso e controle sobre

o território por diferentes atores ao mesmo tempo. Cada território pode conter

diversas formas de uso que demarcam objetivos distintos.

São moradores que vivem no lugar, empresas que se utilizam do território para

produzir e comercializar mercadorias, associações de todo tipo que atuam localmente.

Há ainda grupos sociais que atuam clandestinamente por meio da violência como as

gangs e quadrilhas, que impõem suas regras de apropriação do território. O poder

público também cria territorialidades quando atua de forma específica. Por exemplo,

no caso dos serviços de saúde e das escolas, com seus processos de trabalho

particulares, que se estruturam de acordo com as características de cada contexto

local. Esse movimento de muitos interesses em disputa no mesmo território gera

conflitos que devem ser identificados, compreendidos e solucionados. Reconhecer

estes processos e seus múltiplos atores contribuirá na mobilização de populações

(HAESBAERT, 2004).

Para entender a multiterritorialidade podemos comparar esse processo ao que

acontece em uma “quadra esportiva polivalente”. Há demarcações na quadra - o

território - para diferentes esportes a serem praticado: futebol, basquete, vôlei,

handebol, entre outros. Cada modalidade tem suas regras. De modo análogo, a

multiterritorialidade traduz diferentes formas de apropriação e uso do território por

pessoas e grupos, que acontecem simultaneamente, de modo sobreposto, algumas com

maior outras com menor potência (MOREIRA, 1987; MONKEN e GONDIM, 2016).

Vivemos cotidianamente em permanente processo de territorialização, ou seja,

buscando nos fixar a territórios - lugares que nos propiciem construir identidade,

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regras e vínculos. No entanto, também sofremos ou somos submetidos,

principalmente no capitalismo, a processos de perda do território, o que denominamos

desterritorialização. Esta se caracteriza por dinâmicas sociais em que grupos de

população são alijados do acesso ao território no sentido mais básico e material da

existência, como o são os sem terra, os sem teto, os quilombolas, os pescadores

artesanais, os indígenas e os excluídos socialmente dos benefícios do progresso

material (HAESBAERT, 2004).

Os sistemas econômicos concentradores de renda promovem não só a

desterritorialização, mas também, a precarização das condições de vida da população.

Territórios vulneráveis são caracterizados por oferta irregular de esgotamento

sanitário, abastecimento de água, coleta de lixo, drenagem de águas pluviais dentre

outros serviços essenciais, o que potencializa a ocorrência de determinados grupos de

doenças, como as arbovisoses, cuja determinação social está associada a baixos

padrões de saneamento ambiental e de condições de vida. Verificam-se nesses lugares

problemas recorrentes de mobilidade urbana e de segurança alimentar e ainda, na

maioria das vezes, frágil coesão social e força comunitária, cuja participação popular

em processos de mobilização torna-se um desafio a mais para o controle de doenças.

São muitos os territórios de exclusão e exceção dentro da cidade. São

contextos, muitas vezes com alta densidade demográfica, com fortes impactos de

vizinhança (violência; tráfico; poluição, etc.) e geografia peculiar em função da

proximidade/aglomeração dos objetos do território - vias públicas, rios, moradias,

estabelecimentos produtivos (pequenas indústrias e comércios). Some-se a isso a

precariedade dos acessos a pessoas e mercadorias, por meio de estreitos logradouros,

becos e vielas, intensificando os fluxos, o contato e a inter-relação com o entorno.

(MONKEN e GONDIM, 2016). Esses grupos excluídos socialmente e

desterritorializados, são potenciais vítimas das arboviroses e, ao mesmo tempo, atores

fundamentais para o seu enfrentamento.

Identidade social e território: elementos estruturantes na mobilização social

Os territórios são diferentes, possuem grande heterogeneidade espacial e

grande homogeneidade interna. Configuram-se a partir de interesses particulares tanto

de pessoas, como grupos e instituições que o produzem para atender a objetivos e

finalidades específicas de acordo com projeto de cada um. Existem territórios que

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apresentam perfis singulares como as comunidades de pescadores, de agricultura

familiar, de operários, e também aqueles onde predomina abundância e riqueza.

A identidade que a população tece no território, muitas vezes é resultado de

processos de longa permanência de relações sociais marcadas no espaço-tempo,

vinculando questões de pertencimento e vínculo das pessoas aos lugares de vida. São

processos que incorporam práticas culturais, hábitos e comportamentos imbricados

nas relações sociais. Por essa razão, são fatores estruturantes do território e

fundamentais para as ações de mobilização e de organização comunitária.

As características sociais, culturais, ambientais e sanitárias que envolvem as

identidades territoriais e as representações que a população lhes atribui, tornando-as

realidades, interferem nas práticas em saúde no território, principalmente aquelas que

incorporam a população nas ações de saúde. A participação popular nas práticas de

saúde é vital para ampliar a atuação comunitária e aproximá-las das equipes e dos

serviços de saúde no controle e vigilância dos problemas de saúde, possibilitando a

construção de pactos comunicativos e participativos.

Mobilizar a população para ação, como ator central para o cuidado com seu

território de vida, significa conduzir pessoas a agirem em conjunto, o que necessita,

criar estrutura para estabelecer relações de cooperação e de uso de recursos com o fim

de levar a mobilização a termo. Neste sentido, a vigilância da saúde de base territorial

fundamentada pela prática estratégica de informação-decisão-ação, pode trazer maior

eficiência e sustentabilidade na mobilização social estruturada a partir do

Planejamento Estratégico Situacional - PES (TEIXEIRA, PAIM E VILASBÔAS,

1998; MENDES, 1993).

O enfoque estratégico-situacional proposto originalmente por Carlos Matus

(1993) indica possibilidade de subsidiar práticas concretas em qualquer dimensão da

realidade social e histórica, contemplando, simultaneamente, a formulação de

políticas, o planejamento e a programação em saúde. Baseado na teoria da produção

social vê a realidade como indivisível e entende que tudo o que existe em sociedade é

produzido pelo homem (TEIXEIRA, PAIM E VILASBÔAS, 1998; MENDES, 1993).

Portanto, é ferramenta indispensável para apoiar ações de vigilância da saúde que

pressupõem a promoção da saúde e a intersetorialidade.

Para efetivar práticas de vigilância da saúde de base territorial incorporando a

mobilização social para o enfrentamento de problemas de saúde deve-se conhecer as

diversas dimensões do território (política, econômica, ambiental, sanitária, cultural,

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outra), dado que influenciam diretamente a história de vida das pessoas e, determinam

formas de perceber, experimentar e vivenciar a saúde e a doença.

A dimensão política também é vital para qualquer forma de mobilização social

no território. O reconhecimento dos atores sociais, suas capacidades e poder de ação

local e seus recursos, são fundamentais para efetividade do processo. Identificar quais

os projetos de cada ator social no território e quais recursos materiais e simbólicos

podem ser acionados no lugar para implementar ações, vão indicar quais são

fundamentais para mobilizar efetivamente a população.

A dimensão cultural também se destaca, já que a cultura é meio pelo qual as

pessoas organizam e legitimam seu grupo na sociedade, produzindo elementos para a

sua organização social, política e econômica. Inclui conhecimentos, crenças, arte,

moral, leis e costumes que as pessoas adquirem e desenvolvem junto aos lugares e

contextos sociais ao longo da vida, influenciando comportamentos, percepções,

emoções, linguagem, religião, rituais, estrutura familiar, dieta, modo de vestir,

imagem corporal, conceitos de tempo e espaço e atitudes frente à doença, à dor e a

outras formas de infortúnio (DIAS & DIAS, 2010).

Nesse cenário, os processos de mobilização social devem incorporar

elementos teóricos e práticos da política e da cultura do território reconhecendo-os

como dispositivos para sua efetivação/potencialização. O conhecimento das regras,

normas e leis que estruturam o poder local, muitas vezes se materializam também na

cultura permitindo compreender os problemas e as necessidades em saúde, individuais

e coletivas, além de imprimir significados próprios à vida social que favorecem à

mobilização, à emancipação e ao empoderamento comunitário.

O conjunto de dispositivos identificados no território abrem possibilidades de

encontros cooperativos entre as pessoas, fortalecidos pelo vetor identidade para

construir formas diversas de mobilização, potencializando a capacidade local de

promover coletivamente melhorias nas condições de vida e na situação de saúde e

implementar ações específicas, em acordo com sua identidade.

A territorialização em saúde para a mobilização social .

Para intervir em situação de saúde específica, tendo como estratégia de ação a

mobilização social, é fundamental analisar as condições de vida do território,

identificando atores, recursos e regras sociais de convivência que traduzem, na

realidade local a dinâmica da vida cotidiana e determinam, em maior ou menor escala,

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o estado de saúde e a qualidade de vida da população. O processo de territorialização

em saúde possibilita realizar análise das condições de vida de determinada população

permitindo que os grupos populacionais e os agentes públicos, em particular os da

saúde, reconheçam a situação de saúde local, embasando a tomada de decisão e a

definição de estratégias apropriadas. O reconhecimento do território para as ações de

saúde pública (territorialização em saúde) se realiza com a identificação de atores

sociais, de potencialidades locais, de ameaças à saúde, de vulnerabilidades, de

equipamentos públicos, de lideranças e resgate da história de ocupação do território,

suas tradições e manifestações culturais.

Este processo se viabiliza a partir da observação de campo sistemática com

coleta de dados primários e secundários, a ser realizada por equipe de saúde em

conjunto com a população, relacionando objetos identificados no lugar com as ações

que cada ator social (individual ou coletivo, publico ou privado) promove no contexto

da vida. O objetivo é identificar territorialidades estruturadas pelos atores locais e

suas características socioculturais distintas. Pressupõe ainda a análise dos contextos

locais pautada na teoria da produção social, o que impõe desenvolvimento de

estratégias de investigação e elaboração de instrumentos de coleta de dados para a

realização de diagnóstico, planejamento e intervenções sanitárias visando a melhoria

das condições de vida e saúde das populações (MONKEN, 2008).

No processo de territorialização são utilizadas técnicas de pesquisa qualitativa

e quantitativa para identificar, conhecer, analisar e intervir sobre problemas e

necessidades em saúde. Existem inúmeros instrumentos que podem ser utilizados,

alguns são indispensáveis (MONKEN e GONDIM et al, 2016a):

Dados primários - (a)reconhecimento e mapeamento do território: coleta

informações sobre riscos, vulnerabilidades (poluição, resíduos, esgoto a céu aberto,

violência, outros), doenças e agravos; famílias, grupos sociais e instituições (redes de

apoio social, igrejas, templos, escolas, serviços de saúde, outros); meios de

comunicação (jornais de bairro, rádio comunitária, redes sociais); limites físico-

espaciais; objetos da geografia física e construídos (edifícios, estradas, escolas,

comercio, ruas, pontes, equipamentos públicos, outros); (b)entrevista: ouve atores do

território para conhecer a história de ocupação; os problemas e necessidades

percebidas e as potencialidades que podem ser acionadas para resolução de

problemas; identifica organizações e sua capacidade de ação - do poder público, em

especial do setor saúde, de entidades civis (ONGs, igrejas, associações e redes de

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cuidado informais); movimentos sociais (grupos de rap, funk, sem teto, usuários de

drogas, mulheres) e lideranças comunitárias; (c)observação de campo: anotações e

fotografias para reconhecimento de singularidades locais, tais como lugares de

encontro da população e de ações comunicativas (praças, igrejas, associação de

moradores, quadras esportivas, campos de futebol, bares, outros.).

Dados secundários – (a)demográficos: (população absoluta, por faixa etária,

por gênero, níveis educacionais e taxa de alfabetização de adultos; perfil

epidemiológico); (b) geomorfológicos: clima, temperatura, relevo, hidrografia; (c)

estrutura sanitária e produtiva: distribuição de água, de esgoto, de lixo; de

domicílios; de serviços de saúde, de transporte, de segurança, de finanças, de

comunicação; de estabelecimentos escolares públicos e privados; de estabelecimentos

produtivos (indústrias, comércio e serviços)

A análise de agrupamento e de relacionamento entre informações primárias e

secundárias vão subsidiar a produção de diagnóstico de condições de vida e situação

de saúde de territórios, que devem ser compartilhados e pactuados localmente,

possibilitando processos de mobilização social entre a população e agentes públicos

(da saúde, do saneamento, da assistência social, do desenvolvimento urbano e rural,

outros) como vista a organização de intervenções cooperativas e participativas. A

dinâmica da territorialização/ reconhecimento/ aprendizagem/ mobilização/

intervenção, no caso das arboviroses pode se constituir, simultaneamente, como

aprendizagem coletiva sobre as condições de vida e a situação de saúde de territórios,

e como dispositivo para a integração e mobilização social na busca de soluções para o

enfrentamento dos problemas de saúde.

Desse modo, a inserção comunitária no processo de territorialização em saúde

é estratégica para a mobilização social. O eixo central dessa metodologia pedagógica

de conhecimento e reconhecimento do território consiste na estruturação de

compromissos e solidariedade entre comunidade e agentes públicos locais,

principalmente do setor saúde, com capacidade para construir base de cooperação e

corresponsabilidade, para planejamento, definição e desenvolvimento de práticas

sanitárias apropriadas e para o enfrentamento dos problemas de saúde.

Comunicação para Mobilização Social

No que se refere à mobilização social em torno das arboviroses (e outros

problemas de saúde), as estratégias utilizadas nas últimas três décadas por diferentes

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esferas do governo brasileiro, passam principalmente por ações de comunicação.

Desde as primeiras epidemias de dengue nos anos 1980, são empreendidas campanhas

publicitárias, baseadas em peças e discursos produzidos majoritariamente de modo

centralizado (em geral por agências de propaganda contratadas pelo Ministério da

Saúde), refletindo a tradicional concepção da comunicação como "transferência de

informação" (ARAÚJO e MIRANDA, 2007).

Os discursos veiculados tendem a responsabilizar o cidadão pela superação

das epidemias com slogans como "Dengue, Zika e Chikungunya: se você agir

podemos evitar2" ou "O Combate à Dengue está em Suas Mãos"

3. Spots de rádio e

TV, panfletos e cartazes fazem um forte apelo para que as pessoas participem

eliminando criadouros do mosquito em suas casas, o que embora seja fundamental

não é suficiente, visto que os determinantes sociais das arboviroses vão muito além

dos hábitos individuais de cada cidadão. Por exemplo, de nada adiantará o esforço

contínuo de eliminar focos do mosquito numa residência localizada em bairro sem

saneamento básico ou sem coleta de lixo.

Seja como for, o agravamento do quadro sanitário sugere que tais estratégias

comunicacionais foram ineficazes mesmo no que se refere à mobilização social.

Considerando os resultados do modelo adotado, nos é possível questionar a ideia de

uma relação causal entre uma "boa comunicação" e a "mudança de comportamento".

Em artigo publicado em 2009, Miranda e Lerner se opõem a esta concepção,

defendendo, como alternativa, ações de comunicação que considerem os diferentes

contextos (local, existencial e situacional) em que se inserem os indivíduos e grupos

com quem se pretende dialogar (e não "a quem se deve informar"). Não se trata de

falar de Dengue, Zika e Chikungunya, mas de falar de Dengue, Zika e Chikungunya

na comunidade.

Tomando como referência o documento “mobilização social: um modo de

construir a democracia e participação” de José Toro e Nísia Werneck, a mobilização

social ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade ou uma sociedade,

“decide e age com um objetivo comum, buscando, cotidianamente, resultados

decididos e desejados por todos” (1999). Esta construção coletiva pressupõe troca,

produção, disputa e agenciamento de ideias e sentidos, processo que se materializa,

2 Campanha desenvolvida pelo Ministério da Saúde brasileiro em 2017. 3 Campanha desenvolvida pelo Ministério da Saúde brasileiro em 2015.

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justamente, por meio da comunicação social no âmbito de cada espaço-tempo

específico. Portanto, a comunicação que viabiliza a mobilização popular é aquela que

se processa no contexto do território, entendida, nas palavras de Orozco (1993), como

um processo multimediado, multidimensional e mutidirecional, onde todos falam

ainda que, notadamente, de lugares de fala e níveis de empoderamento distintos.

Mobilização, portanto, não pode ser confundida com propaganda ou

divulgação, mas exige um processo de compartilhamento de discursos, visões e

informações. Pressupõe incluir o outro na tomada de decisão e não apenas transmitir

verticalmente o que deve ser feito, principalmente quando nos referimos aos

determinantes sociais (proximais ou distais) da saúde que precisam igualmente ser

objetos de enfrentamento sanitário.

Mobilização Social & Territórios vulneráveis em contextos de Zika e doenças:

Relatos de Experiências

Em 2015, Gonçalves e colaboradores, publicaram artigo de revisão

integrativa, com trabalhos sobre conhecimentos, atitudes e práticas da população

brasileira acerca da dengue. Dos artigos avaliados, os autores observaram que persiste

lacuna a ser preenchida no que diz respeito ao empoderamento da população como

partícipe ativo do processo, ao invés de meros espectadores das definições da política

oficial. Ressaltam a necessidade de atuar na comunidade, levando em consideração as

particularidades do território. Destacam a importância do desenvolvimento do senso

de responsabilidade e de não culpabilização do cidadão, bem como a promoção do

diálogo entre ciência e senso comum. Nessa perspectiva, que abordagens podem

contribuir para fortalecer o engajamento da população na prevenção e controle do

Aedes aegypti? Descrevemos a seguir experiências desenvolvidas em Belo Horizonte

e Rio de Janeiro que podem apontar caminhos.

Vigilância comunitária para fortalecer a mobilização social para o

enfrentamento da tríplice epidemia de dengue, zika e chikungunya: proposta em

andamento no estado de Minas Gerais (MG)

A proposta aqui descrita resulta de uma ação do Centro de Pesquisa René

Rachou, unidade da Fundação Oswaldo Cruz, em Minas Gerais. As atividades já

foram iniciadas e serão organizadas em três eixos: 1) formação de comitês populares,

2) definição de tecnologias sociais baseadas em redes de solidariedade voltadas para

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mulheres em idade fértil, gestantes com diagnóstico de infecção pelo vírus zika, e

bebês com microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central relacionadas ao

vírus zika e, 3) elaboração de propostas para políticas públicas.

Os comitês populares estão sendo implementados em escolas da Rede Pública

Estadual (RPE) e atuarão na vigilância comunitária no território, Serão espaços de

ação e reflexão. A RPE de Minas Gerais conta com 47 Superintendências Regionais

de Ensino (SRE) abrangendo um total de 3.665 escolas em todo o estado. A ideia é

que os comitês sejam compostos por alunos, pais, professores e outros moradores,

membros da comunidade escolar. Cada comitê deve, em conjunto com a população,

definir e implantar estratégias participativas para o reconhecimento, análise e

discussão sobre o território, visando a elaboração de um diagnóstico da situação de

saúde e condições de vida na localidade, a fim de viabilizar o planejamento de

propostas de mobilização social visando ambientes favoráveis à saúde.

O trabalho é concebido na perspectiva da educação popular e todas as

atividades serão desenvolvidas por meio de técnicas da pesquisa-ação. Para a

implantação da proposta foi criada uma rede intersetorial formada por profissionais da

Fundação Oswaldo Cruz (Unidades do Rio de Janeiro e Minas Gerais), da Secretaria

de Estado da Educação, da Secretaria de Estado da Saúde, da Escola de Saúde Pública

de Minas Gerais e da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). A

implantação dos comitês está sendo realizada de forma gradativa e até fevereiro de

2017, 16 das 47 SREs haviam sido convidadas.

Cada escola que aceitou participar indicou um representante para coordenar a

o trabalho no território em que a escola está inserida. A capacitação dos membros dos

comitês conta com o apoio de uma plataforma on line e a intermediação de tutores.

Entre os temas abordados estão as enfermidades, o vetor e as condições favoráveis

para a proliferação, os conceitos de território e territorialização, a metodologia para

elaboração do diagnóstico local, a participação popular e processos de comunicação.

Em fevereiro de 2017, os coordenadores dos comitês das 214 escolas que

aceitaram participar do processo já estavam em contato com os tutores por meio da

plataforma digital e se preparavam para constituir os comitês e iniciar a capacitação

de seus membros. Após essa capacitação, e com o apoio dos tutores, os comitês

organizarão oficinas em suas comunidades, realizarão o diagnóstico local e o

planejamento das ações em cada território. O projeto prevê o desenvolvimento de

estratégias de comunicação para ampliar o debate sobre a determinação social da

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epidemia. Do mesmo modo, os processos e as ferramentas da comunicação serão

utilizados na resolução dos problemas locais e na prospecção de riscos. A formação

de redes de solidariedade, para suporte a mães e bebês vítimas de sequelas do Zika

vírus (a microcefalia, por exemplo) está em discussão, e uma proposta piloto está em

curso.

Toda a proposta será avaliada por meio de pesquisa avaliativa tendo como

abordagem a análise de implantação da proposta que consiste em estudar as relações

entre a intervenção e seu contexto durante sua implementação. Para isso será

realizado estudo de caso, analisando de forma mais aprofundada a implementação da

metodologia, em cada contexto organizacional local. Serão elaborados indicadores

destinados a avaliação da adesão à proposta, adequação da plataforma on line,

trabalho dos tutores, condições favoráveis para a proliferação do vetor, redes de

solidariedade. Para a coleta dos dados serão utilizados questionários, entrevistas,

grupos focais e levantamentos. A proposta é inovadora e poderá contribuir para a

mobilização social, empoderando populações para o enfrentamento das arboviroses.

Figura 1 – Modelo de capacitação dos Tutores e dos Comitês Populares de Mobilização Social para o

enfrentamento das arboviroses no Brasil – Experiência relatada pelo Centro de Pesquisas René Rachou /

Fiocruz – MG / Baseado no artigo de Sanchéz et al (p. 64) citado em obras consultadas

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Rede de Controle do Aedes aegypti em Manguinhos – Rio de Janeiro

Manguinhos é um bairro de ocupação centenária, situado na região norte da

cidade do Rio de Janeiro, cuja delimitação espacial por vezes supera os limites

legalmente estabelecidos pela gestão do município. Sua ocupação revela um mosaico

de distintos movimentos sócio históricos, com a característica de ter sido alvo de

diversos projetos urbanos inconclusos.

Como o próprio nome sugere, Manguinhos antes da intervenção do homem

era um território de mangue. Os rios que atravessam a região tiveram seu curso

alterado e recebem o esgoto da maior parte das 10 mil moradias hoje existentes no

bairro, sem qualquer tratamento. Em dias de chuva muitos desses rios transbordam

num cenário de edificações baseadas na autoconstrução, sem regulamentação

formal/legal, tanto no que se refere ao uso do solo (regularidade fundiária) como em

relação ao processo construtivo (gabaritos não aprovados, materiais mistos, redes de

esgotos improvisadas, etc).

Apesar de um histórico que soma a atuação política de base clientelista e

paternalista por representantes do Estado, com os cerceamentos (em geral violentos)

impostos pela polícia e por quadrilhas de traficantes, a história de Manguinhos

registra diversos movimentos e insurgências em prol dos direitos e da vida de sua

população, abordando questões como habitação, saúde, saneamento, paz, segurança,

entre outros.

Situada no bairro Manguinhos, o principal campus da Fundação Oswaldo Cruz

mantém uma relação histórica com a população do entorno, sobretudo com a

prestação de serviços de saúde a partir de 1967, com a inauguração do hoje chamado

Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria. Mais recentemente, o relacionamento

da Fiocruz e as populações residentes em Manguinhos se balizam na lógica de

‘cooperação’ com os coletivos e organizações locais, entendimento este presente na

perspectiva moderna de Promoção da Saúde.

É neste contexto que emerge a Rede de Controle do Aedes aegypti em

Manguinhos. Frente aos anúncios midiáticos desencontrados sobre possíveis

epidemias de Dengue, Zica ou Chikungunya, todas transmitidas pelo mosquito Aedes

aegypti, a Cooperação Social da Presidência Fiocruz recebeu as preocupações de

diversos ativistas sociais da localidade. Foi realizada, então, uma convocação a toda

comunidade cientifica da Fiocruz para uma reunião com representantes das

Associações de Moradores Locais, do Conselho Comunitário de Manguinhos e do

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Conselho Gestor Intersetorial do Teias Escola Manguinhos (CGI-TEIAS)4, com o

objetivo de se estabelecer estratégias de ação.

A reunião aconteceu em dezembro de 2015. As sugestões eram muitas e foram

referenciadas experiências anteriores vivenciadas em Manguinhos no controle da

Dengue. Neste encontro foi planejado, para o dia de janeiro de 2016, um mutirão

para vistoria de casas da comunidade, com a presença confirmada de agentes de

saúde, auxiliares de controle de endemias, trabalhadores da Fiocruz, ativistas sociais e

representantes do governo municipal.

Este primeiro mutirão suscitou uma serie de questões, que contracenavam com

a memória dos eventos realizados em anos anteriores, sob diferentes contextos. Esta

reflexão deu origem ao "Plano de Controle ao Aedes territorial", que se estruturou sob

as seguintes premissas: a) compreensão do território de Manguinhos de forma

ampliada, b) presença da cobertura total da Estratégia de Saúde da Família no

território; c) participação popular na tomada de decisão, em todas as fases do plano;

d) o controle do vetor a partir de uma abordagem ecossistêmica e adoção de gestão

integrada; e) uso de diversas tecnologias validadas por pesquisadores da Fiocruz para

o controle do Aedes aegypti.

Além dessas premissas, foram elencados 4 eixos de atuação: 1o Mutirões –

Articular órgãos públicos e sociedade civil organizada no território para ações de

educação em saúde, coleta e destinação adequada de inservíveis de grande porte e

visitas domiciliares; 2o Formação de Agentes Populares de Saúde e Ambiente –

Jovens da comunidade seriam acionados e preparados para fazer o monitoramento

permanente de possíveis focos; 3o Comunicação Popular e Saúde – Fortalecer o

Jornal Local e outras mídias alternativas atuantes no território de Manguinhos; 4o

Monitoramento – Estabelecer um núcleo de centralização de informações resultantes

das ações.

O segundo e quarto eixos não avançaram pela ausência de financiamentos. Na

perspectiva comunicacional, teve destaque o Jornal "Fala Manguinhos", produzido

por moradores da comunidade que, na versão impressa e no Faceboook, abordaram o

tema do enfrentamento das epidemias de modo permanente. Os mutirões seguiram

4 O CGI-TEIAS é um conselho de saúde formado por representantes dos usuários, trabalhadores da saúde e da gestão. Tem caráter deliberativo e conta com representantes de usuários do sistema público de saúde de diferentes segmentos (negros, mulheres, juventude, etc.

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com força até o final do primeiro semestre de 2016, garantindo ações em cada

sublocalidade de Manguinhos.

A experiência nos mutirões evidenciou a precária e ineficaz coleta de lixo do

território e o parco fornecimento de água encanada por parte do Estado. Em relação

aos serviços de saúde, constatou-se que a atuação dos agentes comunitários de saúde e

dos auxiliares de controle de endemias não eram regidos pela mesma adscrição

territorial, o que inviabilizou um planejamento de atuação domiciliar eficaz. Este dado

motivou o coletivo a buscar um encontro com a Secretaria Municipal de Saúde, o que

de fato não ocorreu.

Outro obstáculo era o horário de expediente de auxiliares de controle de

endemias, que até o final de 2016 estavam proibidos pela gestão central da Prefeitura

de trabalharem aos sábados, domingos e feriados, justamente o melhor dia para

realizar as visitas domiciliares no território. (Nos dias de semana, em horário útil, boa

parte das casas estava fechada, já que os moradores estavam trabalhando).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências relatadas e a reflexão sobre o cenário das arboviroses no

Brasil, apontam uma série de obstáculos que dificultam o processo da mobilização

social imprescindível no enfrentamento não só das arboviroses, mas dos problemas de

saúde, de modo geral. Sintetizamos tais desafios na tabela abaixo:

Tabela 1

OBSTÁCULOS NO ENFRENTAMENTO DAS ARBOVIROSES

Ausência de enfrentamento dos determinantes sociais da saúde em territórios vulneráveis

Ações governamentais centralizadoras com baixa integração dos estados e dos municípios

Modelo comunicacional de caráter vertical, centralizado e apoiado em publicidade culpabilizadora da população

Ausência de territorialização e mobilização social, em que o enfrentamento de endemias/epidemias resultem do trinômio “ação-reflexão-ação reflexiva” permanente

Nossa reflexão aponta que a superação de tais obstáculos passa pela criação de

redes de informações para a tomada de decisões, constituídas de maneira horizontal e

com o engajamento democrático de diferentes atores sociais presentes em cada

território. Tais redes podem viabilizar o desenvolvimento de modelos alternativos de

enfrentamento dos problemas de saúde. A partir de elementos metodológicos

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aglutinadores mínimos, presenciais e à distância, é possível facilitar trocas e

intercambiar respostas locais e regionais, estendendo-as/replicando-as, quando

possível, a outros territórios vulneráveis com características socioambientais

semelhantes.

Desta forma, torna-se fundamental “caminhar em direção” aos territórios

vulneráveis, conhecendo “por dentro” a sua realidade. Este diagnóstico é um ponto de

partida para o processo de mobilização social postulado. É imprescindível trabalhar a

partir de premissas de empoderamento, equidade e sustentabilidade, retroalimentando

intervenções de base local, considerando categorias como gênero, etnia, raça, cultura,

e o saber tradicional que emerge de cada grupo social em processo de mobilização.

Parece, pois, importante trazer à discussão reflexões sobre a a mobilização

social proposta, onde as pessoas atingidas pela crise sanitária devem ser protagonistas.

A participação nas decisões no desenvolvimento de políticas públicas, a inclusão de

ações de vigilância popular em saúde, a capacitação e a popularização da ciência,

aliadas à manutenção das pesquisas e assistência potencializam outros tipos de

resposta às arboviroses e outros problemas de saúde.

As pessoas podem ser convidadas à mobilização mas, em última análise,

participar ou não é uma decisão de cada um. A decisão depende das pessoas se

perceberem ou não como parte de todo o processo, e, acima de tudo, como capazes

de construir mudanças, pressupõe “uma convicção coletiva da relevância, um sentido

de público daquilo que convém a todos” (TORO e WERNECK, 1999).

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10) MONKEN, Maurício. Contexto, Território e Processo de Territorialização de

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Revisão em 23 de fevereiro de 2017 por Grupo Técnico do IdeiaSUS/Fiocruz.